Revista Sinais Sociais

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EDITORIAL A revista Sinais Sociais, que trazemos a público com a edição deste primeiro número, tem como finalidade precípua tornarse um espaço de debate sobre as questões que dizem respeito à contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares em que se assenta esta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais está aberta para publicação de todas as tendências que marcam o pensamento social no Brasil, hoje. Também plural no sentido de que não se restringirá a artigos que tratem somente de uma das vertentes das ciências que utiliza os fenômenos da sociedade como seu objeto de análise. A diversidade dos campos do conhecimento terá, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar. Para que a Sinais Sociais se torne efetivamente um espaço de debate, a liberdade de expressão dos autores é garantida. Este princípio tem seu fundamento nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, que reconhece como princípio maior da entidade: “valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo”. Igualmente é respeitada a forma como os artigos serão expostos pelos seus autores. Serão aceitos artigos que sigam os cânones das academias, como, também, aqueles em que os autores prefiram se expressar de forma mais heterodoxa, sem se ajustarem aos padrões estabelecidos. Importa para a Sinais Sociais artigos em que a fundamentação teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das idéias tragam contribuições significativas — que estejam além das formulações do senso comum — àqueles que, ao recorrerem às suas páginas, encontrem elementos que fortaleçam suas convicções ou que lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo.


O que move o SESC, com esta publicação, é a consciência de que publicações semelhantes são raras e de difícil acesso, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões ao debate nacional como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país em que vivem. Contribuir para a disseminação das idéias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a expectativa do SESC com a revista Sinais Sociais.

Antonio Oliveira Santos

Presidente do Conselho Nacional do SESC


SUMÁRIO

O INERTE CULTURAL4 E O QUE SE FAZ CONTRA ELE Teixeira Coelho

SER DE TODOS OS TEMPOS SEM DEIXAR DE SER DO INSTANTE28 CULTURA E POLÍTICA EM TEMPOS DE BRASIL Marta Porto

EM DIREÇÃO ÀS METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO62 UMA ANÁLISE REGIONAL Rosane Mendonça

PROGRAMAS SOCIAIS VOLTADOS À EDUCAÇÃO NO BRASIL114 Simon Schwartzman

LEREIS COMO DEUSES146 A TENTAÇÃO DA PROPOSTA CONSTRUTIVISTA Joâo Baptista Araujo e Oliveira


O INERTE CULTURAL E O QUE SE FAZ CONTRA ELE Teixeira Coelho

Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, pós-doutorado em Cultura e Política Cultural (University of Maryland-College Park).

A grande inovação cultural no Brasil nas últimas décadas não se deu no campo da cultura formal. Aqui, como fora daqui, a novidade cultural foi a emergência da sociedade civil como ator do processo de governança. Erguendo-se contra a sociedade política – o Estado e suas instituições, mas, sobretudo, os partidos e seus aparelhos – a sociedade civil busca a cidadania ativa. A passiva, que consiste em votar e depois assistir, com estupefação e impotência, aos mandos e desmandos, não serve mais. O que se busca é substituir os atletas do Estado, esses que treinam a vida toda para tomar o poder e exercê-lo em nome de seus estamentos, pelos amadores da coisa pública. O inerte cultural, estoque de idéias e bens ditos positivos, na política como nos museus e bibliotecas, mas que nada põem em movimento real, pode agora ser transformado em algo de fato dinâmico.

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Março de 2005, data especial: 20 anos desde o fim da ditadura militar iniciada em 1964. Algo a comemorar muito mais do que o foi. Vinte anos antes, 15 de março de 1985, assumiria a presidência da República um político em quem a sociedade brasileira depositava esperanças — se não por outra coisa, pelo fato mínimo, mas nada simples, de ter sido eleito para o cargo, ainda que de modo indireto. Eleito, não indicado. Como morreu antes da posse, uma sombra de mau agouro, sombra da ditadura, continuou pairando sobre tudo, do que foi sinal a comoção registrada em seu enterro: a redemocratização marcou-se por essa espécie de pecado original (difícil redimirse dele, ainda hoje) que foi a subida ao poder de seu vice, espécie de aval pedido pelo sistema que terminava sem acabar. Impossível dizer se a redemocratização teria sido mais rápida e profunda se o eleito chegasse a administrá-la. Seja como for, o início de 85 marcou o fim da ditadura de 1964 e no início de 2005 deveria lembrarse, mais do que se fez, que 20 anos haviam se passado. Se assim não aconteceu foi talvez porque esse indecídivel que é o imaginário coletivo — essa banda móvel onde ocorre o diálogo cultural mais fundo entre o eu e o outro, entre o dito e o reprimido, entre o símbolo e a realidade — sabia que os motivos para a comemoração não eram tantos, nem todos. Por exemplo, as forças armadas, numa atitude que se preferiu minimizar, disseram que

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não havia de que se envergonhar. Para ter uma idéia do significado dessa recusa de um embate com o passado das próprias responsabilidades —agora nem mais das pessoas envolvidas, porém das instituições que as amparavam (o que não diminui a questão: não por nada se diz das instituições que também são pessoas, pessoas jurídicas, pessoas políticas, portanto pessoas morais) — recorde-se que em agosto desse mesmo 2005 as forças armadas do Uruguai pediam desculpas à nação por seus crimes e declaravam-se prontas a reconhecê-los... E assim, vinte anos depois, como no romance de Alexandre Dumas (o homem é um animal poético, sugere William Hazlitt, e delicia-se na ficção1), uma pergunta natural foi feita: o que de fato mudara nesse tempo? Pergunta aberta em leque sobre vários domínios, a cultura não o menos relevante deles. O que havia mudado na cultura “desde o fim da ditadura”, queriam saber os suplementos culturais dos jornais. A tendência inercial para a formulação da resposta foi tomar a pergunta sob o ângulo em que por hábito se considera a cultura nos estudos de cultura e na teoria e prática da política cultural: o ângulo de suas linguagens formais e de seus formatos mais óbvios e facilmente manipuláveis: o cinema, as artes visuais, a música, a TV, a cultura “popular”, a literatura. Que mudara nessa cultura, em cada uma delas? Algo. Não muito e não necessariamente para melhor, ou para pior. Mas, havia outra esfera da cultura a tratar. Que mudara na célula-tronco da cultura, que mudara no grande desenho da cultura, na linha do ar da cultura, no espírito do tempo cultural, essa coisa que não existe e que no entanto está aí, sempre fantasmal, sempre incidente e reincidente? Discutir a questão da cultura pelo ponto de vista de suas linguagens específicas, estimulante e válido como é, seria individuar as transformações inscritas na lógica de um certo quadro fechado e auto-referencial, por isso de algum modo evidente, sem tocar na questão de fundo, a que de fato interessaria ao momento simbólico. Desse ponto de vista mais aberto e ao mesmo tempo mais arqueológico — pois se tratava de descer um pouco abaixo da evidência, de passar para os bastidores — havia de fato ocorrido uma The Pleasure of Hating; Londres,Penguin Books, s.d.

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grande mutação cultural que, mesmo não se originando no país, lhe dizia tanto mais respeito em virtude não só de nosso recente passado totalitário como da própria data sobre a qual se queria meditar. E transformação que, mesmo surgindo lá fora, aqui também se manifestara. Seria, de resto, um pouco especioso vasculhar o terreno em busca de um traço nacional específico de uma mudança desta cultura num momento em que a rede cultural global já se tecera, para o pior (que existe) e para o melhor (que existe também). Refiro-me ao surgimento ou, em todo caso, à reafirmação definitiva da idéia e da prática da sociedade civil. Em 1º de setembro de 1971, quando no Brasil atravessávamos o mais obscuro e terrível período da ditadura — época do bárbaro “Brasil ame-o ou deixe-o”, momento em que mais uma vez muitos acreditamos que a única saída era mesmo a do aeroporto —, em Vancouver, Canadá, um grupo de ativistas lançavase ao mar num velho barco pesqueiro. A missão que se haviam atribuído era a de “dar testemunho”, como disseram, de um teste nuclear subterrâneo a ser realizado pelos EUA ao largo de Amchitka, ilha da costa oeste do Alaska, região propensa a terremotos. Nascia naquela iniciativa a mais forte e emblemática das organizações da sociedade civil, das organizações não-governamentais, as ONGs, como seriam chamadas: a Greenpeace. Com ela, não era uma organização em particular que surgia, mas algo que era ela mesma e algo bem maior que ela mesma: a sociedade civil e a sociedade civil de âmbito mundial. Mais importante: com ela não nascia mais uma entidade, mais uma instituição, mais uma estabilidade, mais uma estrutura: com ela nascia uma dinâmica, com ela nascia o ativismo da sociedade civil, a sociedade civil em processo, a sociedade civil em ação. Greenpeace: no depósito de imagens úteis e inúteis dos que viveram a segunda metade do século passado e, bastante provável, também daqueles que se descobrem como sujeitos da vida nestes inícios de um século radicalmente distinto, destaca-se uma que se tornou emblemática da Cultura do tempo e que como tal ainda sobrevive no próprio site da organização: uma frágil e minúscula embarcação mais ou menos pilotada por um punhado de pessoas lutando para manter-se à tona num mar em tudo adverso. Imagem eloqüente de si mesma e de tanta outra coisa. Um minúsculo bote às vezes ao lado

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de um enorme e ameaçador navio-tanque, outras vezes circundando uma corveta armada pronta para o disparo. A foto da tripulação daquele primeiro barco da consciência ecológica mostra o nome Greenpeace inscrito numa grande vela logo acima de um signo hoje um tanto desusado: o Paz e Amor da geração hippie dos anos 60 ainda não findos, empenhada na resistência à Guerra do Vietnã e na busca de uma real outra vida, um verdadeiro outro mundo. As cabeças barbudas e cabeludas de vários daqueles tripulantes jovens (e não tão jovens) reforçavam o significado do gesto e do que estava em jogo. E o modo como esse jogo estava sendo jogado era bem o da sociedade civil que nascia: incerto, errático mas persistente e generoso, como de outro modo descreve uma daquelas pessoas soltas no mar, Robert Hunter, co-fundador do grupo. Quando estavam a meio caminho do ponto de destino, as Ilhas Aleutas, com o objetivo não apenas de relatar o que se passaria no teste nuclear mas de impedi-lo de acontecer, Richard Nixon, presidente dos EUA à época, anunciou o adiamento do teste em um mês. A repercussão da notícia entre os viajantes históricos foi desmoralizante: muitos não mais tinham dinheiro e outros já chegavam ao fim das férias solicitadas para entregar-se à causa. Ali estava a sociedade civil: um punhado de amadores que faziam o que faziam por amor à causa. Amor à arte. Não eram profissionais do protesto. Menos ainda profissionais da política. Recorriam a seu tempo livre — quer dizer, à cultura, como predominantemente entendida pela política cultural da primeira metade do século XX: a negação do negócio, o ócio. E recorriam à negação do negócio não apenas para pensar o mundo mas para agir concretamente sobre ele. Uma poética contemporânea do concreto. Do concreto mais contemporâneo. Com essa iniciativa, aquelas pessoas da Greenpeace transformavam-se em contemporâneos filosóficos e, ao mesmo tempo, em contemporâneos históricos de seu presente. Essa dupla condição necessária ao homem moderno aparece em Marx, que se queixava de que seus contemporâneos alemães não eram contemporâneos históricos de seu presente, apenas contemporâneos filosóficos dele — como tantos ainda hoje, e aqui, a começar dos que se sentem tão contemporâneos filosóficos do presente... Este é um dos conceitos marxistas ainda resistentes em sua operacionalidade e pertinência.

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Contemporâneos filosóficos do presente porque faziam uma análise teórica adequada do vivido e porque encontravam uma resposta teórica pertinente para o problema. Contemporâneos históricos do presente porque encontravam os meios para pôr em prática a solução escolhida, para transformar a análise em iniciativa. A iniciativa do Greenpeace, como havia sido rebatizado o barco para a ação, não foi um processo tranqüilo e não esteve isento de alguns dos mesmos inconvenientes que a organização nascente e aquele grupo concreto de pessoas queriam superar as dificuldades do processo precisam ficar evidentes, inútil romantizar a maior transformação cultural do último quarto do século XX. Como o mesmo Robert Hunter reconheceu2, muita coisa saiu errado. Chegou a escrever que tudo saíra errado. Um excesso crítico, esse seu; erro de perspectiva: faltou-lhe, acaso, no momento em que assim escreveu, uma visão mais ampla do que se passara e que não se reduzia àquela ação em si: o processo, para a história, foi mais relevante que o ato singular por eles realizado, embora aquele não houvesse sido de modo algum insignificante. Mas, Hunter descreve como “tudo deu errado” e suas palavras são emblemáticas para a situação mais ampla que quero discutir em continuação. Disse Hunter que o grupo “quase nunca conseguiu seguir na direção que queria seguir ou estar no lugar em que queria estar”. E reconhece que as pessoas discutiam asperamente entre si a respeito desse problema e de tudo. Reconhece que, também naquele grupo que queria “supostamente salvar o mundo”, tudo acabava se resumindo a uma questão de disputa pelo poder, um conflito de egos, uns e outros agarrando-se mutuamente pela garganta, o grupo dividido por um dilacerante conflito interno. Trinta anos depois, prossegue Hunter, Jim Bohlen, o comandante da operação, por dizer assim, reconheceu que, pelas costas dos demais, instruía o capitão, e dono da embarcação na vida real dos negócios, para que seguisse para tal destino e não outro, ou fizesse isso e não aquilo. Hunter admite que, como Bohlen era quem em última análise pagara pela iniciativa e a tornara possível, tinha até o direito de fazer o que fizera. Mas, acha que Bohlen deveria ter deixado claro que a ação de protesto do Greenpeace estava sendo conduziThe Pleasure of Hating; Londres,Penguin Books, s.d.

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da ao velho estilo da estrutura hierárquica de poder, em vez de apresentá-la como o experimento radical de autogestão (conceito insistente da época, para desgosto da direita e da esquerda burocrática) que se supunha ser. Hunter admite que Bohlen pode até ter salvo a vida do grupo com as decisões isoladas que tomava depois que, findas as discussões do dia e decididos os passos seguintes, cada um seguia o caminho de seu catre individual no pesqueiro enferrujado. Mesmo assim, a questão era aquela: as decisões também ali, também naquela ocasião, eram tomadas pelo líder e escamoteadas dos demais ou disfarçadas ou reveladas somente aos poucos à medida que isso se tornava inevitável. E isso, naquele momento como depois, feria a sensibilidade radical de Hunter — embora reconhecesse o capital humano de Bohlen que, no passado, havia combatido Rommel no deserto africano e resistido às ordens da RAF, força aérea inglesa, para bombardear os grupos seguidores de Ghandi. Bohlen estava, como Hunter admite, tão à frente do grupo em termos dessa coisa elusiva, indefinível e acima de tudo incomunicável que se chama experiência, experiência de vida e experiência da morte, que provavelmente teria conseguido controlar toda tentativa de motim que pudesse deflagrar-se na ocasião buscando contestar sua autoridade autoconferida. Quão atual tudo isso é: o grupo aparentemente decide quando na verdade um ou alguns, depois, dão o rumo real a ser seguido; aparentemente o grupo decide mas quem manda de fato é quem controla o dinheiro; aparentemente o grupo decide, mas a estrutura de comando é e permanece vertical; o grupo aparentemente é unido, mas as facções digladiam-se pelo poder e, last but not least, tudo se resume exatamente a isso, uma questão de poder, e desse poder vertical embora o discurso de consumo seja o da horizontalidade de uma planície imaginada, ou do planalto. E a esse quadro se voltará na segunda parte deste ensaio. O reconhecimento de que assim foi como se passaram as coisas com o primeiro grupo da Greenpeace não deve ofuscar o significado maior da iniciativa: a ascensão, emblemática embora, da sociedade civil ao papel de ator protagonista do cenário político. Mundial e em seguida brasileiro. “Em seguida” porque em 1971 ainda vivíamos, aqui, no clima ambíguo pós-Copa do Mundo de 70 e do “milagre brasileiro” promovido pela ditadura

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antes do crash do petróleo que viria logo depois. Uma ditadura forte, capaz de controlar quase tudo e que estava longe de ter esgotado seu ciclo de vida. Mas, a iniciativa da Greenpeace em Amchikta foi reconhecida também pela sociedade civil brasileira que, mesmo com atraso, começou a seguir os passos da sociedade civil mundial, no embalo da globalização que a internet logo viria potencializar, numa situação em que os sinais sociais todos se copiam e se propagam mais rapidamente: os positivos, como a auto-organização da sociedade civil, e os desprezíveis e aterradores, como o terrorismo. Sociedade civil é uma expressão de sentido nem sempre claro e incontrovertido por aqui, naquelas décadas finais do século XX e mesmo agora. Durante a ditadura, “sociedade civil” era usada freqüentemente com o vago sentido de algo que se opunha ao governo militar. Por vezes e sob certos aspectos, havia razão para que assim fosse. A cínica fórmula “manifestação cívica” e outras dessa mesma família de idéias feitas na verdade sempre significaram uma única coisa neste país: manifestação de sentimentos militares, manifestação organizada pelos militares, manifestação do culto militar, manifestação enquadrada pelo militar e pela idéia do militarismo, como os desfiles de tropas e carros armados no Dia da Pátria e as cerimônias de hasteamento da bandeira nacional no começo do dia escolar (que, perversamente, no início de 2003 o governo federal recém-eleito tentou ressuscitar3). Cívicas, quer dizer, militares, como eram, também, aquelas cerimônias de que as crianças tinham de participar nos estádios de futebol nessas mesmas datas, depois de treinadas para executar movimentos de uma “ginástica rítmica”, na verdade marcial, não raro ao som de uma composição nacionalista-populeira de Villa-Lobos, resquício de um Estado Novo fascista que não terminava e não termina de acabar. Todas essas eram manifestações ditas “cívicas” quando de fato eram, antes de mais nada, militares. No limite, “manifestações políticas”, numa corrupção total da idéia mesma do que seja civil. O que talvez tenha ficado claro quando a ditadura de 64 encaminhou-se para seu final e, mais ainda, em seu pós-final, foi que “soTambém no Japão, em 2004, o governo procurou tornar obrigatória a execução do hino nacional toda manhã, ao iniciarem-se as aulas. Vários professores que se recusaram a cantá-lo, por terem viva a memória do 3

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ciedade civil” é na verdade uma expressão formulada em oposição, não a um regime militar especificamente, mas à sociedade política como um todo, da qual o sistema militar é parte e que ele reforça à exasperação quando toma o poder. De um lado está a sociedade política, com o Estado e seus instrumentos, corporações e aparelhos, entre eles os partidos políticos (e isto se deve destacar: os partidos políticos, numa cultura política como a brasileira, fazem parte do Estado, ao qual representam, e não da sociedade civil, que manipulam). De outro, a sociedade civil. Essa é a idéia central da sociedade civil: a sociedade que se distingue da sociedade política, aquela que a esta não pode ser resumida, aquela que com esta não se identifica e que a esta se opõe sempre e cada vez mais, o que pressupõe uma sociedade civil que cada vez mais se confronta com o próprio Estado. A sociedade civil ergue-se também contra o mercado, é verdade, e Greenpeace o fez mais de uma vez. Mas está fora de dúvida que a primeira motivação para a existência da sociedade civil é sua oposição ao Estado4, tal como fez aquele grupo em 1971. E isso, quer porque o Estado se omite ou se mostra incapaz de levar adiante suas tarefas básicas5, quer porque procura meter-se ali de onde deveria estar ausente. Por certo havia interesses industriais, quer dizer, em princípio civis, por trás da corrida armamentista estatal que levou aquele punhado de pessoas a lançar-se ao mar numa incerta embarcação para fazer frente ao mais poderoso instrumento de destruição frenético populismo nacionalista da época da Segunda Guerra Mundial, enfrentaram ameaças de demissão, algumas consumadas. Um pouco por toda parte, aproveitando-se dos receios provocados pelas incertezas econômicas atuais que promovem as emigrações em massa, um nacionalismo xenófobo de direita e um populismo arcaico de esquerda se dão as mãos em defesa de uma identidade passadista e ressuscitam práticas nacionalistas que se consideravam tranqüilizadoramente sepultadas. 4 Ver, a respeito, o ainda sempre sugestivo e sempre pouco lido A Sociedade Contra o Estado, de Pierre Clastres (São Paulo, Cosac & Naify, 2003). 5 Como no desastre de New Orleans sob o impacto do furacão Katrina, numa situação que, de resto, demonstra como é assustadoramente delgada a pele da cultura contemporânea de que habitualmente trata a política cultural, a educação e a filosofia – pele que o Estado, mesmo o mais poderoso do mundo, não pode e não poderá nunca sustentar sozinho.

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da história, num embate confronto em tudo épico. Aquele momento, de Guerra Fria e de guerra bem quente no Vietnã, colocava-se sob a égide, como se dizia, do “complexo industrial-militar”, expressão acertada da qual no entanto um componente deveria deixar de aparecer em filigrana para assumir o lugar que lhe cabe sob os holofotes: o Estado, com cuja presença se perfaz o complexo que de fato predominava e predomina ainda, nestes tempos de George W. Bush, Dick Cheney, Iraque e a empresa-polvo Halliburton ou de suas versões caseiras envolvendo o governo, os fundos de pensão e tanta outra coisa ainda menos mencionável. Não haveria complexo industrial-militar sem o Estado, e era contra o Estado, tanto quanto contra o Mercado mas ainda mais fortemente contra o Estado porque era e é o Estado o instrumento do Mercado6, que a sociedade civil em sua forma contemporânea emergia há três décadas. É esse o momento cultural simbólico que marca o instante em que se começou a romper, em que cada um de nós começou a romper, apenas começou a romper, o mais forte obstáculo epistemológico enfrentado pela sociedade moderna e contemporânea na busca de si mesma: aquele que se traduz na idéia de que a sociedade existe para o Estado, que o Estado é o centro de tudo e que nada se pode fazer fora dele, inclusive, o que seria cômico não fosse trágico, quando o alvo a atingir for o mercado. Fora da Igreja não há salvação, se dizia antes. Fora do Estado não há salvação, se disse e se insiste na modernidade. Não é assim, e a iniciativa do Greenpeace foi o primeiro sinal na direção da construção da sociedade cívica em oposição à sociedade política. Antes da polis e para muito além dela está a civis, que a polis moderna e contemporânea tenta controlar, instrumentalizar e esgotar. Essa foi a grande transformação na Cultura nesses 20 anos que cobrem a distância entre o dia de hoje e aquele 1985 indicador do começo do fim da mais recente ditadura no país. Transformação na Cultura ou — uma vez que a cultura não é mais um substantivo e sim, agora, um adjetivo, portanto mutável e declinável como mudam

Em O Direito à Cidade, de 1967, Henri Lefebvre mostrava como o Estado se

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e se declinam os adjetivos — transformação no cultural7, transformação nessa dimensão ampliada que é o leito de fundo pelo qual fluem as demais orientações culturais localizadas, como o cinema, a literatura, o teatro. Uma transformação do porte daquela que marcou o fim da monarquia e a ascensão da república como regime de governo, ou dessa outra que assinalou a ascensão do Estado-nação e a decadência das cidades ou regiões ou comunidades isoladas atuando, se tanto, em coligações instáveis e conflitantes entre si, das quais a questão basca, na Espanha, é um exemplo persistente. Uma transformação equivalente àquela que decretou o fim da escravidão e a consagração da igualdade de direitos entre os cidadãos — embora nem a monarquia, nem as comunidades interiores em conflito com a federação, nem a idéia da escravidão tenham desaparecido de todo. No entanto, caso se possa dizer, com Hegel, que a Revolução Francesa marcou o fim da história porque o ideal da liberdade foi inscrito no programa político da humanidade (o valor filosófico da liberdade foi então enfim traduzido em prática histórica); caso se possa dizer, com Hegel também e tantos outros, que a humanidade chegou ao fim da arte (ou que a arte chegou ao fim de sua história nesta humanidade) no momento em que a arte pôs em prática todas suas possibilidades (com o dadaísmo, para alguns; com o Suprematismo de Malevitch, para outros; com o abstracionismo informal para uns terceiros — o que mostra como seria válido um estudo que se intitulasse A segunda morte da arte e um outro que se chamasse A terceira morte da arte...), talvez se possa dizer que a noção da morte do Estado é cabível e que a data desse acontecimento em tudo e por tudo faustoso é, definitivamente, 1971, quando de modo mais do que apenas simbólico se faz a passagem da prática da cidadania passiva (a mais comum, essa que existe no Brasil, por exemplo) para a noção e a iniciativa da cidadania ativa, simbolizada no Greenpeace. Claro, a liberdade ainda não está em vigor em boa parte do mundo, mesmo nesta época dita de globalização, e não estará sendo exercida em sua plena totalidade talvez em lugar algum, a começar por este país Brasil. Mas, o que se entende por fim da história sob Appadurai, Arjun, Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis, Univ. of Minneapolis Press, 1996. 7

