SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
Rio de Janeiro, 2009 1ª edição
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Departamento Nacional Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos Direção-Geral Maron Emile Abi-Abib Divisão Administrativa e Financeira João Carlos Gomes Roldão Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Luís Fernando de Mello Costa Divisão de Programas Sociais Álvaro de Melo Salmito Consultoria da Direção-Geral Juvenal Ferreira Fortes Filho Gerência de Cultura / Divisão de Programas Sociais Marcia Leite Assessoria de Cinema Nadia Moreno Rodrigues Marco Aurélio Lopes Fialho
EMBAIXADA DA FRANÇA NO BRASIL Embaixador da França no Brasil Antoine Pouillieute Serviço de Cooperação e Ação Cultural da Embaixada da França Pierre Colombier, Conselheiro de Cooperação e Ação Cultural Serviço Audiovisual da Embaixada da França Brigitte Veyne, Adida Audiovisual Thomas Sparfel, Assessor Audiovisual Serge Noukoué, Assessor Audiovisual Cinemateca da Embaixada da França Catherine Faudry, Responsável da Cinemateca
O ANO DA FRANÇA NO BRASIL - FRANÇA.BR 2009 Presidência do Comissariado brasileiro Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do SESC São Paulo Comissário-geral brasileiro Embaixador Roberto Soares de Oliveira Presidência do Comissariado Francês Yves Saint-Geours, Embaixador, Presidente do Grand Palais de Paris Comissária-geral francesa Conselheira Anne Louyot
Projeto Mostra do Cinema Francês Contemporâneo Coordenação Nadia Moreno Brigitte Veyne Curadoria Cahiers du Cinéma Jean-Michel Frodon, Diretor de redação dos Cahiers du cinéma (até junho de 2009) Produção Nadia Moreno Thomas Sparfel Edição Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geral Christiane Caetano Coordenação editorial Rosane Carneiro Editora Christiane Abade Projeto gráfico Vinicius Borges Revisão Alexandre Rodrigues Alves Selma Monteiro Correia Tradução textos Katia Chalita
Quando a cultura, em suas vastas potencialidades, evolve para o intercâmbio diplomático, político e econômico, o resultado é apreendido de forma mais abrangente, alcançando toda a sociedade, gerando novas realidades para seu cotidiano. A arte cinematográfica naturalmente cumpre este pendor, ao aproximar as culturas dos povos. O Serviço Social do Comércio – em sua missão de fomentar novas sensibilidades e possibilitar ao ser humano a transcendência de sua formação original – endossa tal princípio, ao integrar por meio do cinema o Ano Internacional da França no Brasil. Com orgulho o SESC assume participação relevante nesta plataforma de estreitamento das relações entre os dois países, notadamente possuidores de afinidades históricas. Dentre as muitas artes integrantes do projeto, todas desenvolvidas pela Entidade como instrumentos do desenvolvimento social, a produção artística fílmica configura escolha de destaque para esta memorável parceria, que surge para enriquecer o diálogo entre brasileiros e franceses.
Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do SESC
Se o SESC é do tamanho do Brasil, percepção notoriamente popular, que dirá se no país couber, de modo equivalente, toda a singularidade francesa. Teremos, por conseguinte, enorme riqueza: a concretização ampliada de um parentesco nascido ao longo dos tempos, extensivo a diversos campos da identidade nacional: artes, economia, política, educação. Ao promover a Mostra do Cinema Francês Contemporâneo, em parceria com a Embaixada da França, a Entidade expande, para os cidadãos brasileiros, visões novas de tal empatia – por intermédio da divulgação de oito recentes e premiadas produções do cinema francês. Com esta iniciativa, a instituição intenta levar ao público questões da contemporaneidade francesa, configurando, em tempos de globalização, mais um caminho para a compreensão das nacionalidades, via das mais fundamentais para o crescimento social. O cinema, desta forma, satisfaz novamente nossos propósitos, como veículo eleito pelo SESC desde suas origens para o exercício de sua missão educativa, em prol de pessoas de diversas classes sociais residentes nas grandes capitais e nos rincões mais distantes do território nacional.
Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
O ano de 2009 marca os 50 anos da Nouvelle Vague, que teve nos Cahiers du Cinéma seu espaço de expressão. A partir de agora, essa revolução cinematográfica pertence à História. Os oito filmes da Mostra do Cinema Francês Contemporâneo não se parecem com os filmes da Nouvelle Vague: são filmes de hoje, filmes dos anos 2000. No entanto, todos poderão perceber que a energia, a audácia formal, a aventura narrativa, a disponibilidade para novas fisionomias e novos corpos, a crença na força do documentário, o jogar com diferentes gêneros de cinema, a alegria de filmar – todas características da Nouvelle Vague – se encontram ao longo deste programa. De Benoît Jacquot, que retoma a bandeira da Nouvelle Vague no início dos anos 1970, à bem jovem e muito talentosa Mia Hansen-Løve, três gerações aqui testemunham a vitalidade do cinema francês atual. Rabah Ameur-Zaïmeche e Abdellatif Kechiche encarnam a importância decisiva da contribuição dos jovens autores oriundos da imigração e estão, hoje, entre os cineastas franceses de primeira linha. Do cantante La France ao noir Meurtrières, do documentário intimista e capaz de questionar o século Retour en Normandie ao drama vibrante de Le dernier des fous, as tonalidades são tão variadas quanto os territórios e épocas evocados. Essa diversidade de estilos e de temas responde à exigência, cada vez maior, de um desejo de cinema, de um impulso em direção aos personagens, aos espaços, às ideias. Contra a tendência dominante de formatação, que leva a filmar tudo da mesma maneira para se adequar a uma grade de programação industrial, a arte do cinema encontra aqui seu jorro impetuoso, que está na agilidade e na sensualidade de Isild Le Besco, a heroína de A tout de suite; na escuta atenta e solidária de Nicolas Philibert; nos três jovens intérpretes de Tout est pardonné; ou ainda, de forma tão diferente, em L’esquive; na inteligência das situações trágicas que assombram Bled Number One; nas vertigens de Le dernier des fous e nas de Meurtrières. Assim, sem se repetir e, sobretudo, não buscando imitar seus antecessores, o espírito da Nouvelle Vague permanece bem vivo.
Jean-Michel Frodon Diretor de Redação dos Cahiers du Cinéma (até junho de 2009)
Uma das prioridades do Ano da França no Brasil, que acontece de 21 de abril a 15 de novembro de 2009, é mostrar uma França moderna, aberta e diversificada, através de projetos desenvolvidos em colaboração entre instituições brasileiras e francesas. Mais de 600 eventos, em todos os campos, foram assim chancelados e são apresentados ao público brasileiro durante esse ano excepcional. O SESC Nacional foi um dos primeiros parceiros a mostrar interesse em participar dessa festa da cultura francesa no Brasil. Trabalhamos juntos para a organização desta Mostra do Cinema Francês Contemporâneo e ficamos felizes de poder apresentar em 231 locais de difusão audiovisual do SESC uma seleção de oito filmes feita pelos Cahiers du Cinéma. Esta Mostra traz um resumo do que é hoje o cinema na França. Um cinema moderno, aberto, diversificado e talentoso, à imagem de seus realizadores atuais, de várias gerações, que são Rabah Ameur-Zaïmeche, Serge Bozon, Mia Hansen-Løve, Laurent Achard, Abdellatif Kechiche, Benoît Jacquot, Nicolas Philibert e Patrick Grandperret. Como complemento aos filmes, os Cahiers du Cinéma, aliás, concordaram em colocar à disposição do público os artigos publicados na revista, fornecendo, assim, uma mostra da reflexão crítica sobre o cinema francês. Este projeto continuará a existir mesmo após o término das celebrações do Ano da França no Brasil. De fato, esses filmes continuarão disponíveis em cada um dos pontos de difusão audiovisual do SESC. Graças à rede fora do comum dos centros culturais SESC espalhados pelo país, esta Mostra do Cinema Francês Contemporâneo poderá ser apresentada em todo o Brasil, fora até dos circuitos tradicionais de programação cultural das grandes cidades brasileiras. Todos esses elementos fazem da Mostra do Cinema Francês Contemporâneo um dos projetos mais importantes da programação audiovisual do Ano da França no Brasil. Esperamos, pois, que esta iniciativa contribua ainda mais para consolidar a presença do cinema francês no Brasil e faça com que o público brasileiro deseje descobrir ou redescobrir a nossa cinematografia.
Antoine Pouillieute Embaixador da França no Brasil
Em 2005, a França acolheu o Brasil, com grande prazer e imenso sucesso; foi um Brésil-Brésils múltiplo, enraizado no presente e na modernidade sem nada perder de sua influência sobre o imaginário. Em 2009, o Brasil abre generosamente suas portas à França. Algumas centenas de eventos estão sendo organizados por todo o país, em todas as áreas, refletindo uma sede de se compreender, de trabalhar, de criar juntos, de pôr em prática a parceria estratégica entre os dois países. Mas qual França o Brasil vai receber? Uma França orgulhosa de sua memória, evidentemente, uma memória viva que ela gosta de partilhar bem além de suas fronteiras. O Brasil, aliás, na sua alegre antropofagia, nutriu-se da França ao longo de toda a sua história, digerindo-a e metamorfoseando-a à sua maneira. Desse apetite que os países têm, um pelo outro, resulta o desejo de reencontrar as ideias, as imagens, os sabores, para prolongar o prazer de se conhecer e de se surpreender mutuamente. Mas a ambição do Ano da França no Brasil é também mostrar imagens e proporcionar sensações de uma França diferente, mais contrastante, mais aventureira do que poderíamos imaginar. Uma França que adora provar outras culturas, explorar outros territórios. Uma França que se inquieta e se questiona, em constante mutação, ao ritmo da evolução de sua sociedade, que é tão diversa quanto a sociedade brasileira. Uma França que cria a partir de suas interrogações, contemplando o mundo. Uma França, sobretudo, que olha para o Brasil. Com admiração, humildade, mas sabendo também o que ela ainda pode lhe oferecer. Uma França faminta de Brasil, que desde Jean de Léry até o rapper MC Solaar, passando por Blaise Cendrars e Claude Lévi-Strauss, gosta de se alimentar do Brasil, enriquecendo assim suas reflexões e seus impulsos. O nome deste Ano é França.Br 2009. A França é convidada a percorrer no Brasil os imaginários tão rapidamente quanto nos permitem as navegações na Internet, mas também construindo uma relação forte e ativa, permitindo que os franceses e os brasileiros atuem em conjunto no mundo.
Yves Saint-Geours Danilo Santos de Miranda Presidente do Comissariado Francês
Presidente do Comissariado Brasileiro
Anne Louyot
Roberto Soares de Oliveira
Comissária Geral Francesa
Comissário Geral Brasileiro
MOSTRA DO CINEMA FRANCÊS CONTEMPORÂNEO - CIRCUITO ACRE www.sescacre.com.br ALAGOAS www.sescalagoas.com.br AMAPÁ www.ap.sesc.com.br AMAZONAS www.sesc-am.com.br BAHIA www.sesc-ba.com.br CEARÁ www.sesc-ce.com.br 10
DISTRITO FEDERAL www.sescdf.com.br ESPÍRITO SANTO www.sesc-es.com.br GOIÁS www.sescgo.com.br MARANHÃO www.sescma.com.br MATO GROSSO www.sescmatogrosso.com.br MATO GROSSO DO SUL www.sescms.com.br MINAS GERAIS www.sescmg.com.br PARÁ www.sesc-pa.com.br
PARAÍBA www.sescpb.com.br PARANÁ www.sescpr.com.br PERNAMBUCO www.sesc-pe.com.br PIAUÍ www.pi.sesc.com.br RIO DE JANEIRO www.sescrio.org.br RIO GRANDE DO NORTE www.rn.sesc.com.br RIO GRANDE DO SUL www.sesc-rs.com.br RONDÔNIA www.ro.sesc.com.br RORAIMA www.rr.sesc.com.br SANTA CATARINA www.sesc-sc.com.br SÃO PAULO www.sescsp.org.br SERGIPE www.sesc-se.com.br TOCANTINS www.sescto.com.br MAIS INFORMAÇÕES WWW.SESC.COM.BR/MOSTRADOCINEMAFRANCES
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Mostra do cinema francês contemporâneo
A ESQUIVA 14
ATÉ JÁ 22
ASSASSINAS 28
DE VOLTA À NORMANDIA 34
O ÚLTIMO DOS LOUCOS 40
POVOADO NUMBER ONE 44
A FRANÇA 50
TUDO PERDOADO 54
A ESQUIVA L’esquive (2003)
De Abdellatif Kechiche – Comédia dramática – duração 117’ Com Osman Elkharraz, Sara Forestier, Sabrina Ouazani, Nanou Benahmou, Hafet Ben-Ahmed, Aurélie Ganito
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Em um conjunto habitacional no subúrbio parisiense, um anjo passa declamando apaixonadamente versos da peça Le jeu de l’amour et du hasard. É Lydia, embalada por Marivaux e às voltas com os ensaios do espetáculo a ser montado por sua turma de sala de aula para as festividades da escola. Já Abdelkrim, apelidado de «Krimo», no auge de seus 15 anos, “está de quatro” pela sua colega de sala. Ele, que se arrasta levando seu tédio pelas quebradas suburbanas em companhia de sua galera, descobre repentinamente o amor. Mas Krimo não é do gênero expansivo, além de ter que manter a fachada. Então como se declarar à garota sem perder a pose? Uma solução se impõe: corromper seu amigo Rachid, parceiro de cena com Lydia, para obter o papel de Arlequim. O que Krimo não ousa dizer, Marivaux o fará em seu lugar! Mas a astuciosa manobra torna-se verdadeira odisseia para Krimo, apavorado com a amplitude do texto e as exigências implacáveis de sua professora de francês. Krimo encontrará as palavras a serem ditas antes que o boato, as ciumeiras e as inimizades metam-se em seu caminho?
Seleções dos festivais internacionais Festival Internacional do Filme de Berlim 2004 Festival do Filme de Belfort 2003 Festival do Filme de Londres 2004 Festival do Novo Cinema de Montréal 2004 Festival Internacional do Filme de San Francisco 2004 Festival Internacional do Filme de Stockholm 2004 Festival Internacional do Filme de Turin 2004 Premiações César do cinema francês 2005 Prêmio de Melhor Filme Prêmio de Melhor Cineasta Prêmio de Melhor Esperança Feminina: Sara Forestier Prêmio de Melhor Cenário Original ou Adaptação Festival do Filme de Belfort 2003 Grande Prêmio do Longa-metragem Francês Prêmio do Público
Abdellatif Kechiche Nascido na Tunísia, o jovem Abdellatif Kechiche vai para Nice aos 6 anos de idade. Apaixonado pelo teatro, passa a ter aulas de interpretação no Conservatório de Antibes. Realiza um trabalho após o outro, como ator, em peças de García Lorca e de Eduardo Manet, mas também como diretor, montando em Avignon, em 1981, a peça de Arrabal O arquiteto e o imperador da Assíria. Convidado para atuar no cinema, ele obtém o papel principal de Thé à la menthe (1985) de Abdelkrim Bahloul e, em seguida, atua em Les innocents (1987), de André Techiné, e no bastante comentado Bezness (1992), de Nouri Bouzid. Abdellatif Kechiche passa à direção de cinema com A culpa de Voltaire (2001), seu primeiro longa-metragem, que descreve o dia a dia de uma pessoa “sem documentos”, entre desventuras e encontros amorosos. O filme recebe o Leão de Ouro de primeira obra na Mostra de Veneza de 2000. Em 2003, realiza com poucos recursos seu segundo longa-metragem, A esquiva (2003), que narra a história de adolescentes da periferia que estão ensaiando uma peça de Marivaux para encená-la na escola. A autenticidade dessa obra sutil, que questiona os clichês e estereótipos sobre as “cités”, é festejada por unanimidade pela crítica e será o vencedor-surpresa do Prêmio César do cinema francês: o filme arrebata quatro troféus, entre eles o de Melhor Filme. Em seguida, Kechiche se dedica à filmagem de O segredo do grão (2007) ou o percurso do combatente de um velho imigrante argelino que deseja abrir um restaurante em Sète. O filme teve uma recepção triunfal na Mostra de Veneza de 2007, recebendo o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio Marcello Mastroianni de Melhor Revelação para a atriz principal do filme, Hafsia Herzi. Nesse mesmo ano O segredo do grão é laureado com quatro troféus César, entre eles o de Melhor Filme.
