Sesc | Serviço Social do Comércio
Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
Mostra de cinema
Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional ANTONIO OLIVEIRA SANTOS
Departamento Nacional Direção-Geral MARON EMILE ABI-ABIB
Coordenadoria de Educação e Cultura NIVALDO DA COSTA PEREIRA
CONTEÚDO Gerência de Cultura MARCIA COSTA RODRIGUES
Assessoria de Cinema MARCO AURÉLIO LOPES FIALHO NADIA MORENO
Texto MARCO AURÉLIO LOPES FIALHO FRANCESCO TROTTA
PRODUÇÃO EDITORIAL Assessoria de Comunicação PEDRO HAMMERSCHMIDT CAPETO
Supervisão editorial, edição e preparação FERNANDA SILVEIRA
Projeto gráfico ANA CRISTINA PEREIRA (HANNAH23)
Revisão de texto CLARISSE CINTRA
Produção gráfica CELSO MENDONÇA
Estagiário de produção editorial DIOGO FRANCA
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
©SESC DEPARTAMENTO NACIONAL, 2015
Sesc. Departamento Nacional. Mr. Faker : Orson Welles e a autoria na indústria do cinema : mostra de cinema / Sesc, Departamento Nacional. -- Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2015. 76 p. ; 27 cm.
AV. AYRTON SENNA, 5.555 — JACAREPAGUÁ RIO DE JANEIRO — RJ CEP 22775-004 TEL.: (21) 2136-5555 WWW.SESC.COM.BR
Bibliografia: p. 64-67. ISBN 978-85-8254-045-9.
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. IMPRESSO EM OUTUBRO DE 2015.
1. Welles, Orson, 1915-1985. 2. Diretores e produtores de cinema – Estados Unidos. I. Título. CDD 791.430233
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS E PROTEGIDOS PELA LEI NO 9.610/1998. NENHUMA PARTE DESTA PUBLICAÇÃO PODERÁ SER REPRODUZIDA SEM AUTORIZAÇÃO PRÉVIA POR ESCRITO DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC, SEJAM QUAIS FOREM OS MEIOS E MÍDIAS EMPREGADOS: ELETRÔNICOS, IMPRESSOS, MECÂNICOS, FOTOGRÁFICOS, GRAVAÇÃO OU QUAISQUER OUTROS.
Mostra de cinema
Orson Welles e a autoria na indústria do cinema Sesc | Serviço Social do Comércio Departamento Nacional Rio de Janeiro 2015
Criado e administrado há mais de 60 anos por representantes do empresariado do comércio de bens e serviços e destinado à clientela comerciária e a seus dependentes, o Sesc vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do desenvolvimento e bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, esforço que conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional. Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como um democrático disseminador de conhecimento, importante ferramenta para a educação e transformação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema. Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais, seja no cinema como também nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou na música, o Sesc incentiva a produção artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas, acima de tudo, promovendo a formacão e qualificação de um público que habita os quatro cantos do Brasil. A credibilidade alcançada pelo Sesc nesse âmbito faz da entidade uma referência nacional, o que revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais necessidades de sua clientela.
Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do Sesc
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O Sesc é uma entidade de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove o bem-estar dentro das áreas de Saúde, Cultura, Educação e Lazer, com o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida da sua clientela e facilitar seu aprimoramento cultural e profissional. No campo da cultura, a atuação do Sesc acontece no estímulo à produção cultural, na amplitude do conhecimento e no fortalecimento de sua identidade nacional, condições essenciais ao desenvolvimento de um país. Nesse cenário, a mostra de cinema Mr. Faker – Orson Welles e a Autoria na Indústria do Cinema oferece um amplo panorama desse multifacetado homem da comunicação e do cinema: diretor, ator, produtor, entre outras funções realizadas por Orson Welles, que protagonizou uma das mais polêmicas películas do cinema mundial: Cidadão Kane, filme que faz parte desta mostra, e autodenominou-se um “impostor”, um “ilusionista”. O caráter histórico e documental desse projeto viabiliza a proposta do Sesc dentro da ação programática de cultura ao se constituir como uma ferramenta de enriquecimento intelectual dos indivíduos, propiciando-lhes uma consciência mais abrangente e aberta a meios mais estimulantes e educativos de aquisição da cultura universal.
Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc
Mr. Faker - Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
“A palavra gênio foi a primeira que ouvi, quando ainda estava no berço. Assim, até chegar à meia-idade, nunca pensei que não fosse um gênio. Os adultos, então, esperavam que eu fizesse alguma coisa extraordinária. Tentei fazê-las. Sempre achei, porém, que não estava correspondendo.”
(WELLES, 1986)
SUMaRIO
Introdução 10 Um artista transbordante
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Welles: um demiurgo contemporâneo
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Filmes da mostra
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Verdades e mentiras de Welles
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Verdades e mentiras 24 Cidadão Kane 27 Grilhões do passado 30 W(elles) Shakespeare
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Falstaff – o toque da meia-noite 37 Macbeth 38 Welles noir
40
O estranho 45 A marca da maldade 46 A dama de Shanghai 49 Welles literato
52
Soberba 57 O processo 58 Dom Quixote 61 Filmografia
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Referências 64 Anexo: Extra! Extra! Morre Charles F. Kane!
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O Sesc apresenta a mostra de cinema Mr. Faker – Orson Welles e a Autoria na Indústria do Cinema com uma ampla oferta de 11 filmes desse enfant gâté do cinema norte-americano: Cidadão Kane, Soberba, O estranho, A dama de Shanghai, Macbeth, Grilhões do passado, A marca da maldade, O processo, Falstaff – o toque da meia-noite, Verdades e mentiras e Dom Quixote. Orson Welles (1915-1985) ainda hoje é figura singular e polêmica na história do cinema. Por ter uma personalidade provocadora, teve sua carreira associada a uma filmografia produzida com muitas dificuldades. Hoje é impossível dissociá-lo da própria história: homem, cineasta e ator se confundem com seus personagens. O traço que une os filmes de Welles é a ânsia de liberdade, a abominação pelo conservadorismo e pelo servilismo humano. Ao trabalhar em um universo tão movediço, Welles optou por ser um “impostor”, não em um viés criminoso, mas para nos fazer ver que tudo que envolve o humano é sujeito à manipulação. Welles utilizou os recursos de câmera para fazer filmes de visual incomparável, com ângulos surpreendentes e narrativas inovadoras. Em 1941, ao realizar seu primeiro filme, Cidadão Kane, concebeu-o como seu manifesto inconteste e o inscreveu entre as obras máximas já realizadas na história do cinema. Ao abrir espaço para esse singular cineasta em sua programação, o Sesc oferece ao público mais uma oportunidade de encontro com obras clássicas que até hoje conseguem dialogar vigorosamente com nosso mundo.
Equipe de Cinema do Departamento Nacional do Sesc
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Mr. Faker - Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
Chamar Orson Welles pela alcunha faker (impostor) não che-
seus filmes, o que conferia uma particularidade a seus trabalhos; sua
ga a ser, nesse caso específico, incriminador, tampouco soaria
presença servia para dar o tom na construção dos personagens. Dirigir e
como elogioso, mas seria justo. Todo cineasta deveria se or-
protagonizar lhe conferia esse benefício artístico.
gulhar de ser chamado de prestidigitador, pois que no fim das
Corpulento e alto, de olhar confiante e afirmativo, Welles tinha uma
contas todos eles acabam o sendo. Welles nada mais fez do
presença imponente. Logo em seu primeiro longa-metragem, Cidadão
que dignificar essa obviedade profissional, e buscou ao longo
Kane (1941), deixou perplexo o meio cinematográfico da época. Apesar de
de sua tumultuada carreira criar um conceito estético em suas
criticado nos Estados Unidos, o filme foi descoberto pelos franceses após
obras, nas quais o uso do falso fosse compreendido como in-
o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e, desde então, está presente
trínseco ao próprio fazer artístico. O falso como essência da
em praticamente todas as listas elaboradas por críticos de todo o mundo
própria arte, como pilar construtivo irrevogável e inevitável
como o mais relevante filme da história do cinema. Surpreendentemente,
desse processo.
Welles realizou o filme com apenas 25 anos de idade.
