Conversa sobre as artes

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Con ver sa sobre as

Artes

Sesc | Serviço Social do ComÊrcio Departamento Nacional Rio de Janeiro Agosto de 2013


Sesc | Serviço Social do Comércio

Produção Editorial

Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos

Assessoria de Divulgação e Promoção Gerente Christiane Caetano

Departamento Nacional Direção-Geral Maron Emile Abi-Abib

Supervisão editorial Fernanda Silveira

Divisão Administrativa e Financeira João Carlos Gomes Roldão

Preparação Ieda Magri

Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Álvaro de Melo Salmito

Projeto gráfico Aline Haluch e Juliana Braga | Studio Creamcrackers

Divisão de Programas Sociais Nivaldo da Costa Pereira

Revisão de texto Clarisse Cintra, Tathyana Viana e Elaine Bayna

Consultoria da Direção-Geral Juvenal Ferreira Fortes Filho

Produção gráfica Celso Mendonça

Coordenação Editorial

Estagiário de produção editorial Thiago Fernandes

Gerência de Produção de Mídia e Televisão Gerente Pedro Hammerschidt Capeto Centro de Produção e Difusão de Multimeios Coordenação Wagner Campos Organização e texto de introdução Wagner Campos Notas de rodapé Maitê Medeiros e Wagner Campos Revisão e finalização de textos Maitê Medeiros

©Sesc Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br Impresso em agosto de 2013. Distribuição gratuita. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Conversa sobre as artes. – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2012. 216 p. : il. ; 21 cm. ISBN 978-85-89336-98-7. 1. Artes - Entrevistas. 2. Literatura – Entrevistas. 3. Música – Entrevistas. 4. Teatro – Entrevistas. 5. Artes plásticas – Entrevistas. 6. Cinema – Entrevistas. I. Sesc. Departamento Nacional. CDD 700


É na área cultural que o Sesc expressa algumas de suas mais célebres ações, estimulando e promovendo manifestações artístico-culturais com o objetivo de incentivar a produção cultural no país e transformar a realidade dos brasileiros por meio do encontro com variadas expressões da arte. Por meio dessas ações, o Sesc contribui para o aperfeiçoamento da produção cultural brasileira, a melhoria do nível intelectual de sua clientela e o fortalecimento da identidade nacional, quais sejam condições essenciais ao natural desenvolvimento de uma nação. O trabalho da Entidade na área cultural e em outras áreas que envolvem as necessidades humanas de bem-estar e qualidade de vida, como educação, lazer e saúde, acontece por meio de atuações nacionais e regionais, as quais expressam o apoio e a colaboração do empresariado para o desenvolvimento da sociedade. A ntonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do Sesc


Ao longo de seus 66 anos, o Sesc se tornou referência no que diz respeito à promoção e difusão da arte em todo o Brasil. Tendo em vista a cena artística atual, a publicação Conversa sobre as artes celebra a arte contemporânea por meio da palavra de renomados representantes dessa categoria, os quais desenvolvem novas tendências para a arte brasileira, contribuindo para o fortalecimento do senso de identidade nacional. Em dez entrevistas mediadas por profissionais da área cultural, este livro contempla os encontros registrados na série de programas audiovisuais homônima produzida pelo Sesc, abordando temas que envolvem literatura, teatro, música, cinema e artes plásticas. Com publicações como esta, o Sesc busca estimular a aproximação entre brasileiros e a produção artística contemporânea, o que propicia o enriquecimento intelectual dos indivíduos, permitindo-lhes ir além de suas condições de origem e formação e dotando-os de um olhar mais qualificado e universal sobre o que nos cerca. M aron Emile A bi-A bib Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Conversa sobre a arte

L it e r a tur a

Ariano Suassuna

Lêdo Ivo

Música

Hélio Sena

Willy Corrêa de Oliveira

T e a tro

Ângela Leite Lopes

José Henrique Moreira

Art e s P l á s ti c a s

Iole de Freitas

Carlos Vergara

Cin e m a

Vladimir Carvalho

Nelson Pereira dos Santos

I N T E R L O C U T O R ES

Paulo Sérgio Duarte

João de Jesus Paes Loureiro

Luiz Antônio Afonso Giani

Sidnei Cruz

Silvio Tendler

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IN TRO DU ÇÃO


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Conversa sobre a arte Arte e conhecimento estão plenamente de acordo entre si. — Theodor Adorno

A arte, para além da ideia comum que dela temos hoje, ainda se resguarda como um importante assunto da filosofia, uma vez que resume algo de natureza unicamente subjetiva que se impõe a tudo o mais que está conceitualmente estabelecido no âmbito do saber cognitivo. Obra do humano e como tal produto de um fazer, a arte é a expressão de uma ideia estética que interpreta o meramente natural pela subjetividade, caracterizada por uma intenção. Por sua vez, o conceito de estética, atribuído inicialmente ao campo da percepção, referente ao sentimento, adquiriu na modernidade uma acepção mais central, com ênfase na subjetividade da experiência sensível. Estética, pois, é aquilo que se faz apresentar por meio de um fazer artístico materializado por uma forma, constituindo uma ideia subjetiva, sendo forma a disposição objetivada enquanto linguagem do todo que encerra uma obra artística. É, portanto, a arte, o lugar essencial da reflexão estética, condição esta que a qualifica diretamente enquanto matéria do espírito. O caráter subjetivo da arte é determinado por aquilo que, desde Hegel, denomina-se dialeticamente como espírito, ou seja, a ideia sensível, subjetiva, que concretizada enquanto uma obra se encerra em si mesma. Na arte, a ideia sensível, ao se concretizar em uma obra, torna-se mais do que aquilo que aparece objetivado e tal ideia sensível, inseparável da obra, mas diferente dela, é o que se denomina por espírito. Em resumo, espírito é tanto o imaterial sensível de uma obra de arte quanto aquilo que está materializado nela. Apesar de resistir a definições devido ao seu caráter não conceitual, pode-se dizer que arte é tudo aquilo que se faz com intenção estética, sendo intenção o meio que possibilita ao humano perceber na arte o sentido, ou seja, aquilo que está para além da mera aparência conceitual. Daí a necessidade de pensar o senso estético enquanto algo que se constrói no âmbito de uma educação dos sentidos. Diferente da acepção comum atribuída, intenção, em arte, não é o que decorre de um ato de vontade com base em uma ideia de liberdade de expressão da individualidade.

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Ao contrário, intenção é aquilo que tecnicamente determina a obra individual e não um intuito ou mesmo um conjunto de ordenações pressupostas individualmente. Como tal, intenção diz respeito ao meio de afirmação dos elementos constitutivos da própria arte expresso de modo claro, formado da sua constituição interna como resultado exclusivo do processo técnico de elaboração de um material artístico, sendo o material aquilo que integrado pelos elementos imateriais da arte é proporcionado ao artista como ferramenta construtiva de uma obra, pressupondo aquilo com que ele irá trabalhar. O que determina, então, a condição da arte é aquilo que se dá como processo de desenvolvimento entre o material artístico e a intenção estética. O material artístico é histórico, não é, portanto, natural, dado pela natureza, inalterável como elemento não histórico. Em sua resolução, depende das transformações técnicas ocasionadas pelo desenvolvimento histórico, elaborado progressivamente como resposta a cada um dos problemas surgidos no processo de construção artística de cada época. Sendo histórico, o material artístico determina a transformação das formas estéticas, convertendo-se em material sempre modificável em consonância com o desenvolvimento histórico das sociedades. O que explica, pois, o desenvolvimento histórico da arte desde a antiguidade aos dias de hoje são as contínuas transformações que sofreu o material artístico, determinando as diferenças existentes entre a arte contemporânea e a de outros períodos de época. Se, de modo consequente, a arte se transforma de acordo com as mudanças históricas, não é consequente, ou mesmo até possível verdadeiramente, fazer arte hoje como em outros tempos, senão como contradição histórica. Arte é o que resulta do desenvolvimento da sensibilidade humana, em consonância com os diferentes contextos sociais de cada momento histórico. O seu fazer não está isento de caráter social na medida em que sua produção se dá no âmbito das sociedades, e que por isso reflete as contradições existentes no próprio processo histórico de construção do social. Ainda assim, enquanto produto da história do espírito, arte não é ideologia, o que significa dizer que só é arte mesmo aquela cuja aparência da sociedade real e não a sociedade real mesma transparece nela. Se assim não fosse, a arte não faria nada além de estabelecer uma cumplicidade com o estado real das coisas, instada como um objeto direcionado, isenta de qualquer sentido para além da condição de mera existência condicionada. Naquilo que é o singular da arte, o particular deve impor-se ao geral uma vez que tudo o mais que intenciona experiências coletivas tende a reduzir o seu significado ima-

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nente, transformando a experiência estética em experiência comportamental. Há que diferençar o que é da ordem do coletivo daquilo que é da ordem do social, uma vez que somente no âmbito social a arte pode se individualizar. Só é arte mesmo aquela que produz sentido de estranhamento, ou seja, aquela que para o sujeito em sua individuação suscita uma experiência estética de natureza singular, “estranha”, porquanto nunca antes experimentada em um mesmo sentido. Nada em arte é mais residual do que o empenho à comunicabilidade por meio do explícito cognitivo. Arte é linguagem sem conceito e enquanto tal se caracteriza por uma lógica própria que não se ajusta à lógica cognitiva, embora derive dela. Sendo o seu conteúdo imanente um conceito particular de cognição, a razão subjetiva de ser da arte nega qualquer razão de ser objetivada, uma vez que sua essência não se delimita de maneira conceitual. Enquanto manifesto de sua condição não cognitiva, conceitualmente não inteligível, a arte em sua forma autônoma é tanto mais apreendida quanto mais se percebe nela a ausência de um entendimento objetivo único e generalizado. Ainda assim, enquanto assunto da filosofia, arte é busca de conhecimento, resultando daí o seu sentido particular de cognição, sendo impossível atribuir a ela sentido de funcionalidade. Ocorre que, em um contexto objetivado em dimensão coletiva, à arte, em sua subjetividade, é negada a possibilidade de expressar-se em seus próprios termos singulares, sendo sequer necessária em sentido estrito por não apresentar função objetiva determinada. Se, como aludiu Adorno, o homem na modernidade, capaz das mais sofisticadas construções no plano da racionalidade, tem sido incapaz de lidar com as mais simples formas da subjetividade humana, então, por que ainda a arte em um mundo imerso na objetividade? Resta verificar se no mundo moderno existe ainda a necessidade da arte em seu sentido pleno. Se isto atende ainda a alguma necessidade tendo em vista que à arte, por seu sentido social e forma singular de comunicação, cabe expressar-se criticamente em relação à própria sociedade. Se uma ideia de arte foi derrotada, esta derrota, longe de ser sua e por si, é a derrota da ideia do sensível, da individuação e de toda a sociedade autônoma, uma vez que somente por meio da arte o humano, em seu sentido próprio, pode aspirar a algo diferente do que sempre foi. Isto se deve à subjetividade da arte, sempre avessa a qualquer tipo de reificação; àquilo que lhe é imanente e ininteligível do ponto de vista conceitual, pois somente a ela é dada a capacidade de estabelecer mediações entre o humano e o mundo real, abrindo espaço para a relação entre sujeito e objeto em sentido não análogo.

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Talvez por isso a arte, e em especial a arte contemporânea, se encontre ainda distanciada do público, cabendo à experiência estética o empreendimento da aproximação entre ambos, determinando ser ainda possível que permaneça nisso da subjetividade algo que conforme a arte em um nível possível, ou seja, sendo esse possível uma experiência estética no nível da individuação. Ocorre que tal distanciamento é, por sua vez, legitimado pelo retumbante negócio da cultura, mercadologicamente estabelecido enquanto espaço privilegiado de expressão das objetividades objetivadas em dimensão coletiva, privando o sujeito de tudo aquilo que em sua individuação a arte lhe diria respeito em termos sociais. A arte se converte em mercadoria quando perde seu sentido social, ou seja, seu significado artístico imanente. Portanto a arte, como forma de conhecimento subjetivo, precisa ser examinada fora do âmbito da cultura. Quanto mais autônoma for a arte, mais dirá respeito à sociedade, e quanto mais social, mais distante estará de um entendimento comum. Concorre também para tal distanciamento uma ideia de crítica da arte com reminiscência mental no período das luzes do século 18, construída por meio de critérios de gosto universais fundamentados em ideais de classe social, tendo como suporte a sociedade contemporânea dimensionada inteiramente no coletivo. Ocorre que o exercício do gosto, em sua arbitrariedade, suprime em tudo aquele do conhecimento subjetivo, uma vez que seu julgamento se dá em sentido extraestético, sempre nutrido por sentimentos absolutos. A consistência, ou qualidade, de uma obra de arte não é determinada por conceitos de gosto, senão pelo desenvolvimento da totalidade do material artístico com intenção de expressar o imaterial. Assim, o gosto é um critério superado porquanto nada pode, há muito, ser julgado a partir de categorias supostamente universais, sempre voltadas para um coletivo idêntico, impossibilitando refletir sobre a consistência de uma obra de arte. Por que então a necessidade da arte enquanto algo desartificado? Não coincidentemente é que a arte na contemporaneidade, muito mais do que em outros períodos de época que dividem a história das artes, é a que mais tem experimentado esse distanciamento em relação ao público. Consequência das transformações sofridas pelo material artístico, a arte contemporânea engloba um amálgama de vertentes diferenciadas, resultado da diversidade de recursos técnicos acumulados ao longo de seu processo histórico. Em um sentido geral, arte contemporânea determina o conjunto da produção elaborada em nosso tempo, independente das diversas “estéticas” praticadas. Em um sentido mais específico, circunscreve o desdobramento de diversas vertentes modernas originadas em finais do século 19 e início do século 20, com presença marcante ainda

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nos dias de hoje. É, portanto, característica da contemporaneidade artística a utilização de uma totalidade de recursos idiomáticos distintos que contribuem para a construção de possibilidades outras de articulação do pensamento estético, indo além daquilo que se dá em um sentido convencional. Essas várias vertentes não só aprofundam os estudos morfológicos e sintáticos das artes, mas também introduzem novos padrões estéticos que em muito ampliam as possibilidades experienciais, conceituando a arte contemporânea como toda aquela produção que apresenta, em seus aspectos estruturantes, diferentes formas de articulação do pensamento estético. Significa dizer que o conceito de arte contemporânea está para muito além daquilo que resume simplesmente o que se faz hoje, o que remete à questão de ser toda a arte de hoje contemporânea pelo simples fato de sua atualidade. A arte atual é realmente contemporânea? Paradoxalmente, o que muito se reputa como contemporâneo não é mais do que a opção induzida de uso de um material convencional apoiado no emprego recorrente de recursos tecnológicos utilizados como falso elemento de atualização que, para além de um ato criativo, faz do artista um mero executor de fórmulas reificadas para a simples comunicação cognitiva. Há que se discernir, portanto, para além do sentido cronológico, contemporaneidade e atualidade. Por outro lado, a ideia de contemporaneidade não se estabelece enquanto conceito autônomo porquanto definida em si mesma resume a sua própria neutralidade na medida em que, se opondo àquilo que circunscreve a tradição, ao ser apreendida se torna igualmente outro algo tradicional. Ao mesmo tempo, a ideia de tradição não representa aquilo que é do passado, mantenedora de valores arcaicos a serem ultrapassados em nome de um “novo” absoluto. A contemporaneidade, pois, não é um fenômeno isolado e, como tal, não exclui a ideia de tradição, o que significa dizer que a afirmação da contemporaneidade se dá nas tradições, na capacidade de recriação de um dado estabelecido, sendo ambas as instâncias aspectos complementares da experiência que se refletem mutuamente na medida em que uma não se estabelece sem a outra, justificando a argumentação do historiador português Adriano Duarte Rodrigues: “Moderno é tudo o que se demarca em relação àquilo que permanece como tradicional, tal como tradicional é tudo o que se demarca em relação àquilo que se apresenta como moderno.” Essas e outras questões a presente publicação pretende abordar tendo em vista a produção artística contemporânea do Brasil, evidenciando destacar, em um contexto o mais amplo possível, as produções identificadas com novas formas de articulação do pensamento

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estético e que, desse modo, convertem-se em manifestações originais das quais se podem depreender traços característicos capazes de defini-las como singulares de nosso tempo. Organizada no formato de diálogos, a publicação do livro Conversa sobre as artes, uma iniciativa editorial do Sesc, disponibiliza ao grande público informações qualificadas sobre a produção artística brasileira das várias regiões do país, abordando conceitos de estética e crítica das artes nas áreas da literatura, do teatro, da música, do cinema e das artes plásticas também em aspectos inerentes aos processos de produção e difusão artísticas. O livro resume a edição de dez “conversas” diretamente transcritas da série de programas televisivos homônima produzida pelo Sesc, por meio do CPDM — Centro de Produção e Difusão de Multimeios, e que contou com a participação de expoentes da arte contemporânea brasileira como os artistas plásticos Carlos Vergara e Iole de Freitas, os teatrólogos Ângela Leite Lopes e José Henrique Moreira, os músicos Willy Corrêa de Oliveira e Hélio Sena, os escritores Ariano Suassuna e Lêdo Ivo e os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Vladimir Carvalho, com a interlocução, respectivamente, de Paulo Sérgio Duarte, Sidnei Cruz, Luiz Giani, Paes Loureiro e Silvio Tendler. Com a presente publicação, o Sesc objetiva promover a aproximação entre o homem contemporâneo e a produção artística do seu tempo, deslindando as inúmeras alternativas de experiência estética por ele vivenciadas, contribuindo para a construção social de um “outro olhar” do espectador de hoje, mais atento e qualificado, voltado para novas possibilidades de fruição das artes em suas formas autônomas de expressão, constituindo importante documento sobre a arte brasileira do século 21, de grande interesse nacional.

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LI TE RA TU RA


A r i a n o Su a s s u n a Poeta, dramaturgo e romancista paraibano, radicado em Pernambuco. Publicou seu primeiro poema, “Noturno”, em 1945. Graduou-se na Faculdade de Direito do Recife em 1950 e escreveu Uma mulher vestida de sol, sua primeira peça de teatro, em 1947. Entre suas principais obras dramatúrgicas estão O castigo da soberba (1953), O rico e o avarento (1954) e O santo e a porca (1956). Seu texto dramatúrgico mais conhecido, Auto da Compadecida, foi escrito em 1955. Um ano depois começou a lecionar Estética na Universidade Federal de Pernambuco. Seu primeiro romance, o Romance d’A Pedra do Reino, foi publicado em 1971. Nos anos 1970, criou o Movimento Armorial e em 1990 tornou-se imortal ao assumir a cadeira número 32 na Academia Brasileira de Letras.



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Paes Loureiro: Quando comecei a dar aulas de estética na universidade, um dos livros

que constava da minha bibliografia era o seu Iniciação à estética. Você escreveu esse livro pela necessidade de levar aos alunos uma visão da estética condizente com a relação deles com a cultura nordestina, e não só com a estética como uma interpretação das artes, uma reflexão sobre as artes. Qual é a lição que você trouxe da relação com os alunos, do que foi construído como reflexão sobre as artes e o Nordeste? Ariano Suassuna: Sempre tive uma relação muito boa com meus alunos, graças a Deus.

Eu gostava de ensinar e, até onde pude ver, eles gostavam de estudar comigo. Então, a primeira coisa que eu fazia era tentar mostrar que a filosofia da arte, a Estética, podia ser um estudo fascinante. Normalmente as pessoas têm uma ideia da filosofia como um estudo tedioso, cansativo. Os jovens, principalmente, têm essa noção e eu queria quebrar, destruir esse preconceito e mostrar que o estudo da filosofia em geral, e o da filosofia da arte em particular, podia ser uma coisa muito atraente, fascinante mesmo. Na primeira aula eu costumava dizer: “A arte, e consequentemente a filosofia da arte, no comportamento humano, se interessa por dois campos, o campo do risível, do riso, e o campo do doloroso. No campo do doloroso existem duas categorias principais, o trágico e o dramático. No campo do risível, outras duas principais, o cômico e o humorístico.” Então, mostrava sempre que na linguagem comum as pessoas têm do humorístico uma noção completamente falsa, completamente equivocada. O humorístico talvez seja, das categorias do risível, a mais refinada, a mais rara, a mais complexa. O maior humorista, a meu ver, no campo da literatura universal, foi Cervantes. Quando chamam de humoristas a esses atores do cômico que aparecem na televisão estão cometendo um crime de lesa-majestade, porque isso não tem nada de humorismo. Não tem nada, eles são atores do cômico. Quando Deus dá bom tempo, o que não é comum. Nesse ponto, eu costumava contar a eles uma história popular brasileira, a história dos dois cegos, dessas histórias que o povo brasileiro é genial para inventar. Havia dois cegos. Um era muito forte e era cego dos dois olhos, o outro tinha um olho bom, mas era quase paralítico. Um dia, um convidou o outro e disse: “Vamos dar um passeio de bote.” O outro disse: “Está doido, rapaz, a gente, desse jeito?” Ele disse: “Você que é forte, rema, e eu que tenho um olho, vou no leme, vou dirigindo.” Aí o outro concordou: “Então está certo, vamos.” Saíram no domingo, pegaram o bote, o cego forte remando e o que tinha um olho bom no leme. Já estavam longe da praia e o cego forte deu uma puxada forte, um remo escapuliu e furou o olho bom do cego que vinha no leme. Quando ele se viu cego dos dois olhos, disse: “Pronto” e, ao ouvir isso, o

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outro pensou que tinha chegado e desembarcou dentro d’água. Então eu perguntava aos meus alunos: “Por que a gente ri de uma história dessas?” É uma história horrorosa, só tem catástrofes. Era por aí que eu entrava a estudar a essência do risível e na mesma hora meus alunos se interessavam. Paes Loureiro: Parece que você assumiu também esse modo de encarar o riso como uma

maneira de se resguardar. No seu discurso de posse da Academia Brasileira de Letras você diz que o riso era um escudo contra a tristeza, contra a angústia. Ariano Suassuna: Contra a emoção. Sou muito emotivo, mas ao mesmo tempo sou um

velho sertanejo, não gosto de ser visto chorando em público, choro de vez em quando, sou muito chorão e me defendo pelo riso. Recentemente, em uma filmagem, me desmoralizei completamente. Fui falar de um assunto que me toca muito e me emocionei, terminei chorando. Aí fica uma coisa triste, porque uma mulher bonita chorando fica até mais bonita do que é, mas um velho feio na minha idade é a coisa mais grotesca e mais constrangedora do mundo. Paes Loureiro: Já assisti a suas aulas-espetáculos em festivais do livro, em encontros

literários, também li seus livros e percebo que juntando a alta literatura que você faz, suas reflexões nas entrevistas, nas aulas, essa militância de cavaleiro andante pela cultura nordestina... Ariano Suassuna: Pode até ser brasileira, não é só pela nordestina que eu me interessei... Paes Loureiro: É verdade. Mas a partir de uma vivência do Nordeste. Acho que você é

um exemplo da relação de local com o universal. Há um pensador português que defende que nós devemos compreender as coisas, pensá-las universalmente e agir no local. Sinto que sua obra tem o universo da cultura ocidental, o universo da cultura do nosso tempo filtrado em uma vivência que é sua, que é humana. Isso foi uma coisa que nasceu espontaneamente ao longo da sua vida. Ariano Suassuna: Sim. Eu creio que o ser humano é o mesmo em qualquer lugar e em

qualquer tempo. Outro dia um jornalista que não gosta de mim, lá do Recife, disse que a minha obra estava ultrapassada porque eu não levava em conta que o homem do Nordeste em geral, e o sertanejo em particular, não anda mais a cavalo, anda de moto. Eu disse a ele: “E você precisa perceber que o homem que monta a cavalo é o mesmo que monta na moto.” Os problemas fundamentais do ser humano são os mesmos. Quais são os problemas do ser humano? Sofrimento, injustiça, amor, ciúme, fome, dor, e o mais democrático

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e pior de todos, a morte. Um gênio da poesia popular brasileira e nordestina, Leandro Gomes de Barros,1 fez três sextilhas e nelas sintetiza o problema de todas as filosofias e de todas as religiões. Repare que beleza: Se eu conversasse com Deus, iria Lhe perguntar por que é que sofremos tanto quando viemos para cá. Que dívida é essa que a gente tem que morrer para pagar? Perguntaria também como é que Ele é feito, que não dorme, que não come, e assim vive satisfeito. Por que foi que Ele não fez a gente do mesmo jeito? Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto, nascendo do mesmo jeito, morando no mesmo canto? Quem foi temperar um choro e acabou salgando o pranto? Essa é a pergunta fundamental do ser humano. Monte ele a cavalo ou na moto. O fato de ele montar uma moto faz com que deixe de ser sujeito à morte, à dor, ao sofrimento? Acho que a minha obra passará se ela não prestar. Não me consta que o homem do tempo de Cervantes montasse na moto, eu acho que montava a cavalo e, no entanto, Dom Quixote está aí, é um livro contemporâneo de todas as gerações. Não sei se você já viu a versão cinematográfica2 O poeta paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918) foi um dos grandes cordelistas do Brasil. Autor de uma vasta produção literária, tem em sua bibliografia títulos como O cachorro dos mortos, A força do amor ou Alonso e Marina, Branca de Neve e o Soldado guerreiro, entre outros. 1

2 Dom Quixote de Orson Welles é uma obra inacabada do diretor americano Orson Welles (1915-1985). As filmagens foram feitas ao longo de 14 anos e em duas fases distintas, entre 1958 e 1972, porém nunca finalizadas pelo diretor. No final da década de 1980, o diretor espanhol Jess Franco retomou junto à viúva de Welles o projeto do filme, adquirindo somente os direitos de parte do material filmado. A obra foi lançada no Festival de Cannes de 1992.

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que Orson Welles fez para Dom Quixote. Você se lembra de que logo nas primeiras cenas aparecem Dom Quixote e Sancho Pança a cavalo e uma moça em uma moto? Por acaso em uma moto. Depois entendi: naquela passagem em que Dom Quixote fica na Cova de Montesinos e manda Sancho se encontrar com Dulcineia, no filme, Sancho vai para uma cidade moderna. É onde assiste a uma procissão em Sevilha, por acaso. Acho que o que muda no lugar e com os lugares e os tempos são as circunstâncias acidentais. Dostoiévski escrevia sobre o ser humano de acordo com as circunstâncias que o cercavam. Cervantes escrevia sobre o ser humano de acordo com as circunstâncias que o cercavam. A gente pode gostar, como eu gosto, de Dostoiévski e de Cervantes, sem ser russo nem espanhol. Se eu conseguir fazer bem o meu trabalho de escritor, pensando sobre o homem sertanejo e nordestino, eu sou aceito. Paes Loureiro: Claro. É verdade. O pensador espanhol José Ortega y Gasset 3 diz uma coisa

muito bonita: “Dom Quixote é o homem que escolheu criar o seu destino.” Ariano Suassuna: É muito bonito isso que Ortega y Gasset escreveu. Também gosto mui-

to dele. A cavalaria já tinha passado e Dom Quixote escolheu ser cavaleiro assim mesmo, escolheu livremente e foi. Paes Loureiro: É muito interessante o que Ortega escreveu sobre a questão da desumani-

zação da arte. Acho que a sua arte, com o passar do tempo, vai se atualizando, justamente pela relação com o sentido do humano que aponta para uma modernidade. Uma obra, digamos clássica, ou que vai se tornando clássica, é aquela que mantém sua juventude, sua maneira de estimular emocionalmente aquele que lê. Percebo isso, por exemplo, nas discussões com meus alunos que leem seu trabalho, em seminários, na transposição para outras artes, como o caso do cinema, da televisão. Ariano Suassuna: Fico muito agradecido a você por dizer isso, mas me sinto no dever de

moderar uma coisa: falta decorrer o tempo. Ao mesmo tempo que tenho raiva de escritor vaidoso, acho graça porque são uns tolos. Ninguém em vida pode saber se sua obra vai ficar ou não. É só o tempo que decanta e mostra o que fica. Paes Loureiro: Mas enquanto o autor está produzindo, dá indícios da sua perenidade. Vejo

no seu trabalho o que vi, por exemplo, na poesia de uma pessoa com quem você conviveu e que foi o primeiro poeta modernista que admirei, Manuel Bandeira.

3 José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo, escritor e político espanhol, sua obra consiste na investigação dos grandes temas que permeiam as ciências humanas. Entre estas destacam-se: Meditações do Quixote (1914) e A rebelião das massas (1930).

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Ariano Suassuna: Manuel Bandeira. Grande Manuel. Paes Loureiro: São obras que têm sensibilidade artística, invenção artística e reflexão so-

bre a vida, sobre a própria obra etc. Hoje ninguém pode falar sobre cultura brasileira sem tocar naquilo que você pensa da cultura brasileira em seu trabalho. A criação artística é emoção e pensamento ao mesmo tempo. Em uma única obra você desentranha o poético, o prosaico, o teatral, o cinematográfico, a reflexão filosófica sobre seu contexto. Então, ela reflete bem isso que você há pouco dizia: nós somos nós e a nossa circunstância. O que também dizia o velho Ortega y Gasset. Ariano Suassuna: É verdade. Agora eu quero esclarecer um pequeno ponto que partiu de

um equívoco seu e que eu parecia referendar porque, por um lado, era verdade. Você disse que eu convivi com Manuel Bandeira e eu não convivi com Manuel Bandeira. Éramos amigos. Está certo. Ele gostava de mim e eu dele, mas eu nunca o vi pessoalmente. Com 80 anos eu fiz um poema em louvor a Manuel Bandeira, tal a admiração que tenho por ele, mas nós nunca nos vimos. Trocávamos cartas. Começamos nossa amizade por uma correspondência. Ele escreveu um poema chamado “Cotovia”: — Alô cotovia! Aonde voaste, Por onde andaste, Que saudades me deixaste? — Andei onde deu o vento. Onde foi meu pensamento Em sítios, que nunca viste, De um país que não existe... Voltei, te trouxe a alegria. — Muito contas, cotovia! E que outras terras distantes Visitaste? Dize ao triste. — Líbia ardente, Cítia fria, Europa, França, Bahia...

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— E esqueceste Pernambuco, Distraída? — Voei ao Recife, no Cais Pousei na Rua da Aurora. — Aurora da minha vida Que os anos não trazem mais! — Os anos não, nem os dias, Que isso cabe às cotovias. Meu bico é bem pequenino Para o bem que é deste mundo: Se enche com uma gota de água. Mas sei torcer o destino, Sei no espaço de um segundo Limpar o pesar mais fundo. Voei ao Recife, e dos longes Das distâncias, aonde alcança Só a asa da cotovia, — Do mais remoto e perempto Dos teus dias de criança Te trouxe a extinta esperança, Trouxe a perdida alegria.

Pois bem. Uma parte desse poema foi publicada primeiro por Rubem Braga, mas ele parecia completo. Meu amigo compositor Capiba,4 amigo do seu amigo maestro e compositor Waldemar Henrique,5 musicou e ficou uma canção linda. Só depois conhecemos a outra parte do poema. Então Capiba pediu a mim que escrevesse a Manuel Bandeira pedindo 4 O pernambucano Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba (1904-1997), foi compositor e músico, autor de numerosas canções e frevos, sendo um expoente neste gênero. O compositor musicou diversos poemas de autores brasileiros e integrou, na década de 1970, o Movimento Armorial. 5 Waldemar Henrique da Costa Pereira, conhecido apenas como Waldemar Henrique (1905-1995), foi um compositor e maestro paraense. Suas obras contêm grande influência da cultura amazonense e circulam entre o clássico e o popular. Destacam-se entre elas a toada-canção Minha terra, a toada amazônica Foi boto, Sinhá, a valsa Meu último olhar, a canção Tamba tajá e outras.

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autorização e eu escrevi uma carta me apresentando e dizendo a ele que pedíamos, eu e Capiba, autorização para manter a forma inicial como tinha sido publicada por Rubem Braga. Ele respondeu com uma carta muito delicada. Depois eu conheci pessoalmente e fui amigo do grande amigo dele, Carlos Drummond de Andrade. Mas Bandeira nunca cheguei a conhecer. Paes Loureiro: Bandeira tinha também esse interesse pelo magistério, pela Estética. Ariano Suassuna: É verdade. Drummond disse muito bem: “Antes, agora e para sempre

| seu nome será: | Manuel Bandeira.” Ele era Bandeira de todos nós. Que poemas, que poeta era ele, bom demais. Paes Loureiro: E já que estamos nesse campo da poesia... Você é um poeta e tem também

uma obra poética. Relendo seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, resolvi desentranhar dele pequenas sugestões poéticas. Por exemplo, um trecho que está colocado em prosa, mas que você diz como um poema: “O sertão, terra luminosa do sol, desse sol que é a coroa radiante do nosso martírio.” É um belíssimo verso. “Mas que também envolve, nas ‘bolandeiras’ irisadas dos seus halos, as nossas horas de abastança e alegria.” Se você pegar os trechos desse discurso monta um poema. Há outros exemplos. Ariano Suassuna: Você não sabe que alegria está me dando hoje. Mas você não pode nem

suspeitar o motivo dessa alegria. É que, se você leu meu discurso na Academia, sabe da importância que meu pai tem na minha vida. Meu pai é o modelo que eu procuro seguir desde menino. A admiração que tenho por ele é imensa. Para mim, ele é a figura masculina arquetípica, é o representante de um ser humano. Essas palavras que você leu são dele, não são minhas. Paes Loureiro: Mas estão organizadas como prosa. Vou citar outro exemplo referindo-se

ao sol: “A sua corola inflamada de rubores de cobre” e “sanguíneo reflexo da fogueira em que se retorce o sertão”. Ariano Suassuna: São dele também. E estão organizadas como prosa, porque ele disse isso

em um artigo. Não fui eu que escrevi para ele, não, foi ele que escreveu para mim. Paes Loureiro: Pois é, e que você garimpou. “Chegou à chuva de Deus, pé d’água fra-

goroso despejado por descargas dos abismos do céu. Zoava o vento forte acendendo pelo céu, sem um farrapo de nuvem o brasido das estrelas.”

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Ariano Suassuna: É dele também. Tudo isso foi escrito por meu pai. Que alegria você está

me dando, você não imagina nem a metade. Paes Loureiro: “Arfa a terra fumegante. Rabeio estonteante coruscando em serpentinas

relâmpagos de caracol.” Ariano Suassuna: Tudo isso é de João Suassuna. João Urbano Pessoa de Vasconcelos

Suassuna, meu pai. Eu vim daí, graças a Deus. Ele era um leitor extraordinário, apaixonado por literatura. Li pela primeira vez vários livros, importantíssimos na minha formação, na biblioteca que ele nos deixou. Fui um menino sertanejo feliz, isso não era comum, não é comum hoje, imagine nos anos 1930. Meu pai nos deixou uma biblioteca admirável. Foi lá que li pela primeira vez Eça de Queiroz, nos exemplares que pertenceram a ele, Os Maias, A ilustre casa de Ramires, A cidade e as serras, A relíquia. Li Os sertões pela primeira vez, ele era apaixonado por Euclides da Cunha. Acho que grande parte da paixão que tenho por Euclides da Cunha vem de dois fatos, um, essa admiração que meu pai tinha por ele, outro, é que fisicamente ele lembrava meu pai. Paes Loureiro: E por esses livros que você cita, vê-se a altura da biblioteca que ele formou. Ariano Suassuna: Depois do Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato, o primeiro

exemplar de Dom Quixote que li foi o dele. A carne, de Aloísio Azevedo, um livro pouco lido, mas que me causou uma fortíssima impressão, li nos exemplares que pertenceram a ele. Tudo dos livros que ele deixou. Era uma figura. O doutor. E tinha uma memória extraordinária, gostava do romanceiro popular do Nordeste. Tenho muito orgulho de ser filho dele. Paes Loureiro: Essa síntese é muito interessante. Acho que foi o escritor peruano Mario

Vargas Llosa que, falando sobre a cultura brasileira, disse que no Brasil o erudito era o popular. Normalmente se coloca o popular como um passo na direção do erudito e ele inverte essa concepção dizendo que a grande sabedoria, a grande perenidade das coisas, está exatamente contida nessa cultura, que veio da tradição, que vem do povo. Esse é um ponto de vista dele e lembrei porque ele também trabalhou com Os sertões, e foi por Euclides da Cunha que ele se entusiasmou pelo tema de Canudos e escreveu, em 1981, A guerra do fim do mundo. Ariano Suassuna: É verdade. Porém eu não diria como ele. Em minha opinião, a palavra

que esclarece esse assunto das relações entre o erudito e o popular é intercâmbio. Tanto a

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poesia popular recebe influência da erudita quanto o contrário. Um poema como “Caso do vestido”, por exemplo, de Drummond. É evidentemente uma herança do romanceiro popular brasileiro. Paes Loureiro: E de notícia de jornal. Ariano Suassuna: “E agora José?” é evidentemente uma poesia dada da forma popular

da poesia brasileira. E, por outro lado, há outras coisas. Mostrei isso recentemente em uma aula no Ceará sobre formas da poesia erudita da Península Ibérica que repercutem aqui no romanceiro e os cantadores não sabem nem que estão usando uma forma erudita. Calderón de la Barca usava uma forma chamada décima, que é uma estrofe de dez versos de sete sílabas. A vida é sonho conta a história de um príncipe, uma história popular, da literatura oral, a história de um rei chamado Basílio, cuja mulher está grávida, e de um profeta que diz a ele que seu filho será prejudicial a ele e ao reino. Assim, quando nasce o menino, Segismundo, o rei e seu auxiliar, Clotaldo, erguem uma torre no deserto e levam para lá o menino, que é criado preso na torre, alimentado por Clotaldo, que também o ensina a ler, a falar. Segismundo só tem uma ligação com o mundo, se é que se pode chamar de ligação, Clotaldo. Mas quando ele atinge a idade adulta, aparece o remorso do rei, que pergunta a Clotaldo: “Será que fizemos bem prendendo Segismundo na torre baseados em uma simples profecia que pode estar errada?” Então tentam reparar isso dando um narcótico a Segismundo, que adormece. Quando ele acorda, está na corte vestido de príncipe, e o convencem de que toda a vida dele de prisioneiro foi sonhada. Isso é uma coisa que me parece muito bonita, é um símbolo do próprio nascimento do homem. Bocage tem uns versos muito bonitos: Do cárcere materno em hora escura, Em momento infeliz, triste, agoirado Me desaferrolhou terrível Fado, Meus dias cometendo à Desventura. Pois bem. Mas Segismundo, coitado, com uma vida dessas, de um ser preso, longe de todos, não podia ser muito tranquilo e comete uma violência que não lembro qual foi, parece que matou uma pessoa. O rei, com medo, novamente dá o narcótico a Segismundo, o coloca na torre e o convence que sonhada foi a vida na corte. E ele não sabe mais o que é verdade e o que é sonho e diz duas décimas, que acho uma perfeição, quando acorda aprisionado de novo na torre:

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Sonha o rico em sua riqueza que mais cuidados lhe oferece; sonha o pobre que padece sua miséria e sua pobreza; sonha o que medir começa sonha o que afana e pretende; sonha o que agoniza e ofende; e no mundo, em conclusão, todos sonham o que são, mesmo que ninguém entende. Eu sonho que estou aqui destas prisões carregado, e sonhei que noutro estado mais lisonjeiro me vi. O que é a vida? Um frenesi. O que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção, e o maior bem é pequeno; que toda a vida é sonho; e os sonhos, sonhos são. Pois bem, essa décima, do jeitinho que está aí feita por Calderón de la Barca, uma obra-prima do teatro universal e da literatura universal, é usada pelos cantadores. A forma da décima. A gente dá o mote, o mote é o motivo. As rimas são colocadas no mesmo lugar. Na Península Ibérica o primeiro verso tinha que rimar com o quarto e com o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto com o sétimo e com o décimo e o oitavo com o nono. Pois bem, eu dei a um cantador pernambucano, cantador e folhetinista, mas mais cantador, que cantava de improviso tocando uma viola. Ele se chamava Dimas Batista. Dei o mote a ele, repare, e o tema não era fácil: “A vida venceu a morte.” Ele então glosou da seguinte maneira: Na vida material cumpri o sagrado destino, um filho de Deus divino nos deu glória espiritual,

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deu o bem, tirou o mal, livrando-nos da má sorte. Padeceu suplício forte como o maior dos heróis, morreu para dar vida a nós, a vida venceu a morte. Paes Loureiro: É incrível. Conheci o Otacílio Batista. Ariano Suassuna: O irmão dele. Eram três irmãos,6 Otacílio, Lorival e Dimas. Paes Loureiro: Eu o levei a Belém pela Universidade e ele ficou hospedado na casa de um

amigo nosso, estávamos fazendo uma promoção com os estudantes, era uma forma de homenagear a cantoria. Ele e o Oliveira Francisco de Panelas. Cantavam os dois. Quando foi embora, o Otacílio deixou escrito um agradecimento que terminava com o refrão: “No sertão morro de fome, aqui morro é de comer.” Ariano Suassuna: Já que falamos em Manuel Bandeira, Otacílio e Dimas, os dois irmãos

estiveram na Academia Brasileira de Letras e Manuel Bandeira fez um poema lindo, chamado “Saudações aos cantores”: [...] Quer a rima fosse em inha Quer a rima fosse em ão, Caíam rimas do céu, Saltavam rimas do chão! [...] Saí dali convencido Que não sou poeta não; Que poeta é quem inventa Em boa improvisação Como faz Dimas Batista E Otacílio seu irmão; [...] Nascidos no sertão pernambucano, no alto do Pajeú, os irmãos Batista Patriota são poetas e repentistas de destaque da cultura nordestina. Lorival (1915-1992), o irmão mais velho, era considerado o “rei do trocadilho”, Dimas (1921-1986), além de repentista, poeta, foi também professor de literatura e língua portuguesa, e o mais novo deles, Otacílio (1923-2003), publicou numerosos livros e folhetos de cordel, além de canções de sucesso como Mulher nova, bonita e carinhosa.

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Paes Loureiro: Esse seu amor pela poesia fez com que você impregnasse de poesia os seus

textos todos, mas de modo geral você é mais discutido, entrevistado, instigado sobre seu teatro e sua prosa. Ariano Suassuna: É verdade, sou mais conhecido como dramaturgo. Menos como ro-

mancista. E desconhecido como poeta. Apesar disso, sustento que a minha poesia é a fonte profunda de tudo o que escrevo. Paes Loureiro: Esse é outro aspecto da atualidade do seu trabalho. Hoje, programatica-

mente, alguns autores procuram mesclar os gêneros, e já não se ignora que você não faz separações rígidas entre as artes, entre os gêneros. Seu trabalho já vem sendo construído assim desde o começo. Ariano Suassuna: Isso é verdade. Eu escrevo teatro, música, poesia, prosa, romance e ain-

da faço artes plásticas. Como artista plástico não sou a mesma coisa que escritor, não, não sou nem artista plástico. Sou um escritor que ilustra seus textos. Em mim, a imagem plástica nasce da imagem literária. Tenho uma grande admiração pelas iluminuras medievais que juntam o texto e ilustração. Eu criei até uma palavra nova, iluminogravura. Gosto muito dessa palavra ilumi, porque lembra o lume, luz. Até o século 18 não se dizia “Fulano pinta brasões”, se dizia “Fulano ilumina brasões”. É daí que vem a palavra iluminura. Eu procuro fazer essas iluminogravuras juntando a xilogravura nordestina, os processos modernos de gravar pela luz e o texto. Paes Loureiro: Uma vez eu fiz a quatro mãos, com um tradutor e professor da Universida-

de de São Paulo (USP), uma tradução de 20 poemas de Wang Wei, um poeta chinês do século 12. Esse tradutor não tinha um traquejo muito grande na linguagem poética em português, então a editora sugeriu que se fizesse uma tradução a quatro mãos, ele fazia o borrão da tradução e eu ajudava a dar uma forma poética. Wang Wei também escrevia os poemas ao lado de iluminuras. Uma página poética de Wang Wei era composta de versos e de desenhos. Ariano Suassuna: Sem querer me colocar na mesma altura — estou falando do parentesco

de uma linhagem —, quem fazia isso também era William Blake. William Blake fazia desenhos e poemas juntos, que se completavam. Paes Loureiro: Exatamente. E atualmente você tem algum projeto de integrar outras ar-

tes, alguma coisa no seu trabalho?

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Ariano Suassuna: Tenho. Tenho sim. No romance que estou escrevendo, faço a tentativa,

pela primeira vez, de integrar meu teatro, minha poesia, meu romance e minha gravura. Paes Loureiro: O velho compositor Richard Wagner pensava uma arte total. Só que via

essa arte total pelo ângulo dele, da ópera, do teatro. Você acha que a arte, hoje, procura ser uma arte total? Ariano Suassuna: Claro. É curioso o que aconteceu no processo de desenvolvimento das

artes. Fui visitado por vários “profetas”, que foram lá na minha casa. Aliás, acho uma falta de educação chegar na casa do dramaturgo e profetizar a morte do teatro. Profetizaram a morte do teatro por causa do cinema, diziam que o cinema ia acabar com o teatro. Depois disseram que o cinema ia ser morto pela televisão. Agora já estão dizendo que televisão, cinema, tudo foi assassinado pelo computador. E, no entanto, a gente vê que eles estão convivendo juntos; cinema, teatro, televisão, não tem problema, cada grupo tem seu lugar. Paes Loureiro: Se alimentando mutuamente. Ariano Suassuna: Isso. Não existe essa briga, não. Paes Loureiro: Sempre há uma das formas artísticas servindo de eixo. Ariano Suassuna: Sim, claro. No caso de Wagner, era a música e a ópera. No meu caso,

sei lá, o romance talvez. E os outros ajudando. Paes Loureiro: Todos nós escrevemos a partir do que vivemos, mas também do que lemos.

Sua obra é, ao mesmo tempo, de criação e de pensamento. Como se dá sua escrita, como ela passa por essa relação de vivência e reflexão? Certamente há um diálogo da sua obra com obras marcantes para você e que são também marcantes na cultura ocidental. Ariano Suassuna: Novamente faço uma ressalva: quando eu falar aqui em determinados

autores, não estou me colocando na mesma altura deles. Estou somente dizendo que pertenço à mesma família. Um fato curioso que aconteceu comigo: das peças de Shakespeare, minha predileta é Hamlet. Eu nunca tinha descoberto o porquê. Só depois de muito refletir, notei que existe uma identidade entre mim e Hamlet. É que nós, ambos, ele era e eu sou Orestiano. Não sei se você está lembrado, mas Orestes é um príncipe filho de um rei assassinado. Orestes é o antepassado mais ilustre de Hamlet. Ambos são filhos de reis assassinados. Pois bem, quando li Hamlet, compus um soneto dedicado a meu pai, e foi depois de compor esse soneto que descobri qual era a origem da minha admiração. É claro que minha admiração era literária, mas aquela identificação visceral entre mim e Hamlet

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vinha do fato de ambos termos um pai assassinado. O soneto chama-se “Fazenda Acauã, lembrança de meu pai”. A fazenda Acauã era de meu pai e foi o lugar onde passei a primeira infância. Aqui morava o rei quando eu menino Vestia ouro e castanho no gibão, pedra da sorte sobre o meu destino pulsava junto ao meu o seu coração. Para mim seu cantar era divino quando ao som da viola e do bordão cantava com voz rouca o desatino, o sangue, o riso e as mortes do sertão. Mas mataram meu pai. Desde esse dia eu me vi como um cego sem meu guia que se foi para o sol transfigurado. Sua efígie me queima, eu sou a presa, ele a brasa que impele ao fogo acesa, espada de ouro em pasto ensanguentado. Agora, tinha uma coisa em que eu e Hamlet nos chocávamos. Meu pai sabia que seria assassinado, estava esperando. Ele morreu no dia 9 de outubro de 1930. No bolso dele foi encontrada uma carta dirigida a minha mãe e aos filhos, na qual ele pedia que nós não vingássemos a morte dele. Dizia: “Não se tornem criminosos por minha causa.” Pois bem. Vi que nisto eu me chocava com Hamlet: passei a vida todinha tentando obedecer a ele. Perdoar não é fácil, mas eu passei a vida tentando perdoar. E consegui. Depois de 80 anos, digo hoje, sem hipocrisia, que consegui perdoar. Hamlet confessa: “Eu tenho mais defeitos dentro da alma do que tempo para realizá-los. Eu tenho mais crimes do que tempo para realizá-los. Eu sou ambicioso, vingativo, cruel.” Houve na Rússia do século 19 uma espécie de debate entre os intelectuais para saber qual o personagem ocidental mais importante. Terminaram sobrando dois, Hamlet e Dom

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Quixote como os maiores. Pois bem, Dostoiévski e Turgueniev, mas a mim interessa mais a opinião do Dostoiévski, os dois colocaram Dom Quixote como superior porque diziam que o problema de Hamlet era apenas um problema de vingança pessoal, de ambição pessoal. Ele se sentia espoliado do trono pelo fato de o pai ter sido assassinado e queria se vingar. O problema de Hamlet girava todo em torno de si, enquanto que a loucura de Dom Quixote era mais generosa. Era aberta, era para corrigir as coisas tortas, endireitar os caminhos errados e proteger os humildes e os perseguidos, os sofredores etc. Então se inclinaram para Dom Quixote a ponto de Dostoiévski ter escrito o maior elogio que um escritor já fez a outro. Cito sempre isso porque, como admirador de Cervantes que sou, também admiro essa generosidade de Dostoiévski: ele disse que no último dia, no dia do juízo, o ser humano devia levar Dom Quixote debaixo do braço para, quando os anjos ou o próprio Deus perguntassem: “Qual é a justificativa que você dá dos seus atos, qual é a ideia que você tem de si próprio?” poder responder: “Pode ler esse livro que está tudo aí.” Olha que coisa linda! Pois bem, eu recebi uma influência muito grande desses escritores. Mas não estou dizendo isso com mania de grandeza, não, eu também recebi influência fortíssima de escritores que não são nem considerados pertencentes ao cânone literário. Por exemplo, existe um romancista de aventuras chamado Rafael Sabatini, ele nasceu em Portugal, filho de mãe inglesa e pai italiano. Escreveu um romance chamado Scaramouche, que tem uma presença no teatro muito grande e é meu preferido, embora ache que talvez o outro romance dele, Capitão Blood, tenha vendido mais. André-Louis Moreau, o personagem central do romance, para fugir da justiça, pois está sendo perseguido, entra em uma companhia teatral ambulante, uma coisa que me seduz muito, juntamente com o circo. Tanto que nesse romance que eu estou escrevendo, lá vai uma revelação, que minha editora me perdoe, tem um circo e uma companhia ambulante. O circo chama Circo da Onça Malhada, e a companhia ambulante chama-se Trupe do Cavalo Castanho. Eles se juntam para sair errando pela estrada, outro grande fascínio meu, a estrada, pelo que ela tem de simbólico. Paes Loureiro: Sim. Sem dúvida. Charles Chaplin também fez o que quis com a estrada.

Mas há um poeta espanhol pelo qual você nutre uma grande admiração e, creio, deve ter se banhado um pouco na obra dele: García Lorca. Ariano Suassuna: Lorca. Demais. Exerceu uma influência fundamental em mim. Funda-

mental. Foi Lorca que me libertou de um temor que eu tinha: não gosto da poesia falada. Gosto da poesia baseada em imagens, fundamentada em imagens. E não gosto da poesia

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muito clara nem muito lógica. Não é que eu seja a favor de uma poesia contra a lógica, acho que a poesia verdadeira não é contra a lógica. Ela nem é antilógica nem é alógica. Ela é supralógica. Ela tem uma lógica superior, cria a sua própria lógica. Pois bem, quando era muito moço, li um poema de Lorca e quando terminei pensei: não entendi uma palavra desse poema, mas é muito bonito. Fiquei fascinado por aquele poema. E depois vi que ele tinha uma lógica. Tinha uma história inclusive narrada, é um poema narrativo. “Romance de um aprazado”, é do livro Romanceiro cigano. Fala de um cidadão estranho chamado O Amargo, que vive errando em um cavalo, sem dormir, insone. E, no fim, a gente descobre o que é, porque ele diz assim: Minha solidão sem descanso! Olhos pequenos de meu corpo E grandes do meu cavalo, Não se fecham à noite Nem olham ao outro lado Onde se afasta tranquilo Um sonho de treze barcos Senão que limpos e duros Escudeiros desvelados, Meus olhos fitam um norte. De metais e de penhascos Onde meu corpo sem veias Consulta naipes gelados. Os densos touros da água Investem contra os meninos Que se banham nas luas De seus cornos ondulados... Então eu primeiro li e disse: “É um bocado de imagens sem nenhum encadeamento lógico.” Mas depois eu descobri o sentido porque há um momento em que ele diz: A vinte e cinco de junho, predisseram ao Amargo: já podes cortar se queres

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cravos roxos de teu pátio. Pinta uma cruz em tua porta e põe teu nome debaixo porque cicutas e urtigas nascerão de teus costados e agulhas de cal molhada te bordarão os sapatos... Repare bem. Primeiro você tem que se lembrar de que o poema integra um livro chamado Romanceiro cigano. Então é uma história de ciganos. “A vinte e cinco de junho | predisseram ao Amargo”: fizeram uma profecia a ele. Mais do que uma profecia, foi uma praga que rogaram a ele. Quem rogou? Um cigano ou uma cigana, não se sabe, provavelmente uma cigana, que deitou cartas para ele. E que predisse que ele ia morrer dois meses depois. Depois daí, não sei se pelo medo ou pelo fascínio da morte, ele montou num cavalo que nem tinha culpa de nada e saiu procurando um lugar onde achava que iria encontrar a morte. E encontra. Agora eu vou dizer o poema todo comentado para mostrar sua lógica. Minha solidão sem descanso! (não dorme desde o dia em que predisseram a ele) Olhos pequenos de meu corpo E grandes do meu cavalo Não se fecham à noite Nem olham ao outro lado Onde se afasta tranquilo Um sonho de treze barcos. (nem a noção de fuga pode mais, nem a esperança de fuga) Senão que limpos e duros Meus olhos fitam um norte. De metais e de penhascos Onde meu corpo sem veias Consulta naipes gelados. (as cartas que deitaram) Os densos touros da água Investem contra os meninos Que se banham nas luas

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De seus cornos ondulados E os martelos cantavam Sobre as bigornas sonâmbulas A insônia do ginete E a insônia do cavalo. A vinte e cinco de junho, Predisseram ao Amargo: Já podes cortar se queres (veja quantas imagens de morte) Cravos roxos de teu pátio. Pinta uma cruz em tua porta E põe teu nome debaixo Porque cicutas e urtigas Nascerão de teus costados E agulhas de cal molhada Te morderão os sapatos. (a cal do cemitério, do túmulo) Será de noite no escuro Perto de um monte imantado, Lá onde os touros da água Bebem os juncos sonhando. Pede luzes, pede sinos. Aprende a cruzar as mãos E a gostar dos ventos frios De metais e de penhascos. Porque dentro de dois meses Jazerás amortalhado. A vinte e cinco de junho Abriu os seus olhos Amargo, E a vinte e cinco de agosto Se deitou para fechá-los. Homens desciam a rua Para verem o aprazado (aquele a quem haviam marcado um prazo) Que fixava sob o muro

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Sua solidão com descanso. (o primeiro verso era “Minha solidão sem descanso!” E agora, pela primeira vez em dois meses ele descansava.) E o lençol impecável (a mortalha) De duro assento romano Dava equilíbrio à morte Com as retas de seus panos. Paes Loureiro: É incrível. Ariano Suassuna: E você veja, o grande poeta espanhol pegou o romanceiro popular da

Península Ibérica, cigano, e fez o seu grande livro. Paes Loureiro: Há pouco falávamos dessa questão do trânsito entre a tradição popular e o

erudito. Há um poema dele, desse livro Romanceiro cigano, que é o “Tamar e Amon” e que fala de um incesto. Esse poema vem da tradição judaica, aparece na Bíblia, e Lorca trata o tema daquela forma belíssima. Já vi isso no Brasil em um trabalho de cantoria de cordel, retornando ao popular. Ariano Suassuna: Tomado do Velho Testamento. Paes Loureiro: Sim, mas é o itinerário de um tema pela poesia que faz esse percurso no

tempo. É uma coisa maravilhosa. Ariano Suassuna: O último verso de “Tamar e Amon” é de uma dramaticidade e de uma

tristeza sem par. Ele diz que quando Davi soube da história, com as tesouras cortou as cordas da harpa. Paes Loureiro: Tenho a sensação de que na atualidade há uma espécie de pedagogia

para a leitura da prosa. Essa leitura ao sabor da nossa conversa que você faz do poema do Lorca é também uma leitura poética, é uma leitura de interpretação poética que não transforma o poema em uma simples história que serve de base. É a leitura poética, uma leitura perfurante, vai penetrando no poema para encontrar a sua essência. Ariano Suassuna: Eu procuro enriquecer o poema, ao menos é o que eu tento fazer primeiro. Paes Loureiro: Considera-se que o livro no qual você alcança uma altitude muito forte de

integração de poesia, prosa e imaginário com a história, o mito com o cotidiano etc., é o Romance d’A Pedra do Reino, que tem esse cunho muito exemplar no seu trabalho, como no teatro tem o Auto da Compadecida. Como foi a construção desse romance?