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esse aspecto é que a idéia de liberdade havia finalmente aflorado à superfície do programa político no século XVIII, sendo o restante — um enorme restante, é verdade — uma questão de ampliação e implementação do projeto. Do mesmo modo, a arte morreu em algum momento do século XX (Hegel insistia que ela já morrera em seu tempo), mas, certamente, a arte continua a desdobrar-se e a explorar seu leque de combinatórias — até o instante em que eventualmente ficar claro que uma outra idéia de arte é possível, quando então sua história recomeçará. E o mesmo se dirá do fim do Estado visto sob o prisma da emergência da sociedade civil. O século XVIII foi o momento da declaração dos direitos humanos; o século XX, no dizer de Norberto Bobbio ao dar título a um livro seu lançado em 1990, marcou-se como A era dos direitos. A rigor, pelo menos do ponto de vista dos países subdesenvolvidos como o Brasil, esta tem sido, antes, A era da expectativa dos direitos — porque, em termos de denominação da era, talvez a razão penda mais para o lado de John K. Galbraith, que a chamou de A era da incerteza, ou para a parte de Anthony Giddens, que a nomeia A era do risco. É possível, em outras palavras, que à era da declaração dos direitos humanos (século XVIII) siga-se uma era da expectativa de direitos (século XX) e, quem sabe, com muita sorte, uma era realmente dos direitos humanos em algum momento tardio do século XXI. De modo análogo, no caso da sociedade civil o século XX assinala o lançamento de uma declaração da sociedade civil que em algum momento tardio do século XXI poderá enfim dar seu nome pleno a uma era — não com o desaparecimento, improvável, do Estado mas, sem dúvida, com sua redução à condição de instrumento de trabalho da sociedade civil. E está claro que a era da sociedade civil só advirá quando a era dos direitos humanos enfim se afirmar, e vice-versa. Não se costuma ressaltar, porque não costuma interessar, que os direitos humanos foram proclamados no pós-Segunda Guerra Mundial para fornecer aos indivíduos algum instrumento de defesa contra o Estado, o que significa que apenas quando a sociedade civil não apenas controlar mas for o Estado, orientar diretamente o Estado, e não o contrário, os direitos humanos efetivamente se afirmarão. Essa, sem sombra de dúvida, é a transformação central na Cultura, no cultural, no paradigma da cultura, nos nossos 20 anos: a

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idéia de que a sociedade civil é viável e é para já, não para um futuro político que nunca termina de chegar e que ninguém mais, justificadamente, está disposto a aguardar. É uma transformação cultural antes de ser uma transformação política, embora por certo uma transformação de ressonância também política. E é uma transformação cultural por fazer-se não só contra a sociedade política como, e de modo particularmente significativo, ao lado da sociedade política e apesar dela. É uma transformação cultural por não ter nascido no interior da sociedade política8 e por não ter proclamado que primeiro tomaria a sociedade política para em seguida transformá-la por dentro e eliminá-la, como disseram e dizem garantir revolucionários de diferentes cores ideológicas: o que se verifica sempre é a tomada do Estado para perpetuá-lo e nele perpetuar seus novos detentores. A sociedade civil emergente em 1971 não cometeu, pelo menos de início, esse monumental e trágico erro histórico — se de fato for apenas erro e não pura hipocrisia e cinismo. (Nunca será demais, aliás, recordar que revolução quer dizer volta atrás, assim como revolucionários políticos são aqueles que, como escreveu Lampedusa, mudam alguma coisa apenas para que tudo fique como era antes.) Indício dessa total separação entre sociedade civil e sociedade política é que muitas ONGs, formato privilegiado no qual a sociedade civil por ora se agrupa e se apresenta, recusam apoios econômicos da sociedade política, da qual o Estado é parte. Pelo menos assim procedem aquelas ONGs que se situam num certo núcleo duro, autêntico e coerente da sociedade civil. É verdade que dinheiro não tem origem marcada, nem destino certo: todo dinheiro é dinheiro de tudo, todos o geraram embora de todos não seja. Faz diferença, porém, a origem mais imediata dos recursos que chegam a uma autêntica ONG que optar por relacionar-se, quando se trata de dinheiro, apenas com a sociedade civil. E se fosse necessário um indício adicional da culturalidade dessa transformação, o moto da Greenpeace a confirma: A idéia de que tudo é política ou de que a política inclui a cultura é uma falácia. A cultura, o cultural é o leito antropológico mais extenso e mais amplo do qual apenas uma parte é ocupada, requerida ou, freqüentemente, seqüestrada pela política. 8

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Greenpeace existe porque esta frágil Terra merece uma voz. Ela precisa de soluções. Precisa de mudanças. Precisa de ação. É um programa de vida, por dizê-lo assim, notavelmente isento do jargão político e ideológico dominante ainda hoje e mais ainda ao tempo em que a organização se criou. Não há, nele, referências ao social, menos ainda a classes ou à nação. Não fala em Estado, nem em civilização, nem menciona uma perspectiva filosófica em particular. É em tudo leiga. Sequer interpelativa se mostra: não usa o vós (“Uni-vos!”), não recorre ao verbo exigir, não estabelece uma tensão entre um nós qualquer e um eles contra o qual é preciso erguer-se. E não menciona um programa definido. Dificilmente se poderia ter exemplo de proposição mais aberta e congregativa. Nesse sentido, exatamente por isso, sendo apenas aparentemente uma moção em favor da Natureza, é não apenas o mais amplo como o mais bem sucedido programa de ação cultural da história. E com essa outra peculiaridade histórica: promovido pela sociedade civil e marcando a entrada em cena da cidadania ativa, a única que interessa. Uma radical alteração no paradigma cultural — que tardou, não tanto em chegar ao Brasil, porém em começar a firmar-se no Brasil. Mas o fez, ou faz, e de tal modo que merece sua indicação como a mais importante mudança no modo de entender-se, no país, a organização da vida humana — ela e não qualquer outro fenômeno eventual, como o próprio fim da ditadura (de algum modo inscrito na lógica política do processo), a criação de algum novo partido político (inscrita na lógica política mais tradicional) ou outro. Nada está resolvido, porém, nem tudo é um mar de rosas. A conformação de um novo paradigma não significa, por si, uma mudança imediata e duradoura. A Revolução Francesa de 1789 inscreveu ou reinscreveu a liberdade como valor central do programa político. A própria revolução, porém, violou, oprimiu e matou em nome da liberdade. A enunciação de um princípio não equivale à sua implementação. A idéia de cultura no sentido aqui privilegiado quando se fala em mudança de paradigma — a cultura como ator crítico da reformulação dos significados sociais e como amplo e genérico movimento do pensamento e da sensibilidade no sentido de um esforço para a proposição de uma qualidade de vida diferente e abrangente

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— emerge durante a Revolução Industrial9. E ao surgir — com esse sentido que irá aos poucos, paradoxalmente, tanto se refinar quanto degradar — essa idéia já encontra firmadas duas outras histórias que se apresentarão como seus maiores adversários e constituirão o centro da história da modernidade: as de poder e ideologia, intimamente conectadas no limite reduzíveis: a história da disputa política pelo poder, a história dos interesses políticos particulares por trás das alegações de que se está procurando o bem e o bom. A historia do exercício vertical do poder. A história da luta para conquistar o poder e nele manter-se pelo mais longo prazo possível, de tal modo que a primeira ação quando se o alcança é viabilizar o que for necessário para nele manter-se. A expressão a arte pela arte recobre uma idéia nem sempre unívoca e que recebe diferentes contestações. Não há dúvida, porém, que a expressão o poder pelo poder é auto-explicativa e de evidente sentido. Poder e ideologia, tratados assim como noções individuais apenas por tática argumentativa, são duas das heranças do projeto da modernidade que não se cumpriu. O projeto não se cumpriu mas a herança restou. Herança maldita, a única de fato maldita. Da qual livrar-se implica uma tarefa hercúlea, talvez sobre-humana, sobremítica, acaso inviável. E, mesmo assim, tarefa a inscrever-se na agenda prioritária da Cultura, entendida não em sentido conservador (a cultura como a soma de tudo que foi, que é agora e que deve continuar sendo assim como é), mas em sentido propulsor (a cultura como dinâmica, como ação – algo que a arte na verdade tem mais condições de fazer que a cultura, mas essa é quase uma outra história...) Voltemos por um instante ao relato eloqüente de Robert Hunter: os membros da equipe que se dirigiu a Amchikta logo se engalfinharam numa disputa pelo poder porque a ação, que deveria guiar-se pelo consenso de tal modo que cada participante tinha a possibilidade de veto contra qualquer decisão tomada, era decidida e executada de acordo com as normas da “tradicional estrutura hierárquica de poder”, a estrutura vertical; Bohlen — o operador da ação, na terminologia ultracontemporânea desses meses do inverno político Raymond Williams, Culture and Society 1780-1950. Londres, Penguin, 1961. 9

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brasileiro de 2005: aquele que controla o dinheiro, que propicia o acesso ao dinheiro — à noite desfazia a trama acordada durante o dia, como a impenitente tecelã da lenda, e dava ao capitão do pesqueiro o rumo a seguir, rumo incerto porque nunca estavam onde deveriam estar, nunca iam aonde queriam ou pensavam ir. Luta pelo poder, impossibilidade de alcançar-se o consenso, reafirmação da figura do comandante que sabe, desvio de rumo. E se de fato a ação da equipe era desinteressada e amadora, pois feita por amor à causa e nos momentos de ócio, negando todos os interesses pessoais e políticos, havia pelo menos um entre eles que fazia o que fazia por uma motivação das mais velhas: dinheiro. O capitão e dono da embarcação aceitara a tarefa de levar aquele grupo à zona de teste nuclear de Amchikta por estar “economicamente desesperado, algo sobre o que nunca se falou”, escreve Hunter. E esse hippie inovador que foi Robert Hunter observa ainda como lhe pareceu “sugestivo” recordar, depois dos fatos, o que o capitão do barco fizera e não fizera no momento crítico: no último instante, tirou o barco da zona de perigo, salvou seu instrumento de trabalho, a si mesmo e, com ele, o resto da tripulação. E com isso, continua Hunter, “todos salvamos nossa cara, o suficiente para poder voltar para casa”. Essas contradições, dilemas e impasses, no entanto, compõem o processo, em vez de invalidá-lo. A viagem a Amchikta é passado. De regresso a esse futuro, 2005, inverno brasileiro de 2005, recoloca-se na tela a imagem da questão emblemática para a redefinição da cultura política do país na perspectiva da transformação no paradigma cultural iniciada no último quarto do século XX a ser agora reafirmada: a crise de um partido político específico, o Partido dos Trabalhadores. Crise de um partido, crise desse partido singular, sem dúvida, e também crise da cultura política do país, e como conseqüência crise do Estado e da noção de Estado aqui, embora não só aqui. Crise cuja pior conseqüência seria, proclamam as vozes politicamente corretas dos diferentes matizes políticos, o aprofundamento da descrença nos partidos políticos e na política, de conseqüências, continuam, “imprevisíveis”, quer dizer, catastróficas. Não é assim. Primeiro, já deveria estar claro que essa não é uma conseqüência da crise mas um de seus motivos, embora motivo e conseqüência se realimentem em círculo vicioso. Segundo,

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nesse quadro, esta nova crise — porque é disso que se trata: de mais uma crise, da crise mais recente — e a alegada e crescente descrença nas instituições políticas (mais fictícia que real, infelizmente) devem, antes, ser comemoradas como outra oportunidade que se tem para terminar de vez com a real herança maldita, a verdadeira herança maldita, a maior delas, tão grande que no cotidiano quase não dá para vê-la, tão grande que alguns não podem vê-la: essa herança moderna, vinculada às duas anteriores, que é a crença cega no Estado e nos seus profetas, os partidos políticos. Crença cega é pleonasmo: a crença por definição sustenta-se em dogmas, aquilo que não pode ser demonstrado nem contrariado. Com base nessa crença, os profetas sucedem-se no púlpito apresentando-se, cada um, como os verdadeiros portadores da verdadeira fé. As disputas e conflitos para saber qual é o messias mais genuíno servem apenas para reavivar a moribunda fé institucional moderna: que o Estado é a salvação e que fora dele não há solução. Na verdade, se a crise atual aprofundar a descrença nesse aparelho, tanto melhor. Dessa perspectiva, a reforma política que se anuncia para antes ou depois do fim desta crise — como se, no quadro da sociedade política, ela pudesse ter fim — é a perpetuação do mal que se pretende corrigir. Um engodo. Reforma política é gasolina no fogo. A reforma que se apresenta como urgente é a reforma civil, a reforma da civitas, a reforma da sociedade civil. A reforma da cabeça, da imaginação, dos músculos e nervos da civitas — para terminar de colocá-la no caminho que ela já abriu. Reforma adequada para enfrentar a crise atual, que é a crise da modernidade, a crise dessa herança da modernidade: a crise do poder e da ideologia política, a crise que é a ideologia política e a crise que é o poder e o poder concentrado na sociedade política. A modernidade começou com uma crise do poder e com a tomada do poder — não para acabar com ele mas para tomá-lo e exercê-lo em toda sua extensão e profundidade, como sempre depois de vitoriosas as revoluções e vencidas as eleições. Reforma política é armadilha. Apenas a reforma da civitas rompe esse círculo vicioso da modernidade. Dessa modernidade no impasse só se sai com a reforma da idéia do papel que a sociedade civil deve ter na administração da coisa pública, reforma que possibilite passar da enunciação da preeminência da socieda-

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de civil à sua prática. A reforma que interessa, a reforma que vale, não é a da mudança (minúscula) de uma forma de representação por outra, muito menos de um partido por outro, de uma ideologia por outra, mas a da substituição da representação pela apresentação: aqui me apresento para fazer a minha parte (algo tanto mais viável agora, com a internet que dispensa viagens aos planaltos centrais). Como fez o Greenpeace histórico. O espanto e a indignação diante dos escândalos atuais, previsíveis como previsíveis são os elementos da tabela periódica de Mendeleiev, são tão inaceitáveis quanto os próprios escândalos. São, no limite, hipócritas, isto é, como sugere a origem grega da palavra, fingidos: uma encenação. São falsos, são pretexto. Se a indignação fosse pra valer, a platéia deixaria de ser platéia. Como observou Lima Barreto, o Brasil ainda não tem povo, tem público. Essa não era peculiaridade do Brasil de Lima Barreto, nem do país atual, nem apenas deste país. Se a indignação fosse para valer, as pessoas sequer entrariam nesse teatro, nem ficariam a exigir outro dramaturgo e outro ator: decretariam o fim da encenação. Uma conquista da modernidade, no momento em que ela se fundou, foi afirmar o Estado — e o Estado leigo. Na linha de desenvolvimento da mudança de paradigma cultural, o que se pode esperar é que essa herança se aprofunde, que a cultura política seja ainda mais radicalmente leiga: de política, a cultura precisa passar a ser cívica. Não há ilusões: o Estado continuará. Mas é cabível laicizá-lo, isto é, despolitizá-lo, abri-lo à civitas. A sociedade civil tem de acentuar seu movimento inercial e mexer-se ainda mais, fazer o que tem de fazer, ocupar-se da coisa, apresentar-se: aparecer. Objeção imediata: a luta pelo poder continuará. Sim. Continuou no pesqueiro que se chamou Greenpeace. Mas os mecanismos para delimitá-la, se não neutralizá-la, serão outros. E nem todos são tão inúteis quanto os fornecidos pela atual cultura política. Essa tríplice herança da modernidade — Estado, poder e ideologia — constitui o núcleo do inerte cultural da modernidade. Esse inerte cultural compreende a cultura objetificada (do qual de certo modo é um outro nome) formada por essa ampla esfera na qual estão todos os vetores culturais, incluindo-se aqueles que compõem a cultura entendida em sentido estrito (os diferentes modos ou linguagens culturais, o patrimônio, os valores); cultura objetificada que é

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muito mais ampla que a cultura subjetiva de cada um e à qual não apenas se opõe como, freqüentemente, circunscreve e sufoca. E que é ao mesmo tempo, paradoxalmente, passível de ser superada pela cultura subjetiva porque aquela é estática e esta, dinâmica. Essa cultura objetificada10 é aquela que, nos termos da cultura strictu sensu, está nos museus e bibliotecas e que, no campo da cultura vista como esforço no sentido de redefinição da qualidade de vida, cimenta-se (é bem o termo) sobre as noções de Estado, ideologia e poder. É esse inerte cultural que faz com que a política propriamente dita seja vista como uma disputa na qual necessariamente um dos lados tem de perder, e não apenas perder como ser eliminado, concepção das mais primitivas e totalitárias — herança pré-moderna — do que seja a política. Esse inerte cultural é o responsável pela história como pesadelo da qual não se consegue acordar e que pode de algum modo identificar-se com a noção de demônio político tal como o descreve o escritor e ensaísta Pascal Bruckner11 ao falar da França atual e referir-se à existência ou persistência, naquele país, de uma esquerda neobolchevique “que ainda sonha com a grande noite do massacre anticapitalista” e de uma direita nacionalista e xenófoba para a qual os inimigos a abater são os imigrantes do leste, do Oriente Médio e da África tanto quanto o novo liberalismo econômico inglês defensor da redução de incentivos à agricultura na União Européia. Esse inerte cultural é ainda aquele da dialética como movimento de eliminação dos contrários e sua superação por um terceiro, processo que nunca chega a seu final por deter-se na fase em que a eliminação do oposto é eventualmente conseguida, quando então o Um inicial vencedor se solidifica em si mesmo. Inerte cultural que não sabe lidar com a idéia de conflito que Georg Simmel e Edward Said defenderam cada um a sua maneira, quer dizer, um processo que pede como política cultural aquela que faz o suficiente para que os opostos se mantenham lado a lado numa situação de polifonia, se não de sinfonia, roçando os ombros e por vezes até mesmo fazendo aquilo que em futebol se chama “jogo legal de ombro” sem se eliminarem. Conflito Expressão que adapto da fórmula “cultura objetiva” avançada por Georg Simmel (Philosophie de l´argent, Paris, PUF, 1997). 11 V. o artigo “The real thing”, em The New Yorker de 22 de agosto de 2005. 10

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no qual Simmel12 via não um fator de atrito e destruição social mas, pelo contrário, de equilíbrio social — Simmel, para quem as negatividades da vida humana, singular e em sociedade, não deveriam ser banidas do horizonte mas sim nele incorporadas e vistas como elemento de estruturação da vida mesma. Incorporadas e não eliminadas, como quer a velha política ou a herança maldita da política. Não há modelos predeterminados para se acabar com essa enorme herança maldita, para diluir esse inerte cultural, para lidar com ele. A reforma política tal como é sempre proposta nos momentos de crise (alteração das regras de representação) não é, porém, um deles. Por certo, que se façam os remendos possíveis na cultura política, pronto-socorro para aliviar o paciente. A real medicina, porém, se houver, está em outra parte: na presença maior da sociedade civil na condução da coisa pública. Mínimo Estado, máxima sociedade civil: esse será o desdobramento lógico da mudança iniciada ao final do século passado, nos 20 anos desde o fim da ditadura aqui neste país, mudança capaz de conduzir à necessária contemporaneidade filosófica e histórica do presente. Isso não significa — como insistem em alegar aqueles que, contrariando Wittgenstein, querem sempre ver as coisas do mesmo ângulo — destruição do Estado-previdência, abertura das portas para o Mercado, abandono das funções precípuas da administração pública. Significa a reforma e a redução da sociedade política e a instalação da sociedade civil no lugar que deve ocupar. Significa reformar, reduzir e ao final eliminar a profissão do político e a política como profissão, perversão da modernidade. Significa, em outras palavras, não mais abrir espaço para os atletas do Estado, como os chama Peter Sloterdijk,13 aqueles que passam a vida treinando, nos circuitos fechados e sem público real dos aparelhos partidários, para se tornar operadores do Estado, para assumir o controle, tomar o poder. Significa propor a política como uma coisa amadora, como na descrição que Robert Hunter fez dos tripulantes da primeira missão Greenpeace. É ainda nesse sentido que a Cultura, o cultural, deve aprofundar sua laicidade, tornar-se radicalmente lei-

Le conflit, Paris, Circe, s.d. En el mismo barco. Madrid, Siruela, 2002.

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ga. O primeiro movimento da laicidade foi a separação entre Estado e Igreja, operação ainda largamente inconclusa. O segundo é a despolitização do Estado, o que implica a superação da herança da noção de ideologia e o esvaziamento da idéia e da prática do poder. Um paradigma cultural anterior foi perfurado na década de 70 do século passado e não apenas de modo filosófico-especulativo. Um pouco mais cedo lá fora, um pouco depois aqui dentro. Nesse processo, um papel mais que decisivo coube ao movimento ecológico. Pode soar estranho que um programa de defesa da natureza surja como o mais decisivo programa de política cultural até agora. Examinado na superfície, o processo da vida humana situa-se, a partir da modernidade, não apenas na forma do conflito entre natureza e cultura como também e acima de tudo, na forma da afirmação da cultura sobre a natureza. A visão pós-moderna do mundo está tratando de reorientar esse desenho de modo a colocar cultura e natureza na situação, pelo menos, de equilíbrio, mesmo que tenso: esperar mais que isso a esta altura é dar sinais de ingênuo otimismo. Mas o espanto que pode ser a proposição do movimento ecológico como estopim de mudança do paradigma cultural não deve perdurar. É que na própria concepção do movimento ecológico está uma questão cultural. Robert Hunter tinha já em 1969, quando co-funda a Greenpeace14, um entendimento seguro do papel central reservado à cultura no processo de transformação da vida e do mundo. Discípulo de McLuhan, desde seus tempos de universitário esse jornalista canadense esteve atento à idéia da contracultura e apostava seu esforço na possibilidade de mudar o mundo por meio do que chamava de media mindbombs, as bombas da mídia de efeito mental ou as bombas da mente de efeito mediático. Morreu em maio de 2005, quando aqui se comemoravam os 20 anos do fim da ditadura, reconhecido como um herói da ecologia. Para além disso, um dia poderá ser visto como marco do movimento de abertura de espaço para a sociedade civil e, portanto, de revisão (já tardia) dos conceitos políticos herdados dos séculos XVIII e XIX. A possibi-

Esse nome veio apenas dois anos depois, quando da repercussão da expedição a Amchikta. 14

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lidade que tem essa bomba de realmente surtir efeito é incerta. Não há qualquer imperativo histórico que torne inevitável a ascensão da sociedade civil ao primeiríssimo plano. Nem que, uma vez lá, ela saiba ir aonde quer ir. As alternativas a ela estão porém gastas. Seja como for, de sua eficácia não há mais dúvidas: num barco enferrujado, aqueles 12 ativistas variadamente hippies (e a conexão entre os movimentos estudantis de 68 e a ascensão da sociedade civil com a concomitante decadência das ideologias e dos partidos políticos deverá ser continuamente sublinhada) desafiaram a maior potência militar do mundo, desencadearam enorme onda de protesto que levou ao fechamento da fronteira entre os EUA e o Canadá pela primeira vez desde 1812, quando da guerra que opôs os EUA à Grã-Bretanha (cujas tropas eram, em mais da metade dos efetivos, compostas por canadenses), provocaram a prazo médio o fim dos programas de testes nucleares e deram início a um forte ativismo em favor do meio ambiente e da paz. Que é possível pensar um programa de ação social que não se perca nas questões do poder, também está claro, como indicam os diferentes movimentos atuais, espalhados um pouco por toda parte, que contestam o poder sem se preocupar em tomá-lo — antes esvaziando-o, como querem as tendências Reclaim the Strets, e Temporary Autonomous Zones (TAZ), entre tantas que se espalham pelas ruas e que ocupam as ondas da internet (o que não inclui, porém, os chamados foros sociais cuja vinculação com a sociedade política, quando não dependência quase total da sociedade política, os coloca em situação oblíqua em relação à sociedade civil como aqui descrita). Caso se considerem esses movimentos demasiado românticos para servirem de exemplo, um caso talvez mais convincente da eficácia da mindbomba que é a idéia da sociedade civil será encontrado no documento intitulado Agenda 21 da Cultura, firmado a 8 de maio de 2004 em Barcelona. Esse documento faz aos governos locais das cidades — uma vez que é na cidade onde tudo se passa, não no país ou na nação, nem no estado federativo, na província ou região — uma série de recomendações baseadas nas contemporâneas noções dos direitos culturais, das quais talvez a mais significativa seja a que vem afirmada em seu artigo 13, que reconhece ser dinâmica a identidade de todo indivíduo. Esse é um reconhecimento que eu

