Revista Palavra 2013

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ISSN 2178-1443

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ano 5 | número 4 | julho 2013

ano 5 . número 4 . 2013 SESC LITERATURA EM REVISTA

revista sesc literatura em revista

janaína michalski . renata magdaleno . andré gardel antonio jardim . mariana patrício . daniela seixas . karl erik schøllhammer pedro eiras . tatiana pequeno . andré dahmer luís henrique pellanda . manuel da costa pinto . vinicius jatobá . daniel senise

www.sesc.com.br

nº4 ,

literatura e outras artes vire o verso dossiê arnaldo antunes , ensaios música dança artes visuais cinema

,

,

espaço literário conto poesia cartoon prêmio sesc literatura 2012/2013 resenhas das obras vencedoras



editorial A partir desta edição, a revista Palavra, mantendo sua proposta de divulgar as diferentes expressões artísticas, oferece uma novidade para seus leitores. Com o objetivo de inovar seu projeto gráfico e valorizar suas informações, cada número da revista contará com a participação de um artista visual que conceituará graficamente os temas. Daniela Seixas assina o projeto gráfico desta edição, e esperamos que ele seja um convite ao leitor para iniciar a própria coleção. A “Interseção entre a Literatura e outras expressões artísticas” foi o tema ideal para consagrar esse novo momento da revista, que apresenta, tanto em seu visual quanto em seu conteúdo, a Literatura em diálogo multidisciplinar com a Dança, o Teatro, a Música e as Artes Visuais. Nas próximas páginas, você encontrará ensaios de Karl Erik Schollhammer, Mariana Patrício Fernandes, Antônio Jardim e uma reportagem de Janaína Michalski. Paralelamente, Renata Magdaleno e André Gardel apresentam a trajetória do artista homenageado: Arnaldo Antunes. Tendo iniciado sua carreira na música no grupo Titãs, nos anos 1980, ele migrou para as produções poéticas e visuais, na esteira do concretismo dos irmãos Campos e Décio Pignatari, sem deixar de lado a sua produção musical, provando que trafega muito bem por diferentes territórios artísticos. Por fim, recomendações literárias de Vinícius Jatobá e de Daniel Senise, contos de Pedro Eiras, poemas de Tatiana Pequeno e os quadrinhos de André Dahmer são um deleite de reflexão e de Palavra. Boa leitura e até breve! a redação



editorial A literatura sempre ocupou um território entre, ou melhor, entremeada às demais manifestações artísticas. Das representações pictográficas rupestres até as narrativas orais ancestrais; das cantigas medievais às canções populares; dos textos dramatúrgicos aos roteiros cinematográficos; da caligrafia aos poemas visuais, a própria palavra “literatura”, originada do latim lettera (letra), elemento gráfico de menor sentido, já sugere uma interpretação expandida em que conteúdo visual e conteúdo textual se entrelaçam e complementam. É partindo dessa ideia que a revista Palavra, mantendo sua proposta de levar ao leitor questões sobre literatura e seus diversos diálogos possíveis, apresenta um novo projeto gráfico no qual a palavra olha para sua própria imagem e vê que nåo é/está só, ela é mais: é todo um corpo e ação dos sentidos. Assim, a concepção visual e o projeto gráfico caminham na direção da palavra-sinestesia, de um sutil jogo dos sentidos, que procura tratar o próprio texto como personagem visual e convite para a performance de leitura. Explicitando em brechas o corpo envolvido, convida o leitor para uma leitura que não se encerra no que o texto diz, mas se amplia com o que ele mostra – ou insinua. Neste novo projeto, em que a forma do texto e as imagens apresentadas são conteúdo, tudo, até a imagem das referências bibliográficas, transforma-se em matéria de argumento visual, acompanhando narrativas textuais e gráficas que se remetem à uma memória sensorial do

tempo de cada texto, como fios de cabelo, letras, poeira ou sombras. Com o desejo que imagem, texto e sentidos participem de uma concepção visual/tátil/ textual, a cada novo número um artista visual assinará o projeto gráfico. Este é assinado pela carioca Daniela Seixas. A começar pela capa, cuja orelha se transforma em um fragmento de arte produzida com exclusividade para os leitores da Palavra, e abordando sob diversos pontos de vista, a relação e a interseção entre literatura e as outras expressões artísticas, nas próximas páginas você encontrará ensaios de Karl Erik Schøllhammer, Mariana Patrício Fernandes, Antonio Jardim, além de um ensaio visual da própria Daniela Seixas e uma reportagem de Janaína Michalski. Paralelamente, Renata Magdaleno e André Gardel apresentam a trajetória do artista homenageado: Arnaldo Antunes. Artista multifacetado, desde o início sua carreira é marcada pelo trânsito entre as diversas linguagens artísitcas, meios de comunicação e suportes de que faz uso tomando como ponto de partida um componente: a palavra. Por fim, recomendações literárias de Vinicius Jatobá e de Daniel Senise, contos de Pedro Eiras, poemas de Tatiana Pequeno e o quadrinho de André Dahmer são um deleite de reflexão e de Palavra. Esperamos que isso seja um convite ao leitor para iniciar a própria coleção. Boa leitura e até breve! a redação


sumário

Primeiras palavras

5 Vire o Verso

6

18

[ Dossiê ] ArnaldoAntunes

conto Espaço literário { poesia cartoon

90 98 102

música Ensaios { dança artes visuais cinema

50 62 73 82

104

Resenhas : conto 105 : romance eu REcomendo

107 Dicas

110 Agenda

115


primeiras palavras

Consciente de seu papel no incentivo à

Em seu quarto número, a revista Palavra

transformação social e cultural do país e com

reforça seu posicionamento como uma

o compromisso de democratizar o acesso à

publicação que se utiliza do diálogo entre

cultura, as ações do Sesc se voltam para a pre-

educação e entretenimento para formar

servação da literatura brasileira e da Língua

leitores capazes de refletir sobre sua

Portuguesa como importantes bens culturais.

realidade ao fomentar discussões e oferecer uma ampla perspectiva sobre o fazer

Essas iniciativas podem ser conferidas nas

literário.

oficinas de contação de história, nos saraus de poesia, nas rodas de leitura e nos laboratórios

O tema deste número é a literatura em

de escrita oferecidos nas unidades, e ainda por

interseção com outras expressões artísticas,

meio do Prêmio Sesc de Literatura. Realizado

e nosso homenageado é o multitalentoso

em parceria com a editora Record, anualmente

Arnaldo Antunes. A edição traz, ainda,

premia dois escritores inéditos nas categorias

ensaios, contos, poesia, sugestões de livros,

Conto e Romance.

CDs e filmes, crônicas e uma ampla agenda sobre os eventos na área.

Contamos com uma ampla rede de bibliotecas, distribuídas por todo o território nacional,

Esperamos continuar contribuindo cada

com acervo de títulos brasileiros e estrangeiros

vez mais para a difusão das artes como

para crianças, jovens e adultos. Além disso,

importante meio de libertação e crescimento

mantemos em circulação o projeto BiblioSesc,

do ser humano.

composto por uma frota de 54 caminhões que circulam nos mais distantes pontos do país, promovendo o acesso ao livro e à leitura.

Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc

5


reportagem

6


Vire o verso

Da integração da literatura com outras artes e vice-versa Janaína Michalski

O primeiro poema em Língua Portuguesa foi, na verdade, uma cantiga: a Cantiga da Ribeirinha, que marcou o início do Trovadorismo, movimento considerado a primeira escola literária portuguesa entre os séculos XII e XIV. De lá para cá, nasceu a literatura brasileira com formatos, escolas e movimentos próprios, mas sem perder o DNA de confabular com outras artes. “Sempre houve diálogo e contaminação entre as artes. E a poesia

vive desde sempre uma relação umbilical com a música. No entanto, acho que desde o início do século XX esse diálogo está na ordem do dia, no centro da preocupação dos artistas. E isso se deve em muito à consciência do limite da linguagem verbal”, concorda Ricardo Lísias, escritor e professor de literatura.

Lísias acredita que o diálogo com outras artes começa ou se intensifica quando os escritores mais conscientes do seu ofício percebem com clareza as deficiências e as dificuldades que a expressão verbal impõe. Assim, como a ferramenta de trabalho é limitada

“a linguagem – “a linguagem não abarca não abarca o mundo”, o mundo”, ele diz –, escritores tendem a procurar outros caminhos que possam auxiliá-los a expressar tudo o que necessitam. O diálogo então é acirrado quando entra em crise não apenas a forma de expressão, mas as próprias definições de gênero literário e, depois, artístico. Os autores tendem, assim, a fugir de prisões de toda ordem e passam a trabalhar com várias ferramentas diferentes. É um sinal e uma consequência ao mesmo tempo da crise que a literatura em particular e as artes em geral têm vivido desde o começo do modernismo, no final do século XIX. “A poesia soube trabalhar muito bem

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a mistura de linguagens da mesma forma expressiva, como o filme Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, que não apenas é baseado no livro homônimo de Raduan Nassar, como se manteve o mais fiel possível à narrativa literária. De uma forma ou de outra, Sodré descreve todos esses movimentos como parte de uma hibridização dos diversos espaços sociais, artísticos e filosóficos. “As ciêncom essa indeterminação de linguagens e depois de gêneros. A prosa, com um pouco mais de dificuldade, mas parece estar também se afinando a isso”, afirma o escritor.

cias praticamjá isso. A atividade empírica “As jáciências praticam isso. A atividade empírica nos é totalmente híbrida.híbrida. São noslaboratórios laboratórios é totalmente São muito

muito os limites dessesprofissionais. profissionais. Todo mundo tênuestênues os limites desses Todo mundo tem fazer que saber fazer tudo. tem que saber tudo.

Nas ciências sociais é a mesma coisa: quem Em consonância à ideia de crise, o sociólogo,

quer se isolar vira um pássaro doente. Não

escritor e professor Muniz Sodré recorre ao

falamos mais em Antropologia, mas, sim,

pensamento do russo Pitirim Sorokin em

de Antropologias. Em comunicação tam-

defesa da teoria de um ponto de saturação,

bém: é interdisciplinar, não há mais uma

que as artes – inclusive a literatura – também

identidade própria. E no caso das artes isso

teriam alcançado nas últimas décadas: “Assim

é mais forte ainda. As intervenções artís-

água atinge ponto ebulição “Assim como acomo águaa atinge um um ponto dede ebulição quando ferve, isso qualquer quando ferve, isso acontece em acontece qualqueremcoisa, na coisa,sociedade na sociedade e nas artes também”. e nas artes também. ”

ticas de hoje são o próprio espaço híbrido

Em relação à busca de novos caminhos

mão zeitgeist, conceito popularizado pelo

artísticos e sobre a mistura de linguagens,

filósofo Hegel – é da ordem do híbrido,

o professor lembra que há dois aspectos

e o híbrido está cada vez mais valorizado

separados: por um lado, há o escritor que dá

por aqueles que certificam a arte, isto é, os

um salto para outra prática artística, isto é,

críticos. “Não há nenhum objeto por si só.

outra forma específica, como Tony Bellotto

A arte acontece, subjetivamente, nos olhos

e Chico Buarque, que tanto escrevem livros

de quem vê. E quem vê hoje está atribuindo

quanto fazem música; e por outro lado, há

valor à hibridização.”

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de linguagens diferentes”, diz o professor. Para ele, o espírito do tempo – em ale-


Tanto Sodré quanto Lísias contam que têm lançamentos híbridos em vista. “Foi uma grande e boa surpresa quando eu

dança”.

soube que O bicho que chegou a Feira, um romance meu de 1987, vai virar histó-

Um dos maiores e mais amados quadrinis-

ria em quadrinhos”, comemora Sodré. E

tas do Brasil nas décadas de 1980 e de 1990,

Lísias anuncia: “Meu próximo roman-

Mutarelli largou as histórias em quadrinhos

ce, Divórcio, terá diversas fotografias. Fiz

e se tornou escritor após considerar que seu

isso porque não consegui falar, no ponto

desenho tinha chegado ao limite. “Fiquei

em que elas aparecem, o que eu queria

saturado do excesso de imagem e encan-

através da linguagem. Então elas se tor-

tado pela ideia de evocá-la pelas palavras”

naram inevitáveis. E veja, não é só o caso

conta ele, sobre a motivação para escrever

de a literatura ir buscar diálogo: na última

O cheiro do ralo, seu primeiro romance,

Bienal de Artes de São Paulo havia vários

que também foi adaptado para o cinema. O

trabalhos de artes plásticas que dialogavam

autor relata que romper com as histórias em

com a literatura. Mesmo o curador, o vene-

quadrinhos e ir para a literatura foi uma es-

zuelano Luiz Perez Oramas, era um poeta!”.

colha, mas as outras linguagens subsequentes – dramaturgia, roteiros e até atuação

Um poeta como o autor Lourenço

– desenvolveram-se a partir de oportu-

Mutarelli, diz: “Desenhar é uma édança “Desenhar bempequena. pequena. Se expandir a imagem uma dança bem Sevocê você expandir do do braço do desenhista, veráque que é uma a imagem do braço desenhista, verá uma dança.”

nidades, demandas externas. Essas novas linguagens, contudo, foram incorporadas de tal maneira ao exercício artístico dele que hoje a ideia para uma nova história já nasce junto com o formato. Depois de anos dedicado apenas à literatura e mantendo o desenho como hobby, Mutarelli diz que está trabalhando em um livro que conta uma história sem palavras, só com desenhos, e justifica: “Tudo o que faço é experimental. Só a experimentação faz sentido.”

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Artes Plásticas Sinônimo de multiartista brasileiro, Nuno Ramos diz que “misturar linguagens não é sinônimo de contemporaneidade”. Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo, Ramos é pintor, desenhista,

híbrido, ele assume que desde criança tem um “sentimento imaginoso que passa pela fabulação literária” e conta que desejava ser um artista da palavra e a insatisfação de não conseguir tornar-se um jovem escritor foi o impulso para as artes plásticas.

escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor aplaudido em todas as frentes e

Ao refletir sobre sua multiprática artística,

premiado na maioria delas.

Ramos resume-a como uma busca pela riqueza, mas com descontinuidade dos

“É uma questão de cada artista. Uma pessoa

gêneros. Entre as artes que desenvolve, ele

que só pinta aquarelas pode ser muito mais

acredita que a pintura de relevos é a mais

contemporânea do que alguém que trabalha

contínua. “Entre as minhas obras há uma

com várias linguagens”, diz ele, que também

fratura estilística. Não é uma escolha, mas

acredita em um esgotamento dos gêneros e,

minhas exposições apontam para lados

consequentemente, em uma disponibilidade

díspares. As instalações são muito diferen-

ao trânsito entre as diversas artes. “Produzo

tes umas das outras. Trazem sentimentos

pensando avess. Usar várias linguagens “Produzo pensando pelopelo avesso.

diferentes, mundos contraditórios.”

é consequência disso. Tento não deixar que uma linguagem contamine diretamente a

Ilustradora de todos os seus livros infanto-

outra, mas acho que no fundo há algo de

-juvenis, Marina Colasanti diz que convive

plástico nos textos e algo de narrativo ou de

com escritos e desenhos alternadamente,

literário nas obras. Quando estou bolando

dedicando-se a uma prática de cada vez.

uma obra, se ela tem um título já ajuda

Todavia, acredita que “misturar linguagens “misturar linguagens sempre

demais. A palavra está ali, empurrando, mas

sempre foi uma muito mais que mais que foinecessidade, uma necessidade, muito

não a deixo ir até o fim.” Como exemplo do

um desejo dos artistas”. E resume: “Não sei um desejo

exercício de separação de linguagens, Ramos

como um artista pode sentir-se bem sem dos artistas.”

conta que está produzindo um texto sexual

frequentar apaixonadamente as outras artes.”

e não pretende, de forma alguma, transpôlo em imagens. Sobre seu próprio espaço

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Marina começou a estudar pintura pelos 15 anos e se formou em Belas-Artes. “A ideia era ser artista plástica mesmo. Depois da faculdade, me especializei em gravura e metal. Estava começando a carreira quando veio o trabalho no jornal, onde eu fazia ilustrações e pintava moda.” Depois disso, a trajetória conhecida: cronista e editora de jornais e revistas; redatora publicitária; tradutora de inglês, francês e italiano; e escritora. Simplesmente uma das mais premiadas do Brasil. Sobre o diálogo entre artes, ela se diz apaixonada pelo Quattrocento Florentino do século XV – que foi o primeiro período do Renascimento italiano e tem Botticelli entre os mais conhecidos pintores – e também pelos mais contemporâneos: o italiano Giorgio Morandi e o estadunidense Edward Hopper. “Para as pinturas de todos eles fiz poemas. Muitos poemas. Porque a minha alma mora nos castelos, nos ciprestes, nos arcos e nos capitéis. E olha: às vezes a costura das artes pode ser biográfica, como é para mim. Tenho pai e irmão atores, tio cenógrafo, tio-avô historiador das artes, tia-avó cantora lírica”, diverte-se.

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Pacha Urbano, escritor, ilustrador, designer gráfico e autor das tirinhas As traumáticas aventuras do filho do Freud diz que a necessidade dele em migrar de uma arte para outra está mais para a falta de articulação

é cotidiana, assim como a prática de se

em determinada linguagem do que para a

alimentar de múltiplas referências. Ele in-

saturação. “Se tomo a palavra saudade, um

tegra o coletivo Caneta, Lente e Pincel em

exemplo bem óbvio da subjetividade que

que escritores e poetas, em parcerias com

abarca vários conceitos de memórias em

ilustradores, artistas plásticos e fotógrafos,

si mesma, não conseguiria encontrar um

produzem material para inspirar o trabalho

equivalente em imagem, uma vez que cada

do outro. Ora um escritor cria um

um sente saudade à sua maneira e por mi-

conto para um ilustrador desenhar, ora um

lhares de fatores diferentes. No entanto, se

artista plástico envia uma obra que servirá

pinto um roupeiro com várias gavetas aber-

de inspiração para um poeta escrever ou

tas, deixo meu interlocutor à vontade para

um músico compor. Para ele, “uma troca

plasmar ali o que ele quiser pensar a respei-

gratificante e que é completamente diferen-

to da saudade, da passagem do tempo, das

te de estar no mercado e ilustrar segundo

suas próprias memórias, ou apenas para

a demanda de um cliente”. Entre as inú-

ver um roupeiro e não chegar à conclusão

meras referências que dão suporte à arte

alguma. Não sei se saturação é a palavra.

dele, Pacha conta que usa uma técnica de

Acho que está mais para circunscrição que

cinema nas histórias em quadrinhos. “Uso

outra coisa. Nenhuma linguagem artística

o método Kuleshov, em que uma cena é

deveria circunscrever esse desejo de expres-

apresentada na tela e em seguida corta-se

Porisso isso trato são subjetiva que é a arte. Por trato de de encontrar o melhor canal de encontrar o melhor canal de comunicação

comunicação com meu interlocutor para com meu interlocutor para o que quero exo que quero expressar, consciente de que pressar, consciente de que existem brechas a existem brechas a serem ocupadas pelo serem ocupadas pelo outro”, reflete. outro”, , reflete.

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para o rosto do personagem. A expressão dele é interpretada pela cena anterior. Se mostram um prato de sopa, a cena seguinte sugeriria que o personagem sente fome. Se fosse a imagem de uma mulher lânguida numa cama, sua expressão seria interpreta-

Em multitrabalhos diários de de Em meio meioaos aos multitrabalhos diários

da como luxúria. Mas a expressão do ator

Pacha, Pacha, aa associação associação aa outros outros multiartistas multiartistas

nunca muda, é a mesma cena, o que


Segundo

Cynthia

Clemente,

relações

muda é a cena subsequente. Ou seja, nosso

públicas da companhia, a criação de um

imaginário se encarrega de dar o tom que a

espetáculo dura, em média, dois anos. Guy

mesma expressão do ator pode ter segundo

Laliberté, dono do circo, tem uma ideia

o tema anterior. Uso isso nas tirinhas do

geral e chama um autor para desenvolver o

filho do Freud, deixando a expressão do

argumento. A partir daí, o processo criativo

velho Freud sempre pétrea, e as situações

passa a ser coletivo: figurinistas, cenógrafos,

do seu entorno e a fumaça do seu charuto é

coreógrafos, músicos, entre outros artistas

que ajudam o leitor a interpretar o que ele

de todo o mundo, contribuem ao mesmo

está sentindo, ou o tom das respostas dele.”

tempo com suas ideias. No entanto, o espetáculo só fica pronto após a aprovação dos artistas que entram em cena, uma vez

Circo e Dança

que a segurança e o conforto de todo o

Entre as artes que nasceram plurais, a

ambiente é fundamental para eles. Dessa

cada dia o circo ganha contornos mais

forma, o processo criativo é dinâmico e

requintados. A expressão Novo Circo, já

coletivo até a estreia.

quase um jargão, designa o movimento da virada do século que adicionou aos

“O circo é assim mesmo. Sempre conversou

picadeiros – ou assumiu com maior clareza

com a contemporaneidade. Sempre foi

– a dança, o teatro, a música, a plasticidade

multifacetado. A essência do circo carrega

e a narrativa. Símbolo maior desse

isso: é um grande devorador de informações

movimento, o canadense Cirque du Soleil

dos vários movimentos artísticos de sua

foi formado por um grupo de 20 artistas

época”, simplifica Domingos Montagner,

de rua em 1984 e hoje, como uma das mais

diretor artístico do paulistano Circo Zanni,

importantes organizações do país, emprega

integrante do grupo circense La Mínima e

5 mil funcionários, incluindo mais de 1.300

conhecido do grande público como ator de

artistas, de 50 diferentes nacionalidades.

telenovelas, atualmente no papel do turco Zyah, em Salve Jorge.

