Arrigo Barbabé: Clara Crocodilo

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Dias 18 e 19 de fevereiro.

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Projeto Álbum Se o avanço tecnológico trouxe novas e importantes possibilidades para a música, afora nostalgias e romantismos – o vinil praticamente definiu um formato de fruição musical, consolidando grande parte do arquivo sonoro feito no país com o manuseio da agulha entre uma faixa e outra para mudar de música, a capa em formato grande, o conceito de um trabalho expresso na sequência das faixas e o lado A e o lado B. O projeto Álbum remonta períodos da música brasileira por meio de registros fonográficos que ajudaram a construir sua história. São discos considerados clássicos por apresentarem em seu conteúdo inovações estéticas que influenciaram gerações, trazendo à tona o contexto político e a estética de uma época. Resgatar títulos expressivos da discografia da música brasileira e apresentá-los para o público em formato de show, abre uma possibilidade sem precedentes para a revitalização da memória cultural do país, bem como para a difusão de uma cultura que deve, necessariamente, ser dinâmica e transformadora. Lançar um olhar para o passado compreendendo-o como um ponto norteador para o entendimento do presente, propiciando assim um campo fértil para construção do que está por vir, é uma das ações constantes do Sesc. A tradição e a inovação mantêm diálogo no dia a dia da instituição, ambas entendidas de maneira que o estreitamento e a permeabilidade do relacionamento entre gerações contribuam e incentivem o surgimento de novos paradigmas para a arte e para a cultura.

Sesc Belenzinho


foto: Claudia Camargo


Clara Crocodilo Clara Crocodilo é um delírio báquico, uma ópera que narra a saga de um office-boy enamorado, na busca febril de reconquista de sua amada, em meio ao pandemônio urbano de sinais fantasmáticos e dissonâncias existenciais. De Baudelaire a Lautréamont, de Bach a Beethoven, do dodecafonismo e serialismo ao pop- cult e vice=versa, o narrador-personagem é o profeta de um presente cheio de ameaças totalitárias e riscos em cada esquina, um dândi satânico e blasfemo, nessa fusão do trágico desabusado e do cômico vital. Dadaísta, em Arrigo Barnabé se conjugam ainda o cênico e o fílmico, a “Ópera dos Três Vinténs” e Nosferatu, realizando uma Gesamtkunstwerk, no âmbito de um cosmopolitismo generoso e performático. Insólita, esta ópera de polifonias e cacofonias figura a potência excêntrica da ciência contemporânea que desacorrentou Prometeu e reavivou o drama satírico grego, em uma modernidade tomada por Erínias provocadoras, fusionando histeria e neuroses, o luto e o lúdico. Arrigo cria um Te Deum laico, anunciador do Apocalipse. “Mefistofáustica”, Clara Crocodilo-- a um só tempo “ lágrimas de crocodilo” e “ claro enigma”-- é uma obra absoluta. Com ela Arrigo inaugura e encerra um gênero. Olgária Matos Professora titular do depto de filosofia da USP e professora titular do depto de filosofia da Unifesp. É coordenadora da Catedral Edward Saïd de Estudos da Contemporaneidade da Unifesp.


foto: Antonio Carlos Tonelli


Labirintos O topológico 2022. Duzentos anos da Independência, pelo marco oficial. Cem anos de Arte Moderna, entre uma Semana e hoje. Meio século de Clara Crocodilo, o embrião, e quatro décadas de Clara, a eclosão. Arrigo Barnabé, 70, quase a idade da Poesia Concreta. Em retrospecto, essas são medidas de grandeza expressivas. A infalibilidade, ainda que tardia, do Brasil-em-modo-moderno é espantosa. Jamais desprezaremos nossa latência. De cada lapso memorável, extrairemos algum suco escandaloso, o elástico espaço de tempo de resposta criativa resultando em revoluções notáveis. É da nossa natureza. Uma pensata sobre Arrigo, naquilo que ele mais é – o artista transgressor e um fato cultural – dificilmente se furtará a pôr em revista o amplo contexto do arco temporal. Não me furto, logo, revejo três predicados: o novo, o moderno e o contemporâneo. A ênfase no ‘novo’, tido como progresso (histórico, científico), remonta aos primeiros iluministas, mas foi só no século 20 que tomou forma combativa nas artes mundiais, movimento com o qual nos engajaríamos musicalmente no Brasil a partir dos 1940s com o fator Koellreutter. Já o termo ‘moderno’ é mais difuso. Historicamente a Idade Moderna teve início presumível com a primeira globalização, o encontro entre mundos ditos Velho e Novo, às margens dos 1500, início de nossa campanha antropofágica, marco de uma nova história de tráfego e tráfico de culturas e conhecimento