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não esperava, em meu período de vida, ver aceito num documento que, em última instância, é um documento de governos. E que constitui uma segunda quebra formal de um paradigma cultural. A noção de identidades fixas, individuais e coletivas, sempre definidas no passado e desde o passado — integrantes fortes do inerte cultural, exemplo certo de cultura objetificada que desconsidera e imobiliza a subjetiva —, é aquela que sempre foi usada como retórica para justificar não só a ação como a própria existência dos estados nacionais, ação e existência traduzidas nos programas culturais de defesa de uma suposta identidade nacional que, no século XXI, precisa ser revista. Identidades nacionais serviram freqüentemente, senão apenas, para a definição de fronteiras cuja função final, como recorda Cláudio Magris, prêmio Príncipe de Astúrias de Literatura de 2004, é cobrar seus tributos de sangue. Por outro lado, é verdade, a Agenda 21 da Cultura pode ainda ser vista como um último esforço da sociedade política para justificar-se e manter sua posição de controle da cultura, uma vez que é um documento dos governos locais, dos governos das cidades, não da sociedade civil, e cuja redação foi decidida no âmbito de um foro social vinculado à sociedade política, como o de Porto Alegre. Mesmo nessa condição, não deixa de ser significativo do novo espírito do tempo, da nova linha do ar cultural, por mais tênue que seja. A mudança combinada nesses dois paradigmas ainda é incipiente. A sociedade civil ainda se organiza, no Brasil, na pior hipótese, para fazer caridade e, na melhor, para complementar a ação do Estado, para fazer aquilo que o Estado não faz, em vez de fazer no lugar do Estado15. O efeito perverso desta segunda alternativa é desde logo evidente, embora todos parecem fingir não vê-lo: o Estado faz cada vez menos, embora, no caso específico do Brasil, cobre cada vez mais. O real destino desses recursos poupados costuma vir à tona quando explodem os escândalos. Sob esse aspecto, complementar a ação do Estado é a doença infantil da sociedade civil. A primeira alternativa, a da caridade, é da mesma natureza e não é em nada mais estimulante: tende a perpetuar a noção paternalista do favor, Como defender a si mesma, já que o Estado não o faz; exemplo, as organizações de defesa do consumidor. 15

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quer a praticada pelo Estado clientelista, quer a praticada pelas camadas abastadas da sociedade que a ela se entregam por variadas razões, nenhuma muito convincente. Mas, que assim seja e tenha sido até agora não deve ser fator de desestímulo. Também a política cultural tradicional, essa que em termos muitas vezes bisonhos trata de difundir cultura, de levar cultura ao povo, de amparar a identidade, de construir uma socialidade (que se evapora à menor adversidade externa, como mostrou New Orleans), em seus primórdios modernos assumiu a forma de uma ação caritativa; foi o caso da Inglaterra da segunda metade do século XIX, onde os centros culturais (na verdade, centros de arte) que se constituíam para aquelas tarefas assumiam freqüentemente a figura jurídico-administrativa das casas de misericórdia, de mesmo tipo daquelas que por aqui sempre trataram da saúde. Cultura e política cultural eram, nesse início, como programas de Estado, caridade. Isso não impediu que o processo cultural assim iniciado, conduzido com abertura e dignidade e definindo-se apenas como a criação das condições para que as pessoas inventem seus próprios fins, sem dizer quais são esses fins, se desdobrasse no florescimento autônomo e libertário que o século XX apesar de tudo conheceu em sua segunda metade. Se a analogia com o que se passou no campo da política cultural servir de base para a compreensão do que pode suceder no território da cultura política, é lícito depositar alguma esperança na capacidade de germinação do novo paradigma anunciado. Há um pouco ou muito de wishful thinking nessa projeção. Mas, é que o início do século XXI indicou que não há outra saída: no lugar da sociedade política, a sociedade civil; em vez do poder, a solidariedade; e, substituindo a ideologia, a longa conversação da cultura.

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SER DE TODOS OS TEMPOS SEM DEIXAR DE SER DO INSTANTE1 CULTURA E POLÍTICA EM TEMPOS DE BRASIL Marta Porto

Jornalista, pós-graduada em Planejamento Estratégico e Sistemas de Informação, com Mestrado em Ciência da Informação.

O presente artigo tem por objetivo destacar análises que colaborem para uma reflexão sobre este tema, tomando como ponto de partida noções desenvolvidas em fóruns internacionais, especialmente os liderados pela Unesco, uma análise do projeto e resultados públicos de 20 anos de política de incentivos fiscais à cultura no país, um perfil das lideranças culturais que surgem na sociedade civil a partir dos anos 90 e como são absorvidas por esse projeto político em vigor. Na parte final se apresentam algumas propostas desenvolvidas por um grupo interdisciplinar reunido em 2003 com a missão de elaborar propostas independentes para a gestão do Ministro Gilberto Gil, entregue naquele mesmo ano como o título de “documento orientador de política cultural”. Octavio Paz.

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Preâmbulo O Brasil retomou o seu processo democrático há menos de duas décadas, mais precisamente em 1985, com o que nós chamamos de período de transição, passando a contar com eleições diretas só em 1990. Ou seja, somos uma democracia representativa recente que ainda esbarra numa cultura arraigada de privilégios de uma pequena parcela da população. A desigualdade ainda persiste como a principal causa da pobreza e das diversas formas de concentração que o país apresenta — educacional, cultural, econômica, política. As estimativas mais recentes do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas mostram que se o Brasil tivesse uma desigualdade de renda compatível com a sua renda per capita, segundo os padrões vigentes internacionalmente, teríamos 60% de pobres a menos no país. Ou seja: a maior parte das pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza no Brasil não se encontra nessa situação porque o país é incapaz de gerar renda, mas porque internamente há um excesso de desigualdade em relação ao resto do mundo. A desigualdade de renda deriva da desigualdade de acesso a um vasto e heterogêneo conjunto de ativos que constituem a riqueza: educação, propriedade, crédito, conhecimento, infra-estrutura etc. Reduzi-la passa, assim, por democratizar o acesso a esses ativos.

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Há um consenso desde o princípio da década de 90 de que as estratégias de ampliação do acesso à oferta destes ativos têm necessariamente que contemplar um vasto e diferenciado conjunto de atores, compartilhado entre diferentes níveis de governo, entidades da sociedade civil e empresas privadas. Esse consenso vem com o processo de democratização do país, onde surgem vários novos atores sociais que lutam por um espaço público ampliado e por ver atendidas as suas reivindicações. E é exatamente no bojo do processo de democratização do país em fins da década de 80 que começam a ser identificadas novas modalidades de participação social e do exercício da cidadania, transgressoras perante a face política da classe média ou classe trabalhadora sindicalizada. Como o debate sobre cultura, sobre o papel das políticas de cultura, se insere nesse contexto? De uma forma insuficiente, até mesmo reducionista do ponto de vista do vigor das discussões que permeiam a sociedade e do colorido cultural que passa a identificar um sem número de práticas contestatórias nas grandes zonas urbanas brasileiras. Na área da cultura, o debate capaz de recuperar a sua dimensão e importância política foi gradativamente sendo substituído pela insuficiente discussão sobre os mecanismos de financiamento à cultura, através da facilitação do acesso aos recursos privados. Substituímos o essencial pelo acessório e em 20 anos colhemos o fruto da tibieza dessa escolha: a fragilização do sistema nacional de cultura, com ausência de verbas públicas nos órgãos oficiais de cultura, o desmonte de instituições de salvaguarda e memória do patrimônio nacional, a má remuneração ou qualificação dos recursos humanos, mas especialmente a substituição da idéia de acesso amplo e universal a toda a população brasileira, pela ação pautada em “público-alvo”. Cultura e desenvolvimento, cultura e fortalecimento da democracia, cultura e cidadania são temas que começam a despontar com força na agenda política nacional, em debates, seminários, apresentações de documentos de secretarias e fundações culturais a partir dos anos 2000. Um debate tardio, já que 20 anos nos separam da implantação do Ministério da Cultura, em 1985, no bojo da redemocratização do país.

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Mesmo tardio, o debate é bem vindo se vier acompanhado de um senso de análise crítica aprofundado sobre os descaminhos da política pública de cultura adotada no país a partir da implantação do Minc — sua face superficial e promotora de desigualdades — e a necessidade urgente de promover mudanças significativas que acompanhem o desafio maior do Brasil de reduzir suas desigualdades históricas e ser capaz de promover o desenvolvimento eqüitativo. Fica a questão: como pensar a importância das políticas culturais para o desenvolvimento a partir de uma cultura de desigualdades construída culturalmente ao longo da história brasileira? Nesse texto, iremos de forma introdutória destacar análises que colaborem para uma reflexão sobre este tema, tomando como ponto de partida noções desenvolvidas em fóruns internacionais, especialmente os liderados pela Unesco, uma análise do projeto e resultados públicos de 20 anos de política de incentivos fiscais à cultura no país, um perfil das lideranças culturais que surgem na sociedade civil a partir dos anos 90 e como são absorvidas por esse projeto político em vigor. Na parte final apresentaremos algumas propostas desenvolvidas por um grupo interdisciplinar reunido em 2003 com a missão de elaborar propostas independentes para a gestão do Ministro Gilberto Gil, entregue naquele mesmo ano como o título de “documento orientador de política cultural”. Cultura e Desenvolvimento, iniciando o debate A relação entre cultura e desenvolvimento é um desafio global reconhecido pelas Nações Unidas desde 1988, quando foi lançada a Década Mundial do Desenvolvimento Cultural e, alguns anos depois, em 1993, implantada a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, sob a batuta competente do peruano Javier Perez de Cuellar. O primeiro informe da Comissão, intitulado Nossa Diversidade Criadora2, lançou um desafio para a comunidade internacional e para os estados-membros da Unesco: repensar os modelos de desenvolvimento adotados no século XX que conduziram ao empobrecimento das nações, aos conflitos armados, à exclusão social e econôCUELLAR, Javier Peres. Nossa Diversidade Criadora, Unesco, 1997.

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mica e à perda gradativa da qualidade de vida dos países pobres. O dado de referência adotado pela Comissão para fazer frente ao desafio de edificar novos paradigmas para o desenvolvimento no século XXI, é alarmante: se chega ao final do século XX com mais de 1 bilhão de pessoas excluídas do acesso aos bens de consumo primários, à informação e aos benefícios da globalização. A Unesco lança o alerta: “é fundamental dar uma cara humana à globalização, promovendo a paz, a segurança e o desenvolvimento no século XX”. Para alcançar melhores resultados sociais e eqüidade econômica a Comissão Mundial de Cultura afirma ser prioritário sensibilizar os atores sociais, governos e a iniciativa privada a assumir a centralidade política da cultura no processo de humanização dos modelos de desenvolvimento vigentes. Uma centralidade capaz de devolver às pessoas a primazia na construção coletiva das várias formas de sociabilidade, estimulando a criatividade na diversidade e formas não-excludentes de crescimento social e econômico. Atingir uma maior eqüidade no nível mundial, com o objetivo de atenuar e prevenir os danos causados ao meio ambiente e de reduzir a pobreza, é uma tarefa complexa que não pode mais permitir que a cultura e as políticas culturais permaneçam num papel secundário — muitas vezes terciário — de promover a integração do indivíduo à sua coletividade e lhe conferir papel de protagonista na rede intrincada do desenvolvimento socioeconômico. A visão instrumental do desenvolvimento que subestima “a importância do fator humano — a teia complexa de relações, crenças, valores e motivações existentes no centro de toda a cultura“3 propõe um processo perigosamente linear, homogêneo e único que fracassa na tentativa de incluir a diversidade das culturas e experiências, as formas e os tempos próprios de cada sociedade de inventar as suas maneiras de crescimento econômico, social e cultural. A evidência desse esgarçamento social e do esgotamento de um modelo em si excludente reafirma a necessidade de refletirmos sobre as bases das políticas culturais, ampliando suas ambições e suas estratégias programáticas. Nos países latino-americanos essa tarefa se amplia, na medida em que as democracias frágeis e o quadro de desigualdade social CUELLAR, Javier Perez. Nossa Diversidade Criadora. Papirus: 1997, pág.9.

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impõem a construção de pilares políticos capazes de dar início ao processo de transformação das políticas culturais em culturas políticas aptas a enfrentarem as enormes disparidades sociais e os conseqüentes desafios de sustentabilidade. Políticas democráticas que considerem a variedade de necessidades e demandas da população e que propiciem a convivência dessas multiplicidades étnicas, religiosas, de tradições, gostos e sensibilidades. Assim, é importante destacar que requerer a centralidade do papel da cultura no desafio de formular paradigmas de desenvolvimento mais humanos e integrais é em si destacar essa diversidade criadora, multifacetada, polissêmica, que caracteriza a humanidade em toda a sua história. É também destacar a capacidade criadora do indivíduo e das sociedades de reinventarem-se e de propor alternativas próprias de desenvolvimento e de trocas simbólicas, como assinala Bernardo Kliksberg: “As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois latino-americanos está abaixo da linha da pobreza. A situação das crianças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens se encontram numa situação difícil. (...) Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. É quase seis vezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade moderada. Estes dados significam sofrimento humano em grandes proporções.(...) O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósticos feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certas políticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegurados? Por que um continente com recursos naturais privilegiados, com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantidade, com grandes capacidades de produção agropecuária, tem indicadores sociais tão pobres? (...) O pensamento convencional parece ter esgotado sua possibilidade de dar respostas a interrogações como as indicadas. Faz-se necessário recuperar o que foi uma das maiores tradições deste Continente, a capacidade de pensar de forma criativa e por conta própria, aprendendo da realidade e buscando caminhos novos.” 4 (KLIKSBERG,2001) KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e Mitos do Desenvolvimento Social, São Paulo,Cortez, 2001. 4

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A pedra fundamental dessa discussão em torno da interdependência entre cultura e desenvolvimento foi o relato da Conferência de Estocolmo, em 1998, que contou com a participação de mais de 2.400 entidades representativas de governos, organizações intergovernamentais internacionais e não-governamentais, fundações, associações voluntárias e outras entidades civis, além de vários artistas, acadêmicos e especialistas. A Conferência estabeleceu cinco princípios de uma política decultura capaz de promover o desenvolvimento humano sustentável ao mesmo tempo em que estimula o florescimento de diferentes culturas: 1) A política cultural, como um dos principais componentes da política de desenvolvimento endógeno e sustentável, deve ser implementada em coordenação com outras áreas sociais, na base de um enfoque integrado. Qualquer política de desenvolvimento deve ser profundamente sensível à sua própria cultura; 2) as políticas culturais do próximo século devem se antecipar, respondendo tanto aos problemas persistentes quanto às novas necessidades; 3) a participação efetiva na sociedade de informação e o domínio de cada tecnologia de informação e comunicação constituem significativa dimensão de qualquer política cultural; 4) os governos devem se esforçar para estabelecer parcerias com a sociedade civil no planejamento e implementação de políticas culturais que estiverem integradas às estratégias de desenvolvimento; 5) num mundo cada vez mais interdependente, a renovação das políticas culturais deve ser prevista simultaneamente nos níveis local, nacional, regional e global. Esses princípios requerem um esforço de definir opções estratégicas que conduzam a sua plena realização. Três pilares básicos são apontados para a definição de uma estratégia política capaz de corresponder a esses objetivos propostos na Conferência de Estocolmo: a)  Promover o acesso ao conhecimento em uma sociedade complexa, através da democratização do conjunto de bens e serviços culturais produzidos histórica e contemporaneamente pela humanidade. b)  Promover o capital cultural como um dos pilares para o desenvolvimento econômico e local, identificando ativos socioeco-

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nômicos singulares e cadeias produtivas geradoras de renda e de progresso econômico. c)  Fortalecer o papel social da cultura, entendendo-a como o elemento capaz de integrar o indivíduo a sua coletividade e lhe conferir sentido de pertencimento. Como sinaliza a Comissão, o desafio da cultura no século XXI propõe que pensemos em conexões que coloquem na ordem do dia as complexas relações entre cultura e desenvolvimento econômico, entre globalização e expressões locais, entre fluxos informacionais e identidade e, especialmente, entre os aspectos inovadores dos movimentos civis e comunitários emergentes, como os da juventude das grandes periferias urbanas, e o seu impacto sobre a democracia e o fortalecimento da vida pública. Ou seja, significa repensar todo o papel desempenhado pela cultura no plano mais radical da vida política de um país ou de uma comunidade. 1 - Começando pela idéia de acesso Um bom começo é discutir a noção de acesso. Muitos são os documentos de cultura no Brasil, desde a década de 70, com as propostas políticas de Aloísio Magalhães, que pregam “a democratização do acesso à cultura”. Inevitavelmente a noção de melhorar o acesso, até meados da década de 90, está intimamente relacionada ao aumento de iniciativas programáticas de difusão cultural, de ampliar os espaços e circuitos de cultura “até onde o povo está”. É a política difucionista que marca todo o período da ditadura militar e que constrói de forma subjacente a idéia de há quem faça e produza cultura e há aqueles que devem recebê-la. Aos poucos a noção difucionista da cultura, como meio de melhorar o acesso da população à produção artístico-cultural, vai sendo superada pela noção de diálogo e intercâmbio culturais, o que pressupõe que todos os atores sociais são capazes de produzir cultura e estão em condições de igualdade para trocar e experimentar novas práticas e experiências. Assim a idéia de acesso passa a ser muito mais um desafio de estabelecer vias de diálogo, de encontro entre diferentes num contexto de diversidades, do que de produzir linhas programáticas baseadas na noção de entreter ou de levar a cultura ao povo.

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“A diversidade cultural tem a ver com as várias formas de produção, circulação e apropriação dos sentidos que identificam pessoas e grupos sociais. Além de conectar a multiplicidade de expressões da criatividade como saberes, valores, crenças ou estéticas, compreende marcas culturais dos modos de vida, as práticas simbólicas que determinam a cotidianidade de homens e mulheres, as memórias que articulam o passado e a tradição com o presente e as projeções de futuro. A diversidade cultural associa-se a complexos processos de hibridação entre culturas, no que Arturo Escobar tem chamado uma ‘interculturalidade efetiva’, ou aquela que promove o diálogo de culturas em contextos de poder. Não se pode perceber a interculturalidade simplesmente como o contato, a exposição pública ou os arranjos formais entre culturas. Pelo contrário, trata-se de encontros das diferenças que não deixam pôr em movimento conflitos e desafios, e que de qualquer maneira significam profundos processos de reconhecimento dos outros.” 5 (REY,2002) Acesso então é promover o diálogo de culturas em contextos de igualdade e cooperação, disponibilizando a todos as mesmas condições para participar da vida pública, imprimindo transparência à disputa por recursos, garantindo bens e serviços culturais com a mesma qualidade em todos os espaços e a todos os setores da sociedade, independente de classe social ou local de moradia. O acesso à cultura — cultura pensada não só como memória ou ato criativo espontâneo ou artístico, mas como conhecimento —, ou a necessidade de apropriar-se continuamente de suas variáveis e disponibilizar esse acervo à comunidade, é um ato consciente que exige inserção coletiva e política de todos os cidadãos. Assim, exige um ambiente comunitário e político favorável à inserção cultural do indivíduo e grupos. A nossa disposição de aprender e dialogar com universos diversos é fruto dos estímulos que recebemos do ambiente vivenciado na infância, na adolescência, na fase adulta da vida. Estímulos e incentivos propiciados pela riqueza dos encontros culturais proporcionados ao longo da vida, da nossa facilidade e curiosidade REY, German. Modos de Ser, Maneiras de Sonhar. Eixos para uma agenda de política de cultura para as Américas, Bogotá, Colombia, 2002. 5

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de apreendê-los e transformá-los em dados importantes da experiência humana. A cultura, tal qual ela é pensada no século XXI, é a experiência que marca a vida humana em busca do conhecimento, do auto-aprimoramento, do sentido de pertencimento e da capacidade de trocar simbolicamente. “Um acesso desigual aos meios de expressão cultural, novos ou tradicionais, implica não somente uma negação do reconhecimento cultural, mas algo que afeta seriamente o sentimento de pertencimento de indivíduos e comunidades à sociedade do conhecimento, ou a sua exclusão dela. A cultura possui laços múltiplos e complexos com o conhecimento. A transformação da informação em conhecimento é um ato cultural, como é o uso a que se destina todo o conhecimento. Um mundo autenticamente rico em conhecimento há de ser um mundo culturalmente diverso.”6 (MATSUURA, 2002) O valor que damos à cultura, a nossa ou a aprendida, é aquele que aprendemos a dar. Assim a experiência cultural ocorre a partir do diálogo constante entre práticas criativas próprias e o livre acesso aos acervos culturais tradicionais e contemporâneos. Duas dimensões políticas ganham relevância no estímulo ao cumprimento desse objetivo: a universalização dos bens e serviços culturais ofertados a toda a população, através de equipamentos, programas e serviços públicos permanentes de cultura que incentivem a formação de hábitos de fruição cultural e promovam a visibilidade e a troca de produções culturais e artísticas locais e comunitárias, e a luta por uma educação de qualidade, pensada como via fundamental de crescimento pessoal e coletivo, promotora de autonomia, independência e identidade. Uma educação meramente instrumental, sem valores éticos e culturais, é uma educação sem alma, sem os estímulos necessários para formar um indivíduo cônscio de si mesmo, do seu papel histórico, de seus direitos e responsabilidades, o que afeta as condições necessárias para a realização efetiva do acesso à cultura.