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Uma nota - o conceito de Montagner para

Junto aos inúmeros elementos da cultura

arte dele é hibridamente alinhado à proposta

popular – saltimbancos, acrobatas e mími-

de literatura de Ítalo Calvino na conferência

cos – que historicamente compõem o circo,

Multiplicidade, capítulo de Seis propostas

a palavra tem ganhado força também na

para o próximo milênio: “O grande desafio

trajetória de Montagner: o La Mínima está

para adesafio literaturapara é o saber tecer em “O grande a literatura é oconjunsaber diversos saberes e os diversos códigos tecer to emosconjunto os diversos saberes e os numa visão pluralística e multifacetada diversos códigos numa visão pluralísticadoe mundo”.” multifacetada do mundo.

em cartaz com Mistério buffo, espetáculo baseado nos jograis medievais de Dario Fo, italiano ganhador do prêmio Nobel de 1997. No trabalho do grupo, a dramaturgia chega como mais um elemento integrante

Apesar de não ser um tipo de circo que

do caleidoscópio circense e é absorvida

gosta de fazer, Montagner defende a

como ponto de partida. Se assim não fosse,

companhia canadense como detentora de

correria o risco de virar teatro. “A gran-

influências estéticas que se comunicam com

de força da arte circense é a tensão entre

o público, nesta época de grande consumo

o grotesco e o sublime, que confere um

de entretenimento, que exige elevados

registro sensorial insubstituível. O teatro

graus de ineditismo e de valor artístico.

sozinho também emociona, assim como a

“Um objeto de criação hoje é altamente e

literatura. Mas é uma emoção racional: o

absolutamente valorizado. Essas grandes

público vai para casa refletindo. Já no circo,

companhias apostam nisso, mas não deixam

o público sai com uma sensação de plenitu-

de lado a clássica dramaturgia do circo”,

de. Quando dirijo um espetáculo, trabalho

observa, referindo-se à métrica facilmente

de forma a mesclar surpresas, risos, habili-

identificada nas lonas: introdução, abertura,

dades e riscos a fim de conduzir à emoção

números individuais, números coletivos e

sensorial”, esclarece o artista.

encerramento. Na contramão do crescimento da força da palavra nas diversas artes está o Grupo Corpo, de Belo Horizonte. Paulo Pederneiras, diretor artístico da companhia de dança, diz que desde quando

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estreou em 1976, o Corpo fez uma curva descendente na relação com a literatura: “Começamos com os espetáculos Maria, Maria e Último trem, que tinham canções originais de Milton Nascimento e Fernando Brant. Havia uma forte narrativa ali, da qual fomos abrindo mão no decorrer da nossa história”. Para Pederneiras, muito indiretamente existe o suporte da palavra na criação dos espetáculos, uma vez que artistas como Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik – também professor de literatura – compõem para o Grupo. “Às vezes os compositores partem de um pensamento literário. Foi o caso de Nazareth, de 1993, que foi ins-

Apesar disso, Pederneiras lembra que a abertura para possibilidades é uma constante busca do Grupo, que se reflete até na tecnologia. “Às vezes a gente inventa algo que ainda não tem. Quando escutei a música e vi a coreografia de Ímã, só consegui pensar numa cor que talvez eu ainda não tivesse visto. E não havia equipamento para fazer aquilo. Então chegamos a umas pessoas que fazem iluminação para teatro nos Estados Unidos e elas fizeram para a gente exatamente o que precisávamos, em LED”, conta sobre o espetáculo que estreou em 2009, com música de Moreno, Domenico e Kassin.

pirada nas obras de Machado de Assis e de Ernesto Nazareth. Mas nós partimos apenas da música deles”, explica. O diretor frisa que aa palavra palavra não corenãocompreende compreende ografias e atéososconceitos conceitos publicados dos coreografias e até publicados espetáculos servem apenas para atender dos espetáculos servem apenas para atender uma exigência do mercado. . “O programa exigência do mercado descreve algo que na maioria das vezes não condiz com o sentimento dos bailarinos em relação àquela obra. Mas só descobrimos isso após a temporada.”

Hip Hop Foi da pluralidade contemporânea que surgiu o maior movimento de cultura urbana das periferias de todo o mundo: o Hip Hop, composto de artes plásticas, pelo grafite; ritmo e poesia, pelo rap; dança, pelo break; música, pelo DJ; e conhecimento, pela literatura. Incluída por último como um quinto elemento do Hip Hop, a literatura tornou-se uma prática de resistência local

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eetem temprojetado projetadoautores autorescomo comooopaulistano paulistano paraalém alémda dapoesia poesiaeeda daficção, ficção, Ferréz, que, que para

9MM, depois fiz um capítulo de Cidade dos

é um articulista dos diversos aspectos que envolvem a chamada literatura marginal.

longa-metragem. Para mim, cinema e litera-

Afora a integração das artes, Ferréz destaca a simplicidade como o segredo desse movimento que há anos salva da ilegalidade milhares de jovens em todo o mundo: “Acho que o sucesso é por não precisar de muitas ferramentas para expressar um talento. Com um caderno e um lápis o menino faz um rap, não precisa de guitarra, baixo, caixas de som. Com um vinil e uma vitrola se cria um DJ, que inclusive só consome os discos em sebos. E com um canetão você começa a praticar o grafite. Isso facilita para o menino de comunidade que não tem muito.” Esse relato se funde com a própria história dele, que começou a escrever quando criança até se tornar referência de jovem multiartista: é também compositor, cantor, documentarista e roteirista. Apaixonado pelas diversas linguagens que pratica, Ferréz diz que filmes, seriados de televisão e quadrinhos surgiram de forma natural na trajetória dele, impulsionados por demandas externas. “Algumas pessoas foram me procurando, eu mesmo fiz o roteiro do seriado

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homens e agora estamos terminando um tura sempre andaram juntos.”


Diálogos decisivos

A consideração à coletividade é um aspecto curioso do fazer literário de Ferréz. Para ele, a escrita nasce não apenas para o leitor, mas junto com o leitor. “A linguagem e a vivência que tive com os rappers é peça fundamental da minha carreira. Escrevo nas ruas. Claro que tem a criação que é aquela coisa de você sentar e fazer mesmo: a labuta, que por um lado é muito solitária. Mas também tem a entrada de muita coisa da galera, como no livro Capão Pecado, que teve muitas participações nas aberturas dos textos”, exemplifica.

Entusiasta

de

escritores

posicionados

como Ferréz, Ricardo Lísias acredita que no decorrer do século XX o diálogo entre a literatura e as diversas artes aumentou até tornar-se decisivo hoje. “As formas de expressão verbal para autores de grande capacidade reflexiva parecem muitas vezes não dar mais conta da complexidade do que eles querem criar na literatura. É um momento de crise de linguagens. Então, a tendência é buscar auxílio em outras linguagens, já que apenas a verbal não basta. Não acredito que a arte entre no mesmo barco da multiplicidade do mundo em que vivemos. Acho que a arte cria outro barco, que dialoga com o nosso barco, o barco da nossa sociedade. Quanto mais exigente se torna o barco da nossa sociedade, mais o barco da literatura vai precisando pesquisar outras linguagens”, conclui o escritor.

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} arnaldo antunes

A

dossiĂŞ

18


A A

rnaldo

ntunes

Uma biografia é uma história de vida Renata Magdaleno

Em 2004, o crítico de música Antonio Carlos Miguel entrevistou Arnaldo An-

tunes para o jornal O Globo e escreveu uma matéria que começava com a seguinte frase: “De perto ele é bem normal”. Isso porque estranhamento é a primeira sensação que podemos destacar quando nos deparamos com a figura e a obra de Arnaldo Antunes: cortes de cabelo nunca convencionais, roupas propositalmente em desalinho, poemas e letras de música que destacam palavras, brincam com elas, agrupando com outras, isolando e devolvendo para o leitor-ouvinte significados e ideias muitas vezes inesperados.

Ele ficou conhecido do grande público por conta dos Titãs, grupo de pop/rock

que estourou na década de 1980. Foi, porém, depois de sair dele, no fim de 1992, para iniciar sua carreira solo, que o restante de sua produção artística ganhou destaque na mídia.

Cantor, letrista, poeta, performer, artista visual, Arnaldo parece difícil de definir. Mas em todo o seu trabalho transparece um encantamento com a palavra que não respeita fronteiras.

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Em 2006, por exemplo, ele lançou o livro Frases do Tomé aos três anos (Alegoria), destacando falas do filho naquela fase em que as crianças estão descobrindo a linguagem e o mundo e ainda conseguem olhar com estranhamento o que depois se torna banal: “Cadeira grudada uma na outra é sofá.” “Esse “Essecarro carrotem temum um barulho barulho vermelho.”

vermelho. ” O último é o já”. “Três não é o último. É para ler imaginando Arnaldo com caneta e papel na mão, anotando cada uma das tiradas. Porque ele também é pai. Tem quatro filhos: Rosa, Celeste, Brás e Tomé. Sim, espanta quando percebemos que Arnaldo também pode ser bem normal.

1

Cf. http://www.arnaldoantunes.com.br/new/sec_discografia_todas.php

Na música “Inclassificáveis”, que faz parte do CD O silêncio, lançado em 1996, o artista já dizia: “Aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes/Orientupis

orientupis/Ameriquíta-

los luso nipo caboclos/Orientupis orientupis/ Iberibárbaros indo ciganagôs/Somos o que somos, somos o que somos/Inclassificáveis, inclassificáveis.”1 A letra serve para refletir sobre sua história e influências. A mescla de culturas, origens e raças compondo a nação dos inclassificáveis lembra logo as teorias antropofágicas difundidas durante o modernismo brasileiro.

“Aqui somos mestiços mulatos cafuzos pardos mamelucos sararás crilouros guaranisseis e judárabes/Orientupis orientupis/Ameriquítalos luso nipo caboclos/Orientupis orientupis/ Iberibárbaros indo ciganagôs/Somos o que somos, somos o que somos/Inclassificáveis, inclassificáveis”.

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outra influência – segundo críticos de música – bastante presente na obra de Arnaldo, também bebeu dessa fonte. Em Literatura e vida

Andrade defendia uma cultura que não cultuava ou copiava aquilo que vinha de fora, mas absorvia, comia, juntava com características locais e, assim, criava algo novo. É uma forma de valorização da cultura nacional, marcada por uma origem de colonização e uma busca constante, ao longo da história, de cópia de modelos estrangeiros, tentativas de adequação, ao defender que a riqueza está justamente nessa mescla de influências. Ou, como afirma Arnaldo em sua música, em ser “crilouros guaranisseis e judárabes/Orientupis orientupis”. Ideias que inspiraram uma série de artistas brasileiros no século passado e, mesmo no mundo globalizado dos dias de hoje, continuam presentes em muitos trabalhos. O Tropicalismo,

Süssekind (UNIRIO) relembra a mescla de rock, cultura de massa e oposição a todo conservadorismo estético e comportamental da Tropicália. Flora usa a imagem de Caetano cantando em inglês com sotaque nordestino, deixando a sua marca e, assim, transformando o idioma estrangeiro, para refletir sobre a questão: “Nesta justaposição de elementos ‘autóctones’ e ‘importados’ quebram-se as suas delimitações rígidas, discute-se a ideia de nacional” (SÜSSEKIND, 2004).2

2 SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

No Manifesto Antropófago (1928), Oswald de

literária (2004), a pesquisadora e professora Flora

A obra de Arnaldo segue essa linha de influência, mas vai além e não se enquadra totalmente em nenhum rótulo. A letra de “Inclassificáveis”, além de apontar para essas referências presentes em seus trabalhos, serve também para pensar sobre a forma como sua carreira foi sendo construída, ultrapassando fronteiras entre diferentes artes,

21


mesclando os limites entre teorias cultas e a música popular que ganha os rádios, fugindo de definições rígidas. Em uma época marcada

a imagem do

pela extrema especialização, ele está nos pal-

arnaldo

cos, cantando, declamando ou fazendo performances poéticas; nas rádios; nas livrarias; nos museus, nas galerias... Produzindo um um texto que parece não respeitar limites e do meio impresso. Uma carreira que sempre foi texto que parece não respeitartransbordar limites e transeclética, inclassificável. bordar do meio impresso. Uma carreira que sempre foi eclética, inclassificável.

escapar das fronteiras impostas por uma banda de rock, mesmo uma eclética como essa, e para

Arnaldo nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 13

poder comandar a história sozinho, porque é

anos já estava rabiscando os primeiros poemas,

bem complicado dividir uma carreira artís-

frequentemente acompanhados de desenhos.

tica com tanta gente (na época)”, comenta o

Um sinal de uma poesia que se desenvolveu

jornalista especializado em música Bernardo

sempre muito ligada à forma. Aos 20 anos, já

Araújo, subeditor do Segundo Caderno, de O

estava casado com sua primeira mulher, reali-

Globo, lembrando que a banda chegou a ter

zando performances, produzindo livros artesa-

nove integrantes.

nalmente e integrando a Banda Performática.

22

Dois anos depois, fazia parte dos Titãs, gravan-

O primeiro momento da carreira solo foi

do o primeiro LP independente. Para alguns,

marcado por músicas com estilo menos

a saída da banda, que participou dos progra-

pop e uma linguagem mais trabalhada. “Em

mas televisivos mais importantes da década de

seus dois primeiros discos (Nome, de 1993,

1980, ganhou público, excursionou por todo o

e Ninguém, de 1995), ele se distanciou mais,

Brasil e virou a trilha sonora de toda uma ge-

explorou territórios poético-musicais que não

ração, com clássicos como “Bichos escrotos”

tinham espaço nos Titãs, mas, aos poucos,

(1987), “Pulso” (1989) e “Televisão” (1990),

chegou a um formato que não difere tanto

foi um divisor de águas na carreira do artista.

assim de canções que fez na época do grupo”,

“É bem diferente do que ele fazia nos Titãs. E

opina o crítico Antonio Carlos Miguel. Suas

imagino que tenha saído por isso mesmo, para

letras continuaram fazendo sucesso, como a


Cf. http://www.arnaldoantunes.com.br/new/sec_discografia_todas.php 3

música “Saiba”, lançada em 2003 no CD de mesmo nome. Na canção, a voz grave e pausada de Arnaldo explica: “Saiba: todo mundo teve mãe/Índios, africanos e alemães/Nero, Che Guevara, Pinochet/e também eu e você”.

3

Ele reflete, simultaneamente, de forma simples e profunda sobre a vida, as palavras e as coisas. Um olhar que ainda busca ver os fatos mais cotidianos com estranhamento, como se observados pelos olhos de uma criança. O trabalho com os Tribalistas, grupo formado com Marisa Monte e Carlinhos Brown, rendeu o prêmio de melhor álbum pop contemporâneo brasileiro no Grammy Latino de 2003. E enquanto as músicas continuavam marcando época, em diferentes vozes (“Saiba”, por exem-

declamando seus textos em performances, no Brasil e em países como Espanha e Itália; produzindo instalações, compostas na maioria das vezes por poemas visuais; vídeos; fazendo trilhas sonoras para o cinema e para espetáculos de dança. Em 2000, o Grupo Corpo, do coreógrafo Rodrigo Pederneiras, apresentou um espetá-

nada por Arnaldo Antunes. No palco, bailarinos vestidos de negro repetiam os requebros incessantes característicos do grupo mineiro, enquanto pontos luminosos vermelhos no cenário remetiam a um monitor para medir batimentos cardíacos, e a voz de Arnaldo ia investigando cada parte do corpo humano:“O “O corpo corpo existe, existe, dado que exala cheiro/E em cada dado que exala cheiro/E em cada extremidade existe um dedo/O se corextremidade existe umcorpo dedo/O corpo se tado espirra umespirra líquidoum vermelho/O corpo cortado líquido vermelho/O tem alguém como ” corporecheio. tem alguém como recheio.”4 Em todos os trabalhos, até os sonoros e visuais, o texto aparece como o grande destaque. “Arnaldo enriqueceu o pop brasileiro com sua bagagem cultural, que inclui referências da poesia concreta, da geleia geral tropicalista e demais vanguardismos. O diferencial sempre foi o seu texto e isso influenciou positivamente sua música e a de seus parceiros”, opina Antonio Carlos Miguel. Quem observa as formas gráficas dos poemas de Arnaldo Antunes e a exploração de

Cf. http://www.arnaldoantunes.com.br/new/sec_discografia_todas.php

CD Adriana Partimpim), Arnaldo continuou

uma trilha sonora eletrônica marcante assi-

4

plo, foi gravada por Adriana Calcanhotto, no

culo batizado com o nome da companhia e

aspectos sonoros e visuais concorda com a

23


5 Arnaldo Antunes realizou outras parcerias com os irmãos Campos. Em 1992, por exemplo, produziu o CD Isto não é um livro de viagens, com leituras de Haroldo de Campos, falecido em 2003. No mesmo ano, realizou o projeto gráfico da obra Rimbaud livre, com traduções de Augusto de Campos.

afirmação de Miguel. A poesia concreta, difundida por poetas brasileiros como Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos na década de 1950, explorava, entre outras coisas, os limites do texto. Arnaldo5 refletiu sobre a questão ao escrever, em 2003, o prefácio do livro Não, de Augusto de Campos: “Se a poesia concreta, com sua dimensão

6

O texto do prefácio pode ser lido no site do autor em: http://www.arnaldoantunes.com.br/new/sec_textos_list.php?page=1&id=28

verbivocovisual, já indicava experiências de linguagem avançadas para os meios da época (a sugestão de movimento já aparecia, por exemplo, pela composição tipológica de poemas como velocidade, de Ronaldo Azeredo, ou infin, de Augusto, ou pela sequência gráfica de várias páginas como em seus cicatristeza ou oeilfeujeu, assim como no organismo, de Décio Pignatari; o aspecto interativo também era já prenunciado em poema-objetos como linguaviagem e

tudoestádito,

da

Caixa

Preta),

os

recursos digitais parecem agora idealmente adequados ao seu espírito de invenção.”6 Ele também se beneficia dos recursos digitais contemporâneos para realizar uma literatura que explora outras artes e só parece se enquadrar de forma inquestionável em um rótulo: o de multimídia. O crítico Antonio Carlos Miguel, porém, focando principalmente nas composições escritas pelo artista, classifica seu estilo como uma forma já desgastada. “Nos últimos anos, percebo certo esgo-

24


tamento do estilo de Arnaldo, que virou pau para toda obra, parceiro de meio mundo no pop brasileiro. A poética lúdica-concretista em série perde seu encanto, vira uma fórmula. Imagino que seja a hora de ele se reinventar. Será que terá fôlego para isso?”, desafia. Muitas pessoas discordam. Arnaldo já publicou vinte livros. O primeiro de poesia foi lançado em 1985 com o título de Ou/E. Um livro em formato de caixa, com uma tampa giratória. Movê-la é ver alfabetos passando pelos buracos. Dentro, poemas soltos, escritos com caligrafias que procuram interferir na forma de leitura. Um estilo que se repete ao longo de muitos outros trabalhos. Explorar os tipos e os tamanhos das fontes, além de usar o manuscrito, é uma forma de evidenciar sua marca empurram o leitor a prestar mais atenção ao que está lendo. Quando declama seus versos, a reflexão surge mais uma vez. Diferentes tons de voz interferem no que está sendo lido. Fig. 1 Livro As coisas, de Arnaldo Antunes (São Paulo: Iluminuras, p. 58-59)

Sussurros, gritos e pausas costumam preencher o palco junto com cartazes ou vídeos.

As publicações também já renderam prêmios. Em 1993, recebeu o Jabuti de poesia por As coisas (1992). O livro é ilustrado por sua filha Rosa, que tinha três anos na época. Nos textos, a exploração do universo das palavras, como no poema “Todas as coisas”: “Todas as coisas do mundo não

7 Uma forma gráfica que já se diferencia da poesia concreta, que buscava uma arte impessoal, para reforçar de que maneira o movimento aparece como influência em sua obra, mas não pode ser usado como rótulo para o seu trabalho.

pessoal no texto.7 Muitas vezes, os garranchos

cabem numa ideia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo.”8 Em 2004, ganhou outro Jabuti, pelo projeto gráfico de ET EU TU (2003), feito em parceria com a fotógrafa Márcia Xavier. 8 http://www.arnaldoantunes.com.br/ new/sec_livros_list.php?view=3

25


Em abril, o vigésimo primeiro livro foi publicado

se aventura na área. “Tem um nível de

em Barcelona, pela editora Kriller71, uma antolo-

qualidade muito raro de encontrar entre

gia de poemas chamada Instanto, que vinha acom-

os poetas. Ele tem muita presença cê-

panhada por um CD com canções que o artista

nica, fora o conhecimento de música e

multimídia compôs em 2007 para um espetáculo

gravação de sons. É a sua realidade, que

de dança. O autor aproveitou os shows do disco

ele leva para esse poema não escrito”,

Na curva da cintura (2011) na Europa para lançar a

afirma. E Cristobo ainda acredita que

antologia com uma performance na Espanha.

Arnaldo seja um exemplo de como a poesia está ligada à música no Brasil e de

Cristobo, diretor da Kriller71, editora dedicada à

critos mais eruditos cheguem ao grande

poesia contemporânea. Analisando os poemas de

público. “Além dele, o Caetano cantando

Arnaldo, Cristobo não vê repetição de fórmulas,

Haroldo de Campos,10 é outro exemplo.

mas uma temática recorrente: a relação das pala-

Isso é muito rico e permite uma proxi-

vras com o mundo.

midade muito grande entre a cultura po-

“Ele está se perguntando sobre isso o

pular e a erudita. Em outros países isso

tempo todo: relação da palavra com as isso o tempo todo: a “Elea está se perguntando sobre

aparece muito mais diferenciado”, opina.

coisas e a relação reflexãoda sobre até que palavra componto as coisas e a reflexão sobre Artista multimídia, sabendo lidar como

mundo que nos rodeia. Até que ponto o mundo que nos rodeia. Até que ponto ela conse-

poucos com a divulgação de sua obra,

ela consegue gueir? ir? Nos livros As coisas e Como é que chama o

a forma como Arnaldo constrói sua

nome disso,9 esse questionamento está muito pre-

carreira poderia apontar um caminho

sente. O mais bacana é que ele faz isso como uma

para a poesia nos dias de hoje, em que

criação literária, coisa que diversos filósofos fize-

a arte parece precisar de presença (da

ram de forma muito erudita. É preciso muita graça

presença do autor nas mídias e em

e inteligência para fazer isso”, opina Cristobo.

novos meios de comunicação) para

9 Uma antologia de poemas, ensaios, letras de música e caligrafias, de 2006.

a linguagem entendernos o serve para entender até nos que serve pontopara a linguagem

26

sobreviver? A produção de Arnaldo Para o argentino, a experiência nos palcos traz um

Antunes poderia ser representativa de

diferencial para suas performances poéticas, que

uma década específica? A pesquisadora

funcionam quase como um exemplo para quem

Heloisa Buarque de Hollanda, diretora

O cantor gravou “Circulandô de Fulô”, poema de Haroldo de Campos, de 1965.

que forma ela contribui para que os es-

10

À frente da edição está o poeta argentino Aníbal


da Aeroplano Editora, incluiu poemas do autor

Mas a pesquisadora admite que o traba-

entre os 23 destacados em Esses poetas – Uma

lho do autor busca não se limitar ao meio

antologia dos anos 90 (1998). Junto com seus

impresso, uma preocupação presente

textos estão escritos de Antonio Cicero, Paulo

não apenas na poesia dos dias de hoje,

Lins e Claudia Roquete Pinto, entre outros.

mas na arte de uma forma geral. “Ele faz

Afinal, Arnaldo tem a marca dos 90?

uma poesia expandida que você pode encontrar no papel, na música, numa

Heloisa reforça que, quando montou a antologia,

almofada, numa declaração filosófica.

não tinha a preocupação de listar padrões de escri-

Quando você pergunta se Arnaldo é

ta por períodos. Muito mais do que detectar carac-

mais músico do que poeta, eu responde-

terísticas marcantes da década, a preocupação era

ria que Arnaldo é poeta o tempo todo,

apontar os que se destacaram. “Pra falar a verdade,

poeta lato sensu como certamente sonha

quando organizo uma antologia não penso muito

ser a arte desses tempos”, diz.

11

Cf. http://www.arnaldoantunes.com.br/ new/sec_textos_list.php?page=1&id=27

em representatividade. Escolho aqueles poetas que se consolidaram num determinado período e que

No texto “Sobre a origem da poesia”,

me fascinaram. Por isso, eu não diria que ele repre-

incluído em 2000 no livreto do

senta a década (aliás, ele é dos anos 80), mas que

espetáculo de dança 12 poemas para

ele foi um fenômeno na década.” E ela completa:

dançarmos, de Gisela Moreau, e que

“Arnaldo é talentosíssimo, tem um vasto repertório

integra a antologia espanhola, Arnaldo

cultural. É um pensador interessantíssimo e chega

defende a ideia de que essa já teria

assim sem necessidade nenhuma de se definir.”

nascido expandida:

Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado.11 27


Fig. 2 OU/E Livro de Arnaldo Antunes (São Paulo: Edição do artista, 1983)

28


Uma forma de pensar que ele parece tentar aplicar nos escritos que produz.

Essa busca primária, da origem da poesia, da origem da palavra, deixa no

12

Como se ele, novamente com olhos

poesia que foca na palavra, explora suas muitas

de criança, estivesse diante daquela

representações e investiga seus significados, que

palavra,

não está apenas no signo, mas também fora dele.

palavra-objeto pela primeira vez. No

O significado de uma palavra fica diferente se você

livro As coisas (1992), por exemplo,

a diz de forma sussurrada, pausada, gritada? A

Arnaldo Antunes nos apresenta, em um

poesia seria uma forma de conectar as palavras com

de seus poemas, a água: “A água molha

a vida? E ele responde: “As palavras se desapegaram

porque não sabe cuspir”.13 Ilustrando a

daquele

objeto,

daquela

frase poética, uma gota desenhada com “As palavras se desapegaram das um traço impreciso e infantil. coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. Mas temos esses pequenos oásis – os poemas – contaminando o deserto da referencialidade.”12

O poema “A água...” pode ser lido em: http://www. arnaldoantunes.com.br/new/sec_livros_list.php?view=3

No texto, Arnaldo segue defendendo uma

13

Ibid.

leitor uma sensação de estranhamento.

Fig. 3 Arnaldo Antunes. Ponto e vírgula, 2008

29


0,5

0,1

0,1

0,2

0,3

0,2

0,4 0,15 0,5

0,25 0,35

0,7

0,5

1

1

3m 30

entrevista . arnaldo antunes

6m


a f{

A nossa primeira dificuldade ao elaborar um roteiro para esta entrevista foi tentar “enquadrar” ou mesmo traçar um fio condutor da sua obra por onde se pudesse seguir. Se, por um lado, a palavra parece ocupar este espaço central, em torno e em função da qual as inúmeras possibilidades artísticas transitam e dialogam, por outro, parece-nos que há um comprometimento maior de sua parte exatamente em uma libertação de rótulos como “música” “poesia” e “artes plásticas” na busca por fazer uma arte múltipla, multissensorial. Você pode falar sobre essas questões?

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De certa forma, tudo que produzo (canções, poemas, trabalhos visuais) envolve o uso da palavra, em suas múltiplas possibilidades e conexões com música, imagem, performance, etc.

Posso até prescindir da palavra, mas não da significação poética. É como se ela fosse um porto seguro, de onde me aventuro em direção a outras linguagens. Dessa forma, tudo acaba se conectando. Ao mesmo tempo, sinto estarem cada vez mais precárias as delimitações entre as linguagens e cada vez mais fluente o trânsito entre elas. A modernidade, de uma maneira geral, borrou essas bordas. E os meios digitais vieram para misturar as cores de vez.

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Vamos falar do início de sua carreira. Em sua biografia diz que você começa a desenhar e a fazer os primeiros poemas em 1973. Logo depois, em 1975, na escola, fez um filme, um super 8, mas, ao mesmo tempo, começa a compor canções com Paulo Miklos. Naquela época, talvez um pouco mais tarde, você já tinha noção de que queria trabalhar com a poesia, ou com artes visuais... como a música passou a ocupar um espaço maior na sua vida?

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Desde adolescente me interessei por música e por literatura, simultaneamente. Na mesma época (lá pelos 13, 14 anos de idade) em que tive aulas de violão, já com o desejo de compor canções, comecei também a escrever os primeiros poemas. Também escrevia contos. No segundo grau, publiquei livrinho de prosa chamado Camaleão, que imprimi na gráfica do colégio Equipe. Fiz um lançamento lá, e depois vendia em bares e portas de teatro, o que era também um jeito de eu descolar uma grana. Ao mesmo tempo já compunha canções em parceria com o Paulo Miklos, que era da minha classe e, depois, com outros futuros integrantes dos Titãs. As coisas chegaram juntas para mim. Era ligado, por exemplo, em João Gilberto, Gil, Caetano, e ao mesmo tempo nas revistas de poesia mais experimental. Depois fui descobrindo as conexões entre esses dois universos, como o Balanço da Bossa, do Augusto de Campos, ou as canções do Caetano sobre os poemas dele, na Caixa Preta, e outros poetas que transitavam entre a palavra impressa e a cantada, como Torquato Neto, Waly Salomão, Leminski, entre outros. Depois do colégio entrei na Faculdade de Letras da USP e, um tempo depois, estreamos com Os Titãs. Aí a agenda de shows e viagens foi ficando cada vez mais cheia, até que ficou impossível continuar com a faculdade. 31

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Embora já tivesse um trabalho muito intenso com performances, com poesia e como editor da série de revistas Almanak, você se tornou conhecido como artista com o seu trabalho nos Titãs, o que é natural, tendo em vista o alcance da música pop e a força do movimento Rock dos anos 1980. Você acha que seu trabalho como músico acabou “ofuscando” o restante da sua produção?

Há, muitas vezes, um certo preconceito com o trabalho de artistas que têm apelo comercial. Como você se relaciona com o mercado? Ser famoso ajuda a vender poesia?

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fala fala 32

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Nunca vi dessa forma. Há, realmente, a uma evidente diferença de alcance entre a música popular e a poesia. É natural que seja assim, pois a poesia, atualmente, é uma arte minoritária, em qualquer parte do mundo. Já as canções pertencem ao universo da comunicação de massas e da indústria do entretenimento. E, especialmente no Brasil, onde isso constitui um fenômeno poderoso, temos também uma tradição de texto cantado muito sofisticada. Mas sempre vivi com naturalidade esse descompasso, fazendo o trânsito entre os territórios. Na verdade, sempre me senti um autor de livros de poesia privilegiado, pelo fato de uma pequena parte do extenso público que minha música pode ter conquistado se interessar também por minha poesia escrita.

Sucesso comercial não é parâmetro para medir qualidade artística. Pode-se ou não ter sucesso comercial e fazer ou não um trabalho potente artisticamente. As duas coisas podem se dar juntas, como nos casos mais felizes, ou podem acontecer separadamente. A graça é justamente essa imprevisibilidade. Agora querer ser ouvido e cantado pelo maior número de pessoas possível é a intenção natural de qualquer artista que trabalhe com música (o nome já diz) popular, pois faz parte da natureza coletiva do próprio produto. Só não se deve abrir mão dos anseios expressivos mais verdadeiros, no intuito de atingir essa finalidade. Não só porque aí deixa de ser arte e vira outra coisa (propaganda, marketing, diluição), mas também porque, mesmo comercialmente, é difícil tais concessões darem certo. Continuo acreditando que o público é mais inteligente, esperto, aberto à novidade do que querem fazer crer a maioria dos veículos de comunicação e que a criação genuína e original cedo ou tarde acaba conquistando seu espaço. Talvez seja um excesso de otimismo...


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A respeito das revistas: você coeditou algumas das revistas mais representativas da literatura f brasileira das últimas décadas, como a Almanak, a Kataloki e a Atlas. Também nessas revistas, o grande diferencial era a relação da poesia com as artes visuais. Como você vê essa relação?

}

Eram revistas que queriam mostrar uma produção múltipla, de poesia, desenho, prosa, HQ, artes plásticas, fotografia, artes gráficas. Talvez a maior parte dos trabalhos fosse realmente a de poemas visuais, produção que acabava por unir algumas dessas áreas e para as quais as revistas eram um veículo muito adequado. Eu sempre fui apaixonado pelo universo da criação gráfica, assim como o Beto Borges, o Sérgio Papi, o Nuno Ramos, entre outros que coeditaram essas publicações conosco. E essa era uma maneira de dar vazão a esse encantamento. Ao mesmo tempo, creio que meu contato com outras publicações do gênero (como as revistas Invenção, Arteria, Navilouca, Código, Através, Muda, Zero à Esquerda, Bric a Brac, Caspa, etc.) também alimentou esse desejo.

Sua poesia tem uma forte relação com a visualidade e é considerada, por muitos, como neoconcretista. Qual é a influência do movimento concretista na sua poesia?

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Não tenho nada a ver com o neoconcretismo, termo cunhado pelo Ferreira Gullar no final da década de 1950, que representava uma reação à arte concreta. Mas essa é uma discussão deles, de outra época. Sou um admirador da poesia concreta e dos trabalhos posteriores, mais individualizados, dos protagonistas do movimento (Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo, além de José Lino Grunewald, Pedro Xisto, Edgard Braga, entre outros). Acho que a minha geração já recebeu essas informações mais livremente, sem os traumas e choques das gerações anteriores. Para mim, o trabalho dos poetas concretos foi pioneiro em muitos aspectos — na inserção de aspectos gráfico-visuais junto ao verbal, na consciência da materialidade da linguagem, na exploração de outros meios e suportes para a poesia, no experimentalismo, na libertação da sintaxe e do verso tradicionais, entre outros aspectos.

33


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Podemos perceber uma mudança bastante clara entre a relação do texto poético com a visualidade em livros como o Psia, seu segundo livro, de 1986, que tem uma referência quase imediata com o concretismo, e n.d.a, de 2010, ou 2 ou + corpos no mesmo espaço, que trazem fotos de obras suas, diminuindo essa fronteira entre poesia e artes plásticas. Você considera isso uma evolução natural da sua obra, ou somente uma particularidade de cada trabalho?

Você participou, na década de 1980, de um período de efervescência artística, com o surgimento de grandes nomes da arte brasileira contemporânea e uma grande abertura para a experimentação, para a pesquisa de novas linguagens, como a própria performance. Como você observa o cenário atual da arte brasileira?

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a{ Não consigo ter esse olhar crítico de fora, em relação aos meus trabalhos. Creio que cada livro responde a anseios de momentos específicos mas, ao mesmo tempo, eles se relacionam em buscas comuns, que se estendem de um ao outro. Não chamaria de evolução, mas de desenvolvimento de algumas questões, junto à descoberta de outras. De qualquer forma, a aproximação entre o verbal e o visual é algo que está presente em praticamente todos os meus livros, desde o primeiro, OU/E, que era todo caligráfico.

Acho muito difícil traçar em poucas linhas um panorama fiel de cada época. Qualquer generalização acaba sendo muito redutora. E eu prefiro sempre as exceções do que as regras. Mas continuo atento à produção atual em várias áreas e acho que há muitas coisas interessantes para ser descobertas por quem tiver curiosidade e (principalmente hoje em dia) acesso à internet.

Você acredita que, hoje, a poesia ainda é uma forma de resistência?

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Acredito que sim. Resistência ao hábito, à repetição de formas e conceitos standartizados, à imprecisão, ao excesso, à insensibilidade e à estupidez geral.

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f{ Tendo em vista que sua poesia tem sempre uma relação muito íntima com a sonoridade e com a visualidade, como se dá o seu processo de criação artística? Em geral parto de um impulso, uma fagulha — que pode ser uma frase, uma ideia, um ritmo, uma melodia, uma imagem, um recurso gráfico ou um jogo de palavras; e vou desenvolvendo aquilo, através de muitos rascunhos. Aí entra um exercício de acrescentar e suprimir elementos; adição e subtração — além de escolhas e da efetivação de diversas possibilidades (rabiscando, salvando, gravando, imprimindo ou arte-finalizando diferentes versões). É como se eu precisasse sempre ver, ler, ouvir as várias alternativas para ir fazendo minhas escolhas e mudanças, antes de chegar a um resultado (verbal, visual, rítmico-melódico). Não sou o tipo de artista que processa tudo interiormente e já produz de cara algo finalizado. Para mim tudo que faço é antes matéria-prima de um processo de refeitura (substituição, comparação, remontagem de partes, decantação), que precisa materializar as possibilidades para se realizar.

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f{ Uma parte significante do seu trabalho é direcionada ao público infantil. Como surgiu a vontade de produzir também para esse público? Fig. 4 Arnaldo em foto para a capa de “Um som”, 1998

{a Creio que a convivência com meus filhos pequenos trouxe muita inspiração para meu trabalho criativo. Alimentou, em parte, um certo sotaque poético que produz estranhamentos, descobertas e analogias imprevistas. Além disso, alguns convites, como os do Palavra Cantada e do Pequeno Cidadão, me levaram a compor e atuar em projetos especialmente voltados para o público infantil, o que já me deu grandes prazeres. Mas tudo começou com minha convivência íntima com as crianças aqui de casa, que me motivaram com seus olhares muito virgens e livres para as coisas do mundo.

35


dossiê . texto crítico

36


Verbo viajante, palavra-corpo e performance poética em Arnaldo Antunes André Gardel

A palavra poética de Arnaldo Antunes atravessa suportes, meios e territórios diversos, reconfigurando incessantemente o espectro de sua especificidade de linguagem. De acordo com o uso a que é submetida, ao navegar por espaços crítico-criativos, adquire características de um verbo viajante, nômade, em constante mutação. E dentro desse percurso, configura-se por meio de trocas, contaminações, interseções, contrapontos, potencializações

recíprocas

entre

artes,

discursos, sistemas de signos, universos sensórios e culturais. A poesia livresca e a letra de canção, as fontes de onde tal verbo emana, são, assim, apenas mais algumas das possibilidades a que a palavra poética, polimórfica e mutante está sujeita, a partir do momento em que se faz criação e circula nas distintas formas de recepção: contemplativa, interativa, encantatória, tribal.

Os meios expressivos de que Arnaldo se utiliza são diversificados e amplos: livros, discos, shows, ações performáticas, trabalhos de artes plásticas, caligráficas e gráficas, poemas visuais e digitais, instalações, intervenções. A multiplicidade dessa produção disponibiliza um variado espectro de possibilidades de recepção, que pode ocorrer, por exemplo, com megashows realizados para multidões, em galerias de arte, a partir de videoclipes e programas musicais de televisão, do uso artístico de objetos de consumo, da visão de outdoors e outros espaços urbanos, em palestras e recitais em bienais, feiras de livros, escolas, centros culturais, em espaços teatrais específicos para pequenas performances, na leitura silenciosa livresca, na ambiência hipertextual da internet. 37


O que salta aos olhos e diferencia a sua produção multimídia é, no entanto, a maO que salta aos olhos e diferencia nutenção e continuidade, tanto de sucesso a sua produção multimídia é, comercial quanto de experimento, de um no entanto, a manutenção e esforço criativo cuja plataforma básica é decontinuidade, tanto de sucesso sentranhar do lugar comum, o incomum; da comercial quanto de experimento, de informação redundante, inovação; do banal um esforço criativo cuja plataforma cotidiano, poesia; dos padrões de normalibásica é desentranhar do lugar dade, estranheza. Arnaldo executa, em sua comum, o incomum; da informação práxis poética, um movimento sinestésico redundante, inovação; do banal que se desborda em multiculturalidade e cotidiano, poesia; multidiscursividade: códigos distintos vistos como mundos distintos inter-relacionáveis, mundos distintos ouvidos como códigos assimiláveis, linguagem e vida interagindo em contágios incessantes, vários campos de conhecimento em trânsito, desviando seus sentidos, readquirindo força na migração poética do verbo viajante, na interação de noções na imagem.

Fig.5 Arnaldo Antunes. Mar mel, 2008

jante de máximas e ditos populares, nas suas propostas de diálogo artístico intersemiótico. Trata-se de um trabalho de desconstrução que se insinua como a contraface pós-moderna, reciclada, do espírito e olhar primitivistas das vanguardas. O frescor originário do “bárbaro tecnizado de Keyserling” (ANDRADE, 1978, p. 14) transmodela-se nos olhos livres recriativos do estranho acústico/eletrônico massivo, atravessados pelo desejo interessado (no sentido mario andradino do termo) em

produzir uma “criação contaminada de vida, em produzir uma “criação contaminada de 2000a, p. contaminando a vida” (ANTUNES, O movimento mais constante nessa vida,procontaminando a vida” e que, ao mesmo O movimento mais constante nessa produção, portanto, é o de busca de 12) umae que, ao mesmo tempo, sofra a interferência a interferência de várias áreas dução, portanto, é o de busca de umatempo, possívelsofra de várias áreas do saber. possível brasilidade desterritorializante, do saber. (ANTUNES, 2000a, p. 12) brasilidade desterritorializante, desfolcloridesfolclorizante, modulada pelo intuito zante, modulada pelo intuito de “transforde “transformar o óbvio no inesperado” mar1997a). o óbvio no inesperado” (ANTUNES, Como se vê, Arnaldo estabelece um livre trânsi(ANTUNES, 1997a). E este procedimento vai do micro- to entre a indústria “major” e a “minor”, entre os estético ao macrocultural, apresentando-

-se nas unidades mínimas significativas da materialidade poética, na reconfecção are-

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espaços “cults” e “bregas”, oficiais e alternativos, entre o erudito e o popular, entre os “happy few”


e a massa. E é justamente essa postura transicional, de Hermes-Mercúrio mensageiro multicultural e interartístico, que propicia o Dos poetas e do movimento concreto, Arnaldo exercício e ampliação do viés “pedagógico” devora, como bom antropófago que se alimentou da de sua produção. Pois é a partir da potenciacartilha canibal do modernista Oswald de Andrade, o lização das forças que tencionam a palavra instrumental linguístico e semiótico; a inserção da escrita poética, nômade, distendendo-se e reverideogramática na escrita alfabética, que berando, de modo recorrente, em todos os incorpora a estrutura analógica à lógica meios de expressão a que se dedica, que vem discursiva ocidental; a pesquisa gráfica à tona seu ideário último: a revitalização, e caligráfica revitalizando o verbal; a multimídia, de um estado de linguagem – contaminação multimeios; a poesia visual primitivo, semiótico, performativo – em de fundo construtivista; a proesia; a busca em quee nome coisa, eobjeto signo surgem como um que nome coisa, eobjeto signoe surgem isomórfica de significação entre signo e mesmo fenômeno pulsante. comoúnico um único e mesmo fenômeno pul- Num resgate de verbal e referente, similaridades fônicas e situação de uma um momento em que a sante.uma Num resgatee de situação eoriginários de ambiguidades semânticas etc. E do Momento linguagem torna-se corpo e oacorpo, um momento originários em que lingua-linguagem. Tropicalista que, por si só, já é uma deglutição gem torna-se corpo e o corpo, linguagem. pop de proposições modernistas, Arnaldo Assim, a obra de Arnaldo Antunes vem traincorpora uma criação que enfrenta, zendo para o universo da cultura popular, de modo plural e muito pessoal, o jogo de modo sistemático e com grande poder artístico que se desdobra da dialética inventivo, elementos expressivos que fincontemporânea entre novidade e tradição, cam raízes em algumas das mais importanestética culta e de massas. tes experimentações de vanguarda culta. A figura do Canibal está intrinsecamente Tentando, direta ou indiretamente, diminuir A figura do Canibal está in e ligada ao o fosso existente entre experimentação forprojeto de revisão cultural modernista do mal e ampliação de público. Outros artistas Brasil de Oswald de Andrade, que em seu e movimentos na música popular comercial Manifesto Antropófago (1928) parte de um brasileira fizeram e/ ou fazem o mesmo. No ritual primitivo indígena tupinambá entanto, a obra de Arnaldo Antunes, apesar de se inserir nessa tendência, mantém uma singularidade muito específica. 39


nas montagens do teatro do grupo Oficina de O rei da vela até Gracias señor. Esses intelectuais, segundo Flora Süssekind (2007), no artigo “Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60”, por sua independência criativa, apesar de terem em comum muitos pontos conceituais, fizeram parte mais de um “momento” do que Dde devoração do inimigo – que propõe um6 deslocamento si, em constante devir, Fig. Arnaldo Antunes.de Humanos, 1998

de um “movimento”, formando uma espécie de coro de contrários tropicalista, de vozes disso-

nantes, com influências e diálogos explícitos a partir da aceitação plena, física e espiritu- mas sem um projeto organizado em manifesto de devoração do inimigo – que propõe um al, da aoOs artistas experimentais dos anos deslocamento de si, em constante devir, a partir dacomo os das vanguardas históricas do princípio 1960, em contraponto político-estético aos aceitação plena, física e espiritual, da alteridade,do século XX, ao contrário das vozes uníssonas intelectuais nacionais-populares da época, como modo de fortalecimento interno – parae engajadas da produção teatral e intelectual de modo não sistemático, utilizam-se dessa propor um novo meio de nos relacionarmos comde grupos nacionais populares como o Teatro de perspectiva crítica para repensarem a arte e a produção estético-ideológica estrangeira e comArena e/ou o Opinião. a política do Brasil da ditadura e da sociedaos mitos recalcados de nossa nacionalidade. de de massas. E é um tipo de voz semelhante – que é dissonanHélio Oiticica é o primeiro a recuperar as proposições de Oswald de Andrade em seu penetrável Tropicália, que também dará nome ao movimento na música popular liderado por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, além de despertar interesses estético-conceituais semelhantes na produção de Glauber Rocha de Terra em transe, na literatura de ficção de José Agrippino de Paula com Panamérica, na poesia de Torquato Neto e Capinam e 40

te e, ao mesmo tempo, consoante, que é grave e, no entanto, aceita e comercializável no universo de vozes agudíssimas da música popular de massas – que se propaga na obra e nas performances poéticas de Arnaldo Antunes. O que significa falar, basicamente, dos instantâneos de sua obra em que seu corpo, como autor e ator de uma individualidade, impregna-se de presentidade poética; e, na mesma medida, dos momentos em que


o verbo-viajante da poesia se encontra mais o verbo-viajante da poesia se encontra mais preso à língua do corpo, isto é, nas suas preso à língua do corpo, isto é, nas suas vovocalizações, no contexto rítmico-melódico calizações, no contexto rítmico-melódico das das canções ou na ambiência cênico-espacial canções ou na ambiência cênico-espacial de de suas ações performáticas. suas ações performáticas. artista torna-se meio e suporte de expressão. Performance poética

Dessa maneira, a movimentação poética de uma voz lírica que se quer “ligada a você pelo chão” (ANTUNES, 2000b) parece, finalmente, mostrarse na dinâmica de seu circuito inventivo pleno,