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A ESQUIVA de ABDELLATIF KECHICHE Cahiers du Cinéma nº 586 – Janeiro de 2004
A ‘CITÉ’ DENTRO DO TEXTO por JEAN-PHILIPPE TESSÉ
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Aconteceu alguma coisa, um roubo, uma agressão talvez, e um grupo de rapazes está reunido para uma espécie de conselho de guerra. As fisionomias, a agitação, a preparação para o combate deslocam os prédios e a própria periferia para um plano secundário qualquer. Passado o desejo de demonstração de força, o filmeperiferia se volta, num duplo movimento de economia e relaxamento, para outra experiência da intimidade das “cités”.1 Passado o tempo das gruas de La haine e da montagem grandiosa de De l’amour, abre-se espaço para uma DV móvel, privilegiando sobretudo o cotidiano, em detrimento da narrativa traumática. Aqui, o aspecto político não é mais uma questão de pegar ou largar, e o coletivo é doravante filmado na sua ideia mais simples: um aglomerado flutuante (os colegas, a turma) em que o posicionamento de um só corpo filtra a narrativa e seu objetivo. A esquiva é a concretização desse retorno à espontaneidade dos sentimentos, ao esboço das imagens e à atenção ao que não é mais (não mais agora) um acontecimento. A passagem obrigatória desse gênero por excelência – a cena do controle da polícia – é minimizada por uma elipse consecutiva, como que esquecida no raccord seguinte. Abdellatif
Kechiche esquiva-se. Enquanto dele se espera um filme sobre a periferia, ele filma acima de tudo a adolescência. Adolescente apático e taciturno, Krimo gostaria de sair com a loura Lydia, sua colega de classe, muito ocupada com os ensaios de O jogo do amor e do acaso que estão estudando na escola. Ela esquiva-se, fingindo-se insinuante. Os colegas do calado Krimo se intrometem e fazem pressão, as colegas também. Todos falam, a torto e à direita, meio sem dizer nada. O filme tenta apreender esse transbordamento sonoro, esse frenesi de vocábulos que faz o dia a dia das conversas de adolescentes, colocando-se no centro dessa troca. Evidentemente, há algo de esportivo nesses duelos oratórios, em que insultos, interpelações e palavrões cruzam-se como balas. Esse é o limite em que o filme poderia mudar de direção, transformando cada diálogo em uma performance, ao estilo das batalhas verbais das quais surgiu o rap. E é justamente aqui, ao tocar esse limite, que Kechiche consegue esquivar-se do banal. Captar o diálogo ao pé da letra, tanto nas suas rajadas de neologismos dignas de Queneau quanto nos seus silêncios e analogias, permite recuperar a dimensão comum e cotidiana dessa oralidade. Sem ceder ao espetáculo, nem renunciar à exatidão e à precisão.
Quando Magali, a ex de Krimo, vai ameaçar Lydia, que está sentada num banco, centro da atenção das suas amigas e cercada e protegida por elas, a fala é filmada na sua unidade, como linguagem codificada entendida por todos e, ao mesmo tempo, nas suas diferenças, que a montagem ágil capta no ar. E também, sobretudo, como um instrumento de tecer suspenso por um fio invisível, ligando os personagens entre si. Ela só existe se, de fato, atinge o seu objetivo, que é machucar, assustar, fazer rir. A performance da linguagem é relegada então a um segundo plano pelos sentimentos inscritos nas fisionomias: medo, raiva, inquietação, desafio. Língua performática e não performance da língua, a fala existe menos através de seus efeitos de estilo do que através de seus efeitos concretos. Um paradoxo: a linguagem das periferias é justamente uma linguagem repleta de injúrias não literais. Se cada um fosse realmente atingido pelos insultos que pontuam todas as frases, não existiria mais amizade. Mas é de outra palavra que falamos aqui, aquela que emerge milagrosamente nas entrelinhas e tem dificuldade para existir na “cité”: um discurso de amor ou de amizade pudicamente oculto sob um dilúvio de vocábulos ferinos. O que não impede que Kechiche filme também
esse perigo, o risco do término da amizade (que entre Krimo e Lydia é substituída por um mal-estar depois da esquiva) e a fragilidade dos vínculos. O frenesi lexical dos diálogos criados no 9-32 se mistura aos motivos tradicionais – intriga, complô, acordos sentimentais – dinamizando energias e palpitações. Entra em cena o domínio da linguagem, cujo ajuste produz a ficção, bem como o domínio do espaço. Em A culpa de Voltaire, primeiro filme de Kechiche, a quermesse popular e as solidariedades clandestinas formavam o horizonte de reconciliação. O humor mudou, mas não a linha de conduta, que consiste em inscrever a raiva e as frustrações de um coletivo nas vibrações de um único corpo. Partindo daí, privilegiam-se o close nos rostos, nos pequenos grupos, os silêncios de Krimo (Osman Elkharraz), o nariz empinado de Lydia (Sara Forestier), os olhos cheios de ira de Fryda (Sabrina Ouazani, estupenda). E ainda que o pátio onde ensaiam os alunos se abra para a circulação, ao sabor dos acontecimentos e das grades horárias, o espaço cênico, por sua vez, não tem a finalidade de transformar os personagens (não há nenhuma transfiguração ou revelação através da cena), mas somente a de modificar os elementos do espaço de diálogo.
Kechiche mede o que passa do cotidiano para o teatro, aquilo que se perde e o que fica nos bastidores. Krimo, que troca com um colega o papel de Arlequim por um par de tênis e um console de game, não consegue seduzir Lydia por meio da cena. Não existe um lugar que seja dele e ele só pode ser filmado em close: sua introversão, sua afonia insistente não abrilhantam cena alguma, enquanto Lydia, bela e falante, brilha. Ele tem dificuldade para se expressar se não ocupar o espaço inteiro, caso não haja um silêncio total em torno de seus murmúrios sonolentos. Ela, que passa da gíria local à língua de Marivaux num mesmo plano, utiliza o espaço cênico como prolongamento do saguão de entrada de um prédio, uma convenção substituindo a outra. Krimo, porém, é incapaz de fazê-lo. O fracasso de seu estratagema, a fluidez não encontrável entre dois territórios heterogêneos, tudo isso está inscrito na sua expressão fechada e nos seus olhos vazios. Ele é apenas uma criança, que pendura nas paredes do seu quarto os desenhos de veleiros exóticos que seu pai lhe envia da prisão. Todos buscam uma passagem secreta de uma cena à outra; todos atuam e ajudam a atuar (até mesmo o intervencionista e brutal amigo de Krimo, decidido a tomar as rédeas da situação, faz uma mise-en-scène quase vaudevillesca para resolver a
situação). Mas o corpo apagado de Krimo resiste em silêncio, contrapõe sua meiguice a todo disfarce ou metamorfose e mergulha na melancolia da renúncia. Uma esquiva, a última, joga-o finalmente de volta à dolorosa escuridão dos bastidores.
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1 “Cités”: Conjuntos habitacionais com centenas de moradias, construídos entre os anos 1950 e 1970, com elementos (barras e torres) inspirados nos preceitos da arquitetura moderna. Hoje, popularmente, as “cités” designam os bairros populares da periferia das grandes cidades, onde residem majoritariamente pessoas de nacionalidade ou origem estrangeira (N. do T.). 2 9-3: Referência ao 93° Departamento da França, nos arredores de Paris, onde residem muitos imigrantes (N. do T.).
A ESQUIVA de ABDELLATIF KECHICHE Cahiers du Cinéma nº 592 – Julho de 2004
RETORNO A UM FILME MUITO COMENTADO por FRANÇOIS BÉGAUDEAU
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A esquiva, filme francês do ano? Pelo menos, é o mais comentado. Desde seu lançamento em janeiro (ver Cahiers du Cinéma nº 586), sempre ocupou o centro do debate, e não somente o da crítica. Pela primeira vez, um filme dá o que falar: nos jornais, nas escolas, em toda parte. Nesta nossa paisagem fragmentada, só isso já tem um valor considerável. E tamanha profusão é, acima de tudo, fruto de sua própria multiplicidade. Arlequim admirado pelas variadas cores de seu traje, o belo filme de Abdellatif Kechiche joga com diversos elementos, alterna humores e atualiza pulsões contraditórias. A possibilidade de considerá-lo friamente, tanto quanto de analisá-lo à luz de múltiplos discursos, que por vezes excedem o contexto do cinema, justifica que se volte a ele. Para melhor entendê-lo? Na verdade, para submeter o filme à prova do grande rumor indistinto que cresceu à sua volta, e do qual, a partir de agora, dificilmente poderá se separar. E, sobretudo, para dizer qual esquiva tem a nossa preferência. Como A esquiva atinge o coração de um grande problema nacional, a França lançou-lhe um olhar influenciado pela ideia que ela tem de si mesma, partindo do destino que deve ser
reservado aos seus proletários-gringos. Sendo assim, é possível que pensamentos reacionários tenham encontrado aqui do que se regalar. Ocultando as grades dos prédios com seus enquadramentos fechados, deslocando seus atores autóctones para o teatro do repertório, Kechiche realiza de certa forma o velho sonho recrudescente de conformação republicana. Um filme não sobre o subúrbio – o que alegrou muita gente aqui e acolá – e, sim, sobre a adolescência. Um filme que, para além do aparente contexto urbano, revela o adolescente que existe no jovem do subúrbio, o sentimental no violento, o universal no particular. Visto e aprovado nesse formato, A esquiva tem, no fundo, a mesma função tranquilizadora de certo sucesso popular recente, em que se recompõe a unidade perdida, e onde a mesma nota “lá” reúne os membros heterogêneos de um só coral. Esse horizonte político tem nome –“assimilacionismo”– que, deve ser entendido de forma literal. Foi lido em algum lugar: “Esses meninos, chamados Krimo, Fathi ou Rachid, não deixam de ter a mesma timidez, os mesmos bloqueios, os mesmos impulsos que os nossos Pierre, Paul ou Jacques”. Sabe-se que a ferramenta dessa transformação é o
teatro, e seu artesão, uma professora de francês. Bela e generosa, ela não faz a conta das horas de trabalho e crê na possibilidade de dar educação às camadas menos favorecidas. Não é nem um pouco demagógica e assume ser severa até a crueldade. Outra frase, lida em dois momentos: “pobre Krimo, tendo que engolir Marivaux à força” (mas) “ela tem razão de querer arrancar esse aluno da fatalidade de sua classe social e da sua falta de cultura”. Nesse mesmo movimento que celebra a esquiva da identidade da periferia, a opinião geral é grata a Kechiche por ter evitado o naturalismo. É estranho como a palavra escrita por muitos chega a soar como um insulto supremo, desconfiança legítima transformada em puro reflexo. Estranho o pedido feito a um filme realizado na periferia, de se abster totalmente do seu contexto – as ruas do bairro de Franc-Moisin estão de fato bem vazias. É certo que se pode exigir a abstração, a título preventivo, para evitar o clichê – La Haine sendo lembrado com frequência para ressaltar o contraste–, o tratado sociológico ou a escuridão complacente. Mas tal pedido só esconde parcialmente uma intenção purificadora. Assim como certo tipo de paternalismo só aceita o jovem do subúrbio modificado por Marivaux, o antinaturalismo pede que se esconda a realidade que – por qual motivo? – ele não enxergaria.
