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O f i c i n a s d e e s c r i ta de Manuela Gonzaga ANTOLOGIA

A minha vida dá um livro

Textos Carla Lemos, Clara Ferrão, Elda Aguilar Rainho, José Saraiva, Maria Pinto de Araújo, Maria Teresa Figueiredo, Sónia Alves


Título: A minha vida dá um livro © 2013, Manuela Gonzaga SINAPIS EDITORES Rua Empresarial, n.º 19 Z o n a I n d u s t r i a l d a Po n t e S e c a Te l . : ( + 3 5 1 ) 2 6 2 0 9 8 0 0 8 , F a x : ( + 3 5 1 ) 2 6 2 0 9 8 5 8 2 e-mail: geral@vri.pt w w w. v a r z e a d a r a i n h a . p t Capa e paginação: Serenela Santos Fo t o d e c a p a : Manuela Gonzaga Impressão e acabamento: V Á R Z E A DA R A I N H A I M P R E S S O R E S, S. A . ISBN: 978-989-691-210-9 Depósito Legal: 367908/13 Dezembro de 2013


Obrigada!

Estes textos foram produzidos no decorrer de A minha vida dá um livro. Durante pouco mais de um mês, duas aulas por semana, passámos do «mas o que é que eu vou escrever?» ao punhado de belos textos que, a pouco-e-pouco, foram tomando a forma que aqui apresentam. Por estas páginas, passa um sem fim de recordações, que a palavra devolveu à vida, na sua complexa paleta de tonalidades emocionais que vai do desabafo ao riso, das lágrimas às saudades, das alegrias ao espanto. Mas que ninguém se iluda: nesta aparente fluidez, onde, por vezes, a criança de cada um de nós se pode rever na voz límpida de memórias tão generosamente partilhadas, há trabalho árduo, esforço pessoal intenso, honestidade e pudor. Na verdade, sem o empenho, a coragem e a alegria dos participantes na oficina de escrita biográfica 5


Oficinas

de escrita de

Manuela Gonzaga

A minha vida dá um livro, esta obra nunca teria vindo a lume. É seu mérito maior o nascimento da presente antologia, que vive da partilha tão íntima e tão generosa de memórias pessoais revisitadas e oferecidas à nossa deslumbrada leitura. Por outro lado, este livro também não seria possível, nesta forma consumada, sem o apoio inestimável da editora Alêtheia que incentivou a proposta e lhe abriu as portas da sua belíssima livraria, na rua do Século. E da Sinapis, inserida na Várzea da Rainha, que veio conferir-lhe a sua chancela, concretizando-o, ou seja, materializando em livro, o texto final. E aqui, cumpre também assinalar a nossa gratidão à Várzea da Rainha, que tomou a sua responsabilidade um minucioso processo que, de forma muito sucinta, passa pela paginação, elaboração de capa, respectivo de lay out e inserção em catálogo online. Registe-se aliás que, com a sua reconhecida seriedade e assinalável bom gosto, ambas, Sinapis e Várzea da Rainha, em trabalho complementar, têm vindo a revelar-se como um verdadeiro cadinho de autores que em Portugal se autopublicam. Promovendo, de resto, uma tendência florescente, cujo crescimento é tão exponencial que a própria Feira de Frankfurt, um dos maiores acontecimentos literários do mundo, já lhes garante lugar cativo com pavilhão próprio. Por fim, um agradecimento ao portal mais feliz das redes sociais, Boas Notícias, que desde a primeira hora apoia as minhas oficinas de escrita e, particularmente esta 6


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minha vida dá um livro

iniciativa que revela novos e insuspeitados autores. A todos e a todas, pelo inestimável apoio, por aceitarem o desafio, por confiarem na minha orientação, por se entregarem sem medo aos caminhos da palavra viva, o meu sincero reconhecimento Manuela Gonzaga Formadora e editora de Oficinas de escrita. Lisboa, Outubro de 2013

Nota: a revisão de textos, na sua forma final, é da responsabilidade dos respectivos autores.

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C a r l a L e mo s



E u So u , E u F u j o

Nasci cedo. Era ainda o milho miúdo. Nasci numa terra de muita terra, cheia de cheiros fortes e cores intensas. Cheguei só, e a casa era grande, e no meio da casa havia uma mulher, um homem, e um cão peludo que se chamava Nero. Chamaram-me Carla, e eu, fui-me habituando. Do fundo da casa chegava um som agradável, uma música…chegava de uma sala quase vazia, cheia com um piano pequeno para aquele espaço. Tocavam todos menos eu. E chamavam-me tantas vezes que fiquei a saber que ela era mãe, e ele era pai. Nesta terra, como só as terras com muita terra têm, o calor invadia todos os espaços e tornava-nos leves. Ah, havia também um menino vestido da cor do chocolate a condizer com a terra, que me levava a passear num carrinho amarelo. Carla Lemos | 11


Oficinas

de escrita de

Manuela Gonzaga

Esse menino chamava-se Ernesto e eu sentia a sua protecção sem muito esforço. Depois cresci. Cresci porque em todas as terras com muita terra quem nasce pode crescer. Assim, naturalmente leve. Agora sei que a mãe é aquela que olha por mim aqui mais perto e que é a mulher mais bonita a seguir a termos nascido, e o pai é aquele que olha por mim ali mais longe e é o homem mais forte também a seguir a ter nascido. Assim a mãe alimenta o corpo que sinto e o pai alimenta o corpo que não sinto. Não sei se entendo muito bem, mas chegou mais alguém a esta casa e chama-se irmã. Irmã é um ser muito pequeno que temos de cuidar assim a uma distância entre a mãe e o pai. Temos de ensinar de onde vem o som, quem cuida perto, quem filma ali mais longe, quem nos leva a passear, quem nos guarda aqui bem perto. Nesta terra com muita terra havia também muito mar. Mar daquele que para além nunca mais acaba, e de onde chegam barcos de todos os lados, e para cá acaba branco fino e seco, e se chama areia. Aqui ficávamos horas que não findavam, a moldar castelos, conchas e cavalos-marinhos; a encher baldes de água salgada que molhava a areia branca e seca. Esta areia dos sonhos ficava entre o mar que nunca acaba e a casa. Tudo isto cabe nesta terra sem encher muito. 12 | Carla Lemos


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minha vida dá um livro

Um dia mudámos de terra. Fomos para um terra com menos terra mas ainda assim com toda a terra necessária para crescermos e brincarmos. Esta era a terra da mãe, do pai, e dos outros todos. Só nós eramos de uma terra diferente. Nesta terra a minha mãe e o meu pai disseram-nos que íamos vestir uma roupa especial porque eles se iam casar. A minha mãe tinha uma grande barriga onde dormia o irmão que vinha ter connosco. Às vezes acordava e nós tocávamos umas cornetas para que ele ouvisse e percebesse que estávamos aqui nesta terra dos outros todos à espera dele. Um dia a barriga cresceu mesmo muito e a minha mãe foi deixar-me numa casa enorme cheia de meninas. Vestíamos umas batas iguais, e a olhar por nós tínhamos uma espécie de mães todas vestidas de branco, a quem chamávamos «irmã», que nos indicavam os espaços daquela casa enorme, com umas portas iguais às dos castelos dos livros que eu lia. Tentei fugir, mas fui apanhada, e por isso fui crescendo ali um pouco todos os dias. Nesta altura eu sentia que alguns espaços começavam a diminuir. Talvez crescer faça diminuir as casas, e a distância à qual vemos o mundo, razão pela qual gosto de fugir.

Carla Lemos | 13


Entre o riso e o choro

I - dezassete

Sou adolescente. Adulta pelas contas da natureza humana. Espero que alguém perceba a razão pela qual o meu corpo adoeceu em pouco tempo e rapidamente me atirou para uma cama, sem força para viver a vida que me pertence. Um instante mudou a minha vida, e com ele a possibilidade de não sobreviver. Aproveito esse momento de solidão para rever dezassete anos de vida. Curiosamente parece-me uma eternidade de vida, o que me deixa feliz por perceber que foi de alguma forma bem vivida. É impressionante a lucidez com que revejo cada dia. E de repente sinto uma enorme necessidade de analisar a vida e todo o seu sentido, e chegam-me os “porquês” que não tive em criança.