Vamos abordar agora as performances po-

sempre exercido com o intuito de disseminar

éticas de Arnaldo Antunes a partir de duas

um ritual de reeducação dos sentidos: rodando

perspectivas básicas: em suas ações em

sobre o mesmo eixo – acionado por associações

shows ao vivo e videoclipes, quando o artista

inesperadas, similaridades, analogias, esbarros

se movimenta ao som instrumental de uma

iluminadores, presença pela ausência, afirmação

banda de música popular, e em recitativos de

pela negação –, para que o signo vire corpo e o

poemas, situações em que ou atua sozinho

corpo, signo.

ou divide seu trabalho com outros perforEsse corpo-signo que “é para ser usado”, que

é o principal”, na medida em que sente a “pele

poética” (ZUMTHOR, 2007, p. 34), nas

viva à flor da carne”, em uma “sensação com

palavras do teórico suíço-canadense Paul

sentimento dentro”, aprendendo, assim, que “o

Zumthor, como o momento da obra do

desejo comanda o desejo” e “a pele pede pele”

poeta paulista no qual o corpo do próprio

1

como “o único modo vivo de comunicação

Esta e as citações antecedentes do

formas suscitadas se dão de modo isolado. sabe que “ver dá vertigem”, pois tem “um olho Esse corpo-signo que “é para ser usado”, que sabe que Sempre há a presença simultânea de diferen- na ponta de cada dedo”, produz uma “músi“ver dá vertigem”, pois tem “um olho na ponta de tes linguagens estabelecendo diálogos, ten- ca subcutânea” em que “o som ecoa no céu da cada dedo”, produz uma “música subcutânea” em que boca”; e entende, sob a luz de “cine-pensamensões ou interferências intersemióticas. “o som ecoa no céu da boca”; e entende, sob a luz de to”, movido por “vento dentro/in-vento”, que “o “cine-pensamento”, Estamos pensando aqui a performance ar que contorna define a forma”, já que “o gesto

(ANTUNES, 2000b)1. 41

parágrafo são do livro não paginado.

mers. Em nenhum dos casos, entretanto, as


(ANTUNES, 2000b). Portanto, um corpo performativo, com um repertório de conduta subjacente a uma poética e a uma subjetividade, que desmascara a função reguladora

reestruturadas: “...Decida/ Ou desce ou desce/

cultural das atitudes convencionais por ser

Ou dá ou dá/ Decida/ É agora ou já/ É agora

“um demonstrativo dramático de gestos,

ou já...” (ANTUNES; SCANDURRA, 1998).

adquirindo o estatuto privilegiado de en-

A máxima liberou geral, que usualmente tem

frentar-se com o óbvio, o simples e o mais

o sentido popular de vale-tudo, de mundo às

natural” (GLUSBERG, 2003, p. 90).

avessas das inversões carnavalescas, reconcebida na letra “Macha fêmeo”, do CD O silêncio, vira

Uma postura criativa reincidente na

“liberal gerou” (ANTUNES; TATI; FROMER,

poesia de Arnaldo, no ato de desentranhar

1997), sugerindo o significado politicamente

poético do não poético, é a reconfecção de

(in)correto que o mundo liberal propiciou à

adágios populares, ao redesenhar sentidos

questão das sexualidades alternativas.

nas frases feitas, jargões, clichês, como se fossem massa de modelar. O nome do livro

Vamos nos deter em três ações específicas de

Psia (1986), segundo o autor, é o feminino

Arnaldo Antunes em shows ao vivo e em vi-

do ruído oral significativo psiu (ANTUNES, Uma postura criativa reincidente na poesia de 1998)2, e, também, corruptela da palavra Arnaldo, no ato de desentranhar poético do não poesia, o que só ratifica o mergulho radical poético, é a reconfecção de adágios populares, e lúdico na coloquialidade, uma das fontes ao redesenhar sentidos nas frases feitas, jargões, modernas de sua poética. A frase que clichês, como se fossem massa de modelar. abre o livro é uma espécie de diálogo com

deoclipes. A primeira é uma performance em

o bordão popular Quem com ferro fere,

(ANTUNES; MORAES, 2001), que Arnaldo

com ferro será ferido, colocado em xeque

canta, em shows, vestindo uma indumentária

a partir da mudança do tipo de metal que

que se assemelha a um Parangolé, que porventu-

fere: “Quem com ouro fere?” (ANTUNES,

ra tivesse sido concebido pelo performer mexi-

1998, p. 5). Em “Decida”, do CD Um som,

cano Guilhermo Gomez-Peña, em parceria com

as expressões de situações-limite Ou dá ou

nosso artista plástico vidente-esquizo-paranoi-

desce e é agora ou já, aparecem invertidas e

co Arthur Bispo do Rosário...

2

Orelha da primeira

capa feira pelo próprio autor.

42

que letra e figurino dialogam na reflexão sobre o corpo como “campo de contradições sociais e políticas, e não apenas instrumento de expressão cultural neutra” (PAVIS, 2008, p. x). Trata-se da letra da canção “Na massa”, do CD Paradeiro


lixo reciclado, fantasia de carnaval, badulaques múltiplos, o poeta compõe um tipo híbrido: “... roupa de princesa/ em pele de plebeu...”; nas falas e nomes de coisas: “...vai de my cherri/ vai Como o “Penetrável” de Hélio Oiticica,

de mon amour.../ manto de garrafa pet.../ ócu-

ganha forma-força expressiva não apenas

los Ray-ban/ raios de tupã...”; nas roupas: “...no

revestindo o corpo, mas, principalmente,

corpo collant.../ camiseta de Che Guevara.../

com a vivência do ponteado contido/ ex-

de biquíni xale bata ou avental.../ turbante im-

pansivo da dança. Como as assemblages/

portado/ lá de Bagdá.../ México chapéu caba-

environments do autor da performance/

na.../ tanga de miçanga fina...”; nos apetrechos:

instalação El Shame-man se encuentra

“...joia de bijuteria/ lantejoula e purpurina.../

com el Mexican’t y com la hija apócrita de

ou com lenço de cigano.../ capacete de ba-

Frida Cola y Freddy Krugger em Brasil,

cana.../ gargantilha no cangote.../ plástico

Guilhermo Gomez-Peña, o corpo é meio de metal/ árvore de natal...”; no corte de cabelo: o corpo é meio de veiculação de identidades veiculação de identidades e não identidades “passa de cabelo moicano” e nos movimentos: e não identidades em choques, tensões e em choques, tensões e contrafluxos inter- “...anda de abada/ dança o bragada...”. Pele e contrafluxos interculturais, transnacionais e culturais, transnacionais e multidiscursivos. roupa se confundem: “...usa a roupa da pele multidiscursivos E, por último, como as obras trash de nosso da/ roupa da pele da roupa...”, numa construgênio da Colônia Juliano Moreira, os trapos

ção exterior que sugere a interior ao mesclar

e restos que compõem o figurino usado pelo

produtos arcaicos e high tech, vetores das rela-

compositor revelam, por meio do trivial e

ções socioculturais, procurando uma identida-

do lixo, a objectualidade e a vulnerabilidade

de, uma diferença “na massa”, mas que também

não hierarquizada dos elementos quando

se desconstrói na medida em que “some na

em trânsito vida/arte.

massa” (ANTUNES; MORAES, 2001).

O multiculturalismo pulsando no que a

A segunda ação performativa em que nos

Antropologia chama de cultura material,

debruçaremos é a do videoclipe Música para

cujo conhecimento traz o social para o

ouvir, canção do CD Um som, dirigido por

âmbito do sensorial, aparece na persona-

Andrew Waddington e Toni Vanzolini; mais

gem transnacionalizada “anjo sem asa”, que

especificamente, sobre uma imagem-corpo

“segue a moda de ninguém”, “moda tem a

que se apresenta ao olhar no transcorrer

sua só”. Misturando informações diversas,

do vídeo. Concebida em linguagem inaugural de “cifra ótica” (LEHMANN, 2007, p. 119) 43


ou de uma “espécie de hieróglifo vivo para ser decifrado” (FERNANDES; GUINSBURG,

A terceira performance é a que Arnaldo realiza

2008, p. 18) cuja função é propiciar uma

no videoclipe Essa mulher, música do CD Para-

aventura heurística receptiva que insira o leitor/espectador na atividade do tempo ritual da performance poética, a composição de

deiro . A letra da canção, que tematiza as ações no clipe, aborda a manutenção do desejo masculino mesmo sendo desprezado pela mulher.

O poeta surge dançando em passos

No videoclipe de Arnaldo Antunes, o abismo O que salta à vista são os bonecos, fantoches, entre homem e coisa é relativizado e desfuncionatíteres, marionetes, manequins, mamulengos, de lizado. E o diálogo se dá, antes, entre objeto e ser diferentes formas e tamanhos, que se espalham humano pela casa, junto com inúmeros produtos indus-

saltitantes espasmódicos, braços esticados,

triais selados com a imagem do cantor (batom,

todo de preto, com um alto-falante, um

almofada, colher de pau, marcador de livro etc),

Antunes sugere as metamorfoses de percepção implícitas na dinâmica do corpo-signo.

pouco maior do que o formato de sua cabeça, preso a ela na altura do rosto. Tal ser-signo sugere que todose os sentidos e suas Tal ser-signo sugere que todos os sentidos potências de conformação de linguagem, suas potências de conformação de linguagem, à exceção da audição, irmã-ímã do canto, encontram-se transcodificados, trazendo junto suas especificidades latentes, no ato de vocalização corporal rítmico-melódica, filtrada, modificada e ampliada pela tecnologia, simbolizada pelo alto-falante. Esse corpo híbrido subjetivo/objetivo que atravessa, meio gauche, o cenário do clipe, pode ser entendido como a figuração da produção musical do performer, em viagem autoexpressiva de sua estranheza última, em pleno universo mainstream da indústria da música de massas.

que está em cena, cantando, sem ser notado, assim como todos esses outros objetos, pela atriz que faz a personagem sugerida pela letra. No final da encenação, o performer, vestido e caracterizado de boneco de pano, coreografa uma dança patética, chapliniana, pois não conseguiu se fazer notar e ser companhia daquela mulher. No videoclipe de Arnaldo Antunes, o abismo entre homem e coisa é relativizado e desfuncionalizado. E o diálogo se dá, antes, entre objeto e ser humano, pois ambos, após serem tragicomicamente desprezados, acabam como joguetes do destino da mulher-deusa autônoma. E, no final, terminam por revelar sua mesmidade inerente fundamental:

o

corpo-signo-mamulengo-clown

dançante, duplo grotesco pop tanto de um “estado de êxtase” primal, quanto metáfora da morte vital artística do ator/performer arcaico, pré-moderno, que retorna, costeando a modernidade, em pleno universo globalizado da cultura de massas informacional contemporânea.

44


Podemos

detectar as origen experime s da per ntações d formance a Bauhau nas serata na live art, s e do Bla s futuris ck Moun no movim tas e dad ta in e n C to o F aístas, na ll lu e em suas ge, na acti xus e na b s performa ody art. E on painti ng, no ha m Antun nces inte ppening, es, em seu batuta m rmídias, ultidiscu s recitativ elemento rsiva do os perfor s pinçad performe máticos, de prese o s dessas r. Em in nça, o p p r opostas teração c oeta can surgem s omunica ta/recita gestuais, ob a tiva direta sua pala enquanto v , r c a s o ã m o c orpórea, apresenta consciên performa na inters cia dos, simu nce plásti e ç lt ã a o n c e d o a e m c m e a n li o te g vimentos ráficas, s , vídeos, no apare ons de s lho para slides, víd ua voz p intervenç e o p e rformanc ré-gravad ão em su eletrônic es, os, altera as vocaliz os pontu dos e ma ais e amb ações pelo n ientais ex useados próprio A ecutados rnaldo, e por outro m is s ões de so s perform ns ers convid ados.

45


A primeira experiência marcante de Arnaldo Antunes com a performance veio de sua participação, em fins dos anos 1970, na Aguilar e a Banda Performática. Criada e concebida pelo artista plástico José Roberto Aguilar, reunia poetas, dançarinos, atores e pintores em performance musical. Nas pala-

no auditório da Sociesc de Joinville, em 29

vras do líder da banda, podemos apreender

de agosto de 2008, dentro da “V poesia em

as bases do que será desenvolvido posterior-

cena”, o poeta canta ao microfone, todo ves-

mente por Arnaldo Antunes:

tido de preto, segurando folhas de papéis, acompanhado apenas pelo som sintetiza-

Eu não sou pintor.sou Maspintor. Mas Eu músico, não sousoumúsico,

do de Marcelo Jeneci, com imagens múlti-

nada me impede de impede ser band-leader da nada me de ser band-leader da

plas se alternando ao fundo, numa tela. As

Banda Performática, porque atrás dela atrás dela Banda Performática, porque

linguagens se organizam por justaposição e

existe sempre um sempre discursoum sobre as artes existe discurso sobre as artes

superposição, sem sucessão, fusão ou tran-

plásticas, mas como mas um como conceito plásticas, umouconceito ou

sição, em um simultaneísmo com instantes

metalinguagem do rock. Minha bandaMinha é metalinguagem do rock. banda

ocasionais de diálogo entre voz/som eletrô-

uma legião estrangeira de linguagens é uma legião estrangeira de linguagens

nico e as imagens plásticas em movimento

pois se serve de vídeo, dança, teatro, artes

(do tipo chamado/resposta rítmica, com al-

plásticas... Mas eu não quero que ela seja

ternância vaga-lume da luz à pulsação dos

diferente das outras bandas, porque, no

acentos da música), e outros momentos de

fundo, é uma banda de rock. Minha banda é

autonomia dos códigos. As imagens passam As imagens passam pintura. Muda a linguagem, mas o conceito por diferentes reinos, do natural, com a por diferentes reinos, é sempre o mesmo (AGUILLAR, 1984). aparição de um peixe vermelho no aquário, ao arquitetônico, com a visão angular de No recitativo performático da canção

uma igreja iluminada vista do alto à noite,

“Inclassificáveis” (ANTUNES, 1997b), do CD

para finalizarem-se com formas geométri-

O silêncio, que Arnaldo Antunes realizou

cas azuis em fundo negro, alterando-se em número de elementos e composição abstrata formal.

46


A letra aborda a revitalização criativa do modelo étnico-cultural crioulo, a partir de leituras não hifenizadas de nossa cultura, com Arnaldo Antunes concebendo nosso universo cultural como não hierarquizado, assistemático, rebelde e vital. O poema cantado/recitado inicia com perguntas indignadas, em resposta a uma possível afirmação de nossa etnia a partir do mito das três raças:

No refrão, a série de ambiguidades contidas no termo que nomeia a canção “Inclassificáveis” se entremostra para (in) definir nossa brasilidade: “Não tem um, tem dois/ Não tem dois, tem três/ Não

tem lei, tem leis/ Não tem vez, tem vezes/ índio o quê?/ “Que preto,“Que que preto, branco,que quebranco, índio oque quê?/ Não tem deus, tem deuses/ Não tem cor, Que branco, preto o quê?/ Que branco, que índio, que que índio, preto oque quê?/ (ANTUNES, 1997b). tem cores/ Não há sol a sós”. (ANTUNES, queo branco Que índio,Que que índio, preto,que quepreto, branco quê?/ o quê?/ 1997b) Que o quê?/ Branco Que preto pretobranco brancoíndio índio o quê?/ Branco índio índio preto o quê?” Utilizando-se dos procedimentos barrocos da pergunta-iniciativa, de simetria e de máquina composicional lúdica do poema, a voz poética sugere que a ordem dos fatores e suas insinuantes hierarquias não modificam o produto racial inclassifi-

O tira e bota dos sintagmas – tem/ não tem – constrói a dinâmica da dialética barroca, em que a diferença se resolve em oposição, essa em simetria e, por fim, em nova identidade na qual o mesmo vira outro.

cável da cultura brasileira. Ela, em sua dinâmica e abertura de fluxos contínuos, prende e solta tipos e raças, como as palavras-valise de que se utiliza para expor a miscigenação constante, em uma expressiva superposição linguístico-cultural: “Aqui somos mestiços mulatos/ Cafusos pardos mamelucos sarará [...]. Somos o que somos/ Inclassificáveis” (ANTUNES, 1997b).

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Assim, descreve nossa reconfecção das leis oficiais em favor das leis que surgem no dia a dia das comunidades, com aplicação prática na vida em detrimento de nossa abstração doutoresca; nossa multiplicidade gradativa de tons e cores raciais e/ou naturais; nossa pluralidade de possibilidades religiosas e míticas em sincretismo negociante, em duplo expansivo: “não tem vez/ tem vezes” (ANTUNES, 1997b). A ambivalência fonética do verso final do refrão traz nova reverberação espelhada, guardando, por um lado, a possibilidade de leitura de todo tipo de sol, negro inclusive (não há sol, há sóis), e, por outro, a força solar que só brilha em nossa inevitabilidade agregante rotativa última

(não há sol, a sós).

(não há sol, a sós).

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Fig. 7 Arnaldo Antunes. 360º, 2008


Fig. 8 Digitalização de Fragmento de galaxias, página do livro OU/E de Arnaldo Antunes (São Paulo: Edição do artista, 1983). referências AGUILLAR, José Roberto. Depoimento ao Jornal da Tarde de 27/04/83. Arte em Revista, ano 6, n. 8, out. 1984. ANTUNES, Arnaldo. Entrevista concedida a Marili Ribeiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 set. 1997a. [Suplemento] Idéias-Livros. ANTUNES, Arnaldo. Inclassificáveis. In: ANTUNES, Arnaldo. O silêncio. SãoPaulo: BMG: Ariola, 1997b. ANTUNES, Arnaldo. Palavra desordem. São Paulo: Iluminuras, 2002b. ANTUNES, Arnaldo. Psia. São Paulo: Iluminuras, 1998. ANTUNES, Arnaldo.40 escritos. Org. e prefácio de João Bandeira. São Paulo: Iluminuras, 2000a. p. 12. ANTUNES, Arnaldo. Essa mulher. In: ANTUNES, Arnaldo. Paradeiro. São Paulo: BMG/Ariola, 2001. ANTUNES, Arnaldo; MORAES, David. Na massa. In: ANTUNES, Arnaldo. Paradeiro. São Paulo: BMG/Ariola, 2001. ANTUNES, Arnaldo; SCANDURRA, Edgard. Decida. In: ANTUNES, Arnaldo. Um som. São Paulo: BMG, 1998. Encarte do CD. ANTUNES, Arnaldo; TATIT, Paulo; FROMER, Marcelo. Macha fêmea In:ANTUNES, Arnaldo. O silêncio. São Paulo: BMG: Ariola, 1997. Encarte do CD. ANDRADE, Oswald. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 14. (Obras completas, v. 6) FERNANDES, Sílvia; GUINSBURG, J. Prefácio. In: ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 18. GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 90. LEHMANN, Hans Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 119. PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. x. 49 SÜSSEKIND, Flora. Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60. In: BASUALDO, Carlos (Org.). Tropicália: uma revolução brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ZUMTHOR. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 34.


ensaio . mĂşsica

50


Música e Literatura: há uma pedra no meio do caminho? Antonio Jardim

Introdução

Uma questão: o que uma obra de arte é capaz de desencadear, de propor, de proporcionar? A essa questão muitas respostas poderiam ser postas e re-postas, como: reflexões acerca da sociedade; discussões acerca da cultura; dimensionamentos estéticos; e proposições acerca da pólis (para os gregos - a cidade-estado), portanto, uma possível leitura política. Fica evidente que todas essas instâncias podem estar - e estão - presentes, de uma forma ou de outra, em todas as obras de arte. A esse respeito, não há, ao menos para nós, qualquer dúvida. Ainda que tivéssemos escolhido uma das alternativas expostas anteriormente, conseguiríamos enumerar um quantitativo muito maior de possibilidades. Estaríamos, contudo, partindo sempre do meio do caminho; e não podemos esquecer - “no meio do caminho tinha uma pedra” - essa é a questão decisiva e primeira, aquela de que não poderemos nos desviar, uma vez que desviar-se dela seria iludir toda a caminhada em direção à tentativa, que aqui fazemos, para entender as dis-posições, pré-posições e con-frontações que o tema música e literatura nos impõe, desde que se ponham para o cuidado necessário que aqui denominamos pensar.

51


Ora, a nossa questão é a pedra no meio do caminho. O que é essa pedra? Como se dis-põe? Como se de-põe? Vivemos a pós-modernidade, dizem todos. Vivemos? Vivemos mesmo? Fazemos estudos marcados pelo multiculturalismo, o que favorece o surgimento de uma outra questão: O que é o multiculturalismo? E mais ainda: Ele se posiciona sincrônica ou diacronicamente? Ele é pré-posicional ou pós-posicional? É preciso encontrar a posição da pedra. Devemos dizer mais, necessitamos perceber a posição da pedra para que seja possível fazer o caminho. Isso, perceber a posição, seus “pré” e seus “pós” é rigorosamente imprescindível e indispensável. Voltando à questão inicial, o que uma obra de arte é capaz de posicionar, desencadear, constituir ou desconstruir?

Uma obra de arte precisa obrar. Aliás, isso já está dito na elocução obra de arte. De que maneira obra uma obra? Sendo sempre o envio de uma possibilidade de habitação, ou, dizendo de outra forma, constituindo sempre uma temporalidade-espacialidade. Antes disso, a obra não obra, e, por isso, perecem as primeiras questões que iniciaram este texto. A obra obra, portanto, social, cultural, estética e/ ou politicamente. Obrar significa: constituir-se e, simultaneamente, constituir- – fazer-se pedra. Em última instância, ser. constituir tempo-espaço

se e, simultaneamente, constituir tempo-espaço – fazer-se pedra. Em última instância, ser.