Nessa etapa, a questão é límpida, seja ela formulada em termos estéticos ou diretamente ideológicos. O melhor do filme seria seu objetivo geral: a narrativa da regeneração de uma natureza doente por meio do artifício teatral. Mas o caminho é mais importante que o destino de chegada e, durante o percurso, A esquiva complica a sua trajetória. Que milagre faz com que a jovem loura, que interpreta Lydia e mora no 12º distrito de Paris, e não no departamento 931, imite tão bem o linguajar da periferia? Milagre nenhum, a não ser o do talento. Há muito tempo que esse linguajar não se relaciona unicamente à periferia, ainda que sua matriz continue por lá. De início, a atriz Sara Forestier é a prova da recuperação desse falar pelas populações que vivem dentro dos muros da cidade; aqui, ela realiza uma espécie de volta à origem. É assim que A esquiva toma o caminho de La Courneuve até o Teatro Francês e, ao mesmo tempo, a direção oposta. A língua que ali se fala não é a de um território, mas, sim, o produto de um tortuoso percurso. Portanto, essa língua é tudo, menos a excrecência de um lugar. Seu léxico faz mais do que operar um descolamento em relação ao estabelecido: ele escorrega para a arbitrariedade pura, modelando
a partir do nada um mundo onde as garotas têm culhões, assumem essa condição e todos cheiram a merda – o que não é o caso. Poucas são as línguas mais codificadas do que essa, incluindo a gíria desse meio. Concentrada exclusivamente em seus efeitos, trata-se de uma performance por excelência, que requer uma plateia a ser convencida ou dominada. Se os atores se superam ao interpretá-la, é porque só a praticaram interpretando-a. É porque ela é, e sempre foi, do teatro. Aqui Kechiche retoma magistralmente a bandeira de Renoir: filmar a vida é registrar a forma como os homens buscam incessantemente moldar-se, tornar-se atores, mentir. Persiste então uma pergunta. Já que, fabricando um linguajar de todo lugar e de lugar nenhum, o jovem nunca é totalmente “da periferia”, por que colocar em sua boca um texto literário? Por que acrescentar ao teatro de caráter imediato da “cité”2 uma camada de teatro patrimonial? Não haveria por que se questionar se um apenas duplicasse o outro, transformando os jogos de ilusão de Sylvie e Arlequim nas projeções fantasiosas dos jogos de Lydia e Krimo. Porém, a marca de Marivaux na periferia tem consequências muito mais fortes, como a segregação: os ensaios e a representação de
O jogo do amor e do acaso dividem o elenco, a priori igualitário, em quem pode representar e quem não pode, acuando Krimo nos seus limites, assim como a professora, na constatação de que sua maiêutica repentinamente não funciona. A discriminação voluntária evidenciada precisamente no final (Krimo com o nariz encostado na vidraça atrás da qual a peça é encenada) pode ser um bemol sutil para um final feliz. Uma espécie de post-scriptum anticatártico brechtiano. Mas atenção: os problemas só serão resolvidos longe do palco. Outra vez, atenção: o teatro não pode salvar o mundo. E outra hipótese: quando Krimo não consegue fazer o papel de Arlequim, não é tanto por não ter aptidão para a grande cultura quanto é por ser, no palco e no dia a dia, um ator medíocre. Não menos apagado e quieto diante da professora do que é quando se trata de paquerar Lydia ou de responder aos sermões de Magali. Volta ao espaço que está fora do campo social ou tragédia da introversão: as duas interpretações da incapacidade de atuar de Krimo não dissimulam que esse personagem é objeto de um complexo passe de mágica. Na verdade, com sua aparência humildemente mimética, câmera no ombro capturando cada gesto, Kechiche não cessa de fabricar sentido. E nem se percebeu até que ponto esse filme foi trabalhado, o quanto cada cena se sustenta por meio de uma sábia colagem. Kechiche hierarquiza, promove determinadas forças em detrimento de outras, edifica um sistema e impõe sua própria forma de ação na cena francesa contemporânea. Que ação? Voltemos ao filme, no ponto em que ele demarca nitidamente seu território, expondo com total
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transparência a parcialidade de seus objetivos: os primeiros planos. Um obscuro grupo de rapazes faz barulho, emite uma cacofonia de injúrias, promete “foder a mãe e a raça” daqueles que cometeram não se sabe qual ofensa certamente irrelevante. Krimo chega, é informado do que acontece e indagado se quer participar. Ele desconversa e sai, seguido pela câmera. Somente nesse momento surgem os caracteres do título. Entendendo: o filme só pode começar diante dessa esquiva. Não se trata apenas de fugir do documentário sinistro e, ao mesmo tempo, da visão TF1/assistencialista da periferia, indiscutível intenção várias vezes assumida por Kechiche. Trata-se também de se afastar do bando enraivecido e de manter os rapazes a distância para, através de Krimo, chegar até as garotas. A partir desse momento o corte é nítido: para as garotas, a língua articulada; para os garotos, a eructação indiferenciada. E Rachid, o Arlequim dos primeiros ensaios, é uma exceção bem pálida, totalmente apagado pelas golden girls das imediações, além de pouco motivado, já que cederá seu lugar em troca de uma jaqueta. Todos interpretam, certo, mas o teatro das garotas é muito mais alegre que o da bagunça masculina, que tem tráfico de fitas cassetes pornográficas hardcore e falas do tipo “Vê como tu fala co’a minh’irmã!”. Ao colocar em seu centro, e como pivô narrador, a cena em que Fatih neutraliza Frida violentamente, A esquiva empreende uma clara divisão de seu campo. Resumindo: a periferia só se salvará se for separado o grão bom do estragado. Grão estragado: os jovens machos. Grão bom: as garotas, melhores alunas do que os rapazes, como se sabe. E também
sentimentais, o que é importante. O que salva Krimo e lhe permite entrar no campo feminino, mesmo que seja para ser rejeitado ao final, é o amor, é ter se apaixonado por Lydia. A esquiva inaugural, que conduz até ela vestida como Lisette, resulta menos de uma marcação antinaturalista do que de uma seleção moral. Como uma divisão do campo entre as ovelhas definitivamente perdidas e aquelas cujo rebanho ainda não desgarrou, contanto que aceitem ser meninas como as outras, felizes em desfilar com seus trajes de princesa. Essa discriminação – na verdade positiva, pois favorece os mais fracos – macula só parcialmente uma economia geral irrepreensivelmente democrática. Em A esquiva, como na cidade, a democracia provém menos de um roteiro emancipador do que de uma distribuição equitativa da vitalidade. Na realidade, tudo depende do lugar atribuído concretamente ao teatro como regulador social e corretor dos erros. Numa análise quantitativa, fica claro que a dramaturgia disseminada pelo aprendizado da peça parece bem modesta. São cinco sequências no máximo antes da encenação, que tem lacunas e está repleta de inserts sobre o pessoal do bairro. A maioria deve sua intensidade menos ao ensaio propriamente dito do que ao elemento que interfere e entrava o processo de emancipação. Tensão entre Frida e Lydia devida ao atraso da segunda, beijo desajeitado de Krimo em Lydia e queda da caixinha: o pequeno teatro fica cada vez mais repleto e oculta o trabalho sobre o texto clássico. Nas apresentações dirigidas pela professora,
o que se constata? Que os atores in progress interpretam mal, e não apenas Krimo, cuja incapacidade física “de sair de si mesmo” faz parte do roteiro. Todos interpretam mal. Aqui se encontra a pulsação central de A esquiva, sua divisão fundamental e sua salvação: embora estruturada pelo modelo do grande teatro, sua execução tem muitas lacunas. Por que eles representam tão mal? Porque o fazem com excessos. Lydia “se abana” dez vezes mais do que o necessário, Frida tem os “Madame...” de empregada de paródia. Rachid faz movimentos em arabesco com os braços, que ele considera mundanos, mas que acabam traindo o proletário que ele tem dentro de si. Pode-se afirmar que esses jovens não têm talento para o teatro? Possivelmente, mas é que o teatro é muito fraco para eles, e eles são fortes demais para o teatro. São vivazes e cheios de energia demais para se deixarem enquadrar por seus critérios. Demais: esse é um advérbio da língua que todos praticam. Eles são “demais”, “muito”. A mesma coisa é dita dez vezes, variando ou não as palavras. “E meu vestido, está bom?” perguntado dez vezes. “Está bom demais”, respondido dez vezes. “Pela minha vida”, está bom demais. “Pela vida da minha mãe”. “Pelo túmulo da minha avó”. “Sobre o Alcorão da Meca”... E é assim que o fio condutor dos ensaios se vê envolvido numa cultura da repetição, prejudicado por mudanças de humor, de centelhas que se apagam tão logo são acesas. Eletricidade estática em oposição à grande marcha libertadora. Eletricidade, porém estática: essa admirável resistência ao roteiro pela presença sustenta-se possivelmente pela constatação de um impasse
político. Como outrora o operário se fazia de surdo aos apelos para a revolta do militante burguês, também os adolescentes de La Courneuve, apoiados no seu modo de falar e na sua rapidez, recusam-se a ver o horizonte e erguem eles próprios o muro social que os cerca. Enquanto isso, Nanou jamais será a atriz que sonhava ser. Todavia, nas entranhas dessa grande noite inacessível, ela e seus parceiros fundam, aqui e agora, uma cidade utópica cuja moeda de troca é a energia. Nessa perspectiva, o ponto culminante pode não ser a comunhão conclusiva das pessoas do bairro, ao som de uma sanfona bem francesa, diante de uma apresentação de Marivaux, e sim aquela imediatamente anterior, a cena da interpelação, difícil de ser apreendida. Podemos desenvolver tesouros de retórica para salvá-la; podemos também considerá-la simplesmente ruim, lamentando que caia nos clichês que o filme, por sua vez, evita tão bem. Mas é possível responder a esse ataque, como fez o próprio Kechiche em diversas entrevistas – sim, isso existe, há dezenas de interpelações desse tipo todos os dias – e assim cair na hipótese do postscriptum brechtiano, com esta cena reinscrevendo o filme no verdadeiro teatro de operações. Parada legítima, porém inadequada neste caso, uma vez que se julga a cena em função de sua verossimilhança, isto é, apenas por sua correspondência à estatística. Ora, a energia é por si só sua medida. Elevandose ao mesmo nível de intensidade que o dos pseudodelinquentes, os policiais atiçam, como cúmplices paradoxais, uma cena cuja incrível força ao vivo ultrapassa e atinge em vão a questão de sua representatividade. Na cena, o livro arrancado das mãos de Frida pela policial remete claramente a um dado externo: a impermeabilidade da polícia
à cultura, assim como evidencia a arbitrariedade da manobra (um pirulito de morango teria gerado a mesma violência), crítica maior feita a todas as fardas do mundo. Mas esse arbitrário é o ponto nodal da reconciliação cinematográfica entre os policiais e os interpelados. Os primeiros produzem agora o que os segundos não cessaram de produzir há uma hora e meia: tensão a partir do nada. Um carro velho, dois adolescentes inofensivos, um vago odor de maconha, um pirulito de morango, e aí estão eles imitando seus equivalentes de Nova York. Cinema, cinema. Cinema ruim, sonho ruim, embora nos divirta. Mas é também um filme ruim que Fathi imagina quando agarra Frida pelo pescoço. Nos dois casos, é menos necessário brigar com delinquentes ou mulheres do que relaxar o corpo e esfriar o sangue que ferve. Desejo de sitcom, de ficção, de teatro. Voltaremos a esse tema. E a mise-en-scène, quando Fathi organiza, dois minutos antes da interpelação, a oficialização do amor entre Krimo e Lydia: “Vocês dois aí, entrem no carro que já vou explicar, enquanto isso, vocês dois, fiquem aqui e esperem.” “Por que você está fazendo isso?”, pergunta Nanou. “Porque é meu amigo”, ele responde. Em suma, nenhuma razão de verdade. Simplesmente excesso de energia. Como todos os outros, inclusive os policiais. Isso transborda para todos os lados. E quem recebe seus respingos, por sua vez, vê-se tentado a espalhar torrentes de palavras, navegando a reboque de um fluxo incontrolável por aqueles que o emitem. Talvez seja essa a boa notícia de A esquiva, a razão da sua permanência em nossas mentes, que muito poucos filmes franceses ocupam de forma duradoura. Povoado de criaturas mais de uma vez superadas por sua vitalidade e conectado em uma corrente que o
conduz, ele determina ao pensamento que ordene o seu caos. Meada impossível de desembaraçar, mas que sentimos vontade de desfazer.
A ESQUIVA França, 2003 Direção e Roteiro: Abdellatif Kechiche Elenco: Osman Elkharraz, Sara Forestier, Sabrina Ouazani Fotografia: Lubomir Bakchev Montagem: Ghalia Lacroix Produção: Lola Films Distribuição: Rezo Films Duração: 1h57min
1 93° Departamento da França, nos arredores de Paris, onde residem muitos imigrantes (N. do T.). 2 “Cités”: Conjuntos habitacionais com centenas de moradias, construídos entre os anos 1950 e 1970, com elementos (barras e torres) inspirados nos preceitos da arquitetura moderna. Hoje, popularmente, as “cités” designam os bairros populares da periferia das grandes cidades, onde residem majoritariamente pessoas de nacionalidade ou origem estrangeira (N. do T.).
ATÉ JÁ A tout de suite (2004)
De Benoît Jacquot – Drama – Duração 95’ Com Isild Le Besco, Nicolas Duvauchelle, Ouassini Embarek
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Ao desligar o telefone depois de um “até já” do namorado, ela sabe muito bem, sem saber ainda, aquilo que ela nem imaginava: aquele que ela ama, aquele “príncipe” de parte alguma é um bandido. Ele acaba de cometer um assalto, há mortos. Estamos nos anos 1970, ela tem 19 anos e, como num sonho acordada, salta do espaço restrito do apartamento paterno – de longos corredores, num belo bairro – e mergulha de cabeça numa geografia fugitiva – da Espanha para o Marrocos e para a Grécia –, passando de uma vida de garota normal para a vida que ela escolheu, com suas delícias e consequências. Seleções dos festivais internacionais Seleção Oficial do Festival de Cannes em 2004 categoria Un Certain Regard (Um certo olhar) Festival Internacional do Cinema Independente de Buenos Aires – Bafici 2005 Festival Internacional do Filme de Toronto 2004 Festival du Film de Londres 2004 Festival Internacional do Filme de Rotterdam 2005 Festival Internacional do Filme de Viena (Viennale) 2004
Benoît Jacquot Nascido em 1947, Benoît Jacquot inicia sua carreira como assistente de direção na TV. Nessa época, filma documentários e adaptações de obras literárias de Franz Kafka e Maurice Blanchot. Atuando como assistente de Marguerite Duras em Nathalie Granger (1972) e India song (1975), ele escolhe para seu primeiro filme, L’Assassin musicien (1975), um romance de Dostoievski. A mise-en-scène muito despojada e a dicção pouco expressiva dos atores parecem fazer de Jacquot um herdeiro de Robert Bresson, impressão que é confirmada por sua segunda obra, Les enfants du placard. Mas os filmes austeros de Jacquot custam a obter a adesão da crítica e do público, como no caso de Les ailes de la colombe (1981), ambiciosa adaptação de Henry James interpretada por Isabelle Huppert e Dominique Sanda. Com La désenchantée (1990), a carreira de Benoît Jacquot toma um novo rumo: inspirado pela iniciante Judith Godrèche, ele assina o comovente retrato de uma adolescente impetuosa. Em seguida, é em torno de outra jovem atriz, Virginie Ledoyen, que ele realiza La fille seule (1995), filme que lhe garante elogios da imprensa internacional. Com Le septième ciel (1997) ele dá um novo passo em direção ao grande público e passa a filmar com as maiores estrelas do cinema francês: L’Ecole de la chair (1998), com Isabelle Huppert, Adolphe (2002), com Isabelle Adjani e, para a TV, o filme Princesa Marie (2004), com Catherine Deneuve. O amor é o tema predileto da obra de Benoît Jacquot, que, tendo-se tornado um dos autores mais fecundos do cinema francês, continuou a dar provas de um raro ecletismo: realizou a adaptação da peça de teatro de Marivaux, A falsa servente (2000); um filme de época sobre a vida do Marquês de Sade, Sade (2000) e uma ópera-filme Tosca (2001). Em 2004, surpreende mais uma vez ao filmar, em preto e branco e em DV, Até já, a história de uma fuga interpretada por Isild Le Besco, sua nova musa, que ele leva em seguida à Índia para filmar L’Intouchable (2006). Segue-se mais uma viagem, dessa vez em direção à Itália, para a filmagem de Villa Amalia (2009), uma adaptação do romance de Pascal Quignard, que marca seu reencontro com Isabelle Huppert.
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ATÉ JÁ de BENOÎT JACQUOT
Cahiers du Cinéma nº 596 – Dezembro de 2004
PARTIR E SEM RÉPLICA por MIA HANSEN-LØVE
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Este título dá ao filme um caráter de provisório, sugerindo, pela união de uma partida a um retorno imediato, certa discrição dos movimentos e a relatividade da ausência. Parece alertar para uma indiferença formal e deixa a expectativa de um esboço, ao invés de uma obra acabada. Talvez esse sentimento de mobilidade seja reforçado pela leveza da produção e pelo uso da DV e do preto e branco, favorecendo a poesia de uma sintaxe simples. A impressão de facilidade também é garantida pelo perfil da heroína. Ao longo do filme, ela enche as páginas de um caderno com esboços de fisionomias e silhuetas, atividade em que o cineasta parece se basear. Filme de época (1975), minimalista, inspirado em uma história real, Até já narra na primeira pessoa a aventura de uma jovem (“Ela”, sem nome) que se apaixona por um belo e misterioso rapaz (“Ele”, também anônimo), que se revela um ladrão de bancos e com quem ela foge, após um assalto frustrado, em companhia dos cúmplices. Transformada em delinquente, ela passa dias felizes na Espanha e depois no Marrocos, país natal de seu amante. Separa-se dele na Grécia e volta, algum tempo depois, para a casa de seus pais, na França. Contrastando com a profunda tristeza da narrativa e com a concisão da mise-en-scène, a
descontração dos gestos torna ainda mais vibrante o ardor melancólico da heroína. E seria um erro considerar Até já como um filme menor, pois ele só o seria como o é uma nota na escala musical. Também será em vão que se buscará nesse filme um discurso sobre o cinema. Benoît Jacquot trabalha uma única emoção em especial, emoção indissociável de seu interesse por “Ela”. E a compreensão a que se tem acesso pela simpatia ou pelo amor a “Ela” comunica-se aos demais atores do filme. O fascínio do amante provém tanto da heroína quanto da força de um desejo de cineasta, que repercute no ambiente que circunda a jovem, assim como nos países que ela atravessa. Sua sensualidade e sua meiguice favorecem todos os personagens, como se ressaltassem o mistério de sua existência enquanto imprimem sua marca na progressão da história. Primeiro, fuga da casa paterna, doação de si. A seguir, feridas e, nesse rastro, o amor conduzindo e enfatizando cada elemento. Mesmo o quadragenário perverso que recolhe a jovem em Atenas e tenta, com os meios miseráveis de que dispõe, fazer com que ela fique com ele não deixa de ter uma certa gentileza. É o que lhe garante o respeito que “Ela” tem por ele, apesar do nojo e do medo. Antes de fugir, ela
tem o cuidado de deixar sobre a cama o vestido e o maiô que ele lhe comprou. Essa atenção revela a mesma gentileza que se percebe na frase “coma, meu amor”, dita ao amante quando ele fica três dias sem comer. Sua relação é feita de tamanho entendimento que nenhuma dificuldade poderá perturbar. A escolha do cineasta por preservar essa pureza de sentimentos, por representar um amor ideal dá ainda mais peso ao destino, o único elemento capaz de separar o casal. Poucas pessoas ainda acreditam no destino, e, assim, ficaríamos tentados a dizer que Até já é regido principalmente por valores morais e estéticos herdados de outra época, caso a presença moderna da atriz não viesse desequilibrar a aparente estabilidade desse ordenamento antiquado. O que emana de Isild Le Besco tem algo de incontrolável, ao que parece responder a inserção súbita de alguns closes, que impõem seu rosto e o de seu parceiro com uma autoridade quase warholiana. Onde a afirmação dos seres por sua imagem gera um desequilíbrio, a fluidez das ações responde a um desejo de equilíbrio. E dessa arte de cortar o
horizontal (a história) com o vertical (o rosto) nasce a poesia. Consegue-se então sentir – impressão que se sustenta pela noção de destino e pela adição de arquivos que amplificam a ficção como caixas de ressonância – a Europa através da qual transcorre a história e, com intensidade semelhante, também se sente o Mediterrâneo onde ela acaba se atirando. No entanto, cada lugar vai se apagando diante de sua errância interior. Benoît Jacquot dá à luz do Sul ora a forma da felicidade, ora a da angústia, até chegar ao deserto de sofrimento em uma Grécia ofuscante. No último episódio antes do epílogo, “Ela” é abordada por uma jovem ateniense que lhe oferece trabalho numa loja de suvenires e depois a hospeda em sua casa. Algumas cenas nos fazem descobrir nessa personagem final, firme e vulnerável, fria e apaixonada, uma atriz (Fokini Kodoukaki) de grande cinegenia. A forma como a história é interrompida antes mesmo de ter início frustra e, ao mesmo tempo, redobra nossa curiosidade. O filme, que vai num crescendo, tem seu ponto culminante um pouco mais cedo. Depois de sobreviver a um interrogatório árduo, “Ela” finalmente
sai do aeroporto de Atenas e vai ao encontro dos amigos. O carro para, eles olham para ela, que certamente está sendo seguida pelos policiais, fazem sinal de “não” com a cabeça e partem sem ela. Ela fica um bom tempo parada no lugar, desconcertada. Parece que Até já foi escrito para a emoção que, nesse ponto, encontra seu ápice e sua conclusão. Ela pode ser resumida à “dor paralisante da despedida”, como dizia Annemarie Schwarzenbach1, à brutalidade da separação que vinha sendo preparada, na realidade desde o título e sob a máscara da efemeridade, pelo sentimento central do filme, um sentimento imediato, recíproco, absoluto. Até já é permeado por essas reminiscências. E o fato de a narrativa de um sofrimento tão feminino ter servido à mais masculina das ficções não é o menor de seus charmes.
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1 Essa escritora deixou a Suíça, em 1939, para viver no Afeganistão, atravessando montanhas e desertos do Oriente Médio, onde procurava em vão sufocar seu desespero. Mas, assim como “Ela”, também passava “momentos tranquilos em locais encantadores”.
ATÉ JÁ de BENOÎT JACQUOT
Cahiers du Cinéma nº 596 – Dezembro de 2004
PARA ISILD por VINCENT MALAUSA
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Já faz algum tempo que a silhueta imóvel e graciosa de Isild Le Besco conquistou seu lugar no cinema francês, uma presença singular da qual Até já mostra uma radiografia surpreendente. No filme, Le Besco interpreta uma personagem que, jamais nomeada, foge às determinações da ficção para se deparar com uma estranha vertigem figurativa: corpo passivo lançado em uma corrida alucinante, onipresente e, no entanto, sempre um pouco ausente, como que dividido entre o coração e a margem da narrativa. Ela é ao mesmo tempo pura força física (corpo desejado e que deseja, do qual Jacquot experimenta a capacidade de resistência e de inércia) e uma presença mais fantasmagórica conduzida pelo curso dos acontecimentos (a atormentada voz off da atriz, parecendo vir de seu outro filme Demi-tarif). Entre uma e outra dessas funções, a carnal e a mágica, delineia-se o projeto de um filme alimentado de movimentos de toda espécie, onde o dinheiro roubado pelos bandidos se confunde pouco a pouco com o “corpo-troféu de guerra” da atriz: matéria de cinema preciosa, mas também carga complexa com a qual é preciso aprender a compor. Esse status encontra sua realização no ponto central do filme, quando a heroína, que despertara
suspeitas na alfândega, se vê abandonada pelo bando de ladrões. É ela então que Jacquot decide seguir. Num quarto de hotel, a jovem, muda e paralisada, bloqueia a narrativa no seu conjunto. Nesse exato momento, como figura de alteridade máxima, a atriz vai retomar o controle do filme e, na sua errância, encontrar finalmente a matéria de uma autonomia que lhe permita reintegrar-se à ficção: a mesma da qual Jacquot parecia excluí-la desde a abertura. Esse lento exercício de domínio de um corpo de cinema, percebido com uma espécie de matéria bruta, remete a outro fantasma: Sissy Spacek. Trata-se da mesma dialética entre a sensualidade pura (as cenas de nudez de Até já, frequentemente frontais, lembram a radical estranheza de Carrie, literalmente um monstro carnal) e o desaparecimento ou partida (a voz off de Spacek em Badlands – Os noivos sangrentos). O paralelo não é banal. Jacquot, que dialoga com um grupo de cinema do gênero “anos 70”, apreende uma multiplicidade de caminhos pelos quais Até já envereda: o mito dos bandidos românticos, a música do Tangerine Dream, as imagens magnéticas e obscurecidas de Caroline Champetier onde se mesclam imagens e cenas de
diferentes épocas. Inserida nesses parâmetros, a figura amiga da atriz consegue então fugir do naturalismo dos seus papéis anteriores, invadindo subitamente um campo muito mais amplo, aberto a todas as circulações: uma verdadeira criatura de cinema, cuja presença é doravante suficiente para arrastar cada imagem na vertigem da sua queda.
ATÉ JÁ França, 2004 Direção: Benoît Jacquot Elenco: Isild Le Besco, Ouassini Embarek, Nicolas Duvauchelle Fotografia: Caroline Champetier Som: Michel Vionnet Montagem: Luc Barnier Produção: Françoise Guglielmi – Natan Prod. Distribuição: Pyramide Duração: 1h35min
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ASSASSINAS Meurtrières (2006)
De Patrick Grandperret – Drama – Duração 97’ Com Hande Kodja, Céline Salette, Gianni Giardinelli, Anaïs de Courson, Isabelle Caubere, Shafik Ahmad, Karine Pinoteau, Marc Rioufal, Eugène Durif, Brigitte Faure
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Nina e Lizzy. O encontro de duas jovens normais e um pouco frágeis. Entre elas, uma identificação imediata... Juntas, elas são fortes, eufóricas. Sem muita sorte, nem muito dinheiro, elas têm apenas seus sonhos. Duas jovens em busca do amor. Cada instante que passa, cada encontro lhes fecha um pouco mais as portas de um mundo do qual elas não têm as chaves. Com nada no bolso, não se vai longe, ou diretamente muito longe... Seleções dos festivais internacionais Festival Internacional do Filme de Cannes 2006 Festival Internacional do Filme de Münich 2006 Festival do Filme Francófono de Athènes 2007 Premiações Prêmio do Presidente do Júri no Festival de Cannes 2006 categoria Un Certain Regard (Um certo olhar)
Patrick Grandperret Patrick Grandperret nasceu em 1946. Após fazer o curso de comércio, Grandperret, apaixonado por esportes mecânicos, se lança na fotografia e realiza uma série de reportagens fotográficas sobre os Grand Prix para diversas agências. No início dos anos 1970, a leitura de Au-dessus de volcan, de Malcolm Lowry, desperta no jovem um desejo de cinema. Sua iniciação na sétima arte se dá como fotógrafo de filmagem, tornando-se em seguida assistente de direção, principalmente de Maurice Pialat nos filmes Passe ton bac d’abord (1979) e Loulou (1980). Em 1980, realiza seu primeiro longa-metragem, Courts-circuits, em que o antigo motoqueiro reúne sua paixão pelas corridas de moto e a preocupação com os abandonados pela sociedade. Cineasta marginalizado, Patrick Grandperret passa a ganhar a vida produzindo dezenas de peças publicitárias. Para seu segundo filme, Mona et moi (1999), mergulhado na Paris dos punks e dos invasores sem teto, o cineasta busca inspiração na vida atribulada de seu amigo Simon Reggiani: “Minha atitude lembrava a de Jean Rouch ao filmar pessoas na África. Mas, neste caso, era alguém que vivia situações sem sentido ao meu lado”, declararia o diretor para os Cahiers du Cinéma, a respeito de Mona et moi, Prêmio Jean Vigo de 1990. Patrick Grandperret atravessa a África para a realização do filme que irá revelá-lo ao grande público, L’enfant lion, um conto que seduz crianças e adultos, em 1993. O continente negro será o tema dos dois longas seguintes, interpretados por Jacques Dutronc: Le maître des elephants (1995), estudo de uma relação entre pai e filho, e Les victimes (1996). Além de ator e produtor ocasional para seus amigos cineastas – Claire Denis e Jean-François Stévenin –, Grandperret segue realizando filmes para a TV e curtas-metragens. Até que a viúva de Maurice Pialat, que se tornara produtora, faz-lhe a proposta de retomar um projeto interrompido pelo autor de Van Gogh: Assassinas (2005) ou o trágico passeio de duas adolescentes transgressoras de todas as leis. Inspirado em uma notícia de jornal, o filme é apresentado no Festival de Cannes, em 2006, na categoria Un Certain Regard (Um certo olhar).
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ASSASSINAS de PATRICK GRANDPERRET Cahiers du Cinéma nº 613 – Junho de 2006
GRANDPERRET PELOS CAMINHOS por EMMANUEL BURDEAU
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Como um prelúdio de sua volta ao cinema após 10 anos de ausência, Patrick Grandperret improvisou, há algumas semanas, como guia de sua casa em Saint-Maur, conduzindo os visitantes da cozinha ao subsolo, do jardim à garagem e desta até o estúdio, onde seus filhos Martin e Leo costumam realizar suas gravações. Sobre uma das mesas, uma caixa com vários documentos – fotos de filmagens e de família misturadas, negativos de corridas de automóvel ou de moto – recompunha, como um quebra-cabeças, sua trajetória de inventor/piloto/cineasta/empresário e lembrava de modo oportuno a importância (desconhecida?) do espaço que ele ocupa há 30 anos no cinema francês. Aperitivo perfeito para as palavras que viriam a seguir, reformulação ultrassóbria do que não foi desmentido desde o seu primeiro longa-metragem, Courts-circuits, de 1980: a paixão impregnada em seu corpo de “mecanizar” a vida e os filmes, o apego ao “deixar inacabado” em arte já teorizado por Stendhal, o gosto pela crônica e, mais amplamente, pelas narrativas não capitalizadas – uma recusa que se estende ao cinema como um todo, incluindo a produção, sem que Grandperret tema se autoclassificar como “máquina de fazer dívidas”.
O filme está lançado: a condição de inacabado e a dívida constituem a força motriz que faz arder Assassinas, cujo roteiro Grandperret coescreveu com Frédérique Moreau, a partir de um projeto de dezesseis páginas escritas por Maurice Pialat em 1976, época em que era seu assistente, seu braço direito, seu homem de todas as providências (o que continuou até 1981). Mas como não ceder ao impulso de capitalizar, quando não se filma para o cinema há dez anos? Como manter, na abertura do que fica inacabado, um filme com o título de Assassinas, funesto projeto cumprido desde o primeiro plano, num vaguear vermelho-sangue em incipit precedendo o flashback? Sem dúvida, é uma questão de leveza e rapidez na execução. Grandperret rodou seu filme em sete semanas, entre La Rochelle e a Ilha de Ré. Ele fez os enquadramentos, seus filhos compuseram a música e seus técnicos interpretaram a maioria dos pequenos papéis. Tal método transborda com facilidade o trabalho em direção à narrativa. Até o último momento, o cineasta deixou que pairassem dúvidas sobre a identidade da heroína a quem caberia degolar o motorista de táxi, indivíduo por demais insistente nas investidas indecorosas: Nina
(Hande Kodja), a loura quieta com rostinho de bebê, ou Lizzy (Céline Salette), a morena ousada, que conduz o belo dueto de infortúnio pelos caminhos de Poitou-Charente. Para saber a resposta, é preciso assistir a Assassinas, lançado em 28 de junho. E a dívida? Foi contraída desde o início e, por isso mesmo, não tem possibilidade de reembolso. É certamente no intuito de obter reparação por uma injustiça milenar praticada contra seu destino de mulheres que Lizzy e Nina se lançam pelas estradas sem pensar. A primeira, após uma tentativa de suicídio, a segunda, ainda se refazendo da morte do pai. E o fazem sem refletir, num acesso de raiva, sem motivo, sem perspectiva de ir a parte alguma, somente em busca de aventura. Expõem-se, a partir de então, a todo tipo de encontros, porém, sem finalidade, desprovidos de qualquer princípio que não o de uma cruel loteria. Grandperret faz aqui sua primeira distorção à lógica desgastada do road movie. Os homens encontrados nas estradas esboçam menos o retrato de uma sociedade do que delineiam em traços fugazes um mundo imprevisível e, por sua vez, inacabado. Um mundo puramente arbitrário e, por isso mesmo, inquietante. E tudo isso começa bem cedo, ainda no hospital psiquiátrico onde as duas
jovens se conhecem. Ali, a loucura dos pacientes se manifesta principalmente pelas mudanças de humor, pela passagem sem transição do carinho à desconfiança, do sorriso à ameaça, como a mulher que vem se queixar de um roubo para, logo a seguir, toda melosa, pedir emprestado o lindo colar para seu encontro dessa noite, ou o homem que transforma bruscamente seu ar de sedutor bobo em expressão de ciúme. A cada encontro, o jogo recomeça, os dados são novamente lançados, e esse relançar é a garantia de arejamento na grande tradição realista francesa. Expressa, ao mesmo tempo, a surpresa e o absurdo da aventura, dando também a Assassinas seu estranho sorriso noir, numa mistura especial de drama e comédia. Na estação ferroviária, um fanático disfarça a fisionomia suspeita anunciando que os trens passam por ali quando “dá na telha”: “É free style, é wild”. Piada. Mas, na estação seguinte, dois grandalhões atacam um pobre infeliz, que implora por sua inocência. Não é piada. Um pouco mais adiante, o paquerador rejeitado transforma-se em estuprador, mas não é certo que essa reviravolta seja mais inquietante do que o esboço de sorriso com que o soltam os dois feirantes cujo caixa acaba de ser roubado.
Não existe uma norma, e menos ainda de natureza social, determinando que as duas jovens seriam ora aceitas, ora rejeitadas. Na verdade, essa norma encontra sua instabilidade nos jogos de desejo. Se Nina e Lizzy, de minissaia e salto alto, são acima de tudo presas sexuais para aqueles com quem se encontram, essa troca de serviços não basta para definir suas posições,31 ainda que de maneira sórdida. Elas próprias reconhecem, sem nenhum subterfúgio, após serem expulsas do caminhão do simpático vendedor de lingerie, a quem tentaram seduzir com elogios: quando não queremos transar, somos desprezadas e, quando queremos transar, também o somos. A segunda distorção é totalmente diferente, mas também tem a ver com a dívida e a condição de inacabado. De tanto andar e acumular infortúnios, Nina e Lizzy vão acabar procurando um homem, qualquer um, para lavar a ofensa da tentativa de estupro. Mas, antes disso, terão encarado cada encontro como a possibilidade de uma vida inteira que, a cada cruzamento, recomeçaria do zero. Uma vez mais, Grandperret se mantém distante do rótulo folclórico ou sociológico. E a dimensão onde se situa Assassinas seria muito mais a de um exagero ou de um delírio, já que bastam algumas frases trocadas
para que, voltando a estar sozinhas, as moças carreguem o luto ou a melancolia daquelas que não terão sido: fazendeiras, donas de castelo, esposas devotadas... Ou então piratas: perto do final, uma cena discretamente onírica revela o sonho delas de lutar com sabres, sobre um veleiro, no mar da China. Essas poucas tomadas não são apenas um presente do cineasta para suas heroínas. Também remetem ao hospital psiquiátrico, em cujo jardim um dos loucos pintara um barco semelhante e, sobre ele, uma silhueta bem parecida com a de Lizzy. “Pronto, essa é a sua história”, comentara o pintor, acrescentando a seguir, após fazer um esboço de Nina com três pinceladas rudimentares: “Vocês estão juntas, é a história de vocês”. A maneira de agir de Grandperret parece, sob vários aspectos, a do pintor maluco: rápida, brutal, não se prendendo a cuidados nem a detalhes supérfluos. É o paradoxo do inacabado: fazer semelhante exigência também é estar incessantemente mergulhado no definitivo, assim como as duas moças vão encontrar, como única motivação, colocar-se diante dos problemas, provocando por si mesmas uma fatalidade, que poderá enfim transformar em destino suas vidas sem graça.