MATSUURA, Koichiro. Abertura ao Informe Mundial de Cultura da Unesco, 2000-2001. 6

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Como afirmou o escritor Alcione Araújo, “a educação é o braço armado da cultura” e garantir a sua presença nos bancos escolares é a primeira medida para a universalização do acesso à cultura. Em artigo recente intitulado “Favor deixar as luzes acesas”, Beatriz Sarlo escreve que: “um público leitor não é resultado simplesmente da abundância, nem pode se pensar que se o anima só com políticas culturais. Em troca, as políticas educativas o tornam possível. Onde há escola, há público”7. (SARLO, 2002) 2 - A cultura como capital social promotora de desenvolvimento O que é capital social? Vamos usar um trecho do discurso de Enrique Iglesias, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento para ilustrar essa noção: “Há múltiplos aspectos da cultura de cada povo que podem favorecer seu desenvolvimento econômico e social. É preciso descobri-los, potencializá-los e apoiar-se neles, e fazer isto com seriedade significa rever a agenda de desenvolvimento de um modo que resulte, posteriormente, mais eficaz, porque tomará em conta potencialidades da realidade que são da essência e que, até agora, foram geralmente ignoradas.”8 (IGLESIAS, 1997) Outra noção interessante é a de Michael Porter, desenvolvida em seu artigo Atitudes, valores, crenças e a micro economia da prosperidade9: “Um papel importante para a cultura na prosperidade econômica continuará existindo, mas poderá ser muito bem um papel mais positivo. Aqueles aspectos particulares de uma sociedade que originam inusitadas necessidades, habilidades, valores REY, German. Modos de Ser, Maneiras de Sonhar. Eixos para uma agenda de política de cultura para as Américas, Bogotá, Colombia, 2002. 8 IGLESIAS, Enrique. Cultura, educación y desarollo, Assembléia Geral da Unesco, Paris, 1997. 9 PORTER, Michel, in Harrison, Lawrence e Huntington, Samuel. A Cultura Importa — Os Valores que Definem o Progresso Humano. Editora Record, 2002. 7

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e modos de trabalho serão os aspectos característicos da cultura econômica. Os aspectos positivos da cultura, como a paixão da Costa Rica pela ecologia, a obsessão dos EUA com o conforto, a paixão do Japão por jogos e desenhos animados serão fontes vitais de vantagem competitiva difícil de imitar, resultando novos padrões de especialização internacional, à medida que os países produzam cada vez mais os bens e os serviços nos quais sua cultura lhes dá vantagem única.” (PORTER, 2002) Partindo dessas duas acepções podemos considerar que a cultura pensada como capital social é aquela identificada como um ativo originado em todos os pontos desse país onde se possa encontrar um traço singular do fazer produtivo – artesanato, culinária, festas populares, patrimônio tangível e intangível, memória e história – que podem ser tratados como agentes de desenvolvimento social e econômico. O termo ativo cultural foi cunhado por Joatan Vilela Berbel em seu trabalho Ativo Cultural: um outro paradigma para as políticas públicas de cultura10, onde ele destaca a noção de cultura proposta pela Unesco na Conferência do México em 1997, para avançar em termos de uma noção capaz de supor movimento, ação. Afirma Berbel: Para introduzir o conceito de ativo na dinâmica da produção cultural, quero lembrar-lhes a definição de cultura consagrada pela Unesco na Declaração do México, sobre as Políticas Culturais, em 1997: “Em seu sentido mais amplo, pode-se considerar a cultura como o conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Além disso, ela engloba as artes e a literatura, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças.” Quando utilizo a palavra ativo, quero me referir a sua definição como: “que exerce ação; que age, funciona, trabalha se move”, mas também como “a totalidade dos bens de uma empresa, ou pessoa, inclusive os direitos suscetíveis de avaliação” e, ao aproximar o conBERBEL, Joatan Vilela. Ativo Cultural: um outro paradigma para as políticas públicas de cultura, 2003. 10

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ceito de ativo da definição de cultura da Unesco, pretendo assim propor um novo paradigma para a formulação e a gestão das políticas culturais. Dessa forma serão consideradas ativos culturais todas as expressões culturais de um povo, independente da forma como foram ou estão sendo produzidas, com seus valores tangíveis e intangíveis, tal e qual como se avalia os ativos de uma empresa onde se inclui os bens patrimoniais, sua participação no mercado, o valor de suas ações que é variável e o valor de sua marca (good will), que é um valor intangível, porém valorável. Isto nos remete para o universo da economia que hoje predomina sobre as estratégias de governo e nos nossos países – ditos em desenvolvimento – e condiciona o cotidiano de nossas sociedades”. (BERBEL, 2003) 2.1 - A cultura como ativo econômico A cultura capaz de gerar ativos econômicos, sem compromissos com a escala industrial nem com o patamar de lucros proporcionados pelo mercado, é aquela que nasce nas comunidades brasileiras com as festas populares, com a renda de bilro, nos barracões das escolas de samba nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, nos sítios arqueológicos e na cultura do cangaço às margens do Rio São Francisco na região do Xingó, no artesanato do Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. É a cultura produzida nos territórios que o geógrafo Milton Santos intitulou de zonas opacas, invisíveis à lógica financeira dos mercados e à cegueira do Estado. Essas culturas exigem reconhecimento nas agendas de política cultural, não só como ferramenta de auto-estima ou como símbolo folclórico, mas como alternativa inteligente para gerar bônus econômicos, distribuição de renda e, conseqüentemente, desenvolvimento sustentável. O que está em jogo é reconhecer a necessidade de incluir nas políticas culturais a posse dos recursos, a garantia de assegurar às comunidades locais “iguais possibilidades de acesso aos bens da globalização” (CANCLINI, 1996). Reconhecer esse espaço estratégico de ação do Estado é abrir o campo de oportunidades das políticas culturais ao desafio da inversão das prioridades e do enfrentamento à desigualdade social e à concentração de renda, partindo de uma renovação do conceito clássico

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de cidadania, que opera pela lógica do direito à igualdade, para assegurar o direito às diferenças no plano político de ação do Estado. Um bom exemplo de como podemos iniciar essa reflexão é o carnaval carioca, que atrai ao Rio de Janeiro em torno de 320 mil turistas. O gênio criativo do povo, residente em sua maioria nas favelas cariocas, tece no ruído ritmado das costureiras dos barracões a arte que invadirá o sambódromo no verão carioca — no rebolar das garotas do morro, na bateria geniosa, nas alegorias e na profusão de cores, luzes e magia provinda dessa miscigenação brasileira que irrompe o cenário cultural do país todo o verão. Pois bem, o carnaval carioca gera em aumento de arrecadação algo em torno de US$ 555 milhões11. Hotéis, restaurantes, boates, lojas, companhias aéreas e toda a sorte de comércio informal se beneficiam da maior festa popular que o Brasil produz. No entanto o aumento de arrecadação, principalmente por órgãos públicos, não representa a melhoria da qualidade de vida dos responsáveis pela produção dessa festa. Há que se perguntar: por quê? Os autores — as comunidades da Mangueira, de Nilópolis, da Serrinha — fazem a festa, mas não recebem o proporcional lucro de seu trabalho. Melhorou a vida dessas pessoas, suas ruas, escolas, postos de saúde? Com quem ficam os recursos provindos do carnaval carioca? O que diferencia, ou o que deve diferenciar, um programa de desenvolvimento econômico gerado por investimentos diretos ou indiretos em áreas distintas, e um desenvolvimento econômico gerado por ou a partir daqueles aspectos que identificam a própria maneira de um povo e de uma sociedade se expressarem e se manifestarem coletivamente, como é o caso da cultura? Ao transformar o carnaval carioca num megaevento internacional capaz de atrair mais de 320.000 turistas à cidade do Rio de Janeiro e gerar US$ 555 milhões de movimentação financeira, como promover a justa distribuição desses dividendos entre todos os atores sociais envolvidos nessa produção? Que tipo de impacto desejamos e quem devem ser os beneficiários

Dados obtidos no Relatório do Plano Maravilha/ Observatório Turístico - Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000. Conversão em US$ e compilação dos dados: Maria Paula Gomes dos Santos (Cultural Consultoria e Projetos). 11

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deste? Estas são algumas reflexões que uma política cultural voltada para o desenvolvimento econômico suscita. Potencializar o capital social e cultural de um povo é uma tarefa complexa que exige o alargamento das possibilidades das políticas culturais de se integrarem ao esforço de desenvolvimento do país. Isso, naturalmente, implica esforço de potencializar as áreas de planejamento e gestão de um segmento identificado pela aversão a essas áreas de ação pública, com o investimento sistemático em formação de quadros públicos habilitados a operar com a gestão cultural. Planejamento requer pesquisa, mapeamento, diagnósticos continuados, avaliação e monitoramento, quadros públicos e não-públicos qualificados, desenho de programas estratégicos e menos táticos. Um projeto que trabalha com estas premissas é o Cara Brasileira, coordenado pelo Sebrae Nacional. O Ministério da Cultura deveria coordenar um amplo diagnóstico apostando neste esforço de recolocar a cultura no centro da dinâmica econômica, superando a lógica histórica de concentração de renda provocada por outros setores produtivos e propondo modelos com núcleos exportadores que partam das pessoas e dos seus modos de fazer. Algumas ações emblemáticas podem ser feitas também no campo das memórias coletivas, ou dos ativos provindos do patrimônio nacional, como incrementar o potencial dos sítios arqueológicos brasileiros, como os da região do Piauí, incentivando a pesquisa, a manutenção e o intercâmbio com outros importantes centros de estudos nesta área, ou os vinculados a memória de personalidades importantes como as de músicos, poetas, políticos. Pois pensar sobre a potencialidade da cultura do ponto de vista econômico exige pensar sobre a capacidade distributiva de um projeto dessa natureza, partindo da idéia de que qualquer projeto de fomento econômico num país marcado pela desigualdade social, principalmente no âmbito da cultura, deve ser uma possibilidade concreta de inversão de prioridades. De promover, através de garantias institucionais e financeiras, a posse dos recursos advindos da produção cultural de amplas camadas e setores da sociedade brasileira que hoje não se encontram incluídos, ou sequer reconhecidos, como agentes importantes para o desenvolvimento da política cultural do país.

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2.1.1 - Reconhecimento: o primeiro passo O que está em jogo aqui — e a política cultural passa a ter papel central de denúncia e esclarecimento — é que pensar em redistribuição ou em eqüidade de oportunidades de renda é antes de tudo reconhecer o outro como sujeito pleno de direitos iguais. Redistribuição e justiça estão intimamente ligados ao movimento de reconhecer, e nesse sentido, a cultura na sua ação política ganha o lugar de tornar isso possível, de incluir num plano de “dignidade igual para todos” segmentos diversos e tradicionalmente marginalizados. A justiça, como afirma o Informe Mundial de Cultura 2000-2001, “necessita atualmente tanto de uma política de redistribuição como uma política de reconhecimento”. É esse o lugar das políticas de cultura: tornar isso viável. A injustiça cultural, segundo o mesmo Informe, é obrigar grupos e manifestações culturais diversos a se submeterem a normas e configurações políticas estanques e imutáveis. À lógica da via única e da política homogênea. Qualquer política de cultura a ser adotada pelo país deve garantir a abertura dos canais institucionais e financeiros, através da reforma do sistema nacional de cultura, a amplos setores tradicionalmente atendidos pelas “políticas de recorte social ou assistencialistas”. É simbólico que o país não possua uma política de cultura para os indígenas, para o artesanato, para estimular a diversidade cultural das várias regiões brasileiras, para os grupos culturais atuantes nas favelas e bairros de periferia dos grandes centros urbanos. E é sintomático que não empreenda, num mundo marcado pelo trânsito incessante de informações, uma política de comunicação cultural capaz de gerar produtos informativos de qualidade para a enorme rede nacional de educação e também para os mercados televisivos e editoriais. Faz-se a política para os empresários e para os artistas renomados, nada desprezível, mas insuficiente para o tamanho e a força criadora do país. 2.2 - Cultura como negócio É preciso organizar o negócio das artes no Brasil, pois uma das deficiências do modelo adotado no país é que ele incentiva apenas a produção, perdendo a visão sistêmica necessária ao fortalecimen-

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to da dinâmica cultural. Diagnósticos setoriais podem ajudar a identificar como induzir setores com potencial comercial a crescerem com fontes de financiamento apropriados para cada área. Ary Scapin, do Núcleo de Cultura do Sebrae São Paulo, acredita que tratar a cultura como negócio é formar um tipo de profissional com visão empreendedora, distante do perfil de captadores e agentes de intermediação. Não basta aprovar projetos, mas capacitar o empreendedor para a gestão de seu negócio e isto deve ser feito de forma extensiva por cidades brasileiras que apresentam potencial para isto, como as de porte médio. Para ele incentivar o recurso de risco pode ampliar a sustentabilidade dos negócios culturais, pois o empreendedor passa a ter obrigação de devolver o recurso solicitado. O ponto de partida é separarmos a noção de uma produção cultural, independente de origem, suporte ou escala, capaz de gerar ativos econômicos, da indústria do entretenimento, essa marcada pela produção industrial e pelas regras do mercado. Nenhuma dessas vertentes isoladamente constitui o que entendemos por economia da cultura e, portanto, uma política pública de fortalecimento de setores culturais com vistas a gerar dividendos econômicos deve estar atenta à necessidade de um trabalho integrado que respeite as especificidades de cada setor e os propósitos que a impulsionam. Um projeto de incremento da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira, tão importante de ser realizado pelo país hoje, não pode se valer dos mesmos mecanismos de gestão ou instrumentos de financiamento daqueles que irão fomentar o desenvolvimento do artesanato no interior do país, ou a produção musical fora dos grandes centros urbanos. Evidentemente que há um entrelaçamento entre esses dois eixos, já que a lógica de uma economia globalizada força a compreensão dos limites das políticas de desenvolvimento, principalmente em regiões de carência, frente a mercados consumidores globalizados e globalizantes. Assim, é inteligente pensar maneiras de, ao incentivar certas produções locais, transformá-las em informação (vídeos, programas de TV, CD-ROMs, catálogos etc.) capaz de circular por todos os locais, atraindo o interesse e potencializando suas fontes de recursos financeiros. Outra área fundamental é a da circulação de exposições e eventos de porte nas grandes e médias cidades brasileiras. O dinamismo,

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a força criadora e o próprio histórico de contribuição da produção cultural brasileira ao resto do mundo — na música, dança, audiovisual e realização de importantes eventos nacionais e internacionais de arte e cultura — colocam o Brasil como epicentro de uma gestão de desenvolvimento sustentável baseada em ações culturais, que, articuladas com outras áreas como turismo e o mercado de feiras e congressos, a potencializam na geração de oportunidades de trabalho e renda neste segmento e como caixa de ressonância natural das ações e eventos realizados em outras partes do mundo. Neste sentido, a realização de grandes eventos, assim como as recentes exposições e concertos internacionais que o país vem sediando ou promovendo fora do país, são acontecimentos importantes para a concretização desta estratégia, desde que se esteja atento à oportunidade de se criar políticas de qualificação de trabalhadores nesses campos, com oferta de cursos e programas de treinamento. Planejamento de longo prazo, com o fortalecimento da formação de recursos humanos, a pesquisa e a combinação de sistemas mistos de financiamento, públicos e privados, destinados a imprimir velocidade e qualidade a setores estratégicos da produção artístico-cultural do país podem, com ou sem escala industrial, contribuir para formar um novo mapa de desenvolvimento, acelerando a melhora dos indicadores socioeconômicos. Promover o capital social em suas diversas variáveis está relacionado ao desafio de fortalecermos a vida pública, ampliarmos a representatividade simbólica e institucional dos atores sociais ainda hoje encobertos pelo manto da invisibilidade. É o que desenvolveremos no próximo item desse ensaio. 3. Fortalecimento da participação comunitária, setores emergentes e projeto cultural 3.1 E o novo surge nas favelas e subúrbios, agitando a cena cultural Eu vou me deter em dois setores culturais específicos e num primeiro momento até contraditórios que surgem a partir da segunda metade dos 80: o primeiro, impulsionado pela renovação da socie-

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dade civil — as organizações não-governamentais comunitárias; o segundo, impulsionado pelo Governo, mais precisamente o Ministério da Cultura, implantado em 1985 — as lideranças empresariais que, utilizando a política de subsídios fiscais adotada pelo Governo, estimulam a produção cultural profissionalizada. A primeira dessas novas lideranças culturais pode ser identificada, em especial, através de novos atores juvenis, movimentos culturais que partem da periferia dos grandes centros urbanos, em pequenas comunidades populares. Lutam pela ampliação de sua representatividade política através da expressão de várias formas artísticas e culturais. A efervescência do diferente começa a nascer nas favelas, nos subúrbios, onde grupos de jovens se organizam para fazer música, dançar, grafitar, produzir fanzines, organizar ações solidárias. Através da apropriação de linguagens artístico-culturais — sem compromisso com a profissionalização ou até com a qualidade do que é produzido — em torno da dimensão cultural que estes grupos se organizam, se articulam, expressam as suas questões cotidianas, suas condições de vida, suas inquietações com o país. Alguns desses grupos se profissionalizam, sem perder, contudo, a sua dimensão comunitária, passando a intervir no mercado cultural de forma consistente, como é o caso de grupos de hip hop de São Paulo, de mangue beat no Nordeste brasileiro, de reggae na Bahia e no Rio de Janeiro. “Se nos anos 60, eram os jovens de classe média, os estudantes que traziam o novo, nos anos 80 e 90, a efervescência do diferente começa a nascer em outros espaços sociais. Em cidades como São Paulo, é nas periferias que começamos a encontrar uma série de grupos de jovens que se organizam para fazer música, dançar, grafitar, fazer teatro, produzir fanzines, organizar ações solidárias etc. (...) É sobretudo em torno da dimensão cultural que esses grupos vão se articular para encontrar seus iguais e, por meio de diferentes linguagens, expressar suas questões, suas visões de mundo, suas condições de vida, suas revoltas, seus projetos de sociedade. Nós observávamos esta riqueza e nos inquietávamos com sua invisibilidade.”12 (FREITAS, 2002) FREITAS, M.Virgínia. “A Formação em Redes”, texto publicado na coletânea Juventude, cultura e cidadania, pág. 113-119. Iser, 2002. 12

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O poder desses movimentos culturais expressos em inúmeros exemplos espalhados pelo país sem dúvida alguma traz um dado novo para o conjunto das práticas sociais e de ocupação do espaço público que ainda não foram devidamente absorvidas. Em parte, pela ausência de políticas culturais estruturantes que interfiram decisivamente no desenho das políticas públicas e das ditas agendas sociais no Brasil. Apesar do enorme esforço de redemocratização do país, a cultura não conseguiu alçar-se ao estatuto de política central no processo de compreensão da dinâmica social e muito menos no aproveitamento dos dados novos que esta dinâmica trouxe e traz para a efetividade das políticas de desenvolvimento do país e da gestão dos recursos sociais. O traço da invisibilidade sempre operou como uma máscara de incompreensão e de não-reconhecimento do lugar central da cultura e da força das práticas locais no fortalecimento da democracia brasileira. Democracia que deve incorporar o respeito às diferenças, o respeito à diversidade e ao pluralismo cultural, as questões de gênero, étnico-raciais, de proteção às minorias culturais. Talvez por isso, ou sobretudo por isso, a absorção dessas práticas culturais provindas das periferias urbanas e protagonizadas especialmente por jovens tenha sido erroneamente traduzida como ação social capaz de transformar indicadores históricos de desigualdade — saúde, educação, saneamento básico, nutrição — de forma mágica. Programas de música, capoeira, dança, que sempre deveriam estar ali à mão dos moradores mais ou menos próximos do universo cultural, como um direito assegurado pela sociedade, passaram a ser financiados não como extensão desses direitos culturais assegurados pela Constituição, mas como remédio para a ação social mais ingênua. Muito recentemente, já na gestão de Gilberto Gil, começamos a perceber uma preocupação efetiva em compreender e apoiar essas experiências, a partir de uma visão mais global de política pública de cultura. Esse esforço se traduz em programas como o Pontos de Cultura, que disponibiliza recursos para experiências comunitárias em todo o país. É um princípio que merece elogios. O importante é frisar que, a exemplo de outros países latino-americanos, como o México e a Colômbia, o aperfeiçoamento do processo democrático brasileiro inevitavelmente deve caminhar nessa

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direção, daí a importância de políticas culturais que assegurem o reconhecimento e a visibilidade das diversas práticas culturais originadas no território local, e que as focalizem como capital cultural relevante ao desenvolvimento sustentável do país, desde que de fato esses avanços sentidos na ampliação dos apoios a projetos locais possam ser sentidos por toda a comunidade e não apenas por seus protagonistas. Corre-se o risco de promover novas desigualdades no seio de cada comunidade, onde projetos isolados acabam por produzir os novos vencedores, elevados ao estatuto de “famosos” sem que o ambiente comunitário avance coletivamente e ganhe em ver garantido seu direito aos bens e serviços culturais públicos. Nenhum projeto isolado, por melhor que seja, supera ou substitui o necessário avanço nas políticas de caráter universal, a presença do Estado nas comunidades e territórios através de equipamentos e programas culturais de qualidade, a inserção de conteúdo cultural nas práticas educativas, os circuitos e intercâmbio culturais organizados localmente, a memória dos bairros e das comunidades preservadas e disponibilizadas através de iniciativas públicas de visibilização. Ou seja, um conjunto de ações asseguradas no tempo que, ao fortalecer os espaços culturais comunitários, incentive práticas variadas, nas escolas, nas ruas, através de oficinas, de aulas públicas e concertos abertos, da abertura de espaços reais ou simbólicos de criação artística e desenvolvimento espiritual, buscando formas mais concretas de mediação entre o projeto cultural e o cidadão. Formas que superem a concepção do sujeito como mero espectador, mas que colaborem para prover seu local de moradia das mesmas experiências significantes abertas aos cidadãos mais privilegiados. Como lembra o intelectual colombiano José Bernardo Toro em seu livro A construção do público: cidadania, democracia e participação13: “A justiça social está relacionada com a quantidade e disponibilidade dos bens públicos a que tenham acesso os cidadãos. No público, tornam-se possíveis a eqüidade e a participação. O público é construído tomando-se como base a sociedade civil e se caracteriza pela capacidade de uma sociedade de garantir TORO, J.Bernardo. A Construção do Público: cidadania, democracia e participação. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio e [X] BRASIL, 2005. 13

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as mesmas condições e a mesma qualidade dos bens e serviços ofertados a todos sem distinção.” (TORO, 2005) Finalizando, vamos destacar a fala da doutora em Direitos Humanos, a brasileira Flávia Piovesan, em seminário promovido pelo Escritório da Unesco no Rio de Janeiro e SESC Rio em 2002, que parece dar um sentido maior a esse pilar da política cultural: “A proteção dos direitos humanos, em uma sociedade cultural, requer a observância dos direitos culturais, enquanto direitos universalmente aceitos. Não há direitos humanos, nem tampouco democracia, sem a justiça cultural, sem a diversidade e o pluralismo cultural e, nem tampouco, sem que se assegure o direito de existir, o direito à visibilidade, o direito à diferença e à dignidade cultural.”14 (PIOVESAN, 2002) 3.2 - No reino do marketing: lideranças empresariais e o avesso da cultura Alheia a boa parte dos avanços políticos que marcaram nas duas últimas décadas as discussões em outros setores de atuação pública, a cultura caracterizou-se nos últimos anos como uma área de disputa de privilégios, personificados nos limites reivindicados para a isenção fiscal dos diversos setores artísticos, pelo lobby de aprovação dos tetos permitidos nas comissões de cultura e, naturalmente, pelas verbas publicitárias e de marketing das grandes empresas brasileiras, em especial e paradoxalmente das estatais. Assim, o campo teórico por excelência das soluções coletivas revela com crueza o traço mais contundente da elite nacional em relação às mazelas do povo: o prevalecimento dos interesses privados e das soluções restritas a poucos, sobre as necessidades de um corpo social diverso a quem se nega o direito de emancipação cultural e visibilidade pública. Causas e conseqüências de uma política de incentivos fiscais à cultura, adotada indiscriminadamente no país desde 1985, onde empresas sem regulação adequada abatem um percentual do imposto PIOVESAN, Flávia. “Construindo a democracia: prática cultural, direitos sociais e cidadania”, in Cultura, Política e Direitos, p. 39-45, SESC/ Unesco, 2002. 14

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devido ao Tesouro Nacional para estimular o ingresso de recursos privados nas várias áreas da produção cultural. São as leis de mecenato, que se implantam a partir de proposta do Governo Federal com a Lei Sarney e com ajustes seqüenciais a partir de 1992 e surgem nas figuras da Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e posteriormente as leis estaduais e municipais que incidem sobre impostos como ICMS, ISS e IPTU. Apesar da implantação do Minc em 1985, optou-se por setorizar a discussão nos mecanismos financeiros capazes de ampliar as verbas públicas a setores restritos da produção cultural, aqueles com maior capacidade de organização e pressão política. As leis de incentivo, nas três esferas do Estado, seus tetos de isenção, as estratégias de preenchimento das planilhas disponibilizadas pelos órgãos públicos, deram a tônica da superficialidade política que acometeu durante duas décadas o debate cultural no país. Como em nenhuma outra área, a cultura do privilégio, da ausência de preocupação com os movimentos sociais e culturais de fora do que tradicionalmente se denomina “produção cultural”, esteve tão presente como nas políticas culturais brasileiras. O que ocorre com essa política? Primeiro ela traz um novo agente à cena política: os departamentos de marketing e comunicação de empresas em um primeiro momento e, a partir de 1995, as grandes fundações culturais privadas, muitas atreladas a entidades financeiras, como as instituições bancárias do porte de Santander, Itaú e Bank Boston. Surge, com esses novos atores, a mentalidade distorcida de que o investimento em cultura se sustenta como “ação preferencial de comunicação e marketing”, bem distante da idéia da cultura como via de desenvolvimento ou instrumento para a democracia. Amparados pelo governo, que incentiva essa visão instituindo oficialmente em 1997 a famosa cartilha Cultura é um bom negócio, os diretores de marketing acionam teorias de marketing cultural e privatizam os critérios de escolha do que a população deve ou não produzir, distribuir, fruir, onde e como, a partir de suas preocupações mercadológicas com clientes, fornecedores e consumidores. Uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Cultura em 1997 à Fundação João Pinheiro registra de forma contundente a ausência

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Preferência das empresas por áreas de opções de comunicação • 1 11%

%

3%

% CULTURAL ASSISTÊNCIA

3%

EDUCACIONAL MEIO AMBIENTE ESPORTIVA CIENTÍFICA

13% 4%

SAÚDE

de espírito público e a falta de visão crítica dos burocratas do governo (Gestão Francisco Weffort 1995-2002) e também dos dirigentes de empresa que assumiram esse discurso e essa prática, que ainda permeia o debate e o desenho das políticas de cultura brasileiras. O texto de apresentação da pesquisa intitulada, O investimento em cultura por empresas públicas e privadas15 chega a afirmar entusiasticamente: “A participação da cultura em ações de comunicação e marketing, por empresas públicas e privadas, em 1997, ocupa o primeiro lugar, com 53% das preferências das empresas entrevistadas pela Fundação João Pinheiro. Essa revelação consagra o marketing cultural como o meio mais importante para as empresas para divulgarem a sua marca. A evolução do comportamento empre-

