Comentário Bíblico Beacon NARRATIVA RETOMADA: UM MINISTÉRIO DE MILAGRES Mateus 8.1-9.34 Uma das principais características deste Evangelho é o seu arranjo sistemático (veja Introdução). Depois de três capítulos de ensinos, agora encontramos dois capítulos de poderosos milagres. As palavras de Jesus são seguidas pelas suas obras. Da mesma maneira que Moisés, depois de dar aos israelitas a Lei no monte Sinai começou a realizar milagres para o povo, assim também o novo Moisés, depois de dar no monte os mandamentos básicos do Reino, realizou milagres para dar provas do poder do Reino. A respeito dele, ainda mais verdadeiramente do que a respeito do primeiro Moisés, poderia ser dito que "era poderoso em suas palavras e obras" (Atos 7.22). Pode-se definir "milagre", de uma maneira muito resumida e simples, como "uma interferência na Natureza por um poder sobrenatural"! O homem moderno questionou a credibilidade dos milagres. Mas C. S. Lewis coloca toda a questão sob o enfoque adequado ao escrever que: "O milagre central afirmado pelos cristãos é a Encarnação... qualquer outro milagre é a preparação para isso, ou é o resultado disso".2 Há dez "milagres do Messias" que estão registrados nos capítulos oito e nove. A predileção de Mateus por um arranjo sistemático também aparece no agrupamento dos acontecimentos destes dois capítulos. Primeiramente, ele apresenta três milagres – a cura de um leproso (8.1-4), de um paralítico (8.5-13) e da sogra de Pedro ( Mateus 8.14-17). Esses milagres são seguidos por uma breve seção de ensinos (8.18-22). Em seguida, vêm outros três milagres – a transformação da tempestade em bonança (8.23-27), a libertação de dois endemoninhados (8.28-34) e a cura de outro paralítico (9.1-8). A seguir, estão o chamado de Mateus (9.9), a festa em sua casa (Mt 9.1013), e uma discussão sobre o jejum (9.1417). O terceiro grupo de milagres inclui a cura da mulher com hemorragia e a ressurreição da filha de Jairo, mencionados juntos (9.18-26), a cura de dois cegos (9.27-31) e a cura do mudo endemoninhado (Mt 9.32-34). Estes são seguidos por uma afirmação de que Jesus passou por toda a Galiléia, ensinando, pregando e curando; também há uma observação a respeito da necessidade de obreiros. Dos dez milagres mencionados nestes dois capítulos, nove são curas, e o outro é um milagre da natureza. Jesus mostrou a sua autoridade divina sobre as enfermidades, a morte, os demônios e as tempestades. A. TRÊS MILAGRES DE CURA, 8.1-17
Purificação de um Leproso (8.1-4) Este acontecimento também está registrado em Marcos 1.40-45 e em Lucas 5.12-16. Como de costume, o relato de Marcos é o mais vívido dos três. Marcos coloca o episódio no final de uma viagem de pregação pela Galiléia. Lucas o coloca depois do chamado dos quatro primeiros 1.