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ASSASSINAS França, 2006 Direção: Patrick Grandperret Roteiro e Diálogos: Patrick Grandperret e Frédérique Moreau Baseado em ideia original de Maurice Pialat Fotografia: Pascal Caubère Som: Jean-Louis Ughetto Montagem: Dominique Gallieni Música: Silth Elenco: Hande Kodja, Céline Salette, Gianni Giardinelli, Anaïs de Courson, Shafik Ahmad Produtores: Sylvie Pialat, Patrick Grandperret e Mathieu Bompoint Uma produção Les Films du Worso Distribuição: Pan-Européenne Duração: 1h37min
Meurtrières: © 2006 Les films du Worso - Emael films - Rectangle Productions
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É preciso não se enganar. Mesmo se tratando de um projeto existente há 30 anos, mesmo que Grandperret retome a tradição meio fora de moda do road movie e ainda que sua mise-en- scène abalada possa parecer desatualizada, Assassinas é, com certeza, um filme dos dias de hoje. Trata-se do nosso mundo, um mundo de livre circulação de mercadorias e pessoas. É inútil levantar o muro, o portão do hospital psiquiátrico não está trancado, as “bruxas” podem ir e vir a seu bel-prazer, mas a verdadeira loucura as espera lá fora, pois ainda pior é vagar no espaço aberto. É com certeza o nosso mundo, onde o local – a varanda do bar, o matagal, a barraca na feira – coteja, de modo selvagem e sem continuidade, o longínquo e até o global: o desmatamento mundial, as aventuras orientais, a caligrafia chinesa... Um mundo onde o possível perdeu totalmente a medida, surgindo e desaparecendo em algum canto, sem avisar: falaciosa disponibilidade, pura miragem. É exatamente o nosso tempo que Grandperret filma, tempo do virtual e da mentira do acesso a tudo, tempo em que se pode, por desespero, tornarse assassino ou assassina, com a única finalidade de se proporcionar uma história, cuja promessa se faz claramente para ser descumprida a seguir.
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DE VOLTA À NORMANDIA Retour en Normandie (2006)
De Nicolas Philibert – Documentário – Duração 113’
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Em 1975, Nicolas Philibert foi assistente de direção de René Allio em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, baseado num crime local descrito em livro pelo filósofo Michel Foucault. Filmado na Normandia, a alguns quilômetros de onde aconteceu o triplo assassinato, o traço mais especial do trabalho de Allio era o fato de que todos os personagens do filme foram interpretados por camponeses da região. Trinta anos depois, Philibert retorna à Normandia para reencontrar estes atores de ocasião, personagens da vida real. Seleções dos festivais internacionais Seleção Oficial Fora de Competição no Festival de Cannes 2007 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Festival Internacional do Filme de Belgrade 2008 Festival Internacional do Filme de Münich 2007 Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro 2007 Festival Internacional do Filme de Viena (Viennale) 2007
Nicolas Philibert Nicolas Philibert nasceu em 1951. Aos 19 anos, durante as férias escolares, faz sua primeira incursão no cinema ao lado de René Allio, participando da filmagem de Camisards. Após fazer o curso de Filosofia, Philibert volta a encontrar Allio durante a filmagem de Rude journée pour la Reine (1973), antes de assumir a função de assistente de direção de Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (1976), experiência que vai marcar para sempre a sua carreira. Em 1978, correaliza com Gérard Mordillat seu primeiro longa-metragem, o documentário La voix de son maître, uma análise engajada do discurso patronal. De 1985 a 1987, Nicolas Philibert realiza diversos documentários para a TV sobre montanha e esportes de aventura. Em seguida, dedica-se à direção de documentários em longa-metragem distribuídos para salas de projeção, entre os quais: A cidade Louvre (1990), sobre a atividade noturna do célebre museu; O país dos surdos (1992), sobre a cultura e o cotidiano das pessoas acometidas de surdez total; O mínimo das coisas (1996) ou ainda Qui sait? (1998), filme-ensaio realizado com os alunos da escola do Teatro Nacional de Estrasburgo. Em 2001, Philibert realiza Ser e ter, sobre o cotidiano de uma escola com uma única classe, localizada num vilarejo francês, nas montanhas do Maciço Central. Prêmio Louis Delluc 2002, esse filme faz enorme sucesso na França e no exterior. Em 2004, é convidado pela prestigiosa Fémis (Escola Nacional Superior dos Ofícios da Imagem e do Som) para realizar uma conferência, para a qual escolhe como tema a obra de René Allio. Chocado com o fato de a plateia desconhecer Allio, Philibert decide voltar aos locais da filmagem de Eu, Pierre Rivière... para realizar o documentário De volta à Normandia (2006).
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DE VOLTA À NORMANDIA de NICOLAS PHILIBERT Cahiers du Cinéma nº 627 – Outubro de 2007
FALA DA IMAGEM por EUGENIO RENZI
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Em 1975, o cineasta René Allio levava às telas o caso publicado dois anos antes pelo filósofo Michel Foucault, com o título: Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Na condição de primeiro assistente de direção, Nicolas Philibert havia participado da lendária realização desse filme e contratara para o papel de camponeses os habitantes de uma comunidade agrícola. Aqui, ele volta às locações da filmagem, que também foram as do crime, ocorrido em 1835. No entanto, seu filme De volta à Normandia é menos uma tentativa a mais para penetrar o segredo do “Eu” de Rivière do que uma genealogia do filme de Allio. Em outras palavras: não é verdadeiramente uma mudança de direção. É mais uma visita ao Norte, passando pelo Noroeste. Não importa. A beleza da paisagem compensa a mudança de caminho. Em voz off, duas narrativas avançam em paralelo, tal como os trilhos de uma estrada de ferro. A primeira nos conduz diretamente a meados dos anos 1970. Enquanto, em Paris, Allio decupa seu gigantesco roteiro, na esperança de encontrar um produtor, Philibert, por sua vez, já se encontra na Normandia para a escolha das locações, dos figurinos e, principalmente, dos protagonistas. À aventura do passado junta-se a de hoje, narrada como a outra, no imperfeito, ainda sem saber se o filme chegará a seu destino. Philibert tem
vários locais para visitar, algumas ideias e, como elenco, a mesma comunidade rural de 1975. A história da preparação da primeira filmagem repete-se na segunda. Novamente os camponeses são colocados diante de uma câmera. Alguns, como o agricultor Roger, simplesmente para serem filmados no trabalho, no lazer ou durante um casamento. Outros, para que falem sozinhos, em dupla ou em pequeno grupo, sobre o filme de Allio e também a respeito da própria vida. Com isso, Philibert parece realmente voltar a Allio. Menos à sua época – inevitavelmente passada – do que à essência de um gesto cinematográfico que consiste em afirmar a soberania, a independência e a fecundidade da fala camponesa. Mas, se isso for verdade – o balanço da experiência de Eu, Pierre Rivière... se manifesta aqui, exclusivamente, através dos discursos da comunidade rural –, fica evidente que De volta à Normandia caminha numa direção diferente da de Allio. O primeiro sinal da diferença entre eles emana das falas dos antigos atores. Através das dúvidas de Joseph – que se pergunta por que foi escolhido para o papel de marido enganado – ou das lembranças de Annick – que confessa jamais ter podido falar da filmagem com a família –, Philibert pode mensurar o sucesso e o fracasso do projeto de seu mestre. O sucesso: trinta anos depois, permanece nos discursos a impressão de que Eu, Pierre Rivière... foi um formidável momento de fusão
dos camponeses com sua própria história. O fracasso: sob a eloquência dos camponeses-atores esconde-se também um não-dito, além de ilusão e confusão. A força da sua fala não passava de um empréstimo a ser pago no futuro. Mas o proprietário – o cinema – acabou reivindicando os seus direitos. Essa confusão fica evidente, a contrario, na foto do grupo de camponeses e técnicos, em que a apresentação das imagens dá a impressão de que existe uma comunidade original, que reúne o mundo dos camponeses e o mundo do cinema. Essa imagem que De volta à Normandia mostra no momento dos reencontros é o lugar primitivo do cinema de Allio, sua pátria, sua utopia. É por essa razão que Philibert, à procura de seu próprio filme, só consegue dele se afastar. E é por isso que, à medida que De volta à Normandia avança, vai deixando os camponeses cada vez mais sós, discutindo com os trechos extraídos de Eu, Pierre Rivière..., isto é, com seu próprio simulacro. Quando o corpo de Philibert finalmente entra em quadro, não é para retomar a antiga aliança selada na foto, mas, ao contrário, para construir, por um incessante esforço de subtração, um muro ou um abrigo entre linguagens. Trata-se de uma gigantesca sensação de estar fora de seu contexto e de uma profunda melancolia com o fim iminente da era da película, o mesmo se passando com a comunidade rural, que parece progressivamente
tomada pela afasia. Por essa razão, uma das protagonistas chegou a passar mal, com uma patologia claramente associada a seu engajamento político de então. Quanto a Claude Hébert, sua reaparição é surpreendente: o ex-intérprete de Pierre Rivière, considerado tão solitário quanto ele, tornou-se uma figura delicadamente inapreensível, quase ausente. Talvez a volta devesse passar por aí e perder-se num impasse de expressão, para que Philibert pudesse encontrar a saída do labirinto e finalmente voltar para casa. Na verdade, a saída estava visível desde o início. Nos créditos iniciais, assistimos a uma sequência sem diálogos, totalmente muda. A câmera filma o nascimento de uma ninhada de porquinhos. Depois enquadra um dos recém-nascidos deitado em seu leito de palha, com a mão de Roger dando-lhe vários tapas. Numa terceira cena, a mesma mão vacina os porquinhos, um após o outro, e lhes corta os dentes. Apresentada no início do filme, a cena é de fato muito eloquente. A presença dos porcos é uma alusão ao cinema camponês dos anos 1970 (Eu, Pierre Rivière... e, também, L’Arbre aux sabots d’Olmi e, evidentemente, Le cochon d’Eustache). Os gritos dos porquinhos remetem aos do assassinato filmado por Allio, do qual se mostra um trecho pouco depois. O gesto de Roger – de cortar os dentes do porquinho antes de devolvê-lo à sua mãe, aos seus irmãos e às suas irmãs – ilustra uma
sabedoria camponesa, certamente mais antiga do que a ciência que analisou, sem encontrar explicação, o caso de Pierre Rivière. Para além da interpretação dos signos, uma indicação é clara: a imagem fala. Ela é capaz de ultrapassar os obstáculos do filme – as afasias dos protagonistas, as hesitações do diretor – para produzir conexões e articular um discurso. Philibert descobre aqui uma nova eloquência e, com ela, uma nova utopia: a do retorno a um sistema de signos inteiramente cinematográfico. No fundo, trata-se de uma mutação que está na filiação de Allio. Mutação monstruosa porque prodigiosa, inesperada, como foi a descoberta, a poucos dias do fim da montagem, de imagens silenciosas do próprio pai de Philibert, em uma cena cortada de Eu, Pierre Rivière..., e das quais se apresentam alguns fragmentos em forma de conclusão.
O Cahiers du Cinéma publicou o Caderno do cineasta dedicado a De volta à Normandia em seu número 616.
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DE VOLTA À NORMANDIA de NICOLAS PHILIBERT Cahiers du Cinéma nº 623 – Maio de 2007
SER CINEASTA, TER MEMÓRIA por JEAN-MICHEL FRODON
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“É preciso fazer um filme que expresse melhor, em termos artísticos e poéticos, o que eu aqui escrevo ou costumo dizer com frequência, ou seja, que desejo salvar do esquecimento e da morte... esses momentos tão violentos, tão dramáticos, tão intensos ou tão belos, de todas aquelas vidas, daqueles que não têm fala, nem deixam vestígio, tampouco possuem conhecimento de vida, nem possuem imaginação, coragem, criatividade ou amor, mas simplesmente existem, continuam a existir, ou mudam, ou apenas permanecem vivos. [...] É preciso ser como a erva daninha: continuar seguindo em frente, crescendo sem parar, sem deixar que lhe arranquem as raízes. É isso: com meus filmes, quero ser como a erva daninha, sê-lo por mim mesmo, tendo dúvidas ou ficando deprimido. Essa é a única resposta: mais um filme, mais uma batalha, mais uma investida; ser como a erva daninha, que não perde suas raízes.” Depois do triunfo de Ser e ter, transformado, com seu cortejo de honrarias e processos, em algo estranho e um tanto monstruoso, Nicolas Philibert inventa, da maneira mais bela, um “depois” que não seja uma continuação nem uma negação. Como já sabemos – conferir no Caderno do cineasta publicado com o Cahiers du Cinéma nº 616 –, esse filme consiste em uma volta à filmagem de Eu, Pierre Rivière... realizado por René Allio em 1975, de quem Philibert foi assistente de direção.
De volta à Normandia é um filme de grande ambição, que estrutura um conjunto de múltiplas pistas de reflexão, assonâncias e estridências bastante heterogêneas. É um filme trabalhado com intensa afeição, que escolhe cuidadosamente seus objetos e razões de amor. Entre eles, o que lhe faz enorme justiça, o próprio René Allio, cineasta maior jogado num ostracismo absurdo. As palavras que abrem este artigo foram extraídas dos cadernos de Allio. Elas valem também para o filme de Philibert, que explica como foi fundamental a ligação entre o primeiro homem de cinema que confiou nele e o filme de aventuras políticas e cotidianas, artísticas e afetuosas que é o documentário De volta à Normandia. Conta Nicolas Philibert: “No final de 2004, a Fémis (Escola Nacional Superior dos Ofícios da Imagem e do Som) me convidou para apresentar aos estudantes um filme de minha escolha. Propus Eu, Pierre Rivière. Nenhum deles tinha assistido ao filme. A maioria sequer conhecia o nome de Allio, menos de dez anos após sua morte. Isso me chocou. No final da exibição, em vez de fazer um debate, li para eles, durante uma hora, vários textos com anotações de Allio sobre seu filme, extraídas de seus cadernos. Eles descobriram então um cineasta, uma obra singular, apaixonante, e ficaram impactados. Voltei para casa e decidi fazer esse filme. Eu havia guardado,
durante trinta anos, fotos e documentos referentes à filmagem, o planejamento do trabalho e meu exemplar do roteiro... Foi assim que tudo começou.”
Direção: Nicolas Philibert Fotografia: Katell Dijan Som: Yolande Decarsin Montagem: Nicolas Philibert, Thaddée Bertrand Produção: Les Films d’ici / Serge Lalou – Maïa Films / Gilles Sandoz – Arte France Cinéma Distribuição: Les Films du Losange Duração: 1h53min
DE VOLTA À NORMANDIA França, 2006
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O ÚLTIMO DOS LOUCOS Le dernier des fous (2006)
De Laurent Achard – Drama – Duração 96’ Com Julien Cochelin, Pascal Cervo, Annie Cordy, Fettouma Bouamari, Dominique Reymond, Jean-Yves Chatelais
É verão e começo das férias. Martin tem onze anos, vive na fazenda de seus pais e observa, desamparado, a desunião de sua família: sua mãe vive enfurnada em seu quarto, seu irmão mais velho, que ele adora, se afoga no álcool, e seu pai é dominado pela avó. O menino assiste a um desastre familiar. Mas Mistigri, seu gato, e Malika, uma amiga marroquina, procuram reconfortá-lo de alguma forma…
40 Seleções dos festivais internacionais Festival Internacional do Cinema Independente de Buenos Aires – Bafici 2007 Festival Internacional do Filme de Locarno 2006 Festival Internacional do Filme de Vienne (Viennale) 2006 Premiações Laureado com o Prêmio Jean Vigo 2006 de Melhor Longa-Metragem Prêmio de Cenário no Festival de Locarno 2006
Laurent Achard Nascido em 1963, Laurent Achard inicia sua carreira como assistente de direção de Jean-Claude Guiguet e de Gérard Frot-Coutaz. Dirigiu vários curtas-metragens que tiveram boa acolhida, como Qu’en savent les morts? (1990), Dimanche ou les fantômes (Prêmio especial do Júri de Clermont-Ferrand em 1994), Une odeur de géranium (1997), antes de realizar seu primeiro longa-metragem, Plus qu’hier, moins que demain (1999). Apesar das dificuldades na distribuição, o filme alcançou grande sucesso de crítica. Filme sensível que inicia num tom de crônica familiar e interiorana e termina com um certo mal-estar, Plus qu’hier, moins que demain se destaca por sua preocupação com os detalhes na observação dos locais e dos sentimentos. Seu virtuosismo narrativo, a decupagem de planos fixos e a direção dos atores, em sua maioria amadores, inscrevem esse filme na melhor linhagem do cinema realista francês. Cineasta discreto, pouco expansivo em relação a seu trabalho, Laurent Achard constrói lentamente uma obra de surpreendente coerência. Após a realização de um novo curta-metragem, O medo, pequeno caçador (2004), ele assina seu segundo longa-metragem, O último dos loucos (2006), adaptação de um romance do canadense Timothy Findley. O filme recebe o Prêmio Jean Vigo de 2006 e, nesse mesmo ano, o Prêmio de Direção no Festival de Locarno.
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O ÚLTIMO DOS LOUCOS de LAURENT ACHARD Cahiers du Cinéma nº 619 – Janeiro de 2007
O ÚLTIMO DOS LOUCOS por EMMANUEL BURDEAU
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Existe uma forma simples de atacar o segundo longa-metragem de Laurent Achard, Prêmio Jean Vigo 2006: identificar tudo o que o associa ao “jovem cinema francês” dos anos 1990 e à sua reformulação hardcore pelos anos 2000: a família e seu cortejo de horrores; uma província tão genérica que não é identificada; alguns cadáveres de animais para falar da natureza perversa e da crueldade que estão à espreita; a loucura das mães, a homossexualidade dos filhos; e, em meio a tudo isso, a infância, ao mesmo tempo vítima e último recurso. O ataque não seria indevido, tamanho o déjà vu ali existente, mas deixaria passar a real ambição do filme. O último dos loucos desenvolve O medo, pequeno caçador, curta-metragem de Achard produzido em 2004 para a coleção Portraits d’Arte et d’Hatari, um dos títulos mais admirados dos últimos anos, que fez grande sucesso em festivais e que o CNDP oportunamente reeditou, num DVD dedicado à “Forma Curta”. Os 9 minutos de um plano-sequência transformaram-se em 1 hora e 36 minutos: uma fazenda, um garotinho e suas angústias, uma mãe “ausente” e o barulho do inferno em off, como a estridência de eixos ou um supersônico urrando sobre a cabeça.
Laurent Achard quis, evidentemente, que o longa tivesse a mesma característica de enigma que o curta. E é aí que começa o problema. O que era puro balé de movimentos e sons na entrada de uma casa tem um resultado totalmente diferente no contexto mais articulado de um longa-metragem: uma opacidade obstinada que só concede uma ínfima informação a contragosto, ao fim de um suspense minuciosamente resolvido. Alojada no olho de Martin, de 11 anos, a mise-en-scène de Achard se dá, imediata e sistematicamente, por um raccord de olhares, que gera uma percepção do drama por fragmentos. Porém, tal estratégia serve menos para traduzir a parcialidade de um ponto de vista do que para velar evidências narrativas que a cena seguinte terá que revelar: a fazenda vai ser vendida, o filho do comprador é ex-amante da filha mais velha, a mãe está atrás da porta, o revólver está na gaveta etc. Se existe jogo de esconde-esconde, não é entre Martin e os seus, mas entre o filme e seu espectador, que deve recuperar incessantemente o seu atraso no ritmo dos cortes e das mudanças de enquadramento. Mas esse atraso é sobretudo efeito de uma reticência, da recusa de tudo o que poderia parecer clareza, principalmente narrativa. Nesse caso, portanto, não são as
intenções que pesam, e sim a intenção de colocá-las de lado, corroborada, em especial, pela convenção bressoniana de sugerir mais do que mostrar. Manda o costume que se desaprove, no cinema francês, seu psicologismo e seu realismo terra a terra, muito raso e muito próximo da vida... Evidentemente que hoje o inverso é que é verdadeiro, especialmente num filme como O último dos loucos: antipsicológico demais, muito ligado ao que está fora da cena e seus mistérios, confiante demais numa certa identidade do naturalismo e do fantástico, da crônica e do conto. Existia, no entanto, a promessa de um filme, e não era qualquer filme, na adaptação que o cineasta realiza de um romance de Timothy Findley: a história de um pequeno caçador valente que semeia impunemente o mal à sua volta, atingindo desde o gato até seus pais (segundo uma leitura comentada em Belfort, onde o filme ganhou o Prêmio do Público). Sente-se igualmente algo visceral, uma fatalidade que pesa duramente e, às vezes, intensamente sobre os planos, uma raiva forte e muito resistente, em Laurent Achard. Mas essa raiva acaba sendo sufocada, com muita frequência, pela obscuridade de um cinema que só tem por família o realismo, parecendo odiar tanto este quanto aquela.
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O ÚLTIMO DOS LOUCOS França, 2006 Direção: Laurent Achard Elenco: Julien Cochelin, Annie Cordy, Pascal Cervo,Dominique Reymond, Jean-Yves Chatelais, Fettouma Bouamari Duração: 1h36min
POVOADO NUMBER ONE Bled Number One (2006)
De Rabah Ameur-Zaïmeche – Drama – Duração 100’ Com Meriem Serbah, Abel Jafri, Rabah Ameur-Zaïmeche, Farida Ouchani, Ramzy Bedia, Jeanne Balibar
Mal saiu da prisão, Kamel é expulso da França para seu país de origem, a Argélia. Este exílio forçado o leva a observar com lucidez um país em plena transformação dividido entre o desejo de modernidade e o peso das tradições ancestrais.
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Seleções dos festivais internacionais Festival Internacional do Filme de Rotterdam 2007 Festival Internacional do Filme de Turin 2006 Festival Internacional do Filme Francófono de Namur 2006 Festival Internacional do Filme de Mar Del Plata 2007 Premiações Prix de la Jeunesse (Prêmio da Juventude) – Festival de Cannes 2006 categoria Un Certain Regard (Um certo olhar)
Rabah Ameur-Zaïmeche Rabah Ameur-Zaïmeche nasceu na Argélia, em 1966. Estava com 2 anos de idade quando seus pais decidem se mudar para a região parisiense. Após os estudos de ciências humanas, ele filma em Montfermeil, na Cité des Bosquets, onde cresceu, seu primeiro longa-metragem Wesh Wesh, o que foi? (2001). Diretor, roteirista e produtor, Rabah Ameur-Zaïmeche é também protagonista do filme, interpretando Kamel, um jovem que, após ter sido condenado a uma pena dupla, volta à França clandestinamente em busca de emprego. Aplaudido pela crítica, Wesh Wesh, o que foi? recebe o Prêmio Louis Delluc em 2002 e o Grande Prêmio do Fórum no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 2002. Rabah Ameur-Zaïmeche viaja para sua terra natal, no nordeste da Argélia, para filmar seu segundo longa-metragem, Povoado Number One (2006), com um elenco em que a maioria dos atores é de membros de sua família. Nesse filme, reencontramos Kamel num exílio forçado na Argélia, diante de uma sociedade que ele mal conhece. Aliando força documentária e audácias formais, o filme apresentado na Seleção Oficial de Cannes em 2006, na categoria Un Certain Regard (Um Certo Olhar), recebe o Prix de la Jeunesse (Prêmio da Juventude). Dois anos depois, Rabah Ameur-Zaïmeche volta a Cannes, dessa vez para a Quinzena dos Realizadores com O último reduto (2008), uma obra poética e política que aborda um tema delicado: a prática do islamismo dentro de uma empresa.
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POVOADO NUMBER ONE de RABAH AMEUR-ZAÏMECHE Cahiers du Cinéma nº 612 – Maio de 2006
RABAH AMEUR-ZAÏMECHE, SOB TENSÃO COM AMOR Entrevista concedida a STÉPHANE DELORME e JEAN-MICHEL FRODON
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Após Wesh Wesh (2001), Rabah Ameur-Zaïmeche traz de volta seu personagem Kamel. Ele desembarca no bled 1 de seus antepassados, um povoado onde imperam, simultaneamente, um modo de vida coletivo solidário, a violência integrista contemporânea e a violência contra as mulheres sempre que estas transgridem as normas sociais. Entre paisagens sublimes, sons do violão de Rodolphe Burger, conflitos, amizade e práticas mágicas, Rabah Ameur-Zaïmeche inventa um cinema sensual, intenso e preciso, que faz de seu filme, a ser lançado em 7 de junho, uma das revelações do Festival. O filme nunca indica onde estamos... Filmei em Cabo Bougaroun, na minha tribo, na costa nordeste da Argélia. O que o filme mostra é extremamente local e, ao mesmo tempo, bem representativo dos povoados isolados que existem nas montanhas da Argélia. Quando eu era criança, ia até lá todos os verões, mas já fazia 17 anos que eu não voltava ao povoado. As pessoas, no entanto, nos receberam de forma extraordinária e mergulharam na história com uma intensidade nunca vista.
Você escreveu a história na França? Sim, com Louise Thermes. Escrevemos o roteiro de forma bem rigorosa, para termos todas as chances no CNC. Depois, nos desprendemos totalmente da estrutura narrativa. Ao chegar, quis fazer algo bem convencional, mas a cidade inteira estava lá, à nossa volta, era impossível filmar. Em consideração aos habitantes, paramos tudo e passamos a seguir nosso instinto. Nos primeiros dias, filmamos as pessoas, os bares, as varandas, as cegonhas, alguns animais. Uma vez imersos naquele contexto, pudemos então trabalhar. Vocês tinham feito locações? Fui à Argélia quinze dias antes de começar a filmar para relembrar as paisagens. Eu já sabia que iria acrescentar alguns elementos, como a Zerda, uma grande festa que consiste em sacrificar um animal e repartir sua carne de forma equitativa entre todas as famílias. Eu queria valorizar essa festa, pois ela faz parte das práticas ancestrais e até pré-islâmicas que ainda permanecem vivas na Argélia. A profunda tristeza da diáspora argelina que vive na França provém, pelo menos em parte, da ruptura brutal com essa herança. Se você for oriundo do meio rural, analfabeto, patriarcal, com aqueles ritos arcaicos, a dificuldade para se adaptar é incomensurável. Nossos pais que foram para a França
precisaram vencer um abismo gigantesco para descobrir como viver num mundo tão diferente do deles. No filme, essa sociedade tradicional é perturbada pela invasão de jovens integristas. Essa violência está inscrita na Argélia, em suas paisagens, na sua história. Desde 1945, pelo menos, o povo argelino vive acossado e sob tensão. E não teve trégua até hoje. Quis jogar o foco sobre essa tensão, que é, de fato, palpável. Os problemas entre gerações não são novos. A juventude argelina está desempregada há dezenas de anos e, ali ao lado, os irmãos mais velhos estão jogando dominó. A intenção não era descrever uma realidade contemporânea, e sim fazer ressurgirem lembranças imemoriais. E a Argélia é uma terra banhada em sangue desde os tempos mais remotos. Parte-se de um mundo bem masculino e violento e o filme vai tomando, pouco a pouco, o partido das mulheres e do lirismo... Kamel mergulha no mundo masculino, onde a maioria dos jovens vegeta, e que mantém um sistema de coerção em que as mulheres são sempre oprimidas. A partir do momento em que Bouzid, o personagem mais simpático e que tenta organizar a resistência da cidade, começa a agredir a irmã, tudo se desequilibra.
O desequilíbrio leva ao asilo... No asilo psiquiátrico, em Constantina, descobrimos mulheres extraordinárias. Elas dizem que “os loucos estão lá fora” e têm toda razão. Durante os dez anos de guerra civil, a maioria das famílias viveu traumas inimagináveis. O asilo, seja ele refúgio ou liberdade, é uma excelente maneira de traduzir o que se passa no povoado. Vocês tiveram problemas para filmar? Tínhamos uma autorização geral da segurança nacional, e as forças de manutenção da ordem, o exército, a prefeitura, a mídia, todos nos apoiaram. Mesmo assim, ainda havia perigo na região. Durante as filmagens, houve mortes não muito longe dali. Mas fomos poupados, pois as pessoas estavam contentes, levávamos a elas um pouco de alegria. Como vocês trabalharam com os atores? Gravei planos-sequência às vezes de 90 minutos, até que viesse uma luz. Usávamos o tempo todo duas DSR 570 (câmeras de vídeo para reportagem de TV). Passávamos os diálogos para todos, mas o importante era dar uma ideia condutora, para gerar uma discussão que pareceria improvisada. As pessoas contribuíram com suas palavras, seus desejos, seu sotaque, mas colocaram também sua força e sua generosidade. E isso nenhum diretor pode
substituir. É a relação humana que prima na direção de um filme. No início, eu queria filmar com Isabelle Adjani, mas alguém me falou da atriz que fazia o papel da mãe em A esquiva. Assim que Meriem Serbah entrou, esqueci Adjani. E quando soube que ela era cantora de jazz, mudamos o roteiro para que ela pudesse cantar no filme. O filme não fala do Islã... Não é o Islã que está na origem da opressão das mulheres, isso vem de muito mais longe. Nós queríamos aguardar uma espécie de tempo de passagem, um espaço intermediário, como se o tempo tivesse parado e passasse lentamente, como se fosse um universo paralelo. É um hino de amor à terra argelina. Sim. Tenho inclusive o sentimento de que é uma carta de amor enviada pela França. Fomos mobilizados pela paisagem, fomos tocados por algo impalpável, insondável, mágico. Às vezes, tinha a impressão de que havia algo dentro de mim, eu mudava de humor. As pessoas vinham até nós, faziam orações, elogios, falavam de nossos antepassados. Eu até gostaria de escrever poesias, pintar. Mas o problema da poesia é que fazemos aflorar algo que nunca conseguimos alcançar. O cinema permite essa aproximação. Permite que façamos o espectador acreditar que ele é tão imenso quanto o universo.
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1 Bled: Palavra árabe que designa povoado, terra natal (N. do T.).