Fundação João Pinheiro, 1997, disponível no site do Ministério da Cultura www.cultura.gov.br 15

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sarial de investimento em cultura, nos últimos anos, após a modernização das leis de incentivo à cultura levada a efeito pelo governo FHC, foi influenciada pela política de parceria entre Estado, empresários e comunidade cultural, implementada pelos governos federal, estaduais e municipais (...). A pesquisa de economia da cultura revelou ainda que, a partir de 1992, há um crescimento contínuo de empresas brasileiras que investem em cultura como ação de comunicação e marketing.” Esse espírito público, que deve orientar qualquer escolha dos órgãos competentes do Estado, preservando o direito às diferenças e o acesso às fontes estatais em condições de igualdade, é excluído da mentalidade estampada na cartilha adotada pelo Minc em 1995, Cultura é um bom negócio. Privatizou-se o poder decisório e com ele o papel exigido de um Ministério e de uma política pública, reduzindo-se a política cultural a uma ação casuística e de pouco interesse público ou formador. Na seqüência iremos acompanhar os resultados dessa política e as dificuldades impostas no momento para retomarmos o princípio de que a cultura deve ser central no debate sobre o desenvolvimento e a democracia participativa. Sísifo e o projeto cultural que não encanta nem avança: carregando a pedra dos incentivos Desde 1985, data de seu nascimento, o Ministério da Cultura adotou, primeiro através da Lei Sarney e depois pela Lei Roaunet, o mecanismo do incentivo fiscal a empresas, como principal fonte de financiamento à cultura nacional. A ausência de um projeto estratégico para o setor e de mecanismos reguladores estabelecidos pela legislação ou de outras fontes diferenciadas de financiamento gerou resultados pouco animadores. Há uma enorme concentração regional e em projetos de fundações privadas, além do reforço às áreas mais glamourosas, como cinema, espetáculos musicais e peças do show business. Os gráficos 2, 3, 4 e 5 demonstram essa afirmação. Os 10 maiores beneficiários dos incentivos proporcionados pela Lei Roaunet foram as atividades e programas das grandes fundações

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Distribuição regional total • 1 8 > 2004 (22.328.30 , 6)

1%

(221.212.183,61)

10%

(132.286. 4 , )

6%

( .3 .188, 8)

3%

NORTE NORDESTE CENTRO-OESTE SUDESTE

80%

SUL

(1.8 1.6 . 1,33)

Comparativo por região • 2004 (8.3 4.434, 1) ( 8. . ,33)

12%

2%

(28. 6 .333, 3)

6%

(14. 11.8 0,30)

3%

NORTE NORDESTE CENTRO-OESTE SUDESTE SUL

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% (361.324.0 1,4 )

53


Região sudeste 1.200.000.000,00 1.000.000.000,00 800.000.000,00 600.000.000,00 400.000.000,00 200.000.000,00

Espírito Santo 1 8

Minas Gerais 2002

Rio de Janeiro

2004

São Paulo

1 8 > 2004

Relação entre projetos apresentados, aprovados e financiados 10.000,00 .000,00 8.000,00 .000,00 6.000,00 .000,00 4.000,00 3.000,00 2.000,00 1.000,00 -

1 8 apresentados

54

1 aprovados

2000

2001

2002

2003

2004

finaciados

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privadas, com origem nos setores bancários, as multinacionais da área de telecomunicações ou de grandes conglomerados. Sem analisar o mérito e a qualidade das ações empreendidas, é possível afirmar que se financiou no país uma ação regionalmente e setorialmente concentradora, de renda inclusive, que, sob a égide do gosto dos homens de marketing e comunicação das empresas, ditaram aquilo que a população brasileira poderia ver financiado ou nas casas de espetáculos dos centros urbanos. Não se tem registro na história das políticas culturais no país, nem no período da ditadura militar, de tal privilégio às elites nacionais. O resultado é uma série de ações fragmentadas, patrocinadas pelas principais empresas brasileiras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, sem expressão regional ou garantia de contrapartida pública, em forma de diversidade, circulação ou de gratuidade à população brasileira que, ao longo desses últimos 20 anos, abriu mão do seu direito a recursos provenientes de impostos para copatrocinar um projeto de incentivo ao setor cultural, embalado na fórmula do marketing cultural. Institui-se como via unilateral de relação com o Estado a figura do projeto, peça intelectual capaz de ser desenvolvida por poucos em um país onde 73% da população dita alfabetizada não compreende o que lê16. Na planilha proposta o Minc sempre defendeu com clareza a quem pretende beneficiar com sua política: aqueles capazes de realizarem estratégias de comunicação competentes para atraírem a atenção das empresas e garantirem o retorno de marketing esperado. Nada parecido do que se espera de uma política voltada para o fortalecimento do estado democrático de direito. Adotar o projeto como único mecanismo institucional de diálogo do poder público com sua população restringe o acesso dos mais pobres, e, portanto, mais vulneráveis à esfera pública. Hoje, já há um consenso que essas são bases frágeis para se empreender uma mudança de eixo na política cultural brasileira, destacando-se aquelas direcionadas à indução de processos de desenvolvimento. A atual gestão do Ministério da Cultura vem empreendendo

Dados da última pesquisa divulgada pelo Ministério da Educação, 2003. www.mec.gov.br 16

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esforços reais nessa direção, propondo alterações nesse modelo e brigando por orçamento público. Além da conquista da Medida Provisória que institui o tão desejado Plano Nacional de Cultura, há todo o trabalho para implementar o Sistema Nacional de Cultura e a profissionalização dos quadros, especialmente nas áreas de gestão e planejamento. Estamos, é certo, longe de resultados concretos, que dependem de tempo, da insistência e da vontade política de retomar a cultura como uma das bases públicas para o desenvolvimento do Brasil, mas avançamos aos poucos, apesar da reação da classe artística mais emperdenida, que a qualquer tentativa de redução dos seus privilégios ameaça com os meios de comunicação e frases de efeito. O incentivo fiscal é um recurso temporal legítimo do Estado, desde que ele apresente suas estratégias de desenvolvimento global do setor beneficiado e os benefícios conquistados pela população ao final de sua vigência. A estratégia de identificar problemas e desafios para a gestão pública, consensuados com outros atores da sociedade, indica a possibilidade de promovermos uma parceria públicoprivada, com aplicação de incentivos escalonados, para imprimir velocidade na resolução dessa problemática. Podemos citar a área de infra-estrutura ou de inclusão digital nas escolas e comunidades de baixa renda, ou mesmo as que vêm sendo concedidas pelo Governo na área editorial. Mas a transparência e a qualificação dos gestores, mais a participação da população, devem ser garantidas para preservar o sentido público de tal iniciativa. O certo é que acepçõe s que consideram a cultura uma perspectiva de marketing e comunicação não podem mais ser pagas com dinheiro do contribuinte, mas financiadas pelas vultosas verbas de publicidade e os lucros das operações ou do mercado financeiro. Seria uma guinada fundamental para eliminarmos a cultura do privilégio que se instalou na área cultural no Brasil e reapropriarmos o espírito público tão desejado. Conclusão: algumas pistas de como começar As sugestões a seguir foram trabalhadas por um grupo interdisciplinar já citado pela autora na abertura desse ensaio e não expres-

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sam necessariamente a opinião pessoal de cada um e sim o consenso do grupo. O conjunto de propostas formulado busca responder a pergunta inicial desse ensaio: como pensar a importância das políticas culturais para o desenvolvimento a partir de uma cultura de desigualdades construída culturalmente ao longo da história brasileira? As propostas serão apresentadas em tópicos para melhor compreensão do leitor. 1 - Quais os principais desafios da política federal de cultura? •  Em primeiro lugar desenvolvê-la no sentido de situá-la no centro da atuação pública, no centro das reflexões sobre desenvolvimento com justiça social e, portanto, no centro das decisões políticas do Governo Federal e da sociedade; -  Isto se faz de muitas formas, mas essencialmente promovendo e desenvolvendo um Plano Nacional de Cultural, com horizonte mínimo de cinco anos, a exemplo de países como México, Chile, Colômbia, que focalize as preocupações e os esforços nacionais em direção a uma sociedade mais justa e com forte atenção aos direitos dos cidadãos; -  Promovendo uma ampla discussão nos fóruns representativos da sociedade, como Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico, o Congresso Nacional, os parlamentos regionais, colaborando no PPA e em qualquer documento político que apresente os esforços nacionais de desenvolvimento. •  Fundamentar as políticas de culturas em um sistema articulado entre municípios, estados, federação, destacando o território local como lócus privilegiado da dinâmica cultural e o poder local como primordial para entender e atender aos fenômenos e atividades culturais; -  Implantando o Sistema Nacional de Cultura, através de uma reforma administrativa proposta pelo Ministério da Cultura, que conte com diretrizes claras de atuação, metas de desempenho e indicadores de avaliação, com financiamento tripartite e controle social; -  Descentralizando as ações do Estado, através de agências/fundos regionais de desenvolvimento cultural, com contribuições dos impostos municipais, estaduais e federais e participação das estatais;

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-  Formando gestores de cultura pelo país todo, qualificando a carreira pública de cultura, abrindo concursos onde eles sejam necessários. • Universalizar o acesso ao conhecimento cultural, democratizando os meios e ampliando a capilaridade através da ampliação dos serviços prestados à sociedade brasileira; -  Escola – influenciando a grade curricular de ensino, devolvendo o protagonismo cultural aos bancos escolares, com isto formando hábitos e costumes. Destacando a necessidade do retorno da formação artística e cultural na rede pública educacional do paí; -  Priorizando o livro e a leitura, como instrumentos insubstituíveis em todas as ações voltadas para ensino/educação, desenvolvendo competências e habilidades de leitura absolutamente necessárias para qualificar as condições de vida dos cidadãos no século XXI; -  Circuitos e intercâmbios culturais organizados localmente através de programas federais de incentivos e da organização do calendário de festivais e mostras nacionais e internacionais; -  Ampliando a presença do Estado em todas as comunidades e territórios, expandindo os espaços públicos de cultura ou fortalecendo os espaços culturais comunitários, provendoos de experiências e referências plenas de sentidos. Serviços culturais que podem se dar através de dinâmicas locais através de ONGs, de escolas, de associações comunitárias, de bibliotecas, de ruas e praças; -  Incentivando práticas culturais variadas, nas escolas, nos bairros, nas ruas, através de oficinas, de aulas públicas, de concertos abertos, buscando outras formas de mediação entre o projeto cultural e o cidadão, superando a concepção de mero espectador. •  Organizar o processo da produção comercial de cultura, dos setores profissionais com apelo mercadológico e industrial; -  Estimular e financiar a estrutura profissional para oxigenação do setor, infra-estrutura hoteleira, salas de apresentação, circuitos internacionais, feiras; -  Adequar o perfil das leis de incentivos aos desafios de criar um sistema de produção cultural orgânico e positivo; -  Convocar a participação do empresariado através de diagnósticos e metas estabelecidas pelo Estado (Cinema, Teatro Comer-

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cial, Artesanato etc), visando ao desenvolvimento setorial de longo prazo e não-circunstancial; -  Compreender a cultura como um ativo capaz de gerar renda, trabalho e desenvolvimento socioeconômico a partir da potencialização das singularidades da produção cultural de cada território; -  Apostar na qualificação profissional de qualidade, implantando uma Fundação de Amparo à Qualificação Profissional no Campo das Artes semelhante ao das fundações de amparo à pesquisa no Brasil. •  Tratar de diagnosticar as questões específicas de cada setor, fomentando-as com mecanismos diferentes e com financiamentos diferenciados. -  Mecanismos centralizados não contribuem nesse processo; -  Desenhando programas de fomento que englobem todos os requisitos para o crescimento continuado de cada setor e não apenas subvenções esporádicas. 2 - Necessidades •  Para encarar esses desafios é necessária uma tipologia de organização pública capaz de se articular com outras políticas públicas e contar com instrumentos formais de participação da sociedade, avaliação e monitoramento. •  É necessário não perder de vista que uma política pública tem o compromisso com a universalização, com a reprodutibilidade de suas iniciativas, ou seja, com a extensão dos serviços prestados. Além disso, impõe que se evidencie de forma clara e transparente como se dá o acesso e a posse dos recursos públicos diretos ou indiretos que geram benefício para todo o conjunto da sociedade e não só para alguns. Ver atendido o compromisso maior com o enfrentamento a todas as práticas sociais que geram desigualdade e concentração de renda e de ativos. A cultura é o nosso compromisso. Uma agenda abre e propõe, mas nunca esgota. É apenas um convite para transitar um determinado caminho e assim é um espaço de encontro e não de disputas. Desenhar uma proposta de política cultural, uma agenda de prioridades, é um esforço de todos os ato-

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res sociais e não só da classe artística, intelectual ou de produtores. Deve buscar a concertação, os espaços pouco ou nada explorados, as frestas por onde a tradição e o novo podem e devem se encontrar num movimento dinâmico capaz de produzir alteridades e reconhecimentos mútuos, nunca exclusão e preconceitos. Aqui buscamos compartilhar algumas das vivências e idéias que exploramos em uma trajetória pessoal e, portanto, circunscrita. É um convite à reflexão e/ou outros olhares, pois: “A cultura, muito mais que outras manifestações da vida humana, desenha com uma força enorme e voraz, as nossas formas de viver e as nossas maneiras cotidianas de sonhar.”

•••

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EM DIREÇÃO ÀS METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO1 UMA ANÁLISE REGIONAL Rosane Mendonça

Professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde leciona as disciplinas de Microeconomia e Econometria.

Em 2000, 189 países se reuniram na ONU e estabeleceram objetivos mundiais de desenvolvimento. Este conjunto de objetivos veio a ser denominado as “Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM)”. No Brasil, o conhecimento produzido colocou a idéia de que um número significativo dessas metas poderia ser atingido sem maiores esforços. No entanto, a redução da pobreza e da extrema pobreza revela uma trajetória histórica um tanto complicada. Este artigo contribui para preencher esse espaço. Metodologicamente, o artigo utiliza três ferramentas empíricas inovadoras e muito relevantes: a) análise de convergência b) análise de nível e velocidade multivariável e c) análise de diferenças. A análise de convergência tem sido utilizada com muito sucesso na macroeconomia e na economia internacional, com o propósito de identificar trajetórias dos países em termos de crescimento econômico e de comércio exterior para descobrir se as assimetrias entre países ricos e pobres são de caráter estrutural ou não. O objetivo do presente artigo consiste em identificar quais Unidades da Federação apresentam um potencial para atingir as metas nacionais. Desta forma, este artigo estabelece as possibilidades de cada uma das Unidades da Federação de cumprir as metas estabelecidas até 2015, mas também determina a contribuição de cada unidade no âmbito nacional. Este estudo foi financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento — BID. Gostaria de agradecer muito os comentários e sugestões de Carlos Eduardo Vélez-Echavaria, Viviane Azevedo, Maurício Blanco e Carlos Alberto Herrán. 1

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1 - Introdução A melhoria do desenvolvimento humano2, com a promoção de melhores condições de vida para a população nas regiões menos desenvolvidas, tem recebido grande destaque nas inúmeras conferências internacionais. Observa-se um grande esforço em desenhar uma estratégia global para reverter o quadro de extrema pobreza, fome, analfabetismo e doenças que afetam milhões de pessoas. A idéia é de que o mundo já possui tecnologia e conhecimento suficientes para resolver a maioria dos problemas enfrentados pelos países pobres. Contudo, uma vez que as especificidades de cada país e sua capacidade em absorver e utilizar os recursos são tão variadas — tanto em termos de suas necessidades quanto de recursos —, fazse necessário o desenho não de uma estratégia global, mas uma série de estratégias específicas para cada país. Em setembro de 2000, os líderes de 189 países se reuniram em Nova Yorque e estabeleceram objetivos mundiais de desenvolvimento, O conceito de desenvolvimento humano aparece pela primeira vez em 1990, especificamente no Relatório do Pnud desse mesmo ano. A partir desse ano, este conceito foi permanentemente alterado no sentido de incluir mais categorias com a finalidade de obter uma definição que responda às exigências e desafios contemporâneos, bem como permitir a operacionalização mais eficiente deste conceito. 2

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conhecidos como Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM). São oito objetivos centrais subdivididos em dezoito metas (veja Tabela 1). A Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento veio reforçar os resultados obtidos em 2000, examinando as várias opções para prover os recursos necessários para o cumprimento das metas estabelecidas. Reformas econômicas e políticas seriam implementadas nos países em desenvolvimento de forma a reforçar a ajuda dos países mais ricos que chegaria em forma de doações, investimentos ou mesmo reduções nas dívidas externas. Em setembro de 2002, a Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, ocorrida em Johannesburgo, selou o compromisso de avaliar as mudanças globais e de realizar ações concretas para melhorar a qualidade de vida da população, conservando os recursos naturais num mundo onde a população é cada vez mais numerosa, e é crescente a demanda por água, comida, energia, serviços de saúde, saneamento, proteção e segurança econômica. Em suma, as agências internacionais vêm realizando um grande esforço com o objetivo de não somente renegociar as dívidas externas dos países mais pobres, mas, também, alocar recursos para reduzir a extrema pobreza e promover o desenvolvimento sustentável. Além do conhecimento fundamental sobre a viabilidade de se solucionar o problema da extrema pobreza e de várias outras questões sociais que afligem a população, o grande volume de pesquisas produzidas tem, por um lado, identificado um número crescente de políticas, programas e formas alternativas de intervenção, e, por outro, tornado cada vez mais evidente que esses problemas não aparecem de uma única forma, isto é, não existe uma única forma de pobreza, mas uma variedade delas. O conjunto mais efetivo de políticas para enfrentar esses problemas sociais em cada país dependerá crucialmente de uma série de características específicas locais e, portanto, a disponibilidade de recursos e de conhecimento sobre a eficácia dos programas sociais não é suficiente. O sucesso de um programa de erradicação da pobreza depende, em grande medida, da adaptabilidade da solução às condições locais (seja o país, o estado ou o município). Por isso, embora se possa falar, em linhas gerais, do desempenho do Brasil com relação a uma série de indicadores, cada região, estado, municí-

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pio ou mesmo comunidade, em função de suas especificidades, natureza e estágio de desenvolvimento, requererá uma estratégia própria para enfrentar esses problemas, adaptada a essas especificidades. No que diz respeito ao cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio não poderia ser diferente. Observamos que o Brasil já atingiu ou está preste a atingir várias das metas estabelecidas. No entanto, quando focamos nossa atenção no desenvolvimento das regiões e seus estados, observamos algo que o nosso bom senso já dizia: enquanto alguns estados já atingiram essas metas há alguns anos, outros só deverão atingir essas metas, tudo mais constante, vários anos (ou mesmo décadas) após o prazo estabelecido de 2015. Ou seja, apresentar o Brasil para o mundo como um país que vêm cumprindo as metas, evidentemente, tem sua importância; internamente, contudo, essa informação tem pouca relevância. O objetivo deste trabalho é analisar alguns dos indicadores propostos em cada uma das metas, não somente ao nível do país como um todo, mas principalmente ao nível das grandes regiões e estados brasileiros, buscando posicioná-los frente aos objetivos de desenvolvimento do milênio. As desigualdades regionais, em termos do desempenho de grande parte dos indicadores, são grandes e necessitam, sempre que possível, serem dimensionadas e monitoradas. O trabalho encontra-se organizado em sete seções, além desta introdução e das conclusões finais, obedecendo às metas de desenvolvimento do Milênio estabelecidas3. Mais especificamente, o que o trabalho se propõe a fazer é descrever o nível e a evolução dos principais indicadores sociais, estimar a velocidade histórica com que esses indicadores vêm melhorando e, portanto, avaliar a posição da região ou estado perante os objetivos de desenvolvimento do milênio, e descrever um pouco do processo de convergência entre as grandes regiões brasileiras, e entre os estados dentro de cada região.

Como o foco deste estudo é uma análise ao nível das regiões e estados brasileiros, o último objetivo — “estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento” — não será tratado aqui. 3

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Tabela 1 Metas de Desenvolvimento do Milênio Objetivo 1: Erradicar a extrema pobreza e a fome •  Reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior a 1 dólar PPC por dia. •  Reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população que sofre de fome. Objetivo 2: Atingir o Ensino Fundamental básico •  Garantir que até 2015 todas as crianças, de ambos os sexos, concluam o Ensino Fundamental básico. Objetivo 3: Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres •  Eliminar as disparidades entre os sexos no Ensino Fundamental e Médio, se possível até 2005, e em todos os níveis de ensino até 2015. Objetivo 4: Reduzir a mortalidade na infância •  Reduzir em 2/3, entre 1990 e 2015, a mortalidade de crianças menores de 5 anos de idade. Objetivo 5: Melhorar a saúde materna •  Reduzir em 3/4, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade materna. Objetivo 6: Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças •  Até 2015 ter detido, e começado a reverter, a propagação do HIV/Aids. •  Até 2015 ter detido, e começado a reverter, a incidência da malária e outras doenças importantes. Objetivo 7: Garantir a sustentabilidade ambiental •  Integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a perda de recursos ambientais. •  Reduzir pela metade, até 2015, a proporção da população sem acesso permanente e sustentável a água potável segura. •  Até 2020, ter alcançado uma melhora significativa nas vidas de pelo menos 100 milhões de habitantes de bairros degradados. Objetivo 8: Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento •  Avançar no desenvolvimento de um sistema comercial e financeiro aberto, baseado em regras, previsível e não discriminatório. •  Atender às necessidades especiais dos países menos desenvolvidos. Inclui: um regime isento de direitos e não sujeito a quotas para as exportações dos países menos desenvolvidos; um programa reforçado de redução da dívida dos países pobres muito endividados. •  Atender às necessidades especiais dos países interiores e dos pequenos estados insulares em desenvolvimento. •  Tratar globalmente o problema da dívida dos países em desenvolvimento, mediante medidas nacionais e internacionais, de modo a tornar a sua dívida sustentável no longo prazo. •  Em cooperação com os países em desenvolvimento, formular e executar estratégias que permitam que os jovens obtenham um trabalho digno e produtivo. •  Em cooperação com empresas farmacêuticas, proporcionar o acesso a medicamentos essenciais a preços acessíveis, nos países em vias de desenvolvimento. •  Em cooperação com o setor privado, tornar acessíveis os benefícios das novas tecnologias, em especial as tecnologias de informação e de comunicações.

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2 - Desenvolvimento humano: análise regional Alguns dos indicadores propostos internacionalmente não foram analisados nas seções a seguir por falta de informação ou acesso à mesma. Além disso, os indicadores utilizados para avaliar o desempenho das regiões e seus estados no cumprimento das metas estabelecidas diferem, algumas vezes, daqueles que foram propostos internacionalmente, por limitações nas fontes de informação. Quando a fonte de informação for a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, os dados para a região Norte e seus estados (exceto Tocantins a partir de 1992) não estarão sendo apresentados, uma vez que o IBGE não coleta informações para as áreas rurais nestes estados. Apenas no caso do estado do Tocantins, a partir de 1992, passou-se a coletar informações também para a área rural. Portanto, os números para os estados da região Norte não são comparáveis com os dos demais estados, cuja informação refere-se tanto a área urbana quanto rural. Além disso, há problemas de cobertura nos estados da região Norte, levando a que, muitas vezes, a amostra seja pequena, gerando grandes flutuações estatísticas. 2.1 - Erradicar a extrema pobreza e a fome O primeiro objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é a erradicação da extrema pobreza e da fome. Duas metas fazem parte desse objetivo: (a) reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior a 1 US$ PPC por dia, e (b) reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população que sofre de fome. Quatro indicadores foram utilizados para analisar o desempenho do Brasil, grandes regiões e estados no cumprimento destas metas: (i) porcentagem da população com renda abaixo da linha de extrema pobreza4, (ii) hiato médio de renda, (iii) porcentagem da renda nacional apropriada pelos 20% mais pobres da população, e (iv) porcentagem de crianças nascidas vivas com baixo peso ao nascer. Linhas de pobreza regionalizadas, estimadas pelo Ipea.