e sua circulação em escala global. E ainda que se fale ‘artes contemporâneas’ desde o século 20, historicamente a Idade Contemporânea começou com a Revolução Francesa, em 1789, cujo impacto na cultura culminou com o florescimento da arte da contracultura, o Modernismo, movimento que surge em meados do século 19, diz a Nova História, pela poesia do real e a palavra radical de Baudelaire – o poeta maldito que Arrigo lia, agora em 1978, quando o conheci, já ele um híbrido (in)formado de música nova, cultura, invenção, filosofia, pop art e rigor, um compositor já pronto e marginal, deslocado de tudo, o spleen na alma, essa angústia baudelairiana, um outsider que citava de cor versos de As Flores do Mal. A Semana de 22 (nunca tão atual, nunca tão urgente) resta moderna porque ainda debate inconcluso, discurso em aberto, senão um problema nas melhores salas de estar – e, pior senão, alvo de cancelamentos identitários. Clara Crocodilo, versão 1980, idem, resta, mais que um monstro, uma monstruosidade para alguns, e igualmente uma ameaça ao conforto do lar. – Onde estará? (Estará sempre. Seria uma resposta desviante, porém precisa.) Impermeável a embalagens, como os biscoitos finos de Oswald e os ananás amargos de Mário, o fruto híbrido de Arrigo vingou e demarcou seus redutos. Se nos fosse dado ver em perspectiva o fio da vanguarda brasilis pelas lentes de um drone temporal, por uma régua cultural que dispusesse a cronologia dos eventos inflexivos, inflexíveis e inesquecíveis pela mediação privilegiada da arte, que nos possibilitasse em escala espaço-verso-virtual a “ampliação da esfera de presença do ser” tão filosoficamente ansiada e preconizada


por Montesquieu lá pelos 1600 em suas reflexões pioneiras sobre o trinômio arte-cultura-espírito, se tudo isso, bem provável víssemos do alto as figuras inquietas de Oswald e Mário, esses brigados Andrades sem parentesco (de sangue), ombreados em linha evolutiva com dois Campos e um “Claro” Arrigo – se este decidisse adotar o improvável prenome masculino do ancestral negro [“o Claro!”] que, para sua alegria e prova dos nove, recém descobriu em árvore genealógica [“ah, Itamar...”], numa labiríntica linhagem de artistas pretos [onde até um polímata, admirado por Bardi e Mário, “o músico, luthier, compositor, arquiteto, aquarelista, o Miguelzinho Dutra!”] que terá por certo invadido seu mais atávico inconsciente com tons, pulso e gênero não-binários, manifestos de forma tão inaugural nessa entidade ambígua que é Clara (F) Crocodilo (M). O distanciamento permitiria enxergá-los, juntos e entrincheirados, modernos e modernistas, concretos e tropicalistas, semióticos e pós-estruturalistas, a alta tradição do zinco, os baixios dos barracões da vanguarda da ECA-USP, o atrito e o assente, o Viva e a Vaia, e tantas outras artes novas emanadas do mundo. O auricular Na ausência de documentos que registrem a gênese – gênese que, como bem aponta Cecília Salles, teórica da Crítica Genética, designa, mais que a origem, todo o longo percurso dos “sete dias” da criação (o “processo de fabricação” de que fala Maiakovsky como sendo aspecto o mais