14 | Carla Lemos


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minha vida dá um livro

Começo a perder uma certa identidade física, aquela que há tão pouco julgava ter criado. Por outro lado revela-se uma percepção de tudo o que me rodeia, da integridade do ser que sou, e do que faço parte, que brilha dentro de mim como eu nunca tinha imaginado possível. E aqui estou, um nada de mão em mão, entregue a todas as possibilidades, à espera de mais vida. Sobrevivo. À última chamada, eventualmente... Talvez sobreviva à importância da vida. Àquela vida que não sei o que seria por não a ter vivido, restando-me a outra à qual resisto desde então, que me mostrou o plano que eu nem sequer tinha traçado. Que plano é esse que nos pergunta a toda a hora se escolho entre o riso e o choro? Ah que pergunta... O riso, claro! I I - O DE M I R A

Odemira é o Alentejo para onde já muito pouca gente vai. Terra bonita, arranjada, que me recorda aventurosas viagens de juventude, quando os transportes não eram muitos, mas esperávamos pelo que havia e lá íamos vivendo a vida, sem grandes exigências, sem carros, nem comboios de alta velocidade, e as viagens para a Europa não tinham valores low-cost. Carla Lemos | 15


Oficinas

de escrita de

Manuela Gonzaga

A vida era para ir passando e ir vivendo e ir sonhando. Então saí de Carcavelos em bicicleta. Com um mapa e um caderno de apontamentos, duas bolsas laterais de mantimentos e pouca roupa, parti convicta. O caminho foi sendo percorrido à beira-mar, num esforço descomunal, apenas seduzida pela aventura e pelo entusiasmo daquela liberdade que sentia bater-me na cara em forma de brisa. Toda aquela natureza verdejante da serra de S. Luís, e um silêncio apenas quebrado pela corrente da bicicleta e algumas pedaladas, me levavam para uma viagem interior palpitante, e deixava-me um sorriso preso na cara. Era uma altura em que dar parte fraca era desistir, era arranjar uma cabina telefónica e chamar a pagar no destino para pedir que me viessem buscar porque não aguentava mais E parte fraca nunca foi o meu forte, por isso seguia em direcção ao esgotamento mais gostoso do mundo. Sentia-me perfeitamente fundida neste espaço físico e psicológico que me acompanhou por muitas milhas percorridas. A liberdade só é boa quando conseguimos integrá-la. Assim seja sempre.

16 | Carla Lemos


Do n a P e p a

Conheci a Pepa numa noite de tempestade. Bem, nessa altura ela ainda não era Pepa. Apareceu-me à frente, iluminada pelos faróis do carro quando eu tentava estacionar, mas não arredou pata do sítio onde, alegremente encharcada, passeava debaixo de uma chuva intensa e de uns trovões aterradores. Abri a porta do carro, entre um relâmpago e um trovão, e num curtíssimo segundo saltou-me para o colo, olhando-me num ar desafiador: – Vem daí..! – parecia querer dizer-me. – Ficas comigo? Só se for já – insistia o seu olhar Como demorei algum tempo a aceitar aquele belo desafio, saltou para o chão e seguiu o seu caminho deixando-me ali maravilhada com aquele encontro inusitado e brevíssimo, a vê-la desaparecer no meio da escuridão molhada e ventosa. Carla Lemos | 17


Oficinas

de escrita de

Manuela Gonzaga

Quando a Teresa chegou ao carro disse-lhe: – Não vais acreditar...anda por qui a passear delirante uma cadelinha toda branca que parece uma estrela! Abri a porta e ela saltou-me para o colo. Vê, molhou-me toda! Então, fomos procurá-la, mas ela tinha desaparecido. No dia seguinte, apareceu de novo no meu caminho. Percebi de imediato que era para ficar. Contudo, ainda espalhei cuidadosamente anúncios pela redondeza com um “Encontrou-se cadela”, que não colheu reacções, até que, depois de algumas peripécias, a levei para casa e dei-a à Teresa, que tinha perdido um amigo assim, pouco tempo antes. Pepa foi o nome que lhe demos. Tínhamos estado a rever o incrível filme de Pedro Almodôvar, Mulheres à beira de um ataque de nervos, e achamos que Pepa lhe ficaria a matar. E ela respondeu à primeira! Era uma cadela pequena, os olhos duas azeitonas negras, o pêlo branco, raça westie talvez arraçada, enfim, cinco quilos de perfeita sedução. Já não era jovem, “tem pelo menos três anos”, disseram-nos. Mas isso pouco importava. Foi uma companheira sem limite, no trabalho, na brincadeira, na aventura, sem nunca deixar para trás a sua personalidade forte e decidida. Por onde passávamos ou ficávamos, toda a gente a conhecia. Aliás, e por causa dela, acabaram por nos chamar a todas as “Pepas”, o que ainda acontece em muitos locais. Resolveu partilhar quase quinze anos da sua vida connosco. Que memórias temos daquela grande senhora Dona Pepa! 18 | Carla Lemos