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Porcentagem da população abaixo da linha de extrema pobreza A Tabela 2 apresenta a porcentagem da população abaixo da linha de extrema pobreza para o período de 1981 a 2003, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros, com exceção da região Norte e seus estados. Em 2003, cerca de 10% da população brasileira ainda se encontrava vivendo em condições de extrema pobreza. Esse nível, contudo, não é muito diferente do observado no início dos anos 80 — 13%. Ou seja, nos últimos 23 anos a extrema pobreza foi reduzida em menos de 3 pontos percentuais. Vale observar que essa redução ocorreu durante os anos 90, uma vez que, ao longo da década anterior, a extrema pobreza chegou a aumentar. Enquanto o nível desse indicador para vários estados do Nordeste é cerca de três vezes maior que a média brasileira (veja Gráfico 1), os estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam níveis bem abaixo da média para o Brasil, chegando, no caso de Santa Catarina, a ser seis pontos percentuais menor. Ou seja, a desigualdade entre os estados em termos do número de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza é, essencialmente, uma desigualdade entre os estados do Nordeste e os estados das demais regiões. Apesar da redução na extrema pobreza ter ocorrido na maioria dos estados durante os anos 90, e mais intensamente nos estados da região Nordeste, observamos um aumento nesse indicador para o Distrito Federal e São Paulo. Observando a evolução da extrema pobreza em cada região e seus estados, notamos que houve uma acentuada convergência entre os estados da região Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, isto é, as diferenças entre os estados pertencentes a cada uma destas regiões diminuíram ao longo do tempo. Entre os estados da região Sul, apesar da aproximação entre Rio Grande do Sul e Paraná, não observamos uma convergência entre os três estados, havendo apenas uma troca de posição. Vale lembrar que, como os níveis de extrema pobreza nestes estados já são bem pequenos, a dificuldade em continuar reduzindo esse indicador é naturalmente maior. O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato do Brasil com relação à porcentagem da população abaixo da linha

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1981

1985

1990

1995

2001

2003

NORTE

TO

-

-

-

33,4

21,2

21,1

-

-

NORDESTE

AL BA CE MA PA PE PI RN SE

25,9 26,5 43,1 45,8 42,5 27,6 54,8 33,4 29,7

28,4 29,2 40,6 41,7 42,8 29,2 51,4 39,6 26,7

36,2 38,2 44,9 44,5 44,4 34,9 58,3 36,9 27,8

29,1 30,8 31,3 39,7 25,5 24,8 35,6 23,3 27,4

35,0 29,4 28,9 33,3 28,6 29,9 32,0 24,2 25,4

35,8 29,5 27,2 33,6 25,8 31,4 34,7 23,6 24,4

9,9 3,1 -15,9 -12,2 -16,7 3,9 -20,1 -9,8 -5,3

-0,5 -8,7 -17,7 -10,9 -18,6 -3,5 -23,6 -13,3 -3,4

CENTROOESTE

DF GO MT MS

6,9 16,2 9,1 9,1

8,0 11,6 7,4 7,0

5,4 12,4 10,3 9,3

4,7 10,4 9,7 7,6

7,8 7,6 8,6 7,9

10,5 7,8 8,2 6,3

3,5 -8,4 -0,9 -0,9

-0,9 -4,6 -2,1 -3,0

SUDESTE

ES MG RJ SP

9,4 12,7 7,3 4,6

10,7 13,4 9,4 5,3

18,7 13,5 10,9 4,7

10,3 9,5 6,9 4,6

9,7 8,8 7,6 6,2

7,8 8,1 7,3 6,9

-1,6 -4,6 0,0 2,3

-10,9 -5,4 -3,7 2,2

SUL

Tabela 2 Porcentagem da população abaixo da linha de extrema pobreza

PR RS SC

13,6 10,0 6,9

14,0 8,7 8,9

17,1 11,8 9,2

12,3 8,2 6,6

9,9 7,9 4,4

8,0 8,1 4,0

-5,5 -1,9 -2,9

-9,1 -3,7 -5,2

13,0

13,0

15,5

11,4

10,2

-2,8

-5,3

BRASIL

UFs

Variação A Variação B

Variação A: 1981 à 2003   Variação B: 1990 à 2003 Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) - 1981 a 2003. A Pnad não foi coletada em 1980 e 2000 devido aos Censos Demográficos, e também não foi coletada em 1994. Dados para os estados: BARROS, R. et alli (2004).

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

69


de extrema pobreza. Mais especificamente, o numerador desta razão é simplesmente a distância entre a porcentagem de pessoas extremamente pobres no estado A para o ano mais recente e sua respectiva meta para 2015, tendo como base o ano de 1990. Assim, por exemplo, a extrema pobreza no estado do Ceará em 1990 era de 44,9% e, portanto, sua meta para 2015 é 22,4. A distância entre o nível de extrema pobreza no Ceará em 2003 e a meta a ser atingida em 2015 (hiato do estado) é de 4,8. O denominador desta razão é a mesma conta feita anteriormente para o estado do Ceará, só que agora para o Brasil. Assim, estimamos a distância entre a porcentagem de pessoas extremamente pobres em 2003 e a meta a ser atingida pelo país em 2015. O indicador apresentado no Quadro 1 revela que o hiato do Ceará em relação a sua meta em 2015 é duas vezes maior que o hiato do país. Ou seja, esse indicador nos dá uma idéia do desempenho de cada estado, e do seu desafio em termos de atingir a meta estaGráfico 1 Pobreza extrema nos estados brasileiros (1 0,2003 e meta para 201 ) 60,0 ,0 0,0 4 ,0 40,0 3 ,0

3 ,8

30,0

34, 33,6

31,4

2 ,0 20,0

2 ,

2 ,2

2 ,8

21,0

24,4 23,6

1 ,0

10,2

10,0 10, 8,2

,0

,8

6,3

8,1

,8

,3

6,

8,1

8,0

TO

norte 1 0

AL

PI

MA

PE

BA

nordeste 2003

CE

PB

SE

RN

DF

MT

GO

MS

centro-oeste total Nac. 2003

, 4,0

0,0 MG

ES

RJ

SP

sudeste

RS

PR

SC

sul

meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) nota: Apenas para o estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana

70

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


belecida, em relação ao desafio da nação como um todo. Quando o indicador é menor do que 1, o estado se encontra em “melhor situação” (com um hiato menor); quando esse indicador é maior que a unidade, significa que o esforço que o estado necessita fazer para cumprir a meta até 2015 deve ser maior. As informações contidas nesse quadro revelam que os estados do Nordeste encontram-se a uma distância de suas respectivas metas cerca de 1,5 a 7 vezes a distância que o país se encontra de sua meta. Em 5 estados, dentre os 9 que fazem parte da região, esse indicador é superior a 4, isto é, o hiato desses estados em relação as suas metas é mais de 4 vezes maior o hiato do país. Nas demais regiões, os únicos estados que apresentam um hiato próximo ao dos estados da Região Nordeste são: Distrito Federal, Mato Grosso e São Paulo. Hiato de renda médio O hiato de renda médio é um indicador da média das distâncias relativas de renda de todos os indivíduos, sejam eles extremamente pobres ou não. Para uma pessoa em situação de extrema pobreza esse indicador é definido como a distância da sua renda à linha de extrema pobreza, medida como fração da linha de extrema pobreza. Para os que não são extremamente pobres o hiato de renda é definido como sendo nulo. As estimativas do hiato de renda médio para a população abaixo da linha de extrema pobreza para o período de 1981 a 2002, e para todas as regiões e estados brasileiros encontram-se na Tabela 3. Em 2002, o hiato de renda médio era cerca de 5%, apenas 1,6 ponto percentual abaixo da estimativa para 1981. Ou seja, em 23 anos o hiato de renda médio foi reduzido em menos de 2 pontos percentuais. De forma similar ao que ocorreu com a porcentagem de extremamente pobres, quando restringimos o período a partir de 1990, a variação no indicador passa a ser duas vezes maior. Enquanto o nível desse indicador para os estados do Nordeste é cerca do dobro da média brasileira (veja Gráfico 2), os estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam níveis bem abaixo da média para o Brasil, chegando, no caso de Santa Catarina, a ser quatro pontos percentuais menor. Ou seja, como no caso do

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

71


Quadro 1 Razão entre o hiato do estado e o hiato do Brasil1

população abaixo da linha de extrema pobreza

Hiato de renda médio (P1)

% da renda apropriada pelos 20% mais pobres

% de nascidos vivos com baixo peso ao nascer

NORDESTE

AL PI MA PE BA CE PB SE RN

7,3 2,3 4,7 5,8 4,3 2,0 1,5 4,4 2,1

1,6 4,0 2,6 1,7 1,9 2,4 2,8 1,2 2,1

2,5 0,5 1,4 1,6 1,3 1,5 0,4 2,2 1,2

0,9 0,8 0,8 0,9 1,0 0,8 0,8 0,9 0,9

NORTE

TO

0,4

2,6

-

0,8

CENTROOESTE

DF MT GO MS

3,2 1,3 0,7 0,7

0,2 0,4 0,6 0,4

1,5 1,6 0,8 1,5

1,1 0,8 0,9 0,9

SUDESTE

MG ES RJ SP

0,6 0,0 0,8 1,9

0,6 1,0 0,5 0,3

1,2 0,5 1,5 2,0

1,2 0,9 1,1 1,1

SUL

Objetivo 1: Erradicar a extrema pobreza e a fome

RS PR SC

0,9 0,0 0,0

0,6 0,9 0,4

1,3 1,2 1,1

1,2 1,0 1,0

Estados/ ODMs

Fonte: os três primeiros indicadores são obtidos com base nas Pesquisas por Amostra de Domicílios (Pnad); O indicador de baixo peso ao nascer é obtido com base no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Nota: 1 Razão entre o hiato do indicador para o estado (ano mais recente) e sua respectiva meta para 2015, e o hiato do indicador entre o Brasil e a meta estabelecida para 2015.

indicador anterior, a desigualdade entre os estados em termos do hiato de renda médio é, essencialmente, uma desigualdade entre os estados do Nordeste e os estados das demais regiões.

72

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Apesar da maior redução do hiato de renda médio ter ocorrido na maioria dos estados durante os anos 90, e mais intensamente nos estados da região Nordeste, observamos na Tabela 3 um aumento nesse indicador para o Distrito Federal e São Paulo. No que diz respeito à convergência entre as grandes regiões, observamos que estas vêm tornando-se mais parecidas com relação ao hiato de renda médio, principalmente em decorrência da maior redução ocorrida na Região Nordeste. A diferença entre a região com o maior valor para esse indicador e aquela com o menor valor passou de 11 para 8 ao longo do período analisado. Entre os estados de cada uma das regiões há uma acentuada convergência entre os estados das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, isto é, as diferenças entre os estados pertencentes a cada uma destas regiões diminuíram ao longo do tempo. Entre os estados da Região Sul, apesar da aproximação entre o Rio Grande do Sul e Paraná, não observamos uma convergência entre os três estados; há apenas uma troca de posição. Vale lembrar que, como os níveis de extrema pobreza nestes estados já são bem pequenos, a dificuldade em continuar reduzindo esse indicador é naturalmente maior. O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato do Brasil com relação a esse indicador. Assim, por exemplo, o hiato de renda médio no estado do Ceará em 1990 era de 19,4% e, portanto, sua meta para 2015 é 9,7%. A distância entre o nível desse indicador no Ceará em 2002 e a meta a ser atingida em 2015 (hiato do estado) é de 0,4, uma vez que o nível desse indicador em 2002 era de 10,0%. O indicador apresentado no Quadro 1 revela que o hiato do Ceará em relação a sua meta em 2015 é praticamente idêntico ao hiato do país. Ou seja, esse indicador nos dá uma idéia de que o estado do Ceará, no que diz respeito ao hiato de renda médio, vem caminhando a uma velocidade similar a do país como um todo. As informações contidas nesse quadro revelam que todos os estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam um hiato em relação a sua meta para 2015 que é igual ou inferior ao hiato do país. Como já era de se esperar, apesar de toda a melhoria observada nos estados do Nordeste, a distância à meta estabelecida em 2015 é maior do que a distância observada para o país, encontrando-se entre 1,2% (Sergipe) e 4,0% (Piauí).

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

73


Tabela 3 Hiato de renda médio (P1) Extrema pobreza UFs

1981 1985 1990 1995 2001 2003

Variação A

Variação B

N

3,8

3,5

5,3

7,0

7,2

5,8

1,9

0,5

TO

0,0

0,0

0,0

16,1

9,3

6,5

-

-14,5

NE

14,0

14,9

17,6

12,9

13,1

10,1

-3,9

-7,6

AL BA CE MA PA PE PI RN SE

9,5 9,0 18,2 19,8 18,5 10,3 26,8 13,8 10,2

9,3 10,7 17,1 17,0 18,7 12,3 32,8 16,7 10,2

12,8 15,1 19,4 21,1 22,4 14,1 32,2 16,7 9,9

11,1 12,7 13,6 18,1 11,3 9,8 18,3 8,8 11,5

14,7 12,7 13,1 14,1 12,0 13,4 15,7 10,1 11,6

11,8 10,0 10,0 10,7 7,9 10,0 12,8 9,0 7,3

2,3 1,1 -8,1 -9,0 -10,6 -0,2 -14,0 -4,8 -2,9

-1,0 -5,1 -9,3 -10,4 -14,5 -4,1 -19,4 -7,7 -2,6

CO

4,2

3,0

4,0

3,7

3,8

3,1

-1,1

-0,9

DF GO MT MS

2,8 5,7 2,8 2,3

2,7 3,8 2,0 2,1

2,0 5,0 3,5 3,2

2,1 4,2 4,1 3,4

3,9 3,6 4,4 3,5

3,1 3,2 3,4 2,5

0,3 -2,5 0,6 0,2

1,1 -1,9 -0,1 -0,7

SE

2,9

3,0

3,5

2,9

3,6

2,6

-0,2

-0,8

ES MG RJ SP

3,1 4,3 3,0 2,0

3,1 4,4 3,2 2,2

8,0 4,9 4,0 2,2

4,2 3,8 2,7 2,5

4,5 4,1 3,3 3,5

2,9 2,9 2,1 2,7

-0,2 -1,4 -0,9 0,6

-5,0 -1,9 -2,0 0,5

S PR RS SC BR

3,9 4,8 3,6 2,6 6,5

3,8 4,9 3,0 3,1 6,6

5,4 7,0 5,1 3,3 8,1

3,7 4,8 3,3 2,8 6,2

3,5 4,7 3,3 1,8 6,6

2,2 2,4 2,7 1,0 4,9

-1,6 -2,3 -0,9 -1,6 -1,6

-3,2 -4,6 -2,3 -2,3 -3,2

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul) Variação A: 1981 à 2002   Variação B: 1990 à 2002 Fonte: Ipea Data. As estimativas são baseadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) - 1981 a 2002. A Pnad não foi coletada em 1980 e 2000 devido aos Censos Demográficos, e também não foi coletada em 1994. Notas: Hiato de Renda Médio: média dos hiatos relativos de renda de todos os indivíduos, sejam eles extremamente pobres ou não. Define-se como hiato relativo de renda para uma pessoa extremamente pobre a distância da sua renda (Y) à linha de extrema pobreza (Z), medida como fração desta linha (Z-Y)/Z. Para as pessoas não-pobres, define-se o hiato de renda como sendo nulo.

74

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 2 hiato de Renda Médio nos estados brasileiros (1 0, 2003 e meta para 201 ) 3 ,0 30,0 2 ,0 20,0 1 ,0 11,8

10,0

12,8 10, 10,0 10,0 10,0 ,

,0

,0

4,

,3 3,1

6,

3,4

3,2

0,0 TO

norte 1 0

AL

PI

MA

PE

BA

nordeste 2002

CE

PB

SE

RN

DF

MT

GO

2, MS

centro-oeste total Nac. 2002

2, MG

2,

2,1

2,

ES

RJ

SP

sudeste

2, RS

2,4

1,0

PR

SC

4,0

sul

meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana

Porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres A Tabela 4 apresenta a porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres da distribuição de renda para o período de 1981 a 2001, e para todas as regiões e estados brasileiros, exceto os da região Norte. Em 2001, os 20% mais pobres se apropriavam de apenas 2,3% da renda5. Essa parcela da renda apropriada por esse grupo apresenta-se bastante estável ao longo do tempo, variando apenas 0,3 entre 1981 e 2001. O comportamento desse indicador, no entanto, foi distinto nas duas décadas. Durante os anos 80, a parcela da renda apropriada pelos nove primeiros décimos da distribuiRenda total das famílias captada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). 5

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

75


ção de renda diminuiu ou permaneceu constante; apenas a parcela referente ao último décimo aumentou. Assim, observamos na Tabela 4 que a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres caiu em 0,5. Segundo Ramos e Mendonça (2005), ao longo dos anos 90, a parcela da renda apropriada pelos oito primeiros décimos da distribuição aumentou, e a parcela referente aos dois últimos décimos (os mais ricos) diminuiu. Considerando o período 1990 a 2001, há um ligeiro aumento na parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres (0,2), gerando, para o período como um todo, uma queda de 0,3 ponto percentual. Vários estados do Nordeste — Alagoas, Bahia, Ceará, Pernambuco e Sergipe — além do Distrito Federal, Mato Grosso e São Paulo apresentaram uma redução, tanto durante os anos 80 quanto durante os 90, na parcela da renda apropriada pelos mais pobres, o que preocupa em termos do cumprimento da meta estabelecida. Por outro lado, cinco estados se destacaram em termos desse crescimento, variando entre 0,7 e 1,1: Paraíba, Piauí, Goiás, Espírito Santo e Santa Catarina. O maior crescimento foi observado na Paraíba. Em todos os estados da região Nordeste, com exceção do Piauí, a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres é igual ou maior que a média para o Brasil, situando-se no intervalo de 2,3 a 3,1 (veja Gráfico 3). De fato, na grande maioria dos estados brasileiros a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres encontra-se entre 2% e 3%, não havendo entre eles grandes disparidades. Vale ressaltar que as disparidades entre os estados, quando observamos a renda apropriada pelo 1% mais rico, são bem mais elevadas, com uma diferença de 9 pontos percentuais entre o estado onde esse 1% se apropria da maior parcela — 17,6% (Alagoas) — e aquele onde esse grupo se apropria da menor parcela — 8,6% (Santa Catarina). Ou seja, os pobres são bem mais homogêneos no Brasil do que os ricos, quando se trata da parcela da renda apropriada. Santa Catarina é o estado onde os 20% mais pobres se apropriam da maior parcela da renda e o estado onde o 1% mais rico se apropria da menor parcela da renda. No que diz respeito à convergência entre as grandes regiões, os resultados revelam que as diferenças se mantiveram ao longo do tempo. Em 1981, a diferença entre as regiões (não considerando a

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Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 4 Porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres UFs

1981 1985 1990 1995 2001

Variação A

Variação B

Variação C

N

4,2

3,6

5,3

2,9

2,9

3,1

0,2

-1,1

NE

3,3

3,1

17,6

2,6

2,7

2,6

0,0

-0,8

AL BA CE MA PB PE PI RN SE

4,1 3,8 3,3 3,7 3,4 3,6 3,3 3,3 4,2

4,3 3,3 3,1 4,4 2,9 3,2 1,8 3,0 3,8

12,8 15,1 19,4 21,1 22,4 14,1 32,2 16,7 9,9

3,9 2,6 2,8 3,0 1,8 2,8 1,6 2,6 3,6

2,7 2,7 2,5 2,8 2,5 3,2 2,2 3,0 2,8

2,7 2,7 2,4 3,1 2,9 2,3 2,2 2,8 2,7

-1,2 0,0 -0,3 0,1 1,1 -0,5 0,7 0,2 -0,9

-1,4 -1,1 -0,8 -0,7 -0,5 -1,3 -1,1 -0,6 -1,5

CO

3,1

3,0

4,0

2,5

2,8

2,7

0,3

-0,3

DF GO MT MS

2,7 3,1 4,2 3,9

2,4 3,1 3,7 3,6

2,0 5,0 3,5 3,2

2,4 2,4 3,1 3,1

2,4 3,2 3,1 3,3

1,9 3,2 2,9 3,1

-0,5 0,8 -0,2 0,0

-0,8 0,1 -1,3 -0,7

SE

3,0

2,9

3,5

2,7

2,8

2,8

0,1

-0,2

ES MG RJ SP

3,1 3,1 3,1 3,8

2,9 2,9 3,0 3,6

8,0 4,9 4,0 2,2

1,8 2,6 2,9 3,5

2,5 2,7 3,0 3,4

2,6 2,9 2,9 3,0

0,7 0,2 0,0 -0,5

-0,5 -0,2 -0,2 -0,8

S PR RS SC BR

3,5 3,5 3,3 4,2 2,7

3,2 3,1 3,2 3,8 2,5

5,4 7,0 5,1 3,3 8,1

2,7 2,6 2,8 3,0 2,1

2,9 2,6 3,1 3,3 2,3

3,1 3,1 3,0 4,0 2,3

0,4 0,2 0,3 0,9 0,2

-0,4 -0,7 -0,3 -0,3 -0,3

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil) Variação A: 1981 à 1990    Variação B: 1990 à 2001   Variação c: 1981 à 2001 Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) - 1981 a 2001. A Pnad não foi coletada em 1980 e 2000 devido aos Censos Demográficos, e também não foi coletada em 1994.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

77


Região Norte por problemas de comparabilidade mencionados anteriormente) que apresentavam o melhor e o pior indicador era de 5 pontos percentuais; em 2001 observamos a mesma diferença. Já com relação aos estados em cada uma das regiões, observamos um ligeiro aumento das disparidades entre os estados das Regiões Centro-Oeste e Sul ao longo do período analisado. Em 1981, a razão entre a maior e a menor parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres na Região Centro-Oeste era 1,6 e na região Sul era 1,3. Isso quer dizer que, na região Centro-Oeste, no estado onde os pobres estavam em melhor situação, a proporção da renda por eles apropriada era 1,6 vez maior do que o estado onde os mais pobres estavam em pior situação. Em 2001 esses números são, respectivamente, 1,7 e 1,4. As outras duas regiões — Nordeste e Sudeste — revelam uma tendência bem mais clara e de convergência entre os estados. Em suma, enquanto que as diferenças entre os estados com relação a esse indicador parecem estar crescendo nas regiões Centro-Oeste e Sul, nas duas outras regiões essas diferenças estão cada vez menores. O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato do Brasil com relação à porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres da população. Assim, por exemplo, a porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres no estado do Ceará em 1990 era de 2,8% e, portanto, sua meta para 2015 é de 5,5%. A distância entre o nível desse indicador no Ceará em 2001 e a meta a ser atingida em 2015 (hiato do estado) é de 3,1 (houve uma redução na porcentagem da renda desse grupo), uma vez que o nível desse indicador em 2001 era de 2,4%. As informações apresentadas no Quadro 1 revelam que os três estados que mais se distanciam da média brasileira em termos do hiato em relação à meta de 2015 são Alagoas, Sergipe e São Paulo. Ou seja, esses três estados são os que, relativamente ao país, encontram-se mais distantes de suas metas para 2015. São quatro os estados que apresentam esse indicador menor do que 1, isto é, o hiato deles em relação as suas metas é inferior ao hiato da nação: Piauí, Paraíba, Goiás e Espírito Santo. Em suma, se esse cenário perseverar, principalmente naqueles estados que apresentaram redução na parcela da renda apropriada pelos mais pobres, os estados enfrentarão dificuldades para atingir a meta estabelecida até 2015.