A genialidade de Welles, tão propalada por seus contemporâ-
Ao relacionarmos Welles com transbordamento, o fazemos no intuito de
neos, e incluindo nesse contexto os críticos de cinema de todos
melhor compreender seu universo artístico a partir de sua personalidade
os tempos, ganhou força graças à sua visão audaciosa e às
marcante, que se derrama por todo o seu trabalho de um impulso autoral
vezes exagerada e transbordante sobre o cinema. Mesmo sua
insinuante, como se fora uma mácula irrefreável e irreprimível.
faceta de ator sempre fora enigmática e barroca, capaz de pro-
Transbordante talvez seja uma boa palavra para definir Orson Welles.
vocar assombros no espectador, ele funcionava como um ímã
Identifica-se nele a existência de algo para além do artista criador, que
para os espectadores, roubando a ação, como frequentemente
resvala ali e se amplia na sua personalidade. Diretor de cinema e teatro,
se costuma dizer. Quase sempre atuava como protagonista em
radialista, ator de cinema e teatro, roteirista, prestidigitador, artista múltiplo. Pela imponência de sua presença e de suas ideias cultivou muitos inimigos, em especial em Hollywood, mas também uma imensidão de
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admiradores que não cansam de vê-lo como gênio, excêntrico e polemista. Welles esforçava-se em fazer um cinema autoral em meio à maior indústria do cinema mundial e pagou um alto preço por essa escolha. O transbordamento não é aqui utilizado tão somente para definir sua obra, mas também como um ponto referencial e de integralidade. Assim, a personalidade de Orson Welles está rigorosamente presente em tudo o que fez na carreira, e até fora dela, isto é, sua aparição deve ser entendida sempre como um acontecimento, seja como diretor seja como ator ou em qualquer outra função que tenha desempenhado ao longo de sua vida. Nesse enfoque do transbordamento, a busca da verdade não pode ser considerada como essencial na concepção de seus filmes, pois ela tende ao exato, à precisão, à crueza. Já o falso não, ele precisa ser convicentemente over para poder ser aceito, não precisamente como ele é, falso, mas para poder parecer indubitável e inequivocamente verdadeiro. Quando relacionamos Welles com transbordamento o fazemos pensando que nele reside certa insanidade advinda de sua não aceitação do processo de produção dos estúdios hollywoodianos, sua inconformidade ao status quo. Em uma observação superficial, Welles nada mais é que um lunático, um derrotista a enfrentar ingloriamente os poderosos estúdios e seus produtores. Mas quando imergimos em seus projetos e compreendemos sua visão artística, construímos outra concepção a seu respeito. É notória sua predileção por certas obras, como Dom Quixote (Miguel de Cervantes), O processo (Franz Kafka) e O coração da selva (Joseph Conrad), que materializam a luta de homens contra processos de aprisionamento do indivíduo. Assim, as diversas batalhas de Welles contra donos de estúdios devem ser analisadas a partir de seu imaginário político e filosófico, da sua visão ontológica, mesmo sabendo que elas se assemelham às de Davi contra Golias. Essas relações eram penosas e inglórias realmente, mas refletiam bem sua obsessão em realizar plenamente seus anseios artísticos e não era só uma questão de terminar seus projetos a todo o custo. O pensar wellesiano não era propriamente finalístico, e sim processual. No decorrer de sua carreira, quem mostrou maior dificuldade em lidar com a personalidade marcante de Welles foram os produtores de Hollywood, que dificilmente conseguiam dobrá-lo. Welles sabia o que queria e era constantemente acusado de ser intolerante, lutava para ter o controle artístico de sua obra, o que é bem compreensível para um criador.
ISTA 13
UM ARTISTA TRANSBORDANTE Quanto ao seu espírito inconformado, certa vez ele mesmo disse: “Os santos e os artistas não se evidenciaram na história pelo seu conformismo, e é um fato evidente, mas esquecido, de que não existe arte ou artista domado, dominado ou posto de quatro” (WELLES, 1986, p. 84).
Definitivamente, Welles não abria mão do domínio artístico das suas
Welles chegou a declarar sua visão acerca da arte e que contrastava radicalmente com o modus operandi praticado pelos estúdios. Sua fala é bem clara a respeito:
obras e, como consequência disso, travava embates fervorosos contra os donos de estúdio. Essa era uma questão realmente fundamental, constituidora mesmo. Hollywood se consolidou economicamente por
Hollywood trata todo mundo mal. Tudo que alguém seja capaz de declarar sobre Hollywood é verdade.
meio da intervenção dos produtores nos filmes, vistos como seus pro-
Mas eu me sentia melhor, mais à vontade, quando
dutos finais, sua fonte de maior ou menor lucro, ou de um possível
Hollywood era uma cidade-fábrica, os grandes estú-
fracasso. A briga era de caráter classista: de um lado os objetivos do
dios, com os grandes dinossauros sentados atrás de suas escrivaninhas. (WELLES, 1986)
artista em salvaguardar sua liberdade de criação, e de outro os empresários, esforçando-se em ter um produto final rentável. Por isso, os artistas estão sempre propensos a correr risco enquanto os empresários tendem à estabilidade de seus negócios. Esses embates impregnam a obra de Welles e não podem ser desvinculados dela. Sua obra nos interroga o tempo todo sobre a
possibilidade de realização autoral dentro do processo produtivo de uma grande indústria, repleta de chefões poderosos e endinheirados. A análise atenta de seu processo criativo deve esbarrar inevitavelmente nessa tensão entre artista/ criador e indústria.
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E
Orson Welles foi um artista que conseguiu refletir como poucos o século 20, em especial seu país, os Estados Unidos; mas também soube envolver sua obra em meandros filosóficos ao incluir questionamentos profundos sobre o papel do homem no mundo contemporâneo. A busca ou o questionamento do sentido da vida pelos indivíduos permeia suas tramas e seus personagens. Personagens em situação-limite, imersos em encruzilhadas advindas de suas ambições políticas e econômicas podem ser considerados centrais na construção da obra wellesiana. Como desdobramento, podemos também desmembrar outros temas adjacentes, tais como os da traição, do assassinato,
WELLES , UM DEMIURGO CONTEMPO RaNEO 15
Mr. Faker - Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
da inveja e das crises de consciência. Ressalta-se sua visão crítica acerca de como os poderosos exercem seu macro e micropoderes, como os organizam e os estruturam. Pelo seu humanismo radical, de colocar usualmente o indivíduo como elemento central de sua obra, muitos críticos definem Welles como um renascentista, o que não chega a ser um exagero. A influência do dramaturgo William Shakespeare também reforça essa característica. A relação entre poder, crise de consciência e traição são temas congruentes nas obras dos dois artistas. No cinema, Welles filmou três peças de Shakespeare e, no teatro, montou desde a adolescência
que foram adaptados, quando analisados em conjunto, mais do que simples referências, compõem um quadro de influências substantivas, formadoras mesmo do seu caráter e de seus princípios artísticos e humanísticos. São eles: Joseph Conrad, Franz Kafka, Miguel de Cervantes e, sem surpresa, William Shakespeare.
incontáveis adaptações. Muitas vezes apontado como prodígio, Welles teve uma formação muito sólida e desenvolveu um gosto pelas artes desde a adolescência. A literatura sempre o seduziu, basta ver as adaptações literárias que realizou no cinema. Os escritores
Poucos artistas antes dos 25 anos conseguiram dois feitos atingidos por Welles. O primeiro foi causar, aos 23 anos, uma comoção geral ao narrar em um programa de rádio da CBS (Columbia Broadcasting System) uma invasão de marcianos, inspirada no livro A guerra dos mundos, de H. G. Wells. Várias pessoas, desesperadas, tomaram o que ouviram como verdade e abandonaram suas casas em fuga, causando um grande alvoroço em várias cidades norte-americanas. A ação não foi impensada: a emissora interrompeu a programação musical para dar uma notícia extraordinária, tudo muito bem calculado pelo então l’enfant terrible. O segundo foi realizar um filme de estreia até hoje defendido pelos críticos como o mais relevante da história do cinema: Cidadão Kane.
Esse tema, o da construção da verdade ou, se alguém preferir, da mentira, é constante em sua carreira. De Cidadão Kane a Verdades e mentiras esse tema permeou toda a sua obra. Welles devotou uma boa parte de sua vida a des-
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vendar o papel do cinema nesse processo cognitivo de colocar o espectador em uma posição de questionar os artifícios que possibilitam a construção tanto da verdade como da mentira. Ao falar de Orson Welles é impossível não mencionar Cidadão Kane. Sua obra máxima e importante do ponto de vista estético fornece contribuições para além do universo cinematográfico ao propor uma análise pertinente sobre seu tempo. Com Cidadão Kane, Welles discute a questão da importância da riqueza para o indivíduo e mexe diretamente com os elementos formadores da sociedade capitalista norte-americana, enaltecendo o enriquecimento individual como força motriz da dinâmica social. Inteligentemente, a discussão encaminha-se para a infelicidade do protagonista, que apesar de detentor de poder econômico, e até político, não consegue substituir a maior perda de sua vida, a subtração de sua infância feliz. O filme foi reconhecido como uma obra genial, mas Welles pagou um alto preço pela sua ousadia temática. William Randolph Hearst, famoso plutocrata dono de um poderoso jornal da época, e uma das inspirações para a construção do personagem Kane, investiu de forma sistemática contra o filme e a carreira de Welles.
WELLES UM DEMIURGO
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FILMES DA MOSTRA Sesc | Serviço Social do Comércio
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A mostra organizada pelo Sesc totaliza 11 obras: Cidadão Kane, Soberba, O estranho, A dama de Shanghai, Macbeth, Grilhões do passado, A marca da maldade, O processo, Falstaff – o toque da meia-noite, Verdades e mentiras e Dom Quixote. Quatro blocos temáticos foram criados para organização temática da mostra:
VERDADES E MENTIRAS DE WELLES,
W(ELLES) SHAKESPEARE, WELLES NOIR e WELLES LITERATO. Almeja-se com esses blocos concentrar algumas ideias que permeiam sua obra. Não são blocos nem absolutos nem herméticos, mas sim genéricos, pois as obras que compõem um bloco podem também esbarrar em questões de outros blocos. Outros blocos poderiam ser formados, com outras temáticas, como, por exemplo, um com seus filmes incompletos, mas optamos por esses quatro por julgar que assim organizados a obra wellesiana ganha uma dimensão mais significativa.
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VERD E ME DE W Sesc | Serviço Social do Comércio
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DADES NTIRAS ELLES Verdades e mentiras talvez sejam temas de quase todos os filmes de Orson Welles, mas destacamos três deles – Grilhões do passado, Verdades e mentiras e
Cidadão Kane – como os mais expressivos desse viés de sua obra. Para Welles havia uma inter-relação entre a verdade e a mentira, que funcionou como um ardil de sua concepção cinematográfica, no qual vamos tecer algumas considerações. A base do cinema é o ilusionismo, a arte de criar ilusão por meio de artifícios e truques. O ilusionismo é intrínseco ao cinema. Welles entendeu isso e escolheu o cinema como sua forma de expressão. Nenhuma linguagem artística é tão eficiente em iludir quanto o cinema. Em sua constituição, os filmes de Welles são paradigmáticos e podem ser analisados nessa perspectiva como um embate
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Mr. Faker - Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
VERDADES VERDADES E MENTIRAS MENTIRAS E DE WELLES WELLES DE
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permanente entre o que é verdade e o que é mentira, especialmente como se tece um e outro. Para Welles, tratam-se de uma moeda de duas faces, retroalimentada incessante e ininterruptamente. Se a primeira obra de Welles, Cidadão Kane, pode ser vista como seu manifesto artístico, sua última obra, Verdades e mentiras (F for fake), vislumbra-se
a mentiras. Welles realiza um filme em que tudo é uma grande mentira, em outras palavras, um falso documentário. Para Welles, o interesse humano na arte é o da geração de questões que nos levem à reflexão sobre a vida, e não o de estabelecer a verdade dos fatos.
como seu testamento. As duas obras descortinam o
Para ele, não nos basta saber a verdade sobre Kane, mas
esforço uníssono de conceber a arte e a vida em sua
sim refletir sobre seus caminhos e suas escolhas, o que
dimensão contraditória. Apreende-se Kane como
não revelava e o que tentava esconder, inclusive dele
um poderoso homem que construiu um império, no
mesmo.
entanto, por mais que se esforcem em conhecê-lo isso não é possível, pois sua palavra final, Rosebud, continua até o fim indecifrável para todos, apenas os espectadores sabem tratar-se de uma lembrança nostálgica de sua infância. A verdade para Welles reside no sujeito, e é indivisível, já a mentira, é social, e compartilhada, podendo até ser considerada por todos como uma verdade.
a verdade e a mentira na própria concepção de
mesmo tempo a palavra-síntese para o entendimento mais profundo sobre o homem Charles Foster Kane. Mas também não há uma explicação, um desfecho no qual o diretor tudo explicita sobre Kane. Fica para o espectador juntar as peças dispersas no decorrer de 120 minutos. Mas no fim fica sempre a pergunta: afinal, qual seria o sentido da vida? O que se acompanha em Cidadão Kane são narrativas de pessoas que
VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
Se em Cidadão Kane Welles é indireto, lida com
Rosebud... essa é a palavra enigma, a peça que falta e ao
conviveram com ele, mas podemos afirmar que o ser
montagem do filme, em Verdades e mentiras ele
humano pode ser assim compreendido, apenas através
é direto, torna-se o próprio tema, assume que quer
do outro, da visão do outro, ou outros? Kane é uma
dissertar sobre falsificação, até chegar ao máximo
figura pública notória, um homem típico do mundo
da falsificação: a de um falsificador que cria do zero
mediático nascente. Welles então propõe uma discussão
um período completo de Picasso, isto é, cria obras
interessante sobre os primórdios desse fenômeno onde
inexistentes, e esbarra no nó da questão, o da autoria.
somos apenas uma imagem. Daí o filme propor como
Não à toa, Welles afirma no final do filme não ser
primeira narrativa sobre Kane o documentário sobre
diferente de nenhum outro ser humano, propenso
sua vida pública.
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Mr. Faker — Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
F for Fake 89 min Colorido Legendado
VERDADES E MENTIRAS 1973
Elenco: Orson Welles, Oja Kodar, Joseph Cotten
Em documentário sobre falsificação, Orson Welles foca no notório falsificador de obras de arte Elmyr de Hory e no seu biógrafo, Clifford Irving, também acusado de escrever a fraudulenta autobiografia do famoso magnata Howard Hughes. Durante o enredo, Welles também fala de sua carreira, mencionando o famoso caso da falsa invasão marciana.
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A narrativa de Cidadão Kane se constrói assim, pelos outros. Apenas um objeto, um mero trenó de criança, nos alça abruptamente para uma reflexão sobre os sentimentos de um indivíduo e consequentemente sobre o sentido da vida. O dilema de Kane é o de todos nós: o que seria importante na vida? No somatório final, o que realmente importa e vale a pena? Talvez por isso, devido a essas inevitáveis perguntas o filme inicia e termina com a mesma imagem: uma placa da entrada da mansão de Xanadu indicando “não ultrapasse”. Não é à toa que Welles retorna no final à mesma placa inicial. A placa funciona como um convite à circularidade, uma chamada para que juntemos como espectadores o quebra-cabeça proposto por Welles, pois, afinal, só se chega à repetição da placa quem chegou ao final do filme. Seis depoimentos compõem o quebra-cabeça de Kane. Em cada depoimento Welles nos revela facetas e fases da vida desse cidadão chamado Charles Foster Kane. Mas destaca-se um ardil interessante de Welles nesse quebra-cabeça: a infância de Kane, fase mais importante e onde encontramos a chave para o entendimento da personagem pelas leituras dos diários e
VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
arquivos de seu tutor, Thatcher. A ausência desse testemunho
vivo faz com que tratemos apenas dos vestígios deixados e não
abre a possibilidade de resposta de uma pergunta específica, no caso, o que significaria “rosebud”.
A narrativa de Welles lembra o método utilizado por Sherlock Holmes, o da decifração de mistérios por meio de indícios ou
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Mr. Faker — Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
vestígios. Só que essa tarefa é inglória, pois só há um único vestígio a ser descortinado, o do significado da palavra “rosebud”. Xanadu também pode ser apontado como uma fonte cheia de vestígios, mas sua suntuosidade é tanta, já que representa nada mais nada menos que uma síntese da história da humanidade, com suas réplicas históricas e sua fauna e flora abundantes, que fica difícil achar algo de valor
está mencionado o trenó, o tal objeto cuja
sentimental. Xanadu é a expressão do arrivismo típico
marca é “rosebud” e que queimará em uma
dos capitalistas norte-americanos.
fogueira, apenas como um velho e desimportante
Não é por acaso que no documentário sobre Kane é dito sobre sua Xanadu: “desde as pirâmides, Xanadu é o monumento mais caro que um homem construiu para si [...] um império dentro de um império”; e sobre Kane: “[...] uma poderosa figura de nosso século. O Kubla
brinquedo. Talvez Thatcher pudesse ser o único a conhecer o que seria “rosebud”. Esse é o ardil wellesiano. Outro ardil foi mostrar que no meio daquele acúmulo absurdo de esculturas valiosas havia
Khan dos Estados Unidos, Charles Foster Kane.” Como
um pequeno regalo, de valor sentimental
inventariar o excesso? E nessa profusão de objetos,
inestimável, mas que só tinha valor para Kane,
como então encontrar os tais vestígios que nos levaria
da mesma maneira que o globo de vidro com a
ao significado de rosebud? Não seria como procurar
casa em meio à neve. Qual seria então a verdade
uma agulha no palheiro? Rosebud é apenas uma
e a mentira a ser descoberta sobre Charles Foster
palavra, é etérea, e tal como uma brisa, não tem uma
Kane? A imprensa construiu sua versão, bem
forma, não é papável.
como cada um dos personagens ouvidos no filme.
Mas Welles nos brinda com os seis blocos de depoimentos, que nada mais são que fatos, aparentemente desprovidos de grande importância, são apenas fatos comuns de um homem bem-sucedido. Casamento, herança e trabalho são as informações que os personagens vão descrevendo ao longo do filme. Nos documentos do tutor Thatcher possivelmente Sesc | Serviço Social do Comércio
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Welles expõe todas elas, mas delega apenas ao espectador a montagem dessa ideia de quem era essencialmente Kane. Somente o espectador reúne todos os elementos e pode juntar todas as peças desse tabuleiro que foi a vida de Kane. Até o segredo “rosebud”, jamais revelado ou sabido nem pelos personagens, está circunscrito aos espectadores e a mais ninguém.