A vida das histórias guardadas

Tenho uma vida cheia de histórias. Histórias daquelas que davam um livro. Como creio acontecer com a maioria das vidas... Contudo, é-me difícil expô-las. Então, reparo que me inscrevo numa oficina de escrita onde também participaram pessoas com vidas cheias de histórias, algumas bem poderosas. Fiquei de tal modo impressionada que disse: – Vocês têm de escrever isso e elas responderam que o viriam a fazer, mas com muito cuidado... para não expor ou magoar as pessoas que nos são mais queridas. E como estas assim são tantas as histórias das vidas com que nos cruzamos no bairro, na rua, no prédio, na escola, no trabalho. Vidas que, por razões várias, não se expõem ao olhar dos outros, como obras num museu aberto ao público. Carla Lemos | 19


Oficinas

de escrita de

Manuela Gonzaga

As minhas memórias são tão pouco poderosas, e tão simples – pelo menos aos meus olhos. Por isso as guardo na minha gaveta principal, pessoal, privada, aqui, dentro de mim. Confesso que a principal razão é o excesso de pudor, um inconfesso medo de invasão por parte de quem toma parte das histórias. O leitor. Sim é catártico, admito. Mas só de imaginar essa partilha é já uma violência. Tantas vidas, com tantas histórias por contar e eu aqui com esta oportunidade e não o faço por timidez, ou porque não me sinto à vontade para me afirmar nesta vida que tenho. E assim vou enchendo caderninhos de formas e cores diferentes, com frases, recortes, escritos, reflexões minhas, sobre o que me rodeia, e que ficarão para sempre, como é o meu próprio processo criativo...fechadas a sete chaves. Penso no poder de criar que tenho, e na dificuldade em assumi-lo. para que serve criar então, e que complexa e secreta é a minha mente, e para quê tudo isso, e porque me escondo, do quê e porquê..? E assim moram neste bunker as minhas histórias guardadas em letras, palavras e imagens. À espera do seu momento de revolta para emergir, e ver como a luz é tão diferente fora de mim. Porque as histórias não se guardam assim. Carla Lemos, Lisboa, Setembro 2013

20 | Carla Lemos


ÍNDICE

Obrigada!.............................................................................. 5 Carla Lemos............................................................ 9 Eu Sou, Eu Fujo................................................................ 11 Entre o riso e o choro...................................................... 14 I - Dezassete....................................................................... 14 II - Odemira....................................................................... 15 Dona Pepa.......................................................................... 17 A vida das histórias guardadas ....................................... 19 Clara Ferrão...........................................................21 Chamo-me Clara mas queria ter sido Teresa................ 23 Clarinha vai para a escola................................................. 28 Elda Aguilar Rainho............................................. 33 A criança invisível.............................................................. 35 Elda não quer ser grande!................................................ 38 José Saraiva............................................................41 Virgem pelo Zodíaco, dragão pelo horóscopo chinês........................................ 43 Os matraquilhos e o psitacídeo....................................... 53 O peru de 1970.................................................................. 63 Aprender a ler, a escrever e a contar.............................. 67 Maria Pinto de Araújo........................................... 79 O coração de cristal.......................................................... 81


Maria Teresa Figueiredo...................................... 85 As manas Catatuas, que leva uma leva duas.................. 87 Sónia Alves............................................................ 95 A infância dura mais que a vida inteira.......................... 97 A árvore da vida..............................................................101 Um farol na escuridão....................................................103 O fantasma de Laika.......................................................107


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