78

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 3 Porcentagem da renda nacional apropriada pelos 20% mais pobres nos estados brasileiros (1 0, 2001 e meta para 201 ) ,0 4,

4,3

4,0 3,

3,

3,6

3,0

3,0

2,

3, 3,1

2,8

2,6

2,8

2,0

2,8

2,3

2,6

2,4 1,8

1,8

1,6

3,0

2, 2,6

2,6 2,4

1,

3,1

1,0 0, 0,0 AL

PI

MA

PE

BA

CE

nordeste 1 0

2001

PB

SE

RN

DF

MT

GO

MS

centro-oeste total Nac. 2001

MG

ES

RJ

SP

sudeste

RS

PR

SC

sul

meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)

Porcentagem de nascidos vivos com baixo peso ao nascer A porcentagem de nascidos vivos com peso ao nascer inferior a 2.500 gramas em relação ao total de nascidos vivos, segundo o Ministério da Saúde “expressa retardo do crescimento intra-uterino ou prematuridade e representa importante fator de risco para a morbimortalidade neonatal e infantil”. Valores abaixo de 10% são aceitáveis internacionalmente, embora esse número esteja em torno de 6% nos países desenvolvidos. No Brasil, conforme mostra a Tabela 5, cerca de 8% das crianças nascidas vivas em 2002 apresentavam baixo peso ao nascerem. Essa porcentagem não apresenta grandes variações entre 1994 e 2002, com uma redução de menos de 1 ponto percentual.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

79


Em todas as regiões e estados brasileiros os valores encontrados estão abaixo de 10% e, portanto, dentro dos limites das metas recomendadas internacionalmente. A média desse indicador para a Região Norte6 encontra-se abaixo de 7. As regiões Nordeste e CentroOeste apresentam níveis que variam entre 7,0 e 7,5. Por outro lado, nas regiões Sudeste e Sul o nível desse indicador encontra-se acima de 8,0. A explicação mais imediata para observarmos níveis menores do indicador nas regiões mais pobres, e níveis elevados nas regiões mais ricas, deve-se aos problemas de cobertura populacional, conforme o próprio Ministério da Saúde adverte. As disparidades regionais estão apresentadas no Gráfico 4, indicando uma diferença de 3,4 pontos percentuais entre os estados com o melhor e o pior desempenho. Ao longo do período analisado as disparidades regionais com relação a esse indicador se mantêm. Exceto para a Região Nordeste, onde a redução nesse indicador é sensivelmente maior do que nas demais regiões (-2,5), os números apresentam-se relativamente constantes ao longo dos anos analisados. A razão entre as regiões com melhor e pior desempenho era de 1,4 em 1981 e em 2002. As regiões Norte e Sul são as únicas que apresentaram crescimento nesse indicador. Ou seja, ao longo desse período não observamos uma aproximação entre as regiões com relação a esse indicador. As disparidades entre os estados dentro de uma mesma região também seguem esse comportamento, isto é, permanecem estáveis ao longo do tempo. Entretanto, vale ressaltar que, para a grande maioria dos estados, a partir de final dos anos 90, observamos um aumento na porcentagem de crianças nascidas abaixo do peso. Esse fato pode ser simplesmente o reflexo de uma melhoria no sistema de coleta de informações mas, de qualquer forma, merece ser investigado em maior profundidade. As estimativas para Roraima apresentam um comportamento sempre crescente, diferentemente dos demais estados. Amapá e Rondônia podem ser considerados exceções, pois apresentam maiores oscilações. Como podemos observar na Tabela 5, a razão entre o A fonte de informações para esse indicador não é mais a Pnad. Assim, apesar dos problemas de cobertura ainda persistirem na Região Norte, estes números referem-se às áreas urbanas e rurais. 6

80

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 5 Porcentagem de nascidos vivos e cujo peso ao nascer foi menor que 2.500 g UFs

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

Variação 1994 à 2002

N AC AP AM PA RO RR TO NE

6,7 6,9 9,0 7,5 6,4 6,1 5,3 6,4 9,7

6,6 6,6 8,7 7,6 6,3 5,9 5,9 5,8 7,0

6,5 7,2 8,4 7,0 6,1 5,7 6,1 6,6 7,1

6,4 7,1 7,8 6,9 6,3 5,5 6,4 6,4 7,0

6,5 7,5 8,1 6,8 6,2 5,7 6,8 6,4 7,1

6,3 7,5 6,3 6,9 6,2 5,3 6,6 6,1 6,9

6,3 6,9 7,2 7,2 6,2 4,1 6,7 6,3 6,8

6,5 6,7 8,3 6,8 6,2 5,4 7,4 6,6 7,0

6,8 6,5 8,0 7,5 6,5 6,0 7,1 6,4 7,2

0,02 -0,39 -1,04 -0,04 0,11 -0,12 1,77 0,06 -2,47

AL BA CE MA PB PE PI RN SE

6,6 8,2 6,4 7,3 8,3 7,6 8,1 8,3

7,3 7,8 5,5 7,2 8,0 6,9 7,3 7,0 7,2

7,3 8,1 5,6 6,7 7,0 7,0 7,6 7,0 7,1

6,5 7,6 6,3 6,5 7,2 7,0 7,4 7,1 7,0

6,7 7,6 6,4 7,2 7,2 7,3 6,8 7,1 7,2

6,5 7,2 6,6 7,0 6,3 7,1 6,8 6,9 7,0

6,5 7,3 6,0 7,0 6,4 7,1 6,4 6,9 6,8

6,5 7,5 6,6 7,1 6,1 7,1 6,4 7,4 7,3

7,0 7,9 6,8 6,9 6,1 7,6 6,5 7,6 7,7

0,34 -0,31 0,45 -0,46 -2,19 -0,01 -1,66 -0,67 0,44

CO

7,7

7,1

7,2

7,1

7,3

7,1

7,1

7,2

7,7

-0,28

DF GO MT MS

8,8 7,2 7,2 7,8

8,0 7,0 6,4 7,2

8,4 6,9 6,5 7,6

8,1 6,8 6,2 7,6

8,4 7,1 6,6 7,3

8,1 6,9 6,3 7,3

8,3 6,8 6,4 7,0

8,7 7,1 6,3 6,8

8,9 7,2 6,4 7,3

0,10 0,01 -0,58 -0,50

SE

9,3

9,0

8,8

8,7

8,8

8,5

8,6

9,0

9,1

-0,12

ES MG RJ SP

9,3 10,7 9,1 9,3

7,5 10,1 9,0 9,0

7,5 9,5 8,9 8,7

7,4 9,1 8,8 8,7

7,5 9,3 8,9 8,7

7,2 8,8 8,5 8,4

7,4 8,8 8,6 8,7

7,6 9,2 9,1 9,0

7,7 9,5 9,2 9,1

-0,03 -1,27 0,07 -0,25

S PR RS SC BR

8,1 7,9 7,9 7,1 7,1

7,8 7,7 8,4 7,2 7,9

7,8 7,6 8,5 6,9 7,9

7,9 7,7 8,5 7,1 7,8

8,1 7,8 8,7 7,6 7,9

8,0 7,7 8,8 7,3 7,7

8,1 7,9 8,8 7,2 7,7

8,5 8,3 9,0 7,8 8,0

8,6 8,4 9,4 7,9 8,1

0,56 0,43 0,68 0,80 -0,62

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil) Fonte: Ministério da Saúde/SVS - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). notas: a) No número de partos considerados, não foram contados os partos com peso ao nascer ignorado. b) A proporção de nascidos vivos com baixo peso está calculada sobre o número de partos considerados. c) Foram considerados de baixo peso os nascidos vivos com peso inferior a 2.500g, independentemente do tempo de gestação. d) O tempo de gestação a termo foi con-

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

81


Gráfico 4 Porcentagem dos nascidos vivos com baixo peso ao nascer nos estados brasileiros (1 4, 2002 e meta para 201 ) 1 ,0 14,0 13,0 12,0 11,0 10,0 ,0 ,6

,0 6,0

,

8,

8,0 6,4

,0

6,

,

,

,6

,2

6,8

6,

,1

8,4

,

,3

8,1

,4 ,

6,4

6,1

,0

,2

4,1

4,0 3,0 2,0 1,0 0,0 TO

norte 1 4

AL

PI

MA

PE

BA

nordeste 2002

CE

PB

SE

RN

DF

MT

GO

MS

centro-oeste total Nac. 2002

MG

ES

RJ

SP

sudeste

RS

PR

SC

sul

meta Nac. 201

fonte: Ministério da Saúde/SVS - Sistemas de informações sobre Nascidos Vivos (SINASC). nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana.

estado da Região Norte com o maior e aquele com o menor nível do indicador é a que mais oscila ao longo do tempo, mas apresenta uma clara tendência de convergência entre os estados. O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato do Brasil com relação à porcentagem de nascidos vivos com baixo peso ao nascer. As estimativas apresentadas revelam, em primeiro lugar, uma certa homogeneidade entre os estados com respeito a esse indicador, o que significa que a distância entre o nível do indicador em 2002 e a meta estabelecida até 2015 não difere muito. Portanto, as razões entre esses hiatos e o hiato do Brasil em relação a sua meta não são muito diferentes. Os estados para os quais essa razão é maior do que a unidade são: Distrito Federal (1,1), Minas Gerais (1,2) e Rio Grande do Sul (1,2). Ou seja, esses são os estados que, relativamente ao país, encontram-se mais distantes de suas metas para 2015.

82

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Finalmente, no que diz respeito à meta de redução pela metade na porcentagem de nascidos vivos com baixo peso ao nascer, o Brasil e seus estados deverão empreender esforços para aumentar a velocidade de redução desse indicador; caso contrário, dificilmente atingirão a meta em 2015. A velocidade com que esse indicador vem melhorando ao longo do tempo, apesar do grande esforço empreendido pelos estados da região Norte, coloca o país numa situação ainda muito delicada com relação ao cumprimento dessa meta até 2015. Entre 1994 e 2002 o país observou uma redução de menos de um ponto percentual na porcentagem de crianças nascidas vivas que apresentavam baixo peso. 2.2 - Atingir o ensino fundamental básico O segundo objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é atingir o Ensino Fundamental básico. Apenas uma meta faz parte desse objetivo: garantir que até 2015 todas as crianças, de ambos os sexos, concluam o Ensino Fundamental básico. O indicador utilizado para analisar o desempenho do Brasil, grandes regiões e estados no cumprimento dessa meta foi a taxa esperada de conclusão (%) para o ensino básico (Primeiro Grau). Taxa esperada de conclusão (%) para o ensino básico (primeiro grau) A Tabela 6 apresenta a taxa esperada de conclusão do Primeiro Grau (8ª série) para os anos de 1995 a 2000, para o Brasil e todos os estados. Essas estimativas foram obtidas com base nos Censos Escolares do MEC e, portanto, são de natureza distinta daquelas estimadas com base nas pesquisas domiciliares. No primeiro caso a informação é coletada na escola e, no segundo, no domicílio de residência. Em 2000, apenas cerca de 60% das crianças que ingressavam no Primeiro Grau o concluíam. Essa estimativa é cerca de 7 pontos percentuais maior do que a observada para o ano de 1995. Portanto, conforme mostra o Gráfico 5, o hiato entre o indicador para o país em 2000 e a meta estabelecida para 2015 — 100% das crianças concluindo o Primeiro Grau — é de cerca de 40 pontos percen-

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

83


tuais. Assim, se o país mantiver essa velocidade de aumento na taxa esperada de conclusão do Primeiro Grau — 7 pontos percentuais a cada cinco anos — em 2015 o país ainda não terá alcançado a meta estabelecida, uma vez que sua taxa de conclusão estará em torno de 80%. De fato, se esse ritmo for mantido, o país estará atingindo a meta estabelecida apenas por volta do ano 2030. As diferenças entre as regiões e estados são elevadas, conforme podemos observar no Gráfico 5. Apenas os estados do Sul e do Sudeste, além do Ceará, Distrito Federal e Goiás, encontram-se acima ou muito próximos a média brasileira. Novamente, o desempenho de grande parte dos estados das regiões Norte e Nordeste encontrase acima da média. No Norte, por exemplo, com exceção dos estados de Roraima, Amapá e Tocantins, a taxa de conclusão do Primeiro Grau aumentou entre 13 e 17 pontos percentuais, revelando um desempenho acima do observado para o país como um todo. Contudo, apesar desse melhor desempenho, a distância da meta estabelecida para esses estados ainda se encontra muito elevada, variando entre 49 e 90 pontos percentuais. O comportamento dos estados da Região Nordeste com respeito a esse indicador também é heterogêneo, com a distância a meta estabelecida variando entre 58 pontos percentuais em Sergipe, e 30 pontos percentuais no Ceará. Dentre os quatro estados que apresentaram uma variação bem menor no período analisado — 0,6 a 5,3 pontos percentuais — o Ceará encontra-se numa situação distinta dos outros três estados, uma vez que sua taxa de conclusão é não somente a mais elevada no Nordeste, mas é a segunda mais elevada de todo o país, só perdendo para São Paulo. De qualquer forma, ao longo do período analisado a taxa de conclusão aumentou apenas em 4 pontos percentuais, o que significa que se esse estado não aumentar substancialmente a velocidade de melhoria desse indicador, não vai conseguir atingir a meta estabelecida para 2015. De fato, a essa velocidade, o Ceará vai atingir a meta somente por volta do ano de 2037, o que revela uma situação dramática mesmo para o estado que apresenta a segunda maior taxa de conclusão do país. Os estados da Região Centro-Oeste despertam ainda maior preocupação uma vez que, como no Tocantins, a taxa de conclusão do Primeiro Grau se reduz ao longo do período analisado e no Mato

84

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Grosso do Sul ela praticamente não se move. Apenas o estado do Mato Grosso apresenta um bom desempenho, aumentando a taxa de conclusão em 24 pontos percentuais, apesar do nível desse indicador em 2000 ainda ser baixo. Os estados das regiões Sudeste e Sul são os que apresentam as maiores taxas de conclusão. No Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, entretanto, o aumento na taxa de conclusão foi significativamente menor. Com relação à convergência entre as grandes regiões, a Tabela 6 revela que não houve convergência entre as grandes regiões brasileiras. Em verdade, as diferenças aumentaram. Em 1995, a diferença entre as regiões com a maior e a menor taxa de conclusão era de 26 pontos percentuais; em 2000 essa diferença aumentou para 31 pontos percentuais. Entre os estados das regiões Norte e Sul não houve convergência, isto é, aumentaram as diferenças entre os estados em cada uma das regiões. Nas demais regiões observamos uma tendência para que os estados se tornem cada vez mais parecidos. Em suma, os resultados apresentados revelam que, com relação a essa meta, a situação do país e de seus estados ainda é delicada. Portanto, muito ainda há por ser feito com respeito a aumentar a atratividade da escola de tal forma a aumentar os incentivos para que as crianças concluam o Primeiro Grau, uma vez que o acesso já está praticamente universalizado e não existem diferenças significativas por gênero7 (promover a igualdade entre os sexos no Ensino Fundamental não parece ser um problema). 2.3. Reduzir a mortalidade na infância O quarto objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é reduzir a mortalidade na infância. Apenas uma meta faz parte desse objetivo: reduzir em 2/3, entre 1990 e 2015, a mortalidade de crianças menores de 5 anos. Apesar da meta estaO terceiro objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é a eliminar as desigualdades de gênero nos níveis de ensino fundamental, secundário e universitário. Esse objetivo não foi tratado explicitamente nesse artigo. 7

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

85


Tabela 6 Taxa Esperada de Conclusão (%) para o ensino básico (Primeiro Grau) UFs

1995

1996

1997

1998

1999

2000

Variação 1994 - 2002

N RO AC AM RR PA AP TO NE

29,0 28,8 35,5 37,6 26,8 21,9 44,1 38,3 41,0

35,1 35,1 53,3 43,3 46,3 31,3 42,9 34,7 44,1

32,5 40,1 30,9 48,6 35,4 29,4 40,5 38,0 50,3

36,3 44,6 46,2 47,9 45,4 27,3 49,4 38,8 53,1

37,3 46,1 46,5 50,1 34,1 33,3 48,8 28,6 50,7

37,8 46,3 48,4 52,6 34,5 36,4 51,7 21,6 49,5

8,8 17,5 12,9 15,0 7,7 14,5 7,6 -16,7 8,5

AL BA CE MA PB PE PI RN SE

36,6 39,3 65,5 39,1 33,4 37,8 23,4 36,2 41,0

50,2 45,3 50,3 45,0 46,2 45,2 33,8 52,4 40,4

44,9 50,2 60,7 43,1 47,5 53,0 40,1 63,2 52,1

51,0 51,3 69,8 47,1 51,1 53,0 42,1 57,2 49,5

57,2 45,9 63,8 44,7 52,1 51,0 43,3 59,7 47,6

52,8 44,6 69,4 43,6 47,0 54,3 43,0 50,1 41,6

16,2 5,3 3,9 4,5 13,6 16,5 19,6 13,9 0,6

CO

50,7

50,5

48,2

52,2

49,9

-0,8

DF GO MT MS

63,6 63,0 26,6 39,9

64,1 50,0 54,3 39,3

61,4 47,6 41,4 45,7

64,8 55,2 45,1 48,0

58,2 49,1 50,5 40,5

-5,4 -13,9 23,9 0,6

SE

55,3

61,2

70,3

55,2 61,5 56,6 51,7 49,7 6,83 65,9

64,4

68,7

13,4

ES MG RJ SP

51,7 58,2 49,2 56,2

46,8 61,6 59,2 64,5

70,3 73,2 69,8 71,4

62,3 62,7 63,6 75,5

63,7 60,7 61,3 74,8

58,7 64,7 64,6 73,3

7,0 6,5 15,4 17,1

S PR RS SC

54,4 49,5 58,1 57,0 51,9

57,4 57,4 62,8 58,5 58,4

67,5 63,8 66,4 71,9 65,8

59,5 57,6 64,1 67,4 63,0

63,1 60,6 63,4 66,8 61,1

64,1 61,1 66,2 69,3 59,3

9,7 11,6 8,1 12,3 7,4

BR

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil) Fonte: MEC/Inep. Geografia da Educação Brasileira - 2001.

belecer a redu-ção da mortalidade de crianças menores de 5 anos, utilizamos também a mortalidade de crianças menores de 1 ano. As estimativas apresentadas foram obtidas com base nos Censos Demográficos de 1991 e de 2000.

86

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico Taxa esperada de conclusão (%) no Primeiro Grau para os estados brasileiros (1 , 2000 e meta para 201 ) 100,0

,3 3 ,

AC AP

44,1

AM

norte

3 ,6

PA

21,

RO

28,8

RR

26,8

TO

38,3 36,6

AL 23,4

PI

nordeste

MA

3 ,1

PE

3 ,8

BA

3 ,3

CE

6 ,

PB

33,4

SE

41,0

RN

36,2 63,6

DF

centro-oeste

MT

26,6

GO

63,0

MS

3 , 8,2

MG

sudeste

1,

ES

4 ,2

RJ

6,2

SP

8,1

RS

sul

4 ,

PR

,0

SC

10,0

1

20,0

30,0

40,0

2000

0,0

60,0

0,0

80,0

0,0

total Nac. 2000

100,0

110,0

meta Nac. 201

fonte: MEC/Inep. Geografia da Educação Brasileira - 2001.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

87


Reduzir em 2/3, entre 1990 e 2015, a mortalidade de crianças menores de 5 anos de idade A Tabela 7 apresenta a evolução entre 1991 e 2000 da taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos), para crianças até 1 ano e até 5 anos de idade, para o Brasil e seus estados. Entre 1991 e 2000, a taxa de mortalidade infantil no Brasil caiu em cerca de 15 óbitos (por mil nascidos vivos) — de 54,5 (1991) para 39,3 (2000). Apesar da queda, o nível desse indicador para o Brasil ainda é elevado se comparado ao de países vizinhos como Peru, Argentina, Colômbia, México e Venezuela, entre outros. De fato, dado o nível de renda per capita do Brasil, a taxa de mortalidade infantil deveria ser substancialmente mais baixa, isto é, o Brasil encontra-se acima da média prevista para países com seu nível de desenvolvimento econômico. Apesar da redução observada em todos os estados brasileiros (com os estados da Região Nordeste liderando essa redução), ainda permanecem diferenças acentuadas entre eles com respeito a esse indicador (veja Gráfico 6). A mortalidade em alguns estados do Nordeste chega a ser mais de seis vezes maior do que a mortalidade observada em estados do Sul, por exemplo. Essa redução na taxa de mortalidade infantil é, na verdade, o reflexo de inúmeras ações realizadas, ao longo de um período de tempo maior, na área de saneamento, saúde e educação. No setor de saúde, vale destacar o Programa de Saúde da Família (PSF), criado mais recentemente. Os indicadores mostram, contudo, que ainda há muito a ser feito para que o nível desse indicador seja compatível com seu nível de desenvolvimento econômico. A análise do processo de convergência entre as grandes regiões brasileiras com respeito à taxa de mortalidade de crianças até 1 ano de idade revela uma queda bem mais acentuada da mortalidade na região Nordeste. Em 1980 a diferença entre a região com maior taxa de mortalidade e aquela com menor taxa era de quase 72 óbitos por mil nascidos vivos. Vinte anos depois essa diferença caiu para 24 óbitos, ou seja, uma redução de quase 50 óbitos. Contudo, apesar da redução substantiva na mortalidade infantil, não somente seu nível ainda é muito elevado, mas as disparidades regionais ainda são muito elevadas. Apesar da forte convergên-

88

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 6 Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) até 1 ano de idade nos estados brasileiros (1 1, 2001 e meta para 201 ) 34,1

AC

1,3

AP

norte

AM

36,4

PA

3 ,6

RO

36,4

RR

3 ,2

TO

6 ,0 62,1

AL

3,

PI

8 ,

MA 4,6

PE

nordeste

0,2

BA CE

6 ,0

PB

,

SE

2,

RN

6 , 24,0

DF

centro-oeste

30,6

MT GO

24,6

MS

26,6 30,4

MG

sudeste

33,

ES

SP

20,0 1 ,3

RS

sul

29,6

23,1

RJ

23,

PR 16,8

SC

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

0,0

60,0

0,0

80,0

0,0

100,0

110,0

120,0

taxa de mortalidade

1 1

2000

total Nac. 2000

meta Nac. 201

fonte: Ipea/Data

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

89


Tabela 7 Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) Até 1 ano REGIÃO/UFs

Até 5 anos

Redução entre 1991 e 2000

1991

2000

1991

2000

até 1 ano

até 5 anos

50,6 78,0 54,3 64,4 54,1 63,1 98,0

34,1 51,3 36,4 35,6 36,4 39,2 67,0

50,6 78,0 54,3 64,4 54,1 63,1 98,0

34,1 51,3 36,4 36,4 36,4 39,2 67,0

67,0 26,7 17,9 28,8 17,7 23,9 31,0

16,5 26,7 17,9 28,8 17,7 23,9 31,0

113,8 90,7 97,1 106,4 113,6 95,5 99,8 104,0 85,1

62,1 70,2 65,0 85,7 77,7 54,6 73,5 67,7 72,7

113,8 90,7 97,1 106,4 113,6 95,5 99,8 104,0 85,1

62,1 70,2 65,0 85,7 77,7 54,6 73,5 67,7 72,7

51,7 20,5 32,1 20,7 35,9 40,9 26,3 36,3 12,4

51,7 20,5 32,1 20,7 35,9 40,9 26,3 36,3 12,4

30,0 32,4 37,4 40,7

24,0 24,6 30,6 26,6

30,0 32,4 37,4 40,7

24,0 24,6 30,6 26,6

6,0 7,8 6,8 14,1

6,0 7,8 6,8 14,1

48,8 55,5 34,4 30,9

33,7 30,4 23,1 20,0

48,8 55,5 34,4 30,9

33,7 30,4 23,1 20,0

15,1 25,1 11,3 10,9

15,1 25,1 11,3 10,9

Paraná Rio Grande do SulSanta Catarina

44,5 26,4 25,1

20,0 17,3 16,8

44,5 26,4 25,1

23,5 17,3 16,8

21,0 9,1 8,3

21,0 9,1 8,3

BRASIL

44,7

30,6

54,5

39,3

14,1

15,2

NORTE Acre Amapá Amazonas Pará Rondônia Roraima Tocantis NORDESTE Alagoas Bahia Ceará Maranhão Paraíba Pernambuco Piauí Rio Grande do Norte Sergipe CENTRO-OESTE Distrito Federal Goiás Mato Grosso Mato Grosso do Sul SUDESTE Espiríto Santo Minas Gerais Rio de Janeiro São Paulo SUL

Fonte: Ipea Data. Censos Demográficos de 1991 e 2000. Nota: O universo de municípios da tabela é definido pelo IBGE no levantamento censitário e não necessariamente coincide com o oficialmente existente ou instalado na data de referência.