Citizen Kane 119 min P&B Legendado
CIDADÃO KANE
1941
Elenco: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Ray Collins
Um grupo de repórteres tenta decifrar a última palavra dita pelo magnata do jornalismo Charles Foster Kane. Diversas notícias sobre a vida de Kane começam a ser publicadas, desde sua
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VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
infância pobre até a construção de seu império.
Mr. Faker — Orson Welles e a autoria na indústria do cinema
VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
Estruturalmente, Cidadão Kane surpreende até hoje com sua narrativa fragmentada advinda do conjunto de várias memórias. Os flashbacks que desfilam na tela
vão desvendando o mistério do filme e reconstruindo a temporalidade da história. A fotografia de Gregg Tolland embasa essa audácia narrativa com o uso constante da profundidade de campo, que mantém o foco tanto no primeiro plano quanto no plano mais distanciado de uma mesma cena. Uma das sequências mais impressionantes no uso dessa técnica acontece quando o tutor dá a notícia aos pais de Kane sobre a herança milionária e que ele precisará estudar em um dos melhores colégios do mundo. Welles constrói um plano-sequência em que o tutor conversa com os pais de Kane dentro da casa, enquanto ele brinca na neve
no conceito fotográfico poupa a filmagem de diversos planos de campo e contracampo. Há inclusive uma sequência em que Welles cria seis pequenos planos que sintetizam a falência do primeiro casamento de Kane. Welles consegue representar meses em apenas alguns poucos segundos (ver BAZIN, 2014).
com seu trenó rosebud ao fundo, todos e tudo em foco.
Mas há em Cidadão Kane uma grande mentira a
Essa sequência é uma das mais importantes do filme ao
ser desmascarada. Todos procuram resolver o
mostrar que o destino de Kane estava sendo decidido à
que seria o enigmático “rosebud”, proferido então
sua revelia, assim como sua infelicidade. A subtração
como sua derradeira palavra. Mas a cena de sua
da infância de Kane é fundamental; jamais será
morte é bem explícita e as imagens não deixam
recuperada por ele. Welles tece uma síntese da falência
margens para dúvidas. Kane está sozinho na
moral norte-americana: Kane vira uma pequena peça
hora de sua morte e, consequentemente, quando
da engrenagem capitalista, milionário, mas escravo
proferiu seu “rosebud”. Sendo assim, quem teria
do sistema, tanto quanto um operário pobre de uma
escutado a tal palavra? Vemos claramente a
indústria.
entrada da enfermeira em seu quarto quando ele
A narrativa de Cidadão Kane já impõe sua edição, condicionada pelas próprias memórias das personagens do filme. Apesar de o filme ter muitas cenas e personagens, há momentos de grande economia de planos, pois a profundidade de câmera utilizada Sesc | Serviço Social do Comércio
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já está morto. Certamente, mais uma vez Welles nos prega uma de suas tradicionais mentiras e nos mostra sua faceta fake. Não podemos esquecer que a palavra “rosebud” é dita em um plano-detalhe da sua boca, isto é, diretamente
para o espectador. Mas mesmo assim fica a pergunta: será que seu objetivo era mostrar a todos que como artista podia se dar o privilégio da invenção e subverter a noção de verdade e mentira? Tudo isso aqui comentado e refletido é suficiente para colocar Cidadão Kane ainda hoje como um marco indiscutível da história do cinema. Mesmo depois de mais de 70 anos, o filme continua tendo seu reconhecimento e ratifica o gênio Welles: sua inteligência, seu caráter rebelde, inconformista e sua coragem estética em utilizar plenamente os recursos narrativos e de linguagem disponíveis no início dos anos 1940. O legado de Shakespeare enfim tinha um herdeiro à altura, e o cinema, alguém capaz de obras significativas na carreira
Pena Hollywood não ter reconhecido em sua plenitude
de Welles. É um tratado sobre o
toda a explosão artística e criativa de Welles.
vazio das fortunas nascidas do dia
A estrutura narrativa de Grilhões do passado muito se aproxima de Cidadão Kane. O filme começa pelo fim, com a morte de Arkadin, e a partir de então o espectador mergulha em diversos flashbacks que vão esclarecendo a história sobre a vida do protagonista. A versão exibida na mostra é a europeia, inteiramente montada por Welles. Apesar de não ser muito conhecida pela maioria do público, Grilhões do passado se situa como uma das
para noite. Arkadin é um desses milionários, porém não se reconhece mais em meio as circunstâncias suspeitas do seu enriquecimento. Mais uma vez, Welles investe contra a ambição humana. Há no filme um depoimento que muito diz sobre essa caracterização do personagem: “Arkadin, um homem típico da era de decadência e crise.”
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VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
reinventá-lo sem ter que negar sua vocação narrativa.
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Mr. Arkadin 93 min P&B Legendado
GRILHÕES DO PASSADO 1955
Elenco: Orson Welles, Patricia Medina, Michael Redgrave
O contrabandista Guy Van Stratten deixa uma prisão italiana se lembrando das palavras de um moribundo sobre a riqueza e o mistério de Gregory Arkadin. Guy se aproxima da amada filha de Arkadin a fim de investigar a vida do homem misterioso. Incomodado com a presença do contrabandista, Arkadin declara ter amnésia sobre o que se passou com ele antes de 1927, levando Guy a investigar seu desconhecido passado.
Como de hábito, em seus filmes Welles abusa de ângulos inusitados e distorções óticas, de edição de imagem célere e de locações com imensos prédios históricos. Nota-se um acentuado uso de contraplongée (câmera baixa) nos planos de Grilhões do passado. Esse tipo de enquadramento era muito comum em seus filmes, desde Cidadão Kane. Essas escolhas expressam a visão barroca de Welles, as insinuantes ênfases de sua concepção artística. Arkadin parece sempre deformado, um monstrengo agressivo da era capitalista, um arquétipo de um homem inescrupuloso. Outro aspecto a ser relevado é o do uso das máscaras inspiradas nas figuras de Goya, no mundo das sombras. Para Welles, nem as máscaras conseguiam esconder a aberração da decadência provida do dinheiro fácil e vil. Welles flerta então com o barroco espanhol, com Tal como em Cidadão Kane, Grilhões do cada flashback compõe pequenos pedaços
em imagens e atitudes, a do ouro que camufla o abjeto moral.
VERDADES E MENTIRAS DE WELLES
passado se constrói como um quebra-cabeças,
sua faceta mais exagerada, a da riqueza que transborda
explicativos sobre o passado de Arkadin.
Mas Welles tem gosto em ressalvar o aspecto humano,
Lentamente, uma série de personagens passa
por mais vulnerável e cruel que possa parecer. Em
pela tela, cada qual contando uma passagem
Arkadin há uma cena estupenda em que o detetive se
da vida do protagonista. O curioso é a escolha
depara com um treinador de pulgas, que declara: “Os
de Welles de ser o próprio Arkadin, alegando
vigaristas não são as piores pessoas do mundo. São só
sofrer de amnésia, o contratante do serviço
as mais estúpidas. São as pulgas do mundo.” Welles
de detetive para descobrir seu passado, em
assim esmiúça e redimensiona o papel que cada
especial sobre a origem de sua riqueza.
indivíduo ocupa socialmente.
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Não se pode dissociar a imagem artística de Welles da de Shakespeare, tão profunda foi a influência exercida pelo dramaturgo inglês na formação humana e artística do cineasta norteamericano. Em especial o gosto pela ascensão e pela lenta decadência de uma grande figura, seja um empresário, um rei ou um general.
Interessante como Welles escolhe realizar um filme a partir do
Dos três filmes inspirados nas obras de
personagem Falstaff – o toque da meia-noite, que aparece em
Shakespeare, dois estão inseridos na mostra do
algumas obras de Shakespeare, um homem simples e dedicado
Sesc: Falstaff – o toque da meia-noite e Macbeth
aos prazeres mundanos e amigo desde a adolescência do futuro
(Othello é o terceiro filme). Estilisticamente,
rei Henrique V, mas que é desprezado por ele quando assume o
são obras que diferem entre si. Falstaff se
trono inglês.
caracteriza como uma comédia burlesca e melancólica, e Macbeth como um drama de tom expressionista ditado pela fotografia marcadamente contrastada e pela atuação sinistra de Welles na pele de Macbeth.
Um grande trunfo do filme de Welles é resgatar a história de um rei pelo viés de um personagem simplório, preocupado tão somente em ser feliz na vida, dedicado em fazer isso na companhia dos amigos que tanto prezava. Ao pensar nesse aspecto, Welles retorna ao tema de Cidadão Kane: o sequestro da essência vital do ser humano, a vivência da felicidade, da celebração da vida. Enquanto, em Kane, da criança é subtraída sua infância para ser “alguém na vida”, Falstaff – o toque da
meia-noite se entrega à morte ao descobrir que a amizade não se consubstancia em um valor universal. Ele se sente profundamente traído pelo então rei Henrique V.