POVOADO NUMBER ONE de RABAH AMEUR-ZAÏMECHE Cahiers du Cinéma nº 613 – Junho de 2006
À AVENTURA por JEAN-MICHEL FRODON
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O que foi? Perguntava o primeiro filme de Rabah Ameur-Zaïmeche. O que foi? Torna a perguntar seu segundo filme e, com ele, seus espectadores, enquanto pega a estrada, ou melhor, a rua, a artéria que é percorrida durante um travelling antes de ser explorada, na primeira cena do filme. Mas, em que direção? Estamos sem dúvida na Argélia, mas onde? Em uma pequena cidade, responderá pouco a pouco o filme, que irá progressivamente acrescentando que a montanha fica por perto e que o mar não está longe dali. Não se saberá muito mais do que isso, à medida que vão surgindo os diversos personagens de Povoado Number One. Primeira opção de um filme, em que a inserção no espaço é essencial, mas cuja localização fica em aberto. Essa “abertura” é apenas uma das molas da surpreendente aventura que é, para o espectador, ver esse filme. Uma vez situados no plano geográfico, tentamos, em geral, localizar os personagens principais e secundários, identificar uma intriga e as eventuais bifurcações da narrativa. Aqui, não é o caso. O filme, muito simples e muito acolhedor para quem o acompanha, não se curva a nenhuma das expectativas previstas. Mal identificamos Kamel e nos damos conta de que já o conhecemos (interpretado pelo próprio Rabah Ameur-Zaïmeche,
que já tinha sido o herói de Wesh Wesh, o que foi?, há quatro anos, ele volta ao povoado, talvez expulso, após haver purgado a condenação do filme anterior), nossa atenção já é desviada para outro ponto. Kamel voltará a aparecer com frequência – pois tem um lugar importante no conjunto de Povoado – mas, por enquanto, a película faz uma crônica da vida na cidade, zerando os marcadores da ficção, para deixar o filme correr, deixar que se filmem os gestos, as palavras, as relações entre os frequentadores do bistrô, jogadores de dominó... Desse emaranhado de situações reais surgirá uma história ou um “tema”. Aqui temos um bonito e verdadeiro: um ataque de jovens integristas que chegam agredindo a clientela. E, entre ação e reação, eis que surge um personagem romanesco, Bouzid, que organiza a população contra os adolescentes violentos, que voltam para a floresta. E depois... não. A guerrilha islâmica está bem ali, fora de quadro, e Bouzid é uma figura que vai ganhando visibilidade na construção do filme. Ele não o estrutura, não é o herói, nem o anti-herói, quando se descobre o lado antipático desse personagem. A história não seria então a da jovem que larga o marido que a maltratava, e que sua própria família se recusa a acolher juntamente com o filho? Não exatamente, mesmo que, à margem no início, Louisa vá se
aproximando do centro de Povoado... Mas o que foi? O que aconteceu? Acontece que, sem nenhum efeito de manipulação autoral, Rabah AmeurZaïmeche simplesmente inventa, sob nossos olhos, uma forma inédita de dirigir. Histórias existem, e muitas. Personagens, também. Temas? Aos montes: violência integrista, solidariedade comunitária, lei tradicional impiedosa com as mulheres, relações entre as crianças do país para onde emigraram e as que ficaram no povoado... Mas, nem as histórias, nem os personagens, nem os temas são condutores do filme, que não se refere a apenas um desenrolar de acontecimentos, nem a vários. Poderíamos até evocar os filmes mais leves de Hou Hsiao-hsien, se cada plano já não estivesse, nesse momento, carregado da matéria e da luz que têm tudo a ver com essa terra da África do Norte, às margens do Mediterrâneo. À medida que, sempre com muita simplicidade, sempre de forma muito atenta aos gestos, às fisionomias, às expressões cotidianas, Rabah AmeurZaïmeche vai compondo as sequências, fica mais claro que elas funcionam por “camadas”, por zonas de espaço-tempo, que vão ganhando coerência graças a um objetivo, uma emoção, uma reunião de elementos de diversas naturezas: determinados sons, determinada luz, determinadas vibrações se entrelaçam e compõem um estado sólido, porém
transitório. A essa arte poética de composição dos blocos de espaço-tempo-história junta-se um conhecimento ou uma intuição muito segura na forma de reuni-los. Jamais para que se ajustem por completo, jamais heterogêneos demais, compatíveis, mas diferentes. Como as camadas sonoras que vários músicos emitem, cada um tocando sua própria linha melódica, mas dentro de um mesmo sentimento da música. Como um quadro composto de cenas distintas, pintadas com cores diferentes, que juntas passam a ter uma outra compatibilidade, um sentido mais amplo. Esse modo de realizar aposta com convicção na natureza dupla do que surge na tela, realidade representada: o corpo dos atores e o papel dos personagens; a realidade da natureza, da escuridão da noite, da força mitológica da floresta ou do mar etc. e a razão de constarem da narrativa. Os rompantes de violência, às vezes extremos, repercutem entre si, sem se equilibrar e, ainda menos, sem se explicar. Nada de sentido fechado, nenhuma simetria e muito confronto em que ninguém dá as costas ao outro. Certo de seu equilíbrio – que ele confirma seguindo em frente sem cair –, esse exercício de mise-en-scène malabarista, em constante risco de perder o estreito fio entre realidade e ficção, abre espaços imensos e possibilidades que parecem infinitas.
Acompanhando uma trajetória, há uma música, uma canção: surge Rodolphe Burger, sentado na colina, tocando a música e cantando a canção, violão na mão, amplificador ao lado. Sem muito esforço, o filme lhes atribui um lugar na imagem, lugar que já possuíam na trilha sonora. Exaurida pelas ofensas e revoltas, Louisa (magnífica Meriem Serbah) é levada ao mar para ser exorcizada. Arcaísmo e superstição entreabrem-se, deixando surgir um verdadeiro cerimonial mágico, inexplicável como a beleza do cinema. Antes (ou depois?), surge então a memória armada da luta de libertação, e eis que o filme no qual os homens dominavam vai se centrar nas mulheres, eis que a história do campo vai se situar na cidade grande. Como sempre acontece quando a mise-en-scène se encontra no perfeito diapasão do que ela filma e das razões para filmá-lo, todos os objetos ficam carregados de hipóteses de ficção, de ecos poéticos e de sentidos tão diversos quanto essa ponte, passagem ou ponto limite, cruzamento de vida ou de morte ou fronteira metafísica, onde o destino de Louisa perderá seu equilíbrio. O filme tem escolha. O personagem tem escolha. O mundo está ali. Há uma loucura, isto é, uma lógica alternativa àquela das diferentes ordens dominantes (inclusive a ordem cinematográfica), tanto na organização do filme como no comportamento – infelizmente tão realista – de seus personagens. Povoado Number One então acaba entrando naturalmente na seara dos loucos, ou melhor, das loucas, essas mulheres que se fecham em si ou que, ao contrário, reivindicam o direito de ultrapassar limites. E uma delas, que não é louca, mas se encontra entre as loucas, a magnífica mulher-médica, fala uma língua da razão que, nesse contexto, mais
parece um canto quase sobrenatural. E a outra, a mais bela das loucas, a Louisa que todos sempre quiseram calar, repentinamente canta, de forma esplêndida, com uma voz que se converte num blues natural. Nesse momento, o filme se parece com a médica e a cantora ao mesmo tempo, diz também palavras de sabedoria e faz aflorar um sopro, em que sofrimento e beleza se misturam, nascido do mundo como ele é, e buscando em outro lugar.
POVOADO NUMBER ONE França, Argélia, 2006 Direção: Rabah Ameur-Zaïmeche Roteiro: Rabah Ameur-Zaïmeche e Louise Thermes Fotografia: Lionel Sautier, Hakim Si Ahmed Som: Thimotée Alazraki Montagem: Nicolas Bancilhon Música: Rodolphe Burger Elenco: Meriem Serbah, Abel Jafri, Rabah Ameur-Zaïmeche, Farida Ouchani, Ramzy Bedia Produção: Carole Solive e Lofti Bouchouch Distribuição: Les Films du Losange Duração: 1h40min
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A FRANÇA La France (2007)
De Serge Bozon – Drama – Duração 102’ Com Sylvie Testud, Pascal Greggory, Gullaume Verdier, Jean-Christophe Bouvet, Guillaume Depardieu, Benjamin Esdraffo, François Négret, Laurent Talon
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No outono de 1917, a guerra prossegue. A milhas de distância do campo de batalha, a jovem Camille leva uma vida marcada pelas notícias que seu marido manda do front. Um dia ela recebe uma carta em que ele termina com o casamento. Desnorteada e determinada a continuar a qualquer custo, Camille decide se disfarçar de homem para encontrá-lo. Ela segue direto ao front de guerra, cortando caminho pelos campos para evitar as autoridades. Numa floresta, passa por um pequeno grupo de soldados que não suspeita de sua identidade. Ela os segue e assim embarca numa nova vida e, conforme os dias e as noites passam, descobre o que nunca poderia imaginar, o que seu marido nunca lhe contou e o que seus novos companheiros irão evitar lhe mostrar: a verdadeira França.
Seleções dos festivais internacionais Quinzaine des Réalisateurs au Festival de Cannes 2007 Festival Internacional do Cinema Independente de Buenos Aires – Bafici 2008 Festival Internacional de Cinema Contemporâneo do México – Ficco 2008 Festival Internacional do Filme de San Francisco 2008 Festival Internacional do Filme de Rotterdam 2008 Festival Internacional do Filme de Viena (Viennale) 2007 New York – New Directors New Films 2008 Premiações Laureado com o Prêmio Jean Vigo 2007 de Melhor Longa-metragem Prêmio de Melhor Cineasta de Ficção do Festival Internacional de Cinema Contemporâneo do México – Ficco 2008
Serge Bozon Nascido em 1972, Serge Bozon inicia sua carreira como ator, principalmente nos filmes de Jean-Paul Civeyrac e de Cédric Kahn. Depois de atuar em vários curtas-metragens, passa em 1997 à direção do seu primeiro longa-metragem, L’amitié (1998), a história de uma mulher que procura encontrar um dos seus antigos amantes. Com seu segundo filme, Mods (2003), uma obra híbrida marcada por cenas de dança com coreografias minimalistas, nem totalmente uma comédia musical, nem exatamente um filme sobre uma corrente musical, ele renova sua colaboração com a roteirista Axelle Ropert. Em 2007, Serge Bozon realiza A França (2007), filme em que o diretor mergulha seus personagens na Guerra Mundial de 1914-1918. Ao mesmo tempo romance, comédia musical e filme de guerra insólito, A França narra a história de uma mulher que se faz passar por homem e parte para o front em busca de seu marido. Laureado com o Prêmio Jean Vigo em 2007, A França também marcou presença, no mesmo ano, na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.
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A FRANÇA de SERGE BOZON Cahiers du Cinéma nº 628 – Novembro de 2007
A GUERRA ATRÁS DAS TRINCHEIRAS por HERVÉ AUBRON
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Tal como zumbis, eles descem assustados de um Gólgota coberto de vegetação. “A gente não conseguia ver nada, como sempre”, constata uma moradora local na base do talude. Já sabemos então que sobre isso – o front da 1ª Primeira Grande Guerra, o estrondo das granadas, a lama das trincheiras – nada veremos ou, talvez, muito pouco. Algumas fardas e explosões pirotécnicas isoladas, durante um travelling em ritmo lento. Mas A França não fica restrita à retaguarda do front, de onde parte rapidamente Camille (Sylvie Testud), disfarçada de homem, na tentativa de encontrar seu marido no front. Ela penetra em um espaço intermediário, uma dimensão paralela, um caminho que parece dos tempos de gazeta escolar. Camille cruza o caminho de um batalhão francês derrotado. Os homens dizem que estão a caminho de um posto de comando, sob o controle de um tenente tão gentil quanto rigoroso (Pascal Greggory). Com muita obstinação, Camille (para todos os efeitos, um jovem rapaz que sonha em combater) consegue ser aceita pelo grupo, o qual ela acompanha num miniêxodo pelos campos. Seu destino se torna cada vez mais misterioso. Os homens mantêm o ânimo trocando receitas de tortas, colhendo cogumelos, recitando trechos de A Atlântida. Mas, sobretudo, tocando músicas e cantando. Num piscar
de olhos, o batalhão se transforma em uma small band. Cada um tira de sua mochila um instrumento feito de material reaproveitado, latas ou pedaços de madeira. O que não é de se estranhar, pois soldados costumavam confeccionar esse tipo de instrumentos nas trincheiras, tendo Serge Bozon se inspirado em fotos da época. O mais estranho, porém, é que os homens entoam um tipo de música pop que viria a substituir, com sonoridades elétricas ou sintéticas, as algazarras dos combatentes da 1ª Grande Guerra. Pairando no limbo de um duplo anacronismo (a 1ª Grande Guerra e o pop dos anos 1960), as canções são interpretadas em som direto, live, em pleno campo. Graças a isso, os homens se ajudam e se apoiam numa espécie de western de bolso: a cada etapa, o círculo da canção é tão protetor quanto o do fogo, delineando um lar temporário no meio de uma terra de ninguém. São sequências estratégicas para delimitar o teatro de operações de Bozon, que reúnem todas as qualidades do filme. Impressionante domínio da paisagem e do retrato, do desenho e das cores (como se fossem oriundas do azul aveludado e desbotado das fardas militares). Enquadramento rígido, desafiando o risco da interligação de belos planos, para criar um suspense real, de sequência
em sequência. Arte dos contrastes constantes: ao mesmo tempo vibração e codificação, a sensualidade das externas e uma estilização verdadeira – tal qual um País das Maravilhas onde se pode desaparecer ou mudar de dimensão ao sabor do luar, onde um batalhão inteiro pode estar nos galhos de uma árvore, como os Gatos do Cheshire. Preciosismo, dirão alguns. O próprio Bozon tem refletido muito a respeito. Tesouro de invenções, mas para quê? Era o limite (horizonte e barreira) de seu filme anterior, o média-metragem Mods (2002), já sob a influência do final dos anos 1960: sua banda musical Mods retrata, nesse período, o código de vestimenta dos bad boys ingleses, algo entre a jaqueta de couro e o dândi. Mods era um filme de câmara, uma “máquina celibatária” que relata os efeitos de uma doença misteriosa sobre os habitantes de uma comunidade em extinção. Principais sintomas: crises de afasia e danças lunáticas. Bozon já não escondia a quadratura de seu círculo: a radical especificidade de seu imaginário parecia só poder expressar seu poder de atração num espaço isolado do mundo exterior. Os mods representavam uma contramoda, ou seja, a moda reservada a um pequeno grupo. Dessa forma, concentravam tudo que a moda tem de negativo (a preocupação doentia com um conjunto de códigos
vazios) sem a contrapartida em troca (lugar-comum, possível zona de encontro). Percebe-se então como A França incorre na mesma fatalidade, que dois soldados resumem ao comparar um tufo de grama a uma miniatura de floresta. Maquetes povoadas de formigas: A França poderia se tornar uma nova “máquina celibatária” a céu aberto. Nos campos, os soldados espalhariam ao vento miniaturas pop, pela simples experimentação, só para ver as flores bizarras que aí germinariam. Algo do gênero: um Wes Anderson bressoniano, em Verdun. Em sua economia (geográfica e financeira), A França lembra dois filmes recentes, que reapresentam o mundo com três gatos pingados no campo: Du soleil pour les gueux, de Alain Guiraudie, e Honor de cavalleria, de Albert Serra. Aparentemente, Bozon sustenta a comparação em termos de plasticidade, mas despreza a ambição política dos dois outros cineastas e a maneira como sua cosmologia reproduz um estado do social. Preso à temática dândi, Bozon ficaria com suas paixões desatualizadas e específicas (um pop e uma cinefilia bem precisos), fechado em sua bolha e sem a menor preocupação de conectá-la ao grande jogo à sua volta – “sigam-me aqueles que me amam”. Hipóteses que A França desmente, pois um longo caminho foi percorrido desde Mods. Traços burlescos ou grotescos vão marcar os colarinhos impecavelmente brancos dos mods, tal como os ruídos estranhos comprometem as canções do filme. A bolha continua ali, mas agora permite ver o horizonte. Ela é sobretudo porosa, infiltrada pelo Exterior. É o Exterior cósmico, a opção pela filmagem ao ar livre, exposta a todas as intempéries, mas é também o Exterior dos homens. Bozon sai de seu território e ingressa nos campos da cidade.
Se ele denuncia aqui seu duplo anacronismo (1ª Grande Guerra x anos 1960, cinefilia x pop), não é para promover sua singularidade, mas para permitir que se veja como é pequeno o espaço hoje atribuído à singularidade de cada um. Bozon escolheu o período de 1914 a 1918, pois sabe que sua cinefilia ou seus gostos musicais, por exemplo, podem parecer coisa de antigos combatentes. Como estar no mundo sem renunciar à sua singularidade, levada, em geral, ao arcaísmo? Como manter a intimidade anacrônica de suas paixões sem remeter a um combatente? Esse está longe de ser o único problema do soldado Bozon. Seu batalhão afastou-se da guerra para criar seu próprio espaço de ação. Estar na retaguarda não significa necessariamente esconder-se. Não ver a guerra não significa que não a vivemos. Viver com a guerra: é a isso que pode se assemelhar hoje em dia a existência de cada singularidade diante dos imperativos de velocidade, fluidez, das bombas audiovisuais e do medo da guerra generalizada (a verdadeira). Haveria ainda sentido em ser cinéfilo, enquanto o mundo parece prestes a se desintegrar, a recomeçar uma guerra mundial? Bozon não tem a menor dúvida de sua resposta. Trata-se de não ceder à chantagem da culpa, arma privilegiada para fazer calar o singular: “Mas vocês, cinéfilos, mods (podemos classificá-los de várias outras formas), o que estão fazendo para que o mundo e a França melhorem?” Nesse tipo de retórica, o singular é levado de fato à deserção. Como articular as escalas, o mundo e todas as pequenas coisas que nos formam: é exatamente isso que deseja explicar, em A França, um dos soldados (François Négret), ao contar a história de seu amigo Philippe. Todos os seus colegas ficaram enfeitiçados pela personalidade de Philippe e por sua paixão pelo mito da Atlântida. Mais tarde,
posto à prova no front, Philippe falou cada vez menos da Atlântida e caiu num abandono mórbido. O que faz a Atlântida para que o mundo melhore? Os mods-soldados suspendem o estado de guerra geral e buscam perpetuar a sua comunidade, abrindo-a para o exterior e para o estrangeiro, sabendo que essa resistência tem por vezes, como contrapartida, o isolamento e a ridicularização. Daí o sucesso das sequências musicais: os corpos se liberam ao mesmo tempo que se imobilizam, como soldadinhos de chumbo eretos cantando seus refrões. São então mortos-vivos, mas também um grupo derrisório de Aristogatos mecânicos, como se Serge Bozon continuasse a temer que o seu folclore finalmente o resgate. Ao menos uma vez, o combatente conseguirá fazer um programa ao qual seu temperamento não parecia estar predestinado: sair do cinema pelo cinema.