90

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


cia ocorrida entre os estados, os estados da Região Nordeste ainda apresentam taxas mais de duas vezes maiores do que as observadas para os demais estados. Assim, no que diz respeito ao cumprimento das Metas do Milênio até 2015 — redução da mortalidade infantil em 2/3 — os estados das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul deverão atingir a meta dentro do prazo. Quanto aos estados da região Norte e Nordeste, caso não consigamos aumentar um pouco mais a velocidade de redução da mortalidade infantil, os estados destas duas regiões atingirão a meta internacional pós-2015. 2.4 - Melhorar a saúde materna O quinto objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é melhorar a saúde materna. Apenas uma meta faz parte desse objetivo: reduzir em 3/4, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade materna. Reduzir em 3/4, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade materna Ainda hoje, as dificuldades na obtenção de informações sobre a mortalidade materna são grandes. No Brasil não existem pesquisas para mensurar a magnitude da mortalidade materna em cada estado, mas apenas alguns estudos locais. Segundo as informações apresentadas na Tabela 8, em 1999, de cada 100 mil crianças nascidas vivas no Brasil, eram registrados 56 óbitos maternos. Essa é, no entanto, uma subestimativa da verdadeira mortalidade materna que ocorre, principalmente, pelo preenchimento inadequado das declarações de óbitos. Esse preenchimento inadequado da declaração de óbito é ainda maior quando a morte materna ocorre por complicações na gestação, aborto, parto ou puerpério. Ou seja, essa é a informação que se omite com maior freqüência. A subestimação da mortalidade materna é um problema em quase todos os países do mundo, embora seja mais grave nos países em desenvolvimento. Tomando como base o resultado apresentado na Tabela 8, observamos que o Brasil ocupa, mais uma vez, uma posição de destaque no cenário internacional. Segundo a Organização

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

91


92

Sinais Sociais • maio > agosto 2006

24

55,3

58,5

66,6 55,4

71,5 79,4 48,1 75,8 61,0

SE

ES MG RJ SP

S PR RS SC BR

471.234 192.757 97.717 180.760 1.633.760

268.968 701.947

970.915

43.420

46.855 101.336

191.611

Nascidos vivos

76,3 84,2 43,7 85,6 68,0

86,6 51,3 79,4 55,7

67,8

54,9

55,8 44,2

49,5

Taxa

350 156 42 152 1.359

294 30 205 386

915

23

27 44

94

Óbitos

1998

459.039 185.378 96.123 177.538 1.998.664

339.541 58.526 258.284 693.413

1.349.764

41.917

48.418 99.526

189.861

Nascidos vivos

61,9 83,0 43,5 50,3 55,8

41,9 42,8 74,9 51,7

53,4

52,6

42,6 69,1

58,3

Taxa

291 155 43 93 1138

143 26 201 369

739

22

21 65

108

Óbitos

1999

470.326 186.675 98.854 184.797 2.040.429

341.437 60.800 268.213 714.428

1.384.878

41.859

49.349 94.017

185.225

Nascidos vivos

Fontes: MS/Funasa/Cenepi - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos - Sinasc. MS/Funasa/Cenepi - Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM. IBGE/Estimativas demográficas. Notas: 1. As taxas foram calculadas diretamente dos sistemas SIM e SINASC para os estados que atingiram percentual de cobertura igual ou superior a 90% dos óbitos femininos de 10 a 49 anos de idade, correspondendo a todos os estados das regiões Sudeste, Sul e Ce 2. Os totais para o Brasil e Regiões foram calculados apenas com as UFs consideradas.

337 153 47 137 997

179 389

568

21 47

44,8 46,4

DF GO MT MS

92

Óbitos

48,0

Taxa

CO

UFs

1997

Tabela 8 Número de óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos


Mundial de Saúde (OMS) esse nível de mortalidade está muito acima da média para países desenvolvidos, que registram 20 mortes por 100 mil nascidos vivos. Assim, mais uma vez se pode perceber o contraste entre a posição do Brasil no cenário mundial em termos de renda per capita e sua posição em termos de desenvolvimento humano, representado aqui pela taxa de mortalidade materna. No que diz respeito à convergência entre os estados, a Tabela 8 mostra que as disparidades entre os estados são elevadas, variando de 40 em Minas Gerais, a 83 no Paraná. Mas, apesar das grandes disparidades regionais, existe uma clara tendência de convergência entre os vários estados. No que se refere ao cumprimento das Metas do Milênio até 2015 — redução da mortalidade materna em 3/4 —, apesar da dificuldade resultante da falta de disponibilidade de dados, considerando as informações contidas na Tabela 13, temos que a redução entre 1997 e 1999 foi de 5 pontos percentuais. Se a cada 3 anos o país reduzir essa taxa em 5 pontos percentuais e, caso essa velocidade tenha se mantido desde 1990, temos que essa taxa deveria ser de cerca de 76 no ponto de partida (1990). Assim, uma redução de 3/4 até 2015 significa cair de 76 para 19. Nesse caso, mesmo partindo de níveis tão elevados, o Brasil conseguiria cumprir a meta. Com relação às três regiões consideradas na tabela, a Região Sul deverá atingir a meta estabelecida bem antes das demais regiões, e a Região Sudeste deverá atingir a meta dentro do prazo estabelecido. Os dados para a Região Centro-Oeste mostram um aumento da taxa no período e, portanto, o que pode ser simplesmente o resultado de um processo de coleta de informações mais apurado. 2.5 - Combater o HIV/Aids, malária e outras doenças O sexto objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é combater o HIV/Aids, malária e outras doenças. Duas metas fazem parte desse objetivo: (i) Até 2015, ter detido a propagação do HIV/Aids e começado a reverter a tendência atual, e (ii) até 2015, ter detido a incidência da malária e de outras doenças importantes, e começado a inverter a tendência atual. Quatro indicadores foram utilizados para analisar o desempenho do Brasil, grandes regiões e estados no controle destas doenças: (i)

Em direção as metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

93


Taxa de incidência de Aids (casos por 100 mil habitantes) para a população total, crianças até 12 anos de idade, e pessoas com idade entre 13 a 39 anos, (ii) Índice Parasitário Anual (IPA) de malária – exames positivos por 1.000 habitantes, (iii) taxa de incidência de tuberculose (casos por 100 mil habitantes), (iv) taxa de incidência de hanseníase (casos por 10 mil habitantes). Taxa de incidência do HIV/Aids (casos por 100 mil habitantes) No início dos anos 80 o país registrou os primeiros casos da doença. A partir daí, esse registro apresenta uma clara tendência de crescimento, conforme podemos observar na Tabela 9. Essa tabela apresenta a taxa de incidência de HIV/Aids para o período de 1990 a 2003, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros, com exceção da Região Norte e seus estados, além da taxa de incidência para a população com até 12 anos e para a população entre 13 e 39 anos. A fonte para esse indicador é a Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis DST/Aids do Ministério da Saúde. Em 2003, a taxa de incidência era de 18 casos por 100 mil habitantes, três vezes maior do que o registrado em 1990. A incidência da doença aumentou continuamente até 1998 quando, então, inicia seu declínio. Apesar das várias medidas tomadas para controlar o avanço da doença, essa tendência de queda é revertida a partir de 2002, quando a doença novamente volta a subir. As regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam um comportamento muito semelhante, diferentemente das regiões Norte e Nordeste, onde a incidência da doença aumenta sempre, apesar do seu nível ser de 2 a 3 vezes menor do que nas três primeiras regiões. O comportamento da taxa de incidência para pessoas de 13 a 39 anos é similar ao descrito anteriormente para a população total. Já o comportamento da incidência da doença em crianças com até 12 anos de idade difere do comportamento para a população total. Para essa faixa etária, a taxa de incidência cresce todo o tempo, conforme podemos observar na Tabela 9. As disparidades regionais são também elevadas, com o nível médio do indicador sendo menor nas regiões Norte e Nordeste, exce-

94

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 9 Taxa de incidência de Aids (casos por 100 mil habitantes) Crianças de até 12 anos de idade

Total

Pessoas com idade entre 13 e 39 anos

UFs

1990

1995

2003

1990

1995

2003

1990

1995

2003

N AC AP AM RO RR PA TO NE

0,91 0,74 0,36 1,28 0,84 3,43 0,73 0,78 1,63

3,66 0,22 5,52 4,01 4,93 3,81 3,47 3,08 4,03

8,68 5,95 7,02 12,19 5,15 24,61 7,83 6,23 6,72

0,07 0,14 0,32

0,56 0,98 0,15 0,55 0,85 0,36 0,31

1,10 1,57 0,48 3,25 1,12 0,84 1,15

1,73 0,63 0,90 2,79 1,73 6,39 1,19 1,71 3,10

7,37 0,56 7,67 8,48 9,99 4,95 6,79 7,57 7,42

11,61 9,70 11,06 17,09 6,52 32,58 9,75 9,53 9,12

AL BA CE MA PB PE PI RN SE

1,42 1,71 1,47 1,16 1,52 2,57 0,83 1,18 1,51

3,80 2,97 5,81 2,92 3,92 5,57 3,05 2,98 5,42

7,40 4,41 10,99 4,55 7,99 8,56 3,12 5,03 9,20

0,31 0,48 1,01 -

0,28 0,24 0,40 0,06 0,48 0,55 0,46 0,48

0,59 1,19 2,01 0,23 1,38 1,22 0,39 0,55 2,72

2,65 3,60 2,54 2,40 3,15 4,25 1,73 2,22 2,54

7,05 5,16 10,98 6,45 6,92 9,57 6,43 5,58 9,61

10,25 5,27 15,41 6,67 11,09 11,94 4,60 7,00 12,23

CO

3,28

12,26

19,79

0,64

1,87

2,92

5,78

20,80

26,05

DF GO MT MS

5,26 2,04 2,37 5,34

12,26 11,40 9,47 14,27

27,48 15,94 21,56 19,30

0,56 0,43 1,88

2,83 2,15 1,19 1,31

3,67 1,63 4,18 3,66

8,30 3,39 4,79 9,99

25,61 18,96 16,26 25,93

34,35 21,30 27,35 27,16

SE

11,13

23,70

24,27

3,53

4,06

4,87

19,17

39,17

30,61

ES MG RJ SP

1,38 2,24 12,32 15,90

7,46 12,20 22,44 31,16

20,75 14,69 30,16 26,89

0,33 0,11 5,12 5,10

2,33 1,28 4,14 5,67

6,02 3,52 6,66 4,78

2,73 4,26 18,32 28,02

11,50 20,87 33,41 52,30

24,42 18,75 37,57 34,23

S PR RS SC BR

3,87 1,96 5,08 5,03 6,09

14,36 10,52 14,75 20,51 14,45

26,48 21,50 31,15 26,52 18,17

2,26 0,84 3,43 2,78 1,82

4,15 2,34 3,94 7,79 2,39

5,70 4,31 7,90 4,41 3,33

23,97 17,83 24,19 34,45 24,84

23,97 17,83 24,19 34,45 24,84

36,43 28,91 45,45 33,77 23,51

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil) Fonte: Ministério da Saúde/SPS/Coordenação Nacional de DST/Aids. Nas tabulações por faixa etária ou sexo, estão suprimidos os casos com idade ou sexo ignorados, respectivamente.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

95


Gráfico Taxa de incidência de Aids (casos por 100 mil habitantes) nos estados brasileiros (1 0 e 2003)

6,0

AC

,0

AP

norte

12,2

AM ,8

PA ,2

RO RR

24,6

TO

6,2 ,4

AL PI

3,1 4,6

MA

nordeste

8,6

PE 4,4

BA CE

11,0

PB

8,0

SE

,2

RN

,0 2 ,

DF

centro-oeste

21,6

MT 1 ,

GO

1 ,3

MS 14,

MG

sudeste

20,8

ES

30,2

RJ 26,

SP

sul

31,2

RS 21,

PR

26,

SC

0,0

,0

10,0

1 ,0

20,0

2 ,0

30,0

3 ,0

40,0

4 ,0

taxa de incidência

1 0

2003

fonte: Ministério da Saúde/SPS/Coordenação Nacional de DST/Aids

96

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


to no estado de Roraima. As alturas das barras cor-de-rosa mostram a incidência da doença em 1990, e as alturas das barras azuis mostram o aumento registrado até 2003. Observe que, em 1990, a incidência da doença era bem baixa, ou, pelo menos, bem pouco registrada relativamente a 2003. Assim, por exemplo, em 1990 a taxa de incidência da doença em Pernambuco era de 2,6 casos em cada 100 mil habitantes. Em 2003, a taxa de incidência nesse estado passou a ser de 8,6, quase três vezes maior. A disparidades entre as regiões brasileiras aumentaram ao longo do período analisado. De fato, em 1990, a diferença entre a região com a maior incidência da doença (11,3) e aquela com a menor incidência (0,91) era cerca de 12 vezes; em 2003, essa diferença aumentou para 19 vezes, ou seja, a incidência na região com mais casos era cerca de 19 vezes maior do que a incidência na região com o menor número de casos. Em suma, observamos ao longo do período um distanciamento entre as regiões brasileiras em termos da incidência da doença. Esse aumento das disparidades entre as regiões pode também ser observado entre os estados de uma mesma região. Em todas as regiões brasileiras o comportamento é similar ao observado anteriormente, isto é, há um distanciamento cada vez maior entre os estados. A única exceção se dá na Região Sudeste, onde há uma ligeira convergência entre os estados em termos da incidência da doença. Índice Parasitário Anual (IPA) de malária O Índice Parasitário Anual (IPA) de malária mede o número de exames positivos de malária, por mil habitantes e, portanto, ele não expressa o número de casos de malária. Esse indicador mede o risco de ocorrência anual de casos de malária e pode servir como proxy da incidência de malária. A fonte para esse indicador é o Sistema de Informação de Malária (Sismal), do Ministério da Saúde. A Tabela 10 apresenta a incidência de malária com base no IPA para o período de 1990 a 2003, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros. Segundo o Ministério da Saúde, os graus de risco expressos em valores do IPA podem ser classificados em três ca-

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

97


Tabela 10 Incidência de tuberculose, malária e hanseníase Taxa de incidência de tuberculose (casos por 100 mil habitantes)

Índice Parasitário Anual (IPA) de malária

(Exames positivos por 1.000 habitantes)

Taxa de prevalência de hanseníase (casos existentes por 10.000 habitantes)

UF

1990

1995

2003

1990

1995

2003

1997

2002

N AC AP AM RO RR PA TO NE

72,1 87,6 71,5 94,6 66,7 68,6 70,6 47,0 61,5

60,8 67,4 61,3 87,1 53,1 57,9 78,6 38,2 63,3

49,9 46,6 44,2 67,7 52,1 35,6 44,4 17,1 46,3

34,07 28,53 22,80 16,78 25,59 119,45 107,50 3,62 0,46

42,04 79,22 52,21 22,67 34,12 100,21 150,93 3,69 0,75

27,69 20,14 31,58 45,00 17,19 61,16 31,97 0,98 0,23

15,2 14,1 12,5 17,4 14,6 14,0 16,4 15,4 5,6

8,6 5,7 4,5 6,5 9,7 9,0 14,1 8,7 6,0

AL BA CE MA PB PE PI RN SE

51,1 60,7 74,1 81,6 44,7 53,0 64,3 57,2 45,6

42,6 68,8 67,0 69,9 42,5 70,1 69,5 48,7 42,2

41,2 53,8 47,9 45,8 28,2 51,2 36,6 42,5 29,4

0,01 0,02 0,04 3,69 0,01 0,01 0,23 0,04 0,01

0,00 0,01 0,02 6,27 0,01 0,00 0,11 0,01 0,00

0,00 0,01 0,01 1,85 0,00 0,00 0,05 0,00 0,00

1,7 2,3 5,4 14,6 2,8 8,7 6,6 1,7 4,4

6,0 2,0 4,3 5,6 7,3 4,8 8,5 16,5 1,6

CO

41,7

38,1

27,1

20,82

5,85

0,40

12,3

11,6

DF GO MT MS

43,3 29,6 52,6 55,6

42,4 25,1 47,1 52,4

17,5 20,4 39,5 38,2

0,16 0,26 96,07 0,37

0,10 0,14 25,54 0,14

0,00 1,85 0,03

2,8 14,8 19,4 6,9

1,5 12,5 3,3 29,9

SE

48,7

65,2

40,0

0,03

0,02

0,01

3,6

2,4

ES MG RJ SP

59,1 44,0 43,9 52,2

52,4 40,3 126,8 54,2

39,8 26,4 57,1 39,9

0,10 0,02 0,01 0,03

0,07 0,02 0,00 0,02

0,01 0,01 0,01

8,1 4,5 4,8 2,2

5,8 3,0 3,8 1,3

S PR RS SC BR

36,8 28,4 49,3 27,6 51,8

37,2 26,5 50,6 30,0 58,4

34,2 28,2 44,0 26,4 40,8

0,08 0,17 0,03 0,03 3,85

0,03 0,07 0,02 0,00 3,62

0,01 0,02 0,01 2,27

2,7 6,0 0,5 0,9 5,4

1,4 3,1 0,2 0,6 4,4

N (Norte)   NE (Noroeste)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil) Fontes: Tuberculose: Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan); Secretaria de Vigilância em Saúde - SVS. Nas tabulações por faixa etária ou sexo, estão suprimidos os casos com idade ou sexo ignorados, respectivamente. Malária: MS/SVS - Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan. Nota: estima o risco de ocorrência anual de casos de malária. Áreas endêmicas de baixo risco (<0,10), médio risco (10,0-49,9), e alto risco (>50,0). Hanseníase: MS/SVS Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan. Número de casos por 10 mil habitantes: 20 ou +/- situação hiperendêmica; 10 a 19 - muito alto; 5 a 9 - alto; 1 a 4 - médio; > 1 baixo.

98

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 8 Índice Parasitário Anual (IPA) de malária estados da Região Norte, Maranhão e Mato Grosso (1 0 e 2003) 16 1 14 13 12 11 IPA (exames positivos por 1.000 habitantes)

10 8 6 61,2

4

4 ,0

3 31,6

2 1

32,0

20,1

1 ,2

1,0

-

1,

1,

-1 -2 -3

Acre

1 0

Amapá

Amazonas

Pará

Rondônia

Roraima

Tocantins

Maranhão Mato Grosso

2003

fonte: MS/SVS - Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan nota: estima o risco de ocorrência anual de casos de malária. Áreas endêmicas de baixo risco (<0,10), médio risco (10,0 - 4 , ), e alto risco (> 0,0).

tegorias: (i) baixo: IPA<10,0, (ii) médio: 10,0<IPA<49,9, e (iii) alto: IPA≥50,0. Assim, as informações contidas nessa tabela revelam que toda a área endêmica no país restringe-se aos estados da Região Norte, além do Maranhão e do Mato Grosso. Segundo o Ministério da Saúde, os valores elevados do IPA que observamos na região Amazônica decorrem, em geral, “de migrações internas e assentamentos rurais associados a atividades econômicas extrativas, na ausência de ações integradas de controle (diagnóstico precoce, tratamento oportuno, educação e medidas antivetoriais seletivas)”. As flutuações no índice ao longo do período analisado são gran-

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

99


des, mas a tendência é de redução deste índice, apesar do seu crescimento em meados dos anos 90, principalmente nos estados do Acre, Rondônia, Maranhão, Amazonas, Pará e Amapá. Como podemos observar no Gráfico 8, a redução no período como um todo — 1990 a 2003 — foi bem pequena para a maior parte dos estados, com exceção do Pará, Roraima e Mato Grosso; apenas no estado do Amazonas houve um aumento no índice no período observado. Apesar de toda a flutuação observada no período, há uma clara tendência de convergência entre os estados. Taxa de incidência de tuberculose A taxa de incidência de tuberculose é estimada com base no número de casos novos confirmados por 100 mil habitantes. Segundo o Ministério da Saúde, “a definição de caso confirmado de tuberculose baseia-se em critérios adotados pelo Ministério da Saúde para orientar as ações de vigilância epidemiológica da doença em todo o país”. Assim, essas estimativas referem-se ao risco de o indivíduo vir a desenvolver a doença em qualquer de suas formas. Taxas elevadas de incidência de tuberculose, em geral, estão associadas a condições precárias de vida e condições também precárias de assistência e tratamento, além de baixa cobertura de vacinação pelo BCG. A fonte para esse indicador é o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, e o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. A qualidade das informações, no entanto, depende das condições operacionais do sistema de vigilância epidemiológica nas várias localidades. O Ministério da Saúde estima em aproximadamente 30%, em média, o sub-registro. A Tabela 10 apresenta a incidência de tuberculose para o período de 1990 a 2003, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros. As informações contidas nessa tabela revelam níveis mais elevados de incidência da doença nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste. Em todos os estados houve redução na incidência de tuberculose, exceto no Rio de Janeiro, onde esta aumentou, e no Paraná, onde permaneceu estável (veja Gráfico 9). A evolução temporal da incidência da doença revela, no entanto, um comportamento mais estável dessas taxas ao longo dos anos 90. As disparidades entre as regiões brasilei-

100

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico Taxa de incidência de tuberculose (casos por 100 mil habitantes) - nos estados brasileiros (1 0 e 2003)

46,6

AC AP

44,2

AM

norte

6 ,

PA

2,1

RO

3 ,6

RR

44,4

TO

1 ,1 41,2

AL 36,6

PI MA

4 ,8

PE

nordeste

4 , 3,8

BA 1,2

CE PB

28,2

SE

2 ,4

RN

42, 1 ,

DF

centro-oeste

3 ,

MT 20,4

GO MS

38,2 26,4

MG

sudeste

3 ,8

ES

,1

RJ 3 ,

SP

44,0

RS

sul

28,2

PR

26,4

SC

-20,0

-10,0

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

0,0

60,0

0,0

80,0

0,0

100,0

taxa de incidência

1 0

2003

fonte: Sistema de informações de Agravos de Notificações (Sinan); Secretaria de Vigilância em Saúde - SVS

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

101


ras reduziram-se ligeiramente no período analisado, levando a uma pequena convergência entre essas regiões. No que diz respeito à convergência entre os estados, o padrão de comportamento temporal é o mesmo, exceto nos estados da região Sul, onde a incidência da doença se mostra bastante estável no período. Ou seja, observamos uma tendência de redução da incidência de tuberculose ao longo do tempo, mas a distância entre os estados no que diz respeito a esse indicador não se altera muito. Taxa de incidência de hanseníase A taxa de incidência de hanseníase é estimada com base no número de casos confirmados por 10 mil habitantes. Segundo o Ministério da Saúde, “a definição de caso confirmado de Hanseníase baseia-se em critérios adotados pelo Ministério da Saúde para orientar as ações de vigilância epidemiológica da doença em todo o país”. Assim, essas estimativas referem-se à magnitude da endemia com base na quantidade total de casos existentes, qualquer que seja a forma da doença. Segundo o Ministério da Saúde, as taxas de incidência de hanseníase podem ser classificadas em quatro categorias: (i) baixa: >1 caso por 10 mil habitantes, (ii) média: 1 a 4 casos por 10 mil habitantes, e (iii) alta: 5 a 9 casos por 10 mil habitantes, e (iv) muito alta: 10 a 19 casos por 10 mil habitantes. A situação hiperendêmica caracteriza-se por 20 casos ou mais por 10 mil habitantes. Além disso, quando a taxa de incidência se mantém baixa, a doença deixa de ser considerada um problema de saúde pública. A fonte para esse indicador é a mesma do indicador de tuberculose, ou seja, o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, e o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Da mesma forma que no caso da tuberculose, a qualidade das informações depende das condições operacionais do sistema de vigilância epidemiológica nas várias localidades. A Tabela 10 apresenta a incidência de hanseníase para o período de 1997 a 2002, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros, classificando os estados segundo a categorização do Ministério da Saúde. Doze estados brasileiros estão classificados com uma pre-

102

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 10 Taxa de prevalência de hanseníase, nos estados brasileiros (1 e 2002) ,

AC 4,

AP AM

norte

6,

PA

,

RO

,0

RR

14,1

TO AL

8, 2,0

PI

16,

MA

,3

PE

nordeste

8,

BA

4,3

CE

,6

PB

4,8

SE RN DF

centro-oeste

3,4 1,6 1, 3,3

MT

12,

GO

2 ,

MS 3,0

MG

sudeste

,8

ES 3,8

RJ SP

1,3

RS

sul

3,1

PR SC

0,0

,0

10,0

1 ,0

20,0

2 ,0

30,0

taxa de prevalência

1

2002

fonte: MS/SVS - Sistema de informação de Agravos de Notificação - Sinan

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

103


valência alta ou muito alta em 2002; outros doze estão classificados com uma prevalência média, e apenas dois estados — Rio Grande do Sul e Santa Catarina — têm uma incidência baixa da doença. O estado do Mato Grosso do Sul aparece com uma situação hiperendêmica, com cerca de 30 casos por 10 mil habitantes. A incidência nos anos anteriores a 2002, no entanto, era cerca de 6 vezes mais baixa, o que revela um salto muito grande que merece ser investigado. Em todos os estados houve redução na incidência de hanseníase, exceto em cinco estados da região Nordeste e no Mato Grosso do Sul. As disparidades, entretanto, entre os estados, continