CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC SANTO AMARO
Thayná Pazzianotto
A MULHER E A CIDADE Corpo, Gênero e Espaço
São Paulo 2019
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Thayná Pazzianotto
A MULHER E A CIDADE Corpo, Gênero e Espaço
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro Universitário Senac – Santo Amaro como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Orientador Prof. Dr. Ricardo Luis Silva
São Paulo 2019
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Dedico este trabalho Ă todas as mulheres da cidade.
AGRADECIMENTOS 8
Realizar o presente trabalho foi sem dúvida uma experiência intensa e árdua, mas que me possibilitou entrar em contato comigo mesma e com muitas das questões pessoais e internas que afloraram ao longo destes cinco anos. Esta m aior conexão e tentativa de compreender meus anseios frente à pesquisa, fez do TCC, por muitas vezes, um trabalho solitário. Felizmente, em todos estes momentos tive a ajuda e apoio de pessoas que se tornaram fundamentais nesta minha caminhada, a quem devo meus mais sinceros agradecimentos. Primeiramente, gostaria de agradecer às mulheres que mais admiro em minha vida, minha avó ,Zulmira, por em todos os momento me acolher com tanta doçura e carinho , minha mãe, Marcia, por estar presente em todos os momentos da minha vida e ser meu apoio e porto seguro em todas minhas decisões, e à minha prima, Ariella, por me apoiar e me fazer rir mesmo nos momentos mais difíceis e desesperadores. Agradeço à todas elas por me mostrarem à todo momento e de formas distintas o quão grandiosa é uma mulher. Agradeço também aos meus amigos da vida, pela paciência que tiveram em todos os meus momentos de ausência devido os trabalhos e por todo o apoio que sempre me deram, em especial Plínio, Tato e duas das mulheres que me inspiram e que são tão importantes nessa minha caminhada e auto conhecimento, Izabella e Mariana. Aos meus amigos da arquitetura, que agora levo para a vida,
agradeço por todos os momentos que compartilharam ao meu lado, tanto de comemorações como também os momentos mais difíceis, que não foram poucos. Obrigada pela paciência , por todo o apoio, pelas trocas e por sempre estarem presentes nesta longa caminhada. Em especial à minha amiga Mayni, que mesmo com a distância, mostrou-se sempre presente em todos os momentos. À todas as mulheres que conheci nesta minha jornada, que tanto me ensinaram e me inspiraram, agradeço pelas reflexões que me proporcionaram e tambem por cederem parte de seu tempo para que pudesse construir e concluir esta pesquisa. Aos meus professores por compartilharem tanto de seu conhecimento e pela grande influência que sempre exerceram em toda minha formação. Agradeço em especial a meu orientador, Ricardo, não apenas por estar tão presente em minha pesquisa, sempre solicito e interessado em minhas inquietações e anseios, mas principalmente pelo papel que desenvolveu ao longo de toda minha trajetória na graduação, por compartilhar de suas visões e me abrir os olhos para tantas das questões invisíveis na cidade. Agradeço pelo auxílio nos momentos de desespero e por, a todo momento, me estimular na pesquisa, nunca limitando meus caminhos e me dando total liberdade para os inúmeros desvios que cometi e que se mostraram tão importantes ao trabalho. Por fim, agradeço à cidade, que tanto me encanta e inspira, por, à todo momento , me acometer de pensamentos, reflexões e sensações tão intensas e distintas.
RESUMO 10
O presente trabalho tem como objetivo analisar as questões da cidade e dinâmicas urbanas a partir do olhar da mulher. Visto que nossas cidades estão fortemente vinculadas às relações de poder, seus espaços passam a se caracterizar por uma não neutralidade, desconsiderando e excluindo os corpos destituídos de tal domínio. Portanto, busca-se compreender de que forma se organizam e estruturam as lógicas presentes no espaço urbano e como afetam a maneira com que a mulher se relaciona com a cidade e a vivencia. A partir de leituras teóricas e urbanas , busca-se compreender e registrar as formas com que a mulher vêm ocupando tais espaços física e simbolicamente. Palavras - Chave : Mulher, Cidade, Urbano
ABSTRACT 12
This paper aims to analyse urban dynamics from women`s perspective. Since our cities are strongly connected to power relations, their spaces are marked by a non-neutrality feature, disregarding and excluding the individuals who do not hold such domain. Therefore, it is vital to understand how the urban rationales are built and how they affect the way women interact with the city and their livingness. Based on theoretical and urban readings, this paper seeks to comprehend and report the ways by which women have been occupying urban spaces, both physically and simbollicaly. Keywords: Women, cities, urban
LISTA DE FIGURAS 14
Figura 1 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019) Desenho Autoral Figura 2 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019) Desenho Autoral Figura 3 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019) Desenho Autoral Figura 4 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019) Desenho Autoral Figura 5 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019) Desenho Autoral Figura 6 : Gráfico 1 - Proporção de viagens do sexo feminino e do sexo masculino, segundo o primeiro modo de viagem, por ano. Fonte : SVAB, Haydée. Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero. Dissertação ( Mestrado em Engenharia) – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016 Figura 7 : Gráfico de Proporção de viagens do sexo feminino e do sexo masculino, segundo o motivo do destino, por ano. Fonte : SVAB, Haydée. Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero. Dissertação ( Mestrado em Engenharia) – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016 Figura 8: Artista Vânia Medeiros. Fonte : http://www.vaniamedeiros. com/ Figura 9: Projeto “ Caderno de Campo”. Fonte : http://www. vaniamedeiros.com/ Figura 10: Projeto “ Caderno de Campo” Fonte : http://www. vaniamedeiros.com/ Figura 11: Projeto “ Caderno de Campo”. Fonte : http://www. vaniamedeiros.com/
Figura 12: Projeto “ Caderno de Campo”. Fonte : http://www. vaniamedeiros.com/ Figura 13: Artista Ana Teixeira. Fonte : http://www.araraquara24horas.com.br/2018/06/ana-teixeira-noterritorio-da-arte.html Figura 14: Projeto “ De perto Ninguém é normal”. Fonte: http://www. anateixeira.com/ Figura 15: Projeto “ De perto Ninguém é normal” Fonte: http://www. anateixeira.com/ Figura 16: Projeto “ De perto Ninguém é normal” . Fonte: http://www. anateixeira.com/ Figura 17: Projeto “ De perto Ninguém é normal”. Fonte: http://www. anateixeira.com/ Figura 18: Fernanda Carpegiani. Fonte: https://formiga.me/mao-namassa/ Figura 19: Carmen Guerreiro. Fonte: https://formiga.me/mao-namassa/ Figura 20: Lambe - Lambe de divulgação do Projeto Guia Mulheres na Cidade . Fonte: https://formiga.me/mao-na-massa/ Figura 21: Guia Mulheres na Cidade . Fonte: https://formiga.me/maona-massa/ Figura 22 : Vista Aérea da Avenida Nove de Julho: Fonte. Google Maps Figura 23: Mapa Mental. Fonte: Desenho Autoral Figura 24: Mapa Mental. Fonte: Desenho Autoral Figura 25 : Projeto “Cala Boca Já Morreu”. Fonte: http://www. anateixeira.com/ Figura 26 : Projeto “Cala Boca Já Morreu” Fonte: http://www. anateixeira.com/ Figura 27 : Projeto “Cala Boca Já Morreu” Fonte: http://www. anateixeira.com/
ÍNDICE INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................................................................................................16 CAPÍTULO1: A MULHER E A CIDADE..................................................................................................................................................................................19 1.1. 1.2. 1.3. 1.4. 1.5.
Corpo e espaço........................................................................................................................................................................................................20 Gênero.......................................................................................................................................................................................................................21 O domínio do corpo feminino ................................................................................................................................................................................22 “Lugar de mulher é dentro de casa”......................................................................................................................................................................23 A degradação da mulher e do trabalho feminino..............................................................................................................................................25
CAPÍTULO 2: A MULHER NA CIDADE.................................................................................................................................................................................28 2.1. Dicotomias geográficas: Público X Privado............................................................................................................................................................30 2.2. Cidades Masculinas ..................................................................................................................................................................................................31 I. O Arranha – céu.................................................................................................................................................................................................32 II. Análise de “The Fountainhead” a partir da perspectiva de gênero .......................................................................................................33 2.3. Invisibilidade da mulher.............................................................................................................................................................................................35 CAPÍTULO 3: A MULHER PELA CIDADE..............................................................................................................................................................................37 3.1.A lógica urbanística .......................................................................................................................................................................................38 3.2. Deslocamentos femininos..........................................................................................................................................................................................39 3.3. In (segurança) feminina............................................................................................................................................................................................44 CAPÍTULO 4 : MULHERES QUE FALAM SOBRE MULHERES E CIDADE 4.1. Vânia Medeiros............................................................................................................................................................................................................46 4.2. Ana Teixeira .................................................................................................................................................................................................................48
4.3. Carmen Guerreiro e Fernanda Capergiani : Formiga – me....................................................................................................................................50 CAPÍTULO 5 : LEITURAS URBANAS......................................................................................................................................................................................52 5.1. Área de estudo ..........................................................................................................................................................................................................54 5.2. Histórico........................................................................................................................................................................................................................55 5.3. Caminhadas................................................................................................................................................................................................................56 A barragem.............................................................................................................................................................................................................59 O apagamento......................................................................................................................................................................................................59 A representação....................................................................................................................................................................................................59 5.4. Vozes da cidade................................................................................................................................................................................................60 CAPITULO 6 : DESVIOS.......................................................................................................................................................................................................63 6.1. Oficina “ Arquiteturas Feministas: Novas Iconografias...........................................................................................................................................65 6.2. Oficina “Projeto – Cala Boca Já morreu”................................................................................................................................................................65 6.3. Roda de conversa “ A cidade para Mulheres”......................................................................................................................................................67 6.4. CCM – Grajaú.............................................................................................................................................................................................................67 CAPÍTULO 7 : REGISTROS....................................................................................................................................................................................................75 7.1. A mulher e a cidade..................................................................................................................................................................................................77 7.2. A mulher na cidade...................................................................................................................................................................................................78 7.3 A mulher pela cidade.................................................................................................................................................................................................91 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................................................................................................96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................................................................................................................99
INTRODUÇÃO 18
O seguinte trabalho, surge como reflexo de questionamentos e anseios de cunho bastante pessoal, presentes ao longo de toda minha trajetória dentro da arquitetura. Questões até então latentes foram se mostrando cada vez mais perceptíveis e com maior intensidade , culminando em inquietações cotidianas. Ocupar a cidade, enquanto mulher, por muito tempo se mostrou como uma ação natural e carregada de neutralidade, entretanto, ao me aproximar do urbano e de suas discussões meu diálogo com a cidade passou a apresentar ruídos e interferências. Foram desde as faltas de referências femininas em meus estudos na academia, até minhas experiências cotidianas na cidade que se mostravam distintas de muitos de meus colegas homens. Cada pequeno indício foi decisivo para enfim me fazer questionar “ O que é ser mulher na cidade ?” Após isso, uma série de outros questionamentos passaram a surgir: “ Por que mulheres vivenciam a cidade de formas tão distintas?”, “ Por que nos sentimos tão inseguras nas ruas”, “Será a arquitetura responsável pelo que nos acomete na cidade ?”. É a partir de então, com essas, entre outras tantas questões, que se mostra extremamente necessária a discussão sobre a
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Mulher e a Cidade . O processo da pesquisa, de um modo geral , tem como uma de suas principais características a não linearidade, nem cronológica, nem estrutural. Os processos foram sendo desenvolvidos concomitantemente, se comportando exatamente como o caminhar na cidade, em que se sai sem muito saber o que vai encontrar, e que ao longo do percurso se depara com infinitas questões de ordens distintas e diversas. Entretanto, por motivos metodológicos e para melhor dialogar com o leitor, apresento a pesquisa a partir de segmentos, formas com que agrupei muitas das questões encontradas, expressas nos capítulos que seguem . No Capítulo 1 , “ A Mulher e a Cidade “, busco trazer algumas das principais questões necessárias para se iniciar as discussões de gênero na cidade, assim, também, como pontos que considero fundamentais para compreender a forma com que a mulher veio sendo construída no imaginário social de muitas culturas ocidentais, e de que maneira tais pontos influenciaram em sua forma de se relacionar com os espaços da cidade, sendo a associação Capitalismo- Patriarcado fundamental para sua compreensão. Já no Capítulo 2, “ A Mulher na Cidade”, discorro, a partir dos estudos de Villagrán, as principais lógicas apontadas pela autora utilizadas pelo patriarcado na estruturação das cidades e que se apresentam como características neutras do urbano. Busco analisar de que forma tais estratégias impactam a vida das mulheres na cidade e de como estas se apresentam em nosso cotidiano, assim como especifico algumas das distinções existente entre as próprias mulheres ao ocupar tais espaços. No capítulo seguinte,” A Mulher pela Cidade”, são discutidas algumas das lógicas urbanísticas presentes em nossas cidades e de que formas estas têm desconsiderado as particularidades das mulheres ao construir nossos espaços, principalmente no que diz respeito a seus deslocamentos. Apresento no capítulo algumas das distinções existentes entre o deslocar feminino e masculino, e como a malha urbana é pensada de forma a atender as demandas de apenas um gênero, obviamente o segundo. No Capítulo 4, “Mulheres que falam sobre mulheres e cidade” apresento algumas das inúmeras referências que tive contato e que utilizei no desenvolvimento da pesquisa. Devido à grande quantidade de autoras e artistas estudadas, detenho-me a apresentar as
três que mostraram questionamentos e métodos de pesquisa que mais se assemelham aos meus , e também por se tratarem de mulheres as quais tive a oportunidade de conhecer pessoalmente e estabelecer uma troca mais efetiva. A partir do Capítulo 5, “ Leituras Urbanas”, passo a colocar um olhar mais pessoal sobre a pesquisa, criando uma maior aproximação física tantos dos espaços da cidade quanto das mulheres que neles estão inseridas. Neste capítulo, apresento a área em que concentro meus estudos, a Avenida Nove de Julho, e também percepções e leituras pessoais do local durante minha permanência. No Capítulo 6, “Desvios”, trago à pesquisa vivências e experiências que tive fora da área de estudo e que muito influenciaram no andamento do trabalho. Nele encontram-se oficinas e eventos que participei relacionados às questões da mulher e da cidade, e um pouco de meu olhar pessoal frente a cada uma destas experiências . Por fim, apresento aquele que compreendo como a síntese de minha trajetória ao longo da pesquisa. No Capítulo 7, seguem expressos meus registros realizados frente as invisibilidades da cidade, no que diz respeito à sua relação com a mulher , que passaram a se mostrar de forma mais clara e concreta após a construção deste novo olhar. É neste capítulo que apresento ao leitor todas as questões discutidas ao longo do trabalho e como estas se materializam na cidade. A partir de meu olhar pessoal, apresento tais registro em formatos e técnicas de representações distintas e plurais.
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1. A MULHER E A CIDADE 21
1.1 CORPO E ESPAÇO O corpo e a cidade estabelecem um diálogo constante entre si, a maneira como nos desenvolvemos enquanto sociedade se reflete no desenho e estruturação de nossos espaços, da mesma forma como estes espaços também são capazes de influenciar na maneira como nos comportamos e nos relacionamos. Sennett já tratava desta relação em seus estudos quando utilizava o corpo como referência para compreender a história das cidades e seus espaços ao longo dos anos. Para ele “ [...] as relações entre os corpos humanos no espaço é que determinam as suas reações mútuas, como se veem e se ouvem, como se tocam ou se distanciam.” ( SENNETT, p.17) O corpo humano é um dos signos mais claros de nossa identidade pessoal e age como um importante instrumento de comunicação, não apenas transmitindo informações, mas tornando-se parte delas. [...] não é simplesmente , ou apenas, um organismo – é também um veículo metafórico pleno de significados. [...] específicos de cada época e lugar.[...] que cria e produz o espaço ao mesmo tempo que é produzido por ele em um marco histórico e temporal específico [...] (CORTÉS, 2008, p.124)
São estes corpos, tão ricos de informação e conteúdo, que preenchem os espaços e dão significado à eles. São essas diversidades de corpos e seus cotidianos que dão vida à cidade e criam outras infinitas dentro de uma mesma. Entretanto, a arquitetura e o planejamento urbano vinculados ao poder criam cidades que se opõem às construídas pelo cotidiano de seus habitantes.