A obra só obra quando e onde é. Diferentemente do que se possa pensar, essa não é uma obviedade, ou melhor, é. Nem sempre, nunca, ou quase nunca, porém, ficamos muito atentos ao que nos parece óbvio. E o óbvio é descartado sem dobras, dir-se-ia em latim – sine plex. Com a simplicidade da ignorância ou da indiferença, 52


o que parece óbvio é descartado. Mas a questão é o fato desse descarte gerar complexidade, ser complexo, cum-plex – em latim. O complexo é sempre a pedra no meio do caminho. Afinal, no meio do caminho tinha uma pedra, não é assim? Cremos em Drummond. Se precisamos crer em algo, que seja na pedra! Dissemos antes que a obra de arte cria, constitui, convida, pro-voca, enseja, proporciona a vigência e o vigor de espaço e tempo. Nesse caso, é imprescindível que ampliemos sempre nosso entendimento de tempo e espaço. Quando se trata de tempo pensamos sempre em passado, presente e futuro, vício adquirido pela unidimensionalização produzida pela conversão do tempo em Krónos, pela cronometralização do tempo, para falar em termos mais modernos, portanto, mais equivocados. O tempo não pode ser reduzido à medição, ao cálculo, seja ele representado por um relógio de sol ou por um moderníssimo relógio digital. Se o tempo fosse apenas isso, não provocaria, há milênios, as discussões que provoca. Uma breve discussão acerca do tempo Na Grécia Antiga, o tempo era compreendido como Krónos, Aión, Kairós e Hóras. Todas essas compreensões atuavam simultaneamente, embora pudessem ser entendidas em separado. Assim, Krónos era e é o tempo medido; portanto, acionado diretamente a Hóras, sua consequente e necessária divisão, em épocas, períodos etc. Foi da união de Krónos com Hóras que faz tornar dominante a compreensão de passado, presente e futuro vigente como representação ideal do tempo até hoje. O Kairós era e é o tempo do instante, do oportuno, do agora. Irredutível às medições, já que, ao se tentar medi-lo, ele já se deu e não voltará a se dar jamais do mesmo modo. O Kairós é o tempo do riso, do sorriso, da piada. Se o riso não for provocado naquele instante, terá se perdido para sempre. O entendimento ou a explicação, vindos necessariamente a posteriori, são capazes de nos fazer

53


entender a piada, porém nunca mais nos fará rir dela. Tanto é assim que só contamos, só fazemos em nós memória, as piadas de que rimos com a espontaneidade advinda do Kairós. Depois, bem... Depois já é depois. Já o Aión era, e ainda é — mesmo não sendo com frequência tematizado — o

54

Uma breve discussão acerca do espaço

tempo vivido, aquele que você não sente

No desenvolvimento da Cultura Ocidental,

passar. Aquele que faz minutos parecerem

ocorreram separações do que jamais pode-

horas, e horas segundos. Modernamente

ria ou deveria ser separado. Dentre elas, a

foi “reinventado”, equivocadamente, como

que mais nos interessa é a dissociação entre

tempo psicológico. De qualquer modo, o

tempo e espaço. Esta é tão artificial quanto

melhor seria entendê-lo como – o tempo

ilusória, ocorre quando a unidimensionali-

do que é próprio e não pode nunca deixar

zação do tempo é apresentada como Krónos,

de sê-lo. O Aión é o tempo em que vigora,

isto é, em medida e cálculo, e a conversão do

o mais concretamente possível, o real e no

espaço em extensão. De modo algum pode-

real, porque é o tempo que não tem como

ríamos pensar em um tempo sem espaço e/

ser representado. É impossível convertê-

ou em um espaço sem tempo. Toda presen-

lo em outra coisa que real, em outra coisa

ça de tempo é espacial e vice-versa. Jamais,

que concreto. A abstração, qualquer que

senão artificial ou representacionalmente,

seja, não deu, não dá e nem dará jamais

poderemos estar no tempo sem estar no es-

conta do Aión, uma vez que ele nunca se

paço. A conversão do espaço em extensão é

deixará aprisionar por qualquer tipo de

equivalente à conversão do tempo em medi-

razão instrumental, a principal e dominante

da. Ambas, extensão e medida, foram e

em nossos dias. O Aión não é um meio de

ainda são – cada vez mais – a constituição

medida, é um acontecimento que se torna

de tudo em suporte do real, a desvalorização

vigente e que dele não temos nem podemos

deste e a hiper-valorização dos suportes ou

ter controle. Ele “apenas” é! E é nesse ser

das representações, ambostomando o lugar

que ele se dá e se deixa dar.

do concreto. Cabe um esclarecimento para


dizer que o entendimento do concreto aqui, longe de ser uma imobilização, é uma dinamização, pois concreto vem do latim cum

O ser é, e assim se constitui espaço-tempo-

crescere, com crescer, estando, pois, inequi-

ralidade. O ser não ocupa um lugar no espa-

vocamente impregnado de movimento.

ço, ele constitui, ele cria espaço. Não ocupa

Concreto é próprio do movimento e este é

um lugar no tempo, ele constitui, ele cria

próprio do concreto. Não há como separá-

tempo. O espaço convertido em extensão

los. Já as representações são modos de

destituiu e destitui o ser de seu vigor e de

aprisionamento do concreto em concei-

sua vigência inquestionável. O ser é e nunca

tos, ideias desprovidas de questões.

poderá deixar de ser! Ele é presente como

A necessidade de medir incessantemente

ente e ausente como ser, no entanto, sempre

acabou por fazer possível a substituição

foi, é e será.

do concreto pelo abstrato e a conversão do concreto em representação e suporte, este último entendido como o que é capaz de sub-portar, em latim sub-portare, quer dizer não só conduzir por baixo como converter o inferno, o ínfero, o que está embaixo e conduz por baixo, em sobre-portar, em superno, o que está por cima, o dominante, o que conduz e domina desde cima, por cima; enfim, o e-vidente, ou melhor, o aparentemente evidente. O espaço vigoroso é a condição que os corpos têm de criá-lo a cada vez que se mostram ou se ausentam. Mostrar-se e ausentar-se é a condição primeira de tudo que é, do ser.

Uma breve discussão acerca da verdade Se alteramos a condição do ser para sua representação ou seu suporte, mudamos também, como adveniência necessária, a condição do que é ou não verdadeiro. A verdade só poder ser discutida em uma espaço-temporalidade incomensurável e, obrigatoriamente, impregnada de movimento. Não há verdade que não seja, desde sempre, movimento se ela é concreta, real, infinita, finita, questão, conceito-questão. A verdade só pode ser considerada imó-

55


vel se convertida em um conceito desprovido de qualquer possibilidade de questão. Assim, a verdade é o advento do real e tem esse advento como sua condição primordial. A verdade sempre se dá como presença/ausência. Quando se presentifica, deixa, por necessário, alguma coisa por vir. Quando se ausenta, permite a presença do que quer que possa ser presente. A verdade é o movimento constante do que se manifesta e do não-manifesto em qualquer manifestação. Verdade é ser e não-ser! Jamais será – ser ou não ser! Já nos dizia Aristóteles: “O ser se dá de múltiplas maneiras”. Toda verdade, é verdade do ser, é verdade constituída a partir de seu movimento de ausentar-se e, simultaneamente, presentificar-se. A verdade não é um fenômeno exclusivamente humano, mas não exclui o humano de si, ao contrário, congrega-se nele também. O real não é só o que pertence ao humano, mas, ao homemdas é uma das possibilidades do real se dar; mesmo tempo, nunca nega sua presença. O homem é no real, desde ele e nele. OOhouma logo, é uma das possibilidades de a verdade se tornar manifesta. Por conseguinte, tudo que o homem obra (verbo obrar), passa pelos mesmos caminhos, isto é: constitui espaço-tempo, produz verdade e é real. Nada no homem é de fora do real, é sempre desde o real e seus movimentos. Assim, nas obras de criação, não se dá de outro modo. Elas são desde o homem, é certo, e, portanto, são desde o real, desde o ser, constituem espaço-tempo e produzem a verdade enquanto dinâmica essencial de ser e não-ser.

Há muitas pedras no meio do caminho? Falamos até o momento de arte, tempo, espaço e verdade. Mas, afinal, do que trata este texto de música e literatura? Ou este seria um debate a partir de temas filosóficos? Essas seriam perguntas que qualquer leitor dis-traído (traído pelo desconhecido) faria logo de início. E o faria não por ignorância, mas por excesso de informação, sobretudo a informação desacompanhada do pensar – palavra derivada do latim pensare, que disse, diz e dirá, sempre, cuidar, curar, superar a indiferença. Não porque não sabe, mas porque sabe demais o que lhe ensinaram. Não porque não pensa, mas porque pensa como lhe foi ensinado a pensar o que seja a literatura e o que seja a música. 56


Devemos dizer que ambas, para serem pensadas (cuidadas, pensar é ter cuidado), devem ser pensadas necessariamente a partir daquilo que instauram – tempo, espaço e verdade – e, por isso, e apenas por isso, são

Essa palavra cantada era, no antigo grego

obras de arte que obram, que empilham as

e ainda hoje é, a atividade primordial das

pedras do meio caminho e as convertem em

primordiais figuras que atendiam pelo

uma única pedra – aquela afirmada e reafir-

sagrado nome de musas. A atividade

mada pelo poeta. Há uma e só uma pedra no

primordial das musas foi, é e será constituir

meio do caminho, e é ela que estabelece a con-

memória. Constituir memória é criar

dição que uma obra tem de obrar, seja como

espaço-temporalidade e convidar, a quem

música, literatura ou qualquer outra instância

quer que seja, isto é, todos os seres, humanos

que se constitua como e com sentido.

ou não, para a habitação desta mesma espaço-temporalidade.

Dessa

maneira,

O que são música e literatura e quais pontos

a música é o modo inaugural de todos

as afastam ou as aproximam? Essas são as

os modos de habitar, construir e pensar,

questões deste texto.

porque é nela e a partir dela que se constitui o espaço-tempo primordial das habitações, sejam elas ditas e/ou, sobretudo, vividas.

difícil de responder, se obedecermos aos

Fazer música não é juntar sons segundo um

modelos instaurados, mas, na verdade,

sistema pré-visto, é construir o primordial

muito simples de ser compreendida. A

tempo-espaço de concatenação de todo e

palavra que hoje denomina a atividade

qualquer sentido. Em que o sentido se faz

entendida por música é, em sua origem,

efetivamente sentido desde o momento em

grega-mousiké, a atividade da musa.

que os seres se presentificam até se des-

Musa é palavra cantada, logo, qualquer

presentificarem. Se é que isso é possível, pois

palavra, pois toda e qualquer palavra é, e

a memória é o lugar de guarda, de cuidado

sendo uma vez enunciada, não se livra em

e de pensamento em que os seres se fazem

nenhum momento de sua entoação.

eternidade, eviternidade ou finitude.1

1 Na Idade Média os tempos eram compreendidos como: eternidade – o que não tem começo nem fim; eviternidade –o que tem começo mas não tem fim e finitude – o que tem começo e fim.

Iniciemos com a música. O que é? Questão

57


lança para o fenômeno, em direção ao que se presentifica/ausenta. Criar espaço-tempo Um outro ponto — o que é literatura? Seria esta o lugar das produções ficcionais, como é entendida até hoje? Comecemos pela palavra que é um fenômeno (modo manifesto) que denomina outro fenômeno (outro modo

com a palavra e sua musicalidade inerente deveria ser chamado de poética, jamais de literatura, no entanto, em contrapartida, é inegável a consolidação dessa última e equivocada denominação.

manifesto). Literatura vem do latim litera, letera, que chegou ao português, letra. Literatura,

Ainda há uma pedra no meio do caminho!

portanto, é uma denominação que surge a

– O convite e os convivas

posteriori não só do fenômeno, mas também das primeiras denominações criadas para esse mesmo fenômeno. Não há literatura sem es-

Relativas ao tempo grego aión.

Relativas ao tempo grego kairós.

2

3

crita. Aristóteles, por exemplo, chamou o que denominamos literatura de poética, palavra vinda do verbo poién, que , no grego antigo, diz – fazer, fazer surgir, acontecer. Fazer surgir é criar espaço-temporalidade própria. Isso é o poético. Fazer acontecer o que não tinha acontecido como espaço-temporalidade. Sendo

4 O mesmo nunca será a mesma coisa, é bom ressaltar que, apenas o senso comum iguala essas inigualáveis dimensões. Por exemplo, duas maçãs são o mesmo, mas, jamais serão a mesma coisa. Cada maçã é própria em seu ser, naquilo que é.

assim, é inauguração. Se entendermos a “literatura” como ficção, devemos então recorrer à concepção primeira dessa palavra, que também é latina, pois vem do verbo fingere (esculpir, fazer aparecer, neste caso, com a palavra, jamais fingir no sentido mais comumente utilizado). Esse sentido é uma apropriação do platonismo subsequente que experimentamos até hoje. Palavra, por sua vez, vem da elocução grega para ballo, que gerou, inicialmente, parábola e depois palavra, que significa, na verdade, o que se lança para, em direção a. O que se 58

Pudemos perceber que muitas pedras foram postas no meio do caminho de lá para cá. Se toda obra de arte é um convite que nos propicia abandonar a tempo-cronologia e o espaço-extensão e vivermos tempo-espaço como instâncias inaugurais, eônicas2 e/ou kairóticas3 a cada vez, esse aceno, esse convite, se e quando aceito, proporciona uma especialidade temporal-espacial. Essa especialidade é que conduz à integração total, enfim, ao espaço-tempo pro-posto. Se essa integração é quebrada, a obra de arte cessa de obrar. A obra não obra, e esse não obrar pode manifestar-se de duas maneiras: como abertura a um novo convite; ou como recusa peremptória a convites posteriores. De um ou de outro modo, a pedra sempre estará no meio do caminho, seja como obstáculo a ser superado, seja como condição necessária à integração a uma nova espaço-temporalidade, o que é o mesmo, mas não é a mesma coisa.4


Música e “literatura” são o mesmo, apesar de não serem jamais a mesma coisa. Como é possível ser o mesmo e não ser igual? O mesmo é dimensão ontológica, significa – o que é referente ao ser. Música e literatura são a partir do real, com o real e para o real. Mas não são a mesma coisa, dimensão ôntica, ou seja, não são a mesma entidade e não agem nem sofrem ação do mesmo modo. Ambas são criação de memória, todavia, jamais da mesma maneira. Ambas compõem cada uma ao seu

A pedra-caminho: música-literatura

tempo-espaço, modo.

mas

Nenhuma

das duas representa nada como sua condição de ser. Podem representar muito, entretanto, mas nunca como condição essencial, apenas como desdobramento de sua paixão inaugural. Esse phatos inaugural torna quase tudo possível, ainda que seja incapaz de a tudo tornar possível. A “literatura” encanta pela musicalidade ou não encanta. Um bom escritor (preferencialmente poeta, pois o escritor só surge com a escrita) é quem sabe fazer do seu texto música, ou melhor, musicalidade: é aquele que faz o leitor não querer abandonar a leitura, pois o encanto proporcionado pela composição poética não permite. A música en-canta porque já é canto que não admite a dispersão. É con-centrado. Se há dispersão o en-canto se es-vai, se es-foi. A música encanta na medida que consegue concentração íntegra. Integra som com a sonoridade que conosco trazemos e faz vibrar as consonâncias e dissonâncias de nosso próprio com o seu próprio (da música) ressoar. Nem música nem “literatura” (poética) são diversão. São diversas, mas, nunca diversão. Exigem o máximo de con-centração possível a ponto de consolidarem uma espaçotemporalidade que seja constituída não só pelo que é próprio a cada uma (música, literatura ou outra arte qualquer), mas sendo capaz de conjugar estes, com o próprio de quem é capaz de as fruir. Esta é a condição mínima de possibilidade para o processo artístico, instaurado por ambas (e por outra modalidade de artes) e por quem com elas “se encontra”, possa se dar por completo. Diversão é outra coisa, caracteriza-se por sempre construir uma dispersão integral. Ao terminarem de obrar nada permanece – desvanecimento integral.

59


5 Estar para além de uma mera perspicácia. Estar na percepção do ser que todo ente traz consigo.

Para a música e para a “literatura” resta ainda uma só questão que se apresenta a ambas, que nos acossa e nos intimida a todo instante: o que é uma boa música ou uma boa obra literária? Essa resposta, essa é a coisa (res) posta!, não tem resposta pronta ou definitiva. A boa obra é a que consegue instaurar uma espaço-temporalidade própria, aquela de um aión-kairós próprio, original, plenamente conjugada com aquele que aceita o convite e se permite fazer a experiência de abandonar-se à obra e com ela obrar. Isso significa: a ação de deixar-se conduzir a partir dela (obra), por ela e com ela, para um encontro numa temporalidade-espacialidade em que a obra (música, literatura, arquitetura etc.) produza uma unidade com quem esta obra, obre (ser percipiente,5 mas não menos criador). Obra e percipiente (não menos constituidor do obrar) se con-juntam em um só tempo-espaço inquebrantável, indivisível e eterno, pelo menos, enquanto dure o obrar, compreendido este como instauração de um só tempo-espaço. Depois disso, poderemos falar dos Depois disso, poderemos falar dosresultados resultadosproduzidos produzidosnanasociedade, sociedade,nanacultura, cultura,na naestética, nanahistória maneira, social, social, cultural, cultural, estética, estética, estética, históriae ena napolítica. política.Toda Todaobra obra é,é, de de alguma alguma maneira, histórica e, necessariamente, política. Assim, a pedra in-siste em estar no meio do caminho.

60


61


ensaio . danรงa

62


O enigma de Herodiade: repensar a relação entre dança e linguagem pela experiência de Stéphane Mallarmé Mariana Patrício Fernandes

A figura de Salomé, também conhecida como Herodiade, fascinou a literatura moderna. Oscar Wilde e Mallarmé são os mais célebres escritores que se deixaram enfeitiçar por essa história bíblica, dando-lhe contornos trágicos. Não só a literatura, mas também a pintura e a música enveredaram por esse caminho. Nas obras do pintor Gustave Moreau e do compositor Richard Strauss, a jovem dançarina esteve presente nas representações ocidentais desde o século XIX. O que há nesse personagem que causa tanto fascínio? A história de Salomé é apresentada de diversas formas, mas geralmente tem como mote a promessa feita pelo rei Herodes a sua enteada Salomé (ou Herodiade) de que lhe daria qualquer coisa em troca de uma dança. A jovem pede como recompensa a cabeça de João Batista, profeta que pregava contra a família real na porta do palácio. Na Bíblia, o nome Salomé é citado superficialmente, apenas ao narrar a morte do profeta. Ela pouco se atém no caráter da dança que teria levado ao seu assassinato. Nos evangelhos de São Marcos e São Mateus, em que o episódio é narrado, o foco não é a dança de Salomé, mas a ambígua relação que o estado, representado pelo rei Herodes, mantém com a nova religião pregada por João Batista. 63


De acordo com o evangelho de São Marcos, Herodes mantém uma relação de respeito e até de temor com o profeta, preservando sua liberdade apesar das constantes pregações do evangelista contra seu casamento com a esposa de seu irmão (que de acordo com as palavras de Batista no Novo Testamento, seria ilegal). João Batista exerce grande influência sobre os habitantes da Judeia, o que leva Herodes, após ter atendido ao desejo de Salomé, mandar prendê-la, temendo as revoltas populares que poderiam decorrer desse fato. Como analisa Brad Bucknell (1993) em um artigo sobre as representações literárias e visuais de Salomé, o que está em jogo na Bíblia é a relação entre a palavra e a lei, a questão da legitimidade da promessa de um rei e o poder destrutivo da sedução feminina quando motivada pela vingança. Se os evangelhos não entram em detalhes sobre o que teria feito um rei pôr todo seu poder em jogo para assistir a uma jovem dançando, a arte ocidental não cessou de investigar as entrelinhas dessa história. As imagens inspiradas em Salomé, apareceram por diversas vezes nas representações literárias e visuais, da Idade Média até o século XX. Uma pesquisa realizada pela pesquisadora norte-americana Rita Severi concluiu que, no século XIX, somente na França, 2.789 poetas escreveram sobre Salomé (apud BUCKNELL, 1993, p.503). O que fascina e deixa poetas obcecados, como Wilde, Flaubert e Mallarmé, é o enigma da origem da força contida nessa personagem, à primeira vista tão frágil diante do poder do estado (Herodes) e de Deus (João Batista). Força desconhecida que consegue pôr em xeque, simultaneamente, esses dois poderes. Salomé desestabiliza dançando a relação entre a

64


palavra e a lei. Que poder é esse que a dança tem? dança e essa nova abordagem da literatura “O enigma de Salomé” pode ser abordado

é evocada a todo o momento.

de várias maneiras. Ela se situa no limiar

O que chama a atenção de Mallarmé tanto

entre a afirmação do poder real e a ameaça

na história de Herodiade O que chama aquanto atençãonos de Mallarmé tanto na

de ruína do poder soberano. O que nos interessa é entender de que maneira surge, por trás da questão do caráter ameaçador

espetáculos de balé romântico é o poder história de Herodiade quanto nos espetácu-

de desfazer alos relação linguagem e de baléentre romântico é o poder de desfazer a significação.

relação entre linguagem e significação.

do feminino em relação aos sistemas dominantes de poder, a imagem da dança como

Seguindo essa trilha aberta por Mallarmé,

gesto que concretiza essa ameaça. Essa ima-

este artigo abordará dois movimentos: (I)

gem é tanto a de uma jovem frágil quanto a

o da literatura à dança e (II) o da dança à

de uma figura que desestabiliza e reconfigu-

literatura. O primeiro é tentar investigar

ra toda a ordem soberana, incidindo sobre a

de que forma o poeta francês entreviu na

legitimidade do discurso do rei.

dança e na figura de Herodiade a abertura de uma trilha onde o seu projeto literário

O poeta Stéphane Mallarmé (1842-1898)

tornava-se possível. O segundo procura

investigou a relação entre a dança e a

pensar como esse modo de abolir a referen-

linguagem. Mallarmé via na história de

cialidade do corpo dançante não significa

Herodiade a chave para a realização do

que a dança (assim como a literatura) esteja

seu projeto literário, a ponte que levaria

fora do mundo em sua materialidade. Para

ao seu Livro, obra na qual a linguagem se

isso, procura pensar como a dança enfrenta

apresentaria em toda a sua pureza, sem

a linguagem. Vejamos.

precisar manter uma relação de referencialidade como elementos exteriores. Nas suas crônicas como crítico de dança, reunidas e publicadas posteriormente na seção “Rabiscados no Teatro” do seu livro Divagations (1897), a analogia entre a

65


I – Mallarmé: O Absoluto no tchu-tchu da bailarina

Em 1865, Stéphane Mallarmé começou a conceber uma obra inspirada na passagem bíblica que narra o assassinato de João Batista como uma tragédia. Esse projeto e o manuscrito foi encontrado após a morte

do formato de um texto teatral em seus

de Mallarmé por Paul Valéry. Dividido em

moldes tradicionais para um texto poético

três partes, apresenta fragmentos que pos-

(o que não exclui, entretanto, a possibilida-

teriormente deveriam ligar-se aos poemas

de de sua encenação), mas nunca é termi-

já publicados: o prelúdio, o cântico de São

nado. O poeta, contudo, jamais abandonou

João Batista e um final apresentado como

o projeto de escrita de uma obra completa

“Cântico”. A importância desse projeto de

sobre a cena de Herodiade, pois ainda

escrita, inspirado em Herodiade, é imedia-

produziu mais dois fragmentos poucos anos

tamente reconhecida pelo poeta, desde o

antes de sua morte em 1898. Eles foram

início da escrita. Em carta, de 28 de abril de

publicados em três momentos diferentes e

1866, escrita a seu amigo Cazalis, relata:

com estruturas distintas: o primeiro foi um diálogo teatral entre Herodiade e sua ama

Comecei, enfim, meu Herodiade.

publicado em 1869 na revista Le parnasse

Com terror, porque estou inventando

contemporain sob o título: “Fragment d’une

uma língua que deve brotar necessaria-

étude scénique ancienne/ d’un poème de

mente de uma poética muito nova, que eu

Herodiade” (Fragmentos de um antigo estu-

poderei definir em duas palavras: Pintar

do cênico/ de um poema de Herodiade).

não a coisa, mas o efeito que ela produz. O verbo não deve se compor de palavras, mas

À escrita do diálogo seguiu-se o poema

O verboenão deve compordevem de palavras, mas de intenções; todas asse palavras se

“Ouverture ancienne”. Após muitos anos de

de intenções; e todas as palavras devem se apagar diante das sensações (MALLARMÉ,

suspensão, o projeto foi retomado em 1886,

diante das sensações (MALLARMÉ, 2005, p.apagar 137, tradução nossa). 2005, p. 137, tradução nossa).1

66

1 J’ai enfin commencé mon Hérodiade. Avec terreur, car j’invente une langue qui doit necessairement jaillir d’une poetique très nouvelle, que je pourrais definir en deux mots: Peindre, non la chose, mais I’effet qu’elle produit. Le vers ne doit pas, la, se composer de mots; mais d’intentions, et toutes les paroles s’effacer devant la sensation.

inicial sofreu diversas mudanças, passando


Chama a atenção nessa carta dois elementos. O primeiro deles é a transição na qual o poema deve abolir toda e qualquer referência a algum objeto ou realidade exterior ao poema. O segundo aspecto marcante é o terror expresso por Mallarmé diante dessa experiência. Esse termo também aparece em outra carta enviada a Cazalis: “Ao esvaziar o verso a esse ponto, encontrei dois abismos que me desesperam. Um deles é o Nada [...] o outro vazio que eu encontrei é esse do meu peito” (MALLARMÉ, 2005, p. 55, tradução nossa).2

En creusant le vers a ce point, j’ai rencontré deux abîmes, qui me désespèrent. L’un est le Néant […] l’autre vide que j’ai trouvé est celui de ma poitrine.

