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2. CONTINUIDADE E RUPTURA

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INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

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CONTINUIDADE E RUPTURA

Não podemos falar da teologia do Novo Testamento sem mencionar o Antigo. Isso porque a Igreja não nasceu no vácuo, nem a sua teologia. Ela não lançou fora a herança teológica, litúrgica e escriturística que tivera até ali. A Nova Aliança só fazia sentido à luz da Antiga.

Mesmo uma frase simples como; “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, só fazia sentido dentro do contexto do Antigo Testamento e sua revelação. Cristo, era a palavra grega para a palavra hebraica Messias, o Ungido, que só fazia sentido dentro da teologia hebraica. Filho do Deus vivo só fazia sentido apoiada em passagens messiânicas como a aliança de Deus com Davi em 2 Samuel 7 ou o Salmo 2. Que Jesus era o Cristo, tratava-se da proclamação central do Novo Testamento. Agora, o que significava Jesus ser o Cristo, somente sob o pano de fundo da revelação e da teologia israelita teria sentido.

Sobre isso, escreveu Peter Kreeft:

“O primeiro fato que devemos conhecer a respeito de Jesus a fim de entender sua metafísica – na verdade, o fato que é a chave histórica necessária para compreensão de tudo que Ele diz, fato esse que, de uma maneira ou de outra, tem sido negado, esquecido, ignorado ou minimizado por todos os hereges da história – é que Jesus era judeu.

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Ele não era gnóstico, nem da Nova Era. Ele não era modernista, nem humanista secular. Ele não era marxista, nem socialista. Ele não era filósofo platônico. Ele não era panteísta brâmane. Ele não era ariano racista. Ele não era assiste social, nem psicólogo pop, nem mito pagão, nem mágico. (...). Ele não era um homem medieval e nem um homem moderno. Ele era judeu”1

Logo, tanto o que Ele pregava e ensina, estava alinhado com a teologia judaica. Ele disse para a mulher Samaritana: “Vós adorais o que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus” (João 4.22). Isso demonstra uma base definida no que diz respeito à Deus e sua forma de agir.

Por outro lado, algumas passagens mostram que algo novo estava surgindo agora com a revelação plena do Cristo. Fica óbvio que os profetas não havia dito tudo que era necessário dizer. E a compreensão dos judeus sobre o Cristo e seu papel ficou obscura em muitos pontos. Não se tratava de uma árvore nascida nas pedras, mas nascida à partir do tronco de outra árvore pré existente e os judeus precisavam atentar para essa nova árvore. O quem nem sempre fizeram, mas os gentios o fizeram.

Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério que desde tempos eternos esteve oculto, mas que se manifestou agora e se notificou pelas Escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, a todas as nações para obediência da fé, ao único Deus, sábio, seja dada glória por Jesus Cristo para todo o sempre. Amém! (Romanos 16.25-27) pelo que, quando ledes, podeis perceber a minha compreensão do mistério de Cristo, o qual, noutros séculos, não foi manifestado aos filhos dos homens, como, agora, tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas (Efésios 3.4, 5)

Por isso, não podemos falar de uma ruptura total acontecendo no Novo Testamento. Mas também não podemos falar de uma continuidade plena. É fácil perceber no sermão de Paulo no Areópago em Atenas, diversos elementos da cosmovisão judaica que foram apresentados para confrontar pressupostos gregos errados (Atos 17.15-34). Paulo fala da transcendência e imanência divina, fala da história

1 KREEFT, Peter. Jesus, o maior filósofo que já existiu. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2009, p. 19, 20.

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e geografia humana sendo regida pela soberania de Deus, fala do homem como criação divina. Todos esses temas muito patentes na teologia judaica. Ao final é quando ele expõe o plano divino através de Cristo, que havia ressuscitado e que julgaria a todos no final.

1. A RELAÇÃO ENTRE O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO

Embora já tenhamos comentado muitas coisas a esse respeito e comentaremos mais ao longo desta matéria, a verdade é que a relação entre os escritos do Antigo e do Novo Testamento oferecem um vasto campo para pesquisa e discussão. Não se pode dizer que tudo já foi devidamente resolvido. No entanto, dizer que a relação entre os seus livros ainda oferece espaço para debate, não significa que muito já não se tenha avançado nesse sentido, ou que esse debate envolva questões entre a nova e a antiga aliança. Na verdade, estamos falando do conteúdo dos livros.