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jamento urbano vinculados ao poder criam cidades que se opõem às construídas pelo cotidiano de seus habitantes. Com isso, os espaços, tão significativos na construção da identidade de seus grupos sociais, fazem com que aqueles que não detenham este poder não se sintam representados ou incorporados à malha urbana.
[...] cada grupo social necessita encontrar espaços e lugares, signos e sinais com os quais se identificar e reforçar a própria identidade. A existência e o reconhecimento de cada uma das minorias que compõe a cidade não se contrapõem à integração global nessa mesma cidade, mas facilitam a contribuição que se pode dar a coesão interna dos coletivos sociais e à sua visibilidade no magma urbano. (CORTÉS,2008, p.123)
A hierarquização dos corpos baseada na construção social do gênero é um exemplo de relação de poder e opressão bastante expressiva em nossa sociedade e que reflete diretamente na configuração de nossos espaços, segregando e tornando invisíveis questões referentes aos corpos oprimidos. Entender que estes corpos vivenciam a cidade de maneiras distintas e compreender de que forma se dá essa construção social em torno deles é fundamental para se iniciar qualquer discussão e planejamento da cidade.
1.2.
GÊNERO
Tendo como uma de suas percursoras Simone de Beauvoir no livro “ O Segundo Sexo”, o conceito de gênero surge para firmar a ideia de que as diferenças entre homens e mulheres são
socialmente construídas e não biologicamente estabelecidas. Muitos são os estudos que tratam sobre o tema ,assim como seus referenciais teóricos, que contam com diferentes abordagens e correntes, não havendo, portanto, uma única definição do termo. Muitos teóricos tratam a questão a partir da dicotomia sexo x gênero, outros, como é o caso de Judith Butler, dissolvem essa dicotomia. Para a autora, nossa sociedade encontra-se diante de uma “ ordem compulsória” que se sustenta a partir da tríade sexo –gênero – desejo, onde a forma como alguém se identifica, assim como seu desejo sexual, são definidos a partir de seu sexo; lógica essa que tende à reprodução e à heterossexualidade. Seus trabalhos levam à compreensão do gênero como uma relação entre sujeitos socialmente construídos em contextos específicos, e traz a ideia de “performatividade”. Gênero não é um substantivo, tampouco uma série de atributos vagos; [...] o gênero vem a ser Wperformativo, isto é, constitui a identidade que se supõe que se é [...] o gênero é sempre um fazer, mesmo que não seja um fazer por parte de um sujeito que se pode considerar preexistente à ação [...] não há uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero, essa identidade se constitui performativamente pelas mesmas “expressões” que , segundo se diz, são resultado dela. ( BUTLER,2001, apud CORTÉS,2008, p.138)
Assim, o gênero se constitui a partir de uma série de atos, gestos e signos, do âmbito cultural, repetidos ao longo do tempo que reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos tal como conhecemos. Ou seja, estes atos são performatizados pelos corpos a partir de uma ideia construída socialmente e não por um único indivíduo. Já Bourdieu, apesar de não trabalhar o conceito de gênero propriamente dito, traz em sua obra questões relacionadas ao masculino e o feminino que se assemelham a muitas questões inseridas nos debates de gênero, como as desigualdades entre os sexos, resumidas na ideia de dominação masculina. O autor trata tal lógica, a partir de uma perspectiva simbólica, como sendo 23
resultado de uma construção arbitrária do biológico, pautando-se em dicotomias e oposições. A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável:ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. ( BOURDIEU,1998, p.17)
Estas divisões criadas em torno dos sexos podem ser vistas através das masculinidades e feminilidades, práticas sociais também construídas por meio das quais homens e mulheres se situam em relação ao gênero. Os comportamentos associados a cada uma delas vinculam diretamente a mulher ao feminino e o homem ao masculino, entretanto, alguns grupos desestabilizam estas representações criadas em torno de tais práticas, sendo vistos como corpos desviantes por não se encaixarem nesta lógica universal. Em nossa sociedade, estruturada por um sistema patriarcal e heterossexista, o gênero masculino foi tido como o gênero normativo, dessa forma, a feminilidade foi rotulada a partir de uma série de características tidas como inferiores, como a “passividade”, sendo constantemente desvalorizada e criando um sistema de hierarquia entre os sexos, onde o masculino é superior ao feminino. Além disso, esta mesma feminilidade é continuamente questionada, atribuindo à mulher o papel do corpo estranho, desconhecido, complexo e indefinido, enquanto a masculinidade permanece inquestionada, sendo, assim, associada ao que é sólido, bem delimitado, firme, objetivo e natural. O ideal do corpo masculino sempre esteve vinculado à ação, sendo atribuído à ele o papel de criador ,proprietário e espectador, tendo em suas mãos o poder de determinar as ideias sociais. Entretanto, ao conceder tal poder, o patriarcado exige, à todo momento, a manutenção e afirmação da masculinidade.
“ O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impões a todo homem o dever de afirmar em toda e qualquer circunstância sua virilidade” ( BOURDIEU,2018,p. 75-76)
Por essa razão , a masculinidade se apresenta de maneira extremamente frágil, pois , inconscientemente, sua perda é associada à perda de poder e privilégios e , consequentemente, à um papel social de subordinação, até então, reservado à mulher. A fantasia metonímica exige um ideal de ação por meio do qual o homem deve constantemente medir sua sexualidade ou expor-se ao perigo de perdê-la. O ideal ativo protege o homem de deslizar para o papel social de subordinação reservado à mulher. Subsiste a ideia básica de que se o homem não domina, não controla a situação, esta pode vir a controlá-lo até fazê-lo perder sua masculinidade e recair em posturas femininas. (CORTÉS,2008, p. 125)
Esta forma assimétrica com que se dá as representações e práticas relacionadas aos sexos faz com que se estabeleça uma dominação masculina em relação às mulheres e seus corpos, sendo estas afetadas constantemente e de diversas maneiras.
1.3. O DOMÍNIO DOS CORPOS
A figura da mulher, historicamente e até os dias de hoje, está intimamente vinculada ao corpo, sendo este, ainda, um forte elemento na construção da imagem feminina dentro do imaginário 24
social. Desde o nascimento, o corpo feminino está inserido em um incessante trabalho de socialização que nos interioriza uma imagem, frequentemente depreciativa e de inferioridade, do que é ser mulher. Este trabalho psicossomático também é aplicado aos homens, despojando –os de tudo o que possa ser feminino, porém, no caso das mulheres, assume uma forma mais radical, que impõem limites, majoritariamente, referentes a seus corpos. Suas posturas , forma como ocupam o espaço, seus movimentos, gestos e falas são carregados de significação moral, devendo ser contidos e discretos, “ [...] como se a feminilidade se medisse pela arte de “se fazer pequena” [...]” ( BOURDIEU, 1998, p.39) O poder atribuído ao homem, tem como sua essência o domínio dos corpos femininos, sendo o controle de sua sexualidade uma das formas mais efetivas desta dominação. Desde cedo meninas são ensinadas a preservar e esconder seus corpos, negando suas vontades e desejos, a fim de manter a imagem que se tem de uma mulher “direita”, diferentemente dos homens que , desde meninos, são constantemente estimulados a se familiarizar o quanto antes ao ato sexual. Até mesmo a forma como seus respectivos órgão sexuais são retratados reflete essa dominação do corpo da mulher; enquanto o pênis é tido como símbolo de poder e motivo de orgulho entre os homens , a vagina, até hoje, é tratada como tabu, como algo sagrado que deve se manter oculto, sendo motivo de vergonha e sigilo entre as mulheres. Estes padrões comportamentais impostos à mulher apresentam-se como objeto de troca por seus direitos. A partir do momento que passa a desobedecer tais regras sociais, a mesma é destituída de todo e qualquer direito sobre si mesma. O não cumprimento destas normas passa a ser interpretado como sinal de um livre acesso a seus corpos. Este acesso sistemático dos homens ao corpo da mulher é uma das garantias dos direitos conferidos ao masculino pelo patriarcado; combinado ao papel de subordinação da mulher e a incessante necessidade de afirmação da virilidade masculina, abre espaço para atos de abuso e violências sexuais. Todos estas formas de controle e dominação masculina, assim como outras inúmeras existentes, as quais algumas serão tratadas mais adiante , limitam não só os corpos femininos, mas também
seus territórios, influenciando diretamente seus deslocamentos e relação com o espaço. Um dos exemplos mais evidentes de como o domínio masculino aprisionou os corpos das mulheres a territórios específicos , é a estreita relação que estas possuem com o espaço doméstico, que até hoje se apresenta como algo natural dentro do imaginário social. Entretanto, esta relação espacial nem sempre se deu tal como conhecemos, esta é resultado de um longo processo histórico e de inúmeras relações de poder que tiveram como um de seus principais meios de propagação, o corpo feminino. A seguir veremos brevemente algumas das formas pelas quais tais relações se apropriaram destes corpos e como transformaram a forma com que a mulher se relaciona com os espaços.
1.4.
“ LUGAR DE MULHER É DENTRO DE CASA”
Como visto anteriormente , o domínio e posse dos corpos femininos estão presentes em nossa sociedade ao longo de toda a História; segundo Firestone, “ [...] a biologia reprodutora da mulher foi a responsável por sua opressão original e continuada” ( FIRESTONE, 1970,p.89) Os ditos “males femininos” como a menstruação, menopausa, partos dolorosos, amamentação, entre outros, fizeram com que as mulheres, até certo período da História , estivessem a mercê de sua biologia, o que as fez dependentes dos homens para sua sobrevivência física. De acordo com a autora, em todos os estágios e tipos de cultura, as funções biológicas da mulher foram as causas
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de sua opressão, sendo a família patriarcal “ apenas a mais recente de uma rede de organizações sociais “primárias”, todas as quais definiram a mulher como uma espécie diferente, devido a sua capacidade única de parir.” (FIRESONE,1970,p.89) A família é uma das instituições que corroboraram esta distinção da mulher, se organizando a partir de uma distribuição completamente desigual. Apesar das inúmeras variações ao longo do tempo, a opressão feminina encontra-se presente em todas elas. O próprio termo “família” traz em seu significado a ideia de subordinação da mulher em relação ao homem : O termo família foi pela primeira vez empregado pelos romanos, para designar uma unidade social, onde o cabeça governava as mulheres , as crianças e os escravos. Pela lei romana, ele era investido de direitos de vida e morte sobre todos os outros. Famulus significa escravo doméstico, e família é o número total de escravos pertencente a um homem.( FIRESTONE,1970, p.89)
As transformações sofridas pela instituição familiar, ao longo de toda a história, são responsáveis por uma série de questões que atingem as mulheres atualmente , sendo a família nuclear patriarcal moderna, resultado direto de seu desenvolvimento. Na Idade Média, a família era composta por um grande número de pessoas, não havendo abrigo num “grupo primário” privado, como aponta Firestone. Tais agrupamentos ocorriam, majoritariamente, em lugares públicos . A ideia que se tinha de criança também era bem distinta da que temos nos tempos atuais, estas eram compreendidas como adultos em miniatura, sem muita relevância para a vida familiar. Dessa forma, desenvolviam-se longe dos pais, sendo amamentados e criados por outros, até certo período de suas vidas. Este cenário passa a sofrer alterações com a inserção da lógica capitalista e o desenvolvimento da burguesia, após o século XIV, quando se inicia o conceito da infância. O desenvolvimento da família moderna altera o agrupamento familiar que passa a se dividir em unidades pequenas, centradas em si mesma, nas quais a criança ganhou importância.
[...] A criança tornou-se então importante, pois ela era o produto dessa unidade[...] tornou-se conveniente mantê-las em casa durante o máximo de tempo possível, e amarrá-las psicológica, financeira e emocionalmente à unidade familiar até o tempo em que estivessem prontas para criar uma nova unidade familiar. (FIRESTONE,1970, p.103)
Este súbito interesse em torno da unidade da família se deve também ao fato desta apresentar –se como a “ [...] instituição chave que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho.”( FEDERICI, 2017, p.173) em um contexto onde a Europa havia passado por uma grave crise populacional e que , como coloca Federici “[...] a ideia de que a quantidade de cidadãos determinava a riqueza de uma nação havia se tornada algo parecido a um axioma social”.( FEDERICI,2017, p. 171) A crescente preocupação com a criança, desde sua formação , para que esta conseguisse chegar a idade de desempenhar seu respectivo papel dentro da lógica desta nova sociedade capitalista teve efeitos , principalmente, sobre a vida da mulher . Uma série de medidas a favor da natalidade foram desenvolvidas pelo Estado, iniciando uma verdadeira guerra contra as mulheres. O estÍmulo à procriação , a vida familiar , a supervisão da sexualidade e a demonização a qualquer forma de controle de natalidade as fez perder todo o controle sobre seus corpos e sua reprodução. Estas eram vigiadas para que não interrompessem a gravidez, parentes e vizinhos eram estimulados à espionagem de maneira a informar todo e qualquer detalhe sexual relevante sobre a vida das mulheres, parteiras foram banidas e marginalizadas sob suspeitas de colaborar com o infanticídio, e o número de execução de mulheres por esta acusação passou a ser um dos maiores na época. O relato de Rublack sobre este período deixa claro a incessante perseguição e controle das mulheres : Na Alemanhã, a cruzada pró-natalista atingiu tal ponto que as mulheres eram castigadas se não faziam esforço suficiente durante o parto, ou se
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demonstravam pouco entusiasmadas por suas crias.” ( RUBLACK,1996, p.92 apud FEDERICI,2017, p.178).
A procriação então foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista. A preocupação criada em torno da infância passou a exigir também uma constante supervisão das crianças , aumentando , assim, sua dependência da figura materna. Portanto, mantê-las por mais tempo dentro de casa, consequentemente , significou manter, também, as mulheres. “ [...] com o aumento e o exagero da dependência infantil, a escravidão das mulheres à maternidade também foi ampliada até seus limites.” (FIRESTONE,1970, p.107 – 108). Este vínculo especial reconhecido por todos, entre a mulher e a criança, fez com que caísse sobre suas costas a responsabilidade de seus cuidados. Estas responsabilidades “naturalmente” atribuídas ao sexo feminino, limitaram não só suas vontades e tempo, mas também seu próprio espaço, tornando a casa seu lugar natural. Assim, consequentemente, tudo o que envolvesse este espaço passou a ser atribuído como obrigação da mulher. Entretanto, a figura da dona de casa em período integral não se encontrou na classe trabalhadora, foi somente no século XIX que a família moderna , centrada do trabalho reprodutivo integral e não remunerado da dona de casa , se generalizou entre esta classe. Então o que aconteceu com estas mulheres que, assim como as burguesas, sofriam constantes opressões devido seu gênero, mas que , ao contrário delas, ainda tinham que lidar com opressões devido sua classe? Como o patriarcado associado ao capitalismo atingiu estas mulheres e de que maneira influenciaram sua relação com o espaço da cidade que cada vez mais se distanciava da imagem feminina ?