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discípulos. Mas Mateus o coloca depois do Sermão do Monte. Isto está de acordo com o seu padrão de arranjo sistemático, agrupando em um lugar os ensinos de Jesus, e em outro os seus milagres. Um exemplo interessante das diferenças de vocabulário dos três Evangelhos Sinóticos, embora com o mesmo significado, se encontra aqui. Mateus diz que veio um leproso e o adorou (2). Marcos diz: "rogando-lhe e pondo-se de joelhos". E Lucas diz: "prostrou-se sobre o rosto e rogoulhe". Os três autores utilizam uma considerável liberdade de expressão para relatar os mesmos fatos, como seria de se esperar. Quando Jesus tocou o leproso (3), Ele se tornou cerimonialmente impuro, de acordo com a Lei. Mas, na verdade, o seu poder purificou a doença. Assim nós, ao invés de ficarmos contaminados pelo contato com os pecadores, deveríamos, pelo poder do Espírito Santo, ter uma influência redentora sobre eles. Como a lepra, na sua maneira de espalhar-se pelo corpo e de devastá-lo, é um tipo impressionante do pecado na alma, é completamente adequado que a sua cura seja mencionada como uma "purificação" (cf. Lv 14.2). Os versículos 2 e 3 sugerem o tópico "A Disposição do Amor" com três pontos: 1) O medo do homem — se quiseres; 2) A fé do homem — podes tornar-me limpo; 3) o cumprimento por parte do Mestre — Quero; sê limpo. Cristo mandou que o homem curado se apresentasse ao sacerdote, para que pudesse ser oficialmente declarado purificado (cf. Lv 14.1-52). A expressão para lhes servir de testemunho (4) se refere aos sacerdotes, pois Jesus já lhe tinha dado a ordem de não divulgar o ocorrido. Marcos conta que o homem curado desobedeceu esta ordem. O resultado foi que o Mestre passou a enfrentar um obstáculo em seu ministério de ensino; as grandes multidões que vinham em busca de curas (Mac 1.45; cf. Lc 5.15). Como de costume, a narrativa de Mateus é a mais curta das três.
Cura do Servo do Centurião (Mateus 8.5-13) Este episódio não é registrado por Marcos, mas somente por Lucas 7.1-10). Aconteceu em Cafarnaum, a cidade que Jesus tinha adotado como seu quartel-general. Um centurião — que era o oficial encarregado de cem soldados romanos — veio até Cristo com um pedido urgente. Um dos seus servos, "a quem... muito estimava" (Lc 7.2) jazia em casa paralítico e violentamente atormentado (6). Lucas diz que ele estava "doente e moribundo". Jesus imediatamente respondeu: Eu irei e lhe darei saúde (7). Mas o centurião objetou, dizendo que ele não era digno de que o Mestre viesse à sua casa (8). Tudo o que Jesus precisava fazer era dizer somente uma palavra e o seu servo seria curado. Ele argumentou que, assim como ele dava as ordens e elas eram obedecidas, da mesma maneira as ordens do Mestre teriam completa autoridade para a sua execução (9). Quando Jesus ouviu esta incomum declaração de fé no seu divino poder, maravilhou-se (10) e disse aos seus seguidores de pouca fé: Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tanta fé. Há somente uma outra ocasião em que se diz que Cristo se maravilhou, ou se admirou, e esta foi diante da incredulidade das pessoas da sua cidade (Mc 6.6). O Mestre deve ter sentido uma mistura de emoções ao ouvir as palavras do centurião — uma vibração de alegria diante da fé de um gentio, e uma pontada de tristeza diante da descrença dos seus companheiros judeus. Não se pode deixar de imaginar quais podem ser as Suas reações diante das atitudes dos membros da Sua igreja na atualidade. Será que estamos alegrando o coração de Jesus com uma convicta fé nele? 2.