Isso é importante porque algumas vezes temos a impressão que ao dizer que uma nova aliança surgiu no lugar da antiga é o mesmo que dizer que os livros do Novo Testamento substituíram os do Antigo. E estamos muito longe disso. Na verdade, o texto de 2 Timóteo 3.14-17 onde as Escrituras são apresentadas como de valor inestimável para uma vida cristã plena, inclui sem sombra de dúvida tudo o que está escrito de Gênesis a Malaquias.

Jamais passou pela cabeça dos autores apostólicos a possibilidade de se deixar de lado tudo o que até então havia sido revelado e chamado de Escrituras Sagradas. Foi justamente delas que eles extraíram boa parte de seus comentários. Mesmo que se entenda a graça como substituição da lei mosaica, ainda assim não significa substituir o Pentateuco pelos Evangelhos, os profetas pelas epístolas ou pelo Apocalipse.

Os judeus messiânicos geralmente insistem aos judeus não messiânicos que crer em Jesus (Yehshua) como Messias não o torna menos judeu e sim plenamente judeu. Da mesma forma, abraçar a revelação do Novo Testamento não me obriga a negar os 39 livros anteriores e sim a entende-los de forma mais perfeita.

Não é de fato difícil entender que algumas coisas precisam definitivamente ser abandonadas ou mesmo que algumas posturas éticas precisam ser revistas à luz da ética Cristã. No entanto, ainda resta um enorme conteúdo revelado por Deus que precisa ser levado em conta.

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As histórias bíblicas, as profecias, toda a literatura sapiencial e mesmo muitos princípios presentes nas leis são profundamente edificantes. Se pensarmos no livro dos Salmos então, a verdade é que boa parte da nossa espiritualidade tem neles sua inspiração. Talvez uma parte muito pequena do Antigo Testamento tenha perdido sua praticidade à luz do Novo. A maior parte continua sendo indispensável para a caminhada da vida cristã.

Alguém já disse que o Novo Testamento está contido no Antigo e que o Antigo está explicado no Novo. Independente de como alguém avalie os elementos de ruptura e continuidade entre ambos os testamentos, a verdade é que eles sustentam uma simbiose que não pode ser desfeita sem danificar ambas as partes.

2. LEI E GRAÇA

O segundo contraste fortemente apresentado na teologia do Novo Testamento é a relação entre lei e graça. Embora muitos considerem isso como um ponto já resolvido, a verdade é que o assunto sempre suscitou e ainda suscita debates acalorados não só entre judaísmo e cristianismo, ou entre católicos e protestante. Esse é um assunto que continua gerando diferentes perspectivas entre os diversos ramos do protestantismo.

Este fato não ocorre somente por causa do contexto histórico, teológico e cultural no qual o Novo Testamento foi produzido. Falar em uma abolição da Lei para os judeus soava como blasfêmia, que aliás, foi a acusação feita a Estevão (Atos 6.13, 14). Da mesma sorte, esse foi o ponto que gerou todo conflito entre o apóstolo Paulo e os judaizantes (At 21.21). Logo, era de se esperar que esse fosse um ponto teológico nevrálgico a ser desenvolvido na teologia do Novo Testamento.

Há outro ponto também a ser levado em consideração. A própria essência da existência ética reclama tanto a justiça quanto a misericórdia. Um mundo sem justiça seria um mundo insano. Um mundo sem misericórdia seria um mundo impossível. Punição e perdão são necessários para esta existência decaída. O censo de dever do pai, aliado ao sentimento de compaixão da mãe, criam nos filhos o equilíbrio necessário entre dever e misericórdia. Lei sem graça ou graça sem lei parecem tornar a realidade impraticável.

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Há textos que definitivamente falam do fim da lei através de Cristo e sua morte (Rm 6.14, 15; 7.4, 6; 10.4; 2 Co 3.7-18). Para muitos intérpretes essas passagens são definitivas e mostram que não há nenhum tipo de continuidade da lei para o cristão. Estamos sob o domínio da graça e não há mais espaço para a lei mosaica em qualquer sentido na vida do cristão, seja no seu relacionamento com Deus seja na missão de proclamação da Igreja.

Por outro lado, algumas passagens falam da lei se perpetuando de outra forma no tempo presente na vida dos cristãos (Rm 3.31; 8.4, 7; 7.12, 14; 1 Co 7.19; Gl 5.14; Ef 6.2). À partir desses e de outros versículos semelhantes, muitos teólogos insistem em algum tipo de continuidade da lei mosaica, ainda que operando sob abordagem diferente.

Essa breve exposição não tem a finalidade de gerar dúvidas ou negar a salvação unicamente pela graça. Visa apenas mostrar que um posicionamento final sobre a relação entre lei e graça ainda persiste. É óbvio que um legalismo explícito ou uma graça que não produz obediência são rejeitadas por qualquer estudioso da Palavra. Há certo equilíbrio a ser buscado por ambas as posições.

Essa discussão nada tem a ver com a salvação pelas obras contra a qual lutaram pré reformadores e reformadores. A discussão tem a ver com o papel da lei na vida cristã e mesmo Lutero e outros reformadores se empenharam nesse debate. Ele é parte integrante da teologia do Novo Testamento é deve ser abordado, dentro de limites que não comprometam o sola gratia e o sola fide.

3. SOMBRA E REALIDADE

Se há algo muito claro nessa relação entre o Antigo e o Novo é o fato do primeiro conter apenas sombras daquilo que se tornou realidade em Cristo. Desde festas, cerimonias, acontecimentos até personagens com suas históricas, tudo apontava para Cristo. Uma das grandes insistências hermenêuticas dos reformadores é que a Bíblia inteira deveria apontar para Cristo e não apenas alguns pontos dela. E de fato é isso que os escritores neotestamentários fazer. Toda a teologia do Novo Testamento é desenvolvida a partir do entendimento de que Cristo estava presente de forma inegável na revelação que até ali fora

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dada. Basta pensarmos em Paulo no capítulo 10 de sua epístola aos coríntios, bem como no uso de pessoas instituições feita pelo autor da carta aos hebreus para demonstrar a superioridade de Jesus.

Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo (Cl 2.16, 17)

Porque, tendo a lei, a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam (Hb 10.1)

Essas são apenas algumas afirmações diretas sobre o fato de que elementos presentes no Antigo Testamento perderam sua validade ou importância diante do fato da realidade manifestada em Cristo Jesus.

Em passagens como João 3.14, 15 e 1 Coríntios 10.1-11 vemos uma clara alegorização de eventos históricos do Antigo Testamento, que são aplicados para explicar o evento da morte do Messias e da fé nele, bem como para ilustrar questões que envolvem o comportamento cuidadoso necessário na vida cristã. Dessa forma, uma conexão é feita entre realidades nos dois testamentos, mesmo que em sua essência sejam diferentes.

Até mesmo aspectos teológicos mais complexos, como a relação entre a antiga e a nova aliança, é trabalhada por meio da relação entre Agar e Sara, Ismael e Isaque (Gl 4.21-31). Essa abordagem produz uma unidade na história da salvação, ainda que a superioridade da nova aliança seja sempre destacada.

4. CERIMONIALISMO E VIDA INTERIOR

Talvez um dos maiores contrastes entre o Novo Testamento e o Antigo diga respeito ao cerimonialismo do segundo e a interioridade do primeiro. Não que não haja nenhuma referência ao aspecto interior da religião judaica. Muito pelo contrá-

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rio. Uma parte da repreensão dos profetas focava no ritualismo morto presente nas festividades e sacrifícios. Era cobrada uma participação do coração nas cerimônias, pois na maioria das vezes tudo era feito de modo puramente externo. Basta ler os salmos e vamos nos deparar com grandes experiências espirituais de seus autores, que iam muito além do mero sacrifício e ritual.

Podemos citar Davi no Salmo 51, sua confissão inspirada após o caso com Bete Seba: “Porque te não comprazes em sacrifícios, senão eu os daria; tu não te deleitas em holocaustos. Os sacrifícios para Deus são o espírito quebrantado; a um coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus” (Salmo 51.16, 17). Esse entendimento de Davi é a nervura central da experiência espiritual do crente no Novo Testamento.

Não é apenas que os sacrifícios e ofertas ordenadas através do sacerdócio levítico tiveram seu cumprimento na morte de Cristo. Claro que isso também. Mas a verdade é que a “adoração em espírito e em verdade” (Jo 4.24) e o “andar por fé e não por vista” (2 Co 5.7) assumem papel exclusivo no crente neotestamentário. Não há mais lugar para o simbolismo tangível. Há uma nova dimensão na relação entre os salvos e Deus.

Não é difícil perceber o quanto o cristianismo católico romano incorporou a dimensão ritualística e simbolista do culto judaico conforme apresentado nas Escrituras. E não é difícil perceber que à medida que o protestantismo foi se apropriando da revelação do Novo Testamento ele foi se tornando mais e mais independente de ritos, símbolos e cerimônias. A vida interior foi um tema de muitos autores de temas devocionais porque viram que esse era uma diferença essencial entre o espírito do Antigo e do Novo.

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