1.5. A DEGRADAÇÃO DA MULHER E DO TRABALHO FEMININO
A privatização da terra foi um dos principais meios para a implantação e desenvolvimento do capitalismo, tendo como consequência o empobrecimento da classe trabalhadora. Entretanto, este processo de expropriação de terra, afetou principalmente as mulheres, já que estas, apresentavam menos direitos sobre ela , assim como direitos sociais, culminando em uma subsistência, autonomia e sociabilidade extremamente vinculadas a este espaço. [...] as terras comunais também foram o centro de vida social das mulheres , o lugar onde se reuniam, trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista próprio – autônomo da perspectiva masculina - sobre os acontecimentos da comunidade. (CLARK,1968, p. 51 apud FEDERICI,2017, p. 138)
Ao utilizarem de tal mecanismo para expandir suas propriedades, os ricos fazendeiros deixavam os trabalhadores não apenas sem terra, mas também sem formas de se sustentarem, já que esta era o principal meio de subsistência. Como resultado, o único acesso disponível à esses meios de sobrevivência passou a ser através do emprego. Esta crescente dependência econômica , antes inexistente na Idade Média, permitiu que os empregadores se aproveitassem da situação, reduzindo salários e ampliando horas de trabalho. Assim, os salários começaram a representar um instrumento de escravidão , fazendo com que o ódio crescente pelo trabalho assalariado levasse muitos trabalhadores a preferir vagar por ai, em busca de trabalhos migrantes, à trabalhar por um salário. Entretanto, para as mulheres, optar por esta vida nômade era muito mais difícil pois isso significava uma constante exposição a violência masculina. Com a economia de subsistência dando lugar à economia monetária , a unidade existente entre a produção e a reprodução 27
chegou ao fim. As atividades de produção passaram a ser consideradas, pelo mercado, atividades de valor, enquanto que as atividades voltadas para a reprodução do trabalhador sofreram forte desvalorização, deixando de ser consideradas um trabalho. Este cenário afetou especialmente as mulheres já que estas encontraram maior dificuldade para se sustentar, sendo , automaticamente, confinadas ao trabalho reprodutivo no momento em que este passou a ser desvalorizado. O trabalho reprodutivo continuou sendo pago – embora em valores inferiores - quando era realizado para os senhores ou fora do lar. No entanto, a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis , sendo mistificadas como uma vocação natural e designadas como “ trabalho de mulheres”. Além disso, as mulheres foram excluídas de muitas ocupações assalariadas e , quando trabalhavam em troca de pagamento, ganhavam uma miséria em comparação com o salário masculino médio. ( FEDERICI, 2017, p.145)
Sem terras e agora também sem o poder sobre seu trabalho , muitas mulheres acharam na prostituição a principal forma de subsistência. O crescente número de mulheres nas ruas da cidade acabou por incomodar as principais instituições que colocaram a prostituição como um ato criminoso. Consequentemente, o poder dos homens sobre as mulheres só aumentou, já que dentro deste ato criminoso , apenas a mulher era castigada. [...] na França do século XVI, o estupro de prostitutas deixou de ser crime. Em Madri, também foi decidido que as vagabundas e as prostitutas não estavam autorizadas a permanecer e a dormir nas ruas ou sob os pórticos; se fossem pegas em flagrante, deveriam receber cem chibatadas e , depois, ser banidas da cidade por seis anos, além de ter a cabeça e as sobrancelhas raspadas.( FEDERICI,2017, p. 187)
Aos poucos as mulheres foram sendo afastadas dos espaços
públicos e perdendo qualquer direito à cidade. A baixa nos salários , de um modo geral, fez com que os homens temessem a concorrência com as mulheres, já que a troca por sua força de trabalho era feita a salários baixíssimos. A pressão para confina-las dentro de casa tornava-se cada vez maior. Federici destaca que “ Aquelas que ousaram trabalhar fora do lar, em um espaço público e para o mercado, foram representadas como megeras sexualmente agressivas ou até mesmo como “putas” ou “bruxas”.” (HOWELL,1986, pp.182-3 apud FEDERICI,2017, p. 189 -190) Desvalorizar o trabalho feminino e fixá-lo nas atividades reprodutivas passou a ser de interesse dos homens, independentemente de sua classe; para os proprietários significou a disponibilidade de um trabalho mal remunerado, e para os trabalhadores, a garantia de alguém para “ajudá-los” no trabalho produtivo e cuidar de suas necessidades fora dele, ambos de forma gratuita. Portanto, de um modo geral, as mulheres perderam o controle sobre si mesmas, as burguesas sendo privatizadas e aprisionadas dentro da propriedade de seus maridos burgueses, ou seja , a casa; e as trabalhadoras sendo tratadas como “bens comuns”, substituindo as terras perdidas pelos seus. A única propriedade que lhes restava era a honra. Para consolidar a desvalorização da mulher e a retirada de sua autonomia, estas passaram por um longo processo de degradação social, de forma que perdessem espaço em todos os meios possíveis; a diferenciação sexual passou a ganhar uma dimensão espacial. “ [...] foram introduzidas novas leis e novas formas de tortura destinadas a controlar o comportamento das mulheres dentro e fora de casa “ [...] um projeto politico preciso com o objetivo de deixa-las sem autonomia e poder social.” ( FEDERICI,2017, p.203).
É a partir deste momento que a figura da mulher, assim como o modelo de feminilidade, passam a sofrer alterações se aproximando deste modelo mais comum à nosso imaginário, onde a boa mulher é vista como um ser contido, obediente, delicado, passivo, e mais uma série de características já tratadas anteriormente.
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Assim como a degradação social da mulher, outro fator fundamental para o desenvolvimento capitalista foi o tráfico de escravos . Com boa parte da população dizimada após a invasão ao continente americano por parte dos colonizadores, a escravidão tornou-se a solução perfeita para satisfazer os interesses do capitalismo através do acúmulo de riquezas por meio de um trabalho escravo. Inicialmente, tanto os escravos africanos, como os proletários vindos da Europa, por punição, foram submetidos a condições de trabalho semelhantes , trabalhando lado a lado. Com isso muitas conspirações surgiam da união de trabalhadores negros, brancos e indígenas , para desagrado e preocupação da classe dominante. É nesse contexto que surge a necessidade de separar tais povos , sendo a construção de hierarquias raciais o principal meio utilizado pela lógica capitalista para evitar tais conspirações. Foram aprovadas inúmeras leis que destituíam os negros de todo e qualquer direito, as cargas de trabalho dos brancos diminuíram, o casamento entre ambos foi proibido e o ápice se deu com a transformação da escravidão em condição hereditária. Apesar de nas colônias sul-americanas, como aponta Federici, as diferenças entre raças se “recomporem” ao invés de aumentarem ao longo do tempo como nas demais colônias , a hierarquização da raça criou uma sólida barreira entre os povos . As mulheres brancas passaram a ocupar posições de maior prestígio, transferindo os “deveres” doméstico para as mulheres negras escravas que trabalhavam como empregadas. Estas, além deste serviço doméstico , trabalhavam nos campos tanto quanto os homens, eram submetidas a ataques sexuais dos senhores e recebiam castigos constantes. A mulher negra tornou-se , além de mão de obra barata , também escrava sexual, sendo submetida a uma terceira forma de opressão, referente a sua raça.
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2.
A MULHER NA CIDADE
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Por muito tempo os estudos e planejamentos da cidade foram analisados a partir de questões demográficas, econômicas, culturais e políticas, sendo o gênero considerado algo sem muita relevância. O androcentrismo, tão presente nos estudos urbanos , desconsiderou todo o processo pelo qual as mulheres passaram no decorrer da história e a forma como isto afetou sua relação com os espaços da cidade, fazendo com que a percepção feminina em relação a estes espaços fosse invisibilizada e a experiência masculina fosse tomada como modelo de toda a sociedade. Esta não compressão da aliança capitalismo/patriarcado, essencial para o processo de dominação feminina, impede que se tenha um completo entendimento das cidades em que vivemos já que esta união , como aponta Calió, é um dos principais fatores de caracterização da urbanização moderna. Excluir estas estruturas de dominação racial, sexual e de classe do sistema urbano é excluir também a presença da mulher nele. O não entendimento da cidade-sexista impossibilita aos estudiosos urbanos reconhecer nela a mulher. Esteja ela onde estiver, no mercado de trabalho, no lar, seja ela sozinha, casada, chefe de família, de qualquer idade, cor e classe social [...] ( CALIÓ, 1997 , p. 05)
Villagran destaca algumas das lógicas patriarcais presentes na estrutura urbana que organizam e sustentam os espaços da cidade, através das quais a mesma 31
vêm sendo construída. A primeira se dá a partir da criação de dicotomias geográficas, dentro das quais as mais comuns são: público – privado, fora –dentro , trabalho – lazer , poder – submissão, dependência – independência , casa – trabalho, produtivo – reprodutivo , mente – corpo. Estas distinções binárias criadas em função do gênero afetam diretamente a estrutura espacial e, consequentemente, a forma como a mulher se relaciona com este espaço. Esta passa a situar-se a partir destas características estereotipadas que acabam reduzindo e limitando suas possibilidades de mobilidade e experiência urbana. A segunda se relaciona com a origem patriarcal das representações da mulher e da feminilidade e como estas são atribuídas às formas arquitetônicas de maneira simbólica. O homem se projeta na cidade , estabelecendo correspondências entre seu corpo e a arquitetura, entretanto, este também cria correspondências aos corpos femininos. Assim, como coloca Villagran, o corpo masculino se reconhece através do grande, sólido, e poderoso, no que é vertical e linear, enquanto o feminino tem sua correspondência no que é delicado, curvo e abobadado. Já a terceira lógica se dá através do que Villagran coloca como a “invisibilidade da mulher na vida urba na reforçada pela ordem social patriarcal que reforça ou pode transformar as construções dos papeis dos homens e mulheres em processos de produção e reprodução.” (VILLAGRAN,2014, p.202). A seguir nos aprofundaremos em cada uma das lógicas levantadas pela autora, buscando compreender de que forma estas influenciam as experiências da mulher na cidade.
2.1.
DICOTOMIA PÚBLICO X PRIVADO
A dicotomia Público X Privado , é umas das principais lógicas patriarcais que organizam os espaços, é através dela que a construção dos papeis sociais de cada gênero se espacializam.
De acordo com Rodrigues, esta dicotomia possui duas formas de compreensão principais; a primeira é usada para distinguir Estado x Sociedade, no sentido de propriedades públicas e estatais em relação à propriedade privada; e a segunda usada para distinguir Estado x Família, no sentido de vida doméstica e vida não doméstica .Para a discussão referente ao gênero, nos detemos à segunda definição. Como visto no capítulo anterior, a forma com que a sociedade foi se desenvolvendo ao longo do tempo, criou no imaginário social uma ideia sólida e bem estruturada da existência de um vínculo inerente do espaço da casa à mulher, sendo atribuída a ela toda a responsabilidade doméstica e, portanto, a associação de seu corpo ao espaço privado. Enquanto isso, o homem foi fortemente vinculado a imagem de provedor, tendo como seu espaço, por natureza, a rua. Este tipo de divisão espacial associada aos sexos já podia ser vista de forma muito explícita na Grécia antiga, onde os gregos associavam seus espaços e ditavam suas regras a partir da fisiologia humana. Segundo Sennett, para os gregos, os corpos mais quentes eram mais fortes e, consequentemente, os que gozavam de mais direitos sociais e urbanos. O calor corporal era tido como um aspecto que antecedia o nascimento, diretamente ligado ao sexo. As pesquisas desenvolvidas por estudiosos na época sobre este assunto apresentavam raciocínios distintos, mas a conclusão era sempre a mesma , a de que corpos masculinos eram mais quentes que os femininos e, portanto, mais fortes. Diógenes de Apolônia foi o primeiro grego a pesquisar essas diferenciações de calor, tema aprofundado por Aristóteles em Das partes dos animais, onde comparou o sangue menstrual — sangue frio — e o esperma — sangue fervente. Para Aristóteles, o esperma era superior por gerar vida, em contraposição à menstruação, inerte. Ele distingue “o macho, dotado do princípio do movimento e da geração, e a fêmea, possuidora do princípio da matéria”, estabelecendo um contraste entre forças ativas e passivas no corpo. ( SENNETT, p.38)
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As capacidades humanas de ver, ouvir, agir e até mesmo falar, também eram consideradas derivadas do calor corporal. Quanto mais quente um corpo , mais intensa era sua resposta aos estímulos. Partindo desta lógica, as habilidades de respostas aos estímulos verbais assim como a oratória também estavam relacionadas a quantidade de calor corporal e, consequentemente, ao sexo. Outro aspecto relacionado à temperatura do corpo era o direito à nudez, os corpos mais quentes tinham o direito de andar pelos espaços expondo sua nudez, enquanto os corpos frios tinham que escondê-la. Portanto, esta lógica criada em torno dos corpos formava uma escala ascendente de valores em torno deles que apresentava os homens como superiores às mulheres refletindo na forma como estes se relacionavam com o espaço. “ Os gregos usavam a ciência do calor corporal para dita regras de dominação e subordinação.” (SENETT, p.32) Ao serem associados ao dom da oratória, os homens eram considerados dignos a participar da vida pública, assim como de discussões políticas, podendo exibir seus corpos sem discriminação, enquanto as mulheres, tidas como fracas, eram destinadas à esfera doméstica, sem poder de fala , tendo que esconder seus corpos. Estas configurações acerca dos corpos femininos podem ser percebidas em diversos momentos da história , até os dias atuais, de diferentes formas e intensidades, mas intactas em sua essência. Assim como afirmou a historiadora moderna Giulia Sissa , “[...] quando o feminino foi incluído na mesma esfera do masculino (...) o resultado não foi o reconhecimento liberal de igualdade, mas o abandono da ideia da fêmea como ‘obviamente’ inferior ao macho”. ( SISSA, apud , SENNETT, p.40) Portanto, mesmo que a mulher tenha conquistado o direito de circular pelos espaços assim como os homens, não significa que isso ocorre da mesma forma. As opressões historicamente sofridas por elas ainda se expressam no espaço público. Esta distinção entre as esferas público x privado, alteraram consideravelmente as relações sociais entre os sexos, priorizando e determinando o espaço público e masculino como um lugar político e econômico, e negando o privado assim como as atividades inseridas neste meio e a figura da mulher, fazendo da cidade um espaço extremamente sexista.
2.2. CIDADES
MASCULINAS
A segunda lógica patriarcal levantada por Villagran diz respeito às representações de ambos os sexos no meio urbano. A forma com que algo é inserido e reproduzido no espaço possui forte ligação com as formas de poder atuantes no mesmo. De acordo com McDowell, estas relações de poder “ [...] estabelecem as normas; e as normas definem os limites, que são tanto sociais como espaciais, porque determinam quem pertence a um lugar e quem permanece excluído.” ( MCDOWELL ,2000, apud CORTÉS,2008, p.126). Portanto, os espaços não são neutros. A lógica apontada pela autora nos permite entender porque razão homens e mulheres vivenciam os espaços de formas tão distintas e porque os corpos femininos ainda são tratados como corpos estranhos dentro dos espaços da cidade. Como já visto, a sociedade patriarcal na qual estamos inseridos cria relações de poder nas quais os homens são superiores às mulheres e, portanto, possuem autoridade sobre elas. Estas relações de poder estabelecem o masculino como o gênero normativo, e por essa razão, os limites espaciais se constituem a partir deste corpo, segregando e excluindo os demais. A arquitetura e o urbanismo reproduzem este sistema de hierarquia entre os gêneros nos mais diversos níveis, [...] a produção ativa de distinções de gênero pode ser encontrada em todo nível de discurso arquitetônico: em seus rituais de legitimação, práticas de contratação, sistemas de classificação, verificações técnicas, imagens publicitárias, informação oficial, divisão de trabalho, bibliografias, desenho de convenções, códigos legais, estruturas salariais, práticas de publicação, linguagens, ética profissional, protocolos de edição, créditos de projetos [...] ( WIGLEY ,1997, apud CORTÉS,2008, p.135)
portanto, podemos perceber que a arquitetura esta subordinada ao gênero masculino, fazendo com que os espaços se configurem 33
a partir de um único olhar, um olhar superior, o olhar do homem; sujeitando, assim, todos os outros às suas necessidades e vontades. [...] o espaço urbano estabelece – em sua distribuição, utilização, transferência e simbolização – hierarquias e prioridades que favorecem determinados valores e anulam outros. Dessa forma, enquanto o trabalho e as atividades masculinas (bem como suas necessidades e prioridades) são o que organiza majoritariamente a casa e a cidade, ambos se adaptam aos movimentos, tempos e desejo da masculinidade, do mesmo modo que omitem as experiências diferentes ou dissidentes dessa masculinidade. ( CORTÉS,2008, p.135)
Dessa forma, a arquitetura passa a dialogar e se comunicar a partir de uma única linguagem que não é acessível nem compreendida por todos, e dotam os espaços de conteúdos muito específicos que, na maioria das vezes, responde à subjetividade de apenas uma parcela da sociedade, parcela esta composta majoritariamente por homens brancos, cisgênero, héteros e misóginos. De acordo com Cortés, o homem viril mantém sua apropriação e controle do espaço urbano a partir de dois aspectos fundamentais onde, um deles visa dotar o espaço de características pretensamente femininas a fim de apresentá-lo como um lugar neutro, e o outra busca tornar invisível qualquer outra sexualidade e gênero que não sejam o seu. Dessa forma, não é mais o espaço que contém as identidades de gênero, e sim o gênero que passa a ser um elemento construtivo das identidades. Uma das formas de se medir essa hierarquização do espaço e a dominação masculina é através das referências simbólicas que o compõe. Um dos símbolos arquitetônicos que melhor expressa a masculinidade controladora e a supervalorização dos corpos masculinos é o arranha – céu.