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Somente Mateus registra, nesta ocasião,' a advertência de Cristo de que muitos gentios virão do Oriente e do Ocidente (11) para se sentarem à mesa com os patriarcas no Reino dos céus, ao passo que os filhos do Reino (12) — os judeus — serão lançados nas trevas exteriores (11-12). Este é um dos diversos pontos onde Jesus faz uma forte advertência quanto a estar perdido na noite da eternidade. Vindo no final desta demonstração de fé, o ensino é claro. Aqueles que vêm ao Reino dos céus o fazem por meio da fé. Aqueles que não possuírem esta fé serão lançados fora. O Mestre mandou que o centurião fosse para casa, com fé. E, naquela mesma hora, o seu criado sarou (13). William Barclay desenvolve essa história sob três títulos: 1) Um pedido de um bom homem (56); 2) O passaporte da fé (7-12); 3) O poder que aniquila as distâncias (13). Em um exame superficial, parece que Mateus e Lucas apresentam uma séria con tradição em suas narrativas (veja o comentário sobre Lc 7.1-10). Lucas diz que o centurião não veio pessoalmente até Jesus, mas enviou alguns "anciãos dos judeus" para fazerem o pedido. Eles rogaram muito, dizendo que o centurião amava a nação judaica e que tinha construído a sinagoga deles (Lc 7.5). Quando Jesus estava a caminho da casa do homem, ele "enviou-lhe... uns amigos" para lhe dizer que não precisava vir, mas apenas pronunciar uma palavra de cura. Todo o problema fica resolvido quando identificamos o hábito de Mateus de enfocar os acontecimentos através de um "telescópio", resumindo os fatos por meio de uma descrição breve e genérica, sem dar todos os detalhes. Inúmeros exemplos desse fenômeno podem ser encontrados no seu Evangelho. Neste caso, o centurião veio até Jesus representado por seus amigos. É interessante observar que todos os centuriões mencionados no Novo Testamento aparecem sob uma luz favorável. Além deste, os outros Evangelhos Sinóticos falam sobre o centurião junto à cruz, que deu um testemunho favorável por ocasião da morte de Jesus. Os demais centuriões são mencionados no livro de Atos. Um deles é Cornélio, (Atos 10), e o outro, Júlio, Atos 27. Eles foram melhores do que os governadores, que eram os seus superiores hierárquicos, e do que os soldados que lhes eram subordinados. 3. A Cura da Sogra de Pedro (8.14-17) Este milagre está registrado nos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mac 1.29-34; Lc 4.3841). Marcos e Lucas indicam que ele aconteceu quando Jesus e os seus discípulos retornavam de um culto na sinagoga, no sábado. Mas Mateus o coloca junto com uma série de eventos de cura, sem uma seqüência cronológica. Talvez Pedro estivesse embaraçado pelo fato de sua sogra não poder servir os convidados em sua casa. Mas Jesus tocou-lhe na mão, e a febre a deixou (15). O fato de que ela foi curada imediata e completamente está demonstrado pela afirmação de que ela levantou-se e serviu-os. Que emoção: "O toque da mão do Mestre na minha!" Os três Evangelhos Sinóticos também narram os muitos milagres de cura que ocorriam após o pôr-do-sol, quando o sábado já tinha terminado. Uma característica notória desta ocasião foi a expulsão dos demônios, ou espíritos (16). Como é característico, Mateus cita uma passagem do Antigo Testamento como tendo sido cumprida: Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças (17). Na versão ARC da Bíblia, em Isaías 53.4 lemos: "Verdadeiramente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si". Morison afirma que essas palavras, como estão
apresentadas em Mateus: Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças são "uma tradução mais literal do original hebraico do que a que está apresentada na nossa versão do Antigo Testamento".4 Além disso, "a palavra hebraica traduzida como tristezas em algumas versões, na verdade significa doenças, e é assim traduzida em quase todas as outras passagens onde aparece".' Filson observa que tomou e levou "têm aqui um significado Pouco comum: levou embora, removeu".6 B. O CUSTO DO DISCIPULADO, 8.18-22
Jesus era um trabalhador vigoroso. Mas apesar disso percebeu que Ele e os seus discípulos precisavam às vezes afastar-se da grande multidão (18) que constantemente se aglomerava em volta dele. Então, Ele ordenou que fizessem a travessia para a outra margem — a margem leste do lago da Galiléia, onde poderiam ter um período tranqüilo para descanso e isolamento. Um escriba (19) ansioso — um professor da Lei — aproximou-se de Jesus com uma oferta que soou como uma completa consagração: Mestre, aonde quer que fores, eu te seguirei. Mas Cristo pôs à prova este possível discípulo, lembrando-o de que as raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (20). Em outras palavras, Ele disse: "Pense no custo dessa decisão". Esta é a primeira vez, no texto de Mateus, que aparece o título Filho do Homem. Ele é usado oitenta e três vezes nos Evangelhos — sempre saindo dos lábios de Jesus e sempre se aplicando a Ele mesmo. Exceto nos Evangelhos, ele só aparece no Novo Testamento — com o artigo definido "o Filho do Homem" — em Atos 7.56. Já houve uma considerável discussão sobre o significado desta expressão. Vincent Taylor escreve: "Já se afirmou que bar nasha não pode querer dizer nada além de 'um homem' ou 'homem' em geral; mas agora se reconhece amplamente que o termo pode carregar o sentido de 'o Homem', e desta maneira poderia ser usado como um nome para o Messias". 7 Manson encontra uma correlação íntima entre Filho de Deus, Servo do Senhor (em Isaías) e Filho do Homem. Ele diz: "... funções a princípio atribuídas pelos profetas ao príncipe da linhagem de Davi e que nos Salmos reaparecem em uma forma transfigurada ou infiltrada de sofrimento na pessoa do Servo, e finalmente investida de todas as características de glória e esplendor apocalípticos na figura do sobrenatural Filho do Homem".8 Este último uso se encontra em Daniel 7.13. Um outro discípulo de Jesus lhe disse: Senhor, permite-me que, primeiramente, vá sepultar meu pai (21). A resposta do Mestre parece áspera: Segue-me e deixa aos mortos sepultar os seus mortos (22). Mas não devemos supor que o pai já estivesse morto e que Jesus estivesse tentando evitar a ida do discípulo ao sepultamento. A exigência na Palestina era que o corpo fosse sepultado no mesmo dia da morte. Provavelmente o pai desse discípulo ainda viveria por alguns anos. Mas, sendo o filho mais velho (aqui implícito), era sua responsabilidade cuidar para que quando o seu pai morresse, tivesse um sepultamento adequado. Jesus lhe informou que havia coisas mais importantes para fazer. Aqueles que estavam espiritualmente mortos poderiam sepultar aqueles que passassem a estar fisicamente mortos. Esta passagem só tem um paralelo em Lucas 9.57-62. Ali, um terceiro indivíduo é quem se oferece para seguir a Cristo. Mas antes ele quer se despedir dos que estão em casa. Isto poderia
significar dias de festas e de visitas a todos os seus parentes. Jesus o advertiu do perigo de "olhar para trás". Bonhoeffer expressou bem o principal impulso desta seção. Ele diz: "Jesus convoca os homens para segui-lo, não como um professor ou como um padrão de uma vida de caridade, mas como o Cristo, o Filho de Deus... Quando somos convocados para seguir a Cristo, somos convocados para uma ligação exclusiva com a sua pessoa".9 C. MAIS TRÊS MILAGRES, 8.23-9.8
1. Acalmando a Tempestade (8.23-27) Depois do atraso causado pela conversa com os dois homens (cf. v. 18), Jesus entrou em um barco com os seus discípulos (23). Este era provavelmente o pequeno barco de pesca de Pedro. Quando eles estavam cruzando o lago, se levantou (24) uma tempestade (seismos, "terremoto"). Enquanto o barco era coberto pelas ondas, Jesus estava dormindo (tempo imperfeito). Ele estava tão cansado que a tempestade não o despertou (veja também Mac 4.35-41; Lc 8.22-25). Muito assustados, os discípulos o despertaram com o grito: Senhor, salva-nos, que perecemos (25). Ele primeiro os repreendeu por temerem (26; de forma literal, "covardemente") e então repreendeu os ventos e o mar. O resultado foi uma grande bonança. Não é de surpreender que aqueles homens tenham se maravilhado (27). Em seus anos de pescaria no lago eles já tinham passado por muitas tempestades graves, mas nunca por uma que tivesse sido subitamente acalmada pela ordem de uma pessoa. A reação deles ainda hoje é pertinente: Que homem é este! Como um mero homem Ele seria completamente inexplicável.
2. Os Endemoninhados Gadarenos (8.28-34) Quando Jesus e os seus discípulos chegaram ao lado leste do lago da Galiléia — cerca de onze quilômetros de travessia — eles se encontraram no país dos Gergesenos. Isto pode representar a vila de Khersa, cujas ruínas estão próximas à única colina perto da costa leste. Mas em alguns manuscritos gregos consta "gerasenos" (a leitura em Marcos e Lucas). Gerasa estava a cerca de 48 quilômetros a sudeste do lago. "Gadareno" é o termo que os mais antigos manuscritos gregos apresentam no texto de Mateus. Gadara era a cidade mais próxima, a quase dez quilômetros de distância. O fato de Mateus mencionar dois (28) endemoninhados, ao passo que Marcos e Lucas falam somente de um, pode ser devido à sua mente de contador. Sendo um coletor de impostos, ele tinha que manter estatísticas cuidadosas. Os outros dois evangelistas podem ter mencionado somente o mais proeminente dos dois. Embora a descrição de Marcos seja mais completa e vívida, Mateus é o único que diz que tão ferozes eram, que ninguém podia passar por aquele caminho. Esses dois homens estavam colocando em perigo a vida dos habitantes daquela região. Os demônios, como em outras ocasiões, reconheceram Cristo como sendo o Filho de Deus e temeram o tormento que inevitavelmente sofreriam (29). Atendendo um pedido, Jesus permitiu que os demônios entrassem em uma manada de porcos que estava nas proximidades — Marcos afirma que eram quase dois mil. O resultado foi que toda a manada morreu nas águas do lago (30-
32). Aqueles que guardavam os porcos fugiram até à cidade para contar tudo o que havia ocorrido (33). Toda aquela cidade saiu ao encontro de Jesus (34). O povo, tomado pelo medo (Lc 8.38) rogou que Ele se retirasse do seu território (das suas "fronteiras" ou do seu "distrito"). Eles tiveram medo do poder de Jesus. Como de costume, a narrativa de Mateus é muito mais curta do que a de Marcos 5.1-20, ou mesmo do que a de Lucas (8.26-39). Ele deixa de lado muitos dos detalhes encontrados nos relatos dos outros dois evangelistas, de acordo com o seu procedimento usual de resumir o material da narrativa. Algumas vezes, duas questões têm sido formuladas a respeito desse acontecimento. A primeira é: Por que Jesus permitiu que esses porcos fossem destruídos? Houve quem sugerisse que Ele queria confirmar a fé dos dois endemoninhados curados, por esta evidência visível de que os demônios haviam realmente deixado os seus corpos. Alguns pensam que Jesus fez isso para mostrar à multidão o poder tremendo e as tendências destrutivas que os demônios possuem. Trench escreve sobre o relato onde somente é mencionado um endemoninhado: "Se esta concessão ao pedido dos espíritos maus ajudou de alguma maneira a cura deste sofredor, fazendo com que eles relaxassem a sua posse do corpo dele com maior facilidade, aliviando o ataque através de sua saída, este teria sido um motivo suficiente para permitir que aqueles animais morressem. Para a cura definitiva do homem poderia ter sido necessário que ele tivesse esta evidência exterior e o testemunho de que os poderes infernais que o mantinham aprisionado agora o haviam deixado".' Uma segunda pergunta que se faz é a seguinte: Que direito tinha Jesus de destruir a propriedade de outras pessoas? A resposta para esta pergunta é mais difícil. Se tivéssemos certeza de que os donos eram judeus, isto ofereceria uma solução simples. Os judeus deveriam evitar as carnes impuras, o que incluía os porcos. Mas Decápolis era uma região de população predominantemente gentílica. De qualquer forma, o caráter de Cris-to garante que Ele não faria nada injusto. Os atos de Deus não podem ser sempre julgados segundo os padrões dos homens. Porém devemos sempre nos lembrar de que Deus não fica devendo nada a ninguém. Se tivéssemos mais informações, poderíamos entender melhor esta situação.