2

O terror e a experiência do vazio permeiam os versos de “Herodiade” e os sentimentos de seus personagens, assim como a relação do poeta com a própria escrita. A beleza da jovem Herodiade apresenta-se ao olhar por meio de uma frieza extrema, uma espécie de nudez justamente por não remeter a nada para além de si mesma.

Horror! As noites, emsonhos tua fonte severa,conheci em meus “Mas, Horror! As noites, em“Mas, tua fonte severa, em meus esparsos a sonhos esparsos conheci a 2005, p. 151, tradução nossa) . nudez” (MALLARMÉ, 2005,nudez” p. 151,(MALLARMÉ, tradução nossa). 3

3

Mais, horreur! des soirs, dans ta sévère Fontaine, J’ai de mon rêve épars connu la nudité.

3

Mas de que nudez e de que vazio estamos tratando? De acordo com o crítico literário Maurice Blanchot, a poesia de Mallarmé depara-se com a ausência dos deuses: Quem sonda o verso deveo verso renunciar todo e qualquer tem que romper com Quem sonda devearenunciar a todo eídolo, qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade horizonte o futuro poro futuro morada, porquanto não tem não tem tudo, não terpor a verdade pornem horizonte nem por morada, porquanto direito algum à esperança, deve, pelo contrário, Quem sonda o verso morre, direito algum à esperança, deve, pelodesesperar. contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontrareencontra a sua morteacomo abismo (BLANCHOT, 2011, p. 31).2011, p. 31). sua morte como abismo (BLANCHOT, A morte seria, segundo Blanchot, um tema essencial para Mallarmé, pois ela transforma-se em condição do poema. Como se, para desligar-se da coisa e dar início à nova linguagem, fosse preciso uma espécie de abolição do real. Abolição que não se dá sem terror e sem pressão sobre o próprio peito do poeta. 67


A leitura dos fragmentos que compõem “Herodiade” levam a cabo a radicalidade desse movimento de abolição, em que a significação é apagada para fazer surgir os efeitos e as sensações do poema. Como

1887 e mais tarde reunidos em seu livro de

escreve Blanchot, “onde acreditamos ter

prosa Divagations. É importante notar que

palavras, transpassa-nos uma ‘virtual rajada

o poeta está tratando de uma dança cênica

de fogos’, uma prontidão, uma exaltação

(feita para ser apresentada em um palco e

cintilante” (BLANCHOT, 2011, p. 39).

para um espectador), mais especificamente, dos espetáculos de balé a que assistia no

Mas de que maneira o poeta consegue

teatro Eden (conhecido historicamente por

abolir o real? Seria importante analisar

seu lustre colossal) ou na Opéra Garnier

como em “Herodiade” essa dupla abolição

de Paris, e da dança de Loïe Fuller (que

nunca se realiza por completo. Esse

estabelece já nessa época sua relação com o

vazio de que fala o poeta jamais pode

cinema investigando a relação entre corpo,

tomar forma, porque, ao fazê-lo, recairia

movimento e luz).

novamente na representação de alguma coisa que está fora do poema. A questão que desafia o projeto literário de Mallarmé A questão que desafia o projeto literário de Mallarmé é é encontrar modos de apresentar esse encontrar modos de apresentar esse vazio e torná-lo literatura vazio e torná-lo literatura sem que ele seja sem que ele seja transformado em objeto da representação. transformado em objeto da representação.

68

Nessas críticas, que seguem o estilo literário da poesia do autor, Mallarmé deixa entrever uma analogia entre a experiência estética produzida por uma bailarina em cena e a sua noção de linguagem esvaziada de

A relação do escritor com a dança ajuda-

referências externas também chamada pelo

nos a entender como isso é possível.

poeta de Ideia:

O interesse de Mallarmé pela dança ia além

O balé não dá mais que pouco: é o

do seu projeto de escrita de “Herodiade” e

gênero imaginativo. Quando se isola

já pode ser encontrado em seus textos de

para o olhar um signo da dispersa

crítica teatral para a Révue Indépendante,

beleza geral, flor, onda nuvem e joia,

escritos entre novembro de 1886 e julho de

etc., se, em nós, o meio exclusivo


que ela o sinta análogo e a ele se adapte nalguma confusão rara dela com essa forma evanescente – nada mais que através do rito, ali enunciado da Ideia, não parece a dançarina metade o elemento em causa, metade humanidade como apta a com ele se confundir, na flutuação de devaneio (MALLARMÉ, 2010, p. 21).4 Essa analogia entre o balé e o rito da Ideia é, à primeira vista, estranha. O filósofo e estudioso francês da relação entre Mallarmé e a dança, Frédéric Pouillaude, chama a atenção para a aparente contradição entre os frufrus e bibelôs do balé italiano apreciados por Mallarmé, a estética kitsch dos teatros franceses do final do século XIX, e o seu projeto de construção do grande poema do absoluto no qual a literatura deixa entrever a linguagem em sua pureza absolutamente pura (projeto utópico que nunca se concretizou,

4 Le ballet ne donne que peu: c’est le genre imaginatif. Quand s’isolle pour le regard un signe de l’éparse beauté générale, fleur, onde, nuée et bijou etc., si, chez nous, le moyen exclusif de le savoir consiste à en juxtaposer l’aspect à notre nudité spirituelle afin qu’elle le sente analogue et se l’adapte dans quelque confusion exquise d’elle avec cette forme envolée – rien qu’au travers du rite, là, enoncé de l’Idée, est-ce que ne paraît pas la danseuse à demi l’element en cause, à demi humanité, apte à s’y confondre dans la flotaison de reverie? (MALLARMÉ, 2010, p. 20).

de conhecê-lo consiste em justapor o seu aspecto à nossa nudez espiritual a fim de

o Livro nunca chegou a ser publicado). No entanto, segundo Pouillaude (2009), é importante investigar a fundo o que “essa pureza da linguagem”, que a ausência de um objeto de referência empreende, significa na literatura de Mallarmé. Como presentificar a abolição do real na linguagem? Para Pouillaude (influenciado pela leitura de Jacques Rancière), seria justamente transformando o texto o texto literário em eum lugar de livre associação de temas e conteúdos que não literário em um transformando lugar de livre associação de temas conteúdos que não necessitam seguir necessitam seguir uma relação nem de causalidade nem de identidade. uma relação nem de causalidade nem de identidade Se o texto literário já não tem objeto atribuído, nele cabe tudo, desde os bibelôs mais triviais até a reflexão sobre a dimensão filosófica do lustre de um teatro. Se a função do poema é a instituição da Ideia, essa ideia não se apresenta por meio da referência a um objeto superior, mas, justamente, dessa possibilidade que o poema e seu fluxo de devaneio criam de interação entre esses elementos heterogêneos. Nessa operação, o vínculo entre dança, poder e linguagem vai descosturando as identidades. Tudo funciona como se os nós que atam as palavras e as coisas fossem desfeitos em um gesto de dança, revelando a maquinaria em movimento necessária para o estabelecimento de um espaço comum compartilhado.

69


Na dança, para Mallarmé, há algo de extremamente potente, mas também de arriscado na leveza dos passos da dançarina. Como narra na carta a Cazalis, o que está em jogo é a experiência do Nada, tanto na linguagem como no próprio peito. É que a ruptura da linguagem com a significação pode levar muitas vezes a uma experiência radical de ausência de sentido que provoca a própria sensação de desaparecimento ou de desmaterialização profunda que se faz sentir no corpo do poeta.

Seguindo essa mesma esteira, Mallarmé lança seu famoso axioma escrevendo que

A saber, que a dançarina não é uma mulher que dança, pelos motivos justapostos de que ela é uma mas uma que que resume umpelos dos aspectos de que nossa Anão saber, quemulher, a dançarina não émetáfora uma mulher dança, motivos elementares justapostos de ela forma, gládio, taça, flor, de que elaque nãoresume dança,um sugerindo, pelo prodígio de raccoursis não é uma mulher, masetc., umaemetáfora dos aspectos elementares de nossa ou de gládio, elãs, com uma o que parágrafospelo em prosa dialogada bem forma, taça, flor,escrita etc., ecorporal de que ela não exigiria dança, sugerindo, prodígio de raccoursis como descritiva, paraescrita exprimir, na redação: poema parágrafos liberado deem todo aparato do escriba ou de elãs, com uma corporal o que exigiria prosa dialogada bem 2010, p.poema 41, grifos do autor). como descritiva, para(MALLARMÉ, exprimir, na redação: liberado de todo aparato do escriba (MALLARMÉ, 2010, p. 41, grifos do autor).

A dança, assim como a poesia, libera a escrita do problema da expressão, da intenção do artista, por isso seu júbilo e seu risco. Essa dupla polaridade do encontro com a dança, da alegria com o abismo e da plenitude com a morte anunciam os desafios que os artistas e pensadores na passagem do século XIX para o XX enfrentaram na relação entre corpo e linguagem e política. A criação modos singulares de produção de sentido e de expressão através do corpo constitui o motor de experimentação da dança nesse mesmo período. É nesse ponto que nos enveredamos pelo segundo movimento questionando a forma como essa “abolição do real” em Mallarmé não pode se transformar em abolição do corpo. A dançarina pode até não existir como aquela a que o movimento se refere. Há, no entanto, no gesto dançado, um corpo que não é uma folha em branco, mas uma superfície porosa, marcada pela história, e que para pôr-se em movimento precisa deparar-se com essa história. Para dançar e tornar-se infinitamente plástico, o corpo dançante deve encontrar seu peso, sua relação com a terra e com a linguagem. Não pode abolir o mundo, deve lutar com ele. 70


Para dançar e tornar-se infinitamente plástico, o corpo dançante deve encontrar seu peso, sua

corpo resiste ao processo de significação da

relação com a terra e com a linguagem. Não

linguagem verbal. É pela resistência que o

pode abolir o mundo, deve lutar com ele.

corpo abre no discurso novos sentidos. Essa resistência é tanto política quanto concreta e

II – Como a dança desfaz o absoluto

diz respeito às técnicas e às práticas empregadas por dançarinos e coreógrafos nesse contexto. Essas práticas podem tanto procurar disciplinar o corpo, para que ele se afirme e legitime o

Como aponta a pesquisadora em dança,

poder soberano instituído, quanto criar meios

Laurence Louppe (2004), a cultura ocidental

para desfazer, pelo movimento, as noções já

iluminista havia excluído o corpo do processo

estabelecidas, como, por exemplo, as noções de

de significação verbal. Ele não participa,

belo, virtuosidade, linearidade e coerência.

nesse contexto, da função elocutiva, vendose condenado a reproduzi-la de longe.

Assim, Laurence Louppe reconhece também,

Por outro lado, essa ruptura entre corpo e

na passagem do século XIX para o XX, o

linguagem verbal aponta também para outras

surgimento de uma dança que a autora

possibilidades de formação de sentido, e

chamará de contemporânea, marcada pelo

a dança abre esse espaço reconfigurando

desejo de encontrar caminhos através dos

a relação entre espaço e tempo, corpo e

quais o corpo possa abraçar sua plasticidade

linguagem, sujeito e objeto, significante e

desfazendo as suas formas fixas e rígidas.

significado, ou seja, dançar incide na realidade

Uma explosão de criação de métodos de

compartilhada e se torna um processo

consciência corporal e de educação somática

fundamental tanto para a transformação

aparecem investigando a relação entre o

quanto para a conservação dos signos e

corpo, os hábitos e a possibilidade de recriar

símbolos que produzem esse real comum.

o modo como um corpo se move. São alguns exemplos desses métodos, a Eutonia,

O modo que a dança tem de reconfigurar o

de Gerda Alexander, a biomecânica, de

real não se dá em um passe de mágica, mas

Meyerhold, e outros que influenciaram as

por meio de um jogo de forças em que o

técnicas corporais para a dança até hoje. 71


com uma narrativa anterior ao movimento (já não é preciso seguir um libreto como no balé) mas incide também na investigação de como o corpo em movimento interfere na experiência da presença. Presença aqui entendida como uma noção que afeta a própria percepção da temporalidade (uma das preocupações de Mallarmé).5 O olhar do espectador já não dá conta de capturar no presente esse corpo em movimento. Um dos célebres exemplos desse movimento é a experiência cinematográfica de Loie Fuller (uma das bailarinas favoritas de Mallarmé), na qual a relação com a luz e seu caráter de metamorfose constante interessa mais do que a figuratividade do movimento. Pensando essa “nova dança” na relação estabelecida por Mallarmé, podemos entrever uma relação ambígua. Se por um lado não se trata de devolver o corpo ao domínio de um sujeito da consciência (a bailarina, no caso), deve-se pensar como esse corpo pode resistir aos impulsos disciplinares impostos por uma ordem externa afirmando sua singularidade. Portanto, voltando a Salomé, a dança torna-se uma ameaça ao sistema quando o corpo em movimento deixa de assumir o lugar do mutismo para enunciar seu desejo (não nos esqueçamos de que a promessa de Herodes é quebrada no momento em que Salomé faz um pedido que excede o poder do soberano). Desejo que não se enquadra nos modos como tradicionalmente corpo e discurso relacionam-se, mas que, entretanto, dança.

Referências

blanchot, maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. bucnell, brad. On seeing Salome. ELH: English Literary History. Baltimore: vol 60, n.2, p.503-526,1993. derrida, jacques. L’écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967. louppe, laurence. Poétique de la danse contemporain. Bruxelas: Contredanse, 2004. mallarmé, stéphane. Rabiscado no teatro. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. mallarmé, stéphane. Poésies et autres textes. Paris: Les classiques de Poche, 2005. pouillaude, frédéric. Le désoeuvrement chorégraphique. Paris: J. Vrin, 2009.

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5 Le ballet ne donne que peu: c’est le genre imaginatif. Quand s’isolle pour le regard un signe de l’éparse beauté générale, fleur, onde, nuée et bijou etc., si, chez nous, le moyen exclusif de le savoir consiste à en juxtaposer l’aspect à notre nudité spirituelle afin qu’elle le sente analogue et se l’adapte dans quelque confusion exquise d’elle avec cette forme envolée – rien qu’au travers du rite, là, enoncé de l’Idée, est-ce que ne paraît pas la danseuse à demi l’element en cause, à demi humanité, apte à s’y confondre dans la flotaison de reverie? (MALLARMÉ, 2010, p. 20).

Em relação às danças cênicas, o interesse, agora, não reside somente na relação da dança


ensaio . artes visuais

Sem tĂ­tulo ou braile para reticĂŞncias Daniela Seixas

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ensaio . cinema

A fábula contrariada – a narrativa do cinema Karl Erik Schøllhammer

Para a literatura e para as artes plásticas do início do século XX, o cinema parecia realizar a utopia de uma expressão direta da realidade. Por sua capacidade de gravar e apresentar as coisas do mundo em seus detalhes infinitos, o cinema escapulia da subordinação narrativa aos encadeamentos causais, predominante na literatura do século XIX, e indicava a possibilidade de se tornar uma arte verdadeiramente expressiva. É nessa tensão entre arte representativa e arte expressiva que o filósofo Jacques Rancière (2012, p. 18) analisa o cinema em sua relação com a literatura e também indica a tensão que dará origem aos desvios do cinema: O cinema nasceu na época da grande desconfiança em relação às histórias, no tempo em que se pensava que uma arte nova estava nascendo e já não contava histórias, não descrevia o espetáculo das coisas, não apresentava os estados de alma das personagens, mas inscrevia diretamente o produto do pensamento no movimento das formas (RANCIÈRE, 2012, p. 18). Esse otimismo criativo Rancière vê, por exemplo, formulado pelo crítico Jean Epstein, em um ensaio em 1921 e intitulado Bonjour Cinema, no qual o autor alega que o cinema “grava coisas que o olho humano não percebe” antes de serem definidas

82


pelas qualidades narrativas e descritivas

da natureza estática da imagem pictórica

como objetos, pessoas ou eventos. A

e fotográfica que dinamicamente dá

capacidade de revelar a realidade anterior

concretude ao tempo histórico como,

à percepção e à conceituação é a principal

por um lado, movimento qualitativo,

característica daquilo que Rancière define

ininterrupto e contínuo, e, por outro, como

como “modernidade cinematográfica” em

heterogêneo, descontínuo e desintegrado.

sintonia com uma bibliografia bastante

A descoberta da montagem paralela e do

sólida sobre o primeiro cinema. O

primeiro plano por Griffith e Eisenstein

historiador de arte marxista Arnold Hauser

(1990) permitia uma expressão direta de

(1982), em História social da literatura e

simultaneidade e justaposição e possibilitava

da arte, descreve essa mesma aproximação

a integração entre épocas, entre estados de

entre a realização tecnológica do cinema

consciência, entre o passado da memória,

e as ambições estéticas das vanguardas

o presente da percepção e o futuro do

do início do século XX. O autor alemão

desejo, entre enredos paralelos e entre

entende a experimentação artística do

experiência e imaginação. De modo que o

alto modernismo como expressão de

cinema, em vez de limitar-se a representar

uma nova consciência de tempo e espaço

conteúdos históricos e culturais, na sua

que encontra sua técnica privilegiada na

própria linguagem dava forma concreta,

representação cinematográfica, destacada

à experiência histórica da tendência

como a arte que, pela realização técnica

ao fragmentário, à heterogeneidade e

da consciência temporal moderna,

à desintegração do mundo moderno.

torna-se a mais representativa da época.

Simultaneamente, concretizava-se no

Definir o modernismo da primeira

cinema uma nova unidade e continuidade

metade do século, ainda de acordo com

eminentemente perceptível atrás do

Hauser (1982), como a “época do cinema”

ritmo caótico da imagem caleidoscópica

se justifica por esse motivo pela sua

na alusão a um fluxo infinito e contínuo

capacidade técnica de criar uma expressão

do tempo qualitativo, descrito por

viva de uma nova experiência histórica de

Bérgson (2011) como “duração” e por

entrelaçamento entre tempo e espaço. Ele

Fredric Jameson (1991) como o “mistério

vê no espaço cinematográfico a superação

existencial do tempo qualitativo”. O

83


privilégio da tecnologia cinematográfica

“cinematografia” como a grande tradução

como máxima expressão estética da

tecnológica das aspirações expressivas das

condição moderna, consistia, portanto, na

artes plásticas e as da palavra “realizando

capacidade de poder figurar uma mudança

a vida como nenhuma arte ainda o

histórica na relação fenomenológica

conseguirá, foi ela o Eureka! Das artes

entre sujeito, espaço e tempo. De maneira

puras” (ANDRADE, p. 258).

exemplar, o cinema não representava mas

84

expressava – por exemplo, no cinema

Para o crítico André Bazin (1992), o

surrealista de Buñuel – a permeabilidade

cinema produziu um realismo diferente

entre o espaço interior da imaginação e

e mais verdadeiro do que o que vinha

o espaço exterior da experiência. Muitos

sendo desenvolvido na pintura, na

críticos embarcaram nesse otimismo e o

fotografia e na literatura. Esse realismo

fenômeno cinematográfico tornou-se um

singular seria enfatizado na medida em

modelo para a literatura e as outras artes.

que o cinema se afastasse das técnicas de

Nessa perspectiva, dizer sobre um texto que

montagem e sequenciamento narrativo e

sua escrita é cinematográfica, por exemplo,

elaborasse tomadas longas com foco em

era caracterizar uma literatura que abria

profundidade que permitisse ao espectador

mão do domínio estrutural da narrativa

uma participação muito maior do que nos

e escolhia a fragmentação não linear de

enredos autorais e narrativos. Na base da

unidades desconexas à procura de um

expressão “modernidade cinematográfica”

impacto superior. Na poética modernista

está a ideia de que o cinema teria sido

de Mario de Andrade, formulada no livro

o maior desafio colocado à organização

A escrava que não é Isaura, o autor observa

narrativa aristotélica, considerada o

que “a obra de arte é uma máquina de

principal fundamento da poética ocidental

produzir comoções” (ANDRADE, p. 258),

a privilegiar a coerência do enredo (Muthos)

e essa compreensão da arte como uma

em detrimento dos efeitos sensíveis do

máquina capaz de criar afetos e sensações

espetáculo visível, o que chamava de Opsis.