O Arranha – céu O arranha-céu é um símbolo arquitetônico, que carrega consigo a imagem do avanço tecnológico, da modernidade e da globalização econômica. Surge a partir de um discurso que utiliza a verticalização como solução para a falta de terrenos, entretanto, o primeiro arranha-céu é erguido em Chicago, em um terreno com extensa área. Com isso, somos levados a questionar o quanto esta forma de construção se deve muito mais a ideia da criação de um símbolo de poder e riqueza do que uma necessidade de fato. A fala do arquiteto Louis Sullivan, “ pai dos arranha céus”, no início do século XX sobre o projeto de um colega, deixa evidente a relação simbólica dos arranha-céus com a imagem dominante e controladora da masculinidade: Vocês têm aqui um homem para observar, uma força viril, todo um símbolo da masculinidade. Ergueu-se como um fato físico, como um monumento ao comércio, ao espírito dos negócios, ao poder e ao progresso da época, à resistência e capacidade individual e à força de caráter. Por isso, em um mundo de mesquinhez estéril, fiz referência à ele como um homem porque evoca o poder criador, ao passo que os outros cantaram a mestiçagem. ( SULLIVAN, apud CORTÉS,2008, p.144)
O arranha-céu é uma resposta à necessidade do homem de se projetar na arquitetura, sua forma, fortemente marcada pela verticalidade, corresponde ao ereto, ao falo, ao símbolo do que até hoje é considerado um dos maiores êxitos do “homem”, o “estar de pé”. Dessa forma, quanto mais alto o edifício, maior seu poder e sua capacidade de imposição perante o outros. Sua própria distribuição interior reflete essa relação de poder; os andares mais altos, comumente, são destinados àqueles que detém maior posição dentro de uma empresa e, consequentemente, aqueles que terão um olhar privilegiado. Simbolicamente, este é lugar ocupado pelo homem em nossas cidades, o ponto mais alto dos arranha-céus, lhe dá autoridade visu-
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al, um olhar que vê de cima, que tem uma percepção do todo e que, dessa forma, possui o controle total. Este mesmo olhar cria os espaços e se apropria , crendo ter o direito a tudo o que neles esta inserido, inclusive o corpo da mulher, que se torna objeto passivo do olhar masculino. A criação dos arranha-céus terá como inerente a si mesma uma forte dissociação entre os que estão na parte superior e olham “desde” cima e os que permanecem na rua e olham “para” cima.”[...] Trata-se de uma estrutura hierárquica clara que delimita com nitidez de que lado cada um se situa : em cima, com o poder tecnológico econômico e político; ou embaixo; perdido em meio a uma multidão confusa. “(CORTÉS,2008, p.145)
um monumento a esse espírito que você tem”. Nesta fala vemos presente o desejo de projeção do homem no espaço através da arquitetura. Na cena seguinte, é mostrado o resultado deste projeto, que se materializa nada mais do que na imagem de um arranha-céu, descrito como “ A estrutura mais alta do mundo”. Ou seja, a visão do arquiteto sobre ele mesmo é a de a maior e mais poderosa estrutura do mundo.
Análise de “The Fountainhead” a partir da perspectiva de gênero O filme americano “ The Fountainhead”, de 1949, trata de forma marcante e bem definida a simbologia de poder associado aos arranha-céus. Ao analisar algumas de suas cenas, podemos enxergar com clareza como questões discutidas anteriormente estão inseridas em sua narrativa. O filme traz a questão do individualismo e de que maneira este se sobrepõe a uma determinada coletividade , através da figura do arquiteto Howard Roark. Na trama, o arquiteto defende o direito de destruir um prédio porque este não correspondia ao que ele havia imaginado e projetado. Com isso, já podemos levantar em questão a ideia da imposição do olhar masculino, que desconsidera ou considera indigna qualquer coisa que diverge do seu olhar. Entretanto, são nas cenas finais que se evidenciam as relações de poder e opressão através da simbologia do arranha-céu e da figura masculina. A primeira cena a ser analisada é o momento em que Howard Roark assina o contrato com o magnata Gayl Wynand que determina que ele será o arquiteto de seu edifício. Ao entregar o contrato à Roark, Wydand reproduz a seguinte fala “ construa-o como
Figura 1 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019) Em seguida, entra em cena Dominique Francon, com quem Roark estabelece uma relação amorosa ao decorrer do filme. A figura de Dominique representa a figura da mulher inserida neste cenário masculino e opressor. Ao visitar o arquiteto, Francon precisa percorrer um longo percurso de elevador para chegar até ele, que se encontra justamente no ponto mais alto do edifício. Durante a cena que mostra o percurso feito por Francon até o topo do prédio, é possível perceber as questões de hierarquia do olhar. As expressões da jovem ao olhar para baixo demostram o quanto aquela posição e aquela visão não são naturais à ela , pois 35
são visões da perspectiva masculina que vêm “desde” cima.
Entretanto, quando a jovem olha de baixo para cima e percebe a presença de Hoark acima da sua, suas feições já ganham um caráter de mais “familiaridade”, pois esta visão “para cima” é a visão que se tem da posição que as mulheres normalmente são colocadas. Outra questão que se pode levantar a partir das cenas é o constante questionamento que se tem em torno da mulher, que necessita estar sempre se explicando ou se justificando de alguma forma, diferentemente do que ocorre com a figura masculina que pode apenas “ser”. Percebemos isso no filme quando todo o percurso da jovem até o ponto mais alto do edifício é mostrado, quase como uma explicação de como ela chegou àquela posição, enquanto o mesmo não acontece com Roark. Ele simplesmente se apresenta no topo arranha-céu, sem haver a necessidade de se mostrar como chegou até lá , como se aquele já fosse seu lugar, de natureza.
Figura 2 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019)
Figura 3: Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019)
Figura 4 : Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019)
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2.3.
Figura 5: Desenho da cena do filme “ the Fountainhead” (2019)
INVISIBILIDADE DA MULHER
A terceira lógica patriarcal apontada por Villagran como um dos pilares da organização espacial urbana se dá através da invisibilidade da mulher no cotidiano da cidade e na vida pública. Ao tirar da cidade elementos de representação e identificação feminina , assim como a distorção destes elementos , faz-se com que as mulheres deixem de se sentir pertencentes a estes espaços ou se coloquem de formas impositivas , pré determinadas e estereotipadas dentro dos mesmos. Ocorre então o que Calió define como “[...] “invisibilização” das mulheres na multidão urbana. Elas estão lá, importantes para o cenário mas insignificantes para a cena.” ( CALIÓ,1997, p. 04) A divisão dos sexos, a partir de processos de produção e reprodução, apenas reforça este aspecto, delimitando como e até onde a mulher pode ocupar a cidade. Como já visto, esta divisão foi inserida no âmbito do trabalho a partir do desenvolvimento do sistema capitalista que passou a separar “ [...] um espaço/tempo para trabalhar e ganhar um salário do espaço/ tempo do trabalho de reprodução”. ( KERGOAT,2002, apud, GOLÇALVEZ ROSA,2017, p.71) Segundo Kergoat, esta divisão social do trabalho possui dois princípios organizadores; o “princípio da separação” que firma a ideia da existência de um trabalho especificamente feminino e de um especificamente masculino; e o “princípio hierárquico” que estabelece que um trabalho de homem “vale” mais do que um trabalho de mulher. O trabalho reprodutivo, compreendido como o trabalho doméstico e fundamental para que o capital garanta a reprodução e manutenção da classe trabalhadora, não tem como objetivo a criação de bens e mercadorias, mas sim a de bens úteis e indispensáveis para a sobrevivência da família, diferentemente do trabalho produtivo que objetiva necessariamente um valor monetário. Por essa razão, o primeiro foi invisibilizado aos olhos do capitalismo, e junto dele também a mulher, devido o forte vínculo estabelecidos
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entre ambos, como já analisado anteriormente. Entretanto, ao falar sobre a invisibilidade e apagamento das mulheres , é preciso compreender que existem certos recortes que fazem com que este processo se dê de formas e intensidades diferentes à determinado grupo de mulheres. No Brasil, a mulher pobre e negra, por exemplo, é constantemente invisibilizada , carregando consigo uma tripla opressão que a torna muito mais vulnerável a qualquer questão inserida dentro da cidade. Quando escravas , seu acesso a cidade era muito maior que o das mulheres nobres já que seu trabalho exigia uma maior circulação, as tornando mais vulneráveis aos perigos recorrentes. Já no momento em que as mulheres passam a conquistar espaço na esfera pública , o direito de desenvolver os mesmos cargos que os homens e a poder estabelecer uma carreira dentro do trabalho produtivo, isso não resultou no fim de seu vínculo com o trabalho reprodutivo e o espaço doméstico, mas sim em uma jornada dupla da mulher, que apenas acumulou outra forma de trabalho já que as tarefas domésticas continuaram sendo sua responsabilidade. Com isto, este fenômeno recaiu principalmente sobre as mulheres pobres e negras, já que para conseguirem sua independência financeira e ingressarem no mercado de trabalho , muitas mulheres de condições financeiras superiores acabaram por utilizar a força de trabalho delas para a realização das tarefas domésticas . Em se tratando dos espaços da cidade, é a mulher negra que se encontra em grande número nas áreas periféricas, com menor oferta de serviços e acessibilidade. São elas, na maioria dos casos as chefes de família e mães solteiras que ao desempenharem o papel de provedora e cuidadora sem nenhum auxílio, são submetidas a rotinas exploradoras e violentas. Por estarem inseridas nos piores trabalhos e receberem os salários mais baixos estas acabam se submetendo muitas vezes a jornadas triplas de trabalho. A erotização e hipersexualização de seus corpos, herança do período colonial onde as escravas eram submetidas a inúmeras violências sexuais, também faz com que as mulheres negras sejam hoje uma das principais vítimas de estupro. São elas a maior parcela da população carcerária feminina, as que apresentam a maior porcentagem na realização de abortos, e que por falta de recursos financeiros também são as que mais morrem nestas cirurgias por recorrem à clinicas e métodos duvidosos. A mulher negra segue
sendo constantemente invisibilizada. No que diz respeito as mulheres trans e travestis esta invisibilidade apenas se intensifica, suas questões, percepções e experiências na cidade são simplesmente ignoradas. No Brasil, país que mais mata travestis e transexuais, andar pelas ruas é uma questão de risco de vida. A falta de uma legislação que as proteja e o extremo preconceito existente somados à sua exclusão do mercado de trabalho, faz com que muitas destas mulheres quase sempre tenham como única opção a prostituição, e é nas ruas que muitas acabam por perder suas vidas. A extrema violência e preconceito faz com que o tempo médio de vida desta mulheres seja quase a metade do restante da população, e ainda sim isso quase não é falado. Portanto, essa invisibilidade feminina nas ruas e demais espaços urbanos faz com que a maneira como mulheres experimentam e se deslocam pela cidade se deem de formas distintas, influenciando diretamente sua relação com a mesma .
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3.
A MULHER PELA CIDADE 39
3.1. A LÓGICA URBANÍSTICA
O urbanismo aparece como disciplina e ganha o sentido de planejamento urbano no final do século XIX, diante da expansão das cidades industriais. ntretanto, é no início do século XX que surge o pensamento urbanístico responsável por diretrizes e bases teóricas utilizadas até os dias atuais no planejamento das cidades. O urbanismo moderno expresso na Carta de Atenas [...]compilou aprendizados e práticas de arquitetos e urbanistas ao longo de mais de 100 anos e, por isso, acabou se tornando uma das principais referências no processo de urbanização e crescimento das cidades ocidentais. ( HARKOT,2018, p.39)
Tendo como suas funções - chave o habitar, trabalhar, recrear e o circular , a cidade funcionalista foi teorizada como se as necessidades humanas fossem iguais entre si, bastando um modelo único de cidade para solucionar todos os problemas e demandas de seus moradores. Entretanto, assim como coloca Roman e Velázquez, pensar a cidade para um uso excessivamente simplista faz com que não se reconheça a complexidade da vida cotidiana dos diferentes grupos sociais que nela estão inseridos. Ao compreender o espaço e a vida urbana divididos em tarefas e momentos, a cidade passou a ser planejada a partir de usos especializados, de forma que “ as áreas residenciais, lugares de trabalho e zonas comerciais e de serviços se localizam diferentemente no espaço, separadas uma das outras.” ( MOLINA,2006, apud , VILLAGRÁN,2014, p.204).
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A principal separação na qual as cidades modernas estão inseridas se dá a partir das atividades de produção e reprodução, fazendo com que seus deslocamentos sejam feitos a partir das lógicas e regras do capitalismo. Como a classe trabalhadora e sua força de trabalho são indispensáveis para o capital, deslocar essa massa de suas casas até seus empregos tornou-se imprescindível, fazendo desta a principal função do sistema de transportes das metrópoles brasileiras ( HARKOT,2018, p.44) Em são Paulo, o automóvel foi o tipo de transporte priorizado dentro da cidade, estruturando toda a lógica urbana a partir de si. O urbanismo modernista e rodoviarista de Prestes Maia desconsiderou a cidade já existente, assim como seus caminhos tradicionalmente usados e sua topografia. O planejamento proposto para a cidade tinha como objetivo torná-la um espaço adequado para a circulação de transportes motorizados e foi resultado de um sistema radial-perimetral que segundo Leme (apud HARKOT,2018) , reforçou a existência de um núcleo central ao mesmo tempo que promoveu uma urbanização de baixa densidade e crescimento horizontal ilimitado. O Plano de avenidas [...] serviu e impôs os interesses de um urbanismo rodoviarista, travestido de moderno, mas que oprimiu a geografia, o desenho da cidade. Oprime os habitantes da cidade. Para esse conceito de urbanismo, o pedestre e o ciclista não existem; metrô e a hidrovia são desconsiderados e a ferrovia esquecida.( DELIJAICOV,1998, apud, HARKOT,2018, p.68)
Após as propostas estabelecidas pelo Plano de Avenidas, os planos urbanísticos e viários posteriores continuaram seguindo a mesma lógica. De acordo com Rolnik a popularização da produção de automóveis iniciada pela Ford também trouxe grandes impactos já que “ [..] constituiu-se em uma das revoluções tecnológicas que transformaram não apenas a velocidade, mas também a cultura da mobilidade[...]. ” ( ROLNIK,1997, apud, ROLNIK e KLINTOWITZ, 2011, p.91) Tanto a lógica rodoviarista como a cultura do automóvel podem ser vistas até os dias de hoje na grande São Paulo, se impondo às dinâmicas da cidade e desconsiderando deslocamentos que
não se enquadrem nestas lógicas, como por exemplo os deslocamentos das mulheres.
3.2. DESLOCAMENTOS “FEMININOS”
Como visto anteriormente , o planejamento urbano e os meios de transporte foram pensados a partir das necessidades capitalistas, ou seja, em função daqueles que desempenham um trabalho produtivo. Ao considerarmos que atividades reprodutivas são realizadas, majoritariamente, pelas mulheres e que o sistema de mobilidade desconsidera e ignora estas atividades, podemos concluir que , consequentemente, estes sistemas de mobilidade desconsideram e ignoram, também, as especificidades e demandas femininas. Os próprios conceitos do urbanismo expressam essa olhar unilateral diante da cidade e de seus habitantes, como é o caso das “cidades dormitórios”, que são assim intituladas por se tratarem de cidades onde seus habitantes as usam apenas para passar a noite, porém trabalham fora delas. Mas a que habitantes este termo se refere? Quem são as pessoas consideradas dentro desta lógica? Essas cidades não são “dormitórias” para as crianças, idosos, pessoas que trabalham no local ou que não desenvolvem atividades produtivas, segundo a visão do capital. Fica evidente, assim, o quanto boa parte da população é desconsiderada pelo próprio urbanismo. Os meios de transportes também se baseiam nesta lógica de deslocamento, que se dá de maneira pendular, a partir do eixo casa – trabalho. Entretanto, este é um tipo de deslocamento característico do homem. Devido a dupla, ou até mesmo tripla jornada das mulheres, estas se deslocam de forma distinta, em “cadeia”.( MCGUKIN e MURAKAMI,1999 apud HARKOT,2018). Entre o percurso casa- trabalho , estas ainda frequentam espaços que são considerados extensões da esfera doméstica dentro do espaço 41
público por estarem vinculados às atividades de cuidado como escolas, supermercados, hospitais, farmácias, feiras, entre outros. É o que Calió chama de “ lar expandido”, sendo uma extensão econômica da casa. A própria natureza das pesquisas de viagens urbanas ainda é muito focada nos deslocamentos produtivos. Como aponta Harkot, foi a partir do surgimento da variável ´mulher´ nestas pesquisas, que se abriu espaço para outras variáveis e especificidades que não a de homens, trabalhadores , brancos e em idade reprodutiva, mas sim a de quem Rosenbloom nomeia como “ passageiros não neutros” ( ROSENBLOOM,1978 apud HARKOT). Haydée Svab é umas das autoras que contribuíram de maneira significativa para as discussões a respeito dos deslocamentos das mulheres a partir de seu trabalho sobre a “ Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo” a partir
da análise de gênero. A autora analisa extensamente toda a série de dados da Pesquisa Origem – Destino de São Paulo desde 1977 até 2007, associada a métodos estatísticos e análise de clusters e, a partir disso, conclui que o sexo é abordado como variável de interesse, mas não o gênero como categoria de análise e que, como coloca HARKOT (2018), outras características individuais e familiares, como renda e grau de instrução , ao se interseccionarem com o gênero, têm maior ou menor impacto dependendo do “sexo” do indivíduo. A partir da análise de alguns gráficos desenvolvidos por Svab , podemos tirar algumas conclusões em relação aos deslocamentos femininos. Ao Analisar o Gráfico 1 percebemos que :
Figura 6 : Gráfico 1 - Proporção de viagens do sexo feminino e do sexo masculino, segundo o primeiro modo de viagem, por ano. 42
I.Mulheres sempre fizeram mais viagens a pé do que homens II.Mulheres, quase sempre, utilizam mais o ônibus do que os homens .
II.As viagens por motivo de “educação” femininas sempre foram superiores as dos homens e apesar da diferença vir diminuindo, ainda é superior.
III.Apesar do aumento do número de mulheres dirigindo automóveis, seu uso sempre se deu, majoritariamente, por homens.
III.As viagens por motivo de “lazer/ outros” realizados por mulheres é superior às realizadas por homens.
E ao analisar o Gráfico 2 concluimos que : I.Apesar da maior participação das mulheres no mercado de trabalho, as viagens por motivo de “ trabalho” feitas por mulheres são sempre inferiores às feitas pelos homens.
IV.Viagens realizadas por motivo de “ manutenção / compras” são sempre maiores nos casos das mulheres V.Viagens realizadas para “servir passageiros” são sempre mais frequentes para as mulheres.
Figura 7 : Gráfico de Proporção de viagens do sexo feminino e do sexo masculino, segundo o mo�vo do des�no, por ano. 43
A partir da análise dos gráficos fica evidente o quanto os deslocamentos femininos não são considerados pelo planejamento urbano e não se enquadram dentro do sistema de mobilidade existente atualmente. Uma cidade rodoviarista, fortemente marcada pela cultura do automóvel, que se baseia em uma lógica de deslocamento pendular, jamais conseguirá atender um grupo que anda, majoritariamente, a pé, realiza multitarefas e possui jornadas diversas.
3.3. IN (SEGURANÇA) FEMININA
Conforme já visto , as cidades se organizam a partir de lógicas patriarcais que estruturam seus espaços e suas relações. Villagrán destaca os três principais aspectos ao se pensar a dominação de gênero na cidade a partir de tais lógicas , sendo eles , mobilidade/ transporte urbano e planejamento/ ambiente urbano, já tratados nos tópicos anteriores, e insegurança e violência nos espaços públicos. A insegurança feminina foi, por muito tempo, um assunto tratado de maneira insolada, não sendo inserido às discussões e políticas de segurança na cidade. Isso se deu porque acreditava-se que a violência ocorria apenas no âmbito doméstico , realidade que era invisibilizada e naturalizada aos olhos da população. Enquanto isso, as formas de violência ocorridas nos espaços públicos eram consideradas ocorrências em função do próprio espaço urbano como um todo, e não um fenômeno vinculado ao gênero. Em sua pesquisa sobre o medo da mulher no espaço público, Siqueira nos mostra que o medo das mulheres está intimamente relacionado à sua integridade física, como assaltos, assassinato e estupro, enquanto os homens sentem mais medo de crimes relacionados ao patrimônio. Esta insegurança feminina confere-se de forma direta à sua liberdade de movimento e uso do espaço , já que limita e impõem formas de acesso à cidade.
Entretanto, Villagran nos chama a atenção para a importância dos processos de socialização no período da infância para a construção do medo no imagético feminino. Desde cedo, meninas são ensinadas e têm seu psicológico trabalhado para associar a rua e os espaços públicos da cidade à espaços extremamente perigosos. [...] Os pais instalam em suas filhas um sentimento de vulnerabilidade no espaço público, que se reforçará posteriormente a alimentação constante de notícias procedentes dos meios de comunicação e de amigas conhecidas. (SABATÉ, 1995, p.229 apud VILLAGRÁN, 2014, p.206, tradução própria).
Isso nos leva ao que a autora apresenta como “insegurança subjetiva”, ou seja, o medo que alguém tem de sofrer um crime, diferente da “insegurança objetiva,” que se trata da probabilidade de que alguém sofra um crime de fato. Este temor subjetivo acaba se tornando uma ferramenta do patriarcado para controlar a mulher nos espaços públicos, e faz com que esta se encontre em constante “negociação” com o mesmo, onde “ Muitos dos roteiros e destinos aparentemente naturais escolhidos pelas mulheres são na verdade “estratégias de enfrentamento” que elas adotam para se manter seguras.” ( VALENTINE,1989, apud SIQUEIRA, 2015, p.27) Portanto, apresentadas ao medo, as mulheres passam a ser expostas a uma série de “regras” comportamentais que limitam e delimitam suas vestes, sua fala, seus movimentos e suas experiências urbanas. A insegurança feminina também esta vinculada a questões de temporalidade, enquanto de dia mulheres se deparam com alguns lugares perigosos e que geram insegurança, à noite esta sensação é constante. Além da baixa luminosidade, redução da visibilidade e a menor quantidade de pessoas na ruas, Siqueira aponta que uma outra razão para esta intensificação do medo é a natureza das mudanças do espaço público, que à noite, muitas vezes, passa a ser dominado pelos homens. Apesar desta insegurança feminina estar fortemente ligada à presença masculina nos espaços públicos, essa relação se apresenta de forma paradoxal a partir do momento que, ao mesmo tempo que temem estar na presença de homens , sozinhas, nas ruas , elas também se sentem mais seguras nestes locais 44
quando acompanhadas por um. Isso se dá pois, no espaço urbano, a figura masculina parece respeitar apenas seu semelhante, aquele que também considera digno destes espaços por natureza, tratando a figura feminina como um corpo estranho e invasivo. Dessa forma, torna-se necessária a constante afirmação, por parte do masculino, de seu domínio e direito sobre tal espaço, que podem se dar através de olhares, assobios, cantadas, chegado até mesmo a violação física dos corpos das mulheres. Entretanto, como consequência dessa impossibilidade da mulher desfrutar de sua liberdade e independência nos espaços públicos pela necessidade de buscar proteção na figura masculina, seja de um pai, irmão ou namorado, tem-se reforçada a ideia do espaço heterossexual de gênero. Visto isso, toda e qualquer postura que se aproxime da ideia construída de feminilidade ou que fuja desta heteronormatividade sofre diferentes formas de opressão. Homens, por exemplo, que apesar de se identificarem com o gênero masculino , mas que não optam pela heterosexualidade ou que apenas tem posturas tidas como “femininas” , são extremamente hostilizados nos espaços públicos, chegando até mesmo a perderem suas vidas. Atualmente , existem algumas medidas tomadas dentro do espaço público, cujo o intuito é aumentar a segurança das mulheres em seus deslocamentos pela cidade. Entretanto, algumas delas acabam tendo o efeito contrário, aumentando e, por muitas vezes, justificando as opressões sofridas por elas. É o que Tavares, através da fala de Molyneux , coloca como a divergência entre interesses práticos e estratégicos. Segundo a autora, os interesses de gênero são aqueles desenvolvidos por mulheres e homens a partir da forma como cada um está posicionado socialmente, podendo ser práticos ou estratégicos. Tais interesses possuem distintas derivações e implicações diferenciadas para a subjetividade da mulher. Os interesses estratégicos se tratam dos verdadeiros interesses das mulheres já que são formulados a partir de uma consciência de luta por emancipação feminina. Enquanto que , os interesses práticos [...] se relacionam às condições concretas do posicionamento das mulheres na divisão sexual do trabalho. Diferente dos interesses estratégico, este são formulados por mulheres que estão mais nessa posição do que fora. Por isso , são interesses que divergem quanto àquelas que procuram a emancipação
ou a igualdade de gênero. (MOLYNEUS,2010 apud TAVARES, 2017, p.05)
Um exemplo de medida prática nas cidades foi a criação do conhecido e polêmico “ Vagão Rosa" que visa, através da criação de um vagão exclusivo para mulheres, amenizar a ocorrência de assédios e insegurança feminina ao longo de seu deslocamento . Entretanto, apesar de trazer alguma sensação de segurança para as usuárias do transporte público, esta medida é problemática em inúmeros sentidos. Primeiramente por seu nome, que reforça estereótipos já enraizados em nossa sociedade, como o fato de tal cor estar muito vinculada a fragilidade e delicadeza, características também tidas como inerentes à mulher. Segundo, porque como já visto, as mulheres são as que mais andam a pé e as que mais dependem do transporte público, além de ser, também, metade da população, ou seja, um único vagão é insuficiente para sua demanda. Outra ponto é que a medida não atinge aquele que seria o problema central, o causador de tais situações de desconforto, o homem, ela apenas isola aquelas que sofrem tais situações, garantindo a elas o direito a apenas uma parte mínima daquele espaço, acabando por reforçar no imaginário social a responsabilidade da mulher dentro das ocorrências de assédio, ou seja, culpabiliza a vítima. Com isso, instaura-se também um pensamento de que aquela que não se encontra no vagão a qual foi destinada , optou por se colocar na situação do assédio, dando um livre acesso do homem ao corpo da mulher, legitimando e justificando , assim, os atos de assédio. A medida também acaba por desconsiderar as opressões sofridas apenas pela aproximação do que se diz ser feminino. Homens que de alguma forma fogem dos padrões de masculinidade imposto pela sociedade também sofrem com o machismo, entretanto não tem acesso a este espaço de “segurança” , ficando absolutamente sem espaço algum dentro de tal medida. Outros inúmeros questionamentos podem ser feitos em torno desta ação ou de tantos outros exemplos, mas a conclusão que se pode chegar a partir de todas elas é a de que não basta apenas criar medidas práticas contra as opressões de gênero, elas precisam ser estratégicas, sendo pensadas e executadas a partir de formulações feministas, atingindo, assim, os reais interesses e necessidades femininas. 45
4.
MULHERES QUE FALAM SOBRE MULHERES E CIDADE
46
Nos capítulos anteriores, através de um breve apanhamento histórico e material, foi possível perceber de que forma a mulher e as cidades veem se relacionando. A partir de estudos e analises de inúmeras (os) teóricas (os), conseguiu-se enxergar de forma mais clara algumas da principais questões da mulher e como estas ganham forma em nossos espaços e dinâmicas urbanas. Entretanto, mais do que clarear as visões sobre o tema, tais estudos trouxeram ainda mais inquietações e questionamentos. Portanto, o capítulo que segue se destina a apresentar algumas das mulheres cujos trabalhos apresentam inquietações semelhantes e abordagens distintas sobre tais questões, que ultrapassam a escrita e ganham o urbano. Mulheres essas que falam sobre mulheres e, também, sobre a cidade.
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4.1. VÂNIA MEDEIROS
uma ferramenta bastante expressiva e presente em seus trabalhos, assim, também, como a constante colaboração popular. Ambas as ferramentas utilizadas pela artista permearam o presente trabalho de maneira significativa, sendo perceptíveis em diversas etapas do processo e produto. A seguir se encontra um de seus projetos que trazem de forma expressiva questões referentes à mulher e a cidade. Caderno de Campo
Figura 8: Ar�sta Vânia Medeiros.
A artista, Vânia Medeiros, foi, sem dúvida, uma importante referência ao longo de toda a pesquisa. Seu trabalho, fortemente marcado pela junção de diversas áreas de conhecimento e a mescla de linguagens, influenciaram não apenas meu olhar e caminhar pela cidade , mas também minha abordagem e instrumentalização da mesma. Nascida em Salvador, a artista hoje vive e realiza muitos de seus trabalhos na cidade de São Paulo, tendo como um de seus principais questionamentos, a mulher. A inserção do corpo, da arte, do design, da arquitetura , entre tantos outros saberes, dá à sua pesquisa uma potência de significados, sentidos e sensações , que trazem luz a questões dificilmente percebidas. Sua incessante busca e investigações em torno da linguagem do desenho, faz deste
Figura 9: Projeto “ Caderno de Campo”. Caderno de campo se trata de um trabalho desenvolvido através do processo colaborativo de trabalhadores da construção de São Paulo e profissionais do sexo de Salvador. Em ambos os casos, os participantes foram convidados a relatar suas rotinas de traba48
lho ao longo de um mês, através do uso do desenho, sendo realizados, também, encontros semanais onde os mesmos eram discutidos e apresentados. Ao voltá-los para sua própria rotina, mais do que coletar informações referentes ao seu cotidiano, o processo buscou trabalhar um novo olhar e pensar sobre si mesmos e suas condições enquanto trabalhadores. No caso das mulheres de Salvador, encontrou-se em seus desenhos uma forte presença de elementos urbanos, como as ruas e calçadas, lugares muito comuns à seu imaginário por se tratar de um dos principais espaços em que se encontram durante o tempo de trabalho. Frente a isso, além de as estimular e ampliar sua compreensão sobre si mesmas enquanto mulheres e trabalhadoras, a atividade também às faz, de alguma forma, entrar em contato com este espaço tão presente em seu cotidiano a partir de um outro olhar e uma outra linguagem.
Figura 11: Projeto “ Caderno de Campo”
Figura 10: Projeto “ Caderno de Campo”
Figura 12: Projeto “ Caderno de Campo” 49
4.2. ANA TEIXEIRA
estão inseridos, o próprio conteúdo artístico. A forma como a artista da visibilidade à tais questões, tão importantes nas narrativas urbanas , mas muitas vezes invisibilizadas, dá luz ao que se apresenta como um dos principais anseios do seguinte trabalho, tendo , assim, forte presença em seu desenvolvimento e produção. Um de seus trabalhos que melhor sintetiza tais aspectos de suas obras é o trabalho “ De perto ninguém é normal”. “De perto ninguém é normal” Neste trabalho desenvolvido pela artista, no bairro da Belas Vistas (Bexiga), em São Paulo, foram espalhados pelas ruas do local, cartazes, à procura de voluntários para participarem do projeto. Após a movimentação popular para a realização do mesmo, estes personagens urbanos foram entrevistados , na tentativa do que, segundo a artista, tinha muito mais o papel de provocá-los a pensarem sobre si mesmos e suas características , do que ajuda-la à conhece-los.
Figura 13: Ar�sta Ana Teixeira
A artista visual Ana Teixeira possui presença significativa no desenrolar do trabalho devido a forma com que pensa e desenvolve seus projetos. Ao transitar por diferentes meios e linguagens, a artista também busca no desenho e na arte participativa um meio de comunicação e questionamentos. Seu uso da cidade nos projetos que desenvolve faz de seus trabalhos um agente comunicador que traz a cidade para dentro dos museus , mas também os leva para o cotidiano das ruas . Ao mesmo tempo que faz da arte uma possibilidade mais acessível , faz do cotidiano e daqueles que nele
Figura 14: Projeto “ De perto Ninguém é normal” 50
A partir de suas observações internas e externas dos participantes, a artista produziu retratos híbridos de parte destas pessoas em conjunto com outros seres vivos ou objetos inanimados, sendo estes expostos, posteriormente , no Espaço de Cultura Bela Vista.
Figura 17: Projeto “ De perto Ninguém é normal” Figura 15: Projeto “ De perto Ninguém é normal”
Figura 16: Projeto “ De perto Ninguém é normal” 51
4.3. FORMIGA-ME
Figura 18: Fernanda Carpegiani Formiga-me, nome que dá título à organização de projetos voltados para a reflexão e ações da cidade, é assim nomeado pelo que se mostra ser uma de suas principais características: acreditar nas pequenas ações que, em grandes quantidades, têm o poder de mudar nossas cidades e a forma com que nos relacionamos com elas. A partir disso, a organização cria inúmeros projetos e ações, que vão desde rodas de conversas e desenvolvimento de mapas afetivos até oficinas e mobilizações, para estimular e desenvolver melhorias em nosso espaços urbanos. As duas “formigas”, como se intitulam , responsáveis pela criação deste grandioso trabalho são as Jornalistas Carmen Guerreiro e Fernanda Carpegiani, que juntas conseguiram mover uma série
Figura 19: Carmen Guerreiro de ações e pessoas, de diferentes áreas e regiões, para a criação de inúmeros projetos relacionados à cidade, fazendo que a organização chegasse às proporções que tem hoje. Um dos projetos que mais se assemelhou às inquietações e anseios referentes ao tema desenvolvido no trabalho foi o “ Guia Mulheres na Cidade”, idealizado no final de do ano de 2018. Guia Mulheres na cidade O projeto desenvolvido pelas mulheres do formiga-me surge em conjunto com uma série de ações já voltadas aos questiona-
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mentos sobre a mulher na cidade. Debates sobre o que é ser mulher em São Paulo, sobre cidades ideais para mulheres, espaços seguros , entre outras inúmeras ações, acarretaram em uma ação que visa mapear inciativas e atividades de cuidado voltadas para mulheres em todo o município de São Paulo. Conexões realizadas com outros importantes coletivos como a revista digital AzMina, o coletivo Sampapé, papo de homem, arquitetas e artistas gráficas, entre outras grandes parcerias, fizeram com que o projeto ganhasse força e corpo. A ideia de dar visibili-
Figura 20: Lambe - Lambe de divulgação do Projeto Guia Mulheres na Cidade
dade para tais espaços e até se pensar na criação deles permite, ao contrário do que muitos costumam apontar precipitadamente como uma segregação de gêneros, a existência de espaços de respiro para as mulheres, muitas vezes essenciais no meio de um cotidiano de tantas opressões. Espaços que estimulem o se entender enquanto mulher, assim como suas necessidades e demandas. O material completo, além do mapeamento, ainda conta com entrevistas, reportagens e outros diversos tipos de materiais que tratem sobre a mulher nos espaços da cidade.
Figura 21: Guia Mulheres na Cidade
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5.
LEITURAS URBANAS
54
Após as leituras textuais, referenciais teóricas e reflexões realizadas acerca do tema, foi possível criar um olhar sobre a forma como as mulheres vêm ocupando e se relacionando com os espaços da cidade , compreendendo que existem lógicas bem estruturadas que organizam e direcionam todas as dinâmicas destes espaços. Contatar diferentes fontes e diferentes falas permitiu compreender as especificidades existentes dentro próprio conceito de mulher, percebendo que somos muitas e distintas , sendo expostas de diferentes formas às lógicas e opressões contidas na malha urbana. Entretanto, neste ponto do trabalho, sentiu-se a imensa necessidade de uma maior aproximação, tanto da cidade como das mulheres que nela se encontram, e é nesse momento em que passo do olhar distanciado da pesquisadora para objeto e instrumento de pesquisa. Ao longo do processo, tornou-se de extrema importância o uso de meu próprio corpo como ferramenta de pesquisa. Percorrer e ocupar os espaços da cidade me possibilitou enxergar e levantar questões não antes percebidas, dando a elas, também, um olhar único e pessoal. Os percursos realizados, as pessoas as quais encontrei, assim como as experiências vivenciadas, foram etapas fundamentais no decorrer da pesquisa, portanto, no capítulo que segue, ponho-me enquanto mulher na cidade e, assim, apresento as leituras realizadas ao longo do processo. 55
5.1. ÁREA DE ESTUDO: AVENIDA NOVE DE JULHO Como visto nos capítulos anteriores , a lógica com que a cidade de São de Paulo foi desenvolvida apresenta um traçado e um modelo de mobilidade que se opõem à lógica de deslocamento das mulheres, tornando seus percursos mais longos, desgastantes , e até mesmo inviáveis. O deslocamento em rede, característico do gênero feminino, é ignorado e desconsiderado pelo desenho urbano, obrigando tais percursos a se encaixarem e adequarem ao sistema linear e rodoviarista que estrutura a cidade. Esta valorização do que é reto, rápido e objetivo , características já vistas anteriormente como símbolos masculinos, é habitual na cidade de São Paulo. Práticas de controle e subversão, domínio e pagamento, não são exclusivas apenas às mulheres e seus corpos, mas também a outros componentes tão ricos, imponentes e essenciais à cidade quanto elas, como por exemplo, seus rios. A forma com que os rios de São Paulo foram tratados ao longo da história do urbanismo se assemelha muito ao tratamento sofrido pelas mulheres. Ambos tiveram seus caminhos tortuosos e não lineares subvertidos pelo desenho retilíneo e funcionalista da cidade. Ambos foram, também, silenciados e esquecidos, moldados por barreiras que garantem sua permanência no lugar que lhes foi destinado, evitando qualquer contato mais íntimo com o espaço urbano e o cotidiano da cidade. Por conta disso, ao buscar um local para a realização de leituras urbanas e análise das questões teóricas estudadas nos capítulos anteriores, procurou-se por espaços que estabelecessem relações simbólicas e estruturais semelhantes à relação da mulher com a cidade. Portanto, a área de estudo escolhida para o desenvolvimento do trabalho foi a Avenida Nove de Julho, que reflete exatamente o pensamento da época em que se deram as principais ações urbanísticas estruturadoras de São Paulo, que fizeram com que a cidade se tornasse o que é hoje. Assim como as mulheres , a Avenida também foi afetada pelo
sistema rodoviarista , sendo uma das principais componentes do famoso Plano de Avenidas de Prestes Maia. Esta, assim como as mulheres, teve seu percurso submetido à lógica capitalista e parte de sua essência escondida, tendo hoje, seu rio, invisível aos olhos. Outro fator de extrema relevância para a escolha do local foi a grande diversidade existente ao longo da Avenida, de usos, percursos, arquiteturas, dinâmicas e, principalmente, de mulheres. A presença de universidades, hospitais, hotéis, escolas, bares, entre outros, faz com que o lugar seja ocupado por mulheres de todos os tipos, de todos os lugares, com diversos trajetos e motivos. Mulheres que frequentam a região ou por lazer, estudo, trabalho ou todos os anteriores, nos mais diversos horários. Mulheres trans, negras, brancas, travestis, de classe alta e baixa; mulheres distintas. A diversidade presente no local permite perceber como o caminhar e o olhar destes corpos mudam de acordo com suas vivências e diferenças, nos possibilitando, também, encontrar um maior número de questões relevantes ao trabalho. Entretanto, é importante ressaltar, que as questões referentes à mulher, tratadas ao longo do trabalho, podem ser vistas por todo o espaço urbano, independente da região, o que se altera são sua intensidade e forma com que podem aparecer em cada espaço. Determinadas questões se mostrarão de forma mais intensa e mais visíveis em certas áreas, mas podem ser quase imperceptíveis em outras. Portanto, é importante compreender que a área escolhida não é o reflexo absoluto da relação dos corpos femininos com o espaço da cidade, assim como também não é objeto principal de estudo, sendo entendida mais como um apoio para se compreender de que formas as questões estudadas são refletidas no espaço urbano. A seguir, veremos brevemente como se deu o surgimento da avenida e o contexto em a mesma estava inserida.
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4.2. HISTÓRICO
Com a chegada do café , a cidade de São Paulo aumenta sua riqueza e autonomia, ganhando destaque e tornando-se referência de desenvolvimento econômico por todo o país. Com a vinda do produto, surge então a necessidade de investimentos de infraestrutura para atender não só a demanda de sua produção mas também de sua população que crescia rapidamente. Os produtores rurais e donos da produção, que também chegavam à cidade , formam uma nova classe social que precisava ter suas necessidades atendidas. “ A cidade não era mais uma entidade imóvel e sim uma rede de funções políticas e econômicas, claramente identificada por suas novas funções de fluxos de pessoas e mercadorias.” (RODRIGUES,2008, p.24) Os meios de deslocamento da época eram inapropriados para as novas demandas, sendo realizados, basicamente, por carros e carroças puxadas por bois. Encontrou-se, então, na ferrovia a inovação e tecnologia necessárias para a exploração e povoamento do território paulista, sendo, em 1867, inaugurada a estrada de ferro São Paulo Railway Company, que traz consigo toda uma tradição de engenharia e técnicas de construção. Entretanto, mesmo com estes avanços, as conexões existentes entre a cidade e a ferrovia apresentavam falhas que necessitavam ser ajustadas, porém, as técnicas de engenharia utilizadas eram incompatíveis com seu nível de degradação. Com isso, estruturar suas vias públicas tornou-se fundamental para o desenvolvimento da cidade. Assim como a circulação, a salubridade também era um aspecto importante na expansão da capital. O aumento considerável de pessoas aumentava também a quantidade de esgoto gerado, sendo este despejado diretamente nas várzeas dos rios que cruzavam a cidade. Com isso, os rios passaram a trazer efeitos negativos ao saneamento e à saúde pública, e como solução, adotou-se medidas que se tornariam modelo e perpetuariam por todo o século XX, como as canalizações e aterramentos dos rios e a
implantação de vias sobre seus leitos. As ações realizadas visavam dotar a cidade de elementos modernos, assim como nas cidades europeias; no início da década de 1890 “ [...] a tríade higienização, circulação e estética, já era uma constante na pauta do debate paulistano [...]” (RODRIGUES,2008, p. 79) O foco dos melhoramentos eram direcionados, em sua maioria, à região central, entretanto, o crescente número de automóveis resultantes da prosperidade da elite paulistana somada ao rápido desenvolvimento da cidade, aceleraram o processo de adensamento da área, que logo se encontrou congestionada. Com isso, no final da década de 1910, voltou-se o olhar para outras regiões, principalmente sobre os caminhos que deixavam o centro. O plano de desenvolvimento e expansão da cidade da época apresentava-se ineficiente , se fazendo necessário um novo plano de gerenciamento da cidade. Para a criação da nova proposta urbanística de São Paulo, foi chamado o Engenheiro João Florence de Ulhôa Cintra que propôs o “ Plano de Irradiação e Expansão”, e mais tarde teve como aliado o Engenheiro Francisco Prestes Maia. Em conjunto, desenvolveram uma série de artigos sobre propostas e critérios de intervenção urbana que, como aponta Rodrigues “[...] transformar-se-ia no embrião do Plano de Avenidas de Preste Maia [...]”(RODRIGUES,2008,p. 197) , publicado de fato em 1930, sob encomenda do então prefeito Pires do Rio. O Plano previa a aplicação de um sistema viário radical – perimetral onde A estrutura do perímetro é definida por uma larga avenida circular, o Perímetro de Irradiação, que receberia o fluxo de várias vias radiais antes que estas chegassem ao centro antigo [...] uma delas, diagonal, cruzaria este perímetro , ligando todo o conjunto e fechando o circuito.(RODRIGUES,2008, p. 218).
A lógica do plano estimulava e facilitava o uso do automóvel e implantava suas radiais nos fundos de vale, sem se preocupar com espaços de lazer ou qualquer proteção de mananciais; o objetivo principal era expandir, ligando toda a cidade do Tiete até o vale do Pinheiros. 57
Devido a Revolução de 1930, as obras das primeiras avenidas do Plano só foram iniciadas em 1934, na gestão de Fábio Prado, tendo como uma de suas principais a Avenida Anhangabaú, rebatizada, mais tarde, de Avenida Nove de Julho.
4.3. CAMINHADAS
O trecho da Avenida escolhido para a realização e desenvolvimento das leituras urbanas está compreendido entre o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o final da Avenida Nove de Julho, próximo ao Viaduto do chá, trecho este onde se inicia e termina o rio Saracura. Os percursos realizados não eram pré-estabelecidos nem se limitavam à Avenida, sendo explorado também o seu entorno.
Figura 22 : Vista Aérea da Avenida Nove de Julho
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De início, busquei me familiarizar com o local , percebendo suas dinâmicas e fluxos e registrando através de desenhos minhas primeiras percepções sobre o espaço. A seguir, encontram-se alguns dos registros realizados durante as caminhadas.
Figura 23 : Mapa Mental. Elaboração Própria 59
Figura 24 : Mapa Mental. Elaboração Própria
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Após o processo de reconhecimento e familiarização com a área, pude perceber que meu olhar se voltou para uma camada seguinte, uma camada invisível na cidade , que passa a refletir aspectos estudados e trabalhados pelos autores com os quais tive contato. Este olhar mais sensível, cauteloso e direcionado me fez perceber questões antes nunca vistas. Me fez enxergar, também, de forma clara, de que maneira as lógicas estudadas acima podem se materializar na malha urbana e como seu caráter extremamente simbólico faz com que estas passem despercebidas. Foram para estes símbolos que voltei minha atenção, por seu caráter de neutralidade e invisibilidade. Tais símbolos refletem perfeitamente o que avalio como sendo uma das principais lógicas estruturadoras da forma com que a mulher se encontra na cidade nos últimos tempos. Lógica essa que se divide a partir de três processos contínuos e simultâneos entre si. Estes são : a barragem, o apagamento e a representação . A Barragem A barragem está fortemente ligada ao afastamento da mulher dos espaços da cidade. Feito isto, sua relação de familiaridade com tais espaços passa a ser enfraquecida e fragilizada, culminado em um estranhamento e não pertencimento do corpo feminino a determinados locais. Dessa maneira , abre-se espaço para que o domínio do corpo masculino e suas formas de opressão apareçam em maior força e intensidade nestes espaços. As barreiras existentes na cidade podem aparecer de diversas formas, seja material, simbólica ou até mesmo invisível, entretanto, dificilmente algum espaço ou elemento espacial se restringirá à apenas uma delas já que estas estão condicionadas umas às outras. A barreira material, por exemplo, se caracteriza por elementos físicos que criam divisões espaciais de fato, porém, tais elementos podem ser carregados de significados simbólicos que também geram o afastamento. Nessas barreiras simbólicas, é muito comum nos depararmos com elementos que reforçam a ideia da existência de espaços femininos e espaços masculinos, através de características muitas vezes estereotipadas, que fazem que haja uma identificação de determinado gênero e afastamento
de outro. Surge, então, o que chamamos de barreiras invisíveis, que garantem que este afastamento permaneça sem precisar , necessariamente, de qualquer elemento físico existente. O apagamento O apagamento da memória da mulher é uma da formas de invisibiliza-la nos espaços da cidade. Associada a lógica das barreiras, esta garante que daquelas que ultrapassam os limites impostos, ainda seja retirada toda e qualquer forma de identificação com o urbano. Essa menor existência de símbolos de reconhecimento das mulheres na cidade faz com que seja ainda mais difícil sua permanência nestes espaços, fazendo com que se encontrem sempre de passagem. Essa efemeridade característica da presença feminina nos espaços é muito clara. Mulheres quase nunca estão na cidade só por estar, necessitando justificar a todo momento sua presença na rua. Ou estas estão caminhando, conversando com alguém, olhando seus celulares, ou realizando qualquer outra atividade, mas raramente se vê uma mulher simplesmente parada, observando a cidade, pois esta encontra-se sempre na posição de “observada.” Estar na rua, em determinados locais, de determinada forma, sem nenhuma justificativa minimamente plausível, já é interpretada como um livre acesso à seu corpo, como se este , assim como o espaço, também ganhasse um caráter público. A representação O ultimo processo a compor a lógica estruturadora da relação da mulher com a cidade diz respeito as formas com que esta é representada nos espaços urbanos. Após barrá-la e apagá-la, é necessário criar formas de representações estereotipadas com que a mulher se identifique, garantindo , assim, que esta permaneça apenas onde se quer que ela esteja e não onde esta de fato gostaria ou poderia estar. Mulheres adequadas a cidade possuem roupas, gestos e formas específicas de caminhar e agir em cada local, sendo repre61
sentadas a partir de inúmeras características muitas vezes opressoras. Visto isso, estas acabam se moldando a tais representações , deixando de agir e de fazer determinadas coisas no espaço público, passando a se identificar com formas e características que não contemplam sua diversidade e liberdade. É importante ressaltar que todas as questões levantas nos processos citados acima se interseccionam à raça, classe, idade, entre outros inúmeros fatores de opressão, fazendo com tais experiências se deem de formas e intensidades diferentes. A mulher negra, a travesti, a mulher branca, pobre e as demais existentes, serão barradas, apagadas e representadas de formas distintas.