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Traição e confiança, como bem se sabe, são temas recorrentes em Shakespeare, mas que fascinavam também Welles. Macbeth é torturado pela sua consciência de ter traído e assassinado o rei. Welles teve grandes dificuldades nas filmagens, contou com poucos recursos, concentrou a história no
abundante em traições, ambições, intrigas e
conflito do protagonista, interpretado por ele
assassinatos. Rostos e espaços encobertos por
mesmo, investindo no aspecto mais soturno
sombras, maquiagens e figurinos pesados dão
da história. Economizou ao máximo em
a tônica do filme.
cenografia, usou e abusou das fumaças que escondiam o segundo plano e criavam uma atmosfera psicológica mais pesada.
Em Macbeth, afora todo o aspecto inventivo que Welles empreende na concepção fotográfica expressionista do filme, há ainda uma
Welles despeja em sua versão de Macbeth uma
abordagem textual respeitosa à poética de
forte influência do cinema expressionista
Shakespeare. Isso acontece quando o próprio
alemão, um apelo imagético para dar sentido
Welles e também outros atores pronunciam
e corpo à sua obra. A imagem ganha estatuto
cada métrica de forma a preservar a
de texto e realça o conteúdo sinistro da trama,
essência shakespeariana, um esforço em não
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Falstaff 98 min P&B Legendado
FALSTAFF – O TOQUE DA MEIA-NOITE 1965
Elenco: Orson Welles, Jeanne Moreau, Margareth Rutherford
O decadente Sir John Falstaff tem uma vida desregrada junto com seu amigo, o herdeiro do trono da Inglaterra, príncipe Hal (futuro rei Henrique V). A amizade entre os dois é desaprovada pelo rei Henrique IV, que está próximo de seu leito de morte. O filme é inspirado na compilação de trechos da obra de Shakespeare, Henrique IV.
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89 min P&B Legendado
MACBETH
1948
Elenco: Orson Welles, Jeanette Nolan, Dan O’Herlihy, Rody McDowall
Macbeth é um nobre e ambicioso escocês. Três bruxas profetizam sua ascensão a duque e em seguida rei da Escócia. Quando se torna duque, crê na profecia e arma o assassinato do rei. Logo, torna-se cego pelo poder, o que o leva ao declínio.
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macular algo de precioso do original, como um reconhecimento valorativo de Welles, uma espécie de culto a uma beleza única e vívida na obra do mestre e que não deve ser modificada. Se em Macbeth Welles preferiu um rigor textual e formal, já em Falstaff – o toque da meia-noite optou por um viés estético mais prosaico. Há uma acentuada teatralidade em Macbeth, desde os cenários até a interpretação dos atores. Há em Falstaff – o toque da meia-noite uma procura por uma narrativa nitidamente cinematográfica, mais centrada na movimentação livre da câmera que em Macbeth, em que a câmera necessita explorar a interioridade dos personagens. Falstaff – o toque da meia-noite se afigura como um ser livre, bonachão, devotado ao prazer; um homem do povo. Welles sabiamente brinca com essa leveza do personagem.
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WELLES noir
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WELLES 42
WELLE Três filmes noir fazem parte da mostra do Sesc: O estranho, A marca da maldade e A dama de Shanghai. Welles usa o noir na exploração da dimensão terrena, no cotidiano dos pequenos poderes, de como eles são exercidos e vivenciados em um universo próximo ao submundo. Em O estranho, Welles realiza uma obra muito bem acabada, uma das mais convencionais de sua carreira, um típico triller de espionagem, com traços marcantes de filme noir, em especial na concepção fotográfica, repleta de nuances de sombras e muitas cenas filmadas à noite. Realizado em 1946, logo depois da Segunda Guerra Mundial, no filme Welles interpreta um nazista que se refugia como professor em uma pequena cidade norteamericana. Para ajudar em seu disfarce, fica noivo e depois se casa com a filha de um juiz local. Mas a chegada de outro membro do partido nazista atrai a atenção das autoridades norte-americanas, que descobrem sua presença na pequena cidade. Apesar de O estranho ser um bom filme de Welles, não pode ser considerado um dos mais significativos de sua filmografia, já que não está entre os mais autorais. O fato de ter sido filmado no pós-guerra influenciou Welles a fazer um filme visivelmente contra o nazismo.
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Já A marca da maldade assinala outra época, de um Welles mais ousado. Logo no início do filme isso fica claro, com um complexo plano-sequência inicial de um pouco mais de três minutos, em um grande estúdio com muita movimentação de personagens, carros e carroceiros, assim como de inúmeros figurantes. Tudo isso exigiu uma complexa sincronia de todos os elementos em cena, com um resultado cinematográfico dos mais felizes de sua carreira.
bar no lado mexicano. Welles não se esquiva das contradições, trabalha nos seus meandros e nos
A trama de A marca da maldade acontece na fronteira México-Estados Unidos. É estabelecida uma dualidade entre um país rico e um pobre, que perdura até o final do filme. Mas Welles brinca com a humanidade dos personagens, e se a fronteira é um bom lugar para dividir, também o é para misturar e confundir, Welles sabe muito bem se utilizar dessas contradições.
mostra a crueza das ruas. A Universal Pictures montou o filme a seu belprazer, o que irritou Welles. A versão da mostra do Sesc é uma remontagem que buscou atender as reivindicações que o diretor elencou em um memorando de 58 páginas. Apesar de conter possíveis mutilações, fato muito comum em toda a
Ele movimenta sua câmera de um lado a outro, deixa
sua obra, a marca de Welles se agiganta e se afirma.
clara a existência de um conflito, mas também há as
A câmera nervosa, impaciente, está lá, os ângulos
aproximações. O íntegro investigador de narcóticos do
inusitados e baixos que mostram a autoridade do
México, Sr. Vargas (Charlton Heston), é casado com uma
poderoso capitão Quinlan também. O que salva o
norte-americana (Janet Leigh), enquanto o desonesto
filme é que Welles filma como poucos e sabe situar
chefe de polícia Hank Quinlan (Orson Welles) flerta com
a câmera e dirigir seus atores, e usa as sombras de
uma mexicana (Marlene Dietrich), dona de um suspeito
forma precisa.
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The Stranger 95 min P&B Legendado
O ESTRANHO
1946
Elenco: Orson Welles, Edward G. Robinson, Loretta Young, Philip Merivale
Um investigador de crimes de guerra viaja aos Estados Unidos para encontrar um agente nazista, que está usando uma identidade falsa. Ele passa a desconfiar do professor universitário da cidade onde continua a investigação, o qual está noivo da filha de um juiz da Suprema Corte.
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Touch of Evil 95 min P&B Legendado
A MARCA DA MALDADE 1958
Elenco: Orson Welles, Charlton Heston, Janet Leigh
O policial do departamento de narcóticos do México Ramon Miguel Vargas interrompe abruptamente sua lua de mel, em uma cidade na fronteira do México com os Estados Unidos, quando um empreiteiro norteamericano é assassinado com uma bomba colocada em seu carro. Vargas necessita investigar a fundo o caso, trabalhando com o corrupto capitão da polícia norteamericana Hank Quinlan.
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A construção do personagem de Welles, o capitão Quinlan, é inteiramente calcada nos personagens clássicos dos filmes policiais norte-americanos: rude, inescrupuloso e assustador. Quinlan antes de tudo é uma autoridade que abusa de seu poder, que negocia com criminosos e, em geral, é espúrio. Welles não resiste e cria Vargas como contraponto: ilibado, íntegro e justo. Estabelece-se uma dualidade entre os personagens, mas
não conseguimos obter uma visão completa do
que pode ser interpretada historicamente como um acerto
quadro. As sombras, em alguns casos, trabalham a
de contas entre México e Estados Unidos. Não é à toa que
dupla personalidade dos personagens, algo que não
a fronteira foi o lugar escolhido para a trama, em razão
nos é revelado de pronto, suas contradições.
da hipótese de roubo das terras mexicanas pelo governo norte-americano e das rusgas entre os dois países.
Em A dama de Shanghai há uma das estruturas fílmicas mais convencionais da carreira de Welles,
Mas o contraste no filme também é fotográfico. A bela
mesmo se admitindo que o enredo não fosse um
fotografia do experiente Russell Metty abusa do uso das
dos mais simples. De qualquer forma o diretor
sombras como integrante enriquecedor da narrativa de
guarda para o final uma impactante cena, uma
Welles. Às vezes o uso das sombras serve apenas como
das mais bem realizadas na história do cinema,
personificação, como no início do filme, quando Vargas
a do confronto na sala dos espelhos entre os
entra no México para fazer a investigação e vemos duas
personagens principais. O filme consegue reunir
sombras não identificáveis atrás dele. Mas como é regra
romance, drama, suspense, policial, tribunal e
em todo filme noir, é no uso das sombras contrastadas
comédia, que, embalados pelo estilo noir, o qual
que a obra se constitui, como nos rostos encobertos que
Welles dominava como poucos, prende a atenção
revelam as personalidades nebulosas, ou nas cenas que
do espectador até o final da trama.