é estranhamente contemporânea e logo se

Para Rancière (2001), o Muthos aristotélico

vincula à arguição de Mário de Andrade

é o equivalente ao que ele, no principal livro

ao que denomina de “cinematografia”

sobre o cinema, A fábula cinematográfica,

(ANDRADE, 2009, p. 258). Mario exalta a

escolhe chamar de “fábula” usando a


tradução latina do conceito. No complexo

é o clímax da arte do regime estético, a

teórico de Rancière, o enredo aristotélico é

realização do sonho modernista de uma

o núcleo fundamental do regime chamado

pura expressividade da arte, mas, segundo

por ele de representativo ou mimético e

Rancière, ele ignora, nesse momento,

que é desenvolvido em contraste com

que a narrativa nunca é inteiramente

o clássico regime ético, por um lado, e o

superada, o que resulta em uma das

moderno regime estético, por outro. Segundo

contradições intrínsecas do modernismo.

a definição do Rancière (2001), a fábula

“O cinema, que deveria ser a nova arte

é dimensão principal da representação

da não representação parecia tomar

artística, a distribuição das ações necessárias

exatamente o rumo contrário: restaurava

e verossímeis que leva o personagem da

o encadeamento das ações, os esquemas

fortuna ao infortúnio ou vice-versa por

psicológicos e os códigos expressivos que

meio da construção do enredo. O que

as outras artes vinham tentando quebrar”

realmente interessa na discussão de Epstein

(RANCIÈRE, 2012, p. 19). Curiosamente,

é a maneira como este vê e assume o

não significava essa inversão que liquidava

cinema como uma escrita natural da Opsis,

a esperança ligada à nova arte. Mantinha-se

invertendo assim o privilégio concedido por

“o sonho de um cinema que encontraria sua

Aristóteles ao Muthos. Para Rancière (2001),

verdadeira vocação” (RANCIÈRE, 2012,

esse movimento do representativo para o

p. 19), por meio de um corte mais radical

estético já tinha acontecido na literatura,

entre o cinematográfico – a montagem e o

na obra de Flaubert, em consequência das

automatismo espirituais – e os jogos teatrais,

descrições saturadas na narrativa da vida

como em Bresson, ou na “afirmação de um

estagnada de Emma. O filósofo, entretanto,

cinema que deveria ser antes de tudo uma

logo refuta a identificação unilateral

janela aberta para o mundo: um meio de

estabelecida por Epstein entre o cinema e

decifrá-lo ou de fazê-lo revelar sua verdade

o estético, pois ainda que a expressividade

nas próprias aparências” (RANCIÈRE, 2012,

seja uma propriedade do cinema, não se

p. 20), como em Rossellini e Andre Bazin.

deve ignorar sua ligação íntima com o regime representativo predominante na arte

Outro ponto importante nas reflexões

ocidental. Na visão de Epstein, o cinema

de Jacques Rancière é o fato de não ser a

85


86

tecnologia do cinema que cria condições

pela sua capacidade de expressar panora-

para uma nova expressividade estética

mas feitos de infinitos pequenos detalhes

modernista. Pelo contrário, o cinema surge

da realidade, mas, por outro, logo se vira

como resposta tecnológica às interroga-

contra a arte modernista na medida em que

ções e demandas já formuladas pelas artes

se desenvolveu tecnologicamente determi-

e pela crítica. O papel do cinema no regime

nado por um forte agenciamento autoral a

estético foi realizar algo que já estava sendo

serviço da lógica da fábula. O cinema chega

desenvolvido na teoria e na prática artís-

para frustrar a modernidade artística, uma

tica, e não o oposto. Não adiantava pedir

vez que opôs à autonomia estética da arte

que o cinema realizasse “o sonho de um

sua velha submissão ao regime represen-

século de literatura”, pois ele só poderia

tativo. Ou, em outras palavras, foi a tensão

ser o “desenvolvimento das forças especí-

operativa e dinâmica do cinema que desen-

ficas de sua máquina” (RANCIÈRE, 2012,

volveu a possibilidade de realizar a ambição

p. 20). O principal argumento contra a

expressiva da era estética, ao mesmo tempo

idealização de Epstein, entretanto, é que

que retomou, reformulou e aperfeiçoou

o cinema, sendo em sua natureza o que

o enredo narrativo em seus fundamentos

outras artes procuravam e almejavam, na

aristotélicos mais claros, catalisando uma

era estética, invariavelmente, iria inverter

nova dinâmica à arte narrativa da própria

seus movimentos. Sendo o cinema a ino-

literatura. Eis a contradição que opera dia-

vação principal da era estética, ele estava

leticamente nas leituras de Rancière e que

destinado, segundo Rancière (2012), a

pode ser exemplificada em várias de suas

revelar os limites do estético. Limites que

leituras. Na análise do filme M (1931), de

são relacionados ao tema principal de sua

Fritz Lang, um filme fortemente atado ao

interpretação do cinema, o tema da fábula

enredo policial, Rancière destaca um mo-

contrariada, ao enfocar essas contradições

mento em que o assassino em série, Peter

sempre centradas em relação à questão

Lorre, é filmado com uma menina, sua

narrativa, ou seja, à herança literária do

futura vítima, no momento em que olham

cinema. O dilema da fábula contrariada é:

juntos e sorriem pela vitrine de uma loja

o cinema por um lado aparece como a rea-

de brinquedos. Nesse momento de “graça”,

lização do sonho da literatura modernista,

a lógica da sequência narrativa é interrom-


pida por um intervalo, no qual aparece a

de que maneira essa tensão entre duas

possibilidade de certa humanidade para o

formas de narrativas em conflito aproxima-

assassino. Portanto, ao mesmo tempo que o

se da divisão fundamental elaborada

filme conta a história do assassino que será

pelo filósofo Gilles Deleuze em Imagem-

caçado implacavelmente até sua captura,

Movimento (1983/2004) e Imagem-Tempo

esse breve instante abre uma clareira para

(1984/2006). Segundo esse autor, o cinema

vislumbrarmos uma outra fábula, a de sua

clássico se caracterizava por Imagens-

humanidade perdida. Mais uma vez trata-

Movimento, isto é, pela composição de

-se do conflito entre a lógica mimética ou

imagens ligadas sequencialmente para

representacional, de um lado, e uma estéti-

criar continuidade e sentido narrativo. Na

ca e expressiva, de outro:

modernidade cinematográfica, descobrese um poder autônomo da imagem cuja

Às exigências aristotélicas da narrativa que

característica definidora de Imagem-

conduz o criminoso ao ponto em que seja

Tempo é a temporalidade autônoma e o

apanhado e desmascarado, mistura-se e

vácuo que a destaca de outras imagens. A

opõe-se uma outra exigência: a exigência

Imagem-Movimento capta o movimento

“estética” dos planos suspensos, a de uma

que opera nela ao formar sequências por

contralógica que interrompe toda progres-

montagens narrativas. Na história do

são da intriga e toda revelação do segredo,

cinema, essa imagem mimética encaminha

para fazer com que se sinta a potência do

o novo cinema modernista, caracterizado

tempo vazio (RANCIÈRE, 2001, p. 57).

por uma imagem que capta o tempo de modo autônomo em relação à progressão

O tempo vazio não é simplesmente uma

temporal da narrativa e não é subordinado

interrupção ou uma pausa na narrativa,

às exigências do enredo. A Imagem-

é uma mudança básica na natureza do

Tempo é conceitualmente vinculada mais

incidente que permite ao assassino viver

diretamente à realidade,

uma humanidade não subordinada à

ela é modulada pela realidade temporal

persecução narrativa: a nova ação, o enredo

e sua expressividade é um desdobramento da

estético, rompe com o enredo da narrativa

expressividade das coisas em si mesmas, na

pelo tratamento do tempo. Percebemos

medida em que as imagens para Deleuze intervêm diretamente no pensamento. 87


Em sua forma mais realizada, a Imagem-

de Orson Welles e de Alfred Hitchcock.

Tempo apresenta o que autor com um

Assim, a divisão pode ser compreendida

termo de Blanchot, denomina o “fora” do

como o momento de uma crise mais ampla

pensamento humano, desafiando qualquer

na representação artística e midiática

unidade perceptual ou conceitual que os

provocada pelas atrocidades e barbáries da

seres humanos podem experimentar em

guerra. Deleuze identificava-se com uma

relação ao mundo. Apesar de se entender

vertente contranarrativa na literatura, nas

próximo ao Deleuze, Rancière observa

artes e no pensamento filosófico que se

que alguns diretores servem a Deleuze de

tornou predominante na década de 1950

exemplo tanto de um cinema quanto de

e pressupunha que os horrores da guerra

outro (Robert Bresson, por exemplo). Esse

tivessem criado espaços estranhos que

duplo estatuto da imagem cinematográfica

eludiram a narrativa – sempre sustentada

leva Rancière a criticar Deleuze, pois sugere

por uma ideia de progresso da história

que a diferença entre a Imagem-Movimento

–, e provocava uma crise representativa

e a Imagem-Tempo, em vez de indicar uma

que desafiaram tanto o cinema quanto

mudança histórica, deve ser compreendida

a literatura. Era necessária uma nova

como dois pontos de vista sobre a imagem:

espécie de imagem para apreender esses

a Imagem-Movimento oferece uma visão

espaços, uma imagem não subordinada

que sublinha as relações entre as imagens,

às convenções da representação para

seu sentido como resultado do movimento

a qual a guerra apresentava eventos

em sequência de uma a outra imagem.

incompreensíveis. Existe, assim, no

A Imagem-Tempo, por outro lado, advém

próprio pensamento de Deleuze, uma

de uma visão que diz respeito ao poder

fábula contrariada da passagem da

autônomo e expressivo da imagem, mesmo

Imagem-Movimento à Imagem-Tempo,

quando forma parte de uma montagem em

uma narrativa sobre a impossibilidade de

sequência narrativa. Para Deleuze (2004),

narrar que aponta para uma redenção do

a passagem da Imagem-Movimento à

cinema e da imagem, da restauração de

Imagem-Tempo é compreendida em sua

suas funções expressivas das coisas em si,

dimensão histórica e é identificada com uma

longe da subordinação da imagem à fabula

mudança nos primeiros anos do pós-guerra

cinematográfica e à narrativa aristotélica.

a partir de exemplos privilegiados do cinema 88


REFERÊNCIAS: ANDRADE, Mario. Escrava que não é Isaura. In: ANDRADE, Mário. Obra imatura. Rio de Janeiro: Agir, 2009. BAZIN, André. O que é o cinema. [S.l.]: Livros Horizonte, 1992. BERGSON, Henri. Ensaios sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Ed. 70, 2011. DELEUZE, Gilles. Imagem-movimento. Rio de Janeiro: Assírio e Alvim, 2004. DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. Rio de Janeiro: Assírio e Alvim, 2006. EISENSTEIN, S. Dickens, Griffith e nós. In: EISENSTEIN, S. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990. HAUSER, Arnold. Historia social da literatura e da arte. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. 2 v. JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism. London: Verso,1991. RANCIÈRE, Jacques. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. RANCIÈRE, Jacques. A fábula cinematográfica. Lisboa: Papyrus, 2001.

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espaรงo . literรกrio

+ conto

5 Museus Pedro Eiras

90 90



1. Analogias

Logo a seguir ao São Martinho, o vento começava a descer do monte e só parava

no começo de Maio. Por isso, todas as pedras ao longo do vale eram lisas e ninguém se atrevia a visitar o museu.

Só o zelador ia, coberto de lã, abrir as portadas do casarão, à espera de visitantes.

Ninguém aparecia e ele sentava-se num banco em frente à pintura do Conde que dera origem e nome à povoação.

Ninguém sabe ao certo como isto foi, mas, ao longo dos anos, com o cabelo cada

vez mais branco e os ouvidos já quase emparedados pelo silvo contínuo do vento (às vezes uma telha saltava), a cara do zelador ia-se parecendo cada vez mais com a cara do Conde.

Há duas semanas, foi preciso internar o zelador. Não parava de se lamentar pelas

suas seis filhas, que um cavaleiro teria raptado, uma após outra, nos bailes – ele, o zelador, que nunca se casara e mesmo, diz-se, nunca perdeu a virgindade.

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93


2. Tentações

Cabia-lhe escolher os quadros que ficariam expostos. Desceu pela enésima vez aos

armazéns do museu.

Podia escolher uma última tela. Não caberiam duas naquela parede nua, e o museu

já parecia uma loja de bric-à-brac.

Havia a rapariga com a sombrinha, a pisar as flores douradas. O sol batia-lhe nos

ombros, em despedida. O vento erguia com leveza a ardente cabeleira.

Mas também havia a rapariga a cavalo, a chegar do piquenique de domingo. Trazia

uma cesta com frutos, e toda ela era sorriso trocista. O vestido ficava preso no feno.

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Qual escolher?, pensava ele, amargurado. E como entre duas amantes secretas, hesitava.

A parede ficou nua.


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3. De profundis

Constava que ele descia aos infernos.

O próprio museu da vila tinha comprado uma vasta colecção das estátuas que ele

fazia, e recebia visitas de especialistas em arte sacra popular. O conservador considerava concorrer a um subsídio europeu para abrir uma sala dedicada àquela obra.

Também nós o fomos visitar. Poderíamos ver os diabos, os tridentes, os caldeirões,

a saírem perfeitos das mãos do escultor quase cego.

Tinha estado em África, na guerra. Quase não falava. E às vezes morria. Ficava

morto três dias. Ao fim de três dias abria os olhos, inspirava, comia um pão, e ia logo esculpir as almas em tormentos, para não se esquecer, dizia.

O padre vigiava cada palavra, à coca de heresias. Mas todos respeitavam o pacato

escultor, e a vila ia crescendo, com um hotel em projecto.

O escultor morria, três dias, depois levantava as mãos calejadas para os barros. Ui como

chiam, disse uma vez. E esculpia.

Quando chegámos, a oficina estava fechada. O escultor tinha voltado a morrer, mas

desta vez não acordara ao fim do terceiro dia. Já cheirava mal.

Enterraram-no.

4. Traslado

Mosaico, telha, caco que fosse, ainda mal desenterrados, seguiam logo para o museu,

que faltava caiar. Ninguém sabia se eram arqueólogos ou salteadores. Nem fazia diferença.

Os ossos que tinham conhecido a chuva e o vento dos séculos agora apertavam-se

numa caixa de vidro, sob o halogéneo, para sempre expostos, impudicos.

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97


espaço . literário

+poesia Tatiana Pequeno

1) A urna avermelhada que trago por dentro da costura deixa aberta a poça que me sai do baixo e o ventre é de onde partem os naufrágios quando mudas as viagens trazem o mar e finados são os filhos as luas todas as mulheres são cruzes punhos vapor e sentinelas acordam várias lâminas de passagem sobre o chão e a pedra – fêmeas criam estirpes de fria couraça e também preparam a dura e lenta sorte dos que perdem o medo e a parte sedada de si. nas urnas não adoecem mais as aves lançam elas o corpo trançado das labaredas. queimam os obituários e as lapelas tidas como cimento para o amor e para os nomes.

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escadaria


2) zona norte não era adeus era uma forma mais bruta de se cansar da vida não era perder porque perdido muito já se sentia tampouco era verão no que seguia o curso de uma avenida éramos só nós duas selando um arremesso como se eu só pedisse clemência e abrisse o sinal para outra curva. não foi distância. foi um corpo abaixo da sombra, entre o suor temperado de carne e a direção que não pude indicar ao motorista quando tomei aquele táxi e te deixei ali para que voasses para o retorno em que exatamente te perdi.

tantas vezes fui à igreja matriz para pedir dinheiro, vagas e depois a tua ida. na escadaria da penha os degraus são calçados pelo peso de quem carrega velas, dores e fitas e nessa sorte sempre te levei comigo. foram anos de longo subir. não sei como se volta ao cimo duma pedra depois que se sai da espera. lembro apenas do nascimento de uma montanha dessa imagem de paciência e calor no seu núcleo. os pés dos peregrinos são um retrato exato do que pedem: sobre ti nunca ultrapassei a nave dos mortos. e o que inventei mesmo foi uma passagem sem guia. algo como o que o orixás e os santos levam nas mãos: um espelho uma adaga uma rosa por vezes uma chave sem rituais ou aquilo que atravessa o corpo depois da lança.

as fotografias de meses atrás acovardam uma lápide sobre nós. e na volta estavam lá os calçados azuis ao lado da cama como se você estivesse sempre para chegar.

99 nós


3) As crianças sentadas nuas na terra brilham entre muitos fios de cabelo em que debulho de vermelho o gado

concreto

nos assentamentos no cimo e nas matas. Cresce a trança que deixo nascer entre o cuidado e a roça do milho junino e também de repente a cidade é a chuva matinal com sua alfazema de terra e não deixo de te esperar nesta cama onde diversas noites sussurrei entre todas as tuas lembranças da vida litoral aqui vamos sempre poder recomeçar.

100

4) quem me tomou a casa sabia da lamparina de fogo no seu centro e desconfiava que dos utensílios fossem traçadas quimeras de sabre. quem me tomou a casa deixou apenas a desconfiança das magas antes da partida das ovelhas outra vez em guarda para quebrar o sinal dos cofres que ornei com folhas. quem me tomou a casa encontrou os dentes entre a carne e forjou na hematose a janela sem vista a jaula com fera descolorida. quem me tomou a casa violou o amor sobre as mesas porque me trouxe um veneno para as orquídeas. que me tomou a casa levou o seu tamanho dividido entre caixas e rasgou o meu membro pelos dias. e como há tanto de pele nestas paredes onde minha casa não está que não deixo mais móveis, resguardos ou queixas. quem me tomou a casa foi ao encontro dos muros. lá condicionou-se ao concreto.


5) O Pinheiro Feminino

sabes quando chega a hora de sair e uma imagem nua do que somos acompanha mesmo o peso das extremidades? São quatro as nossas mãos perfumadas por temperos e dois os vértices para onde sempre desistimos ou nunca podemos apenas nos diluir como ânsia e aceno vindos depois do ritmo e da ruína de um girassol, sede & árvore para alimentarmos os nossos filhos ou, Mariana, guardarmos uma imagem amarelada das salsas como força de um movimento sôfrego e tão curto. Estou aqui. Como se fosse um fundamento.

firmamento

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espaço . literário

+cartoon

André Dahmer

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resenha senha

prêmio sesc de literatura 2012/2013 . conto

re-

Noveleletas

impressiona em Vereza é sua vontade de narrar – e de narrar cantando, narrar acumulando palavras, frases, versos, ideias, sons, pessoas, bichos –; é o seu desejo de brincar, zombar, ler para nós, em voz alta e afinada. Vereza é um jovem escritor que, por sua juventude, não teme os desperdícios. Esta antologia reúne cinco textos que podemos chamar de “contos de personagem”. São eles que

Emprestada de Lavoura arcaica, a epígrafe deste

nos prendem e que se fazem ouvir ou imaginar,

livro é um convite direto à percepção do leitor,

constantemente: um mendigo, um cachorro, um

a quem João Paulo Vereza, apropriando-se do

pescador, um cantor popular. Padres, marujos,

gênio de Raduan Nassar, trata com intimidade

entidades misteriosas. Noveleletas é uma mistura

fraternal e, claro, ambígua: “Dilate as pupilas,

inesperada de exuberância e irreverência. E, mais

esbugalhe os olhos, aperte tua mão na minha,

que isso, um livro de destemor.

irmão, e vamos.” Certo, mas vamos aonde? O

Por isso proponho voltarmos àquela minha

único jeito de saber é entrando em suas curio-

pergunta inicial, feita no primeiro parágrafo:

sas Noveleletas. Evidente admirador de

nós vamos aonde? Não sei. E o próprio autor, na

Guimarães Rosa, Evandro Affonso Ferreira,

verdade, também parece querer encontrar uma

Ariano Suassuna e Marcelino Freire, Vereza não esconde suas leituras de formação e cabeceira. Nesta obra, o que encontramos é a antiga paixão

resposta adequada. Melhor assim: aquele convite da epígrafe fica sendo uma proposta de exploração compartilhada. Estamos juntos nessa.

brasileira pela invenção de línguas, mas trazida à nossa época. Isso não quer dizer que aqui você vá esbarrar em um Brasil essencialmente urbano, globalizado, de bem com o mundo contemporâneo e tecnológico. Pelo contrário: você se verá embrenhado em um país original, onde mar e sertão já se misturaram há muito tempo. O que mais chama a atenção nestas Noveleletas, entretanto, é o vigor com que foram criadas e buriladas. Nesse sentido, e talvez mais do que em qualquer outro, este é um livro forte, 104

porque o que realmente nos

Luís Henrique Pellanda


resenha senha

prêmio sesc de literatura 2012/2013 . romance

re-

criadora de novas instâncias objetivas, máscaras com as quais passamos a conviver (na forma de assinaturas de textos, documentos,

O outro e o mesmo

livros) e que, por força de sua autoridade, de sua inscrição na tradição cultural, deixam

No conto “Borges e Eu”, do livro O fazedor,

de ser percebidas como construções, pas-

Jorge Luis Borges descreve a vida dupla de

sando a modelar nossa visão, a pautar nossa

quem experimenta as vicissitudes de uma

ação no mundo.

existência comum, enquanto seu duplo – que

O que aconteceria, porém, se a metáfo-

é outro, sem deixar de ser ele mesmo – escre-

ra borgeana fosse levada ao pé da letra,

ve sob o signo “Borges” as obras que o Borges

tornando-se literal – ou literal ao menos

empírico, real, lê com perplexidade: “Ao outro, a Borges, é que as coisas acontecem. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco

na medida em que uma personagem pode realizar nossa crença, nada fictícia, na veracidade da ficção?

Esse é o tema de fundo de O evangelho

de um vestíbulo e o portão gradeado; de

segundo Hitler, romance notável de um

Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu

leitor apaixonado de Borges, obcecado pelo

nome em uma lista tríplice de professores ou

autor de História universal da infâmia a

em um dicionário biográfico.”

ponto de lhe imputar uma infâmia que nem

O conto, um dos tantos em que o escritor

o próprio Borges teria imaginado: a de ter

argentino faz da experiência literária algo

engendrado, com sua imaginação infernal,

que transtorna e devassa os planos de rea-

a serpente do Mal em estado puro, de ter

lidade, é normalmente visto como imagem

fornecido o fermento profético que possibi-

da disjunção entre o Eu singular, carnal, do

litou Adolf Hitler e o nazismo.

escritor e a figura socialmente construída do

Jorge Luis Borges é o protagonista do livro

autor. “Borges e Eu” seria, assim, a metáfora

de Marcos Peres. Mas não o Borges bibliote-

da própria literatura não apenas como gesto

cário cego de Buenos Aires que morreu em

duplicador da realidade, mas também como

Genebra em 1986, após ter criado obras105


primas da literatura do século XX. Ou, pensando bem, talvez seja o mesmo Borges, que, no entanto, desgarrou-se de si mesmo a partir de algum caminho que se bifurca em algum jardim descrito em algum alfarrábio encerrado em alguma biblioteca. Borges, o narrador-escritor, tem dados biográficos (genealogia, cidade de nascimento, gosto por enigmas gnóstico-bibliográficos) que coincidem com os de Borges, o escritor-autor. As veredas bifurcadas começam a se delinear no momento em que o protagonista elucida uma série de atentados contra uma família de judeus buenairenses, descobrindo que no mesmo momento, no outro lado do Atlântico, seu homônimo havia deduzido as mesmas coordenadas que possibilitaram desfazer o mistério. A partir disso, estabelecem-se vivências paralelas que incluem uma disputa literária e existencial em que os textos escritos por um Borges são atribuídos ao outro e na qual o primeiro emula o segundo (ou seria o contrário?) para conquistar os favores de uma mulher judia que ama a literatura de Borges (de qual dos dois?) e que o colocará em contato com uma seita de alemães que veem em Hitler uma figuração de Judas – e, em Judas, o legítimo e maligno messias.