5.4. VOZES DA CIDADE
Durante minhas caminhadas foram de extrema importância os momentos de parada. Foram neles que pude observar de forma mais clara as especificidades das mulheres que frequentavam aquele espaço e também ouvir sua vozes. É verdade que em muitos espaços não foi possível contatá-las, mas o não ouvir também me disse muito à respeito. A principal dificuldade em estabelecer um contato com as mulheres da região foi devido algo já falado acima, o fato das mesmas estarem quase sempre de passagem. Estas encontravam-se sempre no meio de alguma atividade ou afazer, sendo difícil alguma aproximação. Outra razão foi devido à sua aparente desconfiança em relação ao trabalho, que por muitas vezes se mostrou de forma sutil, mas constante. Foram dois os espaços onde consegui uma maior aproximação com estas mulheres , o primeiro o qual me refiro como “espaço Barata Ribeiro” e o segundo a Praça 14 Bis. O primeiro trata-se de um pequeno recuo do Hospital Sírio Libanês, localizado na Rua Barata Ribeiro , onde encontram-se alguns bancos, vegetação e áreas de sombra. Este é muito utilizado pelos funcionários do hospital em seus intervalos de trabalho. As mulhe-
res que frequentam o local, estavam, em quase todos os momentos, acompanhadas de outras mulheres , salvo algumas raras exceções, enquanto que os homens, na maioria das vezes, estavam sozinhos. O período de tempo de permanência também se dava de forma distinta, sendo elas as que ocupavam o espaço por menor tempo. Neste momento do trabalho o método utilizado se deu através de entrevistas, onde apresentava às mulheres o tema da pesquisa e em seguida realizava perguntas como seus nomes, onde moravam, motivos pelos quais frequentavam a região e suas sensações na cidade enquanto mulheres. A grande maioria trabalhava no hospital e morava em regiões mais distantes do trabalho. Em seus intervalos procuravam permanecer em regiões próximas ou no próprio local, e quando questionadas sobre suas perspectivas em relação a cidade apareciam questões mais voltadas à assédios no transporte público e insegurança durante a noite, já que muitas tinham um segundo emprego ou realizavam turnos noturnos De um modo geral as entrevista se davam de forma rápida, sem muito aprofundamento, principalmente por estas se encontrarem no intervalo do horário de trabalho. Visto isso, em um segundo momento decidi alterar meus métodos de pesquisa e também o local. É a partir daí que me volto para a Praça 14 Bis . A escolha do local se deu devido ao fato de, em minhas caminhadas pela área, perceber a grande presença de mulheres na praça e sua maior permanecia de tempo. Os métodos de entrevistas também foram alterados, ao invés de entrevistar apenas mulheres, decidi entrar em contato com os homens que frequentavam o espaço para, assim, poder ter um comparativo de percepções. As ferramentas utilizadas também sofreram alterações, a entrevista formal e verbal deu espaço ao desenho, na tentativa de extrair diferentes informações e conteúdos das mulheres entrevistadas. Outra decisão tomada em relação às entrevistas foi a de não revelar aos entrevistados o foco de minha pesquisa, no caso, as mulheres, por não querer influenciar, de alguma forma, suas respostas ou até mesmo afastá-las da pesquisa, reação que pude observar com frequência nas entrevistas anteriores. Dada a aproximação com o local, um dos primeiros aspectos observados foi o fato de praticamente todas as mulheres frequentadoras da praça serem da região e terem seu lazer vinculado ao 62
lazer de terceiros. A grande maioria encontrava-se acompanhando crianças, sejam elas , filhos, sobrinhos, netos, entre outros. Um segundo grupo de mulheres apareciam acompanhadas de amigos ou parentes e apenas uma pequena parcela apresentava-se sozinha na praça , realizando atividades voltadas para si próprias como correr, ler ou apenas descansar. Outro aspecto observado , de um modo geral, foi o receio dos entrevistados de participar da atividade proposta por conta do desenho, muitos preferiram não realizar a entrevista, ou apenas escrever. No que diz respeito às mulheres acompanhadas de crianças pequenas isso se deu de forma mais frequente, devido a maior atenção demandada pelas crianças. Nas entrevistas, era entregue um papel que continha o passo a passo do que se fazer , como a seguir.
ENTREVISTA : 1. Nome Completo: 2. Idade: 3. Estado civil: 4. Possui filhos? (se sim, quantos?) 5. Nome do bairro onde mora: 6. Telefone para Contato ( Não obrigatório) :
Foi possível perceber que os homens entrevistados se sentiam muito mais confortáveis com a minha presença do que as mulheres e que estes despendiam muito mais tempo a atividade do que elas. A forma com que a cidade era retratada e percebida pelos homens também apresentou diferenças expressivas . O olhar masculino captava aspectos mais físicos e com mais detalhes, como se estes apresentassem maior familiaridade com o espaço da rua. Eram destacados, os semáforos, as placas de transito, os carros, a largura das ruas, pontos turísticos, cruzamentos, viadutos, entre outros. Seus medos ou sensações de desconforto estavam mais relacionados ao trânsito, buzinas ou elementos materiais encontrados ao longo de seus percursos. Enquanto isso, no material desenvolvido pelas mulheres, os trajetos apresentavam inúmeras atividades voltadas ao espaço doméstico e ao cuidado de terceiros, e no que diz respeito ao espaço da rua, não apareceram muitos detalhes, apesar de o desenho se apresentar com maior frequência do com os homens. As características vinculadas a cidade a partir do olhar da mulher possuíam um caráter muito mais abstrato e não palpável , como por exemplo a cultura, seu ritmo, pessoas, questões ambientais, sociais e até mesmo sentimentos como tristeza e medo. O machismo e a violência contra à mulher também foram aspectos destacados, principalmente entre as mulheres mais jovens.
Roteiro: Passo 1 : Faça um mapa com todo o seu percurso ao longo do dia. Insira nele seus pontos de parada e pontos de referência. Passo 2 : Insira no mapa as coisas que mais te chamam a atenção durante o trajeto. (lugares, pessoas, objetos , cheiros ...) Passo 3: Marque no mapa o (s) local (ais) que você mais gosta e/ ou se sente mais confortável. Coloque um pequeno símbolo de (+) ao lado de cada um deles. Passo 4: Marque no mapa o(s) local (ais) que você já sentiu medo ou algum tipo de desconforto. Coloque um pequeno símbolo de (-) ao lado de cada um deles. Passo 5 : Observe seu mapa e ao lado escreva as 7 primeiras palavras que vem à cabeça.
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6.
DESVIOS
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Assim como o caminhar da mulher não se dá de forma linear, meu percurso ao longo do trabalho tambem não se deu. Foram muitos os desvios ao longo de minha caminhada , que se mostraram fundamentais por todo o processo e desfecho da pesquisa. Neles surgem muitos dos questionamentos e reflexões referentes ao tema e por essa razão dedico o seguinte capítulos à essas experiências. As oficinas que apresento a seguir foram espaços que possibilitaram maiores aproximações com o tema, de formas e perspectivas distintas. Foram a partir delas que pude entrar em contato com muitas das mulheres que cito por todo o trabalho.
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6.1. OFICINA “ ARQUITETURAS FEMINISTAS: NOVAS ICONOGRAFIAS”
desenvolvidos pela artista Ana Teixeira e foi realizado durante um evento na Ocupação Nove de Julho. Seu objetivo principal era convidar mulheres para discutirem sobre questões que elas não queriam mais calar, que, como aponta a artista, possui muita diferença das “ coisas que se quer dizer . “ A partir de discussões coletivas, cada mulher sintetizou sua principal questão, enquanto
A oficina realizada durante o acontecimento do ICHT 2019, teve como suas organizadoras Daniele Queiroz e Vania Medeiros, e se desenvolveu a partir da ideia de se fazer pensar novas formas de arquitetura que levassem em consideração as necessidades e questões da mulher no espaço urbano. A partir de uma roda de leitura e conversa conclui-se que a arquitetura faz e apresenta uma visão sobre as mulheres que não condiz com sua realidade e demandas. Frente a isso, foi proposta uma caminha pela área , próxima à Rua Dr. Cesário Mota Jr, realizada pelas participantes para que as mesmas buscassem questões no espaço urbano que se relacionassem à mulher , assim como novas formas de se pensar a organizar tais espaços. Os registros foram feitos através de anotações e desenhos, realizados em cadernos desenvolvidos na própria oficina por cada uma das mulheres, e a partir disso, uma nova conversa foi feita , expondo as questões e reflexões de cada uma de nós. A experiência de poder ter contato com a percepção destas outras mulheres me fez perceber muitas outras questões ainda invisíveis ao meu olhar e ver através de seus traços quantas outras leituras ainda são possíveis ser feitas.
6.2. OFICINA “ PROJETO – CALA BOCA JÁ MORREU”
A oficina “Cala - Boca já morreu” se trata de um dos projetos
Figura 25 : Projeto “Cala Boca Já Morreu” 67
mulher, em uma frase e as mesmas foram escritas em um papel, sendo fotografadas, a seguir, junto das mulher responsável por aquela fala. A intenção da artista foi a de nunca revelar ou divulgar tais fotos, e sim transformá-las em desenhos próprios para serem expostas nas ruas da cidade ou outros locais, para que assim, ao caminhar por tais espaços mulheres possam se deparar com as questões de outras mulheres e até mesmo se identificarem com elas. Um aspecto interessante frisado pela artista foi o da postura corporal no momento da foto, para ela os corpos deveriam se comunicar junto a frase escrita por cada uma, para que assim, passassem uma
Figura 26 : Projeto “Cala Boca Já Morreu”
única informação. O resultado foi o de mulheres usando seus corpos para deixarem de ser silenciadas. Além de instigar cada uma de nós a pensar sobre nós mesmas, a ação também nos fez voltar nossos olhares para as particularidades de cada participante já que, durantes as conversas, acabamos por ajudar umas às outras a sintetizar as questões trazidas, em frases curtas. A diversidade de mulheres e de realidades presentes na atividade deu espaço a muitas vozes não escutadas com frequência ao se caminhar pela cidade como é o caso da mulher mais velha, que deixa de estar tão suscetível a questão do assédio , mas passa a enfrentar novos tipos de opressão, e o caso das mulheres dentro de movimentos de luta por moradia, que se apresentam como um de seus pilares mais importantes e resistentes.
Figura 27 : Projeto “Cala Boca Já Morreu” 68
6.3. RODA DE CONVERSA “ CIDADE PARA MULHERES”
A roda de conversa organizada pelas participantes do formiga-me , Carmen Guerreiro e Fernanda Carpegiani, teve como objetivo nos fazer questionar como seriam as cidades ideais para as mulheres a partir de suas rotinas e das dificuldade encontradas nas cidades atuais. Na atividade se encontraram mulheres de áreas diversas, arquitetas e urbanistas, feministas e até mulheres não muito próximas do movimento. Ocorreu, também, algo nunca antes visto em nenhuma das outras atividades das quais participei ao longo do trabalho e da temática, a presença masculina nos debates e discussões. A presença do olhar masculino se mostrou muito importante na roda de conversa, afinal, falar sobre machismo ou qualquer forma de opressão sofrida pelas mulheres é falar também sobre os homens. Essa diversidade de perspectivas acerca do tema trouxe a luz outras questões que o permeiam, mas que muitas vezes não abordadas , me permitindo fazer reflexões e questionamentos não antes feitos.
6.4. CCM – GRAJAÚ
O Centro de Cidadania da Mulher, localizado na região do Grajaú, talvez tenha sido um dos meus maiores desvios em distância, mas foi o que mais me aproximou das muitas questões trata-
das ao longo do trabalho. O espaço que atende, principalmente, mulheres em situação de violência doméstica desenvolve diversas atividades voltadas a estimular a autonomia da mulher, psicológica e financeiramente , a fim de contribuir para sua retirada de tais situações. Ao entrar em contato com o espaço, participar de rodas de conversas e outros eventos realizados, pude ver na prática como as lógicas e opressões estudadas ao longo do trabalho se materializam e influenciam o viver destas mulheres. Frequentado , majoritariamente , por mulheres negras, de baixa renda e de regiões periféricas , estas confirmam como tais opressões atingem de forma distinta e com mais intensidade determinado tipo de mulheres. Um dos principais aspectos que pude perceber é a influência da casa em suas vidas. Como já falado nos capítulos anteriores, a casa se apresenta como um lugar fundamental na vivência e aprisionamento da mulher, mas do caso destas , este ainda é um espaço de violência. Foi possível perceber em suas falas o quanto tal espaço estrutura e as aprisiona à tal situação. Muitas frequentam o centro escondidas da família, limitando-se a certos horários e outras já acabam não frequentando muitas atividades por não conciliarem com os afazeres domésticos que estão sob sua responsabilidade . Com isso, o número de frequentadoras do espaço reduz consideravelmente. Frente a tais questões, fui convidada a desenvolver um projeto de oficina que de alguma forma estimulasse estas mulheres e promovesse reflexões e questionamentos acerca de si mesmas. Portanto, ao pensar a atividade, usei muito do que aprendi e vivenciei nas oficinas que estudei e participei, que muito me fizeram refletir sobre minha própria condição enquanto mulher. A escolha do desenho foi uma das primeiras certezas em relação a atividade devido ao fato deste se mostrar como uma ferramenta de comunicação complementar às já trabalhadas no centro em outras oficinas, como a comunicação verbal e corporal ; e também pela riqueza de conteúdos que o mesmo consegue extrair através de seu uso. Outra escolha feita em relação ao desenvolvimento da oficina foi a de não utilizar a casa propriamente dita nas discussões propostas como forma de faze-las refletirem sobre seu aprisionamento dentro da mesma , mas sim utilizar a cidade, como mecanismo 69
de faze-las enxergarem outras possibilidades de lugares existentes além da esfera doméstica, que muitas vezes se apresenta como o único lugar possível para se estar a mulher. Além disso, buscou-se neste processo, estimular um ato aparentemente pequeno em relação ao corpo, mas simbolicamente expressivo em relação a vivência desta mulheres, o de levantar seu olhar acerca das coisas que rodeiam seus percursos diariamente. Enquanto a casa se mostrou sendo o espaço onde muitas vezes estas mulheres baixam suas cabeças, busquei na cidade o ato de reergue-la. Estas foram as principais diretrizes seguidas ao se pensar a oficina, entretanto, devido a pequena quantidade de participantes, não foi possível realiza-la como uma das oficinas semanais do Centro, sendo esta desenvolvida em um dos evento específicos produzidos por lá. O evento se tratou da comemoração do Dia Internacional da Menina, onde foram pensadas atividades para serem realizadas com alunas da Escola Municipal João da Silva,, próxima à região do Grajaú. Na programação encontraram-se jogos, teatro, música, rodas de conversa, entre outras atividades, todas direcionadas à perspectiva da mulher de forma a conscientizar as meninas sobre as violências que as acometem. As alunas foram divididas em três atividades, conforme seu interesse, sendo uma delas a oficina de desenho e discussões sobre a cidade. O número de participantes foi de aproximadamente 12 meninas, com idades entre 13 e 15 anos. A atividade que durou cerca de 50 minutos se dividiu em dois momentos, o primeiro onde discutimos o que era a cidade na visão delas e um pouco sobre suas experiências enquanto mulheres dentro da mesma, e o segundo em que as meninas desenharam seus caminhos cotidianos e apontaram coisas que gostavam ou as faziam sentir segura em tais espaços ou que não gostavam e as deixava com medo. Ao final da atividade pude perceber alguns aspectos que se repetiram com frequência. O primeiro deles foi a fato de não encontrar muitas semelhanças entre o que a meninas disseram ser a cidade para elas e o que de fato era a cidade em seu cotidiano. O segundo foi a constante presença da casa, da escola e da rua em seus desenhos, entretanto, as duas primeiras apareciam muito mais detalhadas, sendo, visivelmente, onde as meninas investiram
a maior parte de seu tempo desenhando. O terceiro aspecto muito frequente foi o fato de elas não se desenharem nas ruas, assim como outras mulheres, sendo poucas as vezes em que apareceram figuras femininas nos desenhos, ao contrário do que aconteceu com os homens, desenhados com maior frequência. Por fim, outra questão muito presente foi o grande quantidade de vezes em que a palavra “casa” apareceu ligada a conforto e segurança, e em que nomes de homens apareceram ligadas a medo e desconforto . Fica claro, portanto, o quando o desenho conseguiu extrair questões trabalhadas ao longo de todo o trabalho, pelos mais diversos teóricos, nos mais diversos textos, se mostrando uma ferramenta de pesquisa exatamente potente e complementar. A seguir encontram-se alguns dos desenhos e anotações realizados pelas alunas.