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Ariano Suassuna: Vou voltar à figura de meu pai. Veja uma coisa curiosa, na década de

1950, tentei escrever uma biografia de meu pai. Escolhi o título, o livro se chamaria Vida do presidente Suassuna, cavaleiro sertanejo. Mas quando comecei a escrever, a carga de sofrimento que aquilo tudo me acarretava era tão grande que desisti. Deixei para lá. E como a poesia dá um distanciamento maior, resolvi escrever um longo poema sobre ele. Poema que se chamaria “Cantar do potro castanho”. Essa imagem do potro castanho é muito importante para mim, não sei se você está lembrado, há pouco eu disse Trupe do Cavalo Castanho. Mas também não consegui. Foi uma carga muito pesada, menos talvez do que na biografia, mas ainda assim dura, e eu deixei tudo para lá outra vez e desisti da ideia. Em 1958 comecei a tomar minhas notas a respeito daquilo que seria depois o Romance d’A Pedra do Reino. Primeiro eu dei um erro. Você sabe que o universo de cada obra tem certa autonomia e certa imposição. Há um personagem chamado Sinésio, o Alumioso, o rapaz do cavalo branco. Então a história era a história de Sinésio. E quem contava era um narrador, que se não era eu era muito parecido comigo. Comecei a narrar a história de Sinésio, o Alumioso. De repente, comecei a notar uma coisa que não estava indo bem. A gente sente, principalmente uma coisa que falseia o ritmo. Falseia o ambiente, não anda, não andava. Parei. E comecei a pensar o que é que estava errado. Pensei: é porque sou eu que estou narrando, não devo ser eu. Deve ser uma terceira pessoa. Aí criei um personagem, mas somente destinado a... Paes Loureiro: ... solucionar aquele impasse narrativo. Ariano Suassuna: Mas de repente, esse personagem sem minha ordem começou a tomar

importância. Eu tentava empurrar ele para baixo, e ele não obedecia, voltava. Eu empurrava... Ele se tornou um personagem mais importante, que se chama Quaderna. Ainda assim, veja bem, eu tenho uma irmã em cujo gosto confio muito, ela se chama Germana, Germana Suassuna. É viva ainda, graças a Deus, e eu costumo mostrar a ela as coisas que escrevo. Escrevo e reescrevo muito e na quarta ou quinta versão que tinha feito mostrei a ela. Quaderna, com aquela sua megalomania, aquela sua charlatanice, quer fazer da história dele também um romance policial. E então ele conta um enigma insolúvel, ou que ele diz ser insolúvel: o padrinho dele aparece um dia trancado em uma torre, por dentro, com a garganta cortada. E ninguém sabe o que aconteceu, porque a natureza dos ferimentos prova que não foi suicídio, mas ninguém sabe como foi que um assassino entrou na torre. Um amigo meu que gosta muito de romance policial e lê teoria do romance policial, ex-

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celente escritor, Bráulio Tavares,7 disse a mim, e isso eu não sabia, que essa é uma situação clássica do romance policial, chama-se o crime do quarto fechado. Mas aí de repente, quando eu dei essa versão para a minha irmã Germana ler, ela disse: “Ariano, você notou que a morte do padrinho de Quaderna é a morte de João Dantas?” Acabei de falar em meu pai, a morte de meu pai resultou do seguinte fato: um primo legítimo de minha mãe, chamado João Dantas, foi quem matou o presidente João Pessoa em 1930. Assassinato este que desencadeou a revolução de 1930. Foi o estopim. Pois bem, a Revolução de 30 foi deflagrada na noite de 3 de outubro para a madrugada de 4 de outubro de 1930, na Paraíba. Os revolucionários depuseram o governador, instalaram um governo revolucionário na Paraíba e de lá desceram em coluna para o Recife, onde João Dantas estava preso porque matou João Pessoa, no Recife. Eles desceram no dia 4, lutaram durante os dias 5 e 6 todinhos, no dia 6 tomaram a detenção e João Dantas apareceu morto com a garganta cortada, numa cela elevada. Eu visitei o João Dantas com minha mãe no dia 3 de outubro. Lembro que fiquei espantado com a altura da escada que a gente subiu, o tamanho da chave que abria a cela. Eu tinha três anos. E lembro bem de que quando a gente entrou na cela, ele estava jogando cartas com o cunhado, que estava preso também, acusado falsamente de ser cúmplice. Ele estava jogando cartas e aquilo me marcou muito. O governo dizia que ele se suicidou e nós sustentávamos que ele foi assassinado. Então, sem notar, quando fui escrever sobre a história do tio e padrinho de Quaderna, escrevi, inconscientemente, sobre a morte de João Dantas. Veja como as coisas funcionam na criação literária. Eu nem percebi. Depois que ela chamou a atenção para isso, eu acentuei um pouquinho, de maneira que não é que os Dantas Vilar, minha família materna, sejam os Garcia Barreto, nem é que os Suassuna sejam os Quaderna, mas são recriações um pouco exageradas, caricaturais da minha família paterna e materna. Paes Loureiro: E essa imagem da escada enorme, da chave enorme... para a gente quando

menino as coisas parecem maiores. Ela acaba sendo a imagem de como esses fatos aparecem depois do romance, quer dizer, eles aparecem um pouco engrandecidos. Ariano Suassuna: É verdade, é verdade. Paes Loureiro: É que está ligada a uma experiência vivencial.

7 O paraibano radicado no Rio de Janeiro Bráulio Tavares (1950) é poeta, escritor e roteirista, além de pesquisador de literatura fantástica e de ficção científica. Em 1992 compilou a primeira bibliografia sobre o gênero fantástico, o Fantastic, fantasy and science fiction literature catalog.

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Ariano Suassuna: Pois foi assim que surgiu o Romance d’A Pedra do Reino. De certa maneira

eu estava, sem querer, realizando aquela Vida do presidente Suassuna, cavaleiro sertanejo na Pedra do Reino. Paes Loureiro: E é interessante a estrutura do romance. Por exemplo, cada personagem

acaba sendo um centro do microcosmo que se liga ao outro, e que você não pode mais mexer a partir de certo momento. Isso acontece comigo no caso de um poema ou de um texto de prosa. O momento em que você se sente mais forte é quando diz: “Está pronto, vai-se embora.” É como se você se libertasse. E aquela complexidade toda do Romance d’A Pedra do Reino resulta dessa visão provavelmente que você trouxe. Ariano Suassuna: É verdade. E foi em parte uma certa purgação, uma certa catarse, por-

que eu não conseguia nem falar sobre a morte de meu pai, mas depois desse romance, eu consegui. Paes Loureiro: A literatura fez você “transviver” aquela situação... Ariano Suassuna: Exatamente. Eu consegui, graças a Deus, com uma forma literária, dar

uma certa legitimidade estética a um fato terrível para o qual não tinha salvação metafísica possível. Então eu procurei dar uma salvação estética com o Romance d’A Pedra do Reino.

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Lêdo Ivo Poeta, romancista e ensaísta alagoano, iniciou sua formação literária no jornalismo. Formou-se em Direito, em 1949, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Editou seu primeiro livro de poesia, As imaginações, em 1944, e logo após, em 1945, Ode e elegias. Lançou-se como romancista em 1947 com As alianças e entre suas obras merecem destaque os romances Ninho de cobras (1973) e A morte do Brasil (1984), os poemas “Finisterra” (1972) e “A noite misteriosa” (1982), o livro de crônicas A cidade e os dias (1957) e o ensaio Poesia observada (1967). Na década de 1950, traduziu Rimbaud e Guy de Maupassant para o português. Ocupou a cadeira de número 10 na Academia Brasileira de Letras, de 1986 até a data de sua morte, em 23 de dezembro de 2012.

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Lêdo Ivo: Quando eu estreei, em 1943, aos 19 anos, eu era o poeta mais jovem do Brasil.

Agora, continuo sendo o mais jovem mas também sou o mais velho, de modo que tenho a experiência desse longo percurso. Quando eu estreei, o Brasil era diferente, a visão que se tinha da literatura era diferente, nós vivíamos na Galáxia de Gutenberg, a literatura era uma ocorrência unicamente verbal, os gêneros literários eram mais ou menos delimitados com as suas fronteiras: romances, contos, poesias. Os gêneros se refletiam em qualquer trabalho. Hoje a tendência da literatura é ser uma coisa híbrida, que transgride o gênero. Eu mesmo vivi essa experiência. Como a literatura era uma ocorrência verbal, o escritor brasileiro, o poeta, era uma figura ilustre e eminente da literatura. Era o tempo do Carlos Drummond de Andrade, do Manuel Bandeira, do Augusto Frederico Schmidt, do Jorge de Lima, do Graciliano Ramos. O escritor brasileiro era figura privilegiada do cenário literário. Os best-sellers que surgiam traziam para o Brasil notícias de escritores fundamentais da literatura do século 20, como por exemplo, Thomas Mann, Marcel Proust, Sinclair Lewis, Charles Morgan, que hoje está muito esquecido. Até o conceito de best-sellers era diferente, não era essa literatura que, de certo modo, podemos chamar de lixo planetário encontrado em Tóquio, em Paris, em Nova Iorque, em Toronto, em qualquer lugar. As livrarias hoje também são praticamente planetárias, têm a mesma arquitetura, a mesma topografia em qualquer lugar do mundo. Os livros de poesia hoje estão na última prateleira, antigamente estavam na prateleira principal. O mundo sofreu muitas modificações, os poetas hoje são figuras clandestinas, não são mais figuras visíveis. Várias causas contribuíram para que isso ocorresse, a globalização, o grande projeto, a grande revolução tecnológica, o surgimento de novas linguagens como a internet, a televisão, o cinema. Percebo, enfim, que estou vivendo em um mundo diferente e neste mundo eu sou ao mesmo tempo um integrante e um estrangeiro, um sobrevivente. Paes Loureiro: Mas acho que com isso tudo se tem uma chance excelente de distan-

ciamento desse processo que deglute quem está envolvido nele, e que perde às vezes a dimensão crítica, enveredando por caminhos que ainda não são muito definidos. Diz-se, hoje, que a arte vive no estado gasoso, quer dizer, ela estaria em toda parte, mas não seria visível. Lêdo Ivo: Sim. Em toda parte e em parte nenhuma. Hoje realmente há uma espécie de

conúbio de arte. O cerne dominante da poesia era exatamente o encantamento verbal,

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a musicalidade. A poesia era mais próxima da música do que de qualquer outra arte. Aquela fórmula do Verlaine: “De la musique avant toute chose.”8 As novas gerações propendem para uma poesia mais visual, uma poesia que pode ser até um exercício topográfico. Em lugar de continuar exclusivamente na vertente musical, na vertente do ritmo — e poesia é ritmo fundamentalmente —, ela tem transmigrado para a área da pintura, da tipografia e até da propaganda, com a incorporação de novas linguagens que antigamente eram estranhas à poesia. Não há, entre os jovens, pelo conhecimento que tenho, uma poesia encantatória, baseada não apenas na retórica fundamental, mas na transgressão dessa retórica para novas conquistas dentro da visão verbal da poesia. Paes Loureiro: A poesia sempre foi uma espécie de índice de valor, tanto que quando

algo tem um grande valor artístico, de profunda sensibilidade, diz-se que é muito poético. Você se sente um poeta? Lêdo Ivo: Sim. Sinto-me fundamentalmente um poeta, mas a minha preocupação foi

que meu trabalho tivesse uma certa qualidade artística, uma certa dimensão artística. Sempre me considerei um artista literário, tanto na prosa como na poesia. E tenho a impressão de que essa visão da arte como um objetivo a ser alcançado está sendo desprezado. Na minha opinião, a poesia corresponde ao uso supremo da linguagem, já que há várias linguagens, desde a familiar, a coloquial, a pública e a literária, que tem vários níveis, desde a linguagem da prosa até uma espécie de culminação que seria a língua poética propriamente dita. Tenho a impressão de que essa velha e multissecular preocupação do poeta não tem sido obedecida nos últimos decênios. Muitos poetas jovens fazem uma poesia coloquial, uma poesia desprovida de encanto, e também uma poesia muito cingida, como a poesia modernista no Brasil. Por exemplo, no meu caso pessoal, eu surgi cronologicamente em 1945, na época houve uma espécie de “Geração de 45”.9 O que caracterizava aqueles jovens era a obsessão formal. Nessas gerações eu sempre fui considerado uma espécie de “ovelha negra”. Tinha até a história do Sérgio Buarque de Hollanda, grande crítico da época, que dizia que essa nova geração era formada por jovens poetas de nomes compridos como João Cabral de Melo Neto, José Paulo Moreira da Fonseca, Fernando Ferreira de Loanda, Paulo Mendes Campos, 8 Trecho extraído do poema “Arte poética” (1874), do poeta francês Paul Verlaine (1841-1896), publicado 10 anos depois na coletânea Jadis et naguère. 9 A Geração de 45 surge no pós-guerra em contraposição aos excessos do verso livre, bandeira do Modernismo brasileiro. Seus autores, influenciados pelas mudanças políticas e culturais da época, buscaram um aprofundamento na linguagem e o desenvolvimento de um traço formal.

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Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva e um poeta de nome curto e versos longos chamado Lêdo Ivo. Poesia, literatura, é diversidade. Não se pode conceber uma geração como uma coisa compacta, que obedece a um só caminho. A poesia apresenta vários caminhos, cada poeta tem o seu. Mas naquele tempo, o que abria caminho para você era o julgamento do literário. A crítica era a única janela que se abria para o escritor. E havia grandes críticos, como Álvaro Lins, Tristão de Athayde, Sérgio Buarque de Hollanda, Sérgio Milliet, Antonio Candido, Wilson Martins. Esses críticos é que diziam se a sua poesia era boa, se era ruim, se o seu romance era bom, se era ruim. Havia uma espécie de interlocução entre o grande crítico e uma pequena massa de leitores. Foi isto que fez a glória de um Graciliano Ramos, de um Jorge Amado, de um José Lins, de um Bandeira, de um Drummond: o reconhecimento do escritor pelo crítico. Hoje não há mais esse reconhecimento. Se eu fosse um jovem poeta acho que terminaria silencioso, pois a referência crítica agora ou é o diretor de jornal ou de TV, que manda fazer uma matéria para o Segundo Caderno, que manda fazer uma reportagem sobre você, o que dá cinco segundos de notoriedade e cinco anos de silêncio. O único caminho é esse ou então o do resenhista literário, que geralmente aborda o seu livro de uma maneira cosmética. Quando publiquei As imaginações, em 1944, houve mais de 60 artigos de todo o Brasil. Durante muito tempo, quando os escritores publicavam um livro havia manifestações críticas em todos os estados, geralmente havia o crítico estadual, que recebia o livro que era enviado pelo editor. Hoje não é assim. Os jovens poetas e os jovens romancistas dependem exatamente dos caprichos do universo midiático e assim o destino da literatura brasileira hoje depende dos segundos cadernos, os cadernos literários, que são muito raros, muito voltados para a literatura estrangeira. Sinal da colonização literária, já que nos grandes países como Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Itália é o escritor nacional, é a produção nacional o centro das preocupações da crítica. Aqui no Brasil é diferente. Como é um país periférico e os autores brasileiros não produzem lucros, não são um produto mercadológico, a indústria editorial se volta mais para os grandes best-sellers. Hoje o best-seller não é mais situado geograficamente, é uma ocorrência mundial, cosmológica, planetária, o livro já nasce best-seller, já nasce com um mercado. Antigamente o romancista era um contador de histórias, vindo da grande tradição de Petrônio, com Satíricon, de Cervantes, do Dom Quixote, como Balzac, Robert Louis Stevenson, Stendhal, Joseph Conrad etc. Hoje o romance está abandonando essa linha, há romancistas cerebrais, foi abolida a história, foi abolida a personagem,

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foi abolida a paisagem. A ficção se tornou uma coisa muito híbrida, até um pouco ensaística, visitando outros territórios, e talvez isso tenha afastado o leitor. Porque o leitor pode estar atrás de uma história. Paes Loureiro: Pode ser. Lêdo Ivo: O homem é um animal, como diz Goethe, “um animal que arrepia a paixão

da fabulação”, do enredo. Aliás, há uma frase de Edgar Alan Poe que diz “the universe is a plot of God”, ou seja “o universo é o enredo de Deus”, quer dizer, tudo tem enredo, como nas escolas de samba. E talvez seja a falta de enredo que leva um leitor de hoje a enveredar por histórias que enchem sua imaginação. Não existe autor sem leitor. Para ser poeta preciso de alguém que leia meu poema, porque enquanto o meu poema estiver na gaveta ou ninguém tiver lido, ele não existe, o poema só existe desde que lido, e lido de uma maneira múltipla. Na minha experiência, de autor insistente, noto que um dos segredos da literatura está exatamente na plurissignificação do texto. Cada leitor lê seu texto de uma maneira: para um ele é triste, para outro é alegre, para outro é cômico ou é austero etc. E mesmo a interpretação do autor não é única. Talvez seja esse o segredo da literatura, o segredo para um escritor se tornar clássico. O Machado de Assis que lemos hoje não é o Machado de Assis de antigamente. Quando surgiu, a visão que se tinha dele era a de um escritor afeiçoado a Anatole France, a Guy de Maupassant. Depois houve a fase em que Machado era considerado um humorista, depois o Augusto Meyer10 fez uma ligação entre ele e Dostoiévski, com o homem do subterrâneo. E hoje a gente lê Machado de Assis ligando-o a escritores do século 20 como Kaf ka, como Conrad e como Henry James. É outro o Machado de Assis que nós lemos. Cada geração tem uma visão nova da literatura e o escritor depende disso, a obra dele não é uma coisa imóvel, é uma coisa sempre em movimento. Paes Loureiro: Mas isso é o que faz um clássico. O escritor clássico é alguém que escre-

veu em outra época e que é lido em cada época como se pertencesse a ela. Lêdo Ivo: É claro. Eu leio um livro várias vezes, todo ano leio A cartuxa de Parma,

do Stendhal, ou Dom Quixote de La Mancha, do Cervantes, ou Lord Jim, de Conrad, ou Em busca do tempo perdido, de Proust etc., exatamente porque quando eu os releio estou lendo um livro novo e não aquele livro que li no ano anterior... Esse encanto Augusto Meyer (1902-1970), poeta, ensaísta e professor gaúcho, publicou, em 1935, um ensaio minucioso sobre a obra de Machado de Assis, colaborando na valorização de sua obra na crítica literária. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1960.

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que a gente tem por A ilha do tesouro, do Stevenson, pelo Em busca do tempo perdido, do Proust... sempre se descobrem coisas novas, coisas que ele disse e a gente não tinha captado na primeira leitura. Sempre digo que o meu leitor não é aquele que me lê, é aquele que me relê. Paes Loureiro: Como é que você vê essa situação na qual o escritor, de qualquer idade,

é o produtor da sua divulgação, via internet? Como é que fica a questão do valor? Lêdo Ivo: Uma das coisas que mais me impressionam no Brasil é a mudança sobre o

procedimento do escritor. Merece até estudo de natureza sociológica. Uma vez fui procurado por um agente que queria fazer um blog pra mim. Ele alegava que se eu não tivesse um blog iria desaparecer inteiramente. Eu estava na Galáxia de Gutenberg11 e tinha que passar para a outra galáxia. Eu me recusei. Não tenho blog, não tenho celular. Esse mundo no qual o próprio autor é uma espécie de propagandista de si mesmo, aquilo que na Paraíba se chama de “marquetingue” é totalmente inconcebível para mim. É um mundo novo e de qualquer maneira minha idade é diferente. Embora me sinta um estrangeiro, sou também um integrado porque, como escritor e como homem, sou contemporâneo de mim mesmo, viajo de avião... Na primeira vez que fui a Paris para estudar, a viagem durou dois dias de avião, no Constellation da Panair, que parava em Dakar, parava em Lisboa, parava não sei onde. Hoje, em 10 horas e meia estou em Paris, estou em Madri. Sou um beneficiário desse progresso econômico e tecnológico. Mas é preciso acentuar que, como diz Ezra Pound, em arte não há progresso. Minha teoria é que desde Platão e Aristóteles, a filosofia não andou um passo. E que desde Cervantes também não andou outro passo, desde Shakespeare o teatro não andou um passo e a poesia também não, desde Dante e Camões também não progrediu. Nos manifestamos da mesma maneira porque o grande poeta de hoje, como T.S. Eliot, Paul Valéry ou Paul Claudel, é diferente da poesia anterior, são novos parâmetros, mas é o mesmo nível. Não há progresso em arte. O fim da arte é igual ao começo. As referências, os parâmetros são os mesmos. É uma ilusão o escritor moderno pensar que, como ele diz as mesmas coisas de uma maneira diferente, está dizendo coisas novas. Não, absolutamente. Está dizendo coisas relacionadas com a humana condição. Nós, como poetas, como escritores, só podemos falar da nossa condição, das nossas eventuais grandezas e ostensivas misérias e do mundo em que vivemos. Não há outro caminho. Os temas literários continuam os 11 A galáxia de Gutenberg, livro lançado em 1962 pelo filósofo canadense Marshall McLuhan (1911-1980), aborda o tema da descoberta da tipografia por Johann Gutenberg e as mudanças que esta operou na transformação da tecnologia medieval para a moderna. O conceito de galáxia é relacionado às diferentes fases da sociedade humana e o impacto sofrido por esta tecnologia.

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mesmos ditos de outras formas, com outros métodos, já que não é necessário utilizar decassílabos ou alexandrinos, pode-se utilizar outras formas para o verso. Mas o problema é que não devemos pensar que a grande escalada tecnológica atual também corresponde a uma grande escalada espiritual, artística, pelo contrário. Outro problema do mundo é a falta de espiritualização do homem, cada vez menos animal espiritual e mais um animal de consumo. Isso me impressiona muito. Todas as vidas concentradas em consumir, em comprar, em ganhar dinheiro etc. Todo homem é criativo, todo mundo deveria escrever poemas, romances, mesmo que não tivesse uma dimensão artística muito grande, mas pelo menos como afirmação pessoal. Paes Loureiro: O que me preocupa, Lêdo, é que o imediatismo que representam os

novos meios leva também a uma espécie de superficialização do uso. Por exemplo, a poesia foi retirada das aulas de literatura e substituída pela letra de música, que é um poema, mas que não é um poema que tem independência como poema. É um poema pela metade que se completa pela melodia. Lêdo Ivo: É. Em minha opinião, um dos maiores crimes que já foram cometidos no

Brasil foi, durante a ditadura militar, a instituição da chamada Comunicação e Expressão nas escolas, que entrou em lugar de um ensino mais clássico. Até a caligrafia foi abolida. Ainda hoje me orgulho de ter uma letra legível e límpida na minha dedicatória. Suprimiram a gramática. Quer dizer, suprimiram tudo e a tal literatura virou expressão de comunicação. A obsessão pela novidade, pela valorização do escritor contemporâneo em desfavor da nossa grande tradição clássica, aquilo que o Afrânio Coutinho12 chama de “tradição afortunada”. Antes a gente lia os clássicos portugueses. Lembro de Última corrida de touros em Salvaterra, do Rebelo da Silva. José de Alencar sobre o Vale do Paraíba, essas coisas ecoavam, tínhamos outra visão do que fosse literatura. Os professores começaram a colocar letra de música e esqueceram que uma coisa é o poema do poeta de gabinete e outra coisa é o poema com música que tem outra estrutura. Por exemplo, a coisa mais besta do mundo é aquele primeiro verso do Vinicius de Moraes, “Olha que coisa mais linda”, isso não quer dizer nada. Qualquer pessoa iletrada diz isso o dia inteiro. Em música ganha uma dimensão encantatória: letra de música é letra de música. É um negócio diferente.

12 Afrânio Coutinho (1911-2000) foi um importante crítico literário baiano, membro da Academia Brasileira de Letras e editor da Enciclopédia da Literatura Brasileira (1ª edição de 1990), referência entre os pesquisadores da área pelo levantamento minucioso e criterioso do conteúdo.

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Paes Loureiro: Exatamente. Contém elementos poéticos, mas é letra. Lêdo Ivo: A adoção desse negócio de Comunicação e Expressão, esse crime, foi lavran-

do cada vez mais o conhecimento, eu digo isso com minha experiência de pai, assisti isso na educação escolar de minhas filhas. Suprimiram o latim das escolas. Quando fiz o vestibular de Direito na Faculdade Nacional de Direito o que me garantiu passar foi exatamente o latim. Colocar o mundo sob o signo da comunicação para mim é uma imbecilidade porque nós vivemos em um mundo da incomunicabilidade, as pessoas são cada vez mais incomunicáveis, as pessoas cada vez se comunicam menos, as jovens gerações quando se encontram com a gente dizem “Oi” não dizem mais “Como vai o senhor? Como vai você?”. “Oi”. É quase um som. São gerações guturais porque não aprenderam na escola a se exprimirem, essa é a verdade. Os professores também são filhos da Comunicação e Expressão, não têm nenhuma visão do que seja a tradição literária, do que seja o passado, do que seja iluminação do passado por uma visão crítica adquirida no presente etc., um verdadeiro círculo vicioso. Tenho netos, me interesso muito em saber o que eles sabem e o que eles não sabem. Se você perguntar quem é Cruz e Sousa eles não sabem. É tão escandaloso tudo isso no Brasil. Como o Modernismo, por exemplo. O paulista criou o mito de que correspondia à descoberta do Brasil, o que é uma mentira porque quando houve o Movimento Modernista em São Paulo, com Mário de Andrade, Oswald de Andrade etc., houve no Recife outro modernismo, o modernismo de Gilberto Freyre, de Zé Lins que, de certa maneira, foi um modernismo muito mais consistente. Enquanto em São Paulo todo mundo imitava Marinetti,13 no Recife lia-se Proust, Lawrence, Kaf ka, Joyce e todos aqueles escritores ingleses que Gilberto Freyre, quando chegou lá na década de 1920, tinha disseminado. Portanto, a própria história literária do Brasil se baseia em certas mentiras e em certos mitos. E também não se pode dizer que o Modernismo brasileiro descobriu a literatura brasileira e descobriu o Brasil, porque o maior acontecimento que o Brasil já teve literariamente foi o Romantismo. O Romantismo, com poetas geniais como Álvares de Azevedo, Castro Alves, Gonçalves Dias, com romancistas como José de Alencar, que implantou a prosa brasileira por excelência. O Romantismo foi a fundação da literatura brasileira e a fundação do sentimento de nacionalidade. 13 Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), poeta e escritor italiano, foi autor do Manifesto futurista, de 1909, texto que marcou a criação do Movimento Futurista. Além disso, foi fundador da revista Poesia e autor do texto teatral Le roi bombance (O Rei Pândego, 1909), do romance Mafarka o futurista (1910), entre outros.

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Paes Loureiro: Exato. E a acumulação desse acontecimento é que dá a força atual. Lêdo Ivo: A visão, por exemplo, que os modernistas de São Paulo têm da literatura bra-

sileira é uma visão cosmética, mítica, às vezes até etnográfica, engraçada. Eles nunca saíram. Como sou alagoano e descendente dos índios caetés, dos índios antropófagos, sou descendente provado e comprovado, costumo dizer que o único escritor antropofágico no Brasil sou eu. Não há outro, porque os outros são antropófagos de papel. Eu sou antropófago de sangue. Os meus ancestrais comeram o bispo Dom Fernando Sardinha. Paes Loureiro: Muitas vezes encontramos pessoas que fazem interpretações bacanas,

legais, sérias da nossa poesia e encontram ângulos, dimensões, que nunca tínhamos imaginado e são maravilhosos, às vezes até mais interessantes do que a nossa visão de escritor. Lêdo Ivo: É claro, evidente. É claro, a literatura vive disso. Há na literatura a parte do

leitor, que considero muito importante, é uma parte da invenção. O leitor não é um consumidor passivo do livro, o leitor inventa aquilo que lê. Ele recria o livro. Aliás, você tocou em outro assunto, que merece ser ventilado: o problema da criação literária tem uma dimensão pessoal e íntima que varia de escritor para escritor. Há escritores que reelaboram, reescrevem, aqueles que castigam o estilo. E há escritores cuja criação literária é um acontecimento, os poemas já vêm na forma nitidamente acabada. É o meu caso pessoal, por exemplo. Isso intrigava Guimarães Rosa. Nesse tempo eu escrevia um artigo semanal no Estado de S. Paulo e ele pensava que eu passava a semana inteira capinando o texto. Eu explicava que não, que escrevia aquele texto na redação da Tribuna da Imprensa, onde eu trabalhava. Para alguns escritores, quando ocorre o fenômeno ou o ato da criação literária, o poema já vem feito, o capítulo de romance já vem feito, outros não, vão trabalhando. Isso já é um sinal da diversidade, da pluralidade e da multiplicidade da criação artística. Os escritores não são iguais. Todos são desiguais e cada um tem o seu método, o seu sistema de criação e isso nem sempre é entendido. Acho Jorge Amado um escritor admirável, um dos maiores da língua, e ele escrevia no primeiro jato. Zé Lins do Rego também. Já Graciliano Ramos vinha capinando, cortava as palavras etc. Rachel de Queiroz, por exemplo, embora seu texto dê a impressão de que seja muito trabalhado estilisticamente como se fosse de uma rendeira do Ceará que o fizesse, é também um texto jornalístico que ela fazia no primeiro jato.

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Paes Loureiro: Essa relação é interessante. Lêdo Ivo: Há poetas que retrabalham o poema durante meses e outros poetas não, o poema

vem com naturalidade. E o exemplo mais respeitável dessa vertente é Manuel Bandeira. O poema dele já vinha pronto, mesmo os sonetos, primorosíssimos, já vinham prontos. Há poetas que dizem que se sentam na mesa e esperam, e trabalham, falam muito em lucidez poética, outros acham que a poesia é uma espécie de vertigem, de acontecimento. Eu só escrevo quando o poema vem. Só sou poeta ou escritor quando sou visitado por mim mesmo, por esse eu que está dentro de mim que é o eu que escreve, que é o eu que faz poema. Toda poesia, toda obra literária é fruto de uma experiência pessoal, isso é tão importante que muita gente esquece que atrás de toda obra há uma experiência pessoal. Você tanto pode viver viajando, conhecendo o mundo inteiro, como você pode viver numa cidadezinha como Emily Brontë, Emily Dickinson, como Jane Austen, que fazia uma obra deslumbrante, de dimensão universal. O lugar em que você nasceu pouco importa. O que Tolstói diz, “Pinta bem a tua aldeia e serás universal”, ainda vale. A experiência pessoal não é apenas uma experiência do que você viveu, é a experiência do que você sonhou, do que você imaginou, da sua formação literária, da sua leitura, de tudo o que você faz, dos seus amores, dos seus ódios, das suas ambições, tudo isso forma um escritor, é um verdadeiro caldeirão que você tem que transformar em linguagem, atravessar a fronteira da experiência pessoal para a da linguagem que é um outro mundo, que é a outra coisa, como diz Goethe. Cada escritor é o resultado de uma experiência pessoal inconfundível e que não se repete, por mais grandiosa ou por mais modesta que seja sua obra. Paes Loureiro: É a vida do sentimento que é formalizada. Não acredito, por exemplo,

em determinadas normas ou leis ou doutrinas, que criam até uma fita métrica tipo “80% de transpiração”, isso é uma bobagem completa. Lêdo Ivo: Você joga para fora o que você recebeu. Poesia é experiência. Paes Loureiro: Experiência sintetizada e transfigurada. Lêdo Ivo: É, e transfigurada é a sua experiência pessoal, você só pode falar disso. Outra

besteira aqui no Brasil é a supervalorização do poema lacônico, do poema exato, do poema preciso. Há que se levar em consideração que há poetas que tem mais coisas a dizer do que outros. Victor Hugo, por exemplo, tinha mais coisas a dizer do que Baudelaire, por mais importante que seja Baudelaire. Inclusive os professores de literatura aqui no Brasil vivem repetindo que Baudelaire foi o criador da poesia moderna. O

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criador da poesia moderna foi Homero. Depois de Homero foi Dante, depois Shakespeare, depois Victor Hugo. Paes Loureiro: Baudelaire traz para a cidade a simbologia da poesia. Lêdo Ivo: Mas essa cidade já está em Victor Hugo. É que pouca gente, ou nem todo

mundo, lê Victor Hugo, que é realmente o maior poeta francês. E no Brasil, há pouco, havia a mania do poema curto, do haicai. Um haicai pode ser muito mais prolixo do que uma ode. Não é verdade. Quer dizer, não é a extensão do poema que determina o seu grau de concisão, de exatidão. Paes Loureiro: Exatamente. É a intensidade da expressão. Lêdo Ivo: Como poeta eu sou mais exato e mais preciso do que o meu querido amigo

João Cabral de Melo Neto. Mas minha exatidão é diferente, o conceito que tenho de exatidão é diferente. Você não pode medir a poesia só pela métrica, pensando que se o poema é curto, logo é um bom poema, pelo contrário, pode ser curto e ser um mau poema, pode ser longo e ser um ótimo poema, pode ser curto e ser um bom poema e pode ser longo e ser um mau poema. Embora a gente viva em uma época na qual os grandes poemas épicos, como “O cemitério marinho”, do Valéry, são curtos. Mas há exceções, “Os cantos”, do Ezra Pound, são uma coisa torrencial. Paes Loureiro: Oceânicos. Lêdo Ivo: No Brasil há, especialmente, “Invenção de Orfeu”, do Jorge de Lima, que dá

de dez a zero, em todos os cultores do poema de calça curta. É um turbilhão, é uma vertigem, é uma coisa sonambúlica. Não acho que seja um poema épico, é uma multidão de poemas, é uma galáxia de poemas. E é uma explosão de genialidade impressionante, o que coloca o Jorge de Lima ao lado de Drummond e de Bandeira como os três grandes maiores poetas do século 20. Paes Loureiro: E com um brilho. Bandeira, com aquela individualidade dele, ainda é

um grande mestre... Lêdo Ivo: É impressionante. Eu tive um grande convívio com ele, foi o poeta brasileiro

com o qual eu mais convivi, da geração anterior a minha, e tem uma obra impressionante, porque é uma obra pessoal, marcada pela experiência viva que ele tem. É um grande artista.

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Quando a morte cerrar meus olhos duros – Duros de tantos vãos padecimentos, Que pensarão teus peitos imaturos Da minha dor de todos os momentos? Poucos poetas de língua portuguesa têm condições de exprimir em um quarteto essa dor de ser homem, essa dor de amar e de não amar, de viver, e de morrer. É impressionante. Paes Loureiro: E a partir de um cotidiano surpreendente. Lêdo Ivo: Ele mostra que, em certo sentido, poesia é emoção. O que faz o poema é a capa-

cidade que você tem de emocionar o outro. Sua capacidade de ser o fabricante de emoções para os outros, mesmo que você faça o poema friamente, o poema só ocorre se ele muda de temperatura quando chega ao leitor. Paes Loureiro: E a utilização da poesia que foi feita pela geração do pós-guerra na França,

mas que também se estendeu por outros lugares? Quando a poesia é levada para o quadro como uma colagem transcrita... E a nossa “Geração de 45”? Lêdo Ivo: É, mas isso não prosperou. Como viajo muito, dialogo com poetas de vários

países, sinto que o que se chamou de “Geração de 45” no Brasil, essa aspiração a uma poesia com estrutura poética sólida, formalismo e essas coisas todas, ocorreu em quase todos os países do mundo depois da Grande Guerra, naquela época de destruição. E aqui no Brasil também, o fim da guerra, a redemocratização, o suicídio de Getúlio Vargas, a morte de Mário de Andrade, uma espécie de epitáfio do Modernismo, era um mundo novo e todos pensavam que fosse um mundo paradisíaco. Na única conversa que tive com Mário de Andrade, e que foi um pouco decepcionante, embora Mário de Andrade seja uma das minhas grandes admirações e eu considere sua obra como a coisa mais maravilhosa produzida pelo Modernismo, ele achava que o mundo novo ia nascer de um mundo paradisíaco de liberdade, de alegria, o que não ocorreu. O mundo é ao mesmo tempo uma coisa muito boa e uma coisa muito ruim para todos nós. Mas é exatamente dessa substância do mundo que nós nos nutrimos, porque se o mundo fosse um paraíso, os poetas ficariam silenciosos, o mundo tem que ser um purgatório ou até mesmo um inferno, para que os poetas possam cantar. O inferno do Dante é 10 vezes superior ao paraíso, que é muito chato. Porque no paraíso todo mundo está na beatitude, na inocência, enquanto que no inferno a gente está pagando os seus pecados, as perversões sexuais, as roubalheiras. Todos os males que você pratica na terra estão lá

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no inferno. Basta dizer que o próprio Dante colocou seu mestre e professor no inferno porque ele era homossexual. Paes Loureiro: No trabalho do escritor, por exemplo, há uma relação com a experiên-

cia, com o testemunho do que aconteceu em uma época... Lêdo Ivo: O escritor é um testemunho e é um testemunho incômodo da sociedade,

os governantes não gostam do escritor. O testemunho dos romancistas do Nordeste é um negócio impressionante, aquela diferença de classe, a miséria dos cassacos, dos trabalhadores dos engenhos de açúcar, das plantações de cacau, a seca. Eu sou muito por uma literatura de indignação. Essa literatura de indignação floresceu no Romantismo com Castro Alves e Gonçalves Dias, e então no romance do Nordeste, com os romancistas que condenam a sociedade, denunciam seus males. Hoje a capacidade de imigração dos escritores, eles usufruem dos frutos da civilização, apaga essa necessidade de indignação. Antigamente o Nordeste era a pátria da imaginação, vinham do Nordeste os grandes escritores, com exceção, naturalmente, de Euclides, de Machado. Hoje o eixo está se deslocando muito para o Sul. Talvez os melhores escritores brasileiros surjam em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, é um fenômeno muito curioso. E outra coisa curiosa no Brasil atual é o predomínio da ficção. Não é uma ficção épica, é às vezes uma ficção meio intimista, uma ficção muito atrelada à visão das grandes cidades, ou até uma ficção meio kaf kiana, mas eu tenho a impressão que os melhores talentos brasileiros hoje são os romancistas e os contistas. Paes Loureiro: E há o prognóstico feito por Hegel, uma coisa também muito contesta-

da e às vezes mal-entendida, do fim da arte. Lêdo Ivo: Eu não acredito no fim da arte. Acho que só haverá fim da arte quando

houver o fim do mundo. Quando o planeta Terra derreter. Em primeiro lugar, porque o homem é um animal criativo, e há uma coisa que só a arte, só a poesia, ou a pintura, a arquitetura, ou a música, tem condições de dizer. A coisa do homem para o homem e com o homem, só a arte tem condições de dizer. Naturalmente que essa arte pode ter fisionomias diferentes, pode se ajustar a novas linguagens, pode haver até fusão de linguagens, essas coisas todas. Cristóvão Colombo, de Claudel, é uma peça teatral, mas é cinema também, usa imagens visuais cinematográficas, hoje o teatro e o cinema são casados com outras artes. Está havendo uma grande convivência, um conúbio de artes, mas eu não creio no fim da arte. Acho que o homem tem sempre

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algo a dizer, cada geração tem a sua coisa a dizer e diz. Essa dicção se incorpora ao patrimônio artístico da humanidade. Também a linguagem humana é uma coisa situada. A pintura é uma linguagem universal, a arquitetura também, enquanto que a literatura não, ela é uma linguagem que só pertence àquela língua, pode ser traduzida, mas não é a mesma coisa, algo se perde, mesmo a poesia é uma arte limitada à sua língua. Pode ser transposta, mas são aproximações. Paes Loureiro: Apesar de que há quem defenda que o tradutor busca o intraduzível.

Você é um grande tradutor. Como pensa a tradução? Lêdo Ivo: No começo da minha vida literária traduzi alguns livros do Guy de Mau-

passant, que admiro muito, traduzi um livro do Dostoiévski, O adolescente, e traduzi Rimbaud quando morei em Paris. Durante dois anos me concentrei em Rimbaud, estudei muito e traduzi os dois livros, Iluminações e Uma estação no inferno. Mas de repente descobri que não conseguiria mais traduzir livro nenhum. Já não sabia se escrevia residir, morar, habitar, então ficava com essas dúvidas em relação à palavra a escolher, em relação à musicalidade de certos versos franceses, do tipo como traduzir Phèdre, do Racine, “Ariane, ma soeur, de quel amour blessée, vous mourûtes aux bords où vous futês laissée!”.14 Há coisas que não se pode passar para língua nenhuma, e por isso encerrei minha carreira de tradutor. Mas é engraçado, existe uma tradução que o Graciliano Ramos, que foi meu amigão, fez de A peste, do Albert Camus, e ele tinha uma visão do francês muito insipiente. Essa visão que o escritor brasileiro tem do francês, da França, quando não vai ao país, quando não conhece. Uma visão distante. Ele até achava que Camus escrevia muito mal. Graciliano gracilianizou o Camus. Há até um ensaio de um professor, Cláudio Veiga, ensaio excelente, que mostra como Graciliano Ramos transformou o estilo do Camus em uma espécie de Graciliano tropical. Paes Loureiro: Você acha que uma obra rejeitada em certo período fica como um do-

cumento, poderá renascer pelo seu valor mais tarde? Lêdo Ivo: Às vezes renasce, às vezes não renasce. José Geraldo Vieira, um grande ro-

mancista que São Paulo produziu, embora ele não fosse paulista, nasceu nos Açores, tem dois ou três romances situados no Rio de Janeiro, depois veio morar em São Paulo, escreveu em São Paulo os três melhores romances paulistas que se pode imagi-

14 Trecho referente à obra dramatúrgica Fedra (Phèdre, 1677) do poeta e dramaturgo francês Jean Racine (1639-1699), pertencente ao ato I, cena III: “Ariane, minha irmã, daquele amor ferido vós morrestes às margens onde fostes deixada!”.

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nar: A ladeira da memória, A túnica e os dados e O albatroz e está inteiramente esquecido. Cornélio Pena, Lúcio Cardoso também. Paes Loureiro: Bernardo Élis, de Goiás. Lêdo Ivo: É, Bernardo Élis. Nem sempre há a posteridade. A notoriedade do Zé Lins

do Rego atualmente é menor do que deveria ser. Marques Rebelo é um grande romancista, um grande escritor, e aparece esporadicamente, embora tenha escrito uma das obras-primas da literatura brasileira, A estrela sobe. É um mistério, você não sabe o que o leitor quer. É por isso que Baudelaire chamava o leitor de hipócrita. Paes Loureiro: É o mistério e o desespero do escritor. Lêdo Ivo: Outra coisa que caracteriza a briga literária: certas auroras que aparecem, de

repente se descobre um autor, ele é cultivado, é lido e depois passa para o esquecimento, e assim por diante. Paes Loureiro: No caso do escritor, e do pintor também, quando a obra está pronta é

que começa sua vida, enquanto que nas artes cênicas, no teatro e na dança quando fica pronta acaba. Quando o ciclo se completa, ele acaba. Nesse ponto a literatura é como a pintura. Lêdo Ivo: E como a arquitetura também. A arquitetura é muito danificada pela passa-

gem do tempo, mas a literatura, a pintura, a arquitetura, a música são artes que independem da presença física do criador. Tanto para a gente ser lembrado como para a gente ser esquecido, que é o que acontece mais comumente, nós não precisamos estar presentes. Paes Loureiro: Você exemplifica muito bem a relação entre o local e o universal. Vive

em um local e por meio dele abre novas perspectivas... Lêdo Ivo: Eu me considero um escritor alagoano. Paes Loureiro: Sim, mas permanece não alagoanamente situado e isso é uma coisa que

é importante se levar em conta. Lêdo Ivo: Os escritores brasileiros mais alertas sempre projetaram em sua obra um

mundo, o seu mundo pessoal, o mundo da infância. Mesmo de uma maneira muito mascarada, como no caso do Machado de Assis: ele escondeu a sua vida pessoal, que

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aparece muito pouco na sua obra, ele não mencionou o passado dele, as origens, foi sempre muito pudico, inclusive porque vivia numa sociedade que exigia que ele se embranquecesse, uma sociedade muito marcada pelo preconceito ao negro, embora fosse uma sociedade até de mulatos. Porém, toda a obra do Machado de Assis, topograficamente, corresponde a uma autobiografia. Para mim, Machado é uma espécie de flâneur no sentido que Walter Benjamin fala do flâneur baudelaireano.15 É o caso dele, é o caso do João do Rio, que também é um grande escritor que está sendo valorizado atualmente. Paes Loureiro: Agora, por toda essa sua experiência, essa visão de mundo, esse mundo

de mudanças súbitas, como é que você imagina que a arte vai se comportar? Que possibilidades você vê? Por exemplo, já com a internet o livro eletrônico chega a lugares que nem imaginávamos... Lêdo Ivo: Começaram a sair livros eletrônicos meus nos Estados Unidos, na França, na

Lituânia e alguns até em edições piratas. É um mundo novo. Uma vez fui ao médico e ele tinha um livro meu pirata. Paes Loureiro: É uma glória, viu? Lêdo Ivo: É, eu acho que é uma glória. Jorge Amado ficava orgulhosíssimo quando

chegava na Turquia e diziam: “Esses livros seus são edições piratas.” Ele nunca tinha autorizado. Talvez os piratas tenham razão, aquela sua criação literária não devia ser um bem material como uma casa, como um automóvel; não devia ser algo que você desse ao outro, dadivosamente? Os escritores mais ambiciosos poderiam até dizer: “Eu escrevo para a humanidade, vou deixar o que tenho para a humanidade.” Embora a humanidade possa se resumir em dois leitores ou talvez no grande leitor chamado Ninguém. Paes Loureiro: É interessante essa sua proposição, porque leva a pensar o que é a no-

ção de autoria hoje. Já com o poeta espanhol Antonio Machado, por exemplo, se vê a relação com os heterônimos, ele tem aqueles pensamentos maravilhosos do Juan de Mairena. 15 O flâneur é um conceito de Baudelaire, cuja poesia representa a angústia vivida pelo indivíduo no século 19. Walter Benjamin retoma essa figura e a coloca como um crítico da sociedade moderna, revelando a face destrutiva do progresso, que escraviza o indivíduo. O flâneur observa e absorve a sociedade e as suas mudanças e cria, pela sua própria existência, um contraponto com os elementos do capitalismo, tornando-se um cronista da cidade, que se desvincula do privado e toma a rua como seu lar.

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Lêdo Ivo: Ele é um dos meus poetas prediletos. Inclusive os heterônimos são um negó-

cio muito curioso. Os heterônimos de Fernando Pessoa, por exemplo. Tenho uma tese de que ele roubou esses heterônimos do Antonio Machado, com Juan de Mairena, que foi anterior a ele, mas ele não disse uma palavra sobre isso. T. S. Eliot falava algo como “o mau poeta imita, o grande poeta rouba.” Todos os grandes poetas são ladrões num certo sentido. Por exemplo, esse negócio de “O poeta é um fingidor”, do Fernando Pessoa, eu descobri numa peça de Shakespeare. Que a poesia é um fingimento. Está lá. Inclusive eu acho que se pode remontar isso a Aristóteles, com a visão da obra de arte como uma mímese. Paes Loureiro: Antonio Machado tem uma teoria que sustenta que há uma transacio-

nalidade entre a poesia e a filosofia. Lêdo Ivo: É um poeta reflexivo, do ponto de vista da filosofia. Eu pertenço à linhagem

dos poetas que têm muita desconfiança da filosofia. Eu sei que há poetas filosóficos, como Antero de Quental, poetas se preocupando com a filosofia, como Eliot, como Valéry. Mas eu acho que são dois caminhos inteiramente diferentes, porque o filósofo está em busca da verdade. Como eu acho que não há verdade, eu acho que só há mentira, sempre, como poeta, estou em busca é da mentira, da mitologia, da patranha. Acho que são caminhos muito diferentes.

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H é li o S e n a Compositor, musicólogo e professor mineiro, começou a estudar música em 1959, quando ingressou na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre os anos de 1962 e 1970, estudou no Conservatório Tchaikovsky, em Moscou, onde concluiu seu mestrado em Musicologia Teórica. Na década de 1970, passa a lecionar Harmonia, Arranjos e Música de Câmara na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), além de chefiar o Departamento de Linguagem e Estruturação Musical do Instituto Villa-Lobos. Nos anos 1990, foi membro do Conselho Regional da Ordem dos Músicos do Rio de Janeiro e atuou no Sindicato dos Músicos como vice-presidente. Dedica-se ao estudo da música brasileira, com destaque para a produção da região Nordeste do país.

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Luiz Giani: Gostaria de propor que refletíssemos sobre o conceito de pós-modernidade

na música. Alguns tentam alinhá-lo a uma corrente específica; penso que há, já, uma tradição pós-moderna, uma vanguarda pós-moderna. Os compositores falam em vanguarda velha: “Aquela música nova dos anos 1960 já ficou velha.” Que relação há entre a vanguarda e a música do povo? Hélio Sena: Quando se fala de vanguarda se tem em vista um movimento de rup-

tura com correntes do início do século 20. Stravinsky, Prokofiev, os franceses e os próprios serialistas foram atacados e superados por correntes mais ousadas e que negavam mais frontalmente ainda o passado. Ao passo que essa pós-modernidade se caracteriza exatamente por uma heterogeneidade. Se considerarmos os autores dos últimos 10 anos, ou de 1995 para cá, um traço geral de sua música é essa multiplicidade de estilos coexistindo quase que pacificamente. Hoje não se encontra um compositor que tenha uma unidade de trabalho, os compositores são multifacetados. Qualquer compositor, mesmo entre os mais vanguardistas, combina música eletrônica com trio de piano, um acorde perfeito maior com recursos da música étnica. A isso se chama, atualmente, pós-modernidade. Luiz Giani: Os tradicionais também não se mantêm só na tradição; há um cruzamento

com essas conquistas. Hélio Sena: Não é possível encontrar no século 20 compositores tão harmonica-

mente homogêneos como se encontrava no passado. Mesmo compositores como Honegger e Stravinsky já manifestam uma diversidade muito grande de estilos na sua obra. Houve, porém, uma radicalização muito grande nos anos 1960/70, em que essas linhas entravam em confronto em um nível aguerrido de incompatibilidade de diálogo. Atualmente, parece que os ânimos serenaram. Começa a haver uma tolerância maior. Essa heterogeneidade convive nos conservatórios de criação musical. Luiz Giani: Mas existe ainda muita desconfiança entre esses grupos, elas aparecem na

literatura dos musicólogos, dos compositores, como na ciência. Às vezes o que os cientistas falam em público não corresponde ao que falam dentro do laboratório. Se falassem em público, gerariam muito descrédito. Acredito que entre os compositores também exista algo semelhante: o que dizem publicamente não tem o mesmo sentimento e as mesmas reflexões do seu círculo fechado.

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Hélio Sena: O politicamente correto está presente entre os compositores. Ser tolerante

é uma questão da democracia e do clima geral que vivemos hoje. Ainda existem, contudo, você tem razão, traços estilísticos e preferências. Mas não a ponto de criar verdadeiras ilhas de incompatibilidade de diálogo, como antigamente. Isso praticamente não existe mais. Você pode ir às salas de concerto no Rio de Janeiro e ver de modernos a neobarrocos misturados ao pessoal da ferrenha vanguardista. De certa maneira, isso é possível pelo fato de se ouvirem e conviverem no meio universitário, de estarem atuando nas orquestras etc., isso tornou muito mais flexível o radicalismo anterior. Luiz Giani: A sociologia e a musicologia se preocupam com a ligação da música com

a sociedade. A corrente nacionalista, principalmente quando recebia a influência do Jdanovismo,16 e os próprios marxistas chamam o Jdanovismo de marxismo vulgar, criticava o mecanicismo, a ideologização da matéria som. Essa crítica radical passou a colocar toda a vanguarda como expressão da burguesia decadente. Você se lembra disso, nos anos 1960, não? Poucos conseguiam desbaratar essa agressividade, esse dogmatismo. Hélio Sena: Os vanguardistas também eram dogmáticos. Acho que há um desvio de

objetivo do compositor nessa questão do progresso sem fim, que se torna uma espécie de cacoete do trabalho composicional deformador da própria geração do novo. Se torna artificial. Isso começou praticamente com a crítica, por volta de 1850, que dizia, pela análise estética, que os primeiros românticos (Beethoven, Schubert, Mendelssohn) transformaram a música. Então passou a existir uma espécie de exigência, cada compositor devia criar seu próprio idioma, como se a linguagem não fosse um dado coletivo. Passou a ser uma questão pessoal: “Olha meus recursos de linguagem, veja o que eu faço.” Quem observa os conservatórios europeus vê que a cabeça dos compositores e as práticas de produção passaram a ser orientadas não por algo muito sadio, como a busca do prazer ou do belo, impulsos subjetivos que são difíceis de definir, mas pela necessidade de transformar a harmonia, fazer encadeamentos novos, buscar ritmos novos, buscar dados objetivos que gerassem timbres diferentes. Ou seja, uma série de atitudes que não se pode dizer propriamente que é criação artística, mas uma postura muito mais de prestígio social, a necessidade de mostrar ineditismo e imaginar processos linguísticos independentemente da força Andrei Aleksandrovitch Jdanov (1896-1948), político soviético, membro do alto escalão do Partido Comunista e homem de confiança de Josef Stálin. Implantou um rígido código ético nas artes e na estética soviética, conhecido como Jdanovismo, visando à mobilização da cultura a serviço da ideologia do Estado.

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expressiva da obra. Novidades, transformação na harmonia, no ritmo, na instrumentação era o que se buscava. A primeira pergunta que se pode fazer é: O que isso tem a ver com a verdadeira criação artística? As modificações que naturalmente existem em Bach, Beethoven, não existem por eles as terem procurado. O impulso de criação vem de outra origem. Vem de uma necessidade expressiva que gerou transformação da linguagem. Agora a coisa se inverteu. A busca de novidades de linguagem faz com que se oriente todo o trabalho composicional para um ineditismo cujo valor artístico frequentemente pode-se colocar em dúvida. A produção de obras em massa faz com que percam completamente a comunicabilidade, que é um dado importantíssimo. Há grandes inovações em termos de linguagem, mas quem entende isso? O que significa isso? Essa exigência começou a gerar o hermetismo e as ilhas que existem ainda hoje, embora estejam mais abertas, são menos frequentes. Havia nos conservatórios da Europa uma angústia de busca do novo, uma espécie de insatisfação que levava muitos compositores, uma bancada inteira de compositores, a não aceitar espontaneamente sua forma de harmonização. Luiz Giani: O novo como princípio único. E a energia da expressão, de onde vem?