importante da feitura artística) – e Arrigo sempre contestou o mito da obra pronta, da geração espontânea, recusando a pecha de gênio, reivindicando maior legitimidade ao suor criativo – resta ir a indícios de sua obra desde a primeira manifestação, o primeiro grito. Clara é esse ovo. Clara é o ovo primordial. Na impossibilidade de um estudo propriamente genético (só restam partituras acabadas, nenhum rascunho), cada testemunho dará conta dessa história por um ponto de partida pessoal. No marco zero da minha memória vibra a imagem de um amontoado de alunos espremidos à porta de uma sala de aula da USP, olhos arregalados e ouvidos esticados no visor de vidro, no esforço de captar o diálogo e os sons abafados que chegavam da cena: Arrigo tocando Clara Crocodilo para Willy Corrêa de Oliveira, instante terrífico. Vejo hoje: que flash histórico. Quisera um NFT, um print, um mint dessa memória! Era como se soubéssemos, ali, que Arrigo era o Arrigo. Para ele, a prova de fogo. Para mim, um choque. Um entendimento – novo – de arte, de música – nova. A interrogação instalada. Arrigo desestabiliza certezas, instaura a dúvida. Transmuda. Em pouco tempo (em minha primeira [e única] incursão no dodecafonismo), estaríamos compondo Diversões Eletrônicas a quatro mãos nos pianos da USP, entre curiosos e vigilantes. Conceitos e teorias, só depois, sob a égide do tempo e o benefício da latência. Mas sempre reconheci aquela como linguagem só dele e seu traço distintivo: a assinatura inimitável. A parceria ganhou o 1º Festival Universitário de MPB da TV Cultura (1979) por um júri musical competente, embora eu já considerasse Infortúnio, de Arrigo, também finalista, em tudo superior: na forma, construção, discurso e fluidez, essa “respiração natural”


de que fala Stravinsky e tão difícil de produzir na escrita contemporânea. As duas faixas estão no LP do festival. Vaiado, ovacionado, Arrigo explode. Em seguida eclode Clara, o disco (1980). Ele próprio atribui a ascensão a um anseio cultural da época. “Havia a expectativa de um fato estético”. São raros os momentos em que o singular (a arte) e o plural (a cultura) convergem. Zeitgeist. De um golpe, o espírito do tempo inseriu Arrigo na História. Arrigo é História. Arrigo era inevitável. Os dédalos Teixeira Coelho, crítico de arte, num exaustivo (e pra lá de urgente) dicionário de política cultural, aponta o risco implicado em toda investida pelo ensaio intelectual (como é aqui o caso) de transformar em ‘obra de cultura’ o que em essência é uma ‘obra de arte’. Socorro. Godard é trazido, numa frase: “Cultura é a regra; arte, a exceção”. Tentarei, com todas as forças, escapar ao perigo – que não é o único – de enquadrar Clara & Arrigo em qualquer convenção. Saída para esse labirinto é o próprio labirinto: um ensaio a vários horizontes, como me sugere o editor Sandro Saraiva. O ensaio aberto, por sua vez, impõe outro desafio, visto condicionado a outra ferramenta trabalho: a “sofisticação”, termo que Teixeira recupera não no sentido mundano do requinte, mas como medida de complexidade, na acepção informacional. Complexidade, ai, que em Arrigo são várias. O labirinto – mil entradas, uma saída, nenhuma linearidade – é adotado como forma que dialoga diretamente com o recurso


musical (à maneira de uma fuga) empregado na passagem instrumental que prepara o refrão (de fuga, literalmente) no clímax final do Clara. Clara-ovo é toda labirinto. Cada frase de seu emaranhado contrapontístico é uma trilha enganosa, traiçoeira, de destino incerto, onde o caminho se faz volteando, de frente, de ré, pelo espelho, de ponta-cabeça, virado do avesso, pelo verso e o anverso e vice-versa. Incontáveis leituras combinatórias. (Tecnicamente: transposição, inversão, retrogradação etc.) Clara nasceu de um experimento. Obra gerada em labor/or/atório por Arrigo e Mário Lúcio Cortes entre dezembro/1971 e janeiro/1972, debatida por um núcleo criativo (Paulo Barnabé, Robinson Borba, Antônio Carlos Tonelli), concebida na esteira da leitura-chave de Obra Aberta, de Umberto Eco, cada célula musical foi arquitetada como um móbile de vários encaixes. “Módulos intercambiáveis, retrogradáveis que guardassem relação entre si, relação garantida pelo processo de espelhamentos rítmicos e melódicos que usamos”, recém-escreveu Arrigo no prefácio a Luiz Gê, o quadrinista da icônica capa do disco, cúmplice nº 1 de um “momento fundador”. Em cinco décadas, a percepção de Clara cresceu, tomou vulto. “Não é releitura”, diz. Deixou de ser. Seria um looping não fossem variações. Desde a origem, Clara Crocodilo se apresentou como personagem mutante e obra em mutação. A certa altura, Clara, o álbum, passou a designar uma forma: a de Suíte [fr.: o que segue], termo que fechamos para a estreia da versão em piano duo [Lisboa, 2002, Arrigo & Paulo Braga] na sua acepção literal, de conjunto: sequência una de peças. Como suíte, compôs repertório de