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A FRANÇA França, 2007 Direção: Serge Bozon Roteiro: Axelle Ropert Fotografia: Céline Bozon Som: Laurent Gabiot, Pauline Gaillard, Maïkol Montagem: François Quiqueré Música: Mehdi Zannad, Benjamin Esdraffo Elenco: Sylvie Testud, Pascal Greggory, François Négret, Jean-Christophe Bouvet Produção: David Thion - Les Films Pelléas Distribuição: Shellac Duração: 1h42min
TUDO PERDOADO Tout est pardonné (2007)
De Mia Hansen-Løve – Drama – Duração 105’ Com Paul Blain, Marie-Christine Friedrich, Victoire Rousseau, Constance Rousseau, Carole Franck
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Victor vive em Viena com Annette, sua esposa, e sua filha Pamela. É primavera. Fugindo do trabalho, Victor passa os dias fora, brinca com a filha e vadia no Parque. Apaixonada, Annette está confiante que ele tomará jeito. Mas Victor não abandona os maus hábitos e acaba se apaixonando por uma jovem junkie. Onze anos depois, Pamela descobre que o pai vive na mesma cidade e decide vê-lo novamente.
Seleções dos festivais internacionais Quinzaine des Réalisateurs du Festival de Cannes 2007 Festival Internacional do Cinema Independente de Buenos Aires – Bafici 2008 Festival do Filme Francês de Stockholm 2008 Festival Internacional do Filme de Rotterdam 2008 Festival Internacional do Filme de San Francisco 2008 Festival Internacional do Filme de Viena (Viennale) 2007 Premiações Prêmio Louis-Delluc 2007 de Melhor Primeiro Longa-Metragem
Mia Hansen-Løve Nascida em 1981, Mia Hansen-Løve iniciou sua carreira como atriz diante das câmeras de Olivier Assayas no filme Fin août, début septembre (1999) e em Les destinées sentimentales (2000). No ano de 2001, é aceita no Conservatório de Arte Dramática do 10° Arrondissement, em Paris. Trabalhou como crítica do Cahiers du Cinéma de 2003 a 2005, enquanto realizava paralelamente vários curtas-metragens. Tudo perdoado (2007), seu primeiro longa-metragem, foi apresentado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2007 e ganhou o prêmio Louis-Delluc de Melhor Primeiro Longa-metragem. Sua segunda obra, O pai de meus filhos, foi apresentado na categoria Un Certain Regard (Um Certo Olhar), no Festival de Cannes de 2009.
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TUDO PERDOADO de MIA HANSEN-LØVE Cahiers du Cinéma nº 627 – Outubro de 2007
ENTREVISTA com MIA HANSEN-LØVE por AXEL ZEPPENFELD
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A escrita está muito presente no filme: na profissão do pai, nas cartas, no poema... Atualmente só escrevo roteiros e cartas, mas a escrita sempre foi algo precioso para mim. E difícil também. Sempre tive uma relação complicada com ela, mas milagrosamente os roteiros me possibilitaram fugir do que me inibia. O filme veio naturalmente e nele eu me sinto à vontade. E se nele encontramos a escrita, é porque também, de certa forma, me libertei dela. Ela representa muitas coisas: uma interrogação, um complexo, um desafio, uma busca existencial fundamental. Que papel teve sua passagem pela crítica? Minha atuação como crítica do Cahiers du Cinéma teve um papel importante nesse questionamento. Quando comecei a trabalhar no Cahiers, já havia escrito alguns curtas-metragens que eu não tinha conseguido produzir. Mas eu queria, acima de tudo, tentar construir pouco a pouco uma reflexão pessoal sobre o cinema. Queria poder falar melhor dele, ter ideias mais claras. É também uma questão de princípio: quando se quer praticar uma arte, parece-me essencial interessar-se pelo que fazem os outros e não ficar fechado em si mesmo, preocupado unicamente com o próprio trabalho. No roteiro, há um lado não definitivo que liberta a escrita. Nesse caso, existe menos dificuldade de se colocar um ponto final? Sim, embora eu me esforce em ser rigorosa na produção escrita do roteiro. Gostaria que houvesse milhares de novas dimensões durante a filmagem, mas, quando escrevo, tento ser precisa nos diálogos e considerar que eles são definitivos, mesmo que, na verdade, eu continue trabalhando os diálogos
com os atores até o final. Mas é fato que escrever na língua falada me libertou, no sentido de ter liberado uma relação mais instintiva com a escrita. Realizei meu primeiro curta-metragem como um válvula de escape em relação à poesia. Refiz então a experiência do cinema, isto é, da representação – que era exatamente o que me faltava na escrita. Embora esteja sempre fora do primeiro plano, a menina tem voz. Mas o filme não é visto por meio de seus olhos, o que poderia ser incômodo. Ela tinha esse espaço desde a elaboração do roteiro? Eu não queria que as duas primeiras partes fossem filmadas do ponto de vista da criança, embora acredite que grandes cineastas tenham conseguido fazê-lo. Talvez isso exija uma grande maturidade. A subjetividade infantil é algo delicado e, nos filmes, costuma resvalar para a falsa ingenuidade. Acredito mais na presença. Nas duas primeiras partes, minha escolha recai sobre Victor (Paul Blain), pois é o personagem principal. Mas fico também, ao fundo, com todos os outros personagens. Colar no olhar de Pamela criança teria acrescentado pathos e esmagado a pequena Victoire Rousseau, além de fazer dela uma marionete a serviço da minha própria subjetividade. O fato de manter certa distância, de criar um afastamento permitia-lhe continuar sendo ela mesma e inventar pouco a pouco o seu papel. As pontes parecem interessar-lhe... A ideia de ligação, de passagem, de transmissão está presente no filme. Através dela, há também uma ideia de cinema, que não seja só a elaboração de um pequeno universo fechado, imaginário – o que tem o mesmo sentido da recusa de estar na (pseudo) subjetividade da criança. Para mim, ao contrário,
o cinema deve ser um traço de união entre o mundo e nós. Mesmo que só represente algumas pessoas e uma parte bem pequena do universo, tento fazer com que essa parte seja ligada ao todo. O que acontece com a ponte é o mesmo que ocorre com outras coisas que não têm um sentido tão límpido, que são como a rima pura, mas também são muito importantes sob o aspecto musical, e que acabei racionalizando gradativamente. O equilíbrio e a harmonia, no cinema como nas outras artes, me atraem sob todos os pontos de vista. O poema do final repercute esse pensamento? Essa busca de equilíbrio poderia ser interpretada como a de um certo “conforto” moral, embora não o seja e esse equilíbrio fique fadado a permanecer muito frágil e precário. O cinema é uma busca de equilíbrio para mim, porém num mundo trágico. E essa conclusão não é rígida e acabada: ela está por um fio, como o filme. Se o poema do final afirma alguma coisa, a exemplo do título, não é para trazer artificialmente a ordem de volta: deixado como herança de Victor para sua filha, o poema transmite a fé na sobrevivência da alma e uma busca de alegria que são, para mim, próprias do gesto artístico. Esses versos me emocionam por sua evidência, pela simplicidade de sua revelação. Eles exprimem a consciência do mistério e o amor à vida. Acho bonito e nobre que Victor deixe isso como legado para sua filha, e não o inverso. Cresci com a ideia de que a arte deve “dar confiança, dar coragem”. Fazer filmes deve me dar lucidez, abrir meus olhos e ao mesmo tempo me dar coragem. E eu queria que meus filmes dessem conta dessa dupla expectativa. Dar coragem não significa dar um jeito, consertar o mundo para torná-lo mais seguro, mas sim procurar uma forma que não seja apenas destruidora, uma forma viva de
dizer a verdade. A meu ver, existe uma tensão necessária entre a busca da verdade e essa determinação de dar confiança. Será que podemos ser tão obstinados nessa busca da verdade quanto na decisão de viver, de não perder a coragem? É com esse questionamento que fiz o filme. Você não foge da emoção, em especial nas cenas de reencontro... Hoje, eu não poderia escrever um filme que não partisse desde o início de uma emoção profunda. Existem, no cinema, pelo menos dois tipos de emoção de natureza oposta: aquelas produzidas por certos filmes de forma mecânica, por meio de processos eficientes, e as que são o resultado de um sentimento de verdade. Evidentemente, são estas últimas que me interessam. De modo recíproco, se me emociono com um livro, um quadro ou um filme, isso está sempre relacionado ao sentimento de verdade e de infinito que os acompanha. Portanto, quando escrevo, se não houver uma emoção a princípio, é porque também não existe a necessidade. Ou existe uma emoção logo no início, assim que é dada a partida no filme, e cuja fonte viva nos esforçamos para encontrar, por meio da mise-en-scène, ou fazemos um filme tentando fabricar essa emoção, tentando produzi-la no espectador. Em meu trabalho como diretora, nunca tive o sentimento de tentar fabricar, mas sim o de voltar a algo, de tentar encontrar o caminho mais direto para chegar a um sentimento e a uma emoção que já se encontravam ali. Em outras palavras, eu tinha a impressão de que, para me aproximar da verdade, não era preciso adicionar elementos de mise-en-scène, e sim retirálos o quanto possível. Projetos? Um filme: O pai dos meus filhos. Não autobiográfico.
Entrevista concedida a Axel Zeppenfeld, em Paris, em 24 de agosto de 2007.
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TUDO PERDOADO de MIA HANSEN-LØVE Cahiers du Cinéma nº 627 – Outubro de 2007
MÚSICA SECRETA por JEAN-MICHEL FRODON
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O primeiro filme de Mia Hansen-Løve conta de forma muito simples uma história bem complicada. Não complicada no sentido de ser difícil de entender, mas no sentido de mobilizar relações complexas entre momentos diferentes de vida, entre épocas, gerações e pessoas que não têm a mesma idade, nem a mesma origem, nem a mesma língua materna, tampouco o mesmo sexo ou a mesma ideia da existência. Em Viena, depois em Paris, ontem e hoje, existe, existiu e existirá Victor, que ama muito Annette, com quem teve Pamela, mas cuja vida se dispersa entre veleidades e seduções, dependência de drogas pesadas, desejos de escrever e suaves impulsos sem continuidade. Há uma espiral da dependência e do desejo de morrer, na qual se confrontam o respeito ao outro e a luta pela própria sobrevivência. Um salto no tempo permite reencontrar a pequena Pamela já adolescente e estudante, a filha sem pai que vozes afetuosas, mas talvez perigosas, conduzirão a reencontros. Há um infinito folhear das relações em que estão em jogo a liberdade e o abandono de si, o pertencimento desejado, aceito ou sofrido. Sabemos – e os trabalhos de Jacques Rancière nos ajudaram a pensar a respeito, conforme já
comentamos diversas vezes nestas páginas – que, hoje em dia, muito do que se questiona no plano político só se dá no campo da família e dos modos de liberdade aí codificados, para todas as outras práticas desejadas e possíveis. Tudo perdoado, embora sem o menor sinal aparente de “filme político”, é, no entanto, uma rigorosa combinação de questões de liberdade, em nome de ideais tanto mais belos quanto jamais cristalizados, mas sempre percebidos “à margem”, como se estivessem na extremidade lateral de um campo de visão que parece só ter seu foco sobre uma “pequena história familiar”. É preciso uma arte muito precisa e delicada da mise-en-scène, da composição de cada plano, do ritmo de deslocamento dos corpos, da modulação das vozes, da distância para os rostos, para que se evidencie assim, sem jamais dizê-lo, o quanto as tristes desventuras de um jovem e belo adulto meio indolente, de sua jovem e valorosa mulher e de sua filhinha, já crescida, constituem narrativas de vida (e de morte) para cada um deles. É necessário ressaltar, por exemplo, a extrema simplicidade da narrativa, que poderia ser resumida num único traço: filmar cada cena como se fosse a primeira e a última, como se nela o destino do
mundo inteiro estivesse em jogo, como se ela fosse o filme inteiro. Tudo perdoado apresenta muito poucas “cenas-chave” ou de clímax: a “chave” é acreditar que cada momento da existência pode ter a mesma dignidade, que tudo acontece sem cessar. Que se pode filmar um almoço de aniversário, um passeio no jardim, uma conversa entre amigas no barzinho com a mesma urgência, a mesma necessidade, a mesma disponibilidade – inclusive em relação aos personagens que só aparecem alguns segundos no filme – que se teria, se estivesse em jogo o “destino” dos personagens. Essa relação com o mundo, com os personagens, com a história, conforme assinalam Rozier e Eustache, encontra aqui um tom especial, um pouco mais retraído do que em Philippine ou em Père Noël. Ela permite um arejamento maior, mostrando-se ainda mais receptiva ao que compõe a textura e a cor dos momentos. Mais do que de simplicidade, talvez se devesse ter falado “concretamente”. O filme está bem longe de tudo o que lembraria uma metáfora ou uma generalidade. Uma folha é uma folha, uma família é uma família, um rosto é um rosto. As palavras dos diálogos têm essa mesma precisão, com um tom de cotidiano que mantém à mesma distância o artifício e a vulgaridade, como
se uma música secreta guiasse seus ritmos e sons, mantendo sempre suspenso, na outra extremidade, tudo que tem peso ou que se impõe. É que, justamente, não há destino em Tudo perdoado, uma história em que o trágico não está ausente, mas que renega a tragédia. Sem fazer qualquer concessão, o filme afirma, ao contrário, de forma segura e com um tipo de sabedoria que é também um ato de coragem política – insistimos nesse ponto – que é possível agir de outra forma, em sua vida e com os outros. Isso não vai evitar a tristeza, nem a injustiça, nem a morte, mas permanece essencial. “Muitas coisas ficam perdidas na noite... tome cuidado, fique alerta e mantenha-se cheia de entusiasmo!” Os versos legados pelo pai para sua filha, no final do filme, parecem fazer eco a “Viva Céladon, viva, viva. Eu te ordeno”, última fala do filme de Rohmer, lançado quase ao mesmo tempo, e que lhe faz justiça. Guardados os extremos das idades e as narrativas tão diferentes quanto possível, trata-se da mesma inspiração. Seria preciso dedicar um parágrafo de amor e de admiração a cada intérprete do filme, louvar longamente a delicadeza da interpretação de Paul
Blain e o extraordinário surgimento no cinema da bem jovem Constance Rousseau. Resta finalmente assinalar: o que fazem as atrizes e atores no filme não está desvinculado do modo como Mia Hansen-Løve os vê e os escuta. Essa articulação entre atores e diretora passa pela sensibilíssima certeza do “bom gosto”, de um sentido dos equilíbrios e desequilíbrios legítimos em cada instante, capaz de acolher um feixe de luz, um tremor de voz, um gesto brusco. Dessa forma, a diretora pode filmar até situações “extremas” – crise do casal, overdose, reencontros ameaçados por todos os estereótipos sentimentais – com exatamente a mesma possibilidade de vibrações, que toca sem afundar, e deixa para o espectador a totalidade do espaço para fazer dessa história, ainda que lhe fosse completamente estranha, a sua história.
TUDO PERDOADO França, 2007
Direção e Roteiro: Mia Hansen-Løve Fotografia: Pascal Auffray Som: Vincent Vatoux Montagem: Marion Monnier Elenco: Paul Blain, Constance Rousseau, Marie-Christine Friedrich, Olivia Ross, Carole Franck, Victoire Rousseau Produção: David Thion – Films Pelleas Distribuição: Pyramide Duração: 1h45min
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Catálogo desenvolvido para acompanhar a Mostra do Cinema Francês Contemporâneo, realizada pelo Departamento Nacional do SESC. Texto em Myriad Pro 10/11/12/20/36 e Matrix Script 10/12/25. Impresso pela Gráfica XXXXX. Tiragem limitada de 30.000 exemplares. Outubro de 2009.