Para se chegar à humanização da música é preciso que ela se liberte da ditadura da fé, primeiro da fé medieval, e depois da ditadura de todas aquelas monarquias absolutistas. Mozart praticamente viveu sob a imposição, o autoritarismo da política, dos reis, da corte. Hélio Sena: Mas hoje em dia o que você chamaria de ditadura da fé? Luiz Giani: Hoje não, mas na Idade Média, quando a Igreja legislava sobre a música.

Ela, inclusive, criou um tal de diabolus in musica, não se podia entoar de Fá para Si, pois criaria dissonância e a música tinha que expressar a ordem do universo, a ordem divina. Hélio Sena: Os hinos eram todos litúrgicos, quase que exclusivamente a serviço

da religião. Luiz Giani: O interessante é que para se chegar à emancipação, como Marx já havia

apontado, era necessário que o capitalismo colocasse o indivíduo no pedestal. O preço foi alto. Se você coloca o indivíduo no pedestal, ele fica sem compromisso. Tanto é que a arte pela arte é um fenômeno que data da segunda metade do século 19. De Wagner a Schoenberg há um crescendo desse individualismo que exige a criação do

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novo independentemente de qualquer compromisso. A arte, nesse caminho do individualismo, foi levada a um beco sem saída... As ondas nacionalistas, que vêm se formando desde a metade do século 19, começam a expressar o desejo de compromisso. O compositor é um intelectual, o professor também é um intelectual, e pela posição nas classes sociais, o intelectual está afastado dos trabalhadores manuais que são a base do chamado povo. Essas correntes nacionalistas tinham um compromisso, um ethos, uma moral, uma ética, que o compositor individualista, preocupado com sua obra, não leva em consideração. Ele não faz arte para o público, sua preocupação é o novo. O nacionalismo tinha uma utopia, como a vanguarda tinha uma utopia. Ambos acreditavam que sua razão seria a única saída. Hoje há resquícios desse passado. Hélio Sena: O individualismo se projetou de maneira muito forte com o Romantismo.

A estética inteira era a da exaltação do indivíduo: o coração tem razão que a razão não entende, o coração nunca erra. Em grande parte, foi a consequência social de uma grande decepção com a revolução francesa o que gerou os movimentos de libertação nacional na Europa. A Polônia contra a Rússia, os Bálcãs contra a Turquia, na Europa Central houve movimentos de resistência ao Império Austro-Húngaro entre os compositores, quer dizer, a questão nacionalista na arte tinha uma base na história desses países em busca da liberdade. Mas quando lemos os pronunciamentos dos primeiros nacionalistas, vemos que há uma convicção um pouco exagerada. Glinka,17 da Escola Nacional Russa, chega a dizer que o compositor não inventa nada porque tudo vem do povo, que o compositor apenas arranja as entonações e as acrescenta ao que o povo cria. Ele subvaloriza a produção da subjetividade e do indivíduo compositor. Uma coisa a se observar é que essa apropriação dos compositores faz parte daquele mesmo sistema de apropriação do que vem da roça e que a classe urbana faz uso com seu interesse pessoal. Evidentemente, uma composição feita com citação de um tema folclórico era muito mais entendida pelo povo, mas ela não era tão expressão do povo assim, pois se dirigia ao teatro Bolshoi, às orquestras de Paris, fora casos, por exemplo, como Mussorgsky, que trabalhava com entonações e rítmicas do povo e fazia um trabalho de revolução contra o czar. O trabalho dos compositores deve ser entendido como uma contribuição de elite, contribuição que não estava agregada a nenhum movimento de levante popular, era uma visão dos intelectuais. No caso brasileiro, os nacionalistas, os Mikhail Ivanovich Glinka (1804-1857), compositor russo fundador da primeira escola de composição nacionalista daquele país, exerceu grande influência nas posteriores gerações de compositores russos, com destaque para o conhecido Grupo dos Cinco, formado por Rimski Korsakov, César Cui, Mily Balakirev, Modest Mussorgski e Aleksandr Borodin.

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revolucionários da época, os antigolpe militar chegavam ao ponto de, dedo em riste, dizer que o folclore era reacionário. O que vinha do povo era reacionário pelo fato de não ter letra de conclamação revolucionária. Ao contrário, às vezes o folclore tem letras de alto preconceito contra o negro, contra a mulher. Luiz Giani: A vanguarda é que tinha essa postura de negação da cultura do povo, contra

os nacionalistas. Hélio Sena: Hoje em dia há um panorama curioso. Com a invasão maciça de produtos

estrangeiros, grandes camadas de população – me refiro à periferia urbana, à favela e à população pobre – não têm acesso, propriamente, nem à música erudita e nem à cultura brasileira tradicional. Existe uma guerra sistemática contra todo e qualquer valor de coisas que vem do povo, que seriam representativas do atraso. Essa é uma ideia que veio com a substituição da máquina de rádio e de gravadora pela máquina de produção industrial da música, que implanta em grandes camadas da população um tipo de gosto e um tipo de assimilação de valores musicais que são completamente antagônicos à sua própria tradição. Na minha percepção de educador, esse processo deve ser visto de outra maneira. De uma maneira mais cuidadosa do que simplesmente a partir de pontos de vista ideológicos, pois a música tem um visgo, uma capacidade de entrar tão fundo na estrutura psíquica das pessoas, que elas se identificam a ponto de considerar, quando gostam mesmo de uma música, que aquilo é parte delas. A música é parte da personalidade, é parte dos valores. Então, um jovem que é roqueiro ou que imita hip-hop e que só ouve música americana não tem condições de aceitar uma acusação sobre a má qualidade da música. Ele se sentiria rejeitado. O tipo de música que ele ouve está entranhado tão fundo nele, que ele sentirá raiva de você. Ele simplesmente passa a odiar você como alguém que o rejeita. Luiz Giani: Hélio, você falou de ethos musical. Que qualidades, que propriedades, tem

a música do povo que ocupa um lugar tão importante na música brasileira? Hélio Sena: Quando ouvimos uma fuga de Villa-Lobos, de As bachianas, e depois

nos perguntamos qual o valor dessa fuga, e me refiro à questão do poder estético, o arrebatamento na nossa sensibilidade, percebemos que não é pela estrutura de fuga, mas pelo tema de seresta bem brasileiro que a valoramos. Ou seja, na obra de Villa-Lobos, da mesma maneira que no discurso de Glinka que citei e da mesma maneira que em Chopin, é aquilo que vem do povo que é responsável, em grande

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parte, não no todo, por fornecer nutrientes expressivos, de entonação, de rítmica, de melodia, de criação de forma. Esse recurso que vem do povo é simplesmente gigantesco e muito fecundo. Só que quando o compositor enfrenta uma realidade na qual é preciso contribuir para a transformação, encontramos valores que foram rejeitados, que são desconhecidos pela base e que já têm contra eles uma resistência. Existe uma ideia de identidade ideal, que, como teórico, como estudioso, reconheço como uma necessidade de que o Brasil tivesse uma homogeneidade criada a partir de nossos mais altos valores, que vieram da Península Ibérica e vieram da África e dos índios, um acervo gigantesco que está se perdendo. O ideal seria que tivéssemos respeito por esses valores e os cultivássemos. Não tenho a menor dúvida nesse ponto e penso, exatamente como Mário de Andrade, que ficar imitando processos e improvisação americanos para fazer sempre de modo inferior o que os americanos fazem, é uma extrema burrice. Mas, infelizmente, boa parte da nossa classe musical faz isso. Quando se trata de dar uma contribuição para a sociedade, porém, uma coisa é nosso ideal de identidade – uma identidade que seria homogênea, que seria de acordo com as tradições dos povos que constituem a nossa nacionalidade etc. – e outra é a identidade real, aquela que se propaga pelas emissoras de rádio e de televisão e que foi imposta pelos mecanismos naturais de absorção de cultura. Luiz Giani: A chamada comunicação de massa. Hélio Sena: Grande parte da população está submetida a esse tipo de linguagem, de

mensagem e de conteúdo que são a identidade real. E temos que trabalhar com ela, não adianta tentar impor uma identidade ideal. Luiz Giani: Gostaria de citar um sociólogo (desculpe, vou seguir duas vertentes de

pensamento, sociologia e música), um dos principais do século 20, Max Weber, que tem um texto muito difícil exatamente sobre essa racionalização que levou a humanidade a um certo desprezo pela riqueza da música do povo. Racionalizou a música a ponto de temperar o sistema. Isso é criação do século 18 para cá. Webber diz que o modalismo,18 que está na base musical de todos os povos do mundo, foi rompido pelo

Entre as mais antigas formas de organização sonoras documentalmente conhecidas destaca-se o sistema dos modos gregos antigos, tendo sido este adaptado no século 6 para uso na liturgia católica romana, dando origem ao sistema de organização das alturas musicais utilizado na Idade Média, denominado modal. Composto basicamente de sete escalas naturais, a saber, jônico, dórico, frígio, lídio, mixolídio, eólio e lócrio, referentes às alturas de Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si, o sistema modal foi dominante na música europeia por pelo menos mil anos, desempenhando uma função estruturante para a música daquele período. 18

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sistema tonal,19 que se apropriou dos 12 modos que estavam em circulação no século 16. Um monge suíço, Henricus Glareanus,20 partindo dos modos utilizados em sua época, que remontavam aos modos eclesiásticos e ao canto que vinha se formando desde que o Império Romano foi cristianizado, percebeu que o que mais se adequava à harmonia em construção eram dois modos, o lídio, que ele, incorretamente, chamou de jônico, e o eólio, que ele manteve com o nome correto. Não dá para dizer que é exatamente o que se cantava na Grécia antiga, mas há uma aproximação que resultou de uma adaptação. Então, no século 17 o jônico era chamado de modo maior e o eólico de modo menor. É interessantíssima a capacidade de um sociólogo, e nem sei se Weber era músico, refletir tão claramente sobre os princípios racionais da música, um texto complicadíssimo que aborda desde a escala pitagórica até o temperamento. Ele diz que todo o mundo está cantando e afinando o ouvido com o piano inglês, principalmente, quando, se fosse para seguir os modos antigos, o piano não teria 12 teclas na escala, mas 24, pois o Dó sustenido não é o Ré bemol. Essa riqueza da música do povo, diz Weber, se perdeu, como o refinamento do ouvido. A humanidade, a europeia, perdeu grande parte dessa liberdade. E ganhou, porque se passa de um tom para outro e a escala permanece a mesma. Ele chama isso de refinamento do ouvido das culturas antigas. Hélio Sena: Está aí uma questão cuja perspectiva de evolução ou de enriquecimento,

de incorporação de valores originais antigos, não vejo no horizonte. Por enquanto. Pode até ser que a informática, o computador, venha nos ajudar. Gostaria, porém, de chamar a atenção para o fato de que não se perdeu completamente a questão do ouvido natural. Pablo Casals, um violoncelista e professor de violoncelo do maior conceito, respeitado como músico no mundo inteiro, disse uma coisa que aparentemente é absurda: que no braço do violoncelo o Dó sustenido e o Ré bemol, para o efeito temperado, seriam a mesma nota. No processo de entonação ou entoação, quando se busca articular as alturas, as sensíveis inferiores, que se resolvem para cima, estão na borda da A partir da segunda metade do século 16, o sistema modal originado na Idade Média iria sofrer uma série de alterações internas em um processo de síntese, sendo praticamente substituído em fins do século 17 por outro sistema mais funcional, racionalizado e hierarquizado, denominado tonal. Tal sistema se constituiu a partir da sistematização de dois dos sete modos antigos, tendo sido adotados como modelo os modos jônico e eólio, constituindo um modo maior e outro menor que podem ser transpostos de forma modelar para qualquer altura entre os 12 sons da escala cromática (Dó, Dó#, Ré, Ré#, Mi, Fá, Fá#, Sol, Sol#, Lá, Lá#, Si), sendo a base em que se estrutura o sistema a organização hierárquica dos diferentes sons da escala ao redor de um som principal, a sua tônica, exercido como centro de atração para os demais sons que a constitui.

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Heinrich Loris, conhecido como Henricus Glareanus (1488-1563), foi responsável pela revisão da teoria modal medieval, expandindo o sistema de oito para doze modos em seu livro Dodecachordon, publicado em 1547.

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resolução. Elas estão o mais próximas possível, um Si é quase Dó, para criar a tensão necessária para a resolução. Luiz Giani: Menos de meio tom ou microtons... Hélio Sena: Exatamente. E as sensíveis superiores, aquelas que resolvem para baixo,

por exemplo Lá bemol para resolver no Sol, estão também muito próximas do Sol. A atração fica exacerbada pela proximidade, então Pablo Casals diz que no braço do violoncelo a distância entre Ré bemol e Dó sustenido é mais de duas vezes maior que a distância de Dó para Ré bemol. E ele chama isso de entonação de máxima expressão. Luiz Giani: Ele fazia isso, tocava? Hélio Sena: Fazia e ensinava aos seus alunos. Luiz Giani: E se uma orquestra está tocando um acompanhamento de um solo do Casals?

Se ela toca em um sistema temperado há um pequeno embaralhamento? Hélio Sena: Aí existem pequenas concessões, mas de modo geral os regentes de orques-

tra têm um problema entre a afinação da harmonia e a afinação da melodia. Como dá pequenas diferenças, o bom regente diz para um trombonista pegar o harmônico tal, no pedal tal para gestar a nota de que se precisa. Luiz Giani: No trombone, porque no piano não se consegue. Hélio Sena: No piano não se consegue. Ou seja, esse tipo de problema significa que

hoje em dia, embora vivamos com o sistema temperado e escrevamos em um sistema temperado, naturalmente nossa percepção continua fora do sistema temperado. Em grande parte, não totalmente. Isso, porém, traz um problema de difícil solução, há compositores que dividem a oitava em 36 partes, em 48 partes, para poder atender a esses requisitos de um ouvido natural. O primeiro problema é como construir os instrumentos apropriados. Luiz Giani: Seria o caso do piano, que com 12 notas cromáticas passaria a ter 24? Hélio Sena: E tocar isso como? E como escrever para isso? A escrita foi a grande pos-

sibilidade de construir as arquiteturas musicais que o Ocidente criou. Foi graças à escrita que tivemos ponto, contraponto, nota, contranota, e esse conhecimento foi

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elaborado durante séculos. A partir desse ouvido de polifonia, criou-se a percepção harmônica, que afunilou na tonalidade, mas que possibilita, por exemplo, pelo contraponto, a elaboração temática dentro da polifonia e a elaboração de grandes estruturas como são as fugas de Bach ou as sinfonias de Beethoven. Isso dificilmente aconteceria se não tivéssemos escrita musical. O apoio para se montar essas estruturas é o fator visual, é uma arquitetura que se apoia na visão. Luiz Giani: Uma questão que gostaria de abordar é a expressão música erudita. Certa

vez Guerra-Peixe disse: “Ninguém fala ‘teatro erudito’ e ‘teatro popular’, ninguém fala ‘cinema erudito’, ‘cinema popular’, é só na música que se tem esse vício.” Hélio Sena: Exatamente aquela que é mais comunicativa. Mais intuitiva, mais imediata. Luiz Giani: Theodor Adorno falava em “grande arte”, “música elevada”, como se a

popular não fosse elevada. Weber chama essa elevação de refinamento. Quando há o cruzamento de saberes que chegam ao compositor, que está afastado do povo em certo sentido, há um cruzamento também entre as classes sociais. Nesse cruzamento eu fico imaginando o trabalho da tribo dos compositores. Quem usa o termo “tribo” é o filósofo italiano Michel Maffesoli, quando estuda a cultura popular urbana. Ele não se refere à cultura do povo, mas àquela massificada, individualizando os grupos conforme seus gostos e estilos, assim, há a tribo dos punks, a dos funks, a tribo do rap, a do reggae, a tribo do pop brasileiro, do rock nacional, do rock estrangeiro, a designação faz parte da modernidade, não temos mais as divisões marcadas pela classe. Para o segmento dos compositores (para não ter de usar a palavra tribo, nem a palavra classe) que valorizam a música do povo, resta a tentativa de aproximação entre essa cultura e o intelecto. Os compositores se intelectualizam, vão dar aulas na universidade. Guerra-Peixe me dizia, certa vez: “Todo esse pessoal burguês nacionalista fica usando temas que são populares, mas ninguém nunca foi a um terreiro de candomblé! Não foi a um forró!” E quantas vezes encontrei Guerra-Peixe na gafieira, aqui no Rio de Janeiro! Ele tinha a maior vaidade de dizer: “Eu pesquisei o folclore.” Ia a São Paulo, a Pernambuco, e nasceu em Petrópolis. Hélio Sena: Toda a Baixada Fluminense é região de folias de reis. Naquela época,

de chorinhos mas, sobretudo, de folclore. As cantorias de igreja são importantíssimas, as rezas de tradição. Os que nasceram no interior simplesmente não têm como negar a origem. Se estudamos a história da música, a contribuição dos povos, en-

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contramos subsídios importantíssimos para a expressão da mais forte modernidade. É possível encontrar no Tibet, na Mongólia, em tribos africanas, inclusive, uma sonoridade que parece muito moderna. Não é tonal, é organização de ruídos etc. Entendemos o ritmo como pura e simplesmente apoio e impulso em frações regulares que possibilitam o movimento de dança, no entanto, não é assim. Ao ouvir os tambores de Burundi de uma tribo africana, do povo africano, encontramos uma maneira de abordagem do ritmo completamente criativa e diferente. São blocos e frases que se chocam e se aglutinam, uma coisa forte e que é uma contribuição para o ouvido moderno. Aliás, você sabe se existe alguma notícia que esclareça melhor a questão da origem das escalas? Como surgiram, em que condições essas alturas foram se organizando? Existe algum trabalho sobre isso? No tempo em que eu estudava musicologia não existia nenhuma explicação cabal para esse fenômeno. Mas os modos vieram da antiguidade, existem no acervo da música popular brasileira, do folclore, e são muito diferentes da tonalidade. Há uma diferença fundamental, a cadência autêntica. São diversos traços que caracterizam a tonalidade. Há a da cadência autêntica, formada pelos acordes de dominante e tônica, com a atração da nota sensível; há as modulações que generalizam isso para todos os graus, formando os mesmos tipos de cadências; há um centro, que é um acorde de tríade, com a base na fundamental, o eixo gravitacional de todo o edifício; há outros sistemas de comportamento melódico, como, por exemplo, o desenvolvimento de melodias calcadas em uma percepção harmônica das modulações do sistema tonal; há a criação de um tema tonal que, em geral, acopla energia, chega à culminância e depois descarrega (isso faz parte da tonalidade como processo de acumulação, de ênfase no discurso); há a questão das terças paralelas que, em grande parte, estiveram presentes em todo esse processo de tonalidade, gerando a superposição de notas do acorde por terça; enfim, há uma série de recursos pelos quais se podem identificar formas paralelas, temas paralelos e imagem musical tonal. Na medida em que a imagem musical tonal sai do classicismo e entra pelo romantismo, em um ambiente mais psicológico, com a exacerbação da subjetividade, dos dramas pessoais, começa a ter um tipo de melodia e um tipo de imagem musical extremamente dramática com base nos recursos de pontuação. A tonalidade deu ao modo uma grande possibilidade de pontuação musical mais clara: ponto final, ponto e vírgula, cadência suspensiva e interrogação. O que vem à frente? Pequenas vírgulas nos motivos que, às vezes, a harmonia ajuda a explicar. A tonalidade trouxe esses recursos linguísticos

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presentes na música de dor de cotovelo, naquelas canções de choramingo ou então que enfocam os grandes problemas insolúveis da nossa psique ou da nossa adaptação à existência. Nisso, a tonalidade superou de longe os modos antigos. Uma das características dos modos é a dominante menor, encontrável em todos os modos que foram marginalizados: o dórico, o frígio, o lídio e o eólio, na sua forma antiga, não já na sua forma com dominante maior. O que caracterizava esses modos antigos era uma dominante menor, portanto, pouco atrativa, e a utilização maciça de cadências plagais, subdominante resolvendo na tônica. Na última vez em que estive com um trabalho no Nordeste, conversando com nordestinos e tocando suas músicas, um deles disse: “Que engraçado, a música modal do interior brasileiro é muito mais serena, traz muito mais paz, não há a canção cigana, a seresta.” A serenidade é perceptível exatamente por falta desses recursos exacerbados do nosso drama subjetivo. Os russos deram uma contribuição importante nesse sentido, pois desenvolveram sua arte nacionalista já em um período em que existiam funções tonais: sexto grau, segundo, quinto, primeiro etc. Passaram a harmonizar seus modos com funções. O que vai resultar quase sempre em dominantes menores, portanto, sem atração do sensível, e em cadências que tinham muita utilização de subdominantes. A música fica serena, fica de paz, e muito mais calcada em coloridos do que propriamente na ênfase do discurso. Os próprios acordes vão trazendo e colocando o colorido. O papo com os nordestinos avançou e eles disseram: “Engraçado, apesar de toda a miséria, não vejo caipira da região do interior da Paraíba se suicidar.” Lembrei logo da história do diabulos in musica, que é exatamente o trítono, e da importância do trítono no sistema tonal. Ele é fundamental: é o quarto grau resolvendo para baixo, por atração máxima, e o sétimo grau resolvendo para cima. Quando surgiu, por volta de 1650, nós já tínhamos um ganho semelhante na pintura, a conquista da perspectiva. A perspectiva projeta nossa visão no espaço. A tonalidade projeta a visão temporal, possibilitando uma espécie de previsibilidade daquilo que vai acontecer. É possível desenvolver a música, meia cadência, contar quatro compassos que acabam na cadência final. Isso trouxe a previsibilidade com uma acentuação e a harmonia passou a ter uma rítmica importante, uma redundância rítmica para afirmação dessa quadratura do período. Acho que hoje em dia é muito interessante perceber como o modo está sendo cada vez mais tonalizado na Índia e no Nordeste brasileiro. Por necessidade do ponto final no final da canção, o nordestino coloca modos e harmonias tipicamente modais, mas quando chega perto do final que ele

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quer resolver, coloca a cadência quarto-quinto-primeiro, subdominante, dominante e tônica e resolve, não tem mais dúvida nenhuma. Luiz Giani: Interessante. Você falou do Nordeste, que as escalas musicais utilizadas na-

quela região, os modos, passam paz e, talvez por isso, o nordestino não se suicida. A vida do caipira é tensa, como também é a do nordestino... Hélio Sena: Mas tem alguma coisa daquela ideia medieval, todo sofrido... Luiz Giani: Na literatura de cordel há muitos suicidas... Hélio Sena: De fato, nós vivemos em um mundo de exacerbação. Essa questão da pers-

pectiva e da previsibilidade da tonalidade não está isolada da acumulação capitalista, que é uma maneira de provisão do futuro por meio da formação de estoque, seja ele dinheiro ou mercadoria... Luiz Giani: Quer dizer, essa culminância da forma tonal tem uma autonomia, não está

necessariamente vinculada a uma homogeneização criada pelo capitalismo. Há uma autonomia no campo da música independentemente da globalização... Hélio Sena: Independentemente do que ocorra. Por isso que me referia aos tambores

de Burundi e à contribuição da história da música em todos os povos. Nós podemos, hoje em dia, com tranquilidade, fazer uma peça, uma página musical, interessados sobretudo em colorido, em serenidade, e não em exacerbação do discurso, em psiquismo, em dramas interiores, como foi o expressionismo alemão. Eu faço uma melodia modal e harmonizo até a cadência final modalmente. É uma questão de opção. É importante entender essas conquistas e acervos, sejam tímbricos, sejam da tonalidade, sejam do modo, sejam de formas rítmicas. Estão todos disponíveis. É muito desagradável o nível cultural ser tão baixo que essas coisas não chegam ao povo, não se tornam acessíveis. Luiz Giani: Você usou a palavra estoque no sentido da mercadoria ou em outro sentido?

Qual estoque existe? Hélio Sena: Em 1500, nessa época de abertura da perspectiva do conhecimento, da

perspectiva do ponto de vista óptico, dos grandes descobrimentos, na Europa já se começava a formar núcleos de manufatura e se iniciava a busca de um comércio exterior, os caminhos para a Índia, para a América etc. O mundo deslancha, de certa

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maneira, num sentido de ampliação. A acumulação de capital se torna um dado concreto que nos traz segurança e perspectiva em direção ao futuro. Da mesma maneira que de um ponto de vista visual descobrimos a perspectiva, do ponto de vista musical, descobrimos a cadência, que é a tonalidade harmônica. Esses fatos estão interligados e suplantam a psicologia de maneira tão profunda que é difícil não fazer transposições de um ponto para outro, embora essas transposições nem sempre possam ser lineares. O caso do diabulos é muito sintomático disso: por causa da quarta aumentada, fazia as pessoas errar no coro. Havia uma interferência do diabo na liturgia da Igreja, que provocava erro no canto coral, pois é um intervalo difícil de entoar. O curioso é que esse diabulos in musica trouxe exatamente a intensificação dos dramas internos, do drama de acumulação. Luiz Giani: O diabulos é anterior à polifonia, não? Hélio Sena: Não. É dessa época. Exatamente de quando se começa a cantar em conjunto,

quando os chorus começaram a desenvolver um tipo de canto partindo de quintas paralelas e oitavas paralelas e agregando mais vozes. Na experiência coral, que se generalizou, já na escola flamenca, se percebia essa dificuldade. Tanto que o trítono foi banido da prática polifônica. Justamente porque soa dissonante e provoca o erro. Acho interessante que essa tensão e resolução, tensão e pontuação, tensão e imersão, ênfase na nossa subjetividade, tenha se fundido com a tonalidade. Passou a existir na pintura um deslocamento espacial em direção à descoberta da perspectiva. Antigamente se trabalhava com planos, com figuras traçadas como se fosse uma grafia no plano, não tinha esse sentido de profundidade, que veio com Giotto,21 Piero della Francesca22 e o estudo sistemático da perspectiva. Como existe na ótica. Foi uma conquista de aprofundamento do espaço. Na música, e não sei se isso se reflete na poesia, temos essa questão de aprofundamento no tempo, porque a música trouxe uma cadência e quase a possibilidade de você prever o que vem à frente. Eu simplesmente relacionei isso com o comércio, que se expande com as cidades com manufatura, e quando falo de estoque, me refiro a estoque de mercadoria mesmo. Uma possibilidade de você projetar em um, dois ou três anos sua preocupação com a sobrevivência. É o capitalismo ganhando suas raízes e se dirigindo desde lá para uma fase mais desenvolvida. E isso tem correspondência, indubitavelmente, na arte. Giotto di Bondone (1266-1337), pintor e arquiteto italiano, foi pioneiro na introdução do espaço tridimensional na pintura europeia durante o período do Renascimento.

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Piero Franceschi, conhecido como Piero della Francesca (1415-1492), foi um pintor da segunda fase do Renascimento italiano que revolucionou os princípios estéticos a partir da utilização da perspectiva e da geometria espacial.

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Luiz Giani: É muito interessante pensar que esse estoque é desenvolvido pela lógica da

mercadoria. O capitalismo centra sua preocupação em aumentar a taxa de lucro. Para aumentar essa taxa de lucro na produção o sistema precisa legislar – uma legislação que não está nas leis, está em uma espécie de mão invisível do capitalismo e do mercado. Se você vai gravar em um estúdio, verá a mão forte sobre o compositor e o intérprete. Adorno dizia que essa comunicação de massa, que ele chama de indústria cultural, esse estoque que transforma música em uma verdadeira indústria, uma fábrica, não é bom nem para a grande arte, a grande música, e nem para a arte do povo. A mídia e a produção de mercadorias se encarregaram logo de pegar as camadas provenientes do êxodo rural, as novas camadas proletárias, o ex-campesinato, e dar um banho neles, ensinando-os a falar a linguagem correta, a cantar de maneira correta. Correto de acordo com esses princípios de assepsia e limpeza que a mídia fez no ouvido das classes populares do Regime Antigo. Quando passa ao proletariado, a função do estoque é criar o ouvido massificado. Chegamos, assim, a uma questão: mudamos a sociedade ou mudamos a música? Você falou de um ethos que leva a um compromisso: o compositor que trabalha com a sensibilidade do seu público, a educação dos sentidos que, parece, é um campo anterior ao do conhecimento. As culturas ágrafas, que não têm escrita, têm essa sensibilidade, o dionisíaco, extremamente desenvolvida. Hélio Sena: É muito difícil extinguir o princípio vital. O ser vivo tem uma teimosia gi-

gantesca em preservar seu corpo, sua sobrevida, em reproduzir e ter um espaço mínimo de expansão que lhe permita essa perspectiva. Quando falo isso, estou pensando em célula, em vírus, em micro-organismo. Temos todos os determinismos biológicos entranhados em nosso ser, embora haja uma expropriação de valores, de subjetividades, em troca da colocação de uma mercadoria. É impressionante como isso não mata a pessoa. Há uma tendência, uma força, de se resgatar, de encontrar uma brecha e de se afirmar como ser humano digno. Isso é impressionante. Luiz Giani: Mas não mata a maioria? Estou falando em tese. Hélio Sena: Capturam-se comunidades inteiras, mas elas lutam contra essa captura, não

permanecem passivas e vivem alertas a qualquer possibilidade de autoafirmação e a perspectivas de valoração. A manipulação já estava presente nos músicos das cortes, no período de Mozart e de Hyde, sempre foi assim. E o estilo de música de Mozart e Hyde já era o da galanteria, o estilo elegante, que contrariava a seriedade dos contrapontistas antigos. É uma música muito mais superficial do que a música de Bach. Mas foi o que se tornou a

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moda da corte. A massificação começou ali e servia, de certo modo, para engrandecer as reuniões de salões, o prestígio da burguesia, as orquestras de corte etc. A coisa continua e hoje é a indústria que cuida desse processo. Mas mesmo em qualquer jovem completamente imbuído dos valores e práticas da indústria cultural, ela não conseguiu matar o desejo de ser um ser humano digno. É por esse caminho. Em uma conversa, em um diálogo, o jovem vai mostrar os subsídios sob os quais quer caminhar e compete ao professor alargar esse caminho, trazer novos subsídios. Luiz Giani: Mas o professor precisa ser reeducado. Grande parte dos professores não tem

espaço para discutir a música. Em alguns estados, 90% do espaço da disciplina Arte é praticamente exclusivo das artes visuais. Esperemos que com essa reforma que estão tentando fazer no ensino haja a exigência de professores com formação menos específica, mais abrangente. Hélio Sena: Quando você tem uma conversa com o cidadão comum, ele diz que a priori-

dade não é educação para eles, a prioridade do governo é a ignorância. Luiz Giani: Porque ninguém morre por falta de música, não é? Hélio Sena: Não é uma prioridade. Luiz Giani: É preciso investir na reeducação do professor e na reeducação do compositor

que, talvez em sua maior parte, não têm acesso a reflexões como essas. Hélio Sena: Quando têm acesso, recebem com uma avidez fora do comum. Luiz Giani: Você já apresentou reflexões muito importantes sobre o modalismo na cul-

tura do povo. Desde que foi criado o sistema temperado, tornou-se muito frequente os compositores acadêmicos, os compositores de ofício e os trabalhadores intelectuais se apropriarem de elementos das classes populares. A apropriação do modalismo e das escalas pentatônicas parece passar pelo Romantismo e chegar aos dias de hoje. Hélio Sena: Os modos têm uma potencialidade muito grande e expressiva porque trazem

escalas novas. Na música popular há certa redundância e cansaço por se trabalhar exclusivamente em modo maior e em modo menor, ou seja, modo jônico e modo eólio, com a alteração no sétimo grau. Isso, evidentemente, foi um empobrecimento muito grande em relação à diversidade de modos que existem nas diversas culturas. A distribuição dos graus na escala diversifica a melodia no sentido de deslocar os pontos de apoio para aqui ou para acolá e diversifica a harmonia no sentido de criar atrações e resoluções completamente

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diferentes daquelas com que nos habituamos no modo maior e no modo menor. Quando temos contato com a música modal, é patente algo de frescor, algo de novo, sem soar estranho, porque vem da cultura da tradição dos próprios povos. É de fácil assimilação. Com o nacionalismo, houve a defesa dessa identidade nacional e a elevação da autoestima de diversos povos da Europa que conservavam nos seus grotões, nos seus lugares mais remotos, essas escalas modais que vêm da antiguidade. Essas escalas foram reencontradas na Hungria, na Rússia, na Ucrânia, em todos os países Bálcãs, na Noruega, e trouxeram um tipo de entonação totalmente nova, um frescor muito grande em substituição àquele cansaço, àquela fadiga, produzidos pelo excesso de uso das duas escalas do sistema tonal. Os compositores dessas regiões passaram então a buscar soluções harmônicas que não eram a coisa mecânica baseada apenas na estrutura da escala. As melodias desses países, ou dessas regiões, que utilizavam os modos, têm uma dinâmica de evoluir, vamos dizer, de fazer o fraseado, de atingir a culminância, de elaborar conclusões, têm a pontuação do discurso musical dentro de uma estrutura de atração e repouso que gera melodias novas. Isso foi utilizado com grande êxito no caso da Rússia, chegaram a formar uma escola com caráter muito próprio. Na verdade, passou-se um longo tempo para que eles encontrassem esse caminho. Antes de Glinka, muitos compositores trabalhavam com formas de harmonização e de desenvolvimento formal da música que existia em Viena, na Alemanha de modo geral. Tchaikovsky se expressou muito a respeito disso, dizendo que aquelas harmonias clássicas, autênticas, me refiro às cadências utilizadas pelos compositores anteriores a Glinka, eram tão inadequadas quanto uma cela no lombo de uma vaca. Luiz Giani: Tchaikovsky falava isso? Hélio Sena: É. Criticando os compositores antigos. Eles fizeram esse esforço em direção

a um entendimento aprofundado da melodia de seu próprio povo para encontrar, com muito cuidado, formas de harmonização próprias. Hoje, isso já está mais que estudado. Na Europa Oriental essas coisas já foram objeto de muitos tratados, muitos estudos, que fazem parte do sistema educativo de música. Já temos manuais rotineiros que começam não com a cadência de Haydn, mas fazendo uma abertura para as melodias modais. Daí segue uma lógica inteira de respeito a essa forma de desenvolvimento melódico. Temos trabalhos de análise interessantíssimos que estudam desde Glinka aos compositores mais modernos, como Prokofiev e Shostakovich, e encontram em todos esses autores aquelas constantes, apesar de sua linguagem ser completamente diferente em termos de dissonâncias, de objetivos. A sonoridade é completamente diferente, mas a análise mostra a fi-

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delidade ao pensamento nacional, em todos esses autores. É um dado muito importante, não só na Europa Oriental, tivemos muitos outros produtores excelentes, como Bartók, e Grieg. Edvard Grieg é muito interessante desse ponto de vista porque sua biografia mostra um compositor que lutou durante muito tempo para fugir dos padrões do Romantismo. De início ele praticamente tentou ser um romântico e as obras de boa parte de sua vida são reprodução da escola romântica. Estudou em Leipzig, na Alemanha, e tentava seguir por esse caminho, mas só depois que voltou para um pensamento musical tipicamente de sua terra, a Noruega, é que sua obra ganhou peso, ganhou vulto. Outros compositores foram por caminhos não tão espontâneos, não tão naturais, do seu próprio povo. Debussy utiliza as escalas do canto gregoriano, dos modos antigos, e utiliza escalas de tons inteiros que já é um tipo de modo artificial, não é um modo natural, é um modo criado racionalmente porque na natureza, sem folclore nenhum, você encontra escalas de tons inteiros. Uma coisa parecida foi encontrada na Indonésia, mas não é uma escala de tons inteiros. Olivier Messiaen criou uma série de modos artificiais, de novo. Ele rejeitou já de início os modos antigos, que se caracterizam pelos sons naturais dos harmônicos, feitos, inicialmente, por uma oitava e por uma quinta e essa quinta, por exemplo, serve de base para a formação da escala pentatônica, então, acrescentam-se mais duas notas, mas já realizadas por quintas superpostas desse primeiro entre o segundo harmônico e o terceiro. Portanto, é uma nota muito básica da física, que impressiona nosso cérebro porque é decorrente de todo e qualquer corpo sonoro em vibração, e que gerou, em primeiro lugar, uma pentatônica incompleta e depois a pentatônica completa. Pois bem, Olivier Messiaen rejeita a formação por quintas e passa a formar todos os modos com base no trítono, às vezes com um número menor de grau na escala e às vezes com um número muito grande de graus de escala introduzindo cromatismos em direção à duração de uma oitava. Mas de todas essas experiências, não há a menor dúvida de que o que trouxe uma produção mais fecunda, obras do peso como as de Grieg, Prokofiev, Bártok ou dos russos antigos do Romantismo, foi a contribuição folclórica da prática popular, das escalas modais como existem na tradição do povo. Isso foi gerado por séculos, ou milênios, de uma prática de cantar, de tocar, que foi aos poucos se depurando até formar esses modos. A cultura modal hoje é bastante desenvolvida na Europa; em alguns “focos” na Índia; temos o canto comum popular na China inteira e na África a música é também modal; no Nordeste brasileiro há um tipo de modalismo que diverge basicamente das escalas do modo maior e do modo menor. E que até utiliza nessas escalas sequências derivadas dos outros modos, de outros tipos de escalas que geraram comportamentos

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harmônicos que depois foram transferidos para modo maior e menor comum. É muito interessante observar como a própria base dessa tonalidade começa a sofrer influência do pensamento modal nordestino. Quando nos detemos mais na maneira do nordestino criar suas melodias, notamos na própria entoação das escalas no interior do Nordeste, na música mais rural, um desajustamento do sistema tonal. O quarto grau elevado, que nós chamamos de modo lídio, o que seria Dó Ré Mi Fá sustenido, não é Fá sustenido, é um pouquinho abaixo. Os nordestinos cantam sempre um pouquinho abaixo. O sétimo grau, que seria o Si bemol, em que nós partimos do Dó, não é Si bemol, é um som harmônico um pouquinho abaixo do Si bemol, como é na escala harmônica natural. Eles próprios, os violeiros e sanfoneiros de lá, adaptam isso ao sistema temperado. Sobem um pouquinho o Si bemol e o quarto grau. Luiz Giani: Isso é espontâneo? Hélio Sena: É espontâneo. Eles pegam o instrumento e fazem adaptação. Os que tocam

violão costumam empurrar a corda um pouquinho, colocando uma tensão adicional na busca dessas entonações que existem no aboio, no canto do interior. Na maioria das vezes o canto da área rural se caracteriza por um tipo de grito muito solto, já que é um tipo de cultura ao ar livre. É o aboio que grita para longe, são as cantorias de pessoas da roça, cantorias de trabalho etc. E uma das características da linha melódica é uma arrancada violenta. Ou parte do agudo e depois desenvolve a linha melódica de maneira oscilante, ou ondulante, em uma longa descida, ou então faz um arpejo pelo acorde inicial, um arpejo rápido para o agudo e aí desce. Esse é um tipo de melodização que é próprio das culturas ao ar livre, não é a coisa camerística sobre a qual nós dois estamos conversando aqui, tocando bossa nova. E nem é uma coisa como no sistema musical tonal, que apresenta uma imagem musical em um motivozinho e depois vai acoplando dados a essa imagem musical com novo grau, com uma nova variação rítmica, e marchando para a culminância. É muito mais característica do tema tonal essa arrancada para a culminância que vai se “explicar” lá no meio da canção, depois faz a cadência e morre. Luiz Giani: Esse movimento de terminar com uma descida é uma característica da

música brasileira. Hélio Sena: Isso é característico do Brasil tonal, presente também na Europa e em

grande parte da música ocidental. Mas pertence a essas culturas ao ar livre, que se

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podem encontrar no Brasil, em certos lugares da África e, sobretudo, no Nordeste, onde é muito comum. O modo enfraquece, não elimina; mesmo os modos antigos já tinham em germe a tonalidade porque tinha uma nota prioritária em que o canto terminava. Aparece nos gregorianos, sobretudo, mas flutuava muito mais e dava a sensação de incerteza tonal. Ainda há isso na música nordestina e é uma coisa deliciosa, no meio da canção fica indefinido para aonde vai. Luiz Giani: O aboio é assim. Qual sua origem? Hélio Sena: O aboio não é dórico em sua tonalidade, não é eólico, há uma quase tona-

lidade, lídio e mixolídio. Luiz Giani: Quando fica em uma nota só, parece um canto gregoriano, um melisma 23

que fica oscilando uma nota. Hélio Sena: Pode parecer melisma, mas a duração com que eles abordam cada nota não

é bem típica de um melisma. Eles dão apoio e a nota adquire consistência autônoma. É diferente do melisma. No caso da canção nordestina, essa indefinição do centro é uma coisa sensacional do ponto de vista expressivo, porque o sistema tonal amarra muito, tornando a perspectiva previsível, e não dá essa sensação de flutuação. Essa capacidade de deixar o ouvinte indefinido quanto ao centro tonal é uma das qualidades das escalas modais da antiguidade, que ainda existem no Nordeste. Isso tem também implicações na construção da forma e até na construção da dramaturgia, já que geram tipos de melodias menos afeitas ao drama, à interiorização dos problemas psicológicos etc. Em minha tese de doutorado, defendo que talvez exista no Nordeste um outro tipo de dramaturgia. Em vez de cadências de dominantes seguidas, de acordes de dominantes, como é próprio do sistema tonal, no Nordeste encontramos cadências de subdominantes. É como se o pensamento fosse invertido em termos de atração harmônica e resolução. Ao invés de deixar a culminância do processo dramático para o fim, ele dá logo no início. Esse é um dado muito interessante do ponto de vista dos recursos de dramaturgia. Considerando a história de como tudo isso aconteceu no Brasil, embora nem todos os compositores nordestinos sejam iguais, já que muitos deles são influenciados pelo Sudeste e por outras influências externas, não há a menor dúvida de que aquela cultura como existe lá, aquela Em referência à forma de escrita do Canto Gregoriano denominada neumática, melisma é o termo musical que se emprega para a técnica de variação de uma nota cantada, a partir da sustentação de uma sílaba. O sistema de neumas propiciou uma forma de notação musical que apresentava, entre outras vantagens, a possibilidade de memorização das notas musicais que acompanhavam os textos litúrgicos entoados nas celebrações religiosas.

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base de estruturas de escalas, modalismo e tipo de melodia, seria mais que suficiente para criar uma civilização musical autônoma. Forte, expressiva, rica. Só faltou que Rio de Janeiro e São Paulo, o principal centro industrial do capitalismo, se situassem lá nos séculos que nos precederam. Grande parte do poder do Rio de Janeiro de irradiar cultura musical para o resto do Brasil vem exatamente do poder econômico centrado nessa região. Estou fazendo um levantamento de atualização sobre essa tese da harmonia modal nordestina e percebo que existe ali uma riqueza maior que a que existe na Europa Oriental. Porque os modos se cruzam. Uma canção de Dominguinhos, ou uma canção de diversos autores, até no próprio folclore acontece isso, estabelece um pedal, um ponto de apoio. É um termo meio inadequado, mas é o centro tonal, e com base nesse centro tonal o modo se altera durante a canção. Ele pode apresentar a quarta elevada aqui, como característica do modo lídio e na outra frase ele apresenta o Si-Bemol como característica do modo mixolídio. Ele dá um passo atrás dessa fundamental para o sexto grau e já apresenta o quarto grau elevado de novo, que com o apoio no sexto grau se torna modo dórico, ou seja, há um intercâmbio de diatônicas que fazem com que se encontrem em uma canção dois, três, até quatro modos diferentes. Isso não se encontra na Rússia, é muito difícil encontrar isso na Europa Oriental. Luiz Giani: Guerra-Peixe falava de modos brancos com relação aos modos nordes-

tinos. Não sei se ele estava querendo distinguir o modalismo europeu daquele de herança africana. Hélio Sena: Não. O modalismo de sete graus, que é a escala diatônica completa, não

se encontra nos cantos de candomblé, só se encontram cinco ou seis graus. Quem trabalha com arranjo, em sala de aula, sente uma má vontade dos alunos quando se pede que inventem uma melodia. Eles ficam em casa, ou chegam desanimados, por causa do cansaço do modo maior, do modo menor e da cadência autêntica. Quando introduzo as escalas modais e mostro melodias, isso provoca um verdadeiro humor na sala de aula. Se eu estimular um grau alterado, por exemplo, o modo menor com o sexto grau elevado, uma característica do dórico, já se abre uma perspectiva para a imaginação do aluno, ele se entusiasma e traz coisas lindas. É realmente uma coisa fecunda. Luiz Giani: Na história da música brasileira, desde os primeiros nacionalistas, Alberto

Nepomuceno, depois Villa-Lobos, depois a geração que vem com Cláudio Santoro, Guerra-Peixe, Camargo Guarnieri, esse modalismo é muito vivo.

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Hélio Sena: Ele está bem presente, por exemplo, em Guerra-Peixe. Mas é preciso fazer

certas ressalvas. Alguns compositores como, por exemplo, Hekel Tavares se dedicaram a isso, ele escreveu concertos com formas nordestinas, com temas bem típicos do Nordeste. Guerra-Peixe utiliza em massa, eu diria que quase a totalidade das obras de Guerra-Peixe é plantada no Nordeste e em escalas modais. Há também o Movimento Armorial, que é, de certo modo, ligado à universidade e à música de concerto. Há ainda outros, que utilizam um tema aqui e acolá. Mas José Siqueira talvez tenha sido o único que se preocupou em sistematizar formas de harmonia coerentes com escalas do Nordeste. Luiz Giani: O pentamodalismo? 24 Hélio Sena: O trabalho de José Siqueira ofereceu a possibilidade de montar acordes a

partir daquelas escalas. Ele utiliza acordes tríades com sétima, harmonias pentatônicas, alguma coisa de quarta. Seu livro, com muita clareza, mostrou que partia de uma proposta teórica de criar harmonia em cima daquelas escalas. Luiz Giani: Ele não criou as escalas? Aproveitou a harmonia do Nordeste? Hélio Sena: Aproveitou. Não conheço um único compositor de música erudita que

tenha absorvido as formas de harmonização do sanfoneiro nordestino e dos arranjadores que trabalham com esses músicos populares do Nordeste. Ali está a verdadeira maneira de interpretar aquelas melodias, harmonizando com funções adequadas a cada momento do movimento melódico. Essa, infelizmente, é uma deficiência que sinto na área de música erudita. Luiz Giani: Mas você, que executa o acordeom, assimilou. Você tem esse conhecimento

e trabalha com isso. Hélio Sena: Trabalho com isso, escrevi um trabalho teórico. O problema é que não

existe material de estudo. Nos manuais que até recentemente estavam disponíveis, modos eram considerados como escalas arcaicas. Já havia essa pecha nos cursos de teoria musical. Modos gregos, escolas arcaicas. Assim eram chamadas. Também não temos no Brasil uma sensibilidade e um nível apurado de cultura para pegar o timbre do gaiteiro, o timbre do sertanejo, o timbre da folia de reis, e trazer isso para uma técnica vocal apurada nas escalas profissionais de canto. Da mesma maneira, não temos

Termo utilizado pelo maestro e compositor José Batista Siqueira (1906-1992) e descrito no livro Pentamodalismo nordestino: baseado em dados folclóricos (1956), no qual são identificados os cinco modos mais recorrentes na música do Nordeste do Brasil.

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esse cuidado com a harmonia de um sanfoneiro nordestino ou de um arranjador de música popular do Nordeste. Isso passou ao largo, infelizmente. No Brasil se desperdiçou muita coisa da riqueza natural, até do ponto de vista ambiental, ecológico, como também da riqueza natural cultural. Luiz Giani: Não foi só o desconhecimento que levou a essa clivagem, a essa separação,

a esse distanciamento, foram os preconceitos: o etnocentrismo europeu, a concepção de ordem e progresso que acompanha todo o século 20. Essa concepção de progresso sempre colocou a música do povo como música inferior. A sociologia está marcada de conceitos de inferioridade. Sabe-se que o folclore não é essa música popular urbana, da mídia, dos meios de comunicação de massa. Se não é ela, o que é? É só o que os europeus chamaram de antiguidade, além das tradições que, aliás, não são tão antigas assim? São tradições vivas, mas ainda objeto de um julgamento de valor. Hélio Sena: Algumas pessoas perguntam: “Que história é essa de música boa? Música

de qualidade?” Cada um gosta do que quer gostar e o bom para cada um é aquilo de que gosta. Há coisas interessantes distorcidas pela apelação em certos programas de rádio e de televisão. Por exemplo, reúnem dois garotos na calçada tocando lata e os entendidos, a universidade, todo mundo fica dizendo “olha aí a cultura, a cultura está toda aqui.” Cada pessoa se satisfaz com aquilo que pode entender, de zero a infinitas possibilidades de absorção e entendimento. Um princípio geral que acho importante é que quem conhece mais tem melhores condições de avaliar. Uma vez mostraram ao compositor Brahms uma partitura de Bach, ele bateu os olhos e disse: “Absolutamente. Isso não é de Bach. O conteúdo da música de Bach é outro, a densidade da música de Bach é outra.” Era uma peça apócrifa, Paixão segundo São Lucas. Mas Brahms tinha condição de avaliar, conhecia tanta música: música de cigano, de concerto, música polifônica antiga. Ele podia dizer o que é bom e o que não é bom, o que tem densidade e o que não tem densidade. Ou seja, se você dá ao indivíduo a condição de escolha, maior conhecimento de diversos estilos de formas, ele terá melhor condição de seleção e de emitir juízo de valor. Também costumam dizer que não é possível emitir juízo de valor sobre uma escola ou sobre outro compositor, pois cada ser humano ou cada época absorve do meio suas influências, elabora-as dentro de si e subjetivamente se expressa a respeito daquilo com valores que só são intrínsecos àquela escola. Portanto, você não pode julgar o expressionismo ou o impressionismo a partir de conceitos do classicismo.

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Luiz Giani: Aí entra a questão da qual se fala tanto em música. Para o leigo é um tanto

difícil perceber a verticalidade e a horizontalidade. Historicamente existem atritos, é uma área de muita fricção, por onde circundam muitos juízos de valor, mas, simplificando um pouco, a verticalidade em linguagem pode ser identificada com o acorde, as notas sobrepostas, enquanto a horizontalidade é a melodia, seja uma, monodia, ou várias, polifonia. Hélio Sena: O julgamento de valor, de fato, é a problemática. Mas no trabalho

artesanal se sente e se vê que a rítmica, o trabalho de percussão como nós vemos na música popular, os ritmos de samba, de xote etc., obedecem a formas periódicas que se repetem e que se baseiam em apoio e impulso: você pisa no pé direito, se assenta e depois se lança. Não quer dizer que não se possa fazer coisas complexas com o ritmo. Essa questão da rítmica percussiva se refere basicamente a uma mensagem dirigida à nossa fisiologia, ao esqueleto e à musculatura esquelética, por isso fala tão claramente para dançar de tal maneira. Não quer dizer que seja só isso, mas aquilo que nós chamamos comumente como ritmo, é uma coisa que se refere à nossa percepção corporal. Um segundo elemento da música, a melodia, reproduz quase que linearmente nossa fala. Há a respiração no final das frases, a pontuação – ponto-final, vírgula, dois-pontos –, é possível perceber a inflexão da entonação da fala, os assentos lógicos. Essa fala apenas não se dá de maneira e de altura indefinida, se dá na grade do sistema modal das alturas fixadas. Então, passeia-se com a entonação expressiva. Por meio desses graus da escala podemos expressar o afeto, a dramaticidade, a tragédia, o relaxamento, o que faz com que a melodia tenha essa assimilação e seu entendimento seja tão fundamental. Com a harmonia podemos sublinhar essa pontuação, já que há traços de tensão e de resolução pelos quais se determina o ponto-final, os dois-pontos, o ponto e vírgula, a pequena cadência para um motivo, ligação de acordes. Este é um aspecto da harmonia: reforçar aqueles recursos que vêm da tonalidade pela pontuação. Mas a harmonia tem outro aspecto também: enquanto você está trabalhando com uma escala, coloca aqui ou acolá flashes de luz de coloração diferente – uma coloração mais opaca, uma brilhante, uma turva, uma complexa, outra transparente. São coisas que a harmonia nos traz com seu segundo recurso, o “colorístico”. Esta é a função da harmonia na música, ela explica a melodia com pontuação e com flashes de luz. Em uma melodia que tenha um objetivo, é possível contrariá-lo com o recurso da harmonia, antagonizando com a melodia. Também pode ser completamente passivo e seguir o que a melodia

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propõe. Outra coisa é a polifonia, que resulta em melodias superpostas, mais que um discurso fluindo ao mesmo tempo. Na polifonia pode haver três “pessoas” falando, quantas for o caso, mas não é o caos da balbúrdia do supermercado. Há hierarquias, um tema principal, outro que comenta mais discretamente, ligeiramente, pois está no segundo tema, na segunda voz. Uma melodia de fundo harmoniza... Luiz Giani: E na Renascença que fizeram uma verdadeira Babel com mais de 20 vozes? Hélio Sena: E dá para ouvir aquilo? São exageros da profissão. Mas no tecido poli-

fônico há essa coisa espetacular, uma melodia em que a voz continua e se apresenta com a mesma figura, com o mesmo delineamento, com o mesmo desenho. E a que estava em cima passa a comentar a outra com discrição, apenas dando um apoio rítmico, fazendo uma linha melódica. Não sobrepõe a melodia principal, simplesmente faz comentários de segundo plano, e outra faz comentários de terceiro plano e um tema, apresentado de tal jeito, de repente é invertido por outra voz, como se contrapusesse à sua ideia uma nova ideia diferenciada. A outra voz, que aparece no grave, toma isso e amplia em extensão, com duas vezes a sua extensão... Nesse diálogo de ideias musicais está a forma polifônica que, de certa maneira, aproveita as condições da harmonia colorindo e respeita certa verticalidade que harmoniza esse conjunto, tornando-o algo de proporcional e harmonioso. Esse tipo de música polifônica é um tipo de mensagem dirigida ao intelecto. Não é a fisiologia, não é a fala, não é o colorido, mas só é possível perceber sua beleza (sobretudo em peças mais complexas como Oferenda musical, de Bach, em que tudo isso está realizado com complexidade) com um apelo à razão, é uma arquitetura de correspondências de partes muito ricas. Um ponto altíssimo que a música atingiu. É possível pensar em valor na medida em que uma sonata para tamborim solo estará, em grande parte, falando para a fisiologia, ela não tem recursos melódicos suficientes nem para fazer harmonia, nem para fazer polifonia. Por outro lado, a arte musical é uma arte específica, a música não é capaz de expressar tudo, tem sua prioridade temática. A música é incompetente para dizer muitas coisas, para lidar com referências objetivas, com objetos, com o mundo exterior. Ela não tem como dizer “copo” pelo meio da água. Com sua flauta, com seu piano, o músico é incapaz de dizer isso. Embora seja importante para a emoção da tragédia, com um instrumento é impossível dizer “punhal sujo de sangue”. Luiz Giani: Villa-Lobos, em O trenzinho do caipira, reproduz a narrativa com metáforas.