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É a partir de um crime que tudo se desenrola e que a problematização social está premente. A cena de um crime, um assassinato mais especificamente, age como detonador, trazendo à tona valores morais que estavam escondidos nos personagens. Segundo o pesquisador Fernando Mascarello (2008, p. 181-182), dentre os elementos narrativos do filme noir [...] cumpre destacar a complexidade das tramas e o uso de flashback (concorrendo para desorientar o espectador), além da narração em over do protagonista masculino. Estilisticamente, sobressaem a iluminação low-key (com profusão de sombras), o emprego de grande-angulares (deformadoras da perspectiva) e o corte do big close-up para o plano geral em plongée (este o enquadramento noir por excelência). E ainda a série de motivos iconográficos como espelhos, janelas (o quadro dentro do quadro), escadas, relógios etc., além, é claro,
Sedutora, misteriosa, carente, ela encanta o protagonista e a nós, espectadores. Na trama, é casada com um velho milionário, que destoa de sua beleza e juventude. Novamente Welles volta a um de seus temas preferidos, o da ambição, para narrar a ascensão e queda de indivíduos gananciosos.
da ambientação na cidade à noite (noite americana, em geral),
A famosa cena na casa dos espelhos configura-se
em ruas escuras e desertas.
uma das mais significativas e um dos finais mais
Um dos elementos do filme noir também presente em
fascinantes já feitos no cinema. Os reflexos infinitos
A dama de Shanghai é a femme fatale, interpretada com
dos personagens suscitam muitas interpretações,
contenção por Rita Hayworth, no auge de sua beleza.
uma delas revela sobre a multiplicidade de imagens
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The Lady from Shanghai 87 min P&B Legendado
A DAMA DE SHANGHAI 1947
Elenco: Rita Hayworth, Orson Welles, Everett Sloane, Glenn Andres
Michael O’Hara é um marinheiro que ajuda a bela senhora Bannister em uma tentativa de assalto no parque. No dia seguinte, O’Hara é convidado por ela e seu marido para tripular uma viagem de iate que farão. Ao aceitar o convite, O’Hara acaba se envolvendo em uma trama de intrigas e assassinato.
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que cada indivíduo constrói para si no convívio social. Ao promover diversos disparos e na consequente quebra de várias das imagens repetidas, Welles nos incita a pensar na necessidade de destruição dessas construções imagéticas artificiais para que sobressaia algo de essencial no humano. Ao optar pela morte do marido rico e traído e da mulher adúltera, soa como se eles nada mais fossem que meras imagens, manipuladores de pessoas ingênuas; caso de Michael, único sobrevivente da sala dos espelhos. Há uma influência visível do expressionismo cinematográfico alemão na construção de um filme noir. Evidentemente, os diversos técnicos em atuação no cinema de Hollywood vieram exilados da Alemanha nazista, não só diretores, mas também fotógrafos, roteirista, entre outros. Essa semelhança aconteceu visualmente, as imagens eram repletas de contrastes, os planos distorcidos e em especial a sombra como artifício largamente utilizado e integrado ao filme.
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Não podemos esquecer a clara homenagem que Welles presta ao expressionismo em A dama de Shanghai. Não é à toa que realiza sua última e célebre cena em um parque de diversões desativado. De O gabinete do Dr. Caligari a O homem que ri, passando por O gabinete das figuras de cera, as feiras e os parques de diversão são aspectos indissociáveis aos enredos e cenário expressionista, e Welles, como fã confesso que era, escolheu esse cenário abandonado e sinistro como um tributo para encerrar seu filme.
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Eu, baderneiro, me tornei cavaleiro, malandramente, pelos caminhos. Meu companheiro tá armado até os dentes: já não há mais moinhos como os de antigamente. “O cavaleiro e os moinhos”, João Bosco e Aldir Blanc
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A literatura marcou a vida de Orson Welles. Não foi casual o fato de alguns de seus projetos se apoiarem em adaptações literárias. Também não deve ser considerado desprezível que Welles tenha cogitado O coração da selva, de Joseph Conrad, para ser seu primeiro filme quando assinou contrato com a produtora RKO. Na mostra, Soberba, O processo e Dom Quixote são os filmes realizados a partir de adaptações literárias. Os três filmes apresentam histórias bem diversas. Enquanto O processo foi um dos poucos filmes que Orson Welles realizou com total controle do processo criativo, mesmo tendo alguns problemas orçamentários, Dom Quixote virou uma saga de 14 anos que ele não conseguiu finalizar. Em contrapartida Soberba, adaptado do livro de Booth Tarkington, realizado logo após Cidadão Kane, foi todo reeditado pelos produtores, que esquartejaram a obra de Welles. Mas a potência criativa de Welles era tal que a obra resiste às amputações sofridas. Devido à intromissão da produtora na edição final de Soberba, aproveitando a estada de Welles no Brasil, este pode ser considerado um dos filmes mais irregulares de sua carreira. Nota-se que o roteiro apresenta oscilações questionáveis. O filme inicia com uma visão da família Ambersson do ponto de vista dos vizinhos, que Welles utiliza sabiamente para retratar a infância de George, mas, aos poucos, a história vai se interiorizando e seu ponto de vista fica a cargo do próprio George. Enquanto em Cidadão Kane conhecemos a vida dele pelas narrativas alheias, em Soberba ela se multifaceta e retira a força narrativa da obra. Welles inclui ainda na narrativa uma voz over, feita por ele mesmo, que confere um humor cáustico à narrativa. Pena que ele use essa voz predominantemente
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no início e no fim do filme, pois ela poderia dar mais unidade à narrativa como um todo. Aos poucos, Welles nos conta uma história típica do capitalismo recente norte-americano, de ascensão e queda econômica e moral de uma família, o estabelecimento de fortunas por uma geração e sua consequente destruição pela geração subsequente. Welles se aproveita do romance de Booth Tarkington para fazer o que melhor sabia fazer: desconstruir a sociedade norte-americana, seu arrivismo, sua empáfia e a supremacia dos valores do enriquecimento colocados à frente da realização humana pela felicidade.
A interferência nefasta da produtora RKO na edição e os problemas de imprecisão narrativa retiraram a força do filme. Por ser a obra posterior a Cidadão Kane, a comparação foi inevitável. Enquanto em Cidadão Kane a narrativa está imbricada no artifício habilmente montado por Welles sobre o desvendar dos mistérios em torno das circunstâncias de uma morte e da enigmática palavra rosebud – fundamental para a compreensão da história de Charles Foster Kane e
Assim como Cidadão Kane, Soberba narra
desencadeadora dos flashbacks explicativos do filme –,
também um processo de decrepitude, mas só
em Soberba, a profusão de narrativas esvazia a
que não centrada apenas em um indivíduo
profundidade do enredo. A escolha de três formatos
(Kane), mas sim de uma família, os Ambersson.
narrativos (voz over, visão dos vizinhos e da família)
Apesar de centrar mais em um personagem, o
torna-se um caminho convencional, mas retira a
mimado George, há um foco na decadência da
potência estética da obra, pois dispersa a atenção
família como um todo. George quer viver como
sobre qual personagem se deve realmente seguir e qual
um nobre, avesso ao trabalho e crítico com
concentrará e aprofundará toda a história.
relação ao personagem Morgan, interpretado austeramente por Joseph Cotten, inventor e pioneiro na indústria automobilística, um típico empreendedor capitalista. Essencialmente, há um visível paralelo entre Kane e George Ambersson, ambos são personagens talhados à infelicidade e ao fracasso por não conseguirem ver o mundo fora de sua perspectiva. Sesc | Serviço Social do Comércio
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Por sua vez, em O processo, Welles nos oferta uma adaptação primorosa, preservando o traço barroco de sua filmografia, sua influência do expressionismo – ao privilegiar a alternância de cenários claustrofóbicos, que impõe aos indivíduos sensações de sufocamento em um primeiro momento, e de aviltamento, no segundo. Também inspirado no expressionismo, Welles nos envolve ao fazer K. passar consecutivamente em
The Magnificent Ambersons 88 min P&B Legendado
SOBERBA
1942
Elenco: Joseph Cotten, Dolores Costello, Anne Baxter, Tim Holt, Agnes Moorehead
O jovem Eugene Morgan quer se casar com Isabel Amberson, herdeira de uma família muito rica. Após alguns aborrecimentos, Isabel acaba se casando com Wilbur Minafer. Passados alguns anos, Wilbur morre, deixando Isabel viúva e com um filho. Eugene reaparece, mas o filho e a irmã de Isabel dificultarão sua reaproximação.
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Le procès 107 min P&B Legendado
O PROCESSO
1962
Elenco: Anthony Perkins, Romy Schneider, Jeanne Moreau, Orson Welles
Adaptação do livro homônimo de Franz Kafka, o filme traz a história de Josef K., que acorda de manhã com policiais dentro de seu quarto. Eles lhe dizem que ele é acusado de um crime, o qual ele não cometeu, mas nada lhe é explicado. Em vez de descobrir a razão da acusação e declarar inocência, ele tenta correr por fora do sistema judicial. Mas como em tudo o que faz ele não obtém êxito, K. se vê preso em um pesadelo tipicamente kafkaniano.