vários formatos: música de câmara, recital, concerto, big band, pocket show, solo. Até que Arrigo viu Clara passar a designar um conceito há muito latente: o de música aberta, em aberto, em continuidade, em contínuo projeto. Ao unificar a ideia de obra que segue/prossegue, obra em eterno retorno e processo, acepção que encontra correspondência na natureza primordial da arte que preceitua toda criação como obra nunca verdadeiramente acabada (Valéry: “Um poema não se termina nunca, simplesmente se abandona”), que tem por destino permanecer inconclusa (ao inverso da obra de cultura, que tem por missão concluir, encerrar), ao renderse, enfim, ao infinito da própria obra à sua própria revelia, Arrigo entendeu Clara. Espanto e clareza.“Meu trabalho mesmo autoral é pensado como possibilidades de recombinação. Foi bom ter essa luz.” A partir desse Clara-continuum, esse Clara-in-progress, essas Clara-Claras, Arrigo não só abre mão da forma fechada em favor do deslocamento de múltiplas perspectivas, como amplia as ambiguidades da estrutura aberta no seu triplo duplo-papel de autor/intérprete, criador/criatura, emissor/fruidor. Ao expandir a perspectiva estética de Umberto Eco, num primeiro momento esse é ato de autocongenialidade: Arrigo relê e recria a si mesmo continuamente, testa possibilidades e limites, esvaziase e preenche-se – em tese nunca se esgota. Em segunda instância, é dado ao Outro, enquanto alteridade (público e intérprete), o acesso a opções de enfrentamento constante com a “desordem fecunda” de que fala Eco, a indeterminação de uma forma polivalente de um objeto incerto, potencial, a escritura prescritiva até certo ponto. A obra aberta desconhece o significado único, prescinde do consenso. É livre, paradoxal,


descontínua – contínua, portanto. Uma resposta livre e inventiva – um estímulo à imaginação – uma leitura poética. Um devir. Ontem/hoje. Futuro. O intransitivo Clara-matriz-replicante da obra-prima/primo-gênita, eixo de oito faixas de Clara Crocodilo: síntese e hipótese. tem sido uma hipótese. Se Arrigo é incerto quanto à pertinência de uma matriz serial subjacente à faixa-título permeando o disco todo, de outro lado é assertivo ao reconhecer no álbum a unidade que trabalhos posteriores não alcançaram – daí seu impacto, ainda atual, quatro décadas depois. “Porque tem um programa estético. Tem uma poética. Muito forte. Que é uma coisa que falta. Tem muita unidade. Tem integridade.” Só essa meia dúzia de premissas pausadas, pontuadas, ensejariam um estudo inteiro com base naquilo que a metodologia científica designa como problema de pesquisa, pergunta sem resposta, anomalia epistêmica: – O que constitui essa estética? – Onde estará Clara Crocodilo? Onde ela se esconde? Paradoxo preliminar: sendo autoral, e experimental, o processo inventivo é indutivo; mas sendo arte, e individualizada, e não ciência, não comporta generalização teórica, dedutiva. No fundo, toda crítica genética se depara com esse dilema fatal, esse desejo impossível: a ânsia obsessiva de desvendar o momento da criação do fogo, sua morfologia interna, sua heurística, seu instante de descoberta. Numa frase de Teixeira, tão andradiana: “Toda arte é intransitiva”. Arte com A, obviamente. Pois ao contrário da modelização da cultura, que nos estabiliza, a singularidade