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Que o conto borgeano em que aparece essa profecia seja um plágio de Borges por Borges (mas não foi Borges que escreveu que “não existe o conceito do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um único autor, que é intemporal e é anônimo”?) é apenas mais um elemento a comprovar a capacidade do autor de associar a consciência metalinguística à inventividade romanesca, as complexidades da teoria literária a momentos de humor paródico. Com capítulos contendo epígrafes extraídas de obras de Borges, O evangelho segundo Hitler faz com ele, de certa forma, aquilo que o borgeano Pierre Ménard faz com o Quixote de Cervantes: reescreve produzindo diferença. Parafraseando o Borges de “Borges e Eu”, não sei qual dos dois – Marcos Peres ou Jorge Luis Borges – escreve este livro.

Manuel da Costa Pinto


eu re comendo


, vinicius jatobá,

meu tio hrabal De todos os estimados e valorosos escritores de minha biblioteca, há aqueles que são amigos de toda vida (Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Guillermo Cabrera Infante), e padrastos sinistros (Juan Carlos Onetti, William Faulkner, Italo Svevo), e musas amorosas (Virginia Woolf, Eudora Welty, Alice Munro), e cúmplices de decidia (Thomas Bernhard, Vladimir Nabokov, Danilo Kis) e até credores ocasionais (João Ubaldo Ribeiro, Saul Bellow, José Saramago). Minha biblioteca, preciosa, é minha outra família: nos reunimos em festas, celebramos conquistas, lamentamos derrotas. Há, contudo, aquele tio arruaceiro – de quem os outros falam sempre em cochichos –, que aparece para bagunçar o coreto. É meu tio Bohumil Hrabal, o mais histriônico parente de minha biblioteca afetiva.

Eu servi o rei da Inglaterra é uma experiência hedonista que se intensifica a cada releitura. Acompanhar o garçom Dittie em suas travessuras de hotel em hotel – conquistando improváveis títulos de nobreza, colecionando aventuras amorosas até se casar com a impagável professora de ginástica Lise, enriquecendo por acidente e perdendo tudo com a mesma facilidade – é gargalhar forte a cada página. O romance, no entanto, também é uma mordaz crítica social sobre a covardia da sociedade tcheca diante do avanço do nazismo, a prosperidade construída por meio de acordos econômicos escusos e a maneira como os despossuídos são jogados de um lado para outro conforme os interesses dos dirigentes mais poderosos. Engenho de linguagem – com seu estilo sôfrego e torrencial – e exploração irônica do namoro entre Eros e a razão, Eu servi o rei da Inglaterra é uma imbatível obra-prima contemporânea do humor.

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eu re comendo , daniel senise,

sextas-feiras Há alguns anos, ganhei

Sexta-feira ou os limbos do Pacífico, de

Michel Tournier, de minha amiga Vera Ribeiro. Nunca tinha ouvido falar desse livro nem do autor até então. A obra retoma a história de Robinson Crusoé, escrita em 1719 por Daniel Defoe, que todos conhecemos: Robinson Crusoé chega a uma ilha deserta depois de um naufrágio do qual é o único sobrevivente. Passa alguns anos sozinho e depois junta-se a um nativo de outra ilha que fora levado para lá para ser sacrificado por indígenas de uma tribo rival. Robinson o salva e o batiza de Sexta-feira. Juntos convivem durante anos até que os fatos alteram seu isolamento. A narrativa de Tournier acompanha a de Defoe até determinado ponto. O “Robinson Crusoé” de Defoe é, sobretudo, uma história de aventuras em um período em que a Inglaterra compete com outras potências marítimas pelo comércio colonial. Escrito em 1967, em um período pós-colonialista e de turbulência social, quando o pensamento existencialista ainda estava presente no ambiente cultural da França, a história de Tournier procura o aspecto filosófico da situação em que Robinson se meteu. Nela, o comportamento de Sexta-feira, espontâneo e muitas vezes irresponsável, que inicialmente deixa Robinson furioso, começa a transformar a maneira como ele percebe a própria existência. Nesse ponto as duas narrativas divergem. O Sexta-feira de Defoe auxilia Robinson a criar riqueza material, o de Tournier não se submete ao europeu como se espera do ponto de vista do colonizador. Apesar da expectativa inicial de Robinson e a aparente submissão de Sexta-feira, as coisas desandam e seguem um novo caminho. Eu li o Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, por ter lido Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico de Tournier. Gosto dos dois. Acho, sobretudo, interessante pensar em como uma narrativa não desqualifica a outra. Isso mostra também como criadores atuais podem usar enredos e temas antigos para explorar aspectos das circunstâncias contemporâneas.

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[Do lat. suggestione]S.f. Ação ou efeito de sugerir; seu resultado; inspiração, instigação: dar uma sugestão. Psicologia Influência subconsciente das palavras ou ideias de outro. Sugestão hipnótica, vontade, desejo ou ideia provocada numa pessoa em estado de hipnose. Sinônimo de sugestão: insinuação Classe gramatical de sugestão: das palavras ou ideias de outro. Sugestão hipnótica, vontade, desejo ou ideia provocada numa pessoa em estado de hipnose. Sinônimo de sugestão: insinuação Classe gramatical de sugestão: substantivo feminino Separação das sílabas de sugestão: su-ges-tão Plural de sugestão: sugestões

.:dicas

Ar de Dylan . Enrique Villa Matas – Narrado por um escritor de meia-idade que foi convidado para um congresso internacional sobre o fracasso, Ar de Dylan conta a história do jovem Vinicius Lancastre, um publicitário fracassado, cineasta de um único curta-metragem e que tem como principal característica sua semelhança física com Bob Dylan, o que lhe vale o apelido de Little Dylan. O céu dos suicidas . Ricardo Lísias – Romance com fundo autobiográfico em que Ricardo Lísias relata o suicídio de André, um amigo de longa data. O personagem principal é um colecionador, que não coleciona nada há anos, mas presta serviços de consultoria a colecionadores. Ricardo intercala o relato de sua história com o de André.

Literatura


Um útero é do tamanho de um punho . Angélica Freitas – Em seu segundo livro, a gaúcha Angélica Freitas reúne 35 poemas marcados por uma visão crítica extremamente original animada por um viés humorístico que deixa o leitor em suspenso entre a seriedade e o riso. Os precisos versos revelam o domínio da poetisa sobre a linguagem. Um útero é do tamanho de um punho tem a mulher como centro temático: procurando definir que figura feminina é essa que nossa cultura trata de desenhar e que se desconstrói incessantemente, a autora questiona de um lado o mundo, de outro a própria identidade. Formas do nada . Paulo Henriques Britto – Poética que se caracteriza pela construção, pela ironia e pelo jogo entre linguagem do cotidiano e sofisticação intelectual. Desde o título, Formas do nada não deixa dúvida sobre o jeito de Paulo Henriques Britto praticar a poesia. O som aberto e incisivo dos “as” e a batida firme e séria do ritmo anunciam a pegada combativa de quem não está para contemplações ou devaneios. Granta: jovens autores brasileiros . Vários – A revista Granta, publicada no Brasil pelo selo Alfaguara, da editora Objetiva, lançou uma edição especial com “Os melhores jovens escritores brasileiros”, em julho de 2012, durante a 10ª edição da Festa Literária de Paraty (FLIP). A edição traz textos em prosa de vinte autores brasileiros com menos de quarenta anos, como Daniel Galera, Michel Laub, Vinicius Jatobá, Carola Saavedra, entre outros.

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Martinha versus Lucrécia . Roberto Schwarz – Martinha versus Lucrécia contém algumas das melhores peças da crítica literária de Roberto Schwarz, que contempla, além de Machado de Assis, nomes como Caetano Veloso — com um ensaio inédito sobre a autobiografia Verdade tropical —, Chico Buarque, o poeta Francisco Alvim e o filósofo Theodor Adorno. Esses trabalhos de grande fôlego dialogam com os prefácios e as homenagens dedicados a amigos como Bento Prado, Francisco de Oliveira e José Arthur Giannotti. Entremeadas aos ensaios, o leitor encontrará entrevistas concedidas pelo crítico, que esclarecem aspectos decisivos de seu trabalho e de sua formação intelectual. A comédia humana . Balzac – Nova edição da editora Globo, em quatro volumes. “Balzac vai direto ao alvo. Agarra a sociedade moderna corpo a corpo. Arranca algo a todos: a uns, a ilusão; a outros, a esperança; a estes, um grito, àqueles, uma máscara. Apalpa o vício, disseca a paixão. Examina e sonda o homem, a alma, o coração, as entranhas, o cérebro, o abismo que cada um leva em si. E, por um dote de natureza livre e vigorosa, por um privilégio das inteligências do nosso tempo que, tendo visto as revoluções de perto, percebem melhor o objetivo da humanidade e compreendem melhor a providência, Balzac emerge risonho e sereno desses estudos temíveis que produziam melancolia em Molière e misantropia em Rousseau. Eis o que ele fez entre nós. Eis a obra que ele nos deixa, obra alta e sólida, robusto conglomerado de blocos de granito, monumento!” (Victor Hugo). Chamadas telefônicas . Roberto Bolaño – Roberto Bolaño escolheu, para abrir este volume de contos, uma epígrafe de Tchékhov. A citação não é aleatória: assim como o mestre russo, o autor chileno compôs, em Chamadas telefônicas, uma série de histórias curtas, com desfechos inesperados, que abrem caminho para múltiplas interpretações. Tal é o caso de “Sensini”, o primeiro conto da coletânea que versa sobre um escritor argentino que se especializou em ganhar concursos literários.


Um anjo em minha mesa (1986) . Dir. Jane Campion . Austrália/Nova Zelândia . 153 min. . Distribuidora Lume Filmes – Com base no relato autobiográfico de Janet Frame, o filme conta a história de uma menina gorducha e tímida que é diagnosticada como esquizofrênica e, por isso, passa oito anos em um sanatório. Depois, torna-se uma das mais importantes escritoras da Nova Zelândia. Um percurso desconcertante de uma mulher sensível que aceita sua vida trágica tal como ela é. Uma história de esperança, sofrimento e triunfo. Germinal (1993) . Dir. Claude Berri . França/Bélgica/Itália . 170 min. . Distribuidora Lume Filmes – O filme retrata o processo de criação e maturação de movimentos grevistas e de uma

Cinema

atitude mais ofensiva por parte dos trabalhadores das minas de carvão do século XIX na França em relação à exploração de seus patrões. Com base na obra de Emile Zola, o filme é uma das mais belas adaptações literárias da história do cinema. Borboletas negras (2011) . Dir. Paula Van Der Oest . África do Sul/Alemanha/ Holanda . 100 min. . Distribuidora Imovision – Ingrid Jonker (Carice von Houten) é uma jovem poetisa que encontra a liberdade na escrita. Rejeitada pelo pai, que trabalha no regime do apartheid em plenos anos 1960, ela sofre para encontrar uma casa e um amor. O reconhecimento como poetisa vem quando Nelson Mandela, em seu primeiro discurso para o parlamento da África do Sul, em 1994, lê seu poema “A criança que foi assassinada pelos soldados de Nyanga”.

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Música Gravado em abril de 2012, CD duplo da ópera Piedade. Essa mídia traz a soprano argentina Paula Almerares no papel de Ana da Cunha, o barítono Homero Velho como Euclides da Cunha e o tenor Marcos Paulo como Dilermando de Assis. Isaac Karabtchevsky dirige a Orquestra Petrobras Sinfônica. Piedade divide-se em quatro cenas precedidas por prólogos para violão,

a

cargo

de

Paulo

Pedrassoli,

com

poemas

desse compositor e de Euclides da Cunha declamados pelo violinista e ator Marcio Sanchez. O CD oferece quatro faixas bônus apenas com a música para violão. A obra foi encomendada pela OPES e estreou em 21 de abril, no Teatro Vivo Rio, com direção cênica de André HellerLopes. Sua distribuição é gratuita. Os pedidos devem

ser feitos por e-mail para: contato@opes.com.br.

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agenda

Eventos 2013: Julho a Novembro ¶ 27 a 31 de agosto . Jornada Literária de Passo Fundo (Passo Fundo/RS) ¶ 29 de agosto a 8 de setembro . Bienal do Livro do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ) ¶ 25 a 28 de setembro . 4ª Flimar - Festa Literária de Marechal Deodoro (Maceió/AL) ¶ 14 a 17 de novembro. Fliporto - Praça do Carmo (Olinda/PE) ¶ 1 a 17 de novembro . 59ª Feira do Livro de Porto Alegre (Porto Alegre/RS) ¶ Não definida - mais informações no site www.flipipa.org . FliPipa - Festa Literária de Pipa (Pipa/RN) ¶ 27 a 30 de setembro . Primavera dos Livros (Rio de Janeiro/RJ) ¶ 1 a 9 de setembro . 27ª Feira do Livro de São Leopoldo (Porto Alegre/RS) ¶ 13 a 23 de setembro . 31ª Feira do Livro de Brasília (Brasília/DF) ¶ 4 a 13 de outubro . FLIP . IX Festa Literária Internacional de Pernambuco (Olinda/PE) ¶ 7 a 11 de novembro . Flupp . II Festa Literária Internacional das UPPs (Rio de Janeiro/RJ)

Concursos Literários Prêmio Sesc de Literatura Categorias: romance e conto Inscrições: 1 de junho a 31 de julho Site: www.sesc.com.br/premiosesc 12º Prêmio Literário Livraria Asabeça 2013 Categoria: Livro de poesia de Autor inédito Inscrições: 31 de agosto, valendo a data postal E-mail: asabeca2013@concursosliterarios.com.br

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colaboradores . bios 1. André Dahmer Pereira (Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1974) é autor das tirinhas dos Malvados, do personagem Emir Saad, e das séries de tirinhas “Apóstolos, a série”, “Cidade do medo” e, mais recentemente, “Quadrinhos dos anos 10”. Suas criações já apareceram no Jornal do Brasil, no portal de internet G1, na Folha de São Paulo, nas revistas Sexy Premium, Piauí e Caros Amigos. 2. André Gardel é escritor, compositor de música popular brasileira e professor da UNIRIO. Possui 10 publicações, que englobam ensaios, poesias e livros didáticos. Recebeu, em 1995, o Prêmio Carioca de Monografia por “O encontro entre Bandeira & Sinhô”. Gravou dois CDs com composições de sua autoria, “Sons do poema” (1997) e “Voo da cidade” (2008). Trabalhou como resenhista do caderno “Ideias” (Jornal do Brasil) e de outros periódicos e foi consultor e comentarista das Semanas de Poesia da TV Escola. 3. Antonio Jardim, torcedor apaixonado pelo Fluminense F. C., é compositor e integrante do grupo vocal-instrumental Música Surda. Atua como professor de Teoria Literária e Composição Musical na UFRJ e também de Filosofia da Educação na UERJ. Doutor em Poética pela UFRJ e mestre em Musicologia pelo CBM, Antonio Jardim é graduado em Composição Musical pela EM-UFRJ, em Filosofia pela UFRJ e em Educação Artística pelo CBM. 4. Daniel Senise é carioca e graduado em Engenharia Civil pela UFRJ. Formou-se na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde lecionou de 1985 a 1996. Participou de mostras coletivas, entre elas a Bienal de São Paulo, a Bienal de La Habana (Cuba) e Bienal de Veneza e exposições individuais em museus e galerias no Brasil e no exterior, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu Oscar Niemeyer (Curitiba), Museum of Contemporary Art (Chicago), Museo de Arte Contemporáneo (México) e Ramis Barquet Gallery e Charles Cowley Gallery (Nova York). 5. Daniela Seixas é artista visual. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Bacharel e mestre em Artes pela UERJ. Seus trabalhos acontecem em desenhos, vídeos e associações entre objetos que surgem da ação do desenho latente no mundo e das atmosferas das palavras. Participa de exposições coletivas, entre as mais recentes, City as process (Parallel program 2nd Ural Industrial Biennial of Contemporary Art - Russia) e Through the surface of the page (DRCLAS, Harvard University - Massachusetts); e individuais: Tarefas rarefeitas (Galeria Ibeu - Rio de janeiro) e A riscar (Paço das Artes - São Paulo). 6. Janaína Michalski é jornalista, escritora, roteirista e produtora cultural. No prelo da Autêntica Editora, seu livro Céu de fundo do mar e outras memórias foi premiado com a Bolsa Funarte de Criação Literária 2010, do Governo Federal.

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7. Karl Erik Schøllhammer é professor associado e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio. É doutor em Semiótica e Literatura Latino-americana pela Aarhus Universitet (1991) e atua na área de Letras, principalmente na Literatura Comparada e na Teoria da Literatura com ênfase nos estudos visuais e nas questões estéticas ligadas à interface entre a literatura e as outras artes. Pesquisador com bolsa de produtividade do CNPq, foi Cientista do Nosso Estado da Faperj (2007-2009). 8. Luís Henrique Pellanda nasceu em Curitiba (PR), em 1973. Escritor e jornalista, é autor dos livros O macaco ornamental (contos, Bertrand Brasil, 2009) e Nós passaremos em branco (crônicas, Arquipélago Editorial, 2011), e organizador dos dois volumes da antologia As melhores entrevistas do Rascunho (Arquipélago Editorial, 2010 e 2012). Editor e cronista do site Vida Breve, também foi subeditor e colunista do jornal Rascunho e teve passagens pela redação dos jornais Gazeta do Povo e Primeira Hora. 9. Mariana Patrício Fernandes é doutora em Letras pela PUC-Rio. Sua tese investiga a relação do espectador com a dança contemporânea, a partir do estudo da obra de artistas como Yvonne Rainer. 10. Manuel da Costa Pinto é mestre em Teoria Literária pela USP, jornalista, crítico de literatura do programa Metrópolis, da TV Cultura, colunista da revista “sãopaulo” e editor do “Guia Folha – Livros, Discos, Filmes”, ambos do jornal Folha de S.Paulo. É autor de Paisagens interiores e outros ensaios (B4 Editores), Antologia comentada da poesia brasileira do Século 21 e Literatura brasileira hoje (ambos pela Publifolha) e Albert Camus – Um elogio do ensaio (Ateliê). 11. Pedro Eiras - Porto, 1975. Autor de peças de teatro, ficções, ensaios e outros textos. É professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto. No Brasil, publicou as peças de teatro Um forte cheiro a maçã seguido de Uma carta a Cassandra (Oficina Raquel, 2008), os ensaios sobre literatura Substâncias perigosas (Casa da Palavra, 2012) e a ficção Os três desejos de Octávio C. (Oficina Raquel, 2012). As suas peças de teatro têm sido encenadas, lidas e publicadas em cerca de dez países. 12. Renata Magdaleno faz pós-doutorado na UERJ, com bolsa Capes/Faperj e pesquisa sobre a crítica literária contemporânea. É jornalista, pesquisadora e professora de literatura. 13. Tatiana Pequeno nasceu no Rio de Janeiro em 1979 e é autora de Réplica das urtigas, publicado em 2010 pela Editora Oficina Raquel. Atualmente mora no interior do Nordeste, onde trabalha como professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 14. Vinicius Jatobá é jornalista cultural e ficcionista. Foi selecionado em 2012 pela revista inglesa Granta como um dos 20 melhores escritores jovens brasileiros.

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Imagens e Créditos fotográficos Todas as fotografias são de Daianne Moraes, exceto quando indicado. p.2 Berengario da Carpi, Jacopo. Isagogae breues, perlucidae ac uberrimae, in anatomiam humani corporis a communi medicorum academia usitatam. Bologna: Beneditcus Hector, 1523. Courtesy of the National Library of Medicine (public domain) e digitalizado por Historical Anatomies. Acesso: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/ historicalanatomies/home.html; p.4 Detalhe da imagem da p.2; p.18 Vimont, Joseph. Traité de phrénologie humaine et comparée. Paris: Ballière, 1832-35. Courtesy of the National Library of Medicine (public domain) e digitalizado por Historical Anatomies. Acesso: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/home. html; pp. 20-22, 27, 30, 50 (Preciptação, 2011), 61-62 Daniela Seixas; pp. 28 e 49 Imagens digitalizadas e fornecidas por Rosa Celeste Produções; pp. 29, 38 e 48 Fernando Lazio; p. 35 Bob Wolfenson; p.36 L. A. Vaught. Vaught’s Practical Character Reader, 1902. Acesso http://publicdomainreview.org. Internet Archive, contributed by the Library of Congress. http://archive.org/details/vaughtspractical00vaug; p.117 Bruno Stock (retrato de Andre Dahmer). Capa: A Narciso_Daniela Seixas; Fotografia utilizada na capa: Daianne Moraes; Segunda capa: Gregóire Basdevant_Festival Multiplicidade 2008 (Arnaldo Antunes) e Gautier d’Agoty, Jacques Fabian. Anatomie generale des viscères en situation, de grandeur et couleur naturelle, avec l’angeologie, et la nevrologie de chaque partie du corps humain. Paris: s.n., 1752. Courtesy of the National Library of Medicine (public domain) e digitalizado por Historical Anatomies. Acesso: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/home.html; Terceira capa: Gregóire Basdevant_Festival Multiplicidade 2008 e The visual telling os stories, disponibilizado por Chris Mullen. Acesso: http://www.fulltable.com/vts/s/scm/psc.htm e Gautier d’Agoty, Jacques Fabian. Anatomie generale des viscères en situation, de grandeur et couleur naturelle, avec l’angeologie, et la nevrologie de chaque partie du corps humain. Paris: s.n., 1752. Courtesy of the National Library of Medicine (public domain) e digitalizado por Historical Anatomies. Acesso: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/home.html Agradecimentos Sônia Beatriz (Rosa Celeste Produções), Batman Zavareze (Festival Multiplicidade) e Raquel Menezes (Oficina Raquel).

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Expediente Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos

Reportagem Janaína Michalski Renata Magdaleno

Departamento Nacional Direção-Geral Maron Emile Abi-Abib

Revisão Viviane Godoi Elaine Bayma

Divisão Administrativa e Financeira João Carlos Gomes Roldão

Concepção Visual Daniela Seixas

Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Álvaro de Melo Salmito

Diagramação Thalita Teglas

Divisão de Programas Sociais Nivaldo da Costa Pereira

Produção Gráfica Celso Mendonça

Consultoria da Direção-Geral Juvenal Ferreira Fortes Filho

Estagiário de Produção Editorial Thiago Fernandes

Publicação Projeto editorial Gerência de Cultura Gerente Márcia Costa Rodrigues Coordenação de Conteúdo Flávia Tebaldi Rodrigo Cazes Assessoria em Artes Visuais Leidiane Carvalho Entrevista Flávia Tebaldi Edição Assessoria de Divulgação e Promoção Gerente Christiane Caetano Supervisão Editorial Jane Muniz

©Sesc Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 – Jacarepaguá Rio de Janeiro/RJ CEP: 22775-004 Telefone: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br Impresso em julho de 2013 Tiragem: 15.000 exemplares ISSN 2178-1443 Distribuição gratuita Para sugestão ou recebimento de exemplares, entre em contato conosco pelo seguinte endereço eletrônico: adpsecretaria@sesc.com.br Escreva-nos, sua opinião é muito importante para o aprimoramento da revista! Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Impresso pela Gráfica e Editora Walprint.


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