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Hélio Sena: Nesse caso há um desvio da música para a música de programa. Em seu

sentido primordial, a música é, basicamente, melodia – que pode ser superposta, harmonizada etc. Na medida em que o compositor se afasta em direção à música de programa, vai introduzindo elementos que vêm do visual ou da literatura. Aliás, é uma característica da música de programa de a partir de 1800 ter títulos como A catedral submersa, de Debussy, O trenzinho do caipira... ou títulos de quadros de uma exposição (todos os títulos de Ravel), ou dos quadros, pinturas, que o compositor olhava para fazer aquela música. Luiz Giani: E outras vezes o compositor tenta associar e não consegue. Hélio Sena: Às vezes é uma coisa muito obscura. Não existe a música autônoma e uma

outra música a serviço de algo. A música a serviço de uma exposição de pintura ou de uma série de retratos, a trilha de um filme ou de uma propaganda comercial, a música subliminar ou a simbólica são formas de fazer musical nos quais a música vai deixando o território em que ela é poderosíssima e vai se afastando até se tornar cada vez mais impotente de expressão. Luiz Giani: Abandona seu próprio terreno, quer fazer as vezes da literatura e perde autonomia. Hélio Sena: Por isso que dizia que se pode sim ter critérios de avaliação entre o clas-

sicismo e o expressionismo, embora, dentro da escola expressionista haja valores próprios. Mas há alguns critérios gerais que se podem aplicar, como esse que parte da fisiologia, da percussão até o contraponto, ou como esse que parte da linguagem própria da música para uma série de linguagens laterais, complementares, em que a música é menos forte. Dizem que na pintura isso é impossível. As escolas de arte em pintura não têm continuidade, são como camadas geológicas que refletem outro meio, outra época, e são reproduzidas por outros valores e condições psicológicas específicas daqueles que vivenciam o momento. Essas camadas não dialogaram, nunca, entre si. Já na música, existem alguns critérios pelos quais podemos dizer para um garoto que está batendo lata, que ele será muito melhor se estudar, se não parar naquilo que já sabe. Luiz Giani: Estudando ele vai dialogar com outro sedimento. Hélio Sena: Ele tem pela frente um trabalho todo de autodisciplina. Luiz Giani: O julgamento de valor está muito individualizado, baseado no gosto pessoal.

Em filosofia e em sociologia, há o argumento de que o indivíduo é a massa e a massa é o

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indivíduo. Há uma dificuldade, de fato, em perceber a dimensão da arte dentro da cultura popular – não mais a cultura do povo –, essa cultura popular do estoque capitalista, de produções de mercadorias. Não produzem para as necessidades humanas, produzem para ninguém ter acesso à arte. Produz-se, exatamente, para um ouvido que a mídia e o capitalismo cuidaram, historicamente, de rebaixar. Tirar a autonomia das pessoas, destruir os sentidos da audição. Tudo tem uma dimensão humana. Podem-se recuperar valores e julgamentos para dizer o que é arte? Hegel, o maior filósofo do romantismo alemão, o criador da dialética, dizia que o espírito estava se autoalienando na natureza, que a arte já havia cumprido sua missão, e cairia na vulgarização, no prosaísmo. Ele acreditava na ciência, na religião. Depois Marx diria que não é possível conciliar as divindades. Quando a ciência vem, as musas desaparecem. Baudelaire, vendendo seus poemas, dizia se sentir como uma prostituta. Wagner, que tinha uma posição bastante arredia ao espírito burguês, prognosticava que não daria para conciliar arte e espírito burguês. Nietzsche então diz: “Isso é o caos.” E por isso é o filósofo mais usado hoje, afinal, estamos vivendo em um caos, um apocalipse. Nesse encontro, as subjetividades fazem os seus critérios e é exatamente esse o termômetro da pós-modernidade, que deixou tudo solto; perdemos o cinto. Hélio Sena: A humanidade vai acumulando dados importantíssimos. Utopia de um lado

e desilusão de outro. A visão de mundo é tão decorrente e consequente da nossa situação de classe que “visão de mundo” é apenas um ângulo de observação. Não há como ver as coisas a não ser de nosso próprio ângulo. É um dado físico e é um dado psicológico. É muito difícil situar-se no olhar de quem está do outro lado. Luiz Giani: Mas é possível atuar para mudar o ângulo. Hélio Sena: Trabalha-se nesse sentido. Vivi, durante oito anos, em um país socialista

e ficou muito claro que há uma base biológica, instintiva, que orienta nossos passos e nossa visão de mundo. O ser humano não pode deixar de se preocupar com sua integridade física, com o impulso reprodutivo e com o controle mínimo do meio ambiente. Ele tende a extrair do ambiente algo que dê segurança à sua continuidade física, à sua sobrevivência e à reprodução de sua prole; é um dado natural, está nos leões e nos microrganismos e não é possível bani-lo da nossa mente. Como sair disso se isso é um dado biológico profundo, muito entranhado no ser vivo? Há como mexer nisso, pois não somos apenas instinto e perversidade, mas é um longo trabalho.

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Luiz Giani: Quando se trata de dizer que a arte está sendo destruída pela máquina da in-

dústria cultural, por que não destruir a máquina? Assim faríamos retroceder a história, no mínimo do julgamento de valor, o que poderia ser válido para a humanidade em um futuro próximo. Seria possível retomar a questão do que seja a arte sem intermediários, poderíamos nos perguntar em nome de que foi arte no passado e devolver a valorização à instância da vida humana que a arte poderia suprir. Só a arte é capaz de dar autonomia e liberdade ao homem; a religião, a política, o futebol, o entretenimento, não alcançam essa instância sensível que a arte produz. Tudo está imbricado com a questão do progresso. Durante todo o iluminismo se pensava que o progresso iria trazer o paraíso. Hoje as pessoas entram no shopping e pensam que este seja o paraíso. Não sabem que é exatamente o progresso que cria o paraíso e a miséria. A mesma coisa acontece com a arte, a indústria cultural deixou o ouvido surdo para ouvir a obra de arte. Hélio Sena: Surdo, exatamente, porque a percepção está direcionada para a integração social. Luiz Giani: O indivíduo tem seus critérios de valor, subjetivos, mas esses critérios sofrem

uma interferência muito forte da indústria cultural, mais forte que a da Igreja na Idade Média. A Igreja não destruía a arte. A pressão da indústria cultural destrói a arte. É a primeira vez na história da humanidade que um poder extramusical, extra-arte, não permite que a arte cresça nas pessoas. O julgamento de valor se baseia no gosto sem que elas tenham acesso ao que não passa pelo crivo da indústria. Esse declive, essa clivagem, essa divisão que nos separa é que permite o julgamento do que seja ou não arte e esse julgamento é, sim, subjetivo. A utopia é a maior manifestação da imaginação social. Cortou-se a utopia e acabamos nessa pós-modernidade. Hélio Sena: A tendência muito forte de buscar uma integração na sociedade para se sentir

digno é manipulada a tal ponto que as pessoas não têm ouvidos, nem olhos, porque a percepção já é direcionada e exclui outras percepções. Estamos em um mundo no qual podemos fazer somente aquilo para o que nos abrem oportunidades, tanto na área política quanto na área de educação; não podemos ir muito além disso, mas também não vamos nos suicidar de desgosto. É preciso continuar produzindo e manter o otimismo. Nenhuma solução está à vista. Luiz Giani: Boudewijn Buckinx, compositor belga, diz que não há como conceituar a

pós-modernidade tentando buscar na música uma vertente específica, pois a pós-modernidade engloba todas as vertentes – desde a tradição até a busca incessante pelo novo. Essa

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paixão desenfreada pelo novo que acompanha a ideia do progresso, que não emancipou, está destruindo a humanidade. Então, o que resta é procurar, mesmo, uma utopia e ela não está construída. Essa ideia sustentava as antigas utopias, agora sabemos que não é simples, não se pode cruzar os braços e esperar que a humanidade marche e chegue a um ponto ótimo. O caminho nem é o das vanguardas, nem o do realismo socialista soviético, que também se diziam progressistas. Aliás, houve uma época em que a música brasileira também se dizia progressista, acreditava-se que seria automático: passar do capitalismo para o socialismo... Hélio Sena: Era a dialética da necessidade... Luiz Giani: A dialética mecanicista. O julgamento de valor que podemos fazer é por exclu-

são. A música entrou na indústria, que passou a ditar nossos sentimentos. Como rebaixam os sentimentos humanos?! A humanidade é reduzida à surdez. Enquanto não se muda a sociedade, os compositores estão tentando fazer da música um campo que seja mais democrático. Não sei se é possível, avança bastante, mas não quebra o Leviatã. Hélio Sena: De jeito nenhum... Luiz Giani: Há uma inscrição na Espanha, em Toledo, não sei se é de origem árabe, que

resume bem nosso desafio: “Não há caminhos, é preciso caminhar.”

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W ill y C o r r ê a d e Oli v e i r a Nascido em Recife, iniciou sua carreira de compositor na década de 1950, aperfeiçoando-se na Europa em laboratórios de música eletroacústica e na Escola Internacional de Darmstadt, Alemanha, em 1962. Retornando ao Brasil, engajou-se no movimento vanguardista do Grupo Música Nova, de São Paulo, sendo um dos criadores do Festival Música Nova. Na década de 1970, passou a lecionar composição e disciplinas teóricas no Departamento de Música da Escola de Artes da Universidade de São Paulo (USP). Sua obra é composta de peças musicais para diversas formações, vocais e instrumentais, tanto para grupos de câmara quanto para grandes orquestras. É autor de livros como Beethoven – proprietário de um cérebro, de 1979, e do recente Com Villa-Lobos, de 2009.

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Luiz Giani: Nosso assunto é filosofia da música, a imaterialidade da música. A filosofia

aborda os fenômenos estéticos do objeto, no nosso caso o som, as concepções sobre o som, a busca do belo, o ethos, a criatividade, a escuta. Você diria que para fazer música tem que ter dom? Willy Corrêa de Oliveira: A música é uma necessidade universal, pode se generalizar ple-

namente, ser uma necessidade humana. Algumas pessoas podem não sentir nenhum apelo para a música, não ter uma vocação, mas desejar conhecê-la. A música erudita requer mais que a vocação, requer educação, alfabetização básica e desenvolvimento dessa educação por via da história. São necessidades para entender, dominar a música. Existe, sem dúvida, um dom. Um pianista é capaz de fazer uma escala impecável com sete, oito ou nove anos; outros conseguirão fazer a mesma coisa com 20 e tantos; e outros nunca conseguirão. Há profissionais que nem chegam a uma escala decente. O dote de um e de outro são diferentes. Luiz Giani: Do ponto de vista da criação, da cognição, do conhecimento, é um trabalho

penoso. Do ponto de vista de usufruir, porém, todo ser humano tem um potencial, uma necessidade humana de ouvir música, cantarolar. Willy Corrêa de Oliveira: Esse é o ponto de vista de um compositor de música erudita.

Não posso aferir de fora o talento de cada um, mas mais do que tudo, existe uma curiosidade. No geral existem músicas de várias naturezas linguísticas, há músicas folclóricas em comunidades onde as pessoas se relacionam com a natureza, com aquela cultura localizada e ali existe, ou existiu pelo menos, o canto natural daquela etnia, daquele grupo no qual alguns têm um talento natural e ficam à vontade com essa linguagem. O talento existe em qualquer atividade humana. Alguns têm um talento manual que outros não têm. Luiz Giani: Na sua concepção de talento deve haver uma base que seria a audição inata,

o mais seria adquirido com o trabalho, é habilidade. Willy Corrêa de Oliveira: O talento é algo com que se nasce ou não. O resto é aprendi-

zado, trabalho, desenvolvimento desse talento. É posterior, e isso será necessário para determinados tipos de questões levantadas pela natureza da linguagem com a qual a pessoa se expressa, com a qual tem interesse em se comunicar. No caso da música de origem folclórica, de mais fácil acesso, o grupo domina o problema do material básico musical da etnia; todos falam a mesma linguagem, uns falam melhor, outros não tan-

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to, mas existem os aspectos de natural talento. Por exemplo, eu conversava há algum tempo com um musicólogo africano e ele disse que o músico lá não se distinguia de nenhum outro homem da tribo: eles plantavam, eles faziam tudo igual, mas eles tinham uma habilidade especial, eles cantavam aquela música que a tribo gostava de ouvir, de se espelhar nela, de se comunicar por meio dela. Então, esse homem, além das suas atividades normais, cantava e todo o grupo se emocionava diante dele. Não podemos, em nome disso, jamais dizer: “Você vai fazer aquilo, você não vai fazer isso.” Seria o autoritarismo mais estúpido e castrador. Se existe um talento natural, este deveria ser trabalhado, levando-se em conta que todo mundo tem possibilidades, mesmo os menos talentosos. Trabalhando pode-se aprender, por exemplo, a plantar, mesmo que quem planta não seja dotado para isso: se alguém ensinar, é possível aprender. O mesmo para alguém que não é dotado para fazer um trabalho de agulha: se treinar um pouco conseguirá fazer. Eu conheci um garotinho de dois anos e meio que cantava músicas da Renascença Inglesa. De verdade, com toda aquela interpretação bem própria mesmo. Não sei como aquilo entrou na cabecinha dele. E já vi adultos que são incapazes de repetir um intervalo de quinta. Existem essas coisas. Agora, fazer disso uma base para não dar acesso à música seria estupidez. Luiz Giani: Em 1914 a civilização europeia levou ao público o primeiro concerto de

música futurista, música para máquinas. Russolo 25 e Marinetti 26 estavam à frente desse concerto. A humanidade estava dando um salto. E o que os compositores estão fazendo hoje? Música tonal? Música pós-tonal? Ou dizem pantonalismo? Pandiatonismo? Ou tonalidade suspensa? Tonalidade ampliada? E no caso da chamada, antigamente, antiarte, o ruído, a música espectral? Quais são essas tendências? Serialismo ainda existe? Aleatória? Acaso? Willy Corrêa de Oliveira: Você está falando de um setor já bastante desvinculado da prá-

tica musical, que é a música contemporânea erudita. À medida que o capitalismo se solidificou, cada vez mais a arte, como arte, distanciou-se das pessoas. Acho que não é difícil de imaginar que num mundo onde se coloca o lucro em lugar do homem, o Luigi Russolo (1885-1947), compositor e pintor italiano, membro do Movimento Futurista, foi autor do manifesto A arte dos ruídos (1913) e inventor do Intonarumori, máquinas de emitir sons criadas no intuito de obter novas sonoridades musicais.

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Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), poeta e escritor italiano, foi autor do Manifesto futurista, de 1909, texto que marcou a criação do Movimento Futurista. Além disso, foi fundador da revista Poesia e autor do texto teatral “Le roi bombance” (O rei pândego, 1909) e do romance Mafarka o futurista (1910), entre outros. 26

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contato com a arte é mínimo, ou você faz dinheiro ou você está liquidado. Ou seja, todo o afã do capitalismo foi produzir dinheiro, produzir capital. E isto foi terrível. Ao longo de muitos anos eles tiveram que acabar com tudo o que existia. Coisas como, por exemplo, o amor. Acabaram com o amor ao próximo, pois quanto mais você gosta só de você mesmo, mais você adquire as coisas. O capitalismo vem fazendo isso paulatinamente, tanto que em cada época ele privilegiava uma coisa. Privilegiou as mulheres, depois as crianças, até chegar a um ponto no qual todos, agora, são consumidores. Como o capitalismo foi trabalhando cada vez mais o capital em detrimento de todas as outras atividades humanas é claro que a arte foi uma das que mais soçobraram e especialmente a música. Quando falo da música, falo da música erudita. Da música como linguagem, música artística. Essa foi a que mais se prejudicou, pois o tempo que você leva para produzir música é muito dilatado. Minha música exigiu de mim uns 20, 30 anos de trabalho profícuo. Quase oito horas de dedicação diária a essa atividade. Para você realmente saber manipular todos os dados da linguagem, para você saber se uma música é tonal, o que significa isso, o que é uma modulação, isso tudo é uma escuta ativa na música como arte. Ora, em um mundo em que ninguém tem tempo, fica complicado você falar de arte. Não existe espaço, sobretudo para a música erudita. Tanto que a música erudita existiu até o século 19 ainda com restos de linguagem, depois foi se perdendo nessas pesquisas muito individualistas. Tudo no capitalismo é altamente individual, não existe mais nenhuma ideia de coletivo, nenhuma ideia de assembleia, nenhuma ideia de conjunções de nenhuma espécie. No meio disso tudo, o compositor inventa o que quiser, faz uma música para Eros, para um copo d’água esvaziando em outro continente. A música é sua e você faz dela o que você quiser. O problema é que não existe mais público para isso. Então, nós, compositores, no mundo capitalista, estamos condenados a fazer música para nós mesmos. Eventualmente, ela pode agradar aqui e ali, mas nem sabemos se agrada a partir daquilo que de fato foi concebido como acontecia no passado. Beethoven mostrou uma de suas composições para Goethe e ele, Goethe, começou a chorar. A resposta de Beethoven, que pensava em sua composição e em como gostaria que sua música fosse recebida, foi esta: “Mas como você chora, eu não vim mostrar minha música para um choramingas, eu queria mostrá-la a um homem, a um meu igual, que fosse capaz de entender o que eu quis dizer.” Um compositor exigia isso, porque existia uma linguagem. Claro que o capitalismo já estava começando, mas ainda não tinha se desenvolvido suficientemente para acabar com a música. Porque a música não dá lucro. Imagine toda a população

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alfabetizada musicalmente. Isso levaria muito tempo e haveria desgaste, desviaria totalmente do objetivo de ganhar dinheiro. Esse é o estado da música tal como ela se encontra. Por isso, essa distância entre o compositor e o ouvinte. Cada vez mais as coisas acontecem dentro da cabeça de um homem só. Esse homem já isolado por todos os lados, agora, já é uma ilha. Aquilo que dizia John Donne: 27 “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo.” No capitalismo o homem tem que ser uma ilha em si mesmo ou ele não sobra. O capitalismo foi fazendo com que os significados fossem desaparecendo de tudo, em todos os setores, até conseguir algumas atividades compatíveis com o capital, por exemplo, a moda, uma típica produção artística do capitalismo. Você não precisa de um conhecimento específico para estar na moda. Isso já é ótimo. Mas para uma sinfonia você precisa de um conhecimento. Você pode comprar um vestido de Dior, que custa 100 mil dólares, se você tiver dinheiro. Isso é uma mercadoria. Você não pode comprar uma sinfonia, o que faria com ela se você não sabe mais escutá-la? Luiz Giani: Chegamos a um ponto de tamanho tecnicismo que de fato se confunde o

trabalho do compositor com o trabalho de um físico, ele vira espécime de laboratório... É possível descolar a sensibilidade? As ciências cognitivas já estão dizendo que se pode fazer a tal racionalidade isolando o sentimento. Você passou pelo serialismo e foi para a eletroacústica, como fica a questão da sensibilidade no caso de uma música experimental? Vira ciência? Espécime de laboratório? Willy Corrêa de Oliveira: É claro que cada vez nos distanciamos mais das pessoas, mas

também, de quem nós poderíamos nos aproximar? Todos aqueles que no século 19 tinham algum conhecimento da música erudita, que é aquela que fazemos, foram morrendo. Um dia a gente morre. Já nos anos de 1930 muitos daqueles compositores nem existiam mais. A partir de então, a crise do individualismo foi crescendo. Alguns foram vivendo de outras atividades que não das suas composições. A não ser que se componha música de mercado, a música da indústria cultural, não se pode viver dela. Mas um compositor como Béla Bartók não podia ser enterrado porque não tinha dinheiro. É nesse estado de coisas que nós cada vez escrevemos mais para nós mesmos e não para o outro. Como todo homem no capitalismo, ele se torna cada vez mais solitário. Então essa solidão chega ao extremo de, hoje em dia, você fazer música para si mesmo. Isso é uma estupidez, é a estupidez que eu pratico. E se eu não praticasse 27 John Donne (1572-1631), poeta metafísico inglês e pastor da igreja protestante. Seus versos possuem metáforas engenhosas, sendo esta uma de suas mais conhecidas citações, presente em seu texto “Meditação XVII”, do livro Devotions Upon Emergent Occasions, publicado em 1624.

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essa estupidez para quem eu haveria de escrever música? Ora, para aquela música de mercado que já existe. Eu não me interessei por essa música, passei por um momento crítico muito grave, precisei avaliar e equacionar o problema. Pensei, no momento, que não haveria para quem escrever, mas também sabia que se não escrevesse morreria. Para sobreviver, continuei escrevendo exatamente para mim mesmo com essa certeza de que eu já não escrevo mais para ninguém. Isso é tragicamente capitalista. Luiz Giani: E você só conseguiu porque teve o amparo de uma universidade. Você é

professor da Universidade de São Paulo. Willy Corrêa de Oliveira: Sim, sim. Mas não estou falando desse aspecto. É dentro desse

estado de coisas tão decrépito, tão deteriorado, que Russolo fez aquelas experiências em 1914 e que a gente escreve as mesmas coisas hoje em dia. Depende de cada um o que se quer de si mesmo, sabendo que não existe uma música erudita viável, comunicável, dentro de um sistema onde a comunicação já não existe mais. Luiz Giani: Mário de Andrade dizia que no tonalismo 28 a forma comanda a criação, mas

nessa música do futuro, ele dizia, é o som dissecado, dilacerado, da música concreta, da música eletroacústica, enfim, é o som que cria. O compositor vai seguir a lógica interna do som. O som é que toma as rédeas da criação. Afinal, onde fica a sensibilidade? Willy Corrêa de Oliveira: Eu não isolaria a sensibilidade de um contexto social. A sensi-

bilidade não existe como dado absoluto. É um dado relativo, e está relativo à circunstância de tempo, de lugar, de língua, de natureza, de geografia etc. É um conjunto de coisas. Há também outra questão, a sensibilidade não é um dado fundamental que não se preste a se desenvolver. Aparentemente é possível desenvolver a sensibilidade. É uma discussão, me parece assim, que tirada do contexto não funciona. Essa sensibilidade tem que acontecer também dentro do capitalismo. E a sensibilidade capitalista é uma sensibilidade para o dinheiro. Ela não existe no plano da arte, na educação. A sensibiO sistema tonal, ou tonalismo, se constituiu a partir da sistematização de duas das sete escalas musicais utilizadas desde a alta Idade Média, denominadas “modos”, tendo sido adotados como modelos os modos jônico e eólio, constituindo um modo maior e outro menor, cujos modelos podem ser transpostos para qualquer altura dos 12 sons da escala cromática (Dó, Dó#, Ré, Ré#, Mi, Fá, Fá#, Sol, Sol#, Lá, Lá#, Si). Sistema ainda hoje massivamente utilizado, principalmente pela música de consumo da indústria cultural, o tonalismo se baseia na organização hierárquica dos diferentes sons da escala ao redor de um som principal, a sua tônica, exercido como centro de atração para os demais sons que a constitui. Tal organização hierárquica se funda na utilização dos dois primeiros sons secundários encontrados na série harmônica, gerados pelo som fundamental (1º grau), ou seja, o 5º grau e o 3º grau. O compositor francês Jean-Philippe Rameau contribuiu para a constituição da base teórica do sistema tonal em seu Tratado de harmonia, de 1722.

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lidade que tenho hoje não é a mesma que tive 10, 20 ou 30 anos atrás. Ela não é um dado universal, é um estado em processo. A sensibilidade do homem do século 19 não é a mesma do século 20, o sentimento não é mais o mesmo. Quando eu era criança, queria ser Chopin um dia na vida, a única coisa que queria no mundo era ser Chopin. E copiava tudo, até sua figura, olhava como ele era para ficar parecido com ele. Ia tocar piano e queria fazer tudo, mazurcas. Não me importava que ele fosse polonês e eu brasileiro, queria era ser Chopin. Minha sensibilidade toda estava voltada para isso. Só esqueci de um detalhe: se tivesse conseguido, de fato, ser Chopin, teria sido terrível e a única coisa que não teria conseguido seria ter voltado atrás, no tempo, para viver na época do Chopin, portanto, ter aquela mesma sensibilidade. Luiz Giani: Aquela conjuntura histórica. Willy Corrêa de Oliveira: Não posso escrever hoje como se escrevia ontem. Não tenho

mais essa capacidade, não respiro mais o mesmo ar, não me movo no mesmo meio de locomoção, não vivo mais naqueles mesmos ambientes. Nem ideologicamente, nem estruturalmente, nem economicamente. Beethoven pôs em sua obra a mesma medida de sentimento que deve ter posto de estrutura. Toda uma sintaxe muito clara. Quando ele modula para tal tom, aquilo é fundamental à escuta. Hoje o escutamos só com a sensibilidade e isso é não escutar Beethoven, é trair Beethoven. Ou escutamos apenas com aquela estrutura, com a ideia sintática. Isso também não seria escutar Beethoven. Fazemos hoje uma síntese do que eles podem ter sentido, mas não sabemos ao certo se o que sentimos é parecido com o que eles conheceram. Esse conjunto de coisas é que brota na relação com Beethoven e com qualquer um. A sensibilidade para mim se coloca nesse nível, pode e deve ser desenvolvida. E dentro do capitalismo nós não procuramos desenvolvê-la. Luiz Giani: Talvez a palavra arte não sirva mais. Antonio Candido, no livro Literatura e

sociedade, escrito nos anos 1950, já falava que na arte há a obra, o público e a sociedade. No nosso caso, a obra só se realizaria quando sai do compositor, passa pela transubstanciação, de ideias, objetos, sensações, utopias, se transforma em som, sonoridade. A chamada grande música ainda pode se realizar se cai no ouvido “cultivado”? Ou se perde nesse marasmo, nesse nivelamento da indústria cultural? Qual a possibilidade de uma obra que está circulando, que está vendendo, cujo objetivo é o lucro, se realizar? Ainda se salva alguma coisa na escuta?

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Willy Corrêa de Oliveira: Sempre que houver introdutor e receptor com conhecimento

de um código comum, tudo está salvo. Mesmo que uma música esteja na indústria cultural, se chegar em um ouvido, não digo “cultivado”, mas que conheça devidamente o código, vai haver comunicação. Se não tiver, farão com que adquira um novo significado que não o da origem. Uma peça de Beethoven pede um valor beethoveniano, mas vai ganhar outro tipo de valor, e eu não quero julgar agora se é bom ou é ruim. Quem não conhece o código, quem não conhece música, não é alfabetizado, não conhece a sintaxe, vai ouvir e ligar a música a várias outras coisas, ou seja, vai “salvar” a peça, não vai se salvar por isso. É como uma mensagem em uma garrafa se chegar à mão de alguém que saiba ler a mensagem. Se a mensagem chegar em turco a um falante de português, se perdeu. Luiz Giani: A arte está isolada. O capitalismo a levou a esse isolamento, mas a consciência

do compositor é outra coisa. Há uns 20 anos que os compositores começaram a ultrapassar a fronteira do tecnicismo e ir para a psicologia, para a sociologia, para a antropologia, para a semiologia. A análise técnica não faz aumentar o isolamento? Willy Corrêa de Oliveira: O isolamento existe porque, de um lado, inexiste o conhecimento

do código e isso faz com que não exista comunicação. Como o conhecimento do código do compositor é só dele, não pode exigir que os outros compreendam esse código de um homem só. Não existe linguagem de um homem só. Uma linguagem é um dado da natureza tão forte quanto a fauna, a flora. Ser um compositor não significa mais ser conhecedor de código algum tampouco, ele simplesmente se diz, porque não existe uma linguagem universal de composição. Não existem parâmetros para se julgar essa linguagem. Não existindo isso, qualquer um pode se dizer compositor e é o que acontece normalmente. Hoje isso se prolifera. O cara se julga e se acha ótimo. E o diabo é que depois ele quer ainda atormentar todo mundo com as suas composições. A música é uma linguagem que, como qualquer outra, depende de um código e infelizmente não existe mais um código vivo. Sem o “universal” não existe linguagem. Então, dentro disso, eu procurei no passado, na história da música, buscar tudo aquilo que significava linguagem. Saber distinguir as diferentes espécies de música, um Beethoven, um Bach, Mozart, Chopin, de uma música que você ouve no rádio, que é a música popular do momento. E com o interesse naquele setor da música, fui examinando a linguagem. As linguagens na música atravessam um longo processo histórico, começando por uma invenção absolutamente arbitrária como é

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o canto gregoriano e chegando ao dodecafonismo29 de Schoenberg. Não fui eu que inventei isso, foi a história que mostrou. Fui compreendendo e tentando fazer uma música com aqueles pressupostos básicos e linguísticos. Toda linguagem apresenta uma sintaxe ou ela não se organiza. Toda linguagem precisa de uma semântica ou ela não se comunica. E de uma pragmática, que não existe no capitalismo. Falar de qualquer coisa de arte dentro do capitalismo é falar de um beco sem saída. Aquilo que você pode aprender com estruturas musicais não invalida uma obra, pelo contrário, dá qualidade à obra. Esse trabalho com a linguagem, com a pesquisa, só pode ser bom para quem trabalha com arte. Toda música tem seu lado estrutural, que deve ser apreensível por todas as pessoas que se comuniquem com aquela obra, todos, não importa se é uma peça de Beethoven, se é de Stravinsky ou de Bartók, seja de quem for, esse préconhecimento do código deve existir ou não existirá comunicação. Toda a questão é de método, realmente. Esse é o grande fundamento. Existe esse dado estrutural que deve ser apreendido e existe a sensibilidade que, sem dúvida, pode ser desenvolvida ao longo da vida. A música tem um significado próprio. No caso é a sua estrutura, é a sua maneira de ser, sua maneira de objetivar um material musical. Isso é a estrutura. Esse aspecto estrutural é fundamental em qualquer área. Tem também o aspecto da semântica, que envolve o problema pessoal, interpessoal, sobretudo uma pragmática que é uma semântica, um significado mais geral. Quando o significado geral significa lucro, o capital, já estamos perdidos em relação a todo o resto. Então, toda comunicação está sempre ali, claudicante no caminho. Porque ela esbarra exatamente num mundo perdido, que é o mundo do capitalismo. Luiz Giani: E mata a arte. Willy Corrêa de Oliveira: O mundo chegou a essa estupidez. Eu posso dizer que sou um

compositor, que sou um artista plástico, eu posso dizer o que eu quiser porque não Método de composição com 12 sons, chamado dodecafônico (do grego, dodeka: “doze” e fonos: “som”), criado em 1920 pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg. Originado da necessidade de organizar de forma sistêmica o legado da quase ausência de tonalidade deixado pelos compositores alemães do período romântico, resultou no rompimento com o modelo tradicional do sistema tonal vigente desde o século 17, construído sobre a escala diatônica de sete sons (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si) e que tem como base a organização hierárquica dos diferentes sons dessa escala ao redor de um som principal, a sua tônica, exercido como centro de atração para os demais sons que a constitui. Como alternativa, o método de composição dodecafônico, construído sobre a escala cromática de 12 sons, propôs a utilização da série harmônica a partir dos sons secundários gerados pelo som fundamental, ou seja, respectivamente os intervalos de 7º, 2º, 4º, 6º etc., até o infinito. A utilização desses sons secundários da série harmônica, mais distantes do som fundamental e por isso menos utilizados pelos compositores até início do século 20, soa pouco usual para os ouvintes, criando uma sensação de estranhamento provocado por relações sonoras ditas dissonantes, constituindo-se, por isso mesmo, em material ideal para a criação de novas formas de articulação do pensamento musical. 29

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existe mais parâmetro para se saber de nada. O que eu não posso dizer é que sou rico, porque isso qualquer um saberá se é verdade ou não. Então, aqui nesse mundo, a gente é artista por força da vocação, talvez, e estamos num certo beco sem saída. Quer dizer, seria ótimo poder hoje escrever uma obra e saber que todo mundo vai poder entender. Então, existe um lado pragmático que o capitalismo negou para nós músicos. Luiz Giani: A lógica do capital reduziu e banalizou o próprio sentido do sistema tonal.

Hoje em dia o tonalismo é aquilo que a lógica do capital aviltou. É um aviltamento fazer com que as massas não consigam mais ter ouvidos para a arte. Dizem que o tonalismo está sendo usado para emburrecer e entorpecer os ouvidos das massas. O que foi feito da herança tonal? Willy Corrêa de Oliveira: O tonalismo tem toda uma gramática, dificílima. Para saber

e compreender um pouco o que é uma modulação em Schubert, em Beethoven, se levaria vinte anos. O que é que você ganharia com isso, em termos capitalistas? Nada. Então nas massas, de modo geral, o que ficou foi aquilo que do tonalismo chegou. De um processo histórico que vem desde a Idade Média, desde o canto gregoriano, o tonalismo aparece como o último rebento e se espalhou pelo mundo naquilo que existe de mais simples. Para modular em um só acorde, como fez Schubert, e ao mesmo tempo voltar para o tom original durante cem compassos é preciso muitos anos de conhecimento e talento. Então, o capitalismo simplesmente ignorou isso tudo, fez uso só daquilo que existia de mais simples que são as cadências de tônica, subdominante, dominante, tônica. O que veio em seguida foram algumas mentes que não se conformaram em repetir aquilo a que não podiam mais aspirar. É óbvio que Bártok não ia aspirar mais do que aspirou Liszt, do qual ele gostava tanto, um compositor tão extraordinário como foi Liszt, e tão pouco conhecido, por sinal. Então, Bártok começou a retrabalhar alguns dados de Liszt e a criar outros, porque arte é invenção, queiramos ou não. Um artista que não inventa, que não cria, não é um artista, é um artesão. Ele repete, e arte é criação. Bártok, assim, teve que levar muito mais adiante as inovações de Liszt. E como ele, Schoenberg e alguns compositores que mesmo decadentes dentro do sistema tinham certa inteligência musical capaz de movimentar, foram adiante, já dentro de uma completa falta de horizonte, que era o capitalismo. Como não existia mais linguagem universal, não existia mais comunicação realmente linguística, portanto, não existia mais linguagem, o que cada um fez foi salvar o que podia e a si mesmo. Schoenberg, vivendo no Ocidente, ele mesmo dizia da sua própria

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música, e disse para Brecht em uma ocasião: “Nem mesmo eu consigo ouvir minha música direito, pois ela me dá a sensação de um campo de batalha.” É triste, é trágico e é extraordinário e, ao mesmo tempo, é incrivelmente humano um homem dizer isso. Ele teria sido um grande gênio, um grande compositor, tão bom quanto Bach, quanto Beethoven, mas a infelicidade capitalista de ele mesmo não suportar a própria música o prejudicou. Essa infelicidade é terrível para qualquer criador. Imagine como uma sensibilidade desenvolvida a tal ponto como é a nossa, pode se transformar em uma neurose, que chega a levar ao suicídio, nesse mundo decrépito em que nós vivemos. Schoenberg, na realidade, como bom autoritário, como bom pequeno burguês, quis que aquilo, o serialismo, fosse a salvação da música germânica por mais 100 anos. E isso era mentira, porque nenhuma música, nem germânica, nada de nenhuma nação, poderia sobreviver mais de 100 anos feita por um homem só. Essa é a maior estupidez que Schoenberg cometeu, foi o primeiro erro dele. Mas, de qualquer forma, dentro desse erro ele teve acertos enormes. A obra dele é extraordinária. Quando ele chega aos Estados Unidos, em 1953, já perto dos 70 anos, se depara com um mundo que nunca tinha imaginado. Não tinha nada a ver com a Europa, era o mundo do capitalismo puro mesmo. Ele realmente entrou em parafuso. Assim, ele imaginou que a música tonal ainda teria muita coisa a dizer. Acho que, nesse ponto, ele se enganou ao menos naquilo que ele fez de música tonal. Porque foi muito menos interessante do que a música dodecafônica que ele escreveu. É uma música tonal ruim, de má qualidade, não tem a mesma qualidade que tem uma música tonal de Beethoven etc. Acho que o último compositor tonal foi, sem dúvida, Prokofiev. Era contemporâneo de Schoenberg, mas ele nem sequer o ouviu. Não parou para ouvir aquele que escreveu a última música tonal que seria possível. Era um compositor russo até a revolução de 1917, depois se tornou soviético, já em 1930. Saiu da revolução para ver se ganhava dinheiro com o capitalismo, mas o capitalismo só tinha lugar para Stravinsky. Depois voltou e foi bem aceito, mas teria que fazer uma música mais bem comportada, de acordo com... Luiz Giani: O realismo socialista. Willy Corrêa de Oliveira: Com o público de lá, que estava querendo ouvir aquelas

coisas... e ele fez isso muito bem. Continuou fazendo uma música de altíssima qualidade. Prokofiev limpou um pouco a música daquelas arestas, daquelas imitações de Stravinsky e assim fez uma música prokofieviana, extraordinária. Sua Sonata n° 5

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é uma música tonal que só poderia ser escrita no século 20 e por um grande gênio, pois só um imenso gênio ainda poderia escrever uma música tonal já no século 20. Schoenberg não foi esse gênio tão grande que fizesse uma música tonal boa. Fez uma música dodecafônica tão boa quanto a de Prokofiev. Então, não levo tão a sério tudo isso que ele diz. Levo mais a sério suas Variações para orquestra, seu Concerto para violino e orquestra, que são extraordinários. Concerto para piano e orquestra é também muito bonito. Esse é o Schoenberg que prezo e que também é uma figura trágica. Ouço, no máximo, meia hora de Schoenberg e não aguento ouvir mais, enquanto posso ouvir quatro horas de Bach tranquilo, sem grandes problemas. Posso ouvir quatro horas de Beethoven... já não posso ouvir quatro horas de Debussy. Se ouço só meia hora de Debussy e não tenho mais capacidade, e posso ouvir duas horas de Schubert, o que dizer de Chopin então? Luiz Giani: O que existe na cabeça de vocês compositores, quando compõem uma

obra? Vocês têm uma inspiração, uma sensibilidade? O que acontece quando o compositor faz essa transubstanciação e transforma objetos, ideias, utopias da sociedade e sua própria interioridade em sonoridade? Muitas vezes não dá para a pessoa perceber o porquê. Vocês não têm garantia nenhuma de que o ouvinte depois vá perceber essa ligação. Afinal que transubstanciação é essa? Willy Corrêa de Oliveira: Eu diria que o fato de não se apreender a inspiração, o con-

teúdo humano de uma obra, não quer dizer que aquela obra não a tenha, porém o receptor pode não tê-la. Talvez o erro não esteja lá na obra, talvez esteja no ouvinte que não tenha apreendido que aquela obra tem aquilo que ele está pensando que não tem. Como discutimos há pouco, no capitalismo, o público, nós em geral, temos um conhecimento muito parco de música. Então, lembro de Hanns Eisler, extraordinário compositor comunista, da Alemanha oriental, que tinha sido aluno do Schoenberg e fez um dia uma homenagem a ele. Schoenberg achou-a ruim, mas ele não tinha que achar ruim, o texto era extraordinário, realmente uma sentida homenagem. Ele escreveu, basicamente, que Schoenberg conseguiu retratar, fazer transparecer, espelhar, toda a miséria do capitalismo em sua obra e que a burguesia não tinha um compositor melhor que ele. Se ela não o aceitava, era por ignorância. Dizia que Schoenberg estava pleno de manifestação de uma energia humana, de um significado humano profundo, que era sua angústia. Também a sinfonia Opus 21, de Anton Webern, é de uma plenitude de angústia total. Ouço dez minutos e não aguento muito mais, porque é muito

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angustiante. O que mostra que é uma grande música também, porque ela espelha algo de tão real. Então, isso é uma música, vamos dizer, realista-capitalista plena. Não é da indústria cultural, aquela é outra coisa. Mas a música do Webern realiza o capitalismo como nunca vi igual. Então, se as pessoas não percebem isso, é porque estão tão obtusas, tão protegidas pelo dinheiro, pelo barulho da máquina registradora, que não ouvem aquela música devidamente. O problema é deles, não é da música. Eu só posso dizer que acredito na inspiração. Para mim a inspiração é uma possessão, de fato. Entrevistador: Entra num estado de transe? Willy Corrêa de Oliveira: Eu acho que sim, já me peguei em algumas situações nas quais

não estou sabendo exatamente o que estou querendo fazer e quase que automaticamente estou escrevendo algo. Vou produzindo num estado semiconsciente. Aquele momento é realmente extraordinário. Eu não saberia explicar, é um estado extremamente especial. Existe uma coisa que está ainda além da linguagem semântica e que é muito estrutural, que está ainda além da prática, além de tudo isso. Tem algo mais e eu não tenho explicação para tal. Acho que isso é inspiração. Luiz Giani: Mário de Andrade morreu em 1945 e na década seguinte surge a poesia

concreta,30 com Décio Pignatari, com os irmãos Campos, com Duprat.31 Você era garoto nessa época, mas pegou o embalo deles no movimento Música Nova. Essa chamada vanguarda brasileira tinha uma posição muito crítica em relação a Mário de Andrade e a Villa-Lobos. Diziam que eles atrasaram a música no Brasil, dando valor a uma música anacrônica. Desde os anos 1990 vários compositores estão fazendo uma revisão histórica desse período. Foi atraso, foi anacronismo? Willy Corrêa de Oliveira: A verdade é que em cada momento há uma maneira

diferente de olhar a história. A movimentação, o próprio desenvolvimento da história implica esse olhar diverso em cada momento. É claro que hoje vejo uma figura como Villa-Lobos diferentemente da maneira como o via quando tinha 18 anos. A mesma coisa sobre Mário de Andrade. Para nós, aqui no Brasil, Villa-Lobos sempre foi Vertente literária de caráter vanguardista e experimental que integrou o Movimento Concretista. Criada oficialmente no ano de 1956, em São Paulo, pelos poetas Décio Pignatari (1927) e os irmãos Augusto de Campos (1931) e Haroldo de Campos (1929-2003). Na Poesia Concreta, o verso tradicional é abolido e o poema se transforma em um objeto visual, incorporando aspectos geométricos à estrutura poética.

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31 Rogério Duprat (1932-2006), compositor e maestro carioca, foi um dos fundadores do Movimento Música Nova na década de 1960. Ex-aluno de Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, dedicou-se à criação de peças experimentais, atuando entre a produção musical erudita e a popular.

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uma figura muito pesada de se carregar. Ele pesava muito mais do que aparentava. Era difícil carregar Villa-Lobos. Muito difícil, cansativo até. Aquela cornucópia incrível de músicas que não acabavam mais, o fato de ele escrever sinfonias ouvindo novelas vagabundas de rádio e aquele gosto literário tão execrável que ele tinha... Era uma figura muito contraditória, em todos os sentidos. E tinha representado o Estado Novo. Por volta dos meus 18 ou 20 anos, no momento da minha vocação marxista, eu olhava para aquela figura com bastante desconfiança. Não o apreciava. Por outro lado, como todo brasileiro, eu conhecia muito pouco Villa-Lobos. Até os conhecedores de VillaLobos conhecem muito pouco dele. Ele foi pouquíssimo divulgado no Brasil, de fato, apesar do Museu Villa-Lobos, com seus objetos pessoais. No centenário de VillaLobos, há alguns anos, não aconteceu nada, o que mostra que o mundo continua tal e qual com ou sem Villa-Lobos. Minha desconfiança estava, sobretudo, fincada em uma ideia de vanguarda, inclusive em uma ideia de progresso na música, como defendia Theodor Adorno, que hoje, acho, se enganou completamente. Luiz Giani: Nos anos de 1960 vocês já tinham acesso ao escritos de Adorno? Willy Corrêa de Oliveira: Tínhamos. Já existiam traduções de Adorno em francês e em

espanhol. Em 1960 já o conhecíamos. Sobretudo Adorno, ele era muito favorável ao que queríamos. A gente podia não conhecer muito outros marxistas da época, mas Adorno sim. Nós, que fazíamos parte da vanguarda, Gilberto Mendes, Rogério Duprat, eu, que estávamos ligados a uma ideia de vanguarda, pensávamos completamente diferente do modo do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em relação à arte. Achávamos que se estávamos na vanguarda política também deveríamos estar em uma vanguarda na arte. Então víamos Villa-Lobos de uma maneira bastante crítica, bastante negativa. Tínhamos desconfiança daquela música muito velha, de uma afeição já em desuso naquela época. Já tínhamos conhecimento da segunda Escola de Viena, dos serialistas, de Stockhausen,32 indubitavelmente um grande gênio que tinha feito Karlheinz Stockhausen (1928-2007), compositor alemão identificado com as vanguardas artísticas da geração do pósguerra, foi aluno do compositor e organista francês Olivier Messiaen (1908-1992). Suas obras, principalmente aquelas produzidas entre os anos 1950 e 1960, introduziram novos padrões de abordagens melódicas, rítmicas e harmônicas por meio da combinação de recursos musicais tradicionais com a exploração de diversas possibilidades de síntese de sons eletrônicos, destacando a obra Gesang der Jünglinge, de 1956. É também desse período uma de suas mais conhecidas obras, o Klavierstücke, para piano, de sua fase de composição aleatória. Entre os anos de 1977 e 2003 dedicou-se à composição de seu chamado ciclo de ópera épica, intitulado Licht – The Seven Days of the Week, considerada a composição mais longa da história da música, cuja estreia da integral, com duração de 29 horas, aconteceu no ano de 2004, no La Scala, de Milão. Justificando sua obra, Stockhausen dizia-se interessado em despertar no público “uma consciência inteiramente nova”, rompendo os limites tradicionais entre arte e sociedade. 32

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algumas experiências extraordinárias. Ficar fazendo modinhas e serestas, coisas já tão em desuso e a partir de um vocabulário muito antiquado, além de gasto, para nós, era um retrocesso. A nossa, era uma reação contra o nacionalismo ainda vigente na época. Hoje em dia reivindico para todo brasileiro o conhecimento da obra de Villa-Lobos. É óbvio que é uma obra caudalosa, de difícil acesso, dificilmente é bem executada, o que daria apenas uma ideia do que essa música é na realidade, as execuções estão muito aquém do que as músicas teriam merecido. Sempre me propus a colocar para os alunos o problema da visão de uma música mais desenvolvida historicamente, uma música que chegou aos limites do serialismo e que depois teve que repensar outros problemas em vez de voltarmos para o século 19 quando, aí sim, houve um período nacionalista na humanidade. Nós éramos, realmente, muito críticos por causa do empenho em buscar o desenvolvimento da história, o desenvolvimento da linguagem do material musical. Até cheguei a desenvolver uma certa habilidade em improvisar Villa-Lobos. Com semelhança bastante próxima, justamente para refutá-lo. Luiz Giani: Ao piano? Willy Corrêa de Oliveira: Ao piano. Muito jovem cheguei a estudar algumas coisas,

cirandas, de Villa-Lobos. Com base naquele conhecimento, eu fazia uns improvisos chinfrins para dizer que ele fazia coisas ruins... Isso nas aulas que eu dava, os alunos sabem disso. Não faz muito tempo, já nos últimos semestres em que dava aula na USP, no meu carro, no caminho da universidade, ouvi no rádio uma música de Villa-Lobos que foi me tomando de uma maneira descontrolada. Eu não conseguia mais nem dirigir o carro e parei bem próximo da calçada para ficar ouvindo. Até fiz umas anotações a lápis, ali, na hora, porque fiquei confuso com tudo aquilo. Eram as cirandas do Villa-Lobos tocadas pela pianista Sônia Rubinsky e que são, realmente, excepcionais. E pensei: “Meu Deus, como é que até hoje não vi que esse homem é um gênio e que sou um reles, um mero estúpido e cretino que fico negando tal maravilha?” O fato de ele ser um herói nacional (e eu detestava os heróis nacionais), de ele ter sito tão querido pela nacionalidade e de eu ser tão antinacionalista, não me deixou perceber a grandeza de sua música. De repente esse homem me subjugou. Eu sabia que ele tinha sido homem do Estado Novo, do Getúlio, e isso era horrível. Ele era ignorante em quantas coisas, mas era um sábio musical como nunca vi igual. Então parei de ouvir aquilo, fui à USP, entrei para dar aula e disse: “Acabo de receber uma revelação fora do comum: Villa-Lobos é um gênio!” Todo mundo começou a rir e a perguntar se eu estava brincando com eles, e contei o que tinha acontecido no carro... Estava tão

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entusiasmado que saí da USP e fui buscar a música de Villa-Lobos, comprar discos, ouvir, ler partituras. Foi quando comecei a ler Villa-Lobos, nos anos 1990 e tantos. Passei sete anos trabalhando Villa-Lobos. Todo dia pegava uma partitura e lia. Ouvia o que tinha e via o quanto ele é mal tocado. Esse homem era um inspirado. Ele tem coisas de absoluta vanguarda. Cheguei à conclusão de que o nacionalismo talvez seja a parte menos forte, a parte que não é nem um terço de Villa-Lobos. Só conhecíamos aquilo que a gente pode chamar de escola nacionalista. Mas mesmo nessa escola, ele fazia música com uma genialidade que outros nacionalistas não tinham. Ele tinha uma inspiração, de fato... Luiz Giani: Muito elevada... Willy Corrêa de Oliveira: Muito especial. Foi então que comecei a revisar Villa-Lobos

e ver que ele era uma figura igualmente trágica dentro do capitalismo, como foi Schoenberg, como foi Webern, como foi qualquer um que viveu, infelizmente, embaixo do céu das promessas capitalistas. Villa-Lobos era um homem trágico. Ao mesmo tempo em que produziu obras tão nacionalistas, é irreconhecível como brasileiro. Ele é internacional. Ouvindo Villa-Lobos dá a impressão de estar ouvindo um gênio grego ou alemão dos anos 1950, 1960, já mais adiantado. E ele seduziu o mundo, na época, mais pelo folclorismo, sem dúvida. Seduziram-se pelo VillaLobos mais pelo que ele tem de folclorista e de exótico do que por aquilo que ele tem de grandeza e de invenção, de criação artística. Villa-Lobos pode ter sido um homem do Getúlio Vargas e ao mesmo tempo um grande gênio. Não posso ficar decretando quem é bom e quem é ruim só porque pensa isso ou aquilo. Mas não sei se, nesta imbecilidade generalizada que vigora hoje, Villa-Lobos é apreciado como é ou apenas como mito. Ele é um grande compositor, como foram os grandes compositores do século 20, Bártok, Stravinsky... foi um desse gênios extraordinários. É de uma invenção, de uma pureza, de um vigor que a gente pode chamar, de fato, de nacional, tal como imaginava o imenso, o incomensurável, Mário de Andrade. Nós, das gerações posteriores, já estamos muito mais vendidos. Somos mais norteamericanos que brasileiros. Villa-Lobos ainda tinha aquela identidade nacional e ele soube, o que é incrível, transmitir isso. Acho que mesmo a obra nacionalista dele é extraordinária. É diferente dos outros nacionalistas. Luiz Giani: Foi em uma entrevista ou em um artigo que você falou sobre os vários pro-

cedimentos que ele utilizou, harmônicos, melódicos, colagens? Estou lembrando que

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já no final da vida, olha que imaginação, Villa-Lobos pegou uma fotografia de Minas Gerais e escreveu na partitura notas musicais de acordo com os contornos das montanhas. Shostakovitch também fez isso, quando Stálin morreu; transcreveu as letras do nome dele para as notas musicais. Willy Corrêa de Oliveira: Engraçado, quando Villa-Lobos toma uma montanha de Mi-

nas e põe as notas, achamos que isso é uma grande fantasia, uma grande sensibilidade. Quando Schoenberg cria uma série e faz uma peça, pensamos: “Isso é matemática, é árido.” Estamos tomando partido de forma equivocada. Ambos são imaginosos. Luiz Giani: Cerebralismo, diziam. Willy Corrêa de Oliveira: Bach também era cerebral. Essa distinção é bobeira. Estupi-

dez. Na música, a parte da estrutura deve ser tão forte quanto o resto. E todo músico que é bom tem uma capacidade imaginosa para estruturas musicais. Villa-Lobos já tinha feito isso com os prédios de Nova York. Então, cada um inventa sua linguagem. O compositor Pierre Boulez, por exemplo, faz outro tipo de imaginação estrutural. Todas as três formas apontam para essa tragédia que é a de não ter uma linguagem universalizante que todo mundo pudesse entender e que não precisasse ficar com esse artifício de tomar as montanhas de Minas ou inventar uma fórmula matemática para fazer o serialismo integral. Luiz Giani: A estocástica. Estatística, cálculo de probabilidades... Willy Corrêa de Oliveira: Estocástica, ele usava essa palavra e tinha um conhecimento

matemático bastante desenvolvido. A sensibilidade está aí. A capacidade de inspiração está em todos e sempre se pode não explicar a fonte, embora qualquer um que tenha algum conhecimento da linguagem a reconheça. É compatível com os mesmos argumentos que tinha a música desde a época do Canto Gregoriano, passando pelo modalismo todo, pela Renascença e pelo Barroco até chegar à música do século 20. É um caminho inteiro no qual todos os compositores apontam para o mesmo problema terrível: a falta de uma linguagem universalizante. Beethoven já sabia tudo o que devia fazer, ou seja, a linguagem estava definida, todos os argumentos estavam consolidados em uma gramática musical, que era a estrutura da música. Já o músico de agora não tem mais essa estrutura para se expressar. Villa-Lobos ou usava uma música folclórica como material musical, ou escrevia notas de acordo com as curvas das montanhas mineiras. Isso mostra como nós vivemos em um mundo trágico. Bach, de antemão,

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já sabia tudo e escrevia rápido porque existiam as informações fundamentais para sua expressão, como eu uso agora as palavras e por meio delas me exprimo com você. Não preciso inventar uma língua para falar com você. Hoje a tragédia é essa, precisamos inventar uma linguagem. O problema de Villa-Lobos é esse, acho. Como, de fato, ele não tinha um grande conhecimento musical escolástico, teve, sim, um grande conhecimento musical prático. Ele não sabia explicar sua genialidade, não soube desenvolver seu saber para chegar a uma verdadeira ciência musical. E foi um cientista da música tão extraordinário, que o próprio Mário de Andrade não o aceitava. Luiz Giani: O Mário de Andrade? Explica isso. Willy Corrêa de Oliveira: É verdade. Ele criticava, dizia que Villa-Lobos não sabia lidar

com a forma. Tenho os documentos do Mário de Andrade. Ele pensava isso mesmo. Mas Villa-Lobos fazia uma coisa muito além da capacidade intelectual, inclusive de Mário de Andrade, que foi, realmente, um grande pensador brasileiro – talvez um dos únicos. Villa-Lobos tinha uma ciência musical inata, coisa que não aprendeu, tinha a inspiração fundamental. Criou uma obra a partir de um discurso que não obedecia mais aos cânones, aos padrões, do tonalismo. Não são tonais os padrões do discurso dele. São muito mais associativos. Ou seja, ele é capaz de associar um tipo de material com outro que nada tem a ver, criar uma síntese com um terceiro e desta síntese fazer outro material que puxe o primeiro, sendo já uma transformação. É um discurso que não existe mais, ultrapassou aquela ideia de tônica, dominante e tônica; exposição, desenvolvimento, reexposição. Ele fez um discurso novo, um discurso em que essas associações se davam como se você estivesse olhando uma paisagem através das janelas de um trem em alto movimento. Essa paisagem é sempre mutante; o trem é que está em movimento, não a paisagem. A paisagem ficou para trás. Isso era algo totalmente novo. Alguns compositores chegaram próximos a isso. Béla Bartók chegou perto de alguma coisa parecida com isso, fez associações fundamentais entre materiais musicais absolutamente díspares. Uma lição que já vem desde Liszt, mas que nunca tinha sido assimilada. Esse é um aspecto de Villa-Lobos que me interessa muitíssimo. O segundo aspecto é que ele não tinha uma formação musical, era um músico das ruas do Rio de Janeiro, do começo do século 20, mas, claro, era um talento de classe média, teve acesso a línguas e a informações essenciais, inclusive no campo da música. Nunca aceitou, por exemplo, um curso de orquestração. Nada pode ser mais imbecil do que ensinar alguém a orquestrar. É como querer ensinar a

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pintar. Isso não existe! Um homem tem capacidade de mexer com as cores, eu não tenho, mas alguns têm e chegam a se chamar Matisse, ou qualquer outro gênio da pintura. Orquestrar é ter um pouco essa intuição, a não ser que se aprenda aquela escolástica da orquestração que é orquestrar segundo padrões da escola de Mannheim, de forma padronizada: a melodia vem nos primeiros minutos, o segundo violino é só para o segundo violino. Para Villa-Lobos não existe “violino”, existem instrumentos. Ele experimentou muito com aquela capacidade de descobrir. Viajou pela Amazônia, pelo Nordeste, viu o Brasil inteiro, de uma intelectualidade tão bagunçada quanto à dele, por isso inventou uma orquestra nova. Muita gente dizia que a orquestração dele era defeituosa, mas pelo contrário, para mim ela é inventiva. Defeituoso é quem vê aqueles defeitos pensando naquela escolástica já ultrapassada. Villa-Lobos é plenamente comparável a grandes compositores do século 20. Um homem que reinventou a orquestra, o piano, ele reinventou tudo. O terceiro aspecto magistral nele é a capacidade de fazer colagens musicais. Agora é que estamos descobrindo, um pouco, nos estudos de música eletrônica, o quanto a gente poderia fazer música como um cineasta concebe um filme, com cortes, com planos, com montagem. Isso Villa-Lobos fez demais. Consegue fazer com que, em um primeiro plano, tenha uma melodia de uma cantiga de roda, no fundo um “tum-chi-ca-tum-chi-ca-tum”, algo que você não identifica, certo ruído, e lá no fundo mais fundo tem outro, em um terceiro plano, um ritmo: “pow-chi-pu-pu-pow”. Junta essas três coisas e dá uma ciranda fantástica de Villa-Lobos. É colagem pura. Ele tinha um senso harmônico espantoso, essa capacidade, como Schubert teve, de realmente exprimir de maneiras diversas uma mesma entidade musical com aproximações harmônicas até de naturezas opostas. Villa-Lobos fazia isso com o pouco conhecimento escolástico que tinha. Isso é que é fundamental nele, extraordinário. Ele é um colosso de genialidade, de ignorância, de maravilha e eu só posso me ajoelhar toda vez que falo de Villa-Lobos. Luiz Giani: Lévi-Strauss, em defesa da linguagem e tudo mais que você colocou, fala

em primeira e segunda articulações da linguagem. A primeira seria a que dá o sentido, a segunda, fonológica. A obra dele O cru e o cozido trata de música também. LéviStrauss escreve sobre isso nos anos 1950 e nos anos 1960 há uma briga tremenda do Umberto Eco, com a Obra aberta,33 que critica Lévi-Strauss.

33 Coletânea de ensaios (1962), de autoria do filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932), na qual explora o fundamento da obra aberta e expressa seu pensamento sobre a forma e indeterminação das poéticas contemporâneas.

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Willy Corrêa de Oliveira: E com razão! Não totalmente, mas em parte. Lévi-Strauss,

como todo pensador burguês, apesar de ter sido um gênio em vários setores, tenta encaixar tudo na linguagem musical tonal como padrão universal. Isso não é verdadeiro! Não dá para atar tudo ao padrão que a gramática tonal exige. Não dá para fazer uma tal generalização, e ele fala mal da música contemporânea porque não segue aquele padrão. Ora, ele queria que a música contemporânea do século 20, depois das duas grandes guerras, fosse igual a que Beethoven fazia? Nesse sentido, Lévi-Strauss foi um estúpido pequeno burguês. Luiz Giani: Umberto Eco estava certo em criticá-lo nessa circunstância, a da Obra aberta? Willy Corrêa de Oliveira: Ele estava criticando por outro caminho. A música não vale

pela dupla articulação. Se existisse dupla articulação musical, a linguagem da música seria como a linguagem da fala. Nós teríamos, de antemão, todas as palavras e só iríamos organizar o discurso. Luiz Giani: Isso vale para a linguística. Willy Corrêa de Oliveira: E isso não tem nada a ver com a música. A música tem outro

padrão de linguagem que Lévi-Strauss não soube avaliar. Nesse sentido, sou contra Lévi-Strauss e até a favor de Umberto Eco, mas não totalmente, porque o negócio da ópera aberta abriu demais. Luiz Giani: Então Lévi-Strauss tomou a estrutura da linguística e levou para a música? Willy Corrêa de Oliveira: É, ele quis fazê-la valer para a música, porque encontrou uma

proximidade com a música tonal. E por que não fez essa aproximação com a música modal, por exemplo? Porque não existe. Se você forçar a barra, se disser que unidades de primeira articulação são “x” e equivalem a tais coisas na música, como na linguagem, coincide com o tonalismo. Isso não é verdade. E não é verdade para o bem da humanidade e para o bem da música. Se você fizer esses “arranjos” possivelmente a música é duplamente articulada como uma linguagem verbal. Isso é uma ditadura de regras de um pensador pequeno burguês. Com relação à música, isso realmente não é verdade. Escrevi um pequeno trabalho, por volta de 1975, respondendo a essa questão de Lévi-Strauss. Luiz Giani: Parto do pressuposto de que se a música e as artes são necessidades universais

do ser humano, essa música da indústria cultural é música leve, gastronômica...

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Willy Corrêa de Oliveira: E causa úlcera... Luiz Giani: Mas para a maioria parece que traz felicidade. Que prazer é esse? Não quero

ofender a sensibilidade de ninguém, inclusive, não foram as massas que criaram esse contexto histórico que embota os sentimentos. Tem leveza demais. Por que não uma música que expresse a dor da vida? O que é música leve e o que é música pesada, que expressa a dor do mundo? Willy Corrêa de Oliveira: Com relação a peso e leveza, não tenho uma balança musical!

Para mim não existe isso. Posso dizer apenas que todo problema, hoje, deve ser colocado à margem do sistema. Qualquer tipo de solução não pode vir de uma atividade capitalista. Infelizmente, as crianças devem ir para a escola, que é a pior desgraça para qualquer criança. Como dizia Russell: 34 “Todo homem nasce bom, precisa de muita educação para ficar ruim.” Isso realmente é verdade. Acho que o fundamento de tudo, toda saída para o mundo, vem de uma visão clara das coisas, que permita uma escolha. Tudo o que o homem faz deveria ser pensando a partir de uma visão clara de o que é o sistema, que vantagem tira dele, o que ganha com ele. Uma boa avaliação das coisas faria agir contra o sistema. Faria lembrar o poema de Paul Celan,35 algo como: “A um homem que se afoga vocês oferecem ouro? Talvez a um peixe vocês consigam enganar.” Cada homem tem que chegar a isso, sentir-se realmente afogando e saber que ouro não vai adiantar para sua salvação. E que ele vai ter que ter uma atitude marginal ao sistema em todos os sentidos. Luiz Giani: A arte muda a vida, ou a consciência do compositor muda a vida para mudar

a arte? Willy Corrêa de Oliveira: Acho que a vida deve ser mudada antes. A arte sempre reflete a

vida. Quando a vida não está mudada, a arte também se “trumbica”. É porque uma coisa não vem à frente da outra. Por isso que a gente tem uma música contemporânea tão “trumbicada” quanto essa. Não tem jeito de mudar a vida depois, a arte vem a reboque disso.

Bertrand Arthur Russell (1872-1970), filósofo, lógico e matemático britânico, foi fundador da Filosofia Analítica e autor de livros como Introdução à filosofia matemática (1918) e História da filosofia ocidental (1946), além de Prêmio Nobel de Literatura em 1950.

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Paul Pésaj Antschel, mais conhecido como Paul Celan (1920-1970), foi um poeta e tradutor romeno de origem judaica. Sobrevivente do Holocausto, tema recorrente em suas obras, seus trabalhos contêm uma linguagem imperativa de acusação à língua e à cultura alemã.

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Ângela Leite Lopes Tradutora, dramaturga, diretora, professora e atriz carioca, Ângela Leite Lopes iniciou sua formação acadêmica no curso de Teoria do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), em 1981. Como profissional, especializouse no trabalho de Nelson Rodrigues e nos anos 1980 finalizou seu doutorado em Filosofia na Universidade Paris I, com a tese “O trágico no teatro de Nelson Rodrigues”. Na década de 1990, começou a traduzir a obra de Nelson Rodrigues para a língua francesa, recebendo em 1994 uma bolsa de estudos do Ministério da Cultura da França. Em 1998, tornouse professora adjunta do Departamento de Artes Utilitárias da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, traduz dramaturgos franceses como Valère Novarina e Bernard-Marie Koltès para a língua portuguesa.

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Sidnei Cruz: Gostaria de começar esta conversa a partir da experiência de estranha-

mento da condição humana que o teatro, o bom teatro, o teatro fundamental, propõe para os espectadores. Ângela Leite Lopes: Gosto dessa sua provocação porque nos faz lembrar que o teatro não

é retrato da vida no sentido de se trazer ao palco uma fatia de vida como os naturalistas queriam. Essa noção do teatro naturalista, que é pontual, acabou dominando um pouco o imaginário do público, o imaginário das pessoas que não estão ligadas ao teatro. Elas acham que o bom teatro é aquele que mostra algo da realidade, da vida cotidiana, do ser humano como indivíduo com suas paixões e emoções. O teatro não é forçosamente isso. Se o teatro permanece ao longo da história da humanidade, sem dúvida nenhuma é porque ele propõe uma experiência do humano que só se faz no teatro. Vamos ao teatro nos ver e nos estranhar. O teatro permanece como uma experiência ainda bem fundamental, apesar de tudo. Sidnei Cruz: Você tem uma experiência acumulada ao longo de 30 anos de trabalho,

mas eu gostaria que você falasse um pouco de uma passagem pontual, que acho importante para a cultura teatral carioca e brasileira: sua experiência com Bia Lessa, quando você começou a trabalhar a questão do teatro como lugar de estranhamento no qual a palavra e os materiais envolvidos na encenação podem provocar essa inquietação sobre a condição humana. Ângela Leite Lopes: Foi em 1984. Fui convidada a falar sobre Tadeusz Kantor, um artista

polonês que morreu em 1990 e que era cenógrafo de formação, também era pintor, artista plástico, homem de teatro e se dizia encenador porque não havia outro nome para se definir. Ele encenava, tinha um grupo, o Cricot 2, que o acompanhou de 1955 até sua morte. Kantor propunha uma quebra na ilusão, queria criar outros tipos de relação com o espectador que não a da ilusão, que não a do formato tradicional do teatro, no qual a cena representa o mundo fechado em si e proporciona a identificação com o personagem, repetindo uma experiência em vez de criar uma experiência nova. Kantor diz que no teatro é preciso fazer sempre renascer o momento inicial em que um homem apareceu pela primeira vez diante dos outros, exatamente igual a eles e, no entanto, infinitamente estrangeiro em função de uma barreira que não pode ser ultrapassada. Ele criou estratégias para resgatar essa estranheza. Ficava em cena, como uma figura concreta, real, de encenador, e o fato de se posicionar no palco acaba com o caráter ilusório; está ali, não é aquele que produziu antes o espetáculo, ele permanece presente com seus gestos muito

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concretos em cena. O espetáculo começa, Kantor está lá, os atores começam a atuar, ele está intervindo na cena, no texto. Ele diz: “Eu não monto um autor, eu monto com o autor”. Em A classe morta, um espetáculo de 1975 com o qual ele ganhou o mundo, se tornou conhecido, Kantor trabalha com um texto específico de um autor polonês, Tumor cerebral, de Witkiewicz,36 que aparece em alguns momentos do espetáculo. Alguns atores falam trechos desse texto, mas o espetáculo tem uma partitura própria: os bancos de uma classe, velhinhos como alunos que entram em cena com bonecos, seus duplos. Os bancos são máquinas da memória e por meio dessas máquinas vão acontecendo as ações, que aparecem, acontecem e se dissolvem em outras, produzindo uma experiência de tensão entre os diversos elementos da cena. Sidnei Cruz: Kantor fala do “espaço guarda-chuvoso”, dos papéis picados — e Bia Lessa

usou muitos objetos nas encenações: manequins, embalagens, guarda-chuvas. A cena é geradora da escrita do espetáculo, tudo o que é texto surge desse engendramento entre os elementos, que não são propriamente da literatura ou da palavra ou do texto. Ao mesmo tempo, você está traduzindo Valère Novarina, que afirma, não sei se o contrário, ou no mínimo algo contraditório, que a palavra é o elemento, a matéria fundamental do teatro ou da própria humanidade. Como é que você percebe essas duas vertentes, uma na qual a palavra não é o elemento guia e outra na qual a palavra seria uma espécie de guarda-chuva? Ângela Leite Lopes: Kantor começa a fazer teatro durante a Segunda Guerra e depois

deslancha no pós-guerra. Ele se diz um herdeiro do dadaísmo, toda a sua bagagem é das artes plásticas, ele não faz nenhuma referência à historia do teatro. Kantor conversa com os dadaístas, com Marcel Duchamp, enfim, se interessa pelos ready-made 37 dos dadaístas, se interessa pelo objeto, mais especificamente pelo objeto achado. Ele fala que o objeto achado é aquele que está na soleira entre o lixo e a eternidade. Aquele objeto gasto, que não serve mais para o uso para o qual foi feito é o objeto que interessa à arte. Kantor começa a trabalhar na pintura e no teatro com o objeto achado, que permite uma incursão na realidade sem, no entanto, retratar a realidade. Ela aparece na obra de

36 Stanislaw Ignacy Witkiewicz (1885-1939), conhecido pelo pseudônimo de Witkacy, foi um celebrado autor europeu de espírito vanguardista. Também era pintor, fotógrafo e filósofo, explorando em suas obras o conceito da forma pura.

O artista Marcel Duchamp (1887-1968) cria em 1913 seu primeiro ready-made, conceito artístico em que o objeto comum, selecionado sem nenhum critério estético, é elevado à condição de obra de arte por possuir uma autoria ou estar exposto em um museu ou galeria.

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arte para, eventualmente, desorganizar as coisas. Há a fase dos happenings,38 na qual ele faz as embalagens e embala até a mulher... Sidnei Cruz: Os sacos são a escória dos objetos... Ângela Leite Lopes: Exatamente. Ele vai criando, depois, nas cenas, umas máquinas. Em

um dos espetáculos ele criou uma “máquina do aniquilamento”,39 várias cadeiras dobráveis fechadas acionadas por um ator, sempre expulso. A cena eram os atores tentando ganhar espaço e aquela máquina de aniquilamento impedindo. Tudo no teatro dele remete à noção do objeto achado: o texto é um objeto achado, o ator é um objeto achado, isso é muito importante. Ele trabalha com a trupe do Cricot 2, que fica com ele a vida inteira, apenas vão se inserindo novos atores, mas o núcleo do grupo permanece com ele, envelhece com ele. Há, por exemplo, os atores gêmeos, muito emblemáticos, que aparecem em todos os espetáculos e sempre fazem o papel de gêmeos. Para Kantor, o ator é um objeto achado porque o que interessa a ele no ator é sua característica, o que ele já tem, e não o que o ator construiria como personagem. O personagem surge das características do ator. Ele brinca que tem uma Comédia dell’Arte, porque os atores repetem praticamente os mesmos papéis. Mas ele não monta o texto, não toma uma ideia que o texto traria, não traduz essa ideia em cena, sua cena não é para se traduzir. O espaço é trabalhado de forma que também seja percebido como um objeto achado. Em A classe morta, por exemplo, Kantor dispõe a cena de maneira que o espectador é obrigado a olhar em um determinado ângulo, não assiste a partir do centro, olha para o lado e, com isso, descentrando a ação, ele cria a estranheza, faz com que as coisas que não seriam percebidas a partir do centro sejam percebidas. Não é que a palavra não seja importante, ela é, também, um objeto achado. No manifesto “O teatro da morte”, Kantor diz que o dadaísmo abriu uma via para a arte contemporânea, muitos tomaram essa via, ela foi crescendo, crescendo, virou uma autoestrada que agora está engarrafada e ele odeia os engarrafamentos. Eu gosto muito dessa sua fala, pois, embora Kantor ainda não seja tão conhecido quanto deveria no Brasil, há sempre uma ideia de esgotamento, a contemporaneidade como um esgotamento. Como se já tivéssemos feito todas as experiências possíveis e ficássemos instalados em 38 Happening, termo inglês, criado no fim dos anos 1950, pelo artista norte-americano Allan Kaprow (1927-2006). É uma forma de expressão artística de ações coletivas, que combinam elementos visuais e teatrais, baseadas no improviso e na espontaneidade.

“A máquina de aniquilamento” foi introduzida por Tadeuz Kantor na encenação de 1963 da peça O louco e a freira de Witkiewicz. A máquina, que consistia em uma grande pilha de cadeiras, em seus constantes espasmos anulava a interpretação emocional do ator, criando um rompimento do texto com a ação cênica, na qual os atores eram igualmente tratados como objetos de cena.

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um certo cinismo, observando a espetacularização dessas rupturas e conquistas. Novarina entra em cena para fugir do engarrafamento. Começa a escrever, no final dos anos 1960, sua primeira peça, O ateliê voador, foi montada em 1973, uma peça muito interessante que tem influência bem visível do Brecht. Mas uma das características do Novarina é que ele cria uma língua, ele é também artista plástico, pinta e escreve. E escreve muito. Nem sempre para teatro, mas todos os seus escritos são levados à cena por atores, mesmo os escritos “teóricos”, os “ensaios”, digamos assim. Ele trabalha muito com neologismos, com um jogo na linguagem que é em si teatral. Sidnei Cruz: Ele fala que escreve um texto para ser proferido. Quando você o traduz, a

tradução é para ser falada ou para ser lida? Ângela Leite Lopes: Novarina tem uma coisa importantíssima, que tem a ver com o que

você falou, que é o sopro. O primeiro texto que traduzi dele, Carta aos atores, começa assim: “Escrevo com os ouvidos para atores pneumáticos.” E continua com: “Os pontos nos manuscritos árabes eram solos respiratórios. Respirem, pulmoneiem.” Então ele começa a falar da respiração e de toda a passagem do sopro pelo corpo do ator. Isso é o que importa. Sidnei Cruz: Tem a ver com Antonin Artaud... Ângela Leite Lopes: Sim. Artaud não estava todo editado ainda e Novarina foi aos arqui-

vos, às casas das pessoas, vasculhou todos os escritos. Ele mergulhou fundo no Artaud e depois disso nunca mais leu uma única linha dele. Mas diz que sua obra está posta entre dois marcos: São Paulo e Artaud. Que sua obra é ficar cavando o terreno que está entre esses dois marcos. A palavra de Novarina, no entanto, é irrepresentável no sentido do desejo de retratar a obra com ela. Não é mimeses. Ele diz: “A boa nova do teatro – onde a poesia é ativa – é que o homem ainda não foi capturado. O mundo não tem que ser descrito, nem imitado, nem repetido, mas deve ser de novo chamado pelas palavras. Ide e anunciai em toda parte que o homem ainda não foi capturado.” O teatro não deve servir para reproduzir o homem, mas para se fazer uma experiência de estranhamento do homem, desse animal que fala. É fundamental, para traduzir o Novarina, se deixar guiar pela estranheza. Os primeiros textos dele que traduzi, em 1999, Carta aos atores e Para Louis de Funès, tratam do trabalho do ator, basicamente. Ele toma a figura de Louis de Funès, um ator cômico francês muito popular, e põe em sua boca uma série de falas, reflexões, sobre o ator e sobre o teatro, sobre cenário, encenação, sobre o encenador, o poder do encenador, o poder da mídia, o poder que a mídia confere ao encenador, ao espetáculo... todo um

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lado crítico em relação a isso. São dois textos teóricos nos quais ele brinca com a sintaxe, cria neologismos; há passagens difíceis de serem traduzidas. Logo depois, em 2002, para a reabertura do Teatro da Maison de France, trouxeram um solo do ator francês Andre Marcon, A inquietude, uma prosa poética de Novarina que eu traduzi para as legendas do espetáculo em um prazo bem curto. Não tinha visto o espetáculo e tive que traduzir para ser cotejado logo antes da apresentação. Foi um texto que traduzi e não entendi. Percebia uma partitura rítmica sonora que era necessário respeitar. Eu não podia interpretar. Sidnei Cruz: Era uma invenção. Mais trair do que traduzir. Ângela Leite Lopes: É. Uma prosa poética de um personagem que não tem nome defi-

nido, é João Mancada, mas vai mudando de nome ao longo de sua fala, autobiográfica, sem início, meio ou fim. Ele nasce, já morreu, então conta o nascimento, é um grande mosaico de imagens. Sidnei Cruz: E como foi sua saída criativa para isso? O que você colocou em jogo? Ângela Leite Lopes: Minha saída foi seguir a partitura rítmica. Às vezes eu tinha dúvida se

me guiava pelo sentido ou pelo ritmo. Quando eu podia manter algo próximo do sentido, privilegiava o ritmo. Foi uma experiência muito desconcertante, tenho certeza de que a boa tradução se faz com muitos anos, é bom traduzir vários textos de um mesmo autor, como foi minha experiência de traduzir Nelson Rodrigues na França, traduzi Senhora dos afogados, A serpente, Valsa nº 6, Toda nudez será castigada, Beijo no asfalto e Doroteia. Ao longo do tempo você vai pegando a mão, vai ficando mais firme nas suas opções, cria uma intimidade com a partitura textual, cada autor tem seu estilo. Quando Nelson Rodrigues escreve uma palavra, não é para usar outra. O tradutor não pode facilitar o texto para o receptor. Na França, uma jovem diretora montou Senhora dos afogados e há uma cena em que a D. Eduarda vai com o noivo de Moema para o bordel e depois fala para ela: “Agora chama a tua mãe de prostituta”, Moema fala: “Prostituta”. A diretora perguntou por que eu não traduzi por “puta” e eu respondi: porque o autor pediu “prostituta”. Coincidentemente, em 1992, na época dos 500 anos do descobrimento da América, houve um evento sobre a data e nele essa mesma diretora leu a minha tradução de A serpente. Na cena inicial Décio diz: “Agora diga que tu és uma puta”, mas Lígia fala: “Eu sou uma prostituta”, e ele diz: “Eu não quero prostituta, eu quero puta”, então ela fala o que ele pede: “Eu sou uma puta.” Ou seja, eu respondi com o próprio Nelson: quando ele quer realmente um palavrão, ele o usa, quando ele não quer, não usa, e isso às vezes causa uma estranheza.

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Sidnei Cruz: Um recurso dele de estilismo e de jogo com o personagem, com a figura,

com o lugar que ela representa. É uma família conservadora; a palavra “puta” ficaria melhor no Plínio Marcos, não é um rodeio. Puta é puta mesmo. Ângela Leite Lopes: É mais impactante a filha chamar a mãe de prostituta do que de puta.

O palavrão vem com uma carga de não pensamento, é uma coisa que sai, você não pensa. Uma palavra técnica é pensada. Quem a fala deliberou, legislou. Com Nelson Rodrigues eu precisei justificar essas estranhezas, a pontuação, uma série de coisas. Plínio Marcos eu conheço bem, mas não tinha uma intimidade com sua obra e foi muito interessante, na tradução, ir descobrindo a partitura que estava por trás do texto. Há pontuações rítmicas interessantes, marcadas com o sapato, em Dois perdidos numa noite suja. Estou cada vez mais convencida de que o texto que fica, o texto que acaba se tornando clássico, é um texto que é muito amarrado ritmicamente; teatro é rítmico, essa é uma noção que os franceses têm muito presente. A gente tem, mas não percebe. No ano passado fizemos um evento chamado “Novarina em cena”. Foram montados cinco espetáculos dele ao mesmo tempo, no Rio, e ele veio assistir aos espetáculos, deu palestra, foi muito rico. Ele ficou encantado com nossa língua, com o português do Brasil, e disse que o russo e o português do Brasil são as duas línguas mais bonitas, porque não são retóricas, não são cheias de rapapés... ele fala que parece também um pouco com o catalão, que é meio rochoso, tem finais abruptos, uma riqueza rítmica e sonora, as vogais complexas. Novarina tem um ouvido muito refinado, muito atento. O francês tem essa noção de ritmo muito presente, por isso fiquei muito impressionada com a montagem de Alain Ollivier de Toda nudez será castigada, ele sabia criar as nuances dentro da partitura, sem medo de se alongar. No terceiro ato, quando a Geni vai visitar Serginho no hospital, a encenação está cheia de pausas porque ele respeita a construção rítmica como uma composição musical. Sidnei Cruz: Quando está traduzindo, você pensa na cultura brasileira, no espectador bra-

sileiro, faz alguma inferência, concessão, pensando na comunicação? Ângela Leite Lopes: Não, isso fica fora do meu projeto. Acho que não é necessário. Nova-

rina é um prato cheio para as línguas, ele cria uma língua e essa língua que ele cria propicia que se traga à tona toda a riqueza do português, porque o português, como Novarina reparou, é uma língua linda. Percebi isso quando traduzi O Cid, de Corneille, ele escreve em versos alexandrinos, 12 sílabas, e sempre o mesmo ritmo. O francês é mais monocórdico. E quando traduzi o Corneille, coloquei o texto para decassílabos em português. Isso me saltou aos olhos como a nossa língua é dinâmica. O francês é uma língua com menos

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nuances rítmicas que o português, é mais enrijecido, embora as duas línguas tenham suas belezas próprias. O português tem muito sopro, então Novarina é um presente para um tradutor brasileiro. Sidnei Cruz: Então você considera que não há necessidade de contextualizar cultural-

mente, nem fazer atualizações, basta ter o conhecimento da língua para fazer bem uma tradução. Ângela Leite Lopes: Vou dar vários exemplos. Alain Ollivier levou atores brasileiros para tra-

balhar nas suas montagens de Nelson Rodrigues na França porque ele queria que o sotaque estivesse presente. Em Toda nudez será castigada, as referências aos lugares da cidade foram mantidas. Também Thomas Quillardet, um jovem diretor muito talentoso que montou O beijo no asfalto na França, manteve o Rio de Janeiro que aparece no texto, não há nenhuma adaptação, o que eu acho perfeito. Novarina tem umas listas de nomes e também gosta de criar, de brincar com os nomes. Na França tem muito nome composto, como temos no Brasil, por exemplo, Pati de Alferes, Rio de Janeiro na Guanabara, Niterói sobre a Baía... Ele faz umas brincadeiras assim com os nomes verdadeiros. Claude Buchvald, que montou aqui no Brasil “Vocês que habitam o tempo”, um texto com vários atores, me pediu para adaptar esses nomes compostos que aparecem no texto de Novarina para nomes brasileiros. Meu assistente e alguns novos atores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), seguindo o tipo de lugar que eu tinha apontado, se era uma serra, se era um lugar distante, se era uma cidade grande, enfim, criaram esses nomes que brincam com referências brasileiras. “Vocês que habitam o tempo” é uma peça com vários personagens, uma hora e vinte minutos de duração, um texto sem pé nem cabeça, pois, para Novarina, o que interessa não é contar uma história, então, obviamente, ocorrem saturações da atenção, e o fato de, de repente, no meio daquela fala muito abstrata surgir um Xerém, Nova Iguaçu, Os aflitos do Recife, isso dava um lado cômico, dava uma respiração e um alívio. Sidnei Cruz: E era isso que você queria? Ângela Leite Lopes: Eu e ele queríamos. Quando Novarina soube que a tradução seria

feita dessa maneira, achou bom. Mas com Nelson Rodrigues é diferente, a tragédia carioca está situada em um determinado contexto, fazer Boca de ouro sem dizer que é em Madureira fica ridículo, não faz muito sentido. Sidnei Cruz: O dramaturgo já fez a operação de criar uma mítica em torno de um lugar

que tem referência na realidade.

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Ângela Leite Lopes: Exatamente. Como Novarina trabalha com uma construção mais

abstrata, a criação de alguns ganchos de realidade funciona bem e isso foi feito numa montagem dirigida por uma encenadora francesa. A Ana Kfouri montou, dirigida pelo Antonio Guedes, O animal do tempo, depois, dirigida pelo Thierry Trémouroux, A inquietude, e nas duas montagens foram mantidas as referências aos nomes franceses. Algumas vezes, quando eram nomes nos quais parte da composição era um lugar, por exemplo, na serra, eu fazia uma mistura de nome francês com uma palavra em português. A tradução para o teatro está sempre em movimento, na verdade toda tradução está, precisa ser atualizada. Não é como traduzir um clássico que vai ficar para a vida inteira. Sempre se volta a traduzir determinado texto que já tinha sido traduzido há 50 anos, é uma coisa usual, e a tradução para teatro permite uma revisão. Sidnei Cruz: Releituras com novos pontos de vista. Ângela Leite Lopes: Às vezes o mesmo tradutor a refaz. Eu mexo na minha tradução passada. Sidnei Cruz: Existem também, por outro lado, os diretores e trupes de teatro que fazem

questão de montar a tradução de uma determinada pessoa. Vira até uma obsessão. Então a tradução, independentemente de ter sido feita há muitos anos, alcançou um lugar de leitura, ela já tem um interesse autônomo. Isso acontece, porque algumas traduções apontam para uma compreensão que outras traduções não apontam, então se dá essa predileção por parte do criador. É nesse sentido que penso que a tradução seria um pouco criar e recriar. Ângela Leite Lopes: É verdade. Pena que o Nelson Rodrigues já tinha morrido quando

eu traduzi seus textos para o francês, não tenho a menor noção de que tipo de comentários, certamente muito engraçados, inesperados, o Nelson faria dessas traduções. Mas o Novarina responde às minhas perguntas, tiro dúvidas diretamente com ele. Às vezes há passagens muito enigmáticas, e às vezes há vários sentidos possíveis para uma mesma palavra e eu fico em dúvida sobre por qual optar. Sidnei Cruz: Como é que você vê as ressonâncias dessas coisas todas das quais falamos

no teatro brasileiro contemporâneo, não só nos dramaturgos que você citou e que estão sendo traduzidos, mas na cena mesmo? A questão que está se ampliando cada vez mais é a da autonomia do teatro, considerando-se a cena autônoma como aquela que se desvencilha cada vez mais do império da dramaturgia como escrita, como literatura, ou como prosa falada pelo ator, como discurso. Há espaço para a convivência de oposições? O que te interessa ver no teatro, como espectadora? Houve certo momento em que o

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império das imagens, uma tendência que se iniciou na década de 1980, jogou fora a palavra, mas também não deu conta de tocar as inquietações da condição humana, do seu estranhamento. Ângela Leite Lopes: Acho que a reação ao texto ocorreu no mundo inteiro. No Brasil ela

veio depois da abertura, carregada pela questão da ideologia, de se perceber o que havia de bom e de proibido a dizer. Por isso Brecht é um autor tão importante, ele sabia o lado teatral, o lado do jogo que é preciso dominar para saber a hora de falar algo contundente. Acho que no Brasil houve um momento em que o texto precisava ser entendido, interpretado, queria dizer algo que transcendia a ele. E nisso às vezes o teatro saía perdendo, porque o que importava era o que estava transcendendo o texto. Como contrapartida a isso, Antunes Filho abriu o caminho apresentando um lado mais plástico e veio toda a beleza de Macunaíma, com um texto contundente. Sidnei Cruz: Sem expulsar o texto... Ângela Leite Lopes: Sem expulsar o texto, que é um primor, mas sem se deixar acachapar

por ele. Era preciso ter uma força plástica para conseguir contracenar com o texto. Acho que hoje é preciso de novo voltar a ele descobrindo seu lado plástico. A palavra tem algo plástico, no sentido que ela tem o ritmo, a sonoridade, as cores, enfim, a palavra não diz algo além dela, Novarina é a concretude da palavra, o prazer de ouvir. Como precisamos do plástico para voltar a ter o prazer de ver, voltar à palavra é ter o prazer de ouvir. Um poema, um texto em prosa, tem uma carpintaria, um ritmo. Sidnei Cruz: É um deslocamento do discurso literário ou da palavra, o deslocamento do

que se quer falar e de como se fala. Entram os elementos da palavra, o texto para ser proferido, entra melodia, entra sopro, associações possíveis que você faz na respiração entre as palavras, sem formar uma frase ou um discurso com princípio, meio e fim. A palavra entra como os objetos do Kantor, como coisas que você rearranja, retoma, repete... Ângela Leite Lopes: Exatamente. Você estava perguntando sobre a questão da conti-

nuidade, e depois de A inquietude eu traduzi Diante da palavra, um texto mais convencional, espécie de ensaio, mas que não se furta aos neologismos e às brincadeiras com palavras. Depois O animal do tempo, Vocês que habitam o tempo e O ateliê voador. Quando traduzi esses últimos, já era uma delícia, eu evoluí naquela espécie de tatear com as palavras. Então voltei aos textos anteriores e resolvi coisas da tradução que não estavam bem resolvidas.

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Sidnei Cruz: Qual seria o possível paralelo entre Novarina e Bernard-Marie Koltès? Em

Koltès cada palavra é um mundo. Há um encadeamento de blocos e de sentidos, sem preocupação em formar uma frase completa que leve a alguma sensação ou entendimento. Ângela Leite Lopes: Koltès, para mim, está mais em paralelo com Nelson Rodrigues. Tra-

duzi três textos do Koltès, uma edição bilíngue francês-português. Sidnei Cruz: Há também uma tradução antiga, do Fernando Peixoto.40 Ângela Leite Lopes: As traduções do Koltès são uma novela. É uma questão de direitos au-

torais. Ele era muito exigente, rigoroso com as traduções enquanto vivia, e o irmão dele, que detém os direitos autorais, é muito exigente e rigoroso também. Existe uma série de traduções que ele tirou de circulação. Esse livro do qual você fala saiu de circulação. Sidnei Cruz: Fale sobre a sua tradução. Ângela Leite Lopes: É uma edição do consulado francês de São Paulo e a Imprensa Oficial

com três textos: Combate de negro e de cães, O retorno ao deserto e o Tabataba. É muito bom traduzir textos seguidos de um autor, porque você pega o ritmo, mas traduzir o Koltès é muito difícil, mais ainda que o Novarina, porque é sutil, um universo plausível... Sidnei Cruz: Talvez mais lírico, mais subjetivo... Ângela Leite Lopes: Mas, por exemplo, em O retorno ao deserto há uma família, um

pai, uma irmã, um filho, uma filha, uma senhora, um empregado. Um universo que parece ser trivial, mas depois se complica muito. Por isso falo que seus textos estão mais próximos dos do Nelson Rodrigues, é preciso escolher as palavras e não usar aquelas que se usariam em uma situação corriqueira. Ele vai desconstruindo um pouquinho, desconcertando a linguagem. Sidnei Cruz: A palavra brota da situação, não do personagem. Ângela Leite Lopes: Ele traz uns lirismos que lembram Nelson Rodrigues, não é um lirismo

piegas, é muito concreto. E Koltès tem um lado muito crítico em relação à sociedade francesa, burguesa, uma atração muito grande pela África. Em O retorno ao deserto, aborda a questão do árabe, e Combate de negro e de cães traz a questão do negro e se passa na África. Não é um Fernando Peixoto (1937-2012), teórico, diretor, tradutor e ator gaúcho. Fundador do Teatro Oficina, na década de 1960, lança-se na direção teatral nos anos 1970. Trabalhou simultaneamente na produção artística e teórica, seus textos eram ligados a concepções brechtianas e ao teatro popular brasileiro.

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texto de tese, não há uma mensagem explícita, mas evoca toda uma discussão cultural sobre a cultura francesa como cultura dominante. E isso é trabalhado na linguagem. Sidnei Cruz: O que você quer colocar em jogo com seu conjunto de obras traduzidas? Que

eu saiba não é apenas o sabor de um gosto pessoal. Ângela Leite Lopes: Não. Acho que são autores que têm uma radicalidade, que de alguma

maneira revelam a condição de estranheza que a arte pode proporcionar. Em Os negros, Jean Genet trabalha a questão dos negros na maneira como fala sobre os atores, como devem ser pintados e tudo mais. Escolhi traduzir El Cid, do Cornellie, porque há uma teatralidade inerente ao fato de se escrever em verso rimado; meu Cid é em verso rimado, senão não seria o do Cornellie, seria uma adaptação livre do mito do Cid, da lenda do Cid, que tem várias adaptações. E os contemporâneos, Serge Valletti e Michel Azama, são autores com quem posso dialogar, que acompanham minha tradução. Sidnei Cruz: Você sente que há um retorno para o ambiente nacional, para a classe, com

esses autores em circulação, prontos para serem experimentados? Isso a entusiasma? Quais são os novos projetos? Ângela Leite Lopes: Isso me entusiasma muito. O mais novo projeto é com Novarina, um

encontro de tradutores dos textos dele na França. Oito tradutores, oito línguas distintas se encontrando. Russo, húngaro, grego, alemão, árabe, israelense, inglês dos Estados Unidos e português do Brasil. Vou para esse encontro e pretendo continuar traduzindo Novarina. Ele escreve muito. Tem muita coisa para traduzir, não dá para parar! Sidnei Cruz: Ele dirige seus textos? É bom diretor? Ângela Leite Lopes: Dirige. Nunca vi uma montagem feita por ele. Apenas em vídeo.

Talvez seja um diretor um pouco menos dinâmico que alguns outros diretores, mas ele está estreando um espetáculo novo e eu estou com vontade de voltar a falar um pouco os textos. Antonio Guedes e eu vamos brincar agora com Teatro dos ouvidos. Sidnei Cruz: Você como atriz? Ângela Leite Lopes: Sim. Mas é aquele negócio, eu tenho vontade de voltar a atuar e di-

rigir, mas me falta tempo e eu sou muito solicitada para traduzir e gosto desse ofício. Eu gosto muito de circular entre as duas línguas, é uma coisa boa para mim circular entre o francês e o português, estar nesse jogo. É um trabalho que junta tudo, dá prazer, eu ganho

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a vida com ele e tem também a dinâmica com a cena, com os atores, com os diretores, com as produções, é muito bom. Mas quando se entra nesse canal é muito difícil de parar. Porém comecei a sentir vontade, de um tempo para cá, de voltar a brincar um pouco com a atuação. Sidnei Cruz: Quer dizer, você vai falar o que traduz. Ângela Leite Lopes: Isso. O Antonio Guedes tem uma ideia de cena na qual minha partici-

pação será muito sucinta, não é um espetáculo, é uma instalação. Li um trecho de minha tradução de A inquietude em um encontro de poesia francesa e fiquei muito impressionada com a partitura rítmica que vejo nos atores, com vontade de experimentar também... Sidnei Cruz: Você já participou alguma vez de encontro de tradutores? Houve algum no

Brasil? Ângela Leite Lopes: Nós, do teatro da Aliança Francesa, em Botafogo, trouxemos alguns

tradutores e autores, por meio do Atelier Europeu da Tradução,41 que financia programas para traduções, por exemplo, de um autor grego em espanhol, um italiano em português, um francês em outra língua. Já fizeram esse encontro no Brasil, no Egito e em outros lugares e antes de eles virem ao Brasil, me convidaram para ir à sede, na época em Orleans, sul da França, e havia um grande número de tradutores, todos falando em francês. Nem todos os tradutores, aliás, falam bem a língua na qual traduzem. Alguns dominam a escrita, mas não a fala. Nesse encontro de Paris, no Teatro do Odeon, os organizadores estão nos enviando trechos que serão traduzidos lá, na hora; será uma jornada de trabalho. Cada tradutor irá traduzir um trecho mais teórico, sobre teatro, língua, palavra, ator; e um trecho de um personagem, uma grande brincadeira linguística. Sidnei Cruz: Tomara que não seja um encontro para descobrir uma forma globalizada de

traduzir Novarina... Ângela Leite Lopes: Não! Estou muito curiosa, tenho uma vantagem enorme por nossas

línguas serem latinas, acabam tendo uma proximidade rítmica. E a tradutora russa fala sobre sua tradução, parece que tem um trabalho bem avançado. O tradutor alemão é um ator que trabalha com ele, então são muitas visões diferentes sobre a tradução e sobre Novarina.

O Atelier Europeu de Tradução organiza edições da République des Traducteurs (República dos Tradutores – tradução livre), que reúne tradutores de todo o mundo para debater as traduções das obras de Valère Novarina.

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Sidnei Cruz: Há um lugar novo para o texto? Ângela Leite Lopes: Acabou a era do autor, veio a era do encenador e, depois, a do ator.

Acho que a questão do texto está de volta para colocar outra vez o ator e a cena em evidência. Sidnei Cruz: Por mais que se diga o contrário. Ângela Leite Lopes: Encenador, iluminador, cenógrafo, figurinista, músico, todo mundo

está presente, trabalhando junto. No colaborativo. Um texto que faça com que o ator use seu corpo é sempre o mais interessante, falar com o corpo, que foi sendo sublimado ao longo de milênios. O texto era uma ideia proferida e que por acaso passava por um corpo. Ao contrário, é preciso entender que o teatro sempre existiu porque sempre houve a necessidade do corpo. O texto é uma respiração, é algo que se diz respirando, gesticulando, suando. O lugar do texto não é o da mensagem, o texto não é algo que o encenador vai conceber e o ator vai encarnar. Ele tem uma textura que o ator vive em cena. Novarina fala que a nossa carne é a língua, a fala. A figura do encenador, que surge na passagem do século 19 para o século 20, resolve uma grande dicotomia entre esses elementos e deixa o terreno preparado... Agora é possível criar as mais diversas variações em torno de um tema, e o texto vai participar, nesse sentido, como uma carne. Sidnei Cruz: “E o verbo se fez carne”.42 Ângela Leite Lopes: Exatamente.

Referente à passagem descrita na Bíblia que faz alusão ao nascimento de Jesus: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” ( João 1:14). 42

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José Henrique Moreira Professor e diretor teatral, José Henrique Moreira formou-se na Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) em 1990, começando a lecionar Direção Teatral e Iluminação Cênica na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1993. É membro fundador da Associação Brasileira de Iluminação Cênica e do Centro Nacional da Organização Internacional de Cenógrafos, Técnicos e Arquitetos de Teatro. Em seu currículo como diretor teatral constam adaptações como A pane (2007), de Friedrich Dürrenmatt, e O processo (2008), de Franz Kaf ka, além de dirigir óperas na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ser responsável pela Mostra de Teatro da mesma instituição.

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Sidnei Cruz: O teatro ainda tem uma aura que tinha no passado, de ser um lugar para

pensar formas de viver, saídas para a humanidade, para a existência, ou o teatro passou a ser uma atividade de puro entretenimento? O teatro ainda faz relação entre diversão e pensamento, como Brecht e outros pensaram, ou explosão e rompimento com a realidade, como Artaud e outros pensaram? É possível se divertir e se inquietar? José Henrique: É possível. Se inquietar é possível. Você citou Brecht, que diz que o teatro

tem a finalidade de divertir, mas ele também afirma que a diversão do homem no século 20 é pensar. Tenho minhas dúvidas de que seja, e se era na época do Brecht, talvez hoje ele não quisesse mais pensar. É difícil chegar a uma conclusão ou estabelecer uma coisa genérica, mas com certeza a arte está atropelada por um fenômeno de mercado, pela predominância do pensamento mercadológico. A obra de arte virou um produto que quase se basta como produto comercial e o artista, em consequência, passou a ser um realizador de produtos com esse objetivo. A lei da oferta e da procura passou a determinar a criação artística. E isso é péssimo, isso é mais grave ainda nos lugares com menos base educacional, o que nos torna totalmente dependentes de um sistema educacional sério. Não existe arte, não existe cultura consistente em um lugar onde o sistema educacional seja falido como é o brasileiro. Sidnei Cruz: Será que o artista ainda faz um teatro para mudar o mundo ou a vida das

pessoas, para inquietar? E o público busca coisas diferentes daquelas que busca ao ir a um show ou ao cinema? Há uma mítica sobre isso? O teatro tem a obrigatoriedade de ser uma caverna para mexer com o mundo interior do espectador? José Henrique: Tem. Ele é obrigado a sê-lo. O teatro tem que provocar uma transfor-

mação no entendimento do que é o relacionamento humano. Cada espectador tem que sair da peça melhor do que entrou. Se isso não acontece, aquela obra não tem valor nenhum. Foi apenas um passatempo, a pessoa poderia ter feito um caça-palavras. A Disneylândia é muito divertida, o teatro tem que ser divertido e muito mais que isso. O gênero não importa, o que importa é que ele está sendo feito por artistas que têm consciência de que o teatro existe para transformar o público. Essa transformação não é uma coisa banal, do tipo: “Entrei bobão no teatro e saí querendo derrubar o governo.” A arte não trabalha com esse tipo de panfleto, ela é subliminar, a arte entra no ser humano por um sistema de filtro para o qual não há defesa, por isso é tão violenta. Não é uma invasão pela porta da frente como um panfleto. É uma construção progressiva de um entendimento maior da nossa relação humana. A arte serve para você sair melhor.

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Se você ouve uma música, vê um espetáculo ou visita um museu e não percebe melhor como o mundo é cheio de sutilezas, como há tantas coisas a transformar, a arte foi apenas um estímulo sensorial para gastar seu tempo ou para criar um prazer muito banal. Se apenas confirmar os seus valores, você está apenas gastando seu tempo. É claro que isso dá um prazer imenso. Sidnei Cruz: Às vezes ficamos constrangidos em afirmar que se o teatro não faz pensar, é

uma coisa altamente descartável. José Henrique: Claro. Esse constrangimento vem da predominância da burrice. Como a

burrice predomina, a inteligência passa a se constranger de ser inteligente. Inverteramse os valores. É melhor que você seja burro porque isso garante a você sucesso material, uma vez que a burrice predomina, você precisa ser apenas mais um a aderir a essa burrice, continuar fazendo aquilo que está celebrado como a “arte” do momento, e então você será feliz. É a invasão do pensamento publicitário no campo da arte: “Consuma este produto que você vai ser feliz.” Pode ser um automóvel, um apartamento, uma viagem, um creme dental ou uma peça de teatro. Se ao escolher um espetáculo a pessoa pensa apenas em uma coisa para rir, sem compromisso, que não a faça pensar em nada, então a experiência do teatro serviu apenas para que ele pudesse esquecer que é um ser humano durante aquele período de tempo. Sidnei Cruz: Quais são as questões fundamentais, hoje, no Brasil, para o jovem que quer

ser diretor? O que precisa aprender, quais são as disciplinas? Que tipo de formação temos no Brasil, quais são as importantes? Há alguns polos: Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia. Quais as tendências das escolas internacionais que influenciam esse ensino? Enfim, é possível dizer que temos um modo de ensinar a dirigir teatro no Brasil? José Henrique: Acho que sou da última geração de alunos de direção que aprenderam,

não vou chamar de mestres, todos os que estão lá agora são mestres, com os profissionais do teatro que foram ensinar na universidade. Nos últimos 20 anos houve a substituição, especialmente na Escola de Teatro da Unirio, onde me formei, dos profissionais de teatro que se encaminharam em direção ao ensino, por aqueles que já se formaram e seguiram na carreira acadêmica até serem professores do ofício teatral. Tive que “pular o balcão” muito cedo, quer dizer, me formei em 1990 e em 1993 já estava dando aula de direção na UFRJ, onde estou até hoje. Dar aulas nesse segmento é ter convicção de que direção é algo que pode ser ensinado e aprendido. Mas tenho a sensação de que essa ideia não

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é muito forte na cabeça das pessoas que atuam no teatro brasileiro. O Brasil é um país que dá muito valor a uma espécie de talento intuitivo e muito pouco valor ao aprendizado metódico. Com certeza isso faz uma falta imensa no nosso teatro. Sidnei Cruz: No currículo de teatro da universidade, na época em que nós estudamos,

havia o chamado período básico, de dois anos, no qual se estudava Filosofia Estética. Platão, Aristóteles, Hegel, Nietzsche, Kant. Você acha que está faltando isso no ensino de direção? Esse convívio com os filósofos é estimulado? Ou é um conhecimento que se deve buscar de maneira autodidata? Você acha importante pensar a cena a partir de instrumentos filosóficos? José Henrique: Não, pois acredito que a filosofia deve permanecer em uma certa ima-

terialidade. Em uma abstração, senão não é consistente. A filosofia é importante na formação do artista como ferramenta, como construção do indivíduo em geral, instrumental de pensamento. O que menos importa na formação de um profissional de arte é a história da filosofia, mas conhecer aqueles sistemas e aprender a lidar com o pensamento, entender as categorias, ou seja, o método, isso é essencial. Não há porque uma pessoa querer ser artista, querer ser diretor teatral, se não quer elaborar um discurso sobre o comportamento humano que parta de uma determinada ética. Isso está na filosofia, no pensamento. Sidnei Cruz: De que consiste o ensino de direção teatral? O que exatamente o diretor faz?

O diretor é um pedagogo, é um sistematizador de possibilidades de criação de sentidos no espetáculo? Esse diretor que pode ser formado ou habilitado em uma escola é o mesmo diretor do século 19 ou do início do século 20, ou ele é o encenador de que se fala hoje? José Henrique: Essa discussão sobre o que é o encenador e o que é o diretor é um pouco

falsa. Sempre houve no teatro, até antes de essa função do diretor existir ou ter sido assumida formalmente, no final do século 19, alguém que dava unidade à produção, ao evento artístico, por algum critério que talvez fosse a tradição, ou um pouco do gosto pessoal. Essa figura já se misturou com o dramaturgo. Sabemos que os antigos autores das tragédias eram também, de certa maneira, diretores dos seus espetáculos, como Shakespeare no período elisabetano, e depois Molière. Então, o diretor já existia antes de ser decretado como existente. Sidnei Cruz: Um condutor, um organizador.

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José Henrique: O organizador. No século 19 perdeu-se aquela noção de modelo para obra

de arte teatral, a linguagem única desapareceu e a explosão das linguagens acabou exigindo um organizador para cada espetáculo. A linguagem pertence a cada espetáculo e não ao período em que os espetáculos são criados e essa quebra do estilo hegemônico determinou o surgimento de uma pessoa que articularia a linguagem. Diferenciar o encenador do diretor, ou seja, da pessoa que dá a direção, separar a tarefa de estabelecer um significado para a obra da tarefa de colocá-la em cena, materializá-la, é uma falsa discussão, as duas coisas pertencem ao mundo profissional da direção. Sidnei Cruz: Esses temas vão e voltam ao sabor das épocas e dos interesses. José Henrique: Exato. Encenador, régisseur, diretor, e por aí vai, sempre inventando novos

nomes e sempre falando da mesma coisa. Sidnei Cruz: Uma coisa vira moda, depois sai de cena, ou uma tradição é abandonada em

nome de uma tendência de vanguarda que acaba sendo incorporada. Para além dessas terminologias e as oscilações de época, imagino que haja uma demarcação, um limite entre o que é ser diretor e o que é ser encenador, no âmbito mesmo da prática. O diretor estaria muito mais ligado à ideia de um artista que também organiza, pensa, e cria sentido, sempre a partir de uma dramaturgia. Toma a literatura dramática como um viés para sua criação. E o encenador seria aquele artista que lida com esses elementos todos, mas não parte do texto, parte do corpo. José Henrique: Gera a partir de uma fonte não dramatúrgica. São duas pontas de um espectro,

que tem todas as suas articulações intermediárias. Nós estamos falando de um diretor mais intérprete, de um diretor mais autoral, então não interessa se o nomeamos diretor, encenador, ou que nome tenha. Nós estamos falando de várias possibilidades, e são infinitas entre uma ponta e outra da criação de um espetáculo. Pode-se partir, como eu prefiro, de um texto dramatúrgico, que pode ter sido adaptado... Sidnei Cruz: Essa é a base da universidade para ensinar? José Henrique: Não acho que seja só essa, trabalhamos com criações a partir de fontes não

dramatúrgicas, às vezes de improvisações... Sidnei Cruz: Performances... José Henrique: Performance é uma história mais complicada, esse é um termo absolutamen-

te confuso, qualquer coisa é performance hoje em dia. Mas o admito, e nem depende de

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admitir-se ou não, há uma quantidade de produções, de obras, que vêm de fontes as mais variadas e estão na universidade. Isso é bom porque realimenta o teatro. Sidnei Cruz: É bom para o público também. José Henrique: É bom que o teatro abranja todo o seu espectro. É uma coisa complicada

porque no Brasil, e no Rio de Janeiro em especial, há muitas ondas de modas. Em determinado momento parece que só há dois ou três gêneros de espetáculos em cartaz. Sidnei Cruz: É uma necessidade de sobrevivência no mercado... José Henrique: É, mas a necessidade de sobrevivência e o mercado não se impõem só a

partir do gosto do público. A arte não está fora do mercado, mas não é só isso. O fator mercadológico se transportou do público para o patrocínio e a escolha de uma peça para montar acaba sendo determinada pelo que o patrocinador pode gostar ou não. O problema é que as comissões avaliadoras de patrocínio são formadas por, mais ou menos, as mesmas pessoas sempre. Sidnei Cruz: É possível fugir desse esquema? José Henrique: É possível, mas é muito difícil. É necessário. Se não fugirmos do esque-

ma deixamos lacunas no espaço de todas as estéticas possíveis dentro do teatro ou de qualquer arte. Sidnei Cruz: É preciso pensar politicamente, ter um pouco de utopia, apesar de se dizer

que vivemos o fim das utopias. Há todo um desencantamento do mundo, mas há que se fazer escolhas a partir de uma postura política. Quando você ensina direção, faz essa conexão? José Henrique: Não é possível ensinar sem acreditar que alguma coisa vai mudar. E como

não é necessário fazer uma faculdade de direção teatral para ser diretor, creio que quem fez essa escolha acredita em mudar ou melhorar; a universidade, ao implementar um curso desses, também acredita. E se, em última instância, o Estado que subvenciona essa universidade pública, como é o caso da minha, investiu nela e permitiu que esse curso fosse criado, então há uma crença, não apenas pessoal, mas institucional, para não dizer governamental, de que é possível transformar as coisas, que é possível fazer diferente. Senão seria apenas uma repetição de fórmulas. A arte não pode cair nisso. As fórmulas são importantes para a arte no sentido da formação, de aprender um método de realizar uma

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arte; para o pintor, misturar as tintas, dar seus traços; para o pianista, fazer sua escala; para o diretor teatral, montar sua cena, fazer o trabalho de análise de texto, toda aquela parte que chamamos de técnica da direção. Isso é fundamental. Sem a técnica não construímos um mercado de arte consistente. Sidnei Cruz: O que você chama de técnica garante que o artista em formação comece a

construir uma visão de mundo própria, uma postura sobre sua função social, uma ideia sobre o que fazer com a estrutura artística, esse artefato que ele colocará em jogo para se comunicar com o público, bastante heterogêneo? É nesse momento em que há uma mudança de mentalidade do artista em formação? Ou ele aprende a dominar todos os recursos para a montagem de uma peça, a arrumar bem o cenário, a iluminação, como estudar um texto apenas? Quais são os instrumentos para a mentalidade aflorar? José Henrique: Os instrumentos são duplos, não há uma priorização da técnica. É uma

aprendizagem da técnica com o pensamento mais livre, uma coisa não existirá sem a outra. É como teoria e prática, não adianta aprender só a teoria, nem só a prática. A repetição da prática leva a uma espécie de burrice instrumental, vamos ver sempre a mesma coisa. E a teoria por si só não dá conta de uma realização artística, uma vez que uma obra de arte é uma coisa material e o teatro é mais material ainda porque envolve todo tipo de estímulo aos sentidos. A formação tem que ser uma combinação de discussões mais conceituais, técnicas e de assuntos correlatos, assuntos que estão em torno do humano, já que o teatro é uma arte que tem a maravilhosa limitação de só falar sobre o humano. Todas as peças do mundo, de todos os gêneros são sobre relações entre seres humanos. Assim, o estudo da filosofia, da antropologia, da sociologia, da psicologia, do instrumental de língua portuguesa, é importantíssimo. Avançar na discussão das artes em geral e não só do nicho do teatro, senão ficamos muito restritos à gente de teatro que só fala de teatro, só faz teatro para outras pessoas de teatro, e vamos chegando àquela coisa umbilical, meio teatro carioca, em que 11 de cada 10 pessoas querem fazer teatro, nenhuma quer ir assistir. Sidnei Cruz: E não querem estudar. José Henrique: Não querem estudar, exato. Você faz a peça para os seus amigos de teatro

verem e quando eles fizerem você vai ver a deles. Ninguém mais que não seja de teatro... Sidnei Cruz: Isso exacerbou a vaidade de quem faz teatro...