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portas, corredores e escadas que criam uma atmosfera labiríntica, com movimentos de câmera bruscos e rápidos, de forma a expor sua saga vertiginosa, que rapidamente passa a ser a do espectador também. A fotografia expressionista de Edmond Richard trabalha com eficácia tanto a alma perturbada de K. quanto todo o clima opressor que dá forma ao filme. Os objetos de cena são precisos em comunicar o poder exercido por meio de uma burocracia, impessoal, que desordena o espaço e o envolve com milhares de
pertence a uma sociedade culpada, colabora com ela” (ZUNZUNEGUI, 2010, p. 244-245).
papéis que sufocam os indivíduos. Welles recria o texto
O processo reafirma a postura crítica de Welles
expressionista de Kafka como uma fábula do absurdo
perante o mundo tal como ele é organizado pelos
do mundo moderno, mas o faz para nosso desespero
poderosos de toda a espécie, além de confirmar
como espectadores, tal adentrássemos em um pesadelo.
sua fama de enfant terrible, apesar de, nessa
O jazz utilizado na trilha pontua, com seu improviso,
época, estar chegando aos 50 anos de idade. Seu
a perturbação emocional de K. e o ambiente paranoico
inconformismo é gritante a cada filme realizado,
de uma sociedade excessivamente controladora.
e o passar do tempo foi depurando seu humor,
Anthony Perkins, com seu estereótipo de homem
cada vez mais cáustico e refinado.
comum e inocente, incorpora um perfeito Joseph K., esse personagem que caminha perdido pelos labirintos promovidos por policiais, burocratas, advogados, funcionários da justiça e mulheres sedutoras, tentando sobreviver nesse caos montado por Welles, em que os espaços se misturam de forma a manter a sensação de aprisionamento de K. Em uma entrevista para promover o filme, Welles fala da sua visão crítica acerca do personagem K.: “É um pequeno burocrata. O considero culpado [...] Pertence a algo que representa o mal e ao mesmo tempo, faz parte dele. Não é culpado pelo que o acusam, mas é culpado:
Nesse contexto, Dom Quixote é um capítulo à parte. Sintetiza bem a tenacidade de Welles, sua saudável teimosia artística em lutar pelo que acreditava. Travou batalhas quixotescas para tentar finalizar esse que era o seu maior projeto e sonho: filmar a obra que julgava ser a máxima da literatura mundial, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. O que Welles nos apresenta é uma proposta de atualização da obra de Cervantes, um diálogo entre uma literatura escrita na época medieval com a sociedade espanhola dos anos 1950 do
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século 20, que, não por acaso, convivia com a ditadura franquista. Essa é uma atitude totalmente wellesiana, a de subverter uma obra original para criar outra, capaz de se defrontar com sua época. Welles coloca Dom Quixote como alvo da nascente indústria cultural, ao mesmo tempo em que expõe Sancho Pança ao espetaculoso show das corridas dos touros. Assim, Welles consegue construir um discurso crítico aos absurdos de todas as épocas e de todos os tipos. É bela a cena de Dom Quixote entrando de armadura com seu Rocinante pelas ruas populosas e urbanas de Sevilha, com seus modernos automóveis, quando de repente se depara com uma imagem dele próprio azulejado no beiral de uma casa. Welles promove então o encontro temporal do personagem, um do passado e outro do presente, um cristalizado em uma parede, outro vivo, caminhando sob aplausos da população nas ruas e janelas. Logo a seguir, Welles aparece filmando os dois cavaleiros: enquanto Sancho Pança se diverte com as filmagens, Dom Quixote faz um discurso melancólico, argumentando que as câmeras eram meios demoníacos: “felizes os séculos que tinham esses instrumentos detestáveis [...].” E completava dizendo que essas máquinas eram usadas para transformar verdades em mentiras e mentiras em verdades. Enfim, nada mais wellesiano. Deve-se sempre levar em consideração o fato de o Dom Quixote de Welles não ter sido finalizado pelo próprio, apesar de filmado tenazmente de 1955 a 1971, se equivalendo à própria saga insana de Quixote. Foram anos de lutas realmente inglórias e quixotescas para Welles. A montagem realizada em 1992 por Jesús Franco, segundo apontamentos de Welles, infelizmente não considerou cenas importantes ainda hoje perdidas. É necessário e importante se ponderar em relação ao Dom Quixote de Welles que, por mais que seja uma obra inacabada, seu Dom Quixote tem seu espírito rebelde e transgressor. Há um marcante transbordamento da personalidade wellesiana, com a presença dele como diretor no próprio filme. Há inclusive uma cena inusitada de encontro entre Welles e Sancho Pança (criador e criatura).
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Don Quijote 116 min P&B Legendado
DOM QUIXOTE
1992
Elenco: Francisco Reiguera, Akim Tamiroff, Orson Welles
Após a leitura de diversas histórias épicas sobre grandes cavaleiros, Dom Quixote e seu servente Sancho Pança decidem desbravar as estradas da Espanha com o objetivo de proteger os mais fracos e realizar bons feitos. Adaptado da clássica obra de Miguel de Cervantes, o filme foi finalizado por Jesús Franco e Patxi Irigoyen, após a morte de Orson Welles, em 1985.
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FILMog rafia Sesc | Serviço Social do Comércio
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Cidadão Kane, 1941 Soberba, 1942 Jornada do pavor, 1943 O estranho, 1946 A dama de Shanghai, 1947 Macbeth, 1948 Othelo, 1952 Grilhões do passado, 1955 Este é Orson Welles, 1955 A marca da maldade, 1958 O processo, 1962 Falstaff – o toque da meia-noite, 1965 Verdades e mentiras, 1973 Dom Quixote, 1992 É tudo verdade, 1993 Too much Johnson, 1938 Os corações da idade, 1934
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refer encias Sesc | Serviço Social do Comércio
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Extra! Extra!
Morre Charles F. Kane!
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Charles Foster Kane, dono de uma cadeia de jornais e um dos homens mais ricos do mundo, vive solitário em seu castelo Xanadu. Antes de morrer, pronuncia sua última palavra: “Rosebud.”
O que significa tudo isso? Um cinejornal apresenta as passagens da vida do milionário morto Charles Foster Kane logo no início de Cidadão Kane. Jerry Thompson é o jornalista designado para investigar a vida de Kane, a fim de revelar o mistério por trás de rosebud. São os relatos dos velhos conhecidos de Kane que levam o espectador a conhecer a história do empresário, sua infância, sua ascensão meteórica, a vida de acumulador e a decadência. Apesar de todos os esforços para desmentir o boato, Welles não conseguiu desvencilhar o filme da biografia de William Randolph Hearst. Magnata de grande poder da imprensa norte-americana, Hearst moveu uma campanha sem tréguas contra a fita, utilizando suas empresas jornalísticas e radiofônicas, porque, segundo ele, a história o difamava. Outros estúdios, diante da pressão de Hearst, extraoficialmente ofereceram um milhão de dólares para que o filme fosse incinerado. A RKO recusou. Ao ver o filme, observa-se os traços em comum com a vida do próprio Welles, que, de sua súbita orfandade, adoção e ascensão no mundo das celebridades, conheceu o êxtase da glória e do reconhecimento artístico, para logo a seguir ter problemas com a recusa de vários de seus projetos pelos produtores de Hollywood e viver a amargura da decadência. Dessa maneira, Cidadão Kane pode até ser entendido hoje, ironicamente, como uma autobiografia prematura do próprio Welles.
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anexo O filme também propõe reflexões atualíssimas: a questão do poder e a corrupção, mas também de sua derrocada; a imprensa sensacionalista e seus pontos de vista em defesa de um conservadorismo feroz etc. François Truffaut (1989) afirma que as pessoas gostam [...] realmente do filme porque ele é total: psicológico, social, poético, dramático, barroco. É um hino à juventude e uma meditação sobre a velhice. Um ensaio sobre a vaidade da ambição humana e ao mesmo tempo um poema sobre a decrepitude. Por trás de tudo isso, uma reflexão sobre o comportamento dos seres excepcionais, gênios ou monstros, monstruosos gênios[...] Os frágeis gigantes que estão no centro de suas fábulas cruéis descobrem que não se pode conservar nada, nem a juventude, nem o poder, nem o amor. Borges valorizou os labirintos wellesianos: Essa descoberta da alma secreta do homem através das obras que construiu, das palavras que pronunciou, dos destinos que destruiu, essa rapsódia de cenas heterogêneas, sem ordem cronológica, esse caos aparente, tudo isso tem algo de genial, no sentido mais sombrio e mais alemão da palavra (BORGES apud BEYLIE, 1991). Beylie (1991) acrescenta o que Cidadão Kane tem como base moral que “tudo é vaidade em um mundo dominado pelo lucro. Os verdadeiros valores não se podem comprar e ‘rosebud’ é um símbolo da riqueza interior, ligada à pureza da infância”.
Rosebud.
Kane pronuncia essa palavra ao morrer, levando a crer que ela envolve um mistério. Ele tem nas mãos uma bola de vidro, com o cenário de uma paisagem invernal, e flocos de neve caem sobre uma cabana. A bola de vidro faz três aparições: no início do filme durante a morte de Kane; na penteadeira de Susan no meio do filme; e após a destruição do quarto, quando Susan o abandona, Kane se acalma segurando-a. A paisagem idílica do interior da bola de vidro desperta as lembranças dos invernos de sua infância. A visão da neve caindo sobre a cabana o remete às brincadeiras com o trenó. O carinho com que sua mãe recolhe o trenó, simbolicamente, pode ser identificado com a perda do amor materno e da inocência da infância. As perdas de Kane vão se acumulando no percurso de sua vida, perde o trenó, perde a mãe, perde as mulheres, perde os amigos... As perdas aumentam seu instinto acumuSesc | Serviço Social do Comércio
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lador de colecionador: animais, obras de arte, dinheiro, empresas, coisas sobre as quais ele consegue exercer o poder. Em certa altura do filme, o próprio Kane afirma: “Eu poderia ter sido um grande homem se não tivesse enriquecido.” Welles atribuia o enigma Rosebud ao roteirista H. J. Mankiewicz. Para o roteirista, rosebud era como Hearst se referia ao clitóris de sua amante, a atriz Marion Davies. Outros críticos afirmam que foi o ator Joseph Cotten o autor do mistério. Não se pode esquecer que Welles já tinha utilizado a palavra rosebush (roseira, em inglês) na dramatização radiofônica sobre Basil Zaharoff, anos antes das gravações de Cidadão Kane. Nos anos 1970, o diretor Joseph L. Mankiewicz, irmão mais novo de H. J. Mankiewicz, revelou ao crítico Andrew Sarris que rosebud era a marca de uma bicicleta que roubaram de seu irmão. Traumatizado com fato, e sempre que se aborrecia ou bebia, resmungava essa palavra. Xanadu. A região de veraneio tão sonhada pelo imperador mongol Kublai Khan, que reinou durante os anos de 1260 a 1294, hoje é um departamento autônomo da China. O escritor inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) dedicou um poema a esse local idílico cuja primeira estrofe (“em Xanadu, Kublai Khan ergueu um faustoso palácio...”) é citada no filme. Coleridge o escreveu depois de um sonho, em 1797. Truffaut supunha que o próprio nome “Kane” vem de Khan, assim como Arkadin (no filme Grilhões do passado), provavelmente, teria sua origem em Irina Arkadina, heroína da peça A gaivota, de Tchekhov. Para Sergio Augusto (1995) a Xanadu de Welles “é uma mistura de épocas e estilos. Há traços de Sam Simeon, e do castelo do monte Saint-Michel, na França; a torre do lado direito lembra o campanário da catedral de San Marco, em Veneza; suas arcadas imitam as do palácio Pitti, em Florença; toques góticos de origem inglesa dividem o kitsch interior com o medieval italiano”. Foi o renomado Perry Ferguson quem produziu os
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anexo cenários de Cidadão Kane. Com o orçamento estourado, Ferguson aboliu cenários inteiros, deixando apenas a sala da casa de Kane e os interiores da redação do jornal. Também criou fragmentos de cenário – uma lareira gigantesca, escadas enormes e janelas góticas (especialmente em Xanadu) –, combinando-os com efeitos especiais. Xanadu é uma metáfora exagerada de residências que são fruto de desejos megalomaníacos de alguns milionários, de novos ricos, de seu mau-gosto e da covardia de arquitetos servis. O filme é um labirinto sem centro, diria Jorge Luis Borges. Trata-se de uma boa imagem para resumir a estrutura narrativa dos giros que os diversos depoimentos e pontos de vista revelam ao longo do filme. A narrativa descontínua, fragmentada entre depoimentos e flashbacks, contraria o princípio da linearidade implantado por D. W. Griffith, na medida em que desarticula a cronologia da história, que começa pelo fim. As entrevistas realizadas pelo repórter disparam o dispositivo dos flashbacks, que, isoladas, são simples peças, mas quando analisadas em conjunto completam um quebra-cabeça. No entanto, ao longo de toda a película, parece haver uma peça que não se encaixa ou alguma que ainda falta. A história se desenrola como uma falsa reportagem. O jornalista investigativo Thompson é mostrado de costas durante todo o filme, ideia de Welles, trazida do roteiro abandonado de Coração das trevas, inspirado no livro de Joseph Conrad. Assim, o filme oferece uma versão mais sofisticada da câmera subjetiva, não associada a um personagem da história, mas assumindo a função de narrador situado fora do mundo da história, mas que também pode representar a própria plateia que assiste ao filme. Na abertura do filme fica caracterizada essa proposta do diretor de colocar a câmera a partir do ponto de vista do público (subjetiva), e desse momento em diante o público é a câmera, só ele vai ver e ouvir determinadas coisas; o público passa a ser um ator invisível em ação. Com a ajuda fundamental de técnicos experientes, sobretudo do diretor de fotografia Gregg Toland, Welles transgrediu a cartilha do código de produção cinematográ-
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fica criado por Will H. Hays nos anos 1930. Entre outras coisas, Hays previa que um beijo não podia durar mais de sete segundos. O código Hays constituía a base em que se apoiava o sucesso de Hollywood, o controle de todo o processo fílmico, assim o cinema estava aprisionado no estúdio. No entanto, sua liberdade e sua criatividade permitiu-lhe levar para a tela recursos de dramaturgia e narrativa que conhecia bem do rádio e do teatro, e com isso inovar no cinema. Trata-se de uma aula de técnica cinematográfica: a fotografia de Greg Toland com planos escuros e sombras projetadas segue a tradição dos expressionistas alemães: iluminação chiaroscuro, iluminação de fundo e iluminação de alto contraste, que prefigura a luz dos filmes de estética noir; posicionamento de câmera em contraplongée subverte a linguagem clássica; grande angular deforma os rostos. A cenografia é barroca, com o set abarrotado de móveis grandes; teto e paredes falsas. O uso da profundidade de campo, anteriormente usada por Renoir, é narrativamente aperfeiçoado em Kane.
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O fracasso com estrelas do star system em projetos anteriores foi um alerta para Welles, por isso ele preferiu trabalhar com a equipe do Mercury: um elenco sem experiência cinematográfica que não poderia contestá-lo. Isso lhe permitiu abrir mão dos tradicionais closes, sempre exigidos pelas estrelas. Por sua vez, abandonou os convencionais plano e contraplano em favor de tomadas longas, como o plano-sequência da abertura do filme, quando a câmera abre a sequência de Susan a partir do cartaz que anuncia seu show e sobe para o telhado em claraboia para depois descer para encontrá-la bêbada na mesa do bar. Essas tomadas longas favoreceram a atuação dos atores e deram uma grande fluidez ao filme.
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Apesar de não parecer, Cidadão Kane foi um filme muito artesanal. Ele cresceu na mesa de montagem e no estúdio de som. A imagem foi sendo enriquecida utilizando um desenho de som bem criativo, no exato momento em que predominava a ideia em Hollywood de que o cinema sonoro deveria ser pensado ainda como o filme mudo acrescido de som. Welles se esforça para mudar essa lógica, pois entendia que era necessário preencher o som. Com isso, melhorou o fluxo da narrativa, localizando o espectador em relação ao ambiente e ao tempo. Nos bastidores de cada cena há uma ideia sonora, como a chuva na claraboia do cabaré El Rancho durante a visita de Thompson a Susan. Mais tarde, quando o jornalista telefona para o editor sem o depoimento de Susan, a cena é vista de dentro da cabine telefônica do bar, de onde vemos o conjunto de personagens e ouvimos as palavras de Thompson ao telefone, mas sua imagem propriamente quase não é vista. Welles adiciona impacto e completa a ilusão de realidade e da perspectiva com o uso de efeitos sonoros e recriando a acústica do ambiente natural como nos ecos no mármore da biblioteca Thatcher; o apito do trem enquanto o trenó vai submergindo sob a neve ao fim da entrega do garoto Kane; e as vozes que se sobrepõem sistematicamente em todas as cenas de vários personagens. Nota-se fortemente essa técnica quando Kane se apresenta aos jornalistas do Inquirer determinado a morar na redação, na sala do editor, que tenta explicar as inconveniências da ideia. O editor se vê atropelado pelas pessoas, pelos próprios objetos, pelas vozes de todos e pelas ordens de Kane.
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ESTE CATÁLOGO FOI DESENVOLVIDO PARA ACOMPANHAR A MOSTRA MR. FAKER – ORSON WELLES E A AUTORIA NA INDÚSTRIA DO CINEMA, REALIZADA PELO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC. IMPRESSO EM COUCHE MATTE 150 G/M2 (MIOLO) E DUO DESIGN 300 G/M2 (CAPA).
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