da obra perturbadora guarda seu modelo em si: é intransponível, intransferível, inalienável. Qualquer elaboração crítica poderá no máximo descrever materiais, recursos, linguagem, estruturas, eventualmente até sua metodologia, sua teoria intrínseca. Jamais o ato criativo, o salto quântico, a explosão, o big e o bang. Explica-se, mas sempre parcialmente, em duplo sentido: por partes e com a parcialidade de um conhecimento subjetivo prévio e referências adquiridas. Faço dessa a constatação de um limite. Por próxima que tenha estado desse repertório, por próximos que eu tenha documentos testemunhais, como minhas transcrições manuscritas em partitura, eis a questão: – Onde Clara, a centelha? O mapa Índices, indícios podem ser identificados em gestos recorrentes e condutores da sua escritura – a compositiva (música) e a discursiva (letra). Embora a poética buscada por Arrigo não seja a de extração aristotélica (exceção às canções [Instante, no disco], quando faz revelar, em toda sua dimensão, o espírito trágico), o recurso à catarse é presente de forma dramatúrgica nas narrativas e de forma musical retórica nas cadências finais, sempre num crescendo (tensão) rumo à resolução (extensão) da dissonância (distensão). Também explícito é o processo de mimese, de emulação do real – não à maneira da metafísica clássica, mas como especulação crítica: uma mimese crítica, digamos, irônica. Na camada narrativa, personagens marginalizados da cultura urbana ganham


voz pelas lentes da contracultura, caracterizados com tratamento paródico e empatia agressiva, numa linguagem meio HQ, meio pop art, com caricaturas da caricata estética camp (pós-kitsch) em metacodificação. O contraste discursivo entre linguagem popular e linguagem erudita é agudo: linhas de baixo sincopadas, harmonias fincadas no atonalismo de Stravinsky e na polirritmia de Bartók, pulso percussivo acentuado, melodias e contrapontos seriados com as doze notas do alfabeto musical pelo cânone dodecafônico sistematizado por Schoenberg, narração policialesca e canto falado. O resultado são estruturas complexas de alto e baixo repertório, o chão e o intelecto, o senso comum e doxa culta – as duas polaridades postas de forma eclética, excêntrica, a ambas estranha, e como nunca antes, e nem depois. No âmbito do popular x erudito, é duas vezes contravenção dos códigos hegemônicos. Inversamente ao que parece, a policromia (sonora, imagética) é outro elemento em comum, tanto pelas tintas saturadas das visões evocadas, como pela saturação sonora do espectro da escala cromática, compasso a compasso. Rigorosamente falando, são atonais e carregadas nos trítonos (o intervalo “proibido”) as faixas Clara Crocodilo (Arrigo e Mário Lúcio Cortes, 1972) e Sabor de Veneno (Arrigo, 1973, versão 1979). De base dodecafônica são Acapulco Drive-in (Arrigo e Paulo Barnabé, colab. Gilson Gibson, 1980), Orgasmo Total (Arrigo, 1979), Diversões Eletrônicas (Arrigo e Regina Porto, 1978), Infortúnio (Arrigo, 1978) e Office-boy (Arrigo, 1979). Todas caracterizadas por jogos de dissonância e métrica irregular extraídos da música erudita, e recursos de pulso, repetição, refrão, e cadência típicos da tópica popular. A canção lírica Instante, 1974, Arrigo


encerra o disco como uma coda, um adendo subjetivo, um vislumbre zen. Diz ser seu “diálogo com a tradição”, mas é outra forma de avesso: é beleza dissonante. “convulsiva”, como quis Breton. A Gestalt usa denominar ‘super-soma’ e a Estética, ‘pregnância’, o fenômeno da percepção prevalente da forma, não de seus componentes. O todo não será (A) de Arrigo + (B) de Barnabé, mas (C) de Clara. Uma dupla vivência crítica da massificação e da elitização da cultura. Música sem trégua. – “É a minha vida”. A saída Em toda arte maiúscula as pulsões do Id e o Ego (a individualidade criadora) sobrepõem-se às contenções do Superego (a cultura, a norma, a regra). Não se sujeitam. Colidem, violam, desafiam, rompem: irrompem. A teoria da cultura se vale dessa relação conflituosa, dessa “inequação”, em que a arte põe em xeque a cultura, para estabelecer aspectos que consolidam novos paradigmas. Nas ciências também é assim. O advento Arrigo Barnabé na MPB teve e tem o tom revolucionário da ruptura, da força propulsora, da implosão. Responder ou não à expectativa de progresso visionado por Caetano, a “linha evolutiva” pós-Tropicália, da qual Arrigo já se disse descendente, pediria um movimento (de novo: Arrigo é Arrigo), e mais que tudo é irrelevante, além de prematuro de um ponto de vista diacrônico. No arco da História, o grande relógio do tempo, que sabedorias ancestrais dizem medir a distância entre impulso e resposta, ainda está marcando as horas, os minutos e nanossegundos-luz de