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José Henrique: Exatamente. A vaidade e a panelinha, como se dissessem: “Nós nos bas-

tamos!”. Criou-se uma espécie de tribo que ignora a existência dos outros 7 milhões de habitantes da cidade. Sidnei Cruz: Então você acha que o artista de teatro está desconectado da relação com a

sociedade. Quer dizer, o sentido de assembleia da polis, do teatro grego, de se reunir para discutir as coisas que fazem parte do mundo comum das pessoas está um pouco distante. José Henrique: Não só o artista de teatro. Esse é um caminho das artes em geral a partir da

metade do século 20. Quando vamos a um museu de arte contemporânea, por exemplo, ao lado de pessoas que não são do meio das artes, que apenas foram ao museu, ouvimos piadas do tipo: “Meu filho de oito anos faria isso.” Isso é importante, não é apenas uma ignorância da pessoa, há uma desconexão da arte com o público, ela deveria se destinar a uma comunicação e não ser apenas um fenômeno introspectivo, fazer teatro só para falar de si mesmo da maneira como se gostaria de assistir. Isso não é teatro. Perde-se a comunicação e perde-se o público, a razão de ser artista. Ou então, entramos no ciclo da dramaturgia facebook, uma peça que faz só uma exibição do universozinho privado do autor, que acha aquilo fantástico. Em geral ele tem um grupo de amigos que também são da sua comunidade do facebook, que também acham aquilo fantástico e adoram fazer aquele teatro para eles mesmos. Se você não é amigo do facebook não entende a peça. Ele desenvolveu um blog do processo, que é mais importante do que o espetáculo em si. Se você não o acompanhou pelo blog, você não entende o espetáculo, que se estendeu antes da sua estreia, para um meio virtual que passou a ser parte do espetáculo. A peça começa no www. Sidnei Cruz: Além de direção, há outras disciplinas importantes no currículo de quem faz

artes cênicas. Essas outras linguagens, como a iluminação, por exemplo, estão sendo bastante desenvolvidas no Brasil. Existe ensino específico para isso? Como se formam novos profissionais? Houve uma explosão de bons iluminadores na década de 1980. José Henrique: Exato. Foi a segunda renovação da iluminação brasileira. A primeira foi

com os italianos, com o pessoal do Ziembinski.43 Jorginho,44 que era uma espécie de Zbigniew Marian Ziembinski (1908-1978), ator e diretor polonês radicado no Brasil, é considerado um dos fundadores do teatro moderno brasileiro. Em sua montagem da peça Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues, inova na concepção cênica, utilizando, por exemplo, um grande número de refletores para gerar efeitos de iluminação.

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44 Jorge de Carvalho Moreira (1946), conhecido como Jorginho de Carvalho, iluminador e diretor carioca, pioneiro na iluminação cênica moderna no Brasil, responsável por dar uma dimensão mais ampla ao trabalho do iluminador. Seu currículo conta com mais de mil peças.

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pai de todos os iluminadores brasileiros, primeiro iluminador brasileiro. E nos anos 1980 há uma renovação, ligada também à renovação da encenação. Entram em cena encenadores muito visuais. Gerald Thomas, Bia Lessa, que explodiram com uma nova estética, influenciada pela estética europeia, uma nova plástica. Sidnei Cruz: Isso foi importante? Deixou coisas boas? José Henrique: Foi importante para a visualidade da cena brasileira. Deixou e estabeleceu

um novo patamar de profissionalismo para a iluminação brasileira. A preocupação com a visualidade da cena. Sidnei Cruz: Surgiu o dramaturg.45 José Henrique: O dramaturg é uma questão associada, mas não é exatamente com a visualidade.

Nos anos 1980 aparece essa separação de termos como falamos antes, do diretor e do encenador. Sidnei Cruz: Era preciso que o encenador fosse uma vedete. Um diretor com um plus. José Henrique: Apareceu uma espécie de grife de espetáculo. As pessoas iam ver um espetá-

culo do Gerald Thomas ou do Fulano. Não interessava o quê. Todos têm uma linguagem muito semelhante porque o encenador afirma de maneira categórica a sua estética em todos os espetáculos, se impõe ao texto fonte, ao que seja a origem daquele trabalho, impõe sua mão visual, seu traço. E ele depende, então, de um suporte de visualidade coerente e muito próximo da sua concepção e passa a trabalhar sempre com o mesmo cenógrafo, com o mesmo grupo; ou faz a iluminação, surgem muitos diretores que se preocupam e passam a entender de iluminação. Sidnei Cruz: A ideia de processo colaborativo e de integração começa a surgir... José Henrique: Não acho que a questão de colaboração tenha surgido nesse momento,

acho que há a predominância da visualidade sobre a literatura. Sidnei Cruz: E essa predominância vem em detrimento de alguma coisa? José Henrique: Com certeza houve uma perda. Mas, as origens desses fenômenos são

mais complicadas, eu não saberia buscar, até porque estão ligadas à ditadura militar, à 45 Termo alemão que designa o profissional que faz a ponte entre a teoria e a prática do teatro em uma encenação. Trabalha juntamente com o diretor e coordena inúmeras tarefas, colaborando para uma visão ampla da montagem, refletindo a função artística e a relação desta com o público.

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circunstância política e social do Brasil. O texto teatral tinha uma violência, queria dizer: “Estamos livres agora.” Sidnei Cruz: E queria imediatamente corrigir um vazio estético. José Henrique: Aquele vazio foi preenchido por tendências de encenadores que trabalharam

fora do Brasil e que trouxeram sua estética e seus desejos artísticos. Então, o detrimento é da dramaturgia, com certeza. O excesso de zelo e de investimento na visualidade do espetáculo deixou de lado a criação dramatúrgica, a escritura teatral. E a fonte do teatro está na literatura. A mãe, a arte mãe do teatro não é a pintura, não é a dança, é a literatura. Os primeiros autores de teatro beberam na fonte literária de Homero e de outros escritores épicos da Grécia, para, de outra maneira, em outro formato, contarem a mesma história, fazendo as adaptações necessárias e dando aqui e ali as suas distorcidas para que a história coubesse no novo formato... Sidnei Cruz: Inventando um novo modo de recepção... José Henrique: Com certeza, testemunhal, que é muito mais sedutor. É comunitário, é

presencial, acontece agora. Em vez de ler que Agamenon fez isso ou aquilo, vemos Agamenon fazer isso ou aquilo. Essa transformação é genial! Sidnei Cruz: O império da visualização paradoxalmente inibe um ver natural, um ver em

comunhão, como você fala do teatro antigo, enevoa o olhar? José Henrique: Esse teatro é mais influenciado por estéticas visuais que não a literatura, ou

seja, o cinema, a fotografia, a pintura, mesmo a iluminação como fenômeno e não como sistema de apoio à escritura dramática. Além do salto às novas tecnologias, a digitalização que surge a partir dos anos 1980, há todo um arsenal de equipamentos que não tínhamos antes. Essa transformação foi importante para a cena brasileira correr atrás da qualidade visual. Ela não é prejudicial, apesar de colocar de lado a dramaturgia, que estamos recuperando agora. Com certeza aquele movimento de predominância da visualidade foi importante na renovação da cena brasileira. As coisas vão se articulando dessa maneira na história da arte. A arte não é um sistema de conhecimento equilibrado, ao contrário, é desequilibrado e feito por pessoas absolutamente desequilibradas. Vai-se fundo em uma determinada estética e se chega ao seu esgotamento, então se volta a ser barroco, a ser neoclássico, muda-se tudo e acha-se que está mudando radicalmente, enquanto, no fundo, se está chegando a uma média porque a permanência do barroco no neoclássico

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é imensa. Não há como romper com suas fontes. Essa renovação da visualidade me obriga, hoje, mesmo sendo um diretor predominantemente intérprete, muito fiel à fonte literária, a ter uma preocupação grande com a visualidade do espetáculo. As coisas vão se articulando aos borbotões na arte e não em uma sintonia permanente. O conhecimento se torna progressivo, é atravancado, e nós vamos mesmo aos solavancos. Não há outra maneira de caminhar. Sidnei Cruz: Uma convivência entre tempos simultâneos, a humanidade funciona assim. José Henrique: Claro. Voltando à questão do espectro... hoje temos todo tipo de espetáculo

sendo produzido e apresentado. Quando esse espectro se reduz, perde alguns dos seus pedaços, a produção artística fica mais burra, perdem-se os parâmetros, pois só sabemos nos identificar em confronto com o outro. Se não existe a alteridade, não existe mais nada, existe o absoluto, e a arte é tudo, menos absoluta. Sidnei Cruz: Houve um grupo muito significativo de diretores que zelavam pelo domínio

dessa plasticidade, mas, nas margens, acompanhamos os velhos diretores caminhando: por um lado, Antunes Filho e, por outro, Zé Celso Martinez Correa. Eles entraram e saíram das tendências do momento, sempre com um projeto coerente de evolução. José Henrique: Eles já tinham atingido um estágio, não dependiam de modas. Já estavam

acima do bem e do mal em termos de terem o que seguir. Eles são a moda em si. Você reconhece um espetáculo do Antunes Filho mesmo sem ter sido informado sobre isso. Espetáculo de alta qualidade. E muito variado. Formador. Sidnei Cruz: É um pedagogo sem ser acadêmico. José Henrique: Antunes Filho é mais que um diretor, ele é uma instituição e é amparado

por uma instituição. Ele trabalha em um sistema de organização que é de academia, em seu trabalho existe o desenvolvimento, a permanência e a divulgação do novo conhecimento. O fato de ele estar ou não em uma universidade é irrelevante, porque ele tem uma consistência de relação com o conhecimento teatral que lhe confere status de doutor em teatro, de professor titular de teatro mesmo que não esteja na universidade no sentido estrito. A mesma consistência que tem Zé Celso fazendo algo totalmente diferente, quase uma afirmação da crença na relação do teatro com o público, da relação do evento teatral. O que Zé Celso propõe é uma maneira muito particular de viver o elemento teatral. Sidnei Cruz: E tem, também, um sistema próprio.

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José Henrique: Um sistema de cinco décadas, 50 anos de desenvolvimento de um evento

específico, isso é um espetáculo do Zé Celso. É um espetáculo? É uma peça de teatro? É uma festa? Sidnei Cruz: Duas linguagens bem diferentes: o mínimo e o máximo. Antunes foi tra-

balhando até quase reduzir, não sei até que ponto isso é coerente, isso interessa, mas é instigante o modo como trabalha a destruição ou desautorização do diretor quando ele cria Prêt-à-porter...46 José Henrique: Os próprios atores do grupo começam a encenar. Ele faz o trânsito do ator

para o diretor, o que eu acho importantíssimo. Sidnei Cruz: E os dois, com todas as suas particularidades, sempre trabalharam a partir da

dramaturgia, da literatura. José Henrique: A partir da literatura sempre. Os últimos espetáculos de ambos têm relação

muito forte com a literatura. Sidnei Cruz: Um com o pensamento brasileiro e outro com vigor de juventude. Para as-

sumir o encargo de fazer Os sertões e estar disposto a encarar todos os erros que vêm com uma escolha desse porte, é preciso sair do conforto. José Henrique: É aí que se vê a permanência deles como artistas. Há grandes artistas que,

de repente, enveredam pelo ramo do artesanato. O artesanato é essa repetição de uma fórmula já conhecida e consagrada com uma finalidade quase comercial, é quando o artista consegue aprovação e mantém-se em um ponto, em uma fórmula. Salvador Dali inovou em um determinado momento e passou o resto da vida fazendo uma cópia de si mesmo. A visão de mercado não estraga, a distorção do mercado é que atrapalha. Sidnei Cruz: Você tem afinidade com Artur Azevedo. Autores como ele tinham uma

leitura da sua época, da sua sociedade, mais direta e transformadora que os dramaturgos de hoje? José Henrique: A grande maioria dos últimos espetáculos que montei foram comédias. A

comédia é uma pancada, um golpe no espectador. O riso é uma maneira de fazer o espec46 Prêt-à-porter é uma série de espetáculos criada pelo diretor Antunes Filho em 1998, com o intuito de recolocar o homem como figura central do teatro por meio do ator que toma a frente das produções. A série já possui várias edições e é composta por três cenas curtas, independentes e apresentadas em sequência.

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tador se sacudir na poltrona, e não apenas no sentido físico, mas ter questionados os seus valores. Não é uma maneira de fazer esquecer o cotidiano para entrar em uma espécie de embriaguez hilariante durante algum tempo e depois voltar à realidade com a tensão aliviada. Não, o riso deve causar tensão também. É nesse sentido que eu gosto de assistir e de fazer comédia. A comédia deve funcionar no nível crítico, inserir uma dúvida no espectador, fazer piada sobre sua condição. Sidnei Cruz: Isso não é fácil. José Henrique: Não, é muito difícil. Sidnei Cruz: Não há uma educação para tratar o riso como recurso de inteligência sofisticada,

de pensamento. Por exemplo, Diógenes, um filósofo cínico. A comédia, nesse caso, seria quase que se colocar no ridículo, no perigo de não ser aceito por aquele a quem a piada se destina. José Henrique: O riso ou o ridículo ganha apenas a conotação do grotesco, no sentido de

ser depreciado, ser uma coisa ridícula. Ridículo é aquilo de que se ri. Então o ridículo não necessariamente é ridículo. Sidnei Cruz: Ridículo é quando você não se sacrifica. José Henrique: Todo mundo gosta de ver o palhaço da turma fazer suas palhaçadas e ri,

mas quando ele faz uma piada mais agressiva, mais pontual sobre alguma coisa, as pessoas se armam e partem para bater nele. Sidnei Cruz: Talvez vejam um espelho. José Henrique: Ninguém quer um espelho, e o cômico é um espelho violentíssimo. As

pessoas vão ao teatro para rir dos outros e não de si mesmas. Sidnei Cruz: Você acha que há lugar para o riso subversivo, hoje? José Henrique: Claro que há. Sidnei Cruz: E qual é a nossa tradição no cômico com esse papel corrosivo? Algo como,

por exemplo, a peça Como se fazia um deputado, do França Júnior. Você acha que é possível montar uma peça como essa hoje? José Henrique: Acho, mas a questão da comédia no Brasil é muito complicada. Se formos

estudar um pouco a comediografia brasileira mais antiga, entramos em choque com o

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desenvolvimento de uma cultura cômica nacional que optou fortemente pelo escracho. O ator brasileiro investe na comicidade mais pesada, mais óbvia. Sidnei Cruz: Há uma geração de bons novos intérpretes de comédia? José Henrique: Tem, no teatro tem, mas também estão investindo no escracho. Não quero

impor a comicidade europeia ao Brasil, mas precisamos de possibilidade de pensamento transgressor, de crítica. Sidnei Cruz: O que inclui autossacrifício. É preciso se colocar na experiência como

artista, inclusive se jogando naquele limite em que a pessoa se torna ridícula. Você não faz a piada do conforto, que faz rir muito, mas uma piada que somente a duras penas será objeto de riso. José Henrique: Você sabe que isso é um tiro no pé. Não quer dizer que a piada de que as

pessoas riem muito é pior do que as que riem pouco, mas a natureza do cômico, no teatro, na arte em geral, na caricatura, na charge, deve ser de natureza subversiva. Não pode ser um afago. Isso é importante. Sidnei Cruz: Nosso mestre é Artur Azevedo. José Henrique: Artur Azevedo. Martins Pena. Artur Azevedo é muito jornalístico,

Martins Pena é mais consistente. Artur Azevedo escreve para o teatro de revista, uma revista instantânea, embora haja peças mais densas. Martins Pena estabelece um olhar influenciado pela forma francesa, mas sobre os costumes nacionais. Vários desses tipos ainda estão hoje na TV, em programas que parecem existir há 100 anos, vindos do rádio, como A turma da Maré Mansa.47 Estamos vendo a mesma coisa há muito tempo. Sidnei Cruz: “O cadáver gangrenado”48 , como diria Oswald de Andrade. José Henrique: Exato. Está presente o tempo todo. Sidnei Cruz: Você já montou Martins Pena? José Henrique: Nunca montei Martins Pena. A visita à dramaturgia clássica brasileira deA turma da Maré Mansa foi um programa humorístico de rádio exibido em diversas emissoras cariocas nas décadas de 1970 e 1980. O programa era apresentado pelo radialista Antônio Luiz e trazia esquetes de humor leves e cheios de irreverência.

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“O cadáver gangrenado” é uma expressão tirada da peça A morta (1937), de Oswald de Andrade, e faz alusão à situação política, social e cultural em que vivia, na época, o Brasil.

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veria ser uma obrigação do Estado. Precisaríamos de um teatro brasileiro que funcionasse como uma instituição que obrigatoriamente estivesse sempre remontando essas coisas. Sidnei Cruz: Para a memória se manter. José Henrique: O Estado brasileiro não tem nenhuma instituição teatral, não há uma

companhia do Estado. Isso faz falta. Ou seja, não temos aquele espaço que tem a Royal Shakespeare Company, a Comédie Française, o Teatro Nacional da Espanha e outras companhias semelhantes, que existem para reafirmar a herança cultural. O que vejo é a falta de hábito de teatro, as pessoas só fazem o mesmo, viajam, veem um espetáculo, gostam, compram os direitos, trazem e fazem igual. Copy and paste. É descarado. É a afirmação da falta de vontade de transgredir, da acomodação mercadológica. Se as pessoas veem esse tipo de teatro porque só tem isso, é difícil dar o pulo. Quando assistem a um espetáculo com algum avanço ideológico na questão política, que afirme uma proposta política, acham tudo muito estranho. Também estranham a linguagem, porque estão acostumadas a ver uma imagem que se repete, aquilo que é fácil de entender, que já está prontinho, já vem batido. O salto só é possível se houver um estrato médio de teatro, aquele que faz a ponte entre a vanguarda, ou o que se chame de vanguarda, e o banal prêt-à-porter. Não do Antunes, mas o prêt-à-porter do tudo prontinho. O salto é com um teatro de estética sofisticada, mas com uma linguagem, baseado em uma dramaturgia que faça a ponte para o espectador mediano. Uma peça que para gostar não precisa ser especialista em teatro e que também não seja para pessoas fúteis. Esse estrato médio está vazio. No Rio de Janeiro quase inexiste, em São Paulo ainda existe. Sidnei Cruz: Ele está vazio de quem faça ou está vazio de políticas públicas para estimular

a se fazer? José Henrique: As políticas públicas para a área do teatro hoje estão muito reduzidas a

editais. São basicamente quase só isso. Mas a política pública como afirmação de uma determinada estética é muito complicada. Voltaríamos à questão da companhia de Estado. Sidnei Cruz: Falo de estímulo à multiplicidade, à diversidade, diferente do padrão, que não

precisa de investimentos públicos. O que é comercial está estabelecido, é lei de mercado. José Henrique: Com certeza. Mas também precisamos de uma formação básica. Não basta

a política pública. A questão é cultural e educacional do profissional. Não dá para querer fazer Beckett sem ter lido Ibsen. É preciso entender a ruptura de Beckett a partir de uma

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consistência, de uma tradição. E de uma ruptura que Ibsen também fez. Toda boa tradição foi ruptura alguma vez. Agora, ser vanguarda apenas pelo rótulo é uma estupidez. Vanguarda é um termo que vem do vocabulário militar. Avant-garde, o que vai adiante. Se você se diz vanguarda e ninguém for atrás de você, você não é vanguarda, é só um bestalhão. O teatro carioca hoje depende da van. Essa van é nossa van-guarda. Você não pode se afirmar vanguarda! Guarda um lugar para a van que aí você tem sucesso. Seria melhor fazer honestamente aquilo no que você acredita e então buscar uma colocação. Sidnei Cruz: Vanguarda não é um projeto. É uma circunstância. José Henrique: Como o teatro experimental também não pode ser um projeto. A pessoa

faz dois espetáculos e já considera que tem um estilo. O estilo vem apontado pelo olhar de fora que aprecia uma amostragem da sua obra e detecta traços comuns em todas elas. Sidnei Cruz: O estilo se dá no tempo. José Henrique: E na classificação, porque é uma necessidade mais do estudo que da arte.

O estudo da arte precisa catalogar, a arte não precisa. Alguém de fora é que vai catalogar. O teatro carioca vai com as modas, já teve a moda da perna de pau, a do clown, a da commedia dell’arte, a do expressionismo... Um ator ou diretor vai fazer um workshop de uma semana na Itália, volta, faz um workshop de uma semana no Rio, e 10 outros atores ou diretores que fizeram esse workshop já se consideram doutores naquelas técnicas. Sidnei Cruz: Mestres. José Henrique: É a cópia da cópia da cópia. É preciso lembrar Platão: a arte é a cópia da

cópia. Essa, então, é a cópia da cópia da cópia, você vai duplicando até ficar bem cinzinha. E vamos tentar redescobrir a pólvora porque não estamos trabalhando no fundamento. O teatro brasileiro não sabe para que serve. E é tristíssimo constatar isso, inclusive na formação. A ética dos alunos que estão não só nas escolas regulares, mas que estão começando em teatro não necessariamente como alunos de uma escola, grudados em um grupo, é a ética do Big Brother, querem mostrar-se, se aproveitar da instituição enquanto são alunos para se lançarem em um pseudomercado. Ou procuram seguir o caminho que tem público e patrocínio. E a ética começa a ser essa, uma ética comercial, não própria da arte. A arte tem seu mercado, ele é fundamental para seu funcionamento, para sua existência. Mas o princípio de busca da arte não é esse tipo de sucesso. É um sucesso da comunicação, é um sucesso da sedução pelas ideias e para as ideias.

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Sidnei Cruz: A gente está no mundo das mercadorias. É preciso colocar o mundo ao revés. José Henrique: É preciso virar. Precisa da intervenção do poder público. Sidnei Cruz: Acho que é responsabilidade também da sociedade civil. Cada um pode esta-

belecer uma ética para se relacionar com o que faz. Quando você convoca algumas pessoas para assistir a sua experiência estética, é uma atitude pública de maior responsabilidade... José Henrique: Ela é transgressora por natureza. Sidnei Cruz: É uma responsabilidade incrível tirar as pessoas de suas casas, desviá-las de

suas trajetórias. Elas poderiam ir ao cinema, ao parque de diversões, a um bar, e, de repente, você as conclama para que vejam seu espetáculo. José Henrique: Competição. Estamos competindo com a novela, com o parque de diver-

sões, com o videogame. Precisamos assumir essa competição. Cada obra de arte séria, de boa ou má qualidade, celebrada ou não, de sucesso ou não, mas feita com seriedade, é um cabo de guerra. Ter sucesso, obter uma obra boa ou ruim esteticamente, depende de vários outros fatores: de treinamento, da formação, das condições técnicas, e às vezes você não consegue realizar o que seria ideal, mas se você faz com seriedade, buscando transformar o ser humano para melhor, você está puxando o cabo de guerra de volta, está tentando trazer de volta a sociedade para um diálogo sobre si mesma, para uma reflexão. Se ela só se reafirmar na sua estupidez, estamos perdidos. Sidnei Cruz: Você lida com a parte ordinária dessa transformação: criar associações espe-

cíficas de cenógrafos, iluminadores, arquitetos. Ensina na universidade, e ensinar é buscar uma pedagogia. Você também foi um dos primeiros a criar um site específico para instrumentalizar as pessoas que fazem teatro, com programas de bilheterias e diversos outros, começou a informatizar as bilheterias, enfim, uma preocupação com a infraestrutura do mundo do fazer teatral, que não é um mundo só da abstração, no sentido do pensamento. Ele é real. José Henrique: Ele é real e material e nós estamos nesse meio de caminho. O artista é um

atravessador, um intermediário entre uma ideia e uma forma. Meu interesse vem do fato de que existe uma obrigatoriedade na materialização da ideia quando se é um artista. Sidnei Cruz: O teatro acontece quando há o encontro dessa caverna, dessa caixa, desse

tablado com o mundo, com a vida ordinária das pessoas que se deslocam.

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José Henrique: E ele é perecível. Sidnei Cruz: Para isso é preciso mexer com a materialidade, edifícios, equipamentos,

transportes, territórios. José Henrique: Tudo. Mesmo que você não esteja atuando no teatro propriamente dito, no

edifício teatral. Você pode se apresentar ao ar livre, no banheiro, em um elevador, em um auditório simples, em uma igreja, não interessa onde, você deve estabelecer uma estrutura de realização amparada por equipamentos, por um material que dê condição de inteligibilidade, as pessoas precisam enxergar a cena, você precisa selecionar o que a pessoa vê em cada momento, precisa dar condição para que as pessoas ouçam o que deve ser ouvido. O teatro tem que ser claro, não pode ser obscuro. Quando falamos em desafiar o espectador, não estamos falando em enigmas, charadas, não. Peças-charada não são função do teatro. Ele é claro, ele perturba a pessoa pela clareza com que mostra ao espectador que seus valores não são tão sólidos e não porque deixa o espectador em dúvida sobre o que quisemos dizer com o espetáculo. É preciso estar se renovando o tempo todo, perguntando o que existe de novo na tecnologia propriamente dita: existe uma nova mesa de luz, um novo equipamento de som, um novo sistema de microfone? Precisamos de reforço sonoro e da preservação da voz. E também saber se estão surgindo novas técnicas. Sidnei Cruz: A arte precisa sempre se profissionalizar. Para transgredir há que se ter certo

profissionalismo. José Henrique: Saber manejar seus instrumentos o tempo todo. E manter esses instrumen-

tos afinados. A arte é uma forma de conhecimento, de organização da informação e ela deve ser clara, buscar a criação do novo, a difusão do conhecimento, a transformação. A clareza é fundamental e está amparada também pelos recursos que você tem.

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I o l e de Freita s Escultora, gravadora e artista multimídia mineira, Iole de Freitas iniciou sua formação na Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro. Na década de 1970, trabalhou como designer em Milão, tendo suas primeiras obras expostas em 1973. Participou de várias bienais pelo mundo e expôs seus trabalhos em diversos museus brasileiros e internacionais, desenvolvendo, em 2007, um projeto especial para o Documenta 12, em Kassel, na Alemanha. Foi diretora do Instituto Nacional de Artes Plásticas da Funarte e atualmente leciona escultura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro.

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Paulo Sérgio Duarte: Gostaria que você falasse um pouco sobre as transformações da

percepção do espaço que ocorreram não somente em função da crescente urbanização do planeta, um planeta hoje predominantemente urbano, o que leva qualquer cidadão de qualquer local a ter uma experiência de espaço inteiramente diferente daquela que tiveram as gerações passadas, sobretudo a conhecida no século 19. Iole de Freitas: Você trouxe uma questão superimportante. Há certa saturação das edifi-

cações na malha urbana. Para nós que moramos no Rio de Janeiro desde os anos 1950, é surpreendente perceber a evidência das construções que vão ocupando toda a área da Barra e do Recreio, e como essas massas, esses volumes, que a arquitetura vai nos dando a ver — ela obviamente tem como função principal o abrigo das pessoas, nas inúmeras funções, o lar, as residências, as escolas, os hospitais —, criam uma volumetria vigorosa no espaço. Vamos percebendo, na Barra, como toda essa ocupação volumétrica dos prédios vai estabelecendo uma relação com a paisagem e com o vazio, muitas vezes grandioso, em torno das aglomerações de prédios. Depois olhamos rapidamente para o centro da cidade, de onde ainda temos a memória dos primeiros traçados urbanísticos, olhamos toda a orla, principalmente Botafogo e Flamengo, e vemos esse serpentear tão característico do Rio, e mais uma vez a relação de paisagem na qual se vislumbra uma ideia de horizonte, a massa toda arquitetônica que fica comprimida em muitas regiões e outra vez a natureza. Tenho a impressão de que essa experiência que a gente tem no Brasil, muito própria dos centros urbanos, com a diversidade que existe entre a estrutura toda urbana do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Belo Horizonte (que foi se transformando com uma rapidez inacreditável, é outra Belo Horizonte em relação à dos anos 1950), vai compondo a visualidade do lugar em que moramos e também influencia a percepção de qualquer criatura, mas, principalmente, influencia a percepção daqueles que buscam a construção de uma linguagem plástica e que procuram fazer arte. Eu sempre penso que o despertar do processo criativo do artista brasileiro se dá quando ele se dedica à relação com o espaço real e também com o espaço arquitetônico. Então a constituição da malha urbana e a presença da arquitetura brasileira tem uma influência, cria um atrito, uma provocação, oferece dados de reflexão que o artista rejeita ou dá adesão ou propõe novas possibilidades. Podemos ver isso tanto nas obras dos grandes arquitetos que todos conhecemos, Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha e tantos outros, quanto dentro de uma ocupação plural de certa arquitetura, não sei se posso dizer assim, mas quase anônima. Aliás, às vezes vejo projetos que me interessam muito, pergunto quem é o arquiteto e ninguém sabe dizer; não há mais aquele hábito de colocar plaquinhas nos prédios, acho isso um desastre. No Rio de Janeiro, a presença

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da natureza fica atritando com a presença das edificações. Assim surge a questão da percepção do horizonte e o que seria o horizonte com o qual lidamos tanto na arte? Tenho um encantamento pelas pinturas de José Pancetti. Fico olhando aqueles horizontes que ele cria, o barquinho da praia, ou então a lagoa de Abaeté, ele está falando de horizonte o tempo todo, e eu que morei na infância na praia de Ipanema, naqueles prédios antiguinhos, fico me perguntando como é que nunca, conscientemente, absorvi essa presença do horizonte que me era oferecido diariamente quando entrava e saía de casa. O que precisa a mais para que um olhar possa se deter sobre determinados dados da visualidade que a trama urbana e paisagística de uma cidade oferece? Fui percebendo o horizonte pelos desenhos de Tarsila do Amaral, pela pintura de Pancetti, mas o conceito de horizonte, passado pela minha experiência, eu adquiri somente nas planícies do Canadá, geladas, onde havia a dificuldade de diferenciar entre o que era neve e gelo — que não acaba nunca, aquele negócio é eterno, aquelas planícies intermináveis, você vai de carro ou de trem e não acaba, é uma monotonia — e o que era céu. Quase não havia diferença entre o céu e a terra, o céu e o mar, o que eu via todo dia, com essa exuberância da natureza brasileira. Lá os tons foram baixando, eram gradações sutis de cinza e uns microgravetos, era o mês de março, mas tudo estava gelado em março e uns gravetos meio rebeldes começavam a aparecer, dando uma leve noção de que ali embaixo deveria ser terra. O horizonte passou a ser percebido por mim exatamente no instante em que a natureza o apresentava da maneira mais diluída possível. Fico pensando o que a gente apreende da arquitetura no Brasil, na medida em que o horizonte foi percebido em um lugar onde se apresentava com uma total diluição, e como percebemos a volumetria ostensiva desordenada que nossa cidade nos oferece, se nos acostumamos a entender essas massas como algo constitutivo da nossa identidade cultural e urbana. Paulo Sérgio Duarte: Nas grandes metrópoles de países que são chamados hoje de emer-

gentes, de países que no nosso tempo dizíamos subdesenvolvidos, existem pequenas ilhas, guetos de urbes e de polis, o tecido urbano é uma grande metástase e isso é responsável pela formação do olhar e do artista contemporâneo. No caso brasileiro, a arte teve dificuldade de enfrentar o espaço urbano e se voltou, a meu ver, para o ambiente doméstico, não enfrentou o “gigante pela própria natureza”. Ela não se confrontou com ele e com essa espacialidade enorme e com essa coisa generosa que a natureza, particularmente num país tropical, oferece aos olhos. Você pertence a uma geração de artistas que libertou nosso olhar para uma nova espacialidade, ou seja, que perdeu o medo de enfrentar os vazios imensos que se dão seja no interior de uma sala ou no interior de um prédio ou no meio

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da rua. Mesmo na arte americana é relativamente recente essa libertação. Os expressionistas abstratos da década de 1950 realmente despertam para a grandeza e generosidade não somente da epopeia da conquista do Oeste, tão narrada nos filmes de faroeste com aqueles cenários grandiosos, não somente para os cânions naturais da geografia americana, mas também para os cânions artificiais das grandes avenidas de Manhattan, os cânions de concreto. Esse espaço precisa de uma arte em outra escala e com tensões diferentes, precisa, como você diz, criar atritos diferentes entre a arte e o espaço. Um sujeito criado em uma cidade que preserva a arquitetura medieval, no interior da Itália, um sujeito cujo olhar se forma nas vielas e ruelas de Paris, dificilmente pode ter a mesma experiência de espaço de um sujeito que é criado no Queens, no Bronx ou em Manhattan, em Nova York. São experiências espaciais urbanas muito diferentes. A arte tem que tratar das questões do espaço com linguagens diferentes. Iole de Freitas: Como é interessante pensar por que tantos excelentes artistas de fato

preferiram dirigir o olhar e a própria percepção a uma relação outra — e vou usar essa palavra complicada e famigerada: escala — mas é a escala interna que faz com que você se relacione com uma escala externa e produza uma linguagem em uma escala tal. Giorgio Morandi faz universos, pinturas mínimas com suas garrafas. A questão é: o que nos fez, em um determinado momento, principalmente no Brasil, sentir estimulados e bancar essa outra relação com o espaço real? Não o espaço real trabalhado pelas guitarras de Picasso e nem por Vladimir Tatlin, contra relevos. Duas coisas que você falou me ajudaram a pensar. Uma foi aquela malha urbana novaiorquina, vigorosa, em contraponto com as extensões de território. Lembrei de Robert Smithson, com a Land Art.49 Sempre tive um encantamento com o trabalho dele, ele morreu cedo, mas para mim já bastou o que fez, aquela coisa inacreditável de atuar sobre a arquitetura, sobre uma certa geografia territorial, como a vigorosa Spiral Jetty que é incrível, que depois se desfaz pelas próprias forças da natureza. Mas ele como artista interfere e age. Importa como um pensamento plástico teima em mostrar que é viável, que é possível criar uma materialidade com a própria natureza, dentro de uma paisagem de um território vasto. Lembro da primeira vez que vi, em Nova York, em 1956, uma tela de Morris Louis. Quase caí para trás, aquilo mudou toda a minha visão de espaço. Era enorme, a galeria não era tão grande, tinha outras telas enormes 49 Expressão inglesa usada para designar um movimento de arte contemporânea surgido no final da década de 1960 nos Estados Unidos. Na Land Art o terreno natural, espaços externos, é trabalhado de maneira integrada para compor a obra de arte, ultrapassando os limites tradicionais das galerias e recusando os modelos de arte impostos pela indústria cultural.

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que me engoliam quando me deparava com elas, a tela toda exibia aquele sistema totalmente manual e artesanal do artista, ele fazia com que as tintas corressem pela lona e pingassem, ou seja, algo totalmente gestual, corpóreo, aliás muito mais próximo de determinados movimentos na arte brasileira e, no entanto, com uma espacialidade vigorosa supercorajosa. Esses elementos vão pipocando em nossa cabeça, arte é isso, cruzamento de informações, o que quero mais o que vejo feito. A segunda fala sua que me ajudou a pensar minha questão tem a ver com o exemplo da Itália. Lembro de Volterra, uma contraposição ao exemplo nova-iorquino. Fui fazer uma exposição em Volterra nos anos 1980, com os meus trabalhos de foto dos anos 1970, em um centro cultural, um antigo palazzo no cume do morro daquela cidade maravilhosa, cheia de vielas, com aquelas casinhas... Os artistas da região precisam se deslocar de outro centro para ir até lá e o deslocamento é em paragens lindíssimas de paisagens italianas, no entanto, o que eles absorvem é uma interioridade que a arquitetura palaciana lhes oferece e a trama quase medieval de construção... e eles estão em cima daquilo que mais me fascinou, que eu trabalhei só um pouquinho, que é o alabastro. Tudo aquilo plantado em rochas de alabastro que tem uma translucidez, uma luminosidade e uma gentileza para o toque... a gente as esculpe quase como sobre pedra-sabão e a erosão vai atuando. Paulo Sérgio Duarte: Pode-se pensar também em Assis, na Itália, e em cidades antigas,

como a Roma barroca. Você pode percorrer Roma noturna em uma experiência de espaço de forma formidável, pode se guiar pelos ruídos das fontes, uma outra música, uma experiência acústica se inscreve e você descobre espaços maravilhosos indo de barulho de água em barulho de água, de fonte em fonte até o amanhecer. Iole de Freitas: É outra espacialidade. É lindo. Paulo Sérgio Duarte: Essas experiências são muito diferentes das experiências de espaços

do novo mundo, mesmo que tenhamos nossas cidades barrocas preservadas, como as cidades mineiras, como Olinda, em Pernambuco, mas o que predomina é uma experiência de espaço em relação com o corpo, muito diferenciada de uma relação que se tinha em uma ruela de Tiradentes, de Ouro Preto ou de uma cidade italiana. Isso evidentemente determina experiências novas no trabalho de arte. Iole de Freitas: Você tem razão. Tenho a impressão de que muda completamente. A

geologia vai promovendo esse processo de transformação para abrir caminho. De certa

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maneira, Smithson também trabalhava com essa questão da geologia, exemplo é aquele trabalho lindo dos sete espelhos em sete lugares diferentes. É interessante perceber como esses alinhavos são produtivos em arte em qualquer área e como a questão da escala e do impulso da verticalidade vai se impondo em contraponto a um pensamento modernista da horizontalidade na arquitetura, com aquela horizontalidade magnífica. O arquiteto Mies Van der Rohe sabia usar essa horizontalidade, o próprio Niemeyer tem projetos que marcam também essa horizontalidade, o Palácio da Alvorada, por exemplo. Na hora em que se eleva uma lâmina, aquilo ganha uma força expressiva porque a horizontalidade do prédio está em contraponto com o lugar. Paulo Sérgio Duarte: Aquilo é uma experiência estética de espaço maravilhosa exatamente

por isto: a questão da horizontalidade com as duas cúpulas, uma invertida, a da Câmara dos Deputados, e a do Senado na posição tradicional da cúpula. Iole de Freitas: É linda, porque corta o ar. Dá outra ideia de corporeidade. Penso em

uma das coisas que mais me incomodam em meus trabalhos, como questão que interessa, mas que incomoda em outros atuais, que é a questão da escala. Como a escala daquela arquitetura de Niemeyer, com a grandiosidade daquele espaço, não vira um broche? Ela tem um vigor inacreditável, não se dilui, não se perde, lida com uma escala gigantesca de território, se afirma e cria uma poética que é a do vigor e da delicadeza. Da ousadia. É de um lirismo e, ao mesmo tempo, tem uma quase austeridade, um raciocínio lógico incrível. É uma influência nos nossos trabalhos. Foi importantíssimo em meus anos de Milão, quando com a Arte Povera,50 a Body Art etc., criou-se um rebuliço para se pensar a relação do corpo com o espaço. Quando olhamos um pouco atrás, sempre se recorre à vanguarda russa e mesmo a alguns trabalhos lindíssimos do neoconcretismo brasileiro, fundamentais para o nosso raciocínio hoje. Aprendemos muito ao olhar o que fizeram Stepanova, Popova, Tatlin... A primeira vez que vi Vladimir Tatlin ao vivo e a cores, foi no Guggenheim, uma experiência inesquecível, fundamental. Deixou-se uma sala inteira só para ele e para A camponesa, do Malevich. Aquela escala “acomodada” a um canto de um grande museu, com uma belíssima arquitetura do Frank Llody Wright, oferecia para a gente um universo de possibilidades, que me remete às telas do Giorgio Morandi, porque ali também tem um universo, aquilo não é daquele tamanho. Tatlin para mim nunca tinha sido da50 Termo italiano, designado pelo crítico de arte italiano Germano Celant (1940) em 1967. Os artistas da Arte Povera tinham como objetivo desafiar a indústria cultural e a sociedade de consumo, ao utilizar materiais simples, artesanais e não convencionais para empobrecer a obra de arte.

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quele tamanho, quando vi seu trabalho ao vivo a potência ficou mais forte. O que fica latente nas obras da vanguarda russa, que às vezes nem são tão grandes, mas falam com um espaço gigante, é uma ousadia gigantesca que tem propostas em aberto, eles não fecham o raciocínio, é isso que me interessa, não fecham. Eles trabalharam lindamente nas praças públicas, nas grandes manifestações pós-revolução. E eles trabalharam nos espaços cênicos totalmente fora da tradição. Paulo Sérgio Duarte: Existia um imaginário histórico em ação. Eles acreditaram que es-

tavam mudando o mundo. Iole de Freitas: Exato. E mudaram o mundo. É fato, estavam agindo, não só teorizando. Paulo Sérgio Duarte: Antes do fracasso do totalitarismo stalinista eles vivenciaram a expe-

riência de construir um mundo novo. Iole de Freitas: E fizeram. Aquilo é admirável, tem a força de uma realidade histórica

atuante, atualiza o que aconteceu, só determinadas apresentações de teatro oferecem essa palpitação do instante. Em arte, a performance talvez dê conta disso. Eles criaram o instante histórico e artístico, que não se fechava, se abria. Parte da utopia deles funcionou. Sem a presença desses raciocínios plásticos seria impossível a gente entender o que de fato aconteceu historicamente. Lembrei também do Alexandr Rodchenko. Houve uma exposição brilhante dele aqui no Rio de Janeiro, no Instituto Moreira Salles, que trouxe fotos e documentos do artista que não se achavam em livros. Dentro dos trabalhos fotográficos e gráficos dele descobre-se outra ideia de espacialidade, que remete à construção de outra urbe, de outra cidade, e até de outra sociedade. Nesse raciocínio, há também a escala da relação do pensamento plástico com a relação da corporeidade humana, da gestualidade humana, com Os bichos e Os trepantes, da Lygia Clark, aquela coisa ciclópica, que continua, que não se fecha. A arquitetura perde essa questão do gesto, do dedo, do pulso, do antebraço. Na escala arquitetônica desses trabalhos de arte contemporânea que buscam criar outra presença espacial, uma presença que ainda se está buscando, banca-se com ousadia uma investigação no espaço real com matérias que são tangíveis e visíveis, e que têm uma densidade que impõe determinadas exigências tecnológicas — a gravidade existe e funciona, não é para a obra cair na cabeça dos outros. Essas exigências vão se infiltrando e vão criando âncoras de apoio em determinadas edificações arquitetônicas, com qualidades mais notáveis ou mais inócuas, mas que se oferecem como um trampolim mental para a nova elaboração espacial e como uma ancoragem física para que — e esse é o meu caso —

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placas enormes de policarbonato se projetem no ar, que segurem, se mantenham firmes apesar de móveis, resistindo ao vento. Como em Kassel, na Alemanha, que chegou a nevar! Para complicar a vida, em abril nevou, foi ótimo teste. E três semanas depois, foram dois meses e meio de construção, veio um sol a pino, os alemães não aguentavam trabalhar do lado de fora 8h por dia. O trabalho passa a rever aquilo que Smithson fez: a conversa com a materialidade do mundo. Como construir uma obra de arte que tenha uma materialidade que permite a tangibilidade? Existem dimensões, escalas urbanas com projeções de imagens, de lasers, que não têm essa materialidade... As implicações todas de linguagem e de constituição da linguagem pela construção do trabalho são totalmente diferentes em um trabalho e em outro, mas na medida em que o trabalho pretende organizar uma espacialidade, que ele sabe que não é uma arquitetura, mesmo que entre com uma escala arquitetônica, ele se depara com as leis da gravidade e outras tantas e isso passa a alinhavar o lado sensível, o lado da invenção, da criação, dando outra identidade estética. Paulo Sérgio Duarte: São questões que estão presentes no seu trabalho e na melhor

arte contemporânea brasileira: enfrentar pressões estéticas de uma maneira que não admite postura cínica. Há grandes obras de arte contemporânea que se manifestam pelo cinismo, que exploram o cinismo. Em sociedades avançadas do ponto de vista econômico e tecnológico os artistas se dão ao direito de ter uma postura cínica e inscrever o cinismo no próprio trabalho. A proposta de um artista que exibe um cachorro de bola de festa de Natal em escala monumental cromado é muito diferente, por exemplo, da postura de um Anish Kapoor,51 artista inglês de origem indiana. Eu me refiro à obra de Jeff Koons, artista muito importante na cena contemporânea, o grande herdeiro da tradição pop, que traz para o presente a questão pop de forma muito vigorosa e que é quase como que obrigado a injetar cinismo como uma forma de se distanciar da sociedade de consumo avançado. Ou seja, ele faz consumir imagens cínicas do mundo. A arte brasileira conserva ainda uma visão crítica, lembrando agora os trabalhos recentes da Bienal de São Paulo, em especial os de Cildo Meireles. Qualquer trabalho humano é resultado de um esforço que, muitas vezes, está mascarado, escamoteado no subterrâneo do que a gente vislumbra: as belas imagens que nos divertem e nos consolam nas horas de lazer. Um exemplo também é o vigor da sensualidade exorbitante, exagerada, de uma instalação recente do Tunga. Foi a partir da sua experiência com o espaço, que a arte brasileira descobriu seu destino público e 51 O escultor Anish Kapoor (1954) é conhecido por trabalhar com esculturas em larga escala, nas quais mescla elementos diversos e opostos, evocando dentro de suas obras a sensação de dualidade.

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não mais doméstico, definitivamente. Ou seja, a arte saiu de sua vocação de ficar acima do sofá da casa grande para ir à rua, para ter um destino público no melhor sentido da palavra. Sem precisar das transgressões cínicas de um Jeff Koons que, quando era casado com a atriz pornô e política, militante feminista, Cicciolina, fez uma série de fotografias com as posições do Kama Sutra, cujas personagens eram ele e a mulher, mostrando que no mundo contemporâneo não existe mais limite entre o público e o privado. Nós não precisamos disso, continuamos a explorar a questão pública com dimensões públicas mesmo naquilo que possa haver de mais íntimo, não há essa intromissão entre público e privado. Acho que esse é um traço muito característico da arte contemporânea brasileira. A conversa recente que você teve com um dos nossos maiores arquitetos vivos, Paulo Mendes da Rocha, é muito inspiradora. Assisti a uma aula dele no Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) sobre Oscar Niemeyer, em que ele brincava com o humor, o talento e a generosidade de Niemeyer que diz que sua obra é inspirada nas curvas das montanhas do Rio e também nas curvas da mulher amada. Paulo Mendes da Rocha pega a Catedral de Brasília, mostra aquelas estruturas todas, depois mostra a estrutura interna da Cúpula do Duomo de Florença, de Brunelleschi,52 inverte a estrutura e aparece a Catedral de Brasília na inversão da estrutura de Brunelleschi. Então, ele diz: “Esse homem está brincando conosco quando diz que aquilo é a curva da mulher amada.” Iole de Freitas: Quem está brincando conosco é Paulo Mendes da Rocha. Paulo Sérgio Duarte: Um grande arquiteto, eu acho os trabalhos dele fantásticos, como

aquele “lençol” que ele lança da Praça dos Patriarcas em São Paulo, ou o trabalho arquitetônico do Museu Brasileiro de Escultura, o MuBE. O importante é que o cidadão público tem que saber que a experiência estética está no dia a dia, quando ele atravessa uma rua. Interessa saber se essa experiência estética é positiva, se lhe acrescenta algo ou se não lhe acrescenta nada. O que a arte faz é condensar, trazer em alta intensidade aquilo que ele tem no dia a dia diluído na experiência dos blocos de concreto, das massas, das relações com os vazios. A arte tem a capacidade de trazer aquilo com tal potência, força, intensidade, que não é mais a experiência estética comum, é uma experiência intensificada, e é isso que vai se chamar arte. O que diferencia um objeto de arte de outro qualquer é a intensidade da experiência que proporciona ao sujeito. E é muito importante repetir 52 Filippo Brunelleschi (1377-1446) foi arquiteto e escultor do Renascimento italiano. Utilizou elementos esculturais inéditos e originais na construção de seus projetos, sendo a Catedral Santa Maria del Fiore, em Florença, na Itália, o mais famoso deles, onde se destaca a primeira cúpula, desde a antiguidade, a ser feita em grandes dimensões.

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a experiência, ou seja, tem uma exposição, não deixe de ir à exposição. Viu a exposição quantas vezes? Quando você gosta de música você não escuta aquela música só uma vez. Quando você gosta de um determinado prato de comida, não vai comer aquilo só uma vez na vida. Na arte se passa a mesma coisa, ou seja, ninguém pode dizer que gosta de poesia e ler um livro de poesia por ano. Gosta de arte... Iole de Freitas: Mas não vê. Essa é a grande questão. Paulo Sérgio Duarte: A arte só se dá na construção e na reprodução cotidiana dessa expe-

riência. Ao contrário do que ocorre com a ciência, em que você pode formular teorias a priori que só décadas ou séculos mais tarde serão demonstradas empiricamente, sem a experiência da arte você não constrói a sua ideia, o seu conceito do que é arte. Iole de Freitas: Se você não vivenciar, não constrói. Paulo Sérgio Duarte: Você não pode pensar sobre a música que não escutou, sobre o poe-

ma que não leu, e não pode pensar sobre a escultura ou a pintura que não viu. Iole de Freitas: Raramente pensamos nessa questão de um contínuo do olhar. O fato de

ver uma vez está bom, digamos, melhor que nada. Mas é muito pouco provável que um trabalho visto uma única e primeira vez consiga de fato despertar seu olhar para todas as suas possibilidades perceptivas, é improvável que você consiga captar aquilo tudo e tirar o melhor proveito no primeiro e único olhar. Não dá. No Brasil não há um público que busque, como o ar que respira, olhar o trabalho de arte. Lembro de quando você estava expondo no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, e como esse lugar oferece uma condição excelente para visitação porque tem o público específico e também o pessoal que entra e sai. Está no meio de uma praça, como se fosse um mercadão. Mas o que interessa é que a arte esteja nessa malha pública de que você fala, a arte brasileira agora, pelo menos, se propõe a estar no espaço público; não sei se vão gostar, querer ou permitir, mas ela se instala como uma pontuação grave para o olhar do artista e do outro, em locais de grande deslocamento de público no cotidiano do viver da cidade. As pessoas passam e se deparam com aquilo, querendo ou não querendo, e aos poucos vão criando uma familiaridade com o que veem. Uma das coisas mais estimulantes é perceber esse raciocínio plástico que a obra contemporânea introduz em determinados cantos, cruzamentos, lugares urbanos por onde as pessoas passam sem ter a intenção de ir lá para ver arte, como em uma galeria ou em um museu. Isso a nossa cidade, o Rio, já pode, mas ela tem pouquíssimos momentos como esse. Poderia muito mais pela natureza que tem. Não estou falando só de Zona Sul,

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não, vou muito para a Zona Norte, vou acompanhando e sentindo que todos os lugares do Rio têm um potencial para acolher essas obras porque há um público que cotidianamente transita por ali e que poderá absorvê-las da maneira que quiser. É uma grande tela. Paulo Sérgio Duarte: É verdade, temos poucas experiências. No Centro do Rio

têm algumas, como a do Waltércio Caldas, 53 na entrada da Avenida Presidente Antonio Carlos... Iole de Freitas: Aquela é linda. O exemplo do que dá certo. Paulo Sérgio Duarte: Tem O passante, de Zé Resende, no Largo da Carioca, o Arco do

Ivens Machado na Uruguaiana, mas são poucas, muito poucas realmente. Anteriormente nós falamos do Tatlin, você lembrou aquela exposição do Guggenheim, a disposição do espaço e penso que o lugar também é muito importante para a gente perceber e experimentar a obra, fazer a experiência da obra. Não estou falando da obra experimental, mas sim da experiência da arte que existe tanto diante de uma escultura grega quanto de uma obra contemporânea. E pude perceber com clareza como o lugar é determinante e modifica a obra, em uma experiência que tive recentemente. Em 2005, vi a escultura, o trabalho, a instalação do Tunga À luz de dois mundos embaixo da Pirâmide do Louvre. Já havia tido muitas exposições de arte contemporânea no Louvre, mas era a primeira vez que eles permitiam que uma obra de arte contemporânea se instalasse no vão central da pirâmide. E agora vi essa mesma obra em uma situação na qual a relação com o espaço a modificou inteiramente. Foi no prédio novo do Museu Rodin em Salvador, na Bahia. Essa relação do corpo com a obra modificou-se inteiramente pela possibilidade de proximidade que eu tinha em Salvador, enquanto no Louvre a experiência era de contemplação, a obra era um monumento dentro de outro monumento. Iole de Freitas: Monumento de contemplação. Paulo Sérgio Duarte: Lá eram dois monumentos e aqui a relação permitiu o atrito, você

chegava perto da obra e a obra chegava perto de você. Por razões de segurança, evidentemente há todo um isolamento da obra. Então, foram reveladas as outras dimensões que a obra tinha e que estavam guardadas, escondidas, na experiência do imenso vão da Pirâmide do Louvre.

Referente à obra Escultura para o Rio (1997), de Waltércio Caldas Júnior (1946). A escultura consiste em duas espécies de colunas feitas de concreto e pedra portuguesa, demarcando o espaço e caracterizando o tecido urbano do local de sua instalação. 53

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Iole de Freitas: Há sempre um confronto que é superprodutivo nesses trabalhos que lidam

com a relação poderosa com o espaço. Eles ficam entre movimentos de contemplação (que é o que a instituição e o trabalho abraçam, o que dá a ver e a oferecer ao público) e situações em que, pela escala do lugar, a obra permite quase que uma fricção com o olhar do outro, com a ideia de corporeidade da obra e de consciência do próprio corpo do espectador. Esses dois movimentos mudam completamente a obra. Com a proximidade, há esse atrito, e com a contemplação você consegue perceber a espacialidade quase como se o espectador desenhasse internamente a percepção. Na outra ele não tem tempo de desenhar, ele é engolido pelo trabalho, ele quase cai na frente do trabalho porque toda a sua poética o invade de uma maneira que bate em cada molécula do seu corpo, e ele, tenho observado isso, caminha de maneira diferente naquele confronto. Muda o andar, muda o caminhar, muda corporeamente. Quer dizer, todos os neuroniozinhos vão ativando determinadas potências em todos os lóbulos que existem para que o caminhar tome um ritmo e um estado de consciência diversificado. Quando ele entra em confronto, entra no campo do trabalho e quando ele observa, o campo do trabalho fica longe. É esta a questão que acho que a arte contemporânea pode acrescentar à boa arquitetura contemporânea. Porque ela é feita para abrigar, acolher, para poder nos inserir, mas também nos deparamos, nesses projetos maravilhosos, com o enlevo da contemplação. Em alguns momentos, nós retiramos dela a função utilitária, porque ela tem outras coisas a oferecer, que são puramente estéticas e poéticas. E a arte, como não tem função utilitária, não está ali para criar uma escola, embora esteja educando, não é uma escola, ela está para questionar ideias. Então a arte educa no sentido básico da formação do olhar, está inserida para provocar, assim acho que se abre outra hipótese para a qualidade, o valor e a razão de existir do pensamento contemporâneo nessa escala de espacialidade que vigora. Paulo Sérgio Duarte: Na sua experiência desses últimos 17 anos formando artistas na Esco-

la de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, e não somente nessa experiência da aula, da formação de artista, mas também percorrendo as exposições, as instituições aqui no Brasil, como você vê a cena contemporânea da arte, agora? O que está chamando mais atenção? Existe alguma coisa que sobressaia? Iole de Freitas: Que sobressaia propriamente não. O que chama atenção são atitudes plu-

rais, corajosas, várias, que nos dão vontade — o que já é um grande valor — de prestar atenção nelas, para ver como se desdobram. As pessoas não nascem sabendo, é preciso um laboratório do fazer, tem que dar um tempo. Mas há determinadas inovações em relação a

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uma apropriação inusitada, inteligente, de novas tecnologias, que não são o bê a bá chato. Mariana Manhães, por exemplo, é uma dessas artistas que criam com o professor Pardal dentro da cabeça, e que produzem coisas inusitadas, inteligentes e não fechadas, que provocam o nosso olhar. Em questões performáticas, uma área que abre espaço para muita dúvida, há apresentações pontuais inteligentes. Vejo e observo como é que uma nova presença estética se faz: é a partir do raciocínio plástico da sensibilidade de uma geração criada no momento em que são muitas as possibilidades que as redes todas de comunicação passam a oferecer. O campo da informação é vasto, mas fico sempre observando como fica às vezes mais difícil para o jovem artista — não estou falando de idade cronológica, mas de processo de constituição de linguagem — fazer bom uso, aproveitar em seu benefício, em benefício da própria linguagem tantas coisas, tanta informação, tanto acesso a tudo. É difícil não se perder nesse mar de informações e se tornar simplesmente um grande colecionador de figurinhas daquilo que está sendo feito, formando álbuns de recortes da realidade social, política e cultural. É preciso saber criar a partir daquilo, saber buscar o instante de silêncio, puxar a si aquilo que ele pode e não ficar perdido nesse mar, nessa facilidade da informação e se bastar com isso. E é de fato um desafio não abraçar um determinado filão, não se dobrar a determinadas facilidades que se apresentam e teimar em tentar descobrir aquilo que de fato se pode. Isso quer dizer: o que o artista vai trazer como uma inovação, não uma coisa novidadeira, mas exatamente a inovação, aquilo que só ele pode pensar daquela maneira. Paulo Sérgio Duarte: Em alguns cursos de formação de artistas fora do Brasil, na Europa e

nos Estados Unidos, há uma tendência de formação para o mercado sem nenhuma discussão crítica sobre o desenvolvimento da própria linguagem. Ensina-se o artista a falar sobre seu trabalho, a fazer um portfólio, a entrar em uma galeria, a apresentar-se ao marchand, a circular, a ser adequado. Iole de Freitas: Para mostrar o quê? Isso é que eu pergunto. Para que as etapas? A etapa é

para falar de quê? A que vem esse trabalho? Está questionando o quê, está cutucando o quê? E se o próprio artista não tem interesse em investigar isso e prefere essa acomodação, fica um belo apresentador de si mesmo, mas ele não sabe quem é. Paulo Sérgio Duarte: Hoje se confunde a profissionalização do artista quase que pura e exclu-

sivamente com inserção no mercado. Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira são poetas? São poetas. Se ser profissional é viver do que você faz materialmente, nenhum poeta desses grandes seriam profissionais. Ninguém sustenta a casa, paga as contas, com o pagamento

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da sua poesia. E os artistas até a nossa geração se formaram assim também, durante certo tempo da vida, eles desenvolviam outra atividade que sustentava o desenvolvimento e o amadurecimento do trabalho. Hoje o artista quer sair da escola com catálogo, livro, exposição... Iole de Freitas: Em quatro galerias. Paulo Sérgio Duarte: Se bobear sem ter feito exposição nenhuma ainda, já quer uma

retrospectiva. E imaginar que Hércules Barsotti,54 com mais de 90 anos, ainda não tinha tido um livro até há poucos anos... Iole de Freitas: É incrível. Paulo Sérgio Duarte: E há uma série de artistas hoje com livrões de arte, com 40 anos

de idade. É uma situação muito diferente a do mundo de hoje nessas relações com o vil metal. E isso, de certo modo, marca a vitalidade de alguns trabalhos. Outros perdem a vitalidade, perdem a audácia e a coragem de explorar novos territórios. Iole de Freitas: Se para entrar no mercado for preciso encarar a imposição da ameaça à

liberdade do pensamento, é bom se perguntar: para quê? É uma situação tão clara, mas quem está mergulhado dentro dela não enxerga com tanta clareza.

Hércules Rubens Barsotti (1914-2010), pintor paulista que participou do movimento Concretista na década de 1940 e em 1960 integrou o grupo Neoconcreto. Barsotti trabalhava com formas geométricas não figurativas e com a disposição dos campos de cor dando uma ilusão de tridimensionalidade a suas obras. 54

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Carlos Vergara Artista plástico, pintor, gravurista e fotógrafo gaúcho. Aluno de Iberê Camargo, estudou pintura e desenho no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, iniciando sua carreira na década de 1960 na VII Bienal de São Paulo. Participou da exposição Opinião 65, no Museu de Arte Moderna do Rio Janeiro (MAM) e na década de 1970 integrou movimentos de vanguarda trabalhando com fotografia e filmes Super 8. Nesse mesmo período começou a explorar a temática do carnaval, fazendo o registro do bloco carioca Cacique de Ramos. Desde o fim dos anos 1980, trabalha com pigmentos naturais e minério, monotipias de diferentes lugares, onde a natureza por si mesma é impressa no campo artístico, como na série de 1997 Monotipias do Pantanal.

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Paulo Sérgio Duarte: Como você vê o panorama atual da arte contemporânea no mundo

e no Brasil? Há grandes diferenças em relação ao período em que nos formamos, a década de 1960? Carlos Vergara: Há mudanças gigantescas entre aquele período e o presente. Agora a má-

xima é: vale tudo o que produza sentido. A performance é uma das expressões contemporâneas mais interessantes; por um lado criou uma grande gama de possibilidade para os artistas, que podem recorrer a novas tecnologias, a procedimentos inusitados e, por outro, exigiu dos artistas que buscassem densidade, pois para fazer sentido deve haver densidade, senão fica uma mímica, um vale tudo que dá licença a qualquer coisa. Se, por um lado, facilita a vida do artista, há hoje recursos gigantescos, por outro, faz pressão para que se produza um trabalho que tenha interesse para o público, que não seja só uma viagem que gira em torno do umbigo do artista, exige cuidado e maior aprofundamento. A existência de um mercado de arte forte foi determinante também para produções que eram impensáveis na época em que começamos a fazer arte. Hoje o trabalho de arte como produto, no momento em que se produz, ganha uma valoração que antigamente só se dava aos trabalhos que haviam sido filtrados pela história. Hoje o mercado, a própria veracidade dele, é de um capitalismo desenfreado que precisa, cada vez mais, de novos produtos. Esse mercado determinou também financiamentos e produções que, de certa maneira, não são interessantes. Paulo Sérgio Duarte: Você acha que a linguagem do vídeo, muito presente no meio das

artes visuais, a chamada videoarte, operou alguma transformação? Na última bienal de São Paulo, e nas últimas bienais de Veneza, se o visitante se dedicasse a eles oito horas por dia, todos os dias da bienal, não conseguiria ver todos os vídeos, levando em conta que há os de uma hora e vinte minutos, cinquenta e cinco minutos. Se o crítico precisa estar orientado para escolher, imagine o público. Carlos Vergara: É preciso estar preparado para entrar em uma bienal, não é uma feira de

amenidades. A videoarte começou nos anos 1960, com o Super 8, um olho na ponta do dedo. A partir desse momento se tornou possível examinar coisas que não se justificariam no broadcasting da televisão, não estariam no cinema, mas se justificam na arte, na criação de pensamento. Pode-se não só olhar para fora como olhar para dentro, olhar para si mesmo. Há certas atividades que o filme Super 8 iniciou e que hoje são desenvolvidas. O uso, por exemplo, da supercâmera lenta (não a câmera lenta do Walt Disney, que simplesmente transforma o movimento em uma coisa bonita do desenho). Esse recurso permite

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uma filmagem pela qual se pode decupar um esgar para construir uma reação física a um evento, durando cinco a dez minutos, o que significa que esse evento vai se revelando aos poucos. Essa é uma maneira de ler a expressão visual de maneira nova e só cabe nas artes plásticas. Não há lugar no cinema comercial para examinar como se constrói um esgar ou uma reação a uma tragédia no mundo. Paulo Sérgio Duarte: Você experimentou bastante a fotografia, nos anos 1970 sobretudo.

A imagem fotográfica é outra linguagem que alterou profundamente a arte, a relação com a pintura. Carlos Vergara: Eu fotografo, sempre fotografei. Há alguns artistas que têm uma habili-

dade absoluta, de nascença, para transformar, por exemplo, três dimensões em duas para um desenho. Outros não. Passam anos nas academias tentando copiar o real. Eu fotografo, projeto, apanho o traço básico, e trabalho sobre ele. Não é nessa ginástica de transportar o real para duas dimensões que está a minha brincadeira, o meu prazer. O que me interessa é construir com isso uma imagem que se pareça com o real, mas que seja construída com outros procedimentos e com outras coisas. Hoje a fotografia é um instrumento utilizadíssimo pelos artistas e que pode ter vida própria, não só como documento, mas como construção abstrata. Hoje posso manipular de modo diferente as fotografias que fiz nos anos 1970. Meu arquivo (fotografias em película) estava se acabando e pude recuperá-lo e transformá-lo, em uma espécie de mágica, como o Lázaro que se levanta morto e volta a andar. Acho que a fotografia é um dos elementos que se revelou uma ferramenta para os artistas de todas as ordens. É possível fotografar, fazer um desenho, fotografar o desenho, fazer uma maquete virtual, e a indústria transforma isso em coisa real. Só um pensamento contemporâneo pode dar conta disso. São artistas que ainda têm prazer na fatura, porque o artista não precisa mais fazer manualmente a sua obra. Só pensá-la. Ele sabe o que quer, tem instrumentos e etapas a cumprir que podem produzir uma escultura encomendada na China ou em ateliês que estão preparados para executar sua ideia. Jeff Koons55 é um exemplo. Paulo Sérgio Duarte: O exercício da destreza manual, da capacidade, do prazer de exe-

cução, é uma questão própria do pintor. Como você vê a pintura nesse universo da arte contemporânea?

55 Jefferson “Jeff ” Koons (1955), artista e escultor norte-americano, transforma objetos banais destinados à cultura de massa em obras de arte, muitas vezes em larga escala. Seu método de produção, inspirado na art fabrication, inclui a participação de inúmeros assistentes na execução de suas obras.

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Carlos Vergara: Eu aceito o peso da tradição na pintura. Isso não me incomoda nada. O

fato de eu ter ido buscar pigmentos no interior de Minas não me causa incômodo. Tive um prazer gigantesco em trabalhar com os mesmos elementos que usou o “fundador da pintura” no Brasil, mestre Ataíde. Fui aos mesmos barrancos procurar um pigmento que permitisse a construção de uma imagem completamente diferente da imagem que Ataíde procurava, produzindo o mesmo tipo de impacto no espectador. Quis produzir transformações e catalizações sutis nos espectadores com os mesmos elementos primitivos usados por Ataíde. Como tenho prazer na fatura, para mim é muito interessante ferir uma área em branco, obter sua resposta, feri-la uma segunda vez, obter novas respostas, ir construindo aos poucos, em uma conversa com o branco, alguma coisa que produza sentido. Acho que a morte da pintura não existe, apenas sofre transformações por novos procedimentos e novas imagens. Paulo Sérgio Duarte: Há uma dilatação enorme da experiência pictórica, ou seja, o pictó-

rico não está mais somente em uma tela esticada sobre o chassi. Carlos Vergara: Não, desde a produção de pastilhas coloridas que se colocam em uma

vitrine para produzir sentido. Sou um artista espectador, viajo para ver arte, gosto de ver arte, me animo com colegas de várias gerações, então mesmo em um pequeno universo de um artista individual, se anda para frente produzindo problemas para produzir respostas nessa linguagem que se chama artes visuais. Paulo Sérgio Duarte: A arquitetura, sem dúvida, cumpriu muito mais que as artes visuais

o papel de educador de um olhar brasileiro sobre o que era o moderno. Carlos Vergara: É verdade. Paulo Sérgio Duarte: A presença pública dos prédios, particularmente os da antiga capital

do país (o aeroporto Santos Dumont, o edifício da Associação Brasileira de Imprensa — ABI, o do Ministério da Educação e Saúde), era parte da formação de uma pessoa, que podia ver na rua o contraste entre o eclético, o pré-moderno, e a modernidade, o moderno. Você acha que hoje ainda há possibilidade de a presença pública da arte na paisagem urbana cumprir um papel de formação do olhar? Carlos Vergara: Mais que nunca. Acho, inclusive, que os próprios artistas estão impor-

tando certos desenhos superficiais dessa arquitetura para falar sobre solidão, perda do controle do público e do privado. Utilizam-se inclusive da arquitetura como uma grafia,

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para fazer um discurso que não é da ordem da arquitetura, mas da ordem do sentimento e do afeto. Se você for a São Sebastião, na baía da Concha, na Espanha, e olhar o Peine del Viento, de Eduardo Chillida, desde um ponto em uma pedra batida (como é o ponto do Leblon, por exemplo), com buracos no chão, onde a maré entra e sai como respiros, onde tem um som, verá a respiração do mar que se ressente, dói, com aquela escultura forte, aquelas mãos, tentando pegar a espuma. Essa percepção fala para uma área sutil do cérebro, que transforma a visão da linha do horizonte não porque lá do outro lado tem a África, é como se você pudesse incorporar esse grande vazio, como se você pudesse ficar de costas para sua cidade e criar ilhas para respirar. Cada vez mais isso faz sentido. E cada vez mais me dá pânico em relação ao que vai acontecer no Brasil em 2014 com a Copa do Mundo e em 2016 com as Olimpíadas no Rio de Janeiro. Como não temos um projeto de arte, uma cultura com um projeto de Estado, o pensamento é muito pobre. A prova começa pela ausência de acervo nos museus. Paulo Sérgio Duarte: Você acha que o meio urbano, essa metástase urbana na qual nós

vivemos, ainda possibilita essas ilhas de respiração? Carlos Vergara: Acho que deveria haver playgrounds intelectuais. Não só colocar balanço

para criança. O ser humano adulto precisa ter momentos de respiração, de enlevo. O público e o próprio artista precisam se preparar, como falamos no caso da quantidade de filmes ofertados nas bienais, por exemplo. Ir a uma grande exposição é como ir a um grande mercado. Se você não sabe o que vai comprar, se perde entre as barracas. Vi uma exposição na Alemanha e fiquei muito impressionado, era muito bem-executada, muito bem-feita, levando em consideração que se o espectador não conseguisse ver tudo na passagem, não poderia voltar. Tudo era projetado para se ver de sala em sala, desde Nam June Paik, um dos primeiros a trabalhar com o vídeo. Paulo Sérgio Duarte: Vídeo e obra acústica. Carlos Vergara: Exatamente. E com a desconstrução da escultura. Então, era uma sucessão

de salas pretas; havia a chance de ficar em uma delas ou seguir adiante. Era uma exposição extraordinária que dava essa opção de seguir adiante e perder o que ficava para trás. Se você parasse em todas as salas demoraria o dia todo. Em muitas dessas exposições mega, vale a pena perder o dia todo. Ou interromper para o almoço, para limpar o olhar e voltar. Paulo Sérgio Duarte: Claro. Consegui ver toda a última bienal de São Paulo, mas fui em

três dias diferentes, pois há um momento de saturação do olhar. As diferenças de lingua-

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gens são muito grandes. Hoje vamos a uma exposição individual e pensamos que é uma coletiva, que são diferentes artistas expondo, mas é o mesmo artista que se apresenta de uma maneira tão diversificada. São nossos paradigmas modernos... Carlos Vergara: Fala e som estão incorporados às artes visuais. Há trabalhos, como o do

Paulinho Vivacqua, por exemplo, que operam só com o som. Ele faz artes visuais usando o som como um dos elementos importantes e constitutivos. Paulo Sérgio Duarte: A escultura acústica dele tem uma função plástica, além de acústica.

É interessante também olhar, não só escutar. Carlos Vergara: Sim, e há também certos trabalhos que fazem esbarrar no problema da

língua. Você precisa de uma tradução para poder fruir tudo. No começo dos anos 1960, arte, cinema, arquitetura estavam muito próximas e vários arquitetos me convidaram para produzir coisas que talvez um artista visual resolvesse melhor do que simplesmente, por exemplo, a criação de uma parede. A parede podia ter outra frequência. O exemplo típico é a parede do Sérgio Camargo no Palácio do Itamaraty. E as paredes do Athos Bulcão e muitas das coisas da arquitetura de Brasília. Às vezes parece que o circuito das artes está muito próximo do Chacrinha: “Eu não vim para explicar, eu vim para confundir.” Paulo Sérgio Duarte: Está mesmo. Em um caso como o do nosso país, onde já existe

uma tradição da confusão, o esclarecimento é o subversivo. Ao contrário, em um país hiperorganizado essa confusão contemporânea é subversiva, altera os paradigmas do cotidiano que organiza as pessoas muito certinhas; em um país que tem uma tradição de ordem muito forte, uma tradição de cumprimento de agendas muito forte, no qual todo mundo chega no horário, ninguém se atrasa, ninguém faz um elogio da desordem, ninguém fura sinal vermelho, nesses países, a confusão da arte contemporânea tem um papel subversivo. No caso brasileiro, a arte não precisa respaldar o que já é excessivo no cotidiano. Carlos Vergara: Talvez sirva para o contrário. Paulo Sérgio Duarte: Ela precisa servir para o contrário. No Brasil, quando a arte apre-

senta uma vontade de ordem, subverte o meio, que não quer, a começar de cima. A força do movimento construtivo brasileiro repercutiu com tanta força lá fora a ponto de um museu americano querer comprar coleções inteiras de arte construtiva brasileira, construir prédios especialmente para abrigar essa coleção. O interesse reside justamente no fato de nossa arte contrariar toda aquela carnavalização, aquele elogio dos trópicos, do exótico, do Zé Carioca, da Chiquita Bacana, da bagunça generalizada. Então, realmente, é uma

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arte rara ter produzido aquilo naquele meio cultural. O entendimento daquela arte faz parte de um interesse especial. Carlos Vergara: Certas sementes construtivas permanecem na tendência brasileira de

produzir arte. Paulo Sérgio Duarte: Acho que os melhores artistas brasileiros se alimentaram do método

construtivo. Exatamente daquilo que chamei de vontade de ordem e de disciplina, certa racionalidade que nada contra a corrente do exótico, próprio do país. Carlos Vergara: O texto do Hélio Oiticica, “Nova objetividade brasileira”, escrito no fi-

nal dos anos 1960, é uma mostra clara disso. Há muita construção quase anárquica hoje, mas quase anárquica a partir de uma ordem construída. Marcos Chaves, que opera com o humor, Raul Mourão, José Bechara, vários artistas, têm obras a partir de uma construção. No Brasil há muita arte para ver. O grande problema é a mediação com o público, tudo é fruto de um esforço brutal. Mesmo em São Paulo, que por razões objetivas de mercado tem um equipamento público maior, essa mediação ainda é dura para as artes visuais. Paulo Sérgio Duarte: Temos uma tradição das festas, todo um universo popular, que você

experimentou ao longo do seu trabalho. Você acha que há uma vantagem para um artista brasileiro que souber dialogar com essa tradição? O carnaval, por exemplo. Carlos Vergara: O carnaval é essa desordem que se pode implantar, essa tomada da área

central da cidade, a inversão de comportamento, um homem que se fantasia de mulher, um velho que sai de criança, um jovem que incorpora um velho, esse tipo de exorcismo, de catarse. Conheço o carnaval bastante de dentro, por prazer e por paixão intelectual. Em nosso país, a passagem do tempo é contada pelo carnaval, não pelo dia 31 de dezembro. Marcamos os anos pelos sambas-enredo. A comunidade tem o carnaval incorporado à sua produção intelectual, por isso é muito mais do que uma festa popular, é um ritual de passagem. Esse entendimento permite tomar o escracho e transformar em linguagem. Essas pessoas que brincam o carnaval são artistas anônimos de um dia só, que saem para a cidade para fazer arte, em seu duplo sentido. Paulo Sérgio Duarte: Você acha que a experiência do carnaval, embora esteja presente

sobretudo nos anos 1970 e 1980, marcou para sempre sua arte? Carlos Vergara: Acho que não, mas aprendi com o carnaval, com esse tipo de produção.

Meu trabalho tem muita coisa ritualística que foi incorporada a partir dessa experiência.

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Paulo Sérgio Duarte: Está presente também na linguagem do Hélio Oiticica, no Parangolé,

que não é somente a abstração de um ato construtivo se desdobrando em uma pintura e escultura mole. Carlos Vergara: As fotos que fiz da implosão da penitenciária Frei Caneca e as que fiz den-

tro da prisão no Pavilhão Hélio Gomes antes da implosão, as foto das celas, a arquitetura de cobertores e lençóis que era feita, revelam a presença desse espaço no trabalho do Hélio Oiticica. Ele conhecia profundamente a prisão, tinha estado lá várias vezes por causa de um seu amigo que estava preso, passista da Mangueira. Essa arquitetura, essa invenção do pobre, do pouco, da adversidade, tomou o Hélio, é bem perceptível. Paulo Sérgio Duarte: E tem a experiência da favela. É importante lembrar que ele é um

dos fundadores daquilo que mais tarde viria a ser chamado de instalação. Naquela época se chamava ambientes. Dessas experiências de 1960, você acha que a referência está em Lygia Clark e Hélio Oiticica? Carlos Vergara: Não. Antonio Dias foi um monstro nos anos 1960, no sentido da capa-

cidade que ele teve de operar com o duro e o mole, com a história em quadrinhos, que ele produzia de uma maneira menos literária do que nós. Acho que algumas coisas foram esquecidas de modo injusto no Brasil. Existem dois artistas que são fundamentais, Wesley Duke Lee e Iberê Camargo, são referência. O Iberê trouxe para o ofício da pintura uma vertigem e um rigor fundamentais, a possibilidade de uma massa de tinta produzir sentido como massa de tinta mesma, com uma gesticulação, uma intenção, uma gesticulação procurando sentido, que irá referir a outras coisas, mas numa segunda ou terceira instâncias. Não é nada literário. E o Wesley, que é ultraliterário, incorpora o desenho de propaganda e dá autonomia para a linha como um ator preponderante. Como uma linha que passa a ter uma vertigem. Waltércio Caldas hoje, mesmo que não diretamente, dá seguimento a essa vertigem da linha, de um traço, sobre o qual nos perguntamos: aonde vai parar esse traço? Onde está o sentido disso tudo? Há a presença que traz um sentido, mas onde está esse sentido? Exige do espectador um esforço para montar pedaços e ver sentido, construir o sentido. Acho que o Wesley foi muito injustiçado. É uma palavra piegas, mas ele foi pouco visto e tem uma produção muito interessante que gerou, indiretamente, artistas importantes de São Paulo. Paulo Sérgio Duarte: Ele foi um grande formador. Carlos Vergara: Iberê também.

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Paulo Sérgio Duarte: Você foi aluno de Iberê Camargo? Carlos Vergara: Ele foi um grande professor da construção da pintura como uma integri-

dade e não feita só de casca, externa. Todo o preto de Iberê tem por dentro cores que se revelam por uma frincha qualquer. É um preto como negação da cor. Eu acho que essa dramaticidade do Iberê se constrói por uma cor que vai sendo negada até chegar ao nível do real. Paulo Sérgio Duarte: Wesley também formou todos aqueles que mais tarde vieram a criar

a Escola Brasil.56 Frederico Nasser, José Resende, Carlos Fajardo, Luís Paulo Baravelli. A Escola Brasil teve um papel importante no início dos anos 1970, durou pouco, mas é uma referência permanente. Carlos Vergara: Eles tinham a ideia de uma galeria, a Rex.57 Fizeram também o jornal

Rex, que se prestava a difundir uma visão menos paletó e gravata da arte. Propunham uma mudança de comportamento. Não podemos esquecer o velho arquiteto lá de São Paulo, o Flávio de Carvalho, um grande artista. Paulo Sérgio Duarte: Contra a procissão,58 quase foi linchado. Carlos Vergara: Contra a procissão e de chapéu. Isso é uma performance do risco, compará-

vel a essas coisas que a Marina Abramovic produz hoje como performance. Paulo Sérgio Duarte: Era um artista muito bom, desenhista também. Sem falar nas peças

arquitetônicas. Os trabalhos dele sobre a morte da mãe... Carlos Vergara: São muito pungentes. Bill Viola, já na época do vídeo, faria isso depois. O

vídeo da morte da mãe, muito impressionante, em tempo real. E o nascimento da filha, também em tempo real. Duas telas, a mulher dele parindo, um parto visto ao vivo, e a morte da mãe vista ao vivo. Essa sequência é muito impressionante. Voltando a falar dos vídeos, acho interessantes os da artista plástica iraniana, Shirin Neshat, com seu pensamento do Islã,

A Escola Brasil (1970-1974), localizada na cidade São Paulo, foi uma escola de ensino livre de artes que promovia o ensino em bases não acadêmicas. 56

A Rex Gallery & Sons foi uma galeria de arte alternativa criada em São Paulo pelo Grupo REX (1966-1967). Além da galeria, o grupo era responsável pelo periódico Rex Times e tinha em sua formação artistas como Geraldo Barros, Nelson Lainer e Wesley Duke Lee.

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Em 1931, o arquiteto e performer Flávio Resende de Carvalho (1889-1973) realizou o que se chama de Experiência n° 2, quando percorreu, usando chapéu e no sentido contrário, uma procissão de Corpus Christi na cidade de São Paulo. 58

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um mundo distante da gente. Fui ver o TEDxRio,59 essa coisa de tecnologia, entertainment and design e a primeira conferência foi sobre interdependência. O conferencista propõe que o grito de liberdade não seja mais “Independência ou morte”, mas “Interdependência ou morte”. Com todas as inter-relações que existem, com toda essa modernidade e informação no mundo, é possível ver em tempo real uma exposição no Tate Modern, o Museu de Arte Moderna do Reino Unido. Se tiver uma performance, por acaso, sendo filmada em tempo real, você pode ver. No mundo todo existe uma grande interdependência que precisa ser redefinida, reestudada para produzir arte que preste serviço, por mais feia que essa expressão seja. Quer dizer, para que seja uma produção de conhecimento, que preste serviço para a humanidade, o serviço de equipar nosso olhar para uma visão de mundo um pouco mais ampla. Do contrário, é simplesmente uma gesticulação. Eu ainda acredito que mesmo essas produções de arte que foram sugadas, no sentido literário, prestam um serviço que é o de equipar o olhar para uma visão de mundo um pouco mais ampla. Paulo Sérgio Duarte: A formação do olhar e dos sentidos torna-se muito mais importante

na situação que vivemos, em um país de paradoxos muito fortes, que ao mesmo tempo tem uma sociedade muito sofisticada, setores muito abastados, e pessoas cujo único acesso é a uma tela de televisão no meio da praça. Nem dentro da casa ainda. Em 1981, visitei uma aldeia no litoral do Rio Grande do Norte que tinha mais de 200 barcos de pesca. Só dois a motor, todos ainda pescavam à vela. E a eletricidade tinha chegado muito recentemente a essa aldeia, em 1981. Um dos habitantes dessa aldeia, quando chegou a eletricidade, comprou uma lâmpada de vapor de mercúrio, de iluminação pública, e colocou na sua sala. A luz irradiava. Aquilo parecia um Magritte, para quem via de fora.60 Havia uma curiosidade em relação a essa experiência de linguagem visual cotidiana. Com a chegada da luz, a primeira coisa que se abriu na cidade foi uma discoteca com as luzes todas, porque havia uma em uma novela de TV da época. Os barcos ainda eram à vela, o meio de sobrevivência da aldeia era à vela, a luz havia recém-chegado, mas já, com ela, havia um elemento absolutamente contemporâneo, a discoteca. Essas superposições de camadas em um país como o nosso, de simultaneidades de diferenças muito fortes, tornam ainda mais premente essa questão da educação, formação, do olhar.

59 TEDxRio é um programa de eventos auto-organizados, que formam um ciclo de palestras ao vivo e online. Este evento está vinculado ao TED, conferência anual de tecnologia, entretenimento e design, criada em 1984 nos Estados Unidos. 60 René François Ghislain Magritte (1898-1967), artista belga surrealista, pintor, entre outros, do quadro O império das luzes (1954), que representa o realismo mágico característico de suas obras, trazendo simultaneamente a luz noturna, ilustrada por um poste de iluminação pública e o céu diurno, tal qual o vemos durante o dia.

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Carlos Vergara: Por causa do carnaval, eu fui ver a Festa de Paritins. E é absolutamente

impressionante. Paritins é um ensinamento. O carnaval é totalmente diferente. São duas entradas e você fica de frente àquilo. Tudo tem que mudar na sua frente. Não é uma coisa que passa e entra outra. Uma coisa sai de dentro da outra. É inacreditável o que aquela gente faz sem usar energia elétrica, a não ser para iluminar. Acho que há muita coisa para ser vista, tanto na chamada alta arte, os museus e tal, como na produção popular. Paulo Sérgio Duarte: Você realiza trabalhos a partir das viagens, viaja com a intenção de

trabalhar no lugar para aonde está indo. Você já esteve em Missões, já esteve no interior de Minas, no Pantanal Mato-grossense, na Turquia, no Casaquistão. Tudo isso com a finalidade de produzir... Carlos Vergara: Eu fiz um trabalho sobre as missões de São Miguel, no Rio Grande do

Sul. O que me interessava era fazer uma imersão, conhecer aquilo e produzir alguma coisa que não fosse simplesmente foto turística, mas que levasse uma aura do lugar, uma respiração. Busco a alternativa de dividir com as pessoas uma visita que produza e que traga alguma coisa a mais, o invisível do visível. Fiz quatro viagens a São Miguel. A próxima viagem seria para sair de São Miguel, atravessar a fronteira para a Argentina, se possível não usando a fronteira política, mas o caminho guarani. Ir à tribo guarani junto a San Ignácio Mini, outra missão, outra redução muito importante. De lá, atravessar a ponte do rio Paraná, e ir para Jesús e Trinidad, onde também há uma aldeia guarani. A viagem seria entre as aldeias guaranis junto às missões. Lançar outro olhar aos escultores que estão lá, tentar mobilizá-los, trabalhar com eles produzindo peças contemporâneas com a mão de obra guarani. Esse é o meu projeto. De qualquer maneira, vou levar os meus lenços, os meus panos, as minhas monotipias, as minhas câmeras, e vou fazer as minhas coisas. Mas queria ter uma interação maior. Desobedecer a fronteira política. Os índios viajam sem passaporte, imagina se eles pedem licença a alguém para ir à tribo guarani no Paraguai. Eles atravessam a fronteira do jeito que podem, andando ou de ônibus. Existe um país, uma área guarani, por onde circulam guaranis, charruas, umas quatro ou cinco tribos. A guarani é mais forte porque a língua se preservou. Paulo Sérgio Duarte: Você tem memória de artistas que usaram esse procedimento de tra-

balho, as pinturas de viagens, excetuando-se os artistas naturalistas do século 19? Carlos Vergara: A viagem do Antonio Dias ao Nepal gerou uma linguagem nova em seu

trabalho que ele trouxe de lá, viva. Os papéis, tudo aquilo.

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Paulo Sérgio Duarte: É, uma experiência da convivência com a comunidade. Carlos Vergara: É uma coisa muito paralela, simultânea, e talvez até anterior a mim, mas

muito simultânea às coisas que fiz viajando, nos anos 1970. Como é que eu iria fazer um trabalho para a Varig em Paris? Simplesmente impor à loja da Varig em Paris uma pintura, uma paisagem brasileira? Fui para o Nordeste, ao Ceará para ver aquelas garrafinhas, depois desci, fui para Minas ver os pigmentos em 1970, para tentar fazer com que a própria constituição do trabalho tivesse uma cara que pertencesse a um lugar. Quer dizer, não era uma representação de uma coisa. Era a coisa mesma em si. Era constitutiva. Paulo Sérgio Duarte: Formalizada pela poética do artista. Carlos Vergara: O Brasil recebeu vários naturalistas franceses, alemães, russos, que vieram

e levaram imagens. Agora estou fazendo o caminho inverso, vou lá e trago para cá, para nós podermos examinar. Uma das coisas mais interessantes que escutei na exposição que fiz sobre a Capadócia, sobre a Turquia, foi uma senhora que disse na saída da exposição: “O senhor é o Vergara, não? Posso lhe pedir um favor?” e eu falei: “Pois não, o que é?” e ela: “O senhor poderia me trazer a Grécia?” Porque ela sentiu a Turquia naquilo, foi tão mobilizante para ela, e então eu disse “Vou tentar.” A única parte da Turquia que não me interessou foi a grega. Fiquei mais na área do cristianismo primitivo. Havia uma ligação com a tentativa dos jesuítas nas missões do sul do Brasil. Eram comunidades cristãs isoladas, autogeridas, com uma experiência política diferente. Como eram as cidades subterrâneas da Capadócia no começo do cristianismo. Os cristãos da Capadócia eram varridos por mongóis, depois vinha outro bárbaro, vinham os tártaros, era uma área muito importante de caminho entre Oriente e Ocidente e a comunidade cristã se enterrou, ficou em cidades subterrâneas. Isso me interessava como experiência humana. Se isso poderia produzir um trabalho contemporâneo, seria somente pelo espírito do procedimento, do modo com que isso é tratado, da maneira como isso toma corpo e vira um produto, um objeto de arte. Paulo Sérgio Duarte: Seu interesse pelos trabalhos holográficos com a fotografia apareceu

no trabalho da Turquia? Carlos Vergara: Eu os descobri por acaso, fazendo cruzamentos físicos de cores e de pig-

mentos. Superpondo e cruzando pigmentos, criando uma trama, na verdade buscando uma, tentando fazer aquela cor buscar seu espaço de uma forma física. Depois comecei a fazer algumas maquetes com fotografias, porque o que me interessa em algumas fotogra-

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fias que faço é conseguir obter uma imagem eloquente. Às vezes uma fotografia sozinha não é eloquente, sozinha não tem interesse, mas cruzada com outra sim, como é toda a minha pintura dos anos 1970. Eu pegava um pedaço de uma fotografia, projetava em uma tela, desenhava aqui, pegava um pedaço de outra, e construía, na verdade, um universo, uma imagem final com vários dias e várias origens. Se cruzo quatro, ou cinco, ou 12 fotografias, a leitura é truncada, o que obriga o espectador a fazer uma leitura decupada, ou seja, a pensar para recompor. Este é o esforço maior de todas as pessoas que pensam a arte: criar no espectador um movimento participativo, que não seja uma coisa para ver sentado na poltrona. É preciso ver o trabalho tentando entrar nele e participar dele, mesmo que não seja tátil, mas uma participação intelectual, interna. Não é uma invenção da roda, não é novo, já existia na pintura de Hans Holbein,61 no século 15. Paulo Sérgio Duarte: Os embaixadores, da anamorfose. Carlos Vergara: Da anamorfose. Uma tentativa de truncar o olhar. Vista em um ponto

da sala, sob aquela mancha estranha que parece uma bisnaga em uma tela completamente realista, naturalista, perfeita, com requintes de pintura, aparece uma caveira. Mais extraordinário que isso, é que hoje você pode visitar pela internet a National Gallery de Londres e examinar virtualmente o quadro todo. Não só de frente, mas no ponto certo, onde aquilo vira realmente algo. Paulo Sérgio Duarte: Em termos da arte contemporânea, fora do Brasil, quem tem pro-

vocado mais interesse em você? Para mim, é muito forte a presença da arte contemporânea brasileira, eu vivo muito intensamente nela. Quando viajo, digo: “Muito barulho por nada!” Carlos Vergara: É mesmo, para mim também a arte contemporânea brasileira é muito

importante. Mas fazendo uma análise, gosto muito das experiências alemães de fotografia em grande escala... Paulo Sérgio Duarte: Andreas Gursky,62 por exemplo.

Hans Holbein, o Jovem (1497-1533), pintor e retratista alemão do período renascentista. Em 1533 pinta Os embaixadores, utilizando a figura anamorfizada de um crânio no quadro, percebido apenas subliminarmente, tornando-se uma das obras mais representativas da anamorfose. 61

Andreas Gursky (1955), artista plástico alemão, trabalha com fotografias em larga escala que, por vezes, são alteradas digitalmente, criando ilusões como espaços maiores do que são de verdade. O artista constrói imagens metafóricas que se transformam em um retrato da realidade social contemporânea.

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Carlos Vergara : Isso. É uma coisa interessante. A fotografia montada, a fotografia fake. Paulo Sérgio Duarte: É construída como uma cena de teatro, para fixar o estilo de

uma novela. Carlos Vergara: Ainda é de tirar o fôlego. Como visitar uma grande exposição do Richard

Serra ainda é uma experiência que, para além do intelecto, cria quase um medo físico... Paulo Sérgio Duarte: É, você experimenta literalmente com o corpo aquele encontro em

União de Torus e Esfera. É muito impressionante a experiência de passar ao lado, e não existe outra trajetória a não ser passar muito perto. Carlos Vergara: Há certas coisas que não dá para se ver na tela da televisão. Ver a experiência

da pintura fisicamente é outra experiência. Paulo Sérgio Duarte: É o contrário da música. A música, com os meios tecnológicos

atuais, cria ambientes que realmente estão muito próximos da experiência de escutar uma orquestra ao vivo. Carlos Vergara: Glenn Gould parou de fazer concerto público em 1960, acreditando exa-

tamente nisso. Paulo Sérgio Duarte: Ele editava o concerto no seu estúdio, em sua casa, no Canadá. Glenn

Gould já é um caso extremo de descrença na performance pública. No caso da arte visual se dá exatamente o contrário. A experiência do corpo é diferente. Uma tela de 3 m de altura nunca poderia ser reduzida a uma tela eletrônica cuja luz vem de trás, de LED ou LCD, com outra cor. Em uma escala de 90 polegadas, quando muito, teria 70, 42 polegadas... Carlos Vergara: Em viagem à Turquia pude ver as igrejas construídas nos séculos 3 a 10,

com as marcas posteriores dos cruzados iconoclastas cristãos que tiraram as cabeças dos santos com suas espadas. É algo que só vendo, não se explica, não é menos que ver em um documentário. Paulo Sérgio Duarte: Houve uma onda de iconoclastia católica no século 9, contida por

Roma, pelo próprio papa, bem anterior à Reforma Protestante, seis séculos antes. Carlos Vergara: Vi a exposição The Revolution Continues: New Art of Chine, na Saatchi

Gallery, em Londres, e achei um trabalho absolutamente contemporâneo e extraordinário, chamado Old Persons Home, de Sun Yuan e Peng Yu. Cadeiras de roda elétricas,

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como se fossem aqueles bate-bates de parque de diversões, com bonecos hiper-realistas de Karl Max, Lenin, Mao Tse-Tung. Personagens da história política, em cadeiras de roda que eram bate-bates rodando a esmo pelo salão e se batendo uns contra os outros. Uma experiência muito interessante. Também me interessa essa ironia cínica da pintura chinesa que recupera uma má pintura, quase história em quadrinhos, mas que tem um conteúdo de comentário fortíssimo e joga a ilustração, a charge, por um campo muito grande. As mentiras industriais japonesas são interessantes. A experiência do Richard Serra no Grand Palais, Promenade, também foi muito impressionante. E também o filme com ele fazendo aquilo. A questão da escala começou nos anos 1950/60, quando tamanho virou documento. Quantidade é uma forma de qualidade, no sentido da expressividade do trabalho de arte, do trabalho visual. O ruim é que tudo isso não chega até aqui. Não temos o intercâmbio em nossa política cultural. Temos que viajar para ver essas coisas. E a intuição do brasileiro não é só para o futebol. É importante ter, aqui, museus fortes para poder trazer exposições públicas importantes, de gente de fora, para que possamos experimentar esse susto que só vendo ao vivo acontece. Não é o truque do “parece real”. É real.

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Vl a dimi r C a r v a lh o Vladimir Carvalho, cineasta paraibano radicado em Brasília, estudou Filosofia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em 1959 participou do documentário Aruanda, de Linduarte Noronha, além de ter integrado a equipe de Cabra marcado pra morrer (1962/1984), de Eduardo Coutinho. Seus primeiros filmes datam da década de 1960, incluindo Romeiros da guia (1962), em parceria com João Ramiro Mello, e o curta-metragem A bolandeira (1967). A sua filmografia é composta de documentários como O país de São Saruê (1971), Conterrâneos velhos de guerra (1990), Barra 68: sem perder a ternura (2001) e Engenhos de Zé Lins (2006), entre outros. Atualmente é professor emérito da Universidade de Brasília (UNB), onde leciona no Departamento de Cinema desde o ano de 1969.

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Silvio Tendler: Em minha opinião, você tem no cinema a importância que João Cabral

de Mello Neto tem na literatura. Seus documentários são a arte burilando a realidade como matéria-prima. Vladimir Carvalho: Bom, antes de mais nada você quase inviabiliza essa conversa. De-

pois de suas palavras carinhosíssimas, em que pese o exagero, me deixou emocionalmente travado. Silvio Tendler: Você tem mais de 70 anos. Digo isso porque quando aconteceram as

coisas mais importantes no cinema brasileiro, você era um rapazola, pouco passado dos 20 anos. Você é oriundo do chamado Ciclo da Paraíba,63 trabalhou em Aruanda, com Linduarte Noronha. Enquanto no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais se discutia o que seria o Cinema Novo; enquanto Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, eu, estávamos fazendo um movimento de renovação do cinema, veio um bando de gente da Paraíba com o filme já pronto. Era o Aruanda. E quando as pessoas viram o filme, disseram: “O Cinema Novo é isso.” Sortudo como você é, estava também na equipe que fez Cabra marcado pra morrer, outro filme seminal do cinema documentário brasileiro, de Eduardo Coutinho. Vladimir Carvalho: Os alunos da Universidade de Brasília leram coisas sobre Aruanda,

principalmente o célebre artigo do Glauber, e o filme realmente foi uma marca, foi um divisor de águas no documentário brasileiro, e me perguntavam como foi surgir um filme daqueles na Paraíba?! Porque a Paraíba não tinha tradição nenhuma de cinema e o filme vinha do Nordeste pobre, daquela parte mais difícil da região, com dificuldade de sobrevivência. Eu procurei explicar a eles o surgimento do filme fazendo uma analogia com a terra seca do sertão, com a pressa que a natureza tem em se superar. Lá temos aquela seca terrível, seis meses sem chover, a água não aparece, não chove naquele lugar. Depois de dois ou três dias da primeira chuva, ao olhar a terra você vê uma sombra esverdeada que vai pintando. Eles chamam de “babuge”, uma palavra que eu ouvia quando era menino, “babuia, babuge”. Esse verde, a “babuge”, é alguma coisa da vegetação que vem pondo a cabeça para fora da terra. Aquela camada ainda tênue é a reação imediata à chuva. O verde que estava aguardando aparece. Há um tempo de espera tensa do sertanejo na expectativa da chuva. E de repente começa O Ciclo do Documentário Paraibano (1959-1979) nasceu como um embrião do Cinema Novo. Iniciado a partir do filme Aruanda, consolidou a posição do cinema paraibano no cenário nacional. Os cineastas mais consagrados desse Ciclo foram Linduarte Noronha, João Ramiro Mello e Ipojuca Pontes, além do próprio Vladimir Carvalho.

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tudo outra vez: o mato cresce, seca e se espera a chuva. É pouco o tempo do verde, então há pressa. Nós tínhamos essa pressa de superar o tempo perdido. Então, comandados por Linduarte Noronha, eu, João Ramiro Mello e Rucker Vieira tínhamos pressa, era “partir para o crime”, a gente queria era fazer filme. Então, Linduarte abreviou o percurso. Associou-se a Odilon Ribeiro Coutinho, usineiro, presidente de um banco aqui no Rio de Janeiro e veio pedir uma câmera a Dr. Pedro Gouveia Filho, diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Depois ele foi à Kodak e conseguiu o filme virgem. E aí veio Aruanda. Quer dizer, foi uma circunstância muito local, muito terra-terra que, de repente, nos colocou na ordem do dia do cinema brasileiro. E é a chamada arte bruta, a velha arte bruta. Nós não tínhamos noção de iluminação, por exemplo. Como fotografar? Como captar aquela luz? Como desenhar aqueles objetos, a cerâmica feita? A fatura de Aruanda é muito parecida com a fatura do que se fazia na frente da câmera. Aruanda também era uma panela de barro cinematográfica. Tosca, uma panela tosca. Talvez por isso mesmo, as qualidades são excepcionais e surgiram de algo muito espontâneo, diferente de tudo. Nos documentários que se faziam à época, ainda se iluminava a cena, se retocava a luz. O nosso filme era em preto e branco contrastadíssimo, parecendo com uma gravura, uma xilogravura. Quando Glauber viu, ficou enlouquecido. Foi ato contínuo: sentou à máquina, ali no Souza Júnior, na Líder Cinematográfica, em Botafogo, e começou a escrever um artigo 64 que consagrou o filme. Depois vieram Paulo Emílio Sales Gomes e Jean Claude Bernardet, foi uma ventania, uma brisa renovadora. Até hoje Aruanda é um exemplo. Silvio Tendler: E junto veio um ciclo, Romeiros da guia. Vladimir Carvalho: É, e veio A cabra na região semiárida, de Rucker Vieira. Perdemos a

inocência e a insegurança, principalmente, e perdemos o medo da câmera. Romeiros da guia veio depois do filme de Ipojuca Pontes, Os homens do caranguejo, e antes da Caravana Farkas.65 Ouso dizer, sem nenhum desdouro para os outros, que Thomaz Farkas, uma extraordinária figura, era nosso líder. Inspirou a todos da Caravana Farkas, por toda aquela coisa de Nordeste, de sertão, que estava ali nos filmes. Aliás, acho que não Escrito pelo cineasta Glauber Rocha (1939-1981), o artigo intitulado “Documentários – Arraial do Cabo e Aruanda” foi publicado originalmente no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, em 6 de agosto de 1960. Destaca o ineditismo do documentário Aruanda na história do cinema brasileiro e o compara com filmes do neorrealismo italiano.

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Caravana Farkas ou A condição brasileira foi um projeto de cultura popular que produziu diversos documentários entre as décadas de 1960 e 1970. Formado por cineastas liderados pelo empresário e produtor Thomaz Farkas (1924), o grupo percorreu o interior do Brasil no intuito de registrar e valorizar as diversas manifestações culturais populares existentes no país.

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tinha esse nome na época. Acho que foi Eduardo Scorel quem inventou esse nome já na década de 1990. Em alguns documentos, um paper, lembro que se chamava A condição brasileira. Silvio Tendler: Tinha também o Brasil verdade.66 Vladimir Carvalho: Brasil verdade é de 1965. Aruanda é de 1960. Com aquela luz. A pro-

posta de iluminação de Vidas secas, do Nelson Pereira dos Santos, de 1963, tinha muita coisa em comum. Aquela luz estourada, rascante, que pulveriza os objetos em volta, faz uma cena na sombra e ninguém vê quase nada porque está tudo alastrado de luz, a luz que fuzila todos os objetos em volta, a vegetação inclusive, e só aquela parte da cena é iluminada. Isso você vê em Vidas secas e também em Aruanda. Descobriu-se outra forma de fotografar o Nordeste. Silvio Tendler: Os cineclubes tiveram alguma influência na sua formação? Vladimir Carvalho: Você tocou em um ponto definidor. Eu frequentava o cineclube dos

padres que vinham da Gregoriana de Roma, que tinham visitado Cinecittà, os padres que vieram para o Brasil e entre eles Antonio Fragoso, que foi bispo e era o diretor do cineclube de João Pessoa. A minha cabeça no cinema foi feita no cineclube dos padres. Pari passu com reuniões nas bases do partido comunista. Vimos muitos filmes interessantíssimos no cineclube. Lembro do “específico fílmico”.67 Eu perguntava: “Que diabo vem a ser o específico fílmico?” E meus amigos diziam: “Acho que é algo com a direção, é o momento da direção, tem a ver com o cara que orquestra tudo isso. Rege, de regia, regente na acepção italiana.” E eu: “Não, tem a ver com a montagem.” E, para piorar a situação, vimos Outubro, de Eisenstein pela primeira vez, era final dos anos 1950. Então percebemos que é a montagem o específico fílmico, é a montagem intelectual. A questão específica desse filme é a montagem intelectual. Nós ficamos muito tempo nessa discussão bizantina no cineclube, que era, no mínimo, interessante. Silvio Tendler: Além de Outubro, quem fez a cabeça de vocês? Quais eram os filmes que

vocês viam? Brasil verdade, compilação de quatro documentários realizados entre 1964 e 1965 que foram lançados em 1968 como um longa-metragem de episódios. O projeto foi idealizado por Thomaz Farkas e trouxe ao Brasil o estilo do cinema-verdade, trabalhando com som direto, algo em voga na época, e explorando a temática da cultura nas manifestações populares brasileiras.

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67 Específico fílmico, termo que faz alusão à linguagem cinematográfica, é o que diferencia o cinema das demais expressões artísticas. O termo é associado ao processo de montagem de um filme, em que a linguagem cinematográfica é consolidada, gerando também uma ligação direta com as cinematografias russas e italianas.

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Vladimir Carvalho: Em 1958 ou 59, um crítico daqui do Rio de Janeiro, que escrevia com

o pseudônimo Jonas, chegou ao Recife dando palestras e passando clássicos do cinema. Filmes antológicos. Lembro de Les enfants du paradis, de Marcel Carné, de Outubro, de Eisenstein, mas o que me ganhou, que me deixou fulminado foi O homem de Aran, de Robert Flaherty. Quando vi aquilo, senti um troço que bateu no coração. Foi o que me fez ir para o documentário definitivamente, foi o que me definiu, quando eu percebi, entre outras coisas, que não precisava fazer filme de ficção. Não tinha atores, era aquele povo andrajoso, na beira de um penhasco, aguardando que voltassem aqueles barquinhos que tinham ido buscar um tubarão não sei aonde, aqueles homens com arpão para capturar um bicho daqueles, coisa bravia, aquele mar. Praticamente não tinha história e eu pensei imediatamente: “Isso é que é cinema!”. Foi um choque. Quando Linduarte nos chamou para escrever o roteiro de Aruanda eu sabia por aonde ir. O homem de Aran foi a porta de entrada. Se você pensar bem, tudo é ficção e tudo é documentário. Silvio Tendler: Claro. Digo que o cinema se divide apenas em bom e mau cinema. Bons

e maus filmes. Não acredito nessa coisa do gênero. Trabalha-se tendo como suporte a realidade. A realidade do documentário, não uma realidade nua e crua, é burilada por um olhar. A realidade do Vladimir Carvalho é uma, a minha é outra, a do Coutinho é outra, a do Geraldo Sarno68 é outra. O documentário é uma realidade talhada, burilada por um autor que vai transformá-la em obra. Vladimir Carvalho: Exato. Silvio Tendler: É por isso que digo que um documentário, quando é bom, é uma obra de

arte. Quando é ruim, é um mau filme. Vladimir Carvalho: Imagine se pode existir uma realidade objetiva, de apalpar. Nunca fui

apresentado a ela. Silvio Tendler: Não existe. Vladimir Carvalho: A sua subjetividade está carregada da sua visão do mundo, que vem

junto, de uma vez só. Silvio Tendler: Os grandes filmes chamados documentários são todos autorais, tomam

68 Geraldo Sarno (1938), diretor e roteirista baiano, dirigiu o clássico do cinema nacional Viramundo (1965), sendo responsável por obras que retratam temas como injustiça social e a cultura do sertão, tais como Vitalino/Lampião (1969), Jornal do sertão (1970), Casa-grande & senzala (1974) e Eu carrego um sertão dentro de mim (1980).

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partido na história. O documentário não tem a responsabilidade do jornalismo, o diretor não é obrigado a ouvir os dois lados. Deve contar uma história honestamente, não pode mentir em nome de uma tese, mas o documentarista tem mais do que a possibilidade, tem a responsabilidade de tomar partido. Vladimir Carvalho: Sim. Parece-me que havia 100 anos que a tal pesca tinha sido desati-

vada nessas ilhas de Aran, e Flaherty recompôs a coisa toda, se referiu a uma realidade já inexistente, inclusive prestou um enorme serviço, porque o filme é de uma tal poesia, está envolvido em tal aura de mágica, que trouxe de volta o inexistente em um quadro real da economia daquelas ilhas. Silvio Tendler: É. Flaherty é um dos maiores poetas da história do cinema. Ele sempre

trabalhou, reconstruiu a realidade a partir do cinema. O primeiro filme dele, Nanook, o esquimó (1922) foi feito antes. Ele teve problema e os negativos tinham sido destruídos. Ele voltou lá e refilmou com aquelas mesmas figuras. Ou seja, é um documentário na medida em que é uma refilmagem. É um documentário porque Nanook existe na vida real, a família e os amigos de Nanook existem na vida real, aquele ambiente existe. Agora, é uma refilmagem cinematográfica, os enquadramentos que ele faz são para cinema. Ele não toma uma realidade improvisadamente. Vladimir Carvalho: A cultura brasileira é antropofágica. Faz uma bricolagem genial.

Um diz que faz documentário descritivo, outro documentário de observação, outro de cinema direto americano, cinema vérité é europeu francês. Há o documentário reflexivo, que discute a sua própria linguagem, que discute a existência do documentário, é um refinamento enorme. Eu sei lá se estou fazendo cinema direto, se tem narração, isso não importa, desde que eu esteja sendo verdadeiro. Verdadeiro no sentido de ser autêntico, fiel às coisas em volta. Mas se tem poesia, se há a adição de uma carga poética, é porque é um filme, tem profundidade e tem diálogo com o humano. É para isso que o filme é feito. Silvio Tendler: E quais as fronteiras do gênero documentário? É possível ter um

documentário-poesia, um documentário de arte? Vladimir Carvalho: Para fazer essa reflexão, vou voltar ao meu primeiro filme, o Ro-

meiros da guia, meu e do João Ramiro. Ele é um filme, vamos dizer, “etnográfico”, eu conhecia um evento, era uma romaria que se repetia ano a ano. Então só precisa ir lá e colocar a câmera. Claro que não é bem isso, porque ao enquadrar você faz uma

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opção, e o que está acontecendo dentro deste quadro é o que você tem que combinar até formar um pequeno discurso. Mas o evento já era realizado, não era a surpresa, não tinha nada que fugisse à regra. Os homens saíam de uma praia em suas canoas, em suas jangadas, iam a um templo pagar suas promessas e depois dançavam o coco, que é uma dança sensual, misturando o sagrado e o profano. Estava pronto, e isso facilitava muito para inexperientes como nós, que mal tinham visto uma câmera de perto. Tínhamos lido e sabíamos de cor e salteado Tratado de realização cinematográfica, de Kuleshov.69 Era fazer aquilo com uma etnografia que estava pronta. À medida que dominávamos nossos instrumentos, fomos ficando mais audaciosos. Você tem a impressão de entrar mais na realidade, aquela realidade que são as relações existentes na sociedade, do homem com o seu imaginário, com a religião etc. Isso a gente chama de a realidade. Os documentários, em sua grande maioria, se debruçam sobre a realidade social. Anteriormente você citou João Cabral de Mello Neto e eu me lembro dele ter dito que detestava as palavras poéticas. Ele montava os seus poemas com as palavras mais banais e simples da língua, dizendo que não adianta perfumar a flor. Se já é poesia, porque vai manipular as palavras? Tem poetas que usam um vocabulário que esvazia a poesia. Então acho que a poesia, às vezes, é tão intangível, ou melhor, ela é tão eventual, algo que ninguém espera. A poesia acontece, muitas vezes inesperadamente. Não existe disciplina que ensine a ser poético. A poesia vai acontecer. Isso é obra de arte, está no cinema, ele permeia essa premissa. Silvio Tendler: E o documentário também está permeado de poesia. Ou não? Vladimir Carvalho: Está totalmente. Quando transcende aquela coisa do simples factual

e fica perenemente desafiando a sensibilidade humana. Esse é o documentário, se posso dizer, verdadeiro. Silvio Tendler: Qual o filme que te tomou mais tempo entre a ideia e a concretização? Vladimir Carvalho: Por uma contingência histórica e política foi Conterrâneos velhos de guer-

ra, porque as pessoas não queriam falar, tinham medo de falar sobre o episódio. Foram 19 anos de filmagens. Comecei a filmar em 1971 e só fui terminar em 1990 porque as pes-

Lev Vladimirovich Kuleshov (1899-1970), teórico, professor e cineasta russo, ajudou a desenvolver uma nova proposta de linguagem cinematográfica. Suas experiências no cinema foram chamadas de Efeito Kuleshov e procuram mostrar que é possível manipular a impressão que a imagem causa no espectador ao contar uma história a partir de fotogramas idênticos justapostos em uma sequência de fragmentos de diferentes maneiras. Foi um dos fundadores da Escola de Cinema de Moscou e professor de cineastas como Serguei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin.

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soas não queriam conversar sobre esse assunto. Eu queria ouvir a gente humilde, o povo, e eles achavam que poderiam ser prejudicados de alguma forma. Diziam: “Professor, se eu falar vou parar na cadeia.” Esperei, enquanto isso fiz outros filmes, acumulei 70 horas de gravações para fazer o filme. Era um filme sobre gente presa, gente perseguida, gente torturada. Sobre a época da ditadura, e as pessoas se reservavam. Eu não ia convencê-los dizendo: “Isso não tem nada a ver, foi em 1959, o ano de Juscelino.” Não. Deixei. Depois veio a hora. Silvio Tendler: E sua participação em Cabra marcado pra morrer? Vladimir Carvalho: Se deu em duas etapas. Na segunda, não diretamente, fui produ-

tor associado. Mas na primeira etapa, apresentei dona Elisabeth Teixeira para Eduardo Coutinho. Eu militava no Partido Comunista Brasileiro (PCB) em João Pessoa e Coutinho foi para lá em uma UNE volante, com Oduvaldo Vianna Filho, o pessoal do teatro, do cinema, aquela coisa que eles faziam pelo Brasil afora. Coutinho já estava antenado por causa do livro do Ferreira Gullar, João Boa Morte, cabra marcado pra morrer, mas no primeiro tratamento do roteiro chamava-se ainda Morte em Sapé, acho que até tenho esse roteiro. Eu tinha feito dois filmes só, mas a gente de cinema me indicou para o Coutinho e nos demos às mil maravilhas. Durante o filme eu fiquei muito ligado aos meninos que faziam o papel da família de João Pedro Teixeira, eu tomava conta daquela rapaziada toda, com malas e malas de roupa e era assistente do Coutinho nessa parte principalmente. João Pedro Teixeira pertenceu ao PCB em uma fase da vida e, como havia aquela solidariedade entre os companheiros, quando ele vinha do interior para participar das reuniões dos diretórios ficava hospedado na minha casa. Escolhemos João Mariano para fazer o papel, ele era um bronco, coitado, um camponês, e eu tive que fazer um laboratório com ele. Eu o levava à cidade, Vitória de Santo Antão, interior de Pernambuco, vizinha ao engenho onde a gente filmava, o levava ao cinema dia sim e dia não para mostrar como era, ele nunca tinha entrado em um cinema. O sertanejo, o homem de interior, por superstição, quando conta que um sujeito sofreu uma facada, jamais diz: “Ele levou uma facada aqui” mostrando o lugar no corpo, porque estaria se referindo a si mesmo. Ele prefere dizer: “Numa comparação, o camarada deu uma facada no outro aqui.” Então João Mariano perguntava: “Como é que vai ser isso? A máquina vai fazer o quê comigo?” Eu o acalmava dizendo que a máquina não faria nada com ele, que ele faria uma comparação. Ele continuava meio alarmado: “Ah, uma comparação. Quer dizer que não é de verdade, não?” E eu: “Não, você vai contar o que

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o outro passou, que João Pedro Teixeira foi fuzilado e como é que você formou seus filhos.” Há duas etapas na vida de João Pedro como pai de família. Os rapazes mais crescidos se chamavam Isaac, Jacó, Elias, nomes bíblicos. Ele era protestante, andava como pastor. Depois que se converteu ao PCB, os nomes dos filhos mais novos passaram a ser Luiz Carlos, Virgínia, Anita. É a turma do partido, da história do comunismo. Então, eu ensinei uma série de “Fazendo uma comparação, Sr. João Mariano” e ele “Ah, uma comparação, vamos fazer uma comparação.” Assim era o laboratório que eu fazia com ele quase diariamente. Silvio Tendler: Quem tirou os negativos? Vladimir Carvalho: Os negativos, em parte estavam na Líder Cinematográfica e em parte na

casa de David Neves, que era filho de general. Esses negativos que estavam na casa de David Neves ficavam embaixo da cama, sei lá onde, era um lugar insuspeito, o pai do David Neves dava essa condição. Por isso Cabra marcado pra morrer foi salvo e Coutinho pôde fazer a junção dos dois materiais 16 ou 17 anos depois. Silvio Tendler: Quem são os intelectuais que fizeram sua cabeça? Vladimir Carvalho: Eu li muito. Meu pai era ensandecido com um filme norte-americano

chamado Como era verde o meu vale, do John Ford. Ele tinha lido muito os norte-americanos, John Steinbeck, Hemingway e eu fui nessa linha. Ao mesmo tempo, ele lia Graciliano, José Lins do Rego, Jorge Amado. Silvio Tendler: Você está enveredando para um caminho interessante, sua vida na infância,

em Itabaiana, você é filho de um artista do interior. Vladimir Carvalho: Meu pai ia de jornalista a escultor e tinha uma movelaria. Em João Pes-

soa ficaram célebres seus carros fúnebres, aqueles carros torneados com aqueles penachos, era quase uma coisa imperial. Meu pai esculpia uma alegoria da morte. Era também jornalista. A cidade, embora pequena, tinha uma vida ativa até os anos 1940, depois entrou em decadência. Tinha um jornal, A Folha, como tinha A União, em João Pessoa, onde colaborava José Lins do Rego, inclusive, que estudou em Itabaiana. Itabaiana significa “a pedra que gira”, porque ali era uma espécie de cemitério de índios. Muito antigamente o índio era colocado em uma urna e punham uma pedra em cima à beira de um rio cheio. O rio de Itabaiana era cheio e tinha muitas pedras, o que fez dele uma urna funerária. Chamava-se Itabaiangã bagana, uma coisa assim, e resultou em Itabaiana.

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Silvio Tendler: Sua obra é permeada pelas suas lembranças de Itabaiana e a maior parte de

seus filmes são filmados no sertão. Você trabalha com poucos recursos, ainda é da antiga, não leva uma equipe grande. Como você trabalha seu cinema, como faz suas viagens? Como funciona o documentarista Vladimir Carvalho diante das novas tecnologias e da realidade de sempre? Vladimir Carvalho: O tamanho da equipe sempre me assustou. Um dos motivos que me

levou ao documentário foi poder fazer um filme em uma parceria de dois, no máximo três. Detectei isso quando fui assistente, ainda iniciando o trabalho no cinema. Eu intuía que de acordo com minha cultura nordestina devia seguir o caminho das coisas simples. Não sei se foi Euclides da Cunha ou se foi Gilberto Freyre que falou que a caatinga era como caco de garrafa, agressiva. Entrávamos nela somente eu e Manuel Clemente, meu câmera, fotógrafo dos filmes, um rapaz de um talento excepcional. Às vezes conseguíamos uma pessoa para ajudar a carregar um pouco a tralha, um tripé que pesava mais. Filmamos várias vezes durante as férias escolares, porque coincidia com a seca no sertão, então íamos aos grupos escolares, no alto sertão, lá nos grotões mais profundos, e pegávamos emprestados os quadros-negros das escolas, em acordo com a Secretaria de Cultura e de Educação e fazíamos rebatedores com isso. Carregávamos tudo caatinga adentro, onde só se ouvia os pássaros. Carregávamos os quadros, o tripé, uma câmera 16 milímetros, uma sacola de películas e só... Depois de 50 anos, eu reencontro a possibilidade de ter a chamada facilidade daquela época, só que muito mais veloz, muito mais eficiente, e com direito a muito mais tempo de filmagem. Você põe uma fita de uma hora no bolso da camisa e filma uma hora. Meu Deus, a gente filmava com rolinhos de três minutos. Aquilo era uma coisa inacreditável. Tem um episódio curioso, que se passou com meu irmão, na época em que eu era seu assistente, “o senhor da luz”, hoje sua excelência Walter Carvalho (uma vez uma revista publicou uma reportagem com ele, cujo título era “O senhor da luz”). Acabávamos de filmar e eu entregava a ele as filmagens. Filmamos uma veneranda figura, um homem deitado em uma rede, já quase à morte, com a barba enorme, e não sei por que cargas d’água, ele me passou aquele material já filmado, a gente filmou pela segunda vez e perdemos todas aquelas imagens extraordinárias. Com as novas tecnologias, é mais rápido, posso filmar muito, não filmamos por cima de outra imagem... Outro dia Fernando Meirelles disse uma frase lapidar: “A gente filma demais com essas novas tecnologias”, e pareceme que na empresa dele o armazenamento de imagem virou um problema sério. Você também deve passar por isso...

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Silvio Tendler: Eu tento educar minhas equipes para tentar ser objetivo mas, para mim,

ter muitas imagens é uma qualidade, essa falta de objetivo beneficia tanto a memória. Eu procuro fazer muito mais, filmar mais do que preciso, tenho um arquivo histórico importante de filmes dos anos 1950 e 1960, e também tenho um arquivo de igual importância dos filmes que faço. Por exemplo, fiz um filme na Itália, o Utopia e barbárie, e nele eu uso entrevistas, como as dos cineastas Francesco Rosi e Gillo Pontecorvo. Mas aproveitei e também filmei outros cineastas italianos, como Marco Bellochio, Mario Monicelli, o roteirista Ugo Pirro, que fez os roteiros de Jardim dos Finzi-Contini, de A classe operária vai ao paraíso e muitos outros, quer dizer, tenho hoje uma memória do cinema italiano maravilhosa. Acho isso excelente, nada contra o Fernando Meirelles, mas ele não é documentarista, então está falando de outra coisa, porque nós documentaristas nos beneficiamos, e muito, com os custos baixos e com a forma de registro dessa nova documentação. E é legal porque aquela fitinha é muito barata, hoje em dia nem se trabalha mais com fitinha, é cartão, mas eu ainda gosto de fitinha, ainda fico procurando máquinas que gravem em fita. Morro de medo de HDs, isso é uma coisa que me preocupa, tenho medo do armazenamento da memória. Eu gosto da velha fitinha. Vladimir Carvalho: Na fitinha você tem a garantia de guardar uma coisa concreta. Você

tem um suporte, está ali. À vista. Não é uma coisa virtual, que fica no espaço. Mas eu estou filmando em cartão. Silvio Tendler: E como você definiria documentário? Você acha que documentário é arte,

documentário é antropologia, é sociologia? Política? Como você vê o documentário dentro do território das artes? Vladimir Carvalho: Se você tem a pretensão de fazer arte pode ser por via do documentário

ou por outra via. Acho que se tem um artista por trás da câmera, o que surge é arte. A arte depende da criatividade de cada um. Às vezes, você tem um assunto extraordinário e faz um apanhado dele que resulta no máximo uma reportagem, aquela que amanhã vai embrulhar o peixe! Eu estou falando no jargão do jornal escrito, mas muitas vezes a matéria documentarista transcende o factual, o que será vencido pelo tempo. Depois de tanto tempo, em O homem de Aran, em Nanook ou em Terra de Espanha, de Joris Ivens, você ainda vê a poesia humana, o homem, que já se disse uma vez, é a medida de todas as coisas e é também a medida da poesia. Esses filmes transcendem os limites de um simples apanhado, de um momento da história. Terra de Espanha é uma coisa assim, você tem uma aura entorno desse filme, mas podia ter sido feito como um simples registro. Eu nunca vi

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um mar tão bem filmado. Filma o mar e não filma como Flaherty. Sei lá porque, aquilo é história. E a condição humana que está presente naquelas imagens, naquelas pessoas, naqueles rostos? Filmados em um ritmo certo, em um corte correto, como se fosse uma estrofe, como se fosse a batida da poesia. Como Alberto Cavalcanti revolucionou com a poesia, com o documentário inglês, como, por exemplo, Night mail, não existe coisa mais prosaica do que colocar uma carta no correio, e de repente você olha para aquilo e é apaixonante, não é só um relato, é história. Quando eu ensinava, dizia aos meus alunos que o roteiro do documentário é um ponto de partida. É preciso estar aberto para receber a contribuição da realidade que, no fundo, é a relação do homem com o mundo e com as classes sociais e tudo mais. No filme de ficção, o roteiro é um ponto de chegada. Quer dizer, se um alfinete cai no chão, está previsto no roteiro, pelo menos naquele chamado “roteiro de ferro”, como chamavam os russos, no qual tudo era previsto. Se você faz tal qual o roteiro e se ele foi pensado poeticamente ou dramaticamente de uma forma eficiente, vai resultar numa obra. O roteiro está todo no papel. No documentário não, você precisa se desvestir de qualquer preconceito, o entrevistado pode me surpreender, pode dizer coisas extraordinárias. Assim é a arte cinematográfica e hoje o documentário e a ficção por vezes se mesclam um ao outro. Silvio Tendler: A riqueza do documentário é o improviso. Escrevi recentemente que o

roteiro da ficção é um transatlântico. No transatlântico você fala com centenas de pessoas, tem fotógrafo, cenografia, figurinos, atores, diretor, maquiador, todo um exército de pessoas e se não for um roteiro muito bem amarrado as pessoas vão se perder. Vão perder o rumo. No documentário a navegação é solitária, é um Amyr Klink. Se você amarrar muito não chega. Precisa da liberdade de navegar ao sabor das marés. Vladimir Carvalho: Exatamente. É preciso ter humildade para saber aonde jogar alguma

luz. Às vezes a realidade é um “decifra-me ou te devoro”. Toda vez que você termina um filme ainda está sob um choque de inteligência, você percebe mais porque é premido pela circunstância de entender o que está filmando. É uma decifração e se você consegue encaixar alguma coisa que dê um pouco de luz, já é fantástico. Essa luz só vem pelo interesse humano e pelo sentimento. Para mim um sentimento vale mais que a forma, sempre. A forma anda com os conteúdos da vida e um sentimento comanda tudo; a intuição que você tem no olhar, na fala, na expressão do outro. Silvio Tendler: Quais são os ingredientes de uma boa obra de arte? O que atrai você, o que

o motiva? O que você busca no cinema quando vai ver um filme?

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Vladimir Carvalho: Em primeiro lugar um sentido de proporção, quase sempre, isso é tá-

cito. Às vezes você gosta muito de um filme, você se identifica com o conteúdo, mas você vê que há uma escala descompassada, qualquer coisa que fez a balança pender mais para um lado do que para o outro. Isso do ponto de vista estético mesmo, do ponto de vista do prazer, da estesia, para poder melhor se entender com o filme. E, no sentido plástico, a arte do cinema é enquadramento, que é uma matemática que não se aprende na escola. Se você está verdadeiramente sintonizado e é fiel a si mesmo e ao assunto, termina resultando, do ponto de vista da forma e do conteúdo, em algo respeitável. Silvio Tendler: Cinema tem fórmula narrativa? Fórmula não é forma. Vemos hoje muitos

filmes quase construídos em um formulário padrão; o cinema norte-americano tem aquela equação que o Syd Field propõe e que as pessoas seguem: ponto, ponto intermediário, resolução etc. Você acredita que o cinema possa ter linguagens diferenciadas segundo autores diferenciados? Vladimir Carvalho: Acho que sim e que não. Não é que esteja em cima do muro. Acho

que a gente vem transgredindo ou tentando transgredir os gregos em todos esses séculos e parece que é uma coisa quase inarredável. Vez por outra há momentos de ruptura, de identificação com determinada ruptura, mas de certa maneira voltamos sempre à praxe mais antiga. À estrutura aristotélica. Shakespeare já tinha mexido um pouco nisso e todo mundo achava que era Shakespeare para toda vida. De repente tivemos a contribuição de Bertold Brecht, que trouxe a novidade do distanciamento e da representação ao mesmo tempo, você liga e desliga em uma relação direta com o espectador. Ele gera uma linguagem. Lembro de um auto do poeta e dramaturgo português Gil Vicente, teatro clássico, no qual o ator dizia: “Por aqui passa um rio. Quem não acreditar, queira se retirar, por favor.” É a sugestão, uma espécie de expressionismo que avança o sinal. Enfim, nós vivemos uma aventura em busca de uma forma que represente o conteúdo à altura. E aí é uma viagem interplanetária, se posso dizer assim. Silvio Tendler: Você tem algum novo projeto? Vladimir Carvalho: Quero fazer um filme sobre a esplanada dos ministérios. Tenho

filmado ao longo dos anos aquilo que era para ser um espaço bucólico, a domingueira brasiliense, onde os cidadãos iam se encontrar. Burle Marx tinha projetado um jardim que representaria a nacionalidade, que teria desde o cactus nordestino até a araucária do Sul do país. Ele era um poeta, um jardineiro poeta, queria fazer da esplanada um imenso

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jardim. Que coisa maravilhosa. Esse jardim, que é extraordinário, ao longo dos anos foi se transformando em um palco onde deságuam as grandes questões nacionais. Os semterra fazem uma passeata monumental, com seus vestuários, suas cores, suas bandeiras vermelhas. Outro dia filmei uma passeata de 3 mil tratores naquela esplanada. Parecia uma praça de guerra, um trator é muito semelhante a um tanque de guerra, com aquela esteira, com aquela coisa. Depois, os índios deram um abraço no Congresso, falaram aquela língua atropelada, aquela coisa linda. A nacionalidade está projetada ali. A esplanada dos ministérios foi pouco a pouco transformada em uma coisa com conteúdo novo. Cheio de poesia, da poesia da humanidade, do homem em busca da sua liberdade, em busca da justiça. Quero filmar isso. Silvio Tendler: Você se sente um autor realizado? Vladimir Carvalho: Não, porque isso seria a morte. Estamos aprendendo todo dia. Todo

dia há algo a aprender, e com humildade, senão você jamais lançará essa luzinha, esse grãozinho de areia no edifício das artes. É preciso estar sempre pesquisando e se desafiando a ir mais longe. Essa viagem é uma coisa que não tem fim.

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Nelson Pereir a dos Santos Cineasta nascido em São Paulo e radicado no Rio de Janeiro, graduou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1953 e iniciou sua trajetória no cinema com o documentário Juventude, de 1950. Seu primeiro longa-metragem, Rio 40 graus, foi lançado em 1955 seguido por Rio Zona Norte, de 1957. Em 1963 adaptou para o cinema a obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, e em 1965 fundou o primeiro curso de cinema do Brasil, na Universidade de Brasília (UNB). Em sua filmografia constam ainda filmes como Como era gostoso o meu francês (1971), Tenda dos milagres (1977) e Jubiabá (1987), adaptados da obra de Jorge Amado, além de mais uma adaptação da obra de Graciliano Ramos, o premiado Memórias do cárcere (1984). Tornou-se, em 2006, o primeiro cineasta a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

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Silvio Tendler: Atualmente você vem se dedicando a trabalhos documentais e se encami-

nha para uma via mais cultural e experimental do cinema documental. Então, como você vê o cinema brasileiro de agora? Nelson Pereira dos Santos: Vejo com muita satisfação o que o cinema brasileiro está fazen-

do, sou muito otimista. É muita gente fazendo cinema. Nos anos 1950/60, conhecíamos todos os diretores, sabíamos quem era quem, conhecíamos todos os fotógrafos, era um número reduzido. Hoje, só na Escola de Cinema da UFF se formam 50 profissionais por ano. É um cinema plural, abarca todas as tendências. Silvio Tendler: Há cursos de cinema inclusive no interior, em São Paulo, em Goiás,

no Nordeste. Nelson Pereira dos Santos: Isso vai dar resultado. Dizem que o Cinema Novo morreu.

Não morreu, não, foi transformado, desenvolvido. Jovens fazem filmes como quando o Cinema Novo começou, outros mais influenciados por outras correntes cinematográficas... O problema de sempre é onde colocar esses filmes. Silvio Tendler: Os cinemas de rua acabaram, viraram igreja, centro de educação física,

banco ou sapataria. Não existe mais cinema no interior, os cinemas hoje são todos dentro de shoppings. Acredito que isso molda o espetáculo que as pessoas querem assistir e vão assistir... São cinemas muito mais voltados para o público infantojuvenil frequentador de shoppings, e não mais para o público em geral que frequentava as salas de cinema e que permitiram o surgimento de filmes como os seus. Lembro do filme Cinema Paradiso, do diretor italiano Giuseppe Tornatore, que faz uma retratação do fim do cinema como um grande espetáculo de massas, popular. Você acha que o cinema de experimentação, o cinema de arte, o cinema cultural, ainda tem espaço hoje? Nelson Pereira dos Santos: Acredito firmemente nisso. Por um lado, está acontecendo o que

você disse, o fim dos cinemas populares, do cinema que o trabalhador que ganha um salário mínimo podia frequentar; por outro, há o barateamento dos meios de produção. Podemos fazer nossos filmes com equipamentos leves, equipamentos de gravação de som, para fazer som direto, e barato. É possível manter a linguagem cinematográfica viva sem precisar pensar naqueles termos hollywoodianos — a gente sempre fez cinema copiando o modelo americano, devíamos ter um estúdio, equipamento, tudo. O neorrealismo, na minha juventude, me influenciou a fazer um cinema fora do estúdio, com o próprio povo, e isso ajudou muito o renascimento das cinematografias do chamado Terceiro Mundo daquela época.

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Silvio Tendler: E em seus filmes, você se preocupa com o público? Nelson Pereira dos Santos: Eu só penso no público. Sempre espero que meus filmes es-

tabeleçam um diálogo. E quando conseguimos isso é tão bom, dá uma satisfação muito grande. Você se lembra de um filme que fiz chamado El justiceiro? Silvio Tendler: Sou fã, com Arduíno Colassanti.70 Nelson Pereira dos Santos: Foi o primeiro filme dele; se baseia em um livro do João

Bethencourt, um grande autor de teatro. El justiceiro, com um português espanholado, nem português, nem espanhol. Foi feito pela Condor Filmes, uma distribuidora de filmes estrangeiros. Passou primeiro pela censura, era o ano de 1966, já havia dois anos de ditadura militar. E a censura foi rigorosa, mandou cortar muito do diálogo, usavam-se expressões bem chulas, do besteirol, em momentos engraçados que conservei do livro do João Bethencourt e coloquei isso no filme. No lugar de cortar, apaguei a trilha sonora. Então o filme saiu e na hora daquelas falas, ninguém ouvia nada. O filme foi um fracasso, saiu de cartaz. Silvio Tendler: Eu fui um dos espectadores. Nelson Pereira dos Santos: Foi um dos poucos que foram ver o filme. Em 1968, quando

estava passando em Belém do Pará, foi apreendido pelo exército. Um dos personagens do filme é um general que ficou muito rico, como dizia o filho dele, Arduíno no papel de playboy rico, “meu pai soube ganhar a vida, ele tem uma companhia de navegação”. Os militares se sentiram ofendidos, apreenderam o filme e fizeram pressão na censura para saber quem tinha dado a liberação. E, finalmente, ele foi destruído. A censura foi ao laboratório, pegou os negativos e destruiu. Tive sorte porque tinha uma cópia 16 milímetros na Itália, no Festival de Trieste, que foi repatriada e com ela partimos para a restauração. Nós tínhamos a cópia 35 mm e restauramos o som, perfeito em todos os seus diálogos, porque eu apagava na cópia, não no negativo. Tudo ficou excelente, embora tecnicamente, fotograficamente, o filme deixe a desejar, já que a matriz passou a ser uma cópia 16 mm, e dessa cópia gerou-se um negativo de 35 mm. Mas depois de o filme restaurado, fiz uma sessão para o Festival de Cinema da Universidade Federal Fluminense com um público jovem, com o qual se estabeleceu um diálogo muito interessante. Eu me senti feliz, realizado. Quando o filme saiu, a crítica nem tomou conhecimento, 70 Arduíno Colassanti (1936), ator italiano radicado no Brasil, conhecido como o galã do Cinema Novo, atuou em várias produções de Nelson Pereira dos Santos, como nos filmes Como era gostoso o meu francês (1971) e Memórias do cárcere (1984).

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achou uma porcaria. Ele foi proibido, sumiu, reapareceu e então restabeleceu um contato que foi bastante favorável. Silvio Tendler: Lembro que era um filme popular e que você nunca teve frescura, podia

fazer Vidas secas e depois El justiceiro, Fogo de amor, Quem é Beta? Você viajava em todas no cinema. Nelson Pereira dos Santos: Estou sempre tentando contar uma história para alguém.

Quando El justiceiro foi um fracasso, eu pensei que tivesse errado a pontaria mas, com o tempo, o diálogo se estabeleceu e fiquei pensando: “Que mistério é esse?”. Conclusão para mim mesmo, e que talvez possa servir a todos os cineastas, e jovens, principalmente: vale a pena acreditar na própria ideia, pois é ela que vai fazer o filme; não ficar submetido a pressões, a modismos. Silvio Tendler: Como a bobagem atual do cinema para o mercado. Avalia-se o filme não

pela importância dele enquanto cinema, mas pela bilheteria. E só conta a bilheteria do shopping. Se você passar seu filme em um auditório lotado, em uma universidade, esse público não conta. Mesmo que haja debate, discussão, o público não é contabilizado; só terá público, para os órgãos oficiais, se passar nas salas de cinema de shoppings. E aí não há estatística que resista à verdade. Mas há também outras coisas que me preocupam. Por exemplo, acho que o cinema argentino dá um banho no nosso. Que abismo existe entre o cinema brasileiro e o cinema argentino? Nelson Pereira dos Santos: É preciso pensar a respeito com muito interesse. Por que a

diferença? Por que só o cinema argentino ganha Oscar? Por que só o argentino viaja bem, tem todas as condições de ser conhecido e representar a cultura argentina no mundo todo, entre seus vizinhos e fora da América Latina também? É porque o cinema argentino adotou a política do cinema de autor, como é a política do cinema francês, coisa que aqui foi rejeitada. Não sei por que razão, mas o princípio de que o cinema é uma indústria, que precisa ter mercado, que precisa recuperar o dinheiro investido e mais o lucro, está vigorando aqui, enquanto que os argentinos, sabiamente, mantêm o mercado que exibe o filme, o serviço, e também investem em um cinema representativo da cultura argentina, que é o cinema que contará para as novas gerações o que aconteceu antes, o passado histórico e social. Silvio Tendler: Ao longo de sua experiência, que abarca várias gerações, você já conheceu ou

sonha com algum esquema melhor de produção, desatrelado dos funcionários do Estado?

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Nelson Pereira dos Santos: Por um lado, essa combinação é necessária porque é preciso

que o Estado possa subsidiariamente manter viva a indústria cultural do cinema. Essa é uma função do Estado. Por outro lado, o Estado paga toda a conta e há quem reclame, dizendo que primeiro precisa pensar nos cidadãos que passam fome e depois no cinema, tomando o cinema como uma brincadeira de jovens estudantes. Essa questão é permanente no Brasil. O cinema argentino está reproduzindo o modelo francês que existe desde 1947. Os franceses consideram a produção cinematográfica tão importante quanto a língua francesa. Tudo o que eles fazem para manter a francofonia, fazem para manter o cinema francês vivo: investem. São 150 filmes por ano produzidos direta ou indiretamente, com dinheiro público. Seja por meio das televisões públicas, seja por meio do Centro Nacional de Cinema, a produção francesa é basicamente montada à custa do dinheiro público. E os filmes franceses no mercado francês de cinema não chegam a ocupar 50%. Eles não se incomodam com isso. Na França, tanto os partidos da direita quanto os da esquerda ficam solidários quando se fala no cinema francês, quando se fala da francofonia. E por que um cinema autoral? Porque trata-se de uma atividade de criação que depende de alguém que pensa, que se dedica àquilo, é o poeta que tem que inventar. Se o Estado interferir nisso não há a possibilidade de o homem conhecer a si mesmo. Imagine se toda a literatura fosse produzida pelo Estado, se toda a poesia fosse do Estado! Daí a permanência do autor e o respeito ao autor. Ele é quem vai dizer o que pensa, quem vai entrar na competição e quem deve ter toda a liberdade de fazer chanchada, filme puramente imitando programas humorísticos da televisão, filmes policiais... Cada um escolhe seu caminho. Ao mesmo tempo existem os Godard da vida, que querem fazer outra coisa. Silvio Tendler: Que querem mexer com a linguagem. Se você não mexe com a linguagem,

a arte não evolui, estaciona. Os Godard da vida são tão fundamentais no cinema quanto os Tarantino. O cinema abarca todos os públicos, todos os gostos. Nelson Pereira dos Santos: É verdade. Silvio Tendler: Consumir cultura no Brasil é muito caro, as pessoas recebem dinheiro das

Leis de Incentivo e depois cobram 50 reais, 60 reais pelo ingresso de teatro. Um livro não paga um centavo de imposto e é caro. Não devia haver uma contrapartida maior dos que se beneficiam das leis fiscais, para devolver um pouco ao Estado ou ao povo aquilo que eles recebem?

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Nelson Pereira dos Santos: No caso do livro, existe um intermediário, o distribuidor, que

não é nem o autor nem o editor, e que fica com 50%. É um sistema colonial ainda, como o é o do cinema. Paulo Emílio disse isto há 50 anos: a situação do cinema brasileiro é uma situação colonial. Quantas salas de cinema temos no Brasil? Algo em torno de 2.500. Quantos filmes o Brasil importa? Quinhentos por ano. Você vê o playtime, o tempo de exibição dos filmes, vê se sobra algum tempo fora desse cinema importado. Silvio Tendler: O cinema brasileiro está em uma situação surrealista. Dos 365 dias do ano,

28 são reservados para o cinema brasileiro. O resto é cinema americano, que tem reserva de mercado. Nelson Pereira dos Santos: Exatamente. E como é que se pode pagar uma produção de,

mais ou menos, 60 filmes por ano, com apenas 28 dias de exibição garantidos? Silvio Tendler: E 14 títulos por cinema. Mas os filmes não passam nas cinco sessões do dia.

Nossos filmes, documentários, se apresentam uma, duas vezes por dia, ou seja, com uma sessão de exibição cumpriu-se a lei. Nelson Pereira dos Santos: E quantos filmes um canal de televisão tem por ano? 1.500. Des-

ses 1.500, quantos brasileiros? No máximo 10, ou 12 e em canais abertos. Os canais fechados, com exceção do canal Brasil, são dedicados a filmes estrangeiros. O espaço que sobrou para o cinema brasileiro é o do video home, uma espécie de livraria. O filme em DVD passa a ser algo equivalente a um livro, você pode levar para casa, ver aos pedaços, rever, como um bom livro. É a única possibilidade mercadológica de existência para o cinema brasileiro. Silvio Tendler: Passar filmes na escola ajuda? Atrapalha? Nelson Pereira dos Santos: Ajudaria muito. Silvio Tendler: O Ministério da Educação (MEC) deveria colocar as pessoas para ver o ci-

nema brasileiro, descobrir outras linguagens, outras narrativas, outras maneiras de contar que não aquela do formulário padrão estabelecido pelos lugares comuns de Hollywood. Não que Hollywood não tenha bons filmes, mas o problema é que as pessoas estão acostumadas a consumi-lo tão somente. Você conversa sobre cinema com seus colegas da Academia Brasileira de Letras? Eles se empenhariam nessa luta? Nelson Pereira dos Santos: Sempre. Temos um prêmio anual de cinema para melhor

roteiro com base em obra literária brasileira, temos o Cineclube toda sexta-feira. A aca-

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demia tem um público conservador, pessoas de meia-idade para cima, interessadas em literatura. Tudo o que diz respeito à literatura, seja palestra, filme, música, tem interesse para esse público. Ao mesmo tempo, há um público jovem de outras áreas, de comunidades da periferia e de dentro do Rio que também frequenta o espaço. É curioso o contraste no debate depois dos filmes, esses dois públicos misturando suas ideias, combinando ou descombinando. É uma boa experiência. Exibimos um filme de Sérgio Bianchi, são histórias paralelas do passado e do presente, uma delas é de Machado de Assis, uma escrava que está grávida foge e o feitor vai buscá-la, e o debate foi muito interessante; de um lado havia ainda uma culpabilidade, e do outro uma agressividade; ninguém falou do filme, ninguém falou de Machado de Assis. Todos falavam sobre como a escravidão marcou nossa civilização, nossa cultura... Silvio Tendler: Você tem um trabalho sobre isso, Casa-grande & senzala... Nelson Pereira dos Santos: É, de Gilberto Freyre. Fiz esse filme com um professor de Re-

cife, ele sempre contando o livro. E de Machado de Assis tem também a história da Missa do galo. E Azyllo muito louco, de O alienista, ambos dos anos 1970. Silvio Tendler: Vamos voltar à questão das linguagens que você inventou, criou, trouxe

para o Brasil. Começando por Rio 40 graus, dos anos 1950, no qual você traz a linguagem do neorrealismo. Você monta um esquema alternativo de vida, todo mundo mora no mesmo apartamento, junta a classe média que você representa, com o Zé Keti.71 Conta um pouco dessa história, dessa simbiose que seria seminal. Nelson Pereira dos Santos: Sou daquela geração que conheceu o grande sucesso da

revolução do neorrealismo italiano. É difícil contar hoje, mas imagine que só víamos cinema americano, aqueles filmes corretíssimos, bem-feitinhos, o som, o grande autor, John Ford foi o maior de todos. Era nossa escola, visualmente falando. E de repente aparece o cinema italiano (naquele tempo eu era paulista). Estou falando de 1946, o primeiro filme que apareceu no Brasil não era ainda o dos grandes autores, mas já fez uma diferença brutal. O que era o neorrealismo? Era filmar o povo, filmar na rua, filmar sem ator profissional, fazer aquele registro do cotidiano com um viés político, falando de um povo oprimido pelo fascismo. Isso influenciou muito o mundo inteiro. José Flores de Jesus (1921-1999), conhecido como Zé Kéti, foi um compositor e cantor carioca, autor de sambas como Acender as velas e Diz que fui por aí, entre outros. Em 1964 estrelou ao lado de João do Vale e Nara Leão o musical Opinião, que marcaria a criação do Grupo Opinião, foco de resistência à ditadura militar entre os anos 1964 a 1982. Algumas de suas composições fizeram parte de filmes de Nelson Pereira do Santos, como Rio Zona Norte (1957) e Boca de ouro (1962). 71

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Na Índia surgiu o Satyajit Ray, o neorrealista da pesada. Até nos Estados Unidos o cinema neorrealista entrou. Silvio Tendler: Há até um Akira Kurosawa neorrealista. Juventude sem arrependimento é

um filme com a cara de Roma, cidade aberta, do Roberto Rossellini. É a história de um professor contrário ao imperialismo japonês na China, antes da Segunda Guerra Mundial, que é acusado de alta traição. Um dos primeiros filmes de Kurosawa do pósguerra, de 1946. Nelson Pereira dos Santos: Pois é, foi o grande momento, a mudança, e muitos ame-

ricanos deixaram Hollywood, inclusive a Ingrid Bergman, que foi fazer filme com Rossellini. Imagine nós, brasileiros, em São Paulo, vendo aqueles filmes! Roma, cidade aberta mexeu mesmo com nossa cabeça, de repente o cinema não tinha mais o espaço limitado. Em certo sentido o cinema, principalmente o da indústria, é o sucedâneo do teatro, com seu espaço limitado, as três paredes e os espectadores vendo. Ele pode ser feito ao ar livre, mas sempre existem essas três paredes. A história se passa com aquele mesmo grupo de personagens e suas relações entremeadas. O neorrealismo de Rossellini rompeu com esse espaço fechado. O personagem anda para lá e para cá, com outra gente, logo aparece outra história, não tem porta, nem janela. Rio 40 graus é isso, os meninos saem da favela e cada um vai para um lugar, um ponto de turismo, no Rio de Janeiro. Na favela fica a mocinha que tem um namorado ciumento, ela vai receber um amigo, ou aquele que ela prefere, e o namorado ciumento é um malandro, um bandidão, Jece Valadão. Primeiro papel do Jece Valadão na vida. O menino vendedor de amendoim participa de uma história, ou presencia uma história com outros personagens, em outra camada social, com outros interesses. Há o futebol, o dono do time quer vender o craque porque está ficando velho e precisa fazer com que outro jovem apareça, como aconteceu muitas vezes na história do futebol brasileiro. Tem a história de um deputado nordestino que chega ao Rio de Janeiro com um grupo de picaretas porque ele é compadre do ministro. Inclusive, tudo muito atual. E termina com a volta a uma favela, um grande ensaio da escola de samba, com música do compositor e sambista Zé Kéti. Silvio Tendler: Acho que você foi o primeiro a trazer o samba e o sambista para o cinema. Nelson Pereira dos Santos: Em Agulha no palheiro, quando eu fiz assistência de direção

para o Alex Viany, conheci o Artur Vargas Júnior, que era um compositor. Ele foi um

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grande jornalista de O Globo, da sessão de polícia, sabia de tudo, era uma figura fantástica. Virou meu ator, trabalhou em Rio 40 graus, fez o papel do presidente da escola de samba. E foi Vargas Júnior quem me apresentou o Zé Kéti, nunca me esqueço disso, lá no bar Vermelhinho, onde ele cantou, na caixa de fósforo, Eu sou o samba, que depois foi gravada pelo Jorge Goulart, com aquele seu vozeirão de tenor. “Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor”, esse é o tema de Rio 40 graus. A trilha sonora e os arranjos são do Radamés Gnattali.72 Silvio Tendler: Vamos falar de Vidas secas, um filme fundamental do cinema mundial.

Um filme que marca presença até hoje no cinema e na época foi considerado revolucionário. Ele tem uma luz muito diferente, trabalha a imagem de uma maneira muito diferente. Queria que você falasse um pouco desse filme, sua grande obra, com Memórias do cárcere. Sua relação com Graciliano Ramos é mágica, você consegue transpor para a imagem o que ele fez com palavras, uma coisa muito difícil. É muito difícil um filme de adaptação de um livro ser tão bom quanto o livro. Geralmente a literatura fica acima porque o livro incita a pensar, estimula a criação dos personagens e o filme já mostra um rosto, uma imagem, uma situação, o cenário. É diferente. Mas tanto Vidas secas quanto Memórias do cárcere, os filmes, não ficam devendo nada aos livros. Fala um pouco de sua relação com a literatura, com a luz que você usou, com a cadela Baleia. Nelson Pereira dos Santos: É tanta coisa. Há três dias vi a cópia restaurada de Vidas

secas, finalmente conseguimos chegar ao ponto. Chico Moreira73 está fazendo isso há um ano. Ele teve que fazer fotograma por fotograma para o filme voltar a ser o que tinha sido em sua primeira versão. Luiz Carlos Barreto fez a fotografia, observando os preceitos da escola da lente nua de Henri Cartier-Bresson, como observavam os fotojornalistas José Medeiros e Luciano Carneiro, no tempo de O Cruzeiro, uma grande revista de imagens, de fotografias, e Jean Manzon. Foi o fotógrafo Jean Manzon que trouxe Cartier-Bresson ao Brasil, que fez a cabeça dessa juventude. Tentei captar na fotografia a presença daquela luz que revela um espaço de onde não chove, ali você não pode ver nuvem, aquele céu quase branco. A fotografia era em preto e branco, 72 Radamés Gnattali (1906-1988), compositor de música de concerto, arranjador e instrumentista porto-alegrense, desenvolveu uma extensa relação com música popular brasileira atuando na extinta rádio Nacional, compondo também trilhas para cinema e programas televisivos. 73 Francisco Sérgio Moreira é coordenador do Núcleo de Restauração da Labocine e foi curador de preservação da Cinemateca do MAM no Rio de Janeiro por 20 anos. É responsável pela restauração de filmes como Menino de engenho (1965), de Walter Lima Jr., e O país de São Saruê (1970), de Vladimir Carvalho, entre outros.

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não tinha cor ainda. Barreto e eu fizemos uns testes e saímos para filmar com uma câmera Arriflex. Os primeiros negativos que mandamos para o laboratório foram severamente criticados pelo técnico, Seu Ferreira naquele tempo, ele dizia que estava tudo estourado, que a luz estava muito forte, que tinha que corrigir na revelação e ele estragava nosso trabalho. Ele não podia, não devia corrigir. Foi uma briga que demorou algum tempo, até que ele desistiu. O negativo usado era aquele plus-x 125 da Kodak, maravilhoso, sem asa, não tinha luz nenhuma (a não ser no momento de um reisado, à noite, uma coisa rápida, que tinha um pouco de luz artificial), mas o resto era sempre com luz ambiente, a luz verdadeira. Trabalhava-se no limite. E qual é o princípio da lente nua? Quando eu fazia Mandacaru vermelho, seguia a escola mexicana, do fotógrafo Gabriel Figueroa: quando há muita luz, usa-se um filtro amarelo, que corta 50%, e ilumina-se o primeiro plano com aqueles arcos voltaicos, que fazem a luz artificial equivaler à luz do sol. Nós, que não tínhamos dinheiro, usávamos um rebatedor, ou seja, um pedaço de madeira com papel-alumínio, que fazia a luz bater no olho do ator e ele não conseguia abrir os olhos. Complicado. Em Vidas secas decidi tirar o filtro, tirar o rebatedor, tudo. Lá embaixo estava estourando o fotômetro, a luz era muito forte e em primeiro plano a Maria Ribeiro, não se via o rosto dela, a luz predominante era a luz do rosto. Entre o primeiro plano e o infinito, evidentemente, aparecia uma coisa maravilhosa, a caatinga, aquele trançado que tem todas as gamas de preto e de branco, são cinzas maravilhosos. Essa era a ideia da fotografia, só que o laboratório queria corrigir. Depois conseguimos fazer, em Cannes, quando o filme foi para o festival. Foi realmente a grande revelação do cinema independente, um filme cuja fotografia está integrada na linguagem. Silvio Tendler: Vamos falar de um assunto no qual você é craque, adaptação de literatura

para cinema. Nelson Pereira dos Santos: São duas linguagens diferentes. A linguagem da palavra é

poderosíssima. A palavra sugere muito mais, enquanto o cinema narrativo trabalha com o concreto, é preciso contar a história com imagens. Quando falo do Fabiano, de Vidas secas, no cinema, tenho que mostrar um homem com chapéu de couro, com a roupa adequada e que fala de um determinado jeito. Devo, com aquele personagem, tentar satisfazer o mais possível o espectador. Com meus elementares meios, tenho que fazer a cena produzir no espectador um sentimento, provocar nele a ideia que o livro provocou antes. Usar uma linguagem pobre, restrita, para construir uma cena que nem

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sempre está descrita no livro, mas apenas insinuada. Em Vidas secas não existe uma descrição de Graciliano que diga como Fabiano, o herói, é caracterizado. Nem Vitória, não tem nenhuma descrição inequívoca do personagem, só traços, ideias dadas en passant. Quem me deu grandes luzes foi o filho do Graciliano, Ricardo Ramos, que teria a mesma idade que eu se ainda fosse vivo, me deu aulas e aulas de como é que o pai criava. Vitória tem uma ascendência negra e Fabiano, dolicocéfala, do português do norte que migrou para a área da criação de gado, o português branco. Aquele Fabiano é burro, só sabe pegar o boi, derrubar e ferrar, enquanto Vitória sabe fazer contas, sabe das coisas, sabe quando vai chover, tem inteligência, conhecimento, sabe o que quer. Por que Graciliano fez isso? Porque escreveu esse livro nos anos 1930, quando todas as teorias racistas eram muito difundidas no Brasil, quando havia um grande debate e ele quis usar sua arte para participar dos acontecimentos sociais, por isso o branquinho dolicocéfalo é conduzido pela mulata do sertão. Outra dificuldade básica: o livro não tem limite de tempo. No cinema somos limitados pelo tempo do espetáculo. Você pode ter um filme de duas horas, mas já perdeu público, o exibidor não quer. Como no teatro, que é dividido em atos por causa da duração da vela, era o tempo que se tinha enquanto a vela que iluminava o palco queimava; 60, 40 ou 30 minutos. No cinema também temos essa limitação exterior, o filme deve ter 90 minutos, 120, no máximo. Vidas secas tem 100 minutos. Silvio Tendler: E como é que esse jovem bem-pensante, advogado paulista, descobriu

a fome e a miséria? Nelson Pereira dos Santos: Meu pai era um caboclo do interior de São Paulo, alfaiate,

minha mãe era filha de imigrantes italianos do Vale do Paraíba e morávamos em São Paulo, no Bexiga. Rio 40 graus é fruto do neorrealismo, aquele que eu consegui fazer dentro do meu conhecimento, da minha origem. Não tem nenhum preconceito. Meus padrinhos de batismo são negros. Vivi em São Paulo, a favela era, ou ainda é, horizontal. No Rio é vertical, vi um filme ali e fui trabalhando, fui construindo a história. Evidentemente com muita influência de Jorge Amado. Em Rio 40 graus você sente os meninos do Jorge Amado, de Capitães de areia, do próprio Jubiabá que depois eu iria fazer também. Tem a realização social, a grande diferença dos meninos sem pai nem mãe, sem família, criados na rua. Silvio Tendler: Mas como é que você chegou a Vidas secas?

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Nelson Pereira dos Santos: Em Rio 40 graus eu já tinha filmado a favela e depois em Rio

Zona Norte e também fui trabalhar com o documentarista Isaac Rozenberg,74 fazendo documentários. Em 1958 fui fazer um documentário no Nordeste, filmei a chamada “seca do Juscelino”, e lá vi os flagelados. Foi quando tive a ideia de fazer um filme sobre a seca e comecei a escrever roteiros, que não gostava. O livro que me servia para consultas era Vidas secas, de Graciliano. Um dia percebi que o filme já estava escrito, bastaria colocar o livro de Graciliano em celuloide para fazê-lo. Fui para Juazeiro da Bahia filmar Vidas secas, mas quando cheguei choveu muito e era impossível fazer, a caatinga estava verde, cheia de poças, piscinas. Foi uma chuva daquelas. Então inventei outro filme, Mandacaru vermelho. No comportamento padrão de produção, quando acaba a edição e a montagem do filme, chama-se o maestro para colocar a música. Depois de toda a experiência de Mandacaru vermelho e de Vidas secas, o montador Rafael Justo Valverde e um dos produtores, Herbert Richards, começaram a me perguntar: “Nelson, e a música? Vamos chamar o maestro?” E eu pensava e não via a música, não via orquestra para aquele espaço da caatinga, aquela coisa minimalista, como é que teria som? Culturalmente é estranho, não cabe uma orquestra europeia na caatinga. Com uma música simples ficaria folclórico demais... Mas eu tinha a gravação do carro de boi; Geraldo José, um técnico de som que sempre fez o som de salão, a sonoplastia, gravou o carro de boi de longe, de perto, de cima, de baixo... Experimentei abrir o filme com esse som. É uma orquestra incrível, completamente diferente. Como tínhamos também gravado os ruídos, os sons da caatinga, do espaço, a chuva, o barulho da água, o plano sedutor daquele espaço, o vento, o deslocar de bichos, de aves, o gado passando, o mugido, isso virou a música do filme. No meio do filme, quando chega o carro de boi, todo mundo entende que o som de abertura é aquele, o que sai da roda daquele carro, e no final, o som do carro de boi outra vez. Em Memórias do cárcere, um filme de três horas, só tem o hino nacional. A adaptação de Memórias do cárcere é uma experiência interessante. O livro é todo em primeira pessoa; Vidas secas é em terceira pessoa; nesse caso o escritor, o autor, está fora e é quem conta a história, e conta até o que acontece na cabeça da cadela. Ele tem esse poder, como é o autor, inventa o que quiser. Quando o narrador é o próprio personagem, primeira pessoa, ele está limitado. Não dá para fazer um filme só com câmera subjetiva. O próprio Graciliano diz no Isaac Rozenberg (1913-1983) – romeno radicado no Brasil iniciou a sua carreira nos estúdios da Cinédia. Produziu, em sua maioria, cinejornais e documentários por encomenda, especialmente para o governo, tendo registrado ações do governo Vargas e participado dos primeiros registros de Brasília, além de produzir inúmeros documentários para a administração militar, durante o período da ditadura.

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começo das Memórias, como, aliás, também em São Bernardo, só que com a intermediação de um personagem que não é o próprio autor: “Eu vou contar minha história segundo meu ponto de vista, mas prometo que vou me esconder atrás desse pronome antipático ‘eu’, primeira pessoa do singular, para melhor mostrar, observar, os outros.” A jogada está aí, Graciliano está presente em todas as cenas do filme. E, de mil personagens, passei para cento e poucos, um critério bastante discutível, mas tinha que ter uma solução e achei que essa seria a possível. Os nomes históricos foram conservados, evidentemente o dele, o de Luís Carlos Prestes que aparece no comentário, o do advogado, Sobral Pinto, o da mulher, dona Heloísa Ramos, o de Nise da Silveira. Assim mesmo o filme ficou comprido, ficou com três horas e sete minutos. Silvio Tendler: É um belo filme. Um épico. Lindo. Foi um dos grandes sucessos de 1984.

Você fez Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, e agora você está fazendo dois filmes sobre Tom Jobim. Por que Tom Jobim? Nelson Pereira dos Santos: Ora, Tom tem sempre uma boa relação. Eu fiz um programa

na TV Manchete em 1985, A música segundo Tom Jobim. Quatro episódios de uma hora, com Tom na casa dele recebendo os amigos e contando a história da música popular brasileira, especialmente a carioca. O outro Tom Jobim é a música do Tom Jobim. Estou buscando a imagem e o som nos arquivos das televisões do mundo inteiro, suas gravações, seus intérpretes, orquestras. É um filme de montagem. Não se fala mais montagem, é edição.


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in TeR LOCU TORES C o n v e r s a sobre as a r t e s


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PAULO SÉRGIO DUARTE

Pará. É mestre em Teoria da Literatura e Semiótica,

Paraibano nascido em João Pessoa no ano de 1946,

PUC/Unicamp, São Paulo e doutor em Sociologia

é crítico, professor de história da arte, pesquisador

da Cultura pela Sorbonne, Paris, França.

do Centro de Estudos Sociais Aplicados (Cesap) e diretor do Centro Cultural Candido Mendes, ambos da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Também é membro do Conselho de Curadores do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), em São Paulo.

Sua obra poética é construída a partir de signos do mundo amazônico – cultura, história, imaginário – propiciando uma particular leitura do mundo contemporâneo. Entre seus trabalhos literários estão o livro de poesia Cantares amazônicos-porantim, Deslendário, Altar em chamas (1985) e O romance das três

Realizou a curadoria de exposições coletivas

flautas (1987). Em seus trabalhos mais recentes, des-

e individuais de diferentes portes. Entre essas

tacam-se o romance Café Central – O tempo submerso

experiências, projetou e implantou o progra-

nos espelhos (2011), Da cor do norte – Brinquedos de mi-

ma Espaço Arte Brasileira Contemporânea, da

riti (2012), A conversão semiótica – Na arte e na cultura

Fundação Nacional de Artes (Funarte) (1979-

(2007), Obras reunidas, em quatro volumes (2000),

1983), e foi também o primeiro diretor geral do

Do coração e suas amarras (2001) e o texto teatral “Pás-

Paço Imperial (Iphan) (1986-1990), responsável

saros da terra” (1999).

pela sua implantação como um centro cultural. Além disso, lecionou Estética e História da Arte na Universidade Federal da Paraíba, História da Arte Moderna na PUC-Rio, na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Lage) e na Universidade Candido Mendes. Publicou os livros Anos 60 – Transformações da arte no Brasil (1998), Waltercio Caldas (2001), Carlos Vergara (2003), A trilha da trama e outros estudos sobre arte (2009), Arte Brasileira Contemporânea – um prelúdio (2008) e textos sobre arte moderna e contemporânea em livros, catálogos de exposições, jornais e revistas. Paulo Sérgio Duarte é interlocutor na área de Artes Plásticas, do programa televisivo Conversa sobre as artes, criado e produzido pelo Departamento Nacional do Sesc desde 2010.

Paes Loureiro é interlocutor da área de Literatura, do programa televisivo Conversa sobre as artes, criado e produzido pelo Departamento Nacional do Sesc desde 2010. LUIZ ANTÔNIO AFONSO GIANI Nascido no ano de 1943 em Sacramento, Minas Gerais, é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1966. Graduado em música/piano pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1976. Mestre em Sociologia, pela Universidade Estadual de Campinas (1985) e doutor em História, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Assis/1999). Em suas experiências musicais registram-se a participação como pianista em diversas obras de música contemporânea brasileira, de compositores

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO

como Jorge Antunes e Ricardo Tacuchian,

O poeta e romancista paraense, nascido na cida-

entre outros. Ainda criou o projeto de ensino

de de Abaetetuba em 1939, é também professor de

profissionalizante Curso Técnico em Música - 2º

Poética das Artes, Estética e Imaginário na Comu-

grau (1992) e a série Concertos populares, de música

nicação, Filosofia do Teatro, Filosofia da Dança e

camerística (instrumental/vocal), na Universidade

Cultura Amazônica, na Universidade Federal do

Estadual de Maringá.

Interlocutores


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No campo da sociologia e antropologia, publicou

jeto Palco Giratório, do Departamento Nacional do

livros didáticos, além de ser professor em diversos

Sesc durante os anos de 1998 a 2007. Atualmente é

cursos de extensão e especialização, ministrando

assessor de Cultura da Escola Sesc de Ensino Médio.

disciplinas como: geografia e história em canção, linguagem musical e comunicação social, a inserção da música na disciplina Arte, entre outras. Atualmente é professor de Teoria Crítica da

Sidnei Cruz é interlocutor de Teatro, do programa televisivo Conversa sobre as artes, criado e produzido pelo Departamento Nacional do Sesc desde 2010.

Sociedade, no Programa de Pós-Graduação em

SILVIO TENDLER

Ciências Sociais - Mestrado, da Universidade Es-

Cineasta carioca nascido em 1950, é licenciado em

tadual de Maringá.

História pela Universidade de Paris, mestre em Ci-

Luiz Giani é interlocutor na área de Música, do programa televisivo Conversa sobre as artes, criado e produzido pelo Departamento Nacional do Sesc desde 2010.

nema e História pela École des Hautes-Études/Sorbonne, especialista em Cinema Documental aplicado às Ciências Sociais no Musée Guimet, membro fundador da Fundação Novo Cine Latino-Americano e do Comitê de Cineastas da América Latina, Presidente

SIDNEI CRUZ

da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro e da

Mineiro da cidade de Manhaçu, é bacharel em

Associação Brasileira de Cineastas, tornando-se, em

Artes Cênicas pela Unirio. É dramaturgo, ence-

1979, professor do Departamento de Comunicação

nador, gestor cultural e mestre em Bens Culturais

Social da PUC-RJ.

e Projetos Sociais, atuando também como consultor, curador, palestrante, e debatedor em diversos festivais de cultura em todo o país. Há 28 anos no exercício profissional teatral, dirigiu textos de autores como Albert Camus, Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna, entre outros e adaptou textos para o teatro como “Frankstein” (Mary Shelley), “Um sorriso ao pé da escada” (Henry Miller), “Paixões” (Contos de Machado de Assis). Como

A sua cinematografia conta, entre outros, com filmes como: Tancredo, a travessia (longa-metragem – 110 min/2011), Utopia e barbárie (longa-metragem – 120 min/2009), Glauber, o Filme, Labirinto do Brasil (documentário – 90 min/2003), JK – O menino que sonhou um país (documentário – 50 min/2002), Jango: Filme (longa-metragem histórico – 35 mm – 117 min/1984).

dramaturgo é autor de textos como “Tupy or not

Criou, em 1981, a Caliban Produções Cinemato-

Tupy?” e “As aventuras do Barão de Langsdorff ”,

gráficas, onde produziu e dirigiu 31 filmes, entre

entre outros.

curtas, médias e longas-metragens em formato do-

De suas publicações destacam-se, dentre muitas, o texto teatral Onde você estava quando eu acordei? (2012), o artigo Desenvolvimento cultural local: uma

cumental. Possui um acervo volumoso de imagens, com cerca de cinco mil títulos, sobre a História do Brasil dos últimos 30 anos.

relação entre capital social e gestão cultural (2011) e o

Silvio Tendler é interlocutor na área de Cinema, do

livro Palco Giratório: a difusão caleidoscópica das artes

programa televisivo Conversa sobre as artes, criado

cênicas (2009).

e produzido pelo Departamento Nacional do Sesc

Entre suas encenações recentes destacam-se O Auto da Compadecida (2012), O beco do Bandeira (2011) e Relicário (2010). Foi criador e coordenador do Pro-

C o n v e r s a sobre as a r t e s

desde 2010.


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