Cultura Bíblica IV. JESUS, O REALIZADOR DE OBRAS PODEROSAS (8.1 — 9.34). A. Introdução. Nesta seção Mateus registra nove obras poderosas de Jesus em três grupos, cada grupo contendo narrativas de três milagres. O primeiro grupo (8.1-17) está separado do segundo (8.23-9.8) pelo relato sobre os dois candidatos a seguidores de Jesus (8.18-22). Esta inserção é feita habilmente. Os dois aspirantes falam com Jesus depois de ter Ele dado ordens para a travessia do mar (18), mas antes de se concretizar o embarque (23). O resultado é que se forma uma “ponte” entre o primeiro e o segundo grupos de narrativas de milagres com uma narrativa que tem todas as aparências de ser estritamente cronológica. No sumário de Chapman (pág. 23), “A ocasião é clara: Após a cura da sogra de Pedro vem a cura noturna dos enfermos; depois, vendo as
multidões, Jesus ordena a travessia para o outro lado, e, no percurso rumo ao lago, é abordado, primeiro por um escriba que deseja acompanhá-lo, e depois por um discípulo que não o deseja. Em seguida entra no barco, acom- panhado pelos seus discípulos”. Mas, como Lucas registra a história desses dois homens num cenário compietamente diverso, não podemos ter certeza quanto à cronologia; e a maioria dos eruditos considera tanto o arranjo de Mateus como o de Lucas como de natureza editorial. Chapman, por outro lado, sustenta enfaticamente a prioridade e a precisão cronológica de Mateus em oposição a Lucas. Entre o segundo grupo de milagres (8.23-9.8) e o terceiro (9.18-34), o nosso evangelista, dando a mesma sequência dos fatos dada por Marcos e Lucas, interpõe o registro do seu próprio chamamento para o discipulado e a subsequente festa em sua casa, da qual participaram publicanos e pecadores, seguindo-se a narrativa do conflito entre Jesus e os fariseus, provocado por uma pergunta sobre jejum, e pondo em circulação dois pronunciamentos de Jesus que mostram a incompatibilidade existente entre o farisaísmo e o seu ensino sobre o reino de Deus (9.9-17). B. Curando lepra, paralisia e febre (8.1-17; comparar com Marcos 1.40-45; Lucas 5.12-16; 7.1-10; Marcos 1.19-34; Lucas 4.38-41). De sua resposta à mensagem de João Batista (11.5), fica evidente que Jesus considerava a cura de leprosos como um dos sinais de que Ele era o Messias esperado por longo tempo, conquanto isto não se mencione especificamente nas profecias de Isaías, as quais Ele parecia estar muitíssimo consciente de estar cumprindo (a saber, Isaías 29.18,19; 35.5,6; 61.1). A lei levítica trazia pormenorizadas regulamentações sobre à lepra, e era dever dos sacerdotes ver que fossem obedecidas. Os leprosos eram considerados impuros, física e cerimonialmente, e proscritos (ver Levítico 13); e quando eram curados, a ação de graças por sua purificação tinha de ser acompanhada por ofertas sacrificiais (ver Levítico 14). Na presente passagem (8.1-4), o leproso aproximou-se de Jesus o bastante para prostrar-se diante dele e para que a sua solicitação fosse ouvida. Ele já ficara sabendo, podemos supor, que Jesus estava de- mostrando extraordinários poderes de cura; sua única dúvida era se Jesus estaria disposto a empregar aqueles poderes para curar alguém que solicitasse os seus favores como ele estava fazendo. Há sentimento nas palavras: “Senhor, se quiseres, podes purificar-me”. Somente Marcos nos conta que Jesus sentiu-se “profundamente compadecido” à vista desse homem aflito; mas todos os evangelhos Sinóticos afirmam que Jesus, desafiando as regulamentações, estendendo a mão, tocou-lhe. e que, depois de expressar a sua disposição favorável, disse a palavra de poder que efetuou a cura. Jesus deixou que o constrangimento do amor divino tomasse precedência sobre a injunção que proibia tocar num leproso; mas insistiu em que o homem curado o relatasse ao sacerdote e fizesse a oferta requerida pela legislação mosaica. Parece que o sentido primário das