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REGISTROS
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Muito me questionei ao intitular o seguinte capítulo, entretanto todas as palavras e combinações que surgiam se mostravam como uma ideia de encerramento. Foi então que encontrei no presente título os significados que melhor expressam meu caminhar na pesquisa até o momento. Este é o tipo de trabalho que jamais encontrará fim, sendo essa, talvez ,uma de suas características que mais me motivam e impulsionam. Portanto, o que apresento a seguir não se trata de um conteúdo final, mas sim meus primeiros registros frente ao novo olhar que desenvolvi ao longo de toda a pesquisa. As autoras que li, os trabalhos que estudei, as atividades que participei e as mulheres com quem conversei me fizeram enxergar características antes invisíveis aos meus olhos na cidade. Compreender as lógicas e as estruturas que moldam nossos espaços e relações me fez perceber com clareza como estas estão postas em nosso cotidiano, disfarçadas através de uma aparente neutralidade. Após as tantas leituras feitas ao longo de minhas caminhadas, chega o momento em que decido registrá-las. Entretanto, busco em meus registros características que conversem e dialoguem não apenas com todo o processo de desenvolvimento da pesquisa, mas também com minhas visões e formas de me colocar no mundo. Textos e escritos nunca expressaram por inteiro meus questionamentos e inquietações, me dando sempre a sensação de “perda” no meio do caminho. Por essa razão busco em outras formas de linguagem essa unidade e totalidade das ideias. É através do desenho e da colagem que encontro a melhor forma de expor todas minhas experiências e percepções acerca do trabalho. O primeiro por conse-
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guir trazer muito de meu olhar pessoal ao conteúdo apresentado, e o segundo por se construir a partir da mesma lógica com que tratado da cidade , ou seja, da união de uma série de recortes, oriundos de lugares distintos que juntos criam determinadas unidades. Dessa forma, trago através destas linguagens muitas das questões abordadas nos capítulos anteriores, expressas no material a seguir .
7.1.
A MULHER E A CIDADE
No capítulo que trato sobre a mulher “e” a cidade levanto um breve histórico dos acontecimentos e meios que influenciaram sua relação com os espaços urbanos, assim como sua relação consigo mesma, gerando um maior distanciamento da mulher dos espaços da cidade e influenciando na forma com que são tratadas, vistas e questionadas atualmente. Por essa razão foi produzido, através de desenhos e colagens, uma linha histórica com os principais pontos e acontecimentos que influenciaram o ocupar da mulher dentro da cidade.
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7.2. A MULHER NA CIDADE
Já neste capítulo , procuro tratar sobre as lógicas que estruturam nossos espaços e fazem com que a mulher mantenha seu distanciamento do urbano, mesmo estando dentro da cidade. Em minhas leituras urbanas identifico tais lógicas expressas a partir de três processos, o de barragem da mulher, o de seu apagamento e o de sua representação em tais espaços. Portanto, nos materiais a seguir busquei trazer meus registros sobre os símbolos que encontrei na cidade que expressam os três processos. Os símbolos mais evidentes são as nomenclaturas dos elementos urbanos. Os nomes de homens e mulheres podem ser percebidos em vários momentos na cidade, entretanto, com distinções significativas entre si. Como já visto, a rua se caracteriza como um espaço naturalmente masculino, e talvez um dos maiores símbolos deste domínio seja a esmagadora quantidade de ruas com nomes de homens em relação a ruas com nome de mulheres. Estudos recentes mostram que apenas 16% das ruas de São Paulo possuem nomes femininos, sendo algo evidente quando caminhamos pelas ruas da cidade. Entretanto, quando nos referimos aos edifícios residenciais, os nomes femininos passam a aparecer com uma frequência muito maior, se mostrando como um importante símbolo do forte vínculo ainda existente entre a mulher e a casa . Tais símbolos, além de expressarem estas barreiras invisíveis que separam espaços de acordo com os gêneros, ainda evidenciam o constante apagamento da mulher. Isso se torna claro quando nos atentamos ao fato de que os nomes de homens presentes nos espaços da cidade se mostram sempre acompanhados de um sobrenome ou um título, ou até mesmo de ambos. Enquanto isso, raramente os nomes femininos apresentam um sobrenome, tirando a identidade da mesma, que pode vir a se tornar qualquer mulher. No que diz respeitos a títulos, os únicos associados aos nomes femi-
ninos são o de “santa” e dona”. Além disso, os prédios que apresentam os nomes de mulheres em suas fachadas, ainda demonstram características consideradas inerentes à mulher e ao feminino. Grande parte é caracterizada pelo uso de formas curvas e arredondadas, enquanto que em edifícios que se encontram os nomes masculinos, podemos perceber formas mais lineares e quadradas. Dessa maneira foi feito um levantamento da área onde foram mapeados edifícios e ruas com nomes masculinos e femininos, e os resultados foram expressos em um mapa manual com as seguintes informações. O mapa confeccionado em papel craft apresenta seus dados a partir de colagens, bordado e desenhos manuais.
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O trecho em azul representa a Avenida Nove de julho e ganha tal cor para relembrar a presença do rio Saracura na região, enquanto os demais trechos, em branco, se tratam das ruas que cercam a avenida. As ruas que apresentam o bordado vermelho são as que ganham nomes masculinos, enquanto a minoria, com bordado azul expressa as ruas com nomes femininos. Os edifícios resi-
dências com nomes femininos também encontram-se expressos no mapa, através da retirada de seus lotes, como forma de evidenciar o apagamento da mulher expresso nos mesmos, enquanto que os lotes em branco dizem respeito aos edifícios com nomes de homens e ganham a mesma cor da rua como forma de evidenciar o vinculo existentes entre ambos, quase como se o homem fosse uma extensão da rua.
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Como forma de devolver a identidade das mulheres, retiradas de cada prédio, também foi criado um caderno que acompanha o mapa, onde encontram-se todos os prédios levantados na região com nomes femininos. Cada prédio encontra-se desenhado e acompanhado de seu nome, endereço e detalhes que mais chamaram minha atenção, permitindo um reconhecimento de cada um partir de suas especificidades. No Total, foram levantados 58 prédios com nomes de mulheres, onde apenas 3 possuem sobrenome. A seguir encontra-se a lista com os nomes de prédios levantados e alguns dos desenhos realizados de cada um deles.
1.Edifício Dona Acibe numero 77 Rua Dr.Plínio Barreto
8.Edifício Maria Cristina Rua Rocha Número 490
2.Edifício Dona Margarida Número 626 Rua Manoel Dutra
9.Edificio Isabel Número 254 Rua Rocha
3.Edifício Dona Josefina Número 602 Rua Manoel Dutra
10.Edificio Dina Número 238 Rua Rocha
4.Edificio Lidia Rosa Numero 1261 Avenida 9 de Julho
11.Edifício Walkiria Número 184 Rua Rocha
5.Edificio Dona Mina Avenida 9 de Julho
12.Edificio Duas Marias Número 91 Rua Rocha
6.Edifífico Maria Número 61 Avenida 23 de Maio 7.Edificio Jaci e Jacira Rua Barata Ribeiro Numero 62
13.Edifício Dona Thereza Rua Treze de Maio Número 95 14.Edifício Maria Cecília Rua Santo Antônio
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Número 994
Número 611
15.Edificio Santa Anna Rua Santo Antônio Número 1104
25.Edifício Nossa Senhor do Carmo Rua Santo Antônio Número 455
16.Edifício Jacyra Número1210 Rua Santo Antônio 17.Edifício Rosely Rua Santo Antônio Número 1263 18.Edifício Nice Numero 146 Rua Silvia 19.Edifício Elvira Rua Silvia Número 95 20.Edifício Silvia Número 118 Rua Silvia 21.Edifício Santa Lucia Número 110 Rua Silvia 22.Edifício Lea Número 255 Rua Dr.Seng 23.Edifício Lady Nina Rua Santo Antônio Número 539 24.Edifício Maria Eugênia Rua Santo Antônio
Rua Conselheiro Ramalho Número 219
Rua Genebra Número 43
35.Edifício Norma Rua João Passalaqua Número 140
45.Edifício Adriana Rua Francisca Número 76
26.Edifício Santa Ângela Rua Santo Antônio Número 566
36.Edifício Renata Rua Conselheiro Ramalho Número 344
46.Edifício Maria Paula Rua Dona Maria Paula Número 161
27.Edifício Ana Leopoldina Rua Luis Porrio Número 415
37.Edifício Patrícia Rua Santo Amaro Número 239
47.Edifício Julieta Rua Frei Caneca Número 425
28.Edifício Dona Matilde Rua São Domingos Número 148
38.Edifício Sylvia Brotero Rua Santo Amaro Número 271
48.Edifício Maria da Glória Número 430 Rua Frei Caneca
29.Edifício Florinda Rua Abolição Número 66
39.Edifício Marisa Rua Santo Amaro Número 371
49.Edifício Ana Maria Rua Frei Caneca Número 443
30.Edifício Virgínia Hartenstein Rua Abolição Número 114
40.Edifício Deborah Número 431
50.Edifício Victória Rua Frei Caneca Número 209
31.Edifício Dona Alzira Rua Major Diogo Número 322 32.Edifício Dona Olinda Rua Conselheiro Ramalho Número 82 33.Edifício Ana Maria Rua Conselheiro Ramalho Número 104 34.Edifício Santa Faustina
41.Edifício Dona Eulalia Número 468 42.Edifício Adelaide de Barros Monteiro Rua Francisca Miquelina Número 367 43.Edifício Cleyde Rua Genebra Número 230 44.Edifício Julia Borges
54.Edifício Leticia Rua Dr. Penaforte Mendes Número 114 55.Edifício Flávia Rua Herculano de Freitas Número 85 56.Edifício Lucy Rua Peixoto Gomide Número 483 57.Edifício Luiza Rua Peixoto Gomide Número 420 58.Edifício Cynthia Rua Peixoto Gomide Número 356
51.Edifício Maria José Rua Avanhandava Número 883 52.Edifício Beatriz Rua Avanhandava Número 261 53. Edifício Adriana Rua Peixoto Gomide Número 379
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Algum dos prédios levantados também tiveram suas fachadas detalhadas através do desenho, evidenciando as questões tratadas anteriormente, como seus nomes sem títulos ou sobrenomes ,e tambem as formas presentes em cada fachada. Nos prédios com nomes femininos é possivel perceber formas mais aredondadas, enquanto nos prédios com nomes masculino formas mais retilíneas.
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Outros símbolos de barreira, apagamento e representação também foram encontrados na região. Um deles são inúmeros viadutos que cortam a Avenida por todo seu trajeto. Além de se tratarem de barreiras físicas que cortam a cidade, os espaços sob os viadutos acabam se apresentando como espaços em que as mulheres se sentem muito inseguras, pela obstrução da visão e também por serem espaços mais escuros. Com isso, ao caminharem pela avenida, esta são barradas em inúmeros momentos. Acompanhadas dos viadutos também encontram-se as escadarias que surgem como alternativa para ligar os diversos níveis existentes na região. Entretanto, tal espaço também se mostra
como um local de grande insegurança para as mulheres, se caracterizando como uma barreira, já que muitas evitam passar por lá. Estes espaços atingem de forma mais intensa ainda determinados tipos de mulheres, como travestis e transexuais. Nas entrevistas realizadas, suas falas mostram que esses espaços representam riscos de vida para elas, já que, devido a grande transfobia existente, muitas acabam perdendo suas vidas em locais deste tipo. A partir de tais leituras, foram relizadas colagens referentes a elas, tanto digitais como analógicas que se transformaram em espécies de cartões postais , de forma a evidenciar tais aspectos que se vinculam a estes elementos da cidade .
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7.3. MULHERES PELA CIDADE
venciadas. Considero importante tal inserção pois a insegurança é um dos principais motivos que fazem com que as mulheres deixem de caminhar pela cidade ou mudem seus trajetos. A seguir encontramse-se algumas das imagens do que foi produzido.
Neste capítulo trato sobre questões referentes ao deslocamento da mulher e a forma com que este se dá pela cidade. A fim de retratar este deslocamento, busco trazer em meus registros um pouco do meu próprio caminhar e as questões nas quais esbarrei ao longo de todo o processo de desenvolvimento da pesquisa. Trago nestes registros as mulheres com quem tive contato ao longo do trabalho, suas percepções e deslocamentos pela cidade, e questões referentes à insegurança da mulher. Como forma de recriar meu percurso na região da Nove de Julho, busquei desenhar seus pisos que aparecem com maior frequência, criando assim um grande “ tapete” de pisos que se dobra em si mesmo. Ao desdobrá-lo, vão sendo reveladas as questões com as quais me deparei. Uma delas são as entrevistas de algumas das mulheres que conversei, onde se encontram suas informações, falas e sua fisionomia de acordo com minhas memórias. Estas mulheres encontram-se por todo o tapete de pisos, se revelando conforme o leitor “caminha” pelo objeto. Outra questão inserida neste caminhar do leitor são as falas e histórias de assédio de mulheres da região que foram mapeadas a partir de uma iniciativa da Organização Think Olga, através da criação do mapa “chega de Fiu Fiu”. O mapa se trata de uma ferramenta colaborativa criada para localizar geograficamente os casos de assédio ocorridos em todo o Brasil. Este expressa de forma clara e explicita os tipos de abusos e absurdos que as mulheres passam todos os dias ao se deslocarem. O anonimato, garantido pela organização, faz com que surjam muitas falas referentes aos abusos sofridos pelas mulheres, que muitas vezes se calam por diversos motivos, sendo o medo um deles. Por essa razão , trago algumas destas falas mapeadas dentro da área de pesquisa, já que ao longo das entrevistas pouquíssimas mulheres se sentiram confortáveis para falar das experiências vi-
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CONSIDERAÇÕES FINAIS 98
Inicio o presente trabalho imersa em uma série de questionamentos e inquietações frente a presença da mulher nos espaços da cidades, e após todo o processo pelo qual passei, apresentado anteriormente, finalizo o mesmo com ainda mais dúvidas e questionamentos. Voltar meu olhar para a cidade a partir da perspectiva da mulher me fez perceber como nossas demandas são desconsideradas pela arquitetura e pelo urbanismo e como as mesmas foram construídas a partir de demandas patriarcais e capitalistas. Em determinado momento, nossas diferenças foram colocadas como pontos fracos e nossas especificidades desconsideradas, sendo usadas como meios de nos aprisionar e nos limitar à necessidades alheias. Desta forma, nossas vidas, assim como a forma com que nos relacionamos passaram a se desenvolver a partir de tais lógicas. A cidade, corpo vivo e ativo, não poderia responder diferente já que é construída diariamente a partir de nossas relações e dinâmicas. Entretanto, ao mesmo tempo que a forma com que nos construímos enquanto sociedade influi na construção de nosso espaço, os mesmo influenciam em nossas relações sociais, fazendo deste um diálogo, aparentemente ininterrupto. Então, de que maneira podemos romper tal dinâmica? Como inserir novos diálogos e novas visões nas construções de nossos espaços? E como inserir a mulher dentro disto tudo? Acredito que começar a se questionar sobre tais questões já é um primeiro passo para romper estes diálogos. Buscar compreender de que forma os mesmos se estabelecem e sobre quais bases se estruturam, também. Mas qual o passo seguinte ? o que se fazer frente
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a todas as questões postas? Primeiramente se questionar se todas as questões estão realmente postas. E acredito que seja este o ponto em que meu trabalho se encontra , neste momento de refletir quantas ainda são as questões com as quais não me deparei, quantas invisibilidades ainda me cercam, quanto ainda preciso caminhar para me deparar com cada uma delas? Trago comigo novos questionamentos e a procura por novas respostas, de como prosseguir frente a tais questões. Como pensar novos espaços para mulheres frente à todas as suas reais necessidades? Como seriam estes espaços na prática? De que forma inserir tais práticas dentro da arquitetura de forma que cheguem a todas as mulheres , à curto e à longo prazo? Concluo tal processo, então, como quem pausa uma caminhada para tomar fôlego frente um extenso percurso ainda existente, de infindáveis desvios e direções e sigo agora com o que considero talvez um dos maiores questionamento frente à pesquisa, como agir enquanto mulher na cidade após me enxergar enquanto mulher dentro dela ?
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 101
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