Clara Crocodilo. A latência, bem reza a física do tempo, é relativa, e o movimento também, no espaço físico e cognitivo. Certos eventos extrapolam a compreensão sincrônica de umas poucas décadas. São grandes demais, inadequados ao imediatismo. Com técnica e linguagem estruturadas, a obra radical de Arrigo se inscreve na categoria da invenção, o que significa uma promessa potencial de impacto sobre a episteme, sobre o domínio científico de uma área, a música. Pesquisas acadêmicas são o que possibilitam sistematizar o conhecimento implícito no interior de uma construção como é a partitura. A primeira iniciativa nesse campo foi em 1993 (André Cavazotti, UFRGS), e a mais recente que vi foi em 2018 (Thales Roel, Unicamp), esta sinalizando aspecto curioso: Arrigo chegou à Geração Z: nativos crocodilianos recebem seu hermetismo com naturalidade. São exercícios inquietos de análise, iniciais, também em aberto, face ao tanto ainda por dizer desse trabalho, obra aberta fechada a pontos finais. “Quanto maior a incerteza, maior a informação”, leio com alívio no dicionário de cultura. É no ambiente da pesquisa compositiva e da escuta preparada, se me fosse dado a antever, agora em direção futura, a trajetória de Arrigo Barnabé e Clara Crocodilo, que vislumbro o conjunto de sua obra favorecido à luz do tempo e da latência, numa escala curva e de densidade crescente, degrau pós degrau, o seu catálogo instalado nas apostas públicas de concerto (Osesp, Osusp), a sua escrita inserida nos catálogos do conhecimento humano, estágio representado pela ciência, esse universo silencioso e intramuros de sistematização do saber e último estádio de atribuição de valor, senão o mais alto, numa hierarquia de pontuações


simbólicas precedida das atribuições da crítica, do público, de mentores e dos pares. Valor determinante: o próprio. Arrigo nunca duvidou. Regina Porto é compositora, ensaísta e documentalista. Foi parceira de Arrigo Barnabé em “Diversões Eletrônicas” (1979), tecladista na Banda Sabor de Veneno e no disco “Clara Crocodilo” (1980). É mestranda qualificada em Musicologia pela Unicamp e em Ciência da Informação pela USP, com especialização em Patrimônio Histórico pelo IEB. Formou-se em piano pelo Conservatório Dramático e Musical de SP e estudou com H.J. Koellreutter. Foi produtora e diretora de programação na rádio Cultura FM de SP, editora de música na revista Bravo!, curadora de concertos na CPFL Cultura e documentarista no Acervo Osesp. Desenvolve o projeto Ludovica© OpenMusic.


Foto: Bruno Schultze


foto: Gal Oppido


CLARA CROCODILO (1980)* 01. Acapulco Drive-in (Paulo Barnabé/ Otávio Fialho/Gilson Gibson/Arrigo Barnabé) 02. Orgasmo Total (Arrigo Barnabé) 03. Diversões Eletrônicas (Regina Porto e Arrigo Barnabé) foto: Reprodução

04. Instante (Arrigo Barnabé) 05. Sabor de Veneno (Arrigo Barnabé) 06. Infortúnio (Arrigo Barnabé) 07. Office Boy (Arrigo Barnabé) 08. Clara Crocodilo (Mário Lucio Cortes/ Arrigo Barnabé)

Vania Bastos, Tete Espindola e Suzana Salles voz Bozzo Barreti teclados Mario Campos baixo Paulo Barnabé bateria Tonho Penhasco/Mario Manga guitarra Ubaldo Versolato, Mané Silveira, Chico Guedes saxofone Claudio Farias trompete Ronei Stella trombone Paulo Braga Piano * A apresentação das músicas não será necessariamente nessa ordem


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fotos: Antonio Carlos Tonelli


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Rua Padre Adelino 1.000 CEP 03303-000 TEL.: (11) 2076 9700 / belenzinho

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Belém


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