difíceis palavras, para servir de testemunho ao povo, seria este: “para que os sacerdotes pudessem, depois do necessário exame, atestar a sua cura sem necessariamente saber como ocorrera”. Alguns comentadores, por outro lado, entendem-nas como implicando em: “para que os sacerdotes saibam que possuo poder sobrenatural”. Pare- ce improvável, porém, que Jesus fizesse seguir-se à injunção ao leproso para guardar silêncio sobre a sua cura aquilo que seria virtualmente uma ordem para tornar conhecido aos sacerdotes o miraculoso poder com o qual a realizara. Todavia, os posteriores leitores dos evangelhos, não de maneira imatura, acham que as palavras contêm essa implicação para eles, porque estão inteirados de que a narrativa foi registrada como um exemplo do poder de Jesus o Messias. A tradução de Knox é intencionalmente ambígua: “para fazer-lhes conhecida a verdade”. A hipótese levantada primeiramente por Wrede em 1901, de que as várias ordens para manter silêncio depois de Jesus ter realizado obras poderosas se devem a um expediente literário da parte de Marcos (seguido pelos outros evangelistas), com o fim de explicar por que Jesus não foi reconhecido mais amplamente como o Messias durante a sua vi- da na terra, foi descrita por Sanday como “mal feita”. Portanto, é extremamente lamentável que tenha sido ressuscitada por alguns eruditos recentes, notadamente na Inglaterra, por R. H. Lighfoot. A injunçào para silenciar, no caso do leproso, pode ser explicada adequadamente sobre outras bases, como, por exemplo, nas palavras de Stonehouse(pág. 62): “A não ser que Ele e outros se reprimissem, a
situação podería ter facilmente escapado do controle, e o seu ministério público teria termi- nado prematuramente”. O Evangelho de Mateus deixa claro que o ministério de Jesus se limitou quase exclusivamente a Israel (ver, por exemplo, 10-5,6,15.24), e que era que Israel cresse nele como o Messias que Ele esperava conseguir. O centurião que foi ao seu encontro quando Ele entrava em Cafarnaum (5) era um gentio desempenhando funções no território judaico; mas, como a sua fé excedeu a de todos que Jesus encontrara, mesmo em Israel (10), Jesus não hesitou em curar o seu criado paralítico (possivelmente um “menino”, pois o termo grego pais é ambíguo), que estava “em terrível aflição” (6, VPR). A fé possuída pelo centurião se reflete em sua resposta ao desafio que Jesus lhe fez, nas palavras do versículo 7, que provavelmente deveriam ser construídas como uma interrogação: “Devo eu (enfático, “Eu, um judeu") ir curá-lo?” O centurião responde a isto reconhecendo a sua indignidade de receber sob seu teto a Jesus; mas também expressa a sua convicção de que basta Jesus dizer a palavra, e seu criado ficará curado. Se a construção do v. 7 for de uma afirmação, como fazem a VA e a RA, então respondeu, no v. 8, indica a reação do centurião à intenção expressa de Jesus. Como oficial não comissionado da grande máquina militar romana, ele sabe o que é obter a obediência instantânea dos subordinados, se bem que ele próprio tenha de se submeter à autoridade superior. Com quanto maior facilidade, pois, Jesus, que não está sujeito a homem nenhum, podia dar ordens que influiriam no bem-estar dos seres humanos, ordens que seriam imediatamente obedecidas, estivesse Ele presente ou não. A tradução da VR (e da RA) de kai gar ego no v. 9, “pois também eu sou”, é inferior à da VA, “pois eu sou”. O objetivo de kai é salientar ego, de sorte que a implicação é, ‘ ‘Sei que podes fazer isto, pois até eu...”. Também não há nenhuma ênfase em homem, provavelmente ausente do original aramaico. Os arianos, traduzindo “Eu também sou homem", erroneamente supuseram que o sentido fosse, “Eu sou apenas um homem, como tu”. A verdadeira ênfase está na compreensão que o centurião tinha da autoridade. “Eu mesmo”, efetivamente diz, “sei o que é estar sob autoridade e exercê-la”. Foi com isto que Jesus se maravilhou. Na narrativa paralela de Lucas 7.1-10, o centurião não visita pessoalmente a Jesus, mas envia uma delegação de anciãos judeus. Estes relatam que, como amigo da raça judaica, que havia contribuído para a construção da sinagoga deles, merece ajuda; e, num estágio posterior, quando Jesus está a caminho da sua casa, o centurião envia amigos para expressarem o seu sentimento de indignidade e o desejo de que Jesus não entre em sua casa, mas simplesmente diga a palavra de poder cura- ti vo. As diferenças entre os relatos de Mateus e de Lucas confrontam o estudioso do problema sinótico com sérias dificuldades. Por um lado, fornecem forte argumento aos que desaprovam a hipótese Q, que supõem que Mateus e Lucas usaram a mesma fonte escrita para o mate- rial alheio a Marcos que eles têm em comum. Por outro lado, os que argumentam que Lucas usou Mateus como sua segunda fonte primária só o podem fazer com base na suposição de que Lucas recontou a presente história à luz doutra versão dela. Agostinho tentou harmonizar as narrativas sobre o princípio de que “quem faz alguma coisa por meio de outro, também o faz por meio de si próprio”. Knox, que cita isto, faz ainda a sugestão de que a notória omissão da quase invariável rubrica de Mateus, “aproximou-se e se prostrou diante dele”, pode ser uma indicação de que o homem não veio em pessoa. Antes de anotar, no versículo 13, que a fé que o centurião tinha resultara em assegurar-lhe a obtenção do pedido, e que foi no momento em que Jesus lhe deu essa segurança que o criado fora curado, o nosso evangelista insere nos versículos 11 e 12 algumas palavras de Jesus que indicam que a fé possuída pelo centurião podia considerar-se a primeira parte da fé em Jesus destinada a ser demonstrada por gentios em todas as regiões do mundo. A fé que esses gentios possuíram conquistaria para eles lugares no banquete do Messias, ׳quando seu reino fosse final- mente estabelecido, os mesmos lugares perdidos pelos filhos do reino,
que pensavam que tinham direito natural aos seus privilégios, mas que se- riam deixados fora, nas trevas. Palavras similares de Jesus se acham em Lucas 13.28-30, apenas a pronunciamentos, registradas também em Mateus 7.13,21, acerca de muitos a quem se recusará entrada no rei- no, a despeito do seu reconhecimento verbal de Jesus como Senhor. A narrativa da cura da sogra de Pedro (14,15) é interessante pela prova que dá de que Pedro tinha uma casa em Cafarnaum. A afir- mação de Marcos de que era “a casa de Simão e André íl reflete a referência altruísta de Pedro a ela. Esta narrativa também mostra uma vez mais o poder do toque de Jesus; e as palavras, Ela se levantou e passou a servi-lo, além de dar inegável prova da cura, lembram a todos os leito- res do evangelho que aqueles que recebem bênçãos de Jesus mostram- lhe gratidão procurando servi-lo. O registro em resumo no v. 16 dos numerosos exorcismos e curas que Jesus realizou na noite do dia em que a sogra de Pedro foi curada, dá ao evangelista a oportunidade de introduzir, mediante sua fórmula usual, uma citação de Isaías 53.4 para mostrar que toda essa atividade benevolente de Jesus era prova de que Ele estava desempenhando o pa- pel de Servo de Deus ideal. Mateus parece estar seguindo o hebraico, “tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças” (as- sim VA e RA), e não a LXX, “ele leva os nossos pecados e é afligido por nós”, mas entende por “aflições” doenças físicas antes que enfermidades morais. Ambas as palavras gregas da versão de Mateus, elaben e ebastasen, traduzidas por tomou e carregou com, podem significar ou “carregou” no sentido de “levar á carga de”, ou “levou embora”, isto é, “removeu”. O último sentido se presta mais para o presente contexto, pois, conquanto Jesus leve o fardo dos pecados dos homens, não há prova de que suportou doenças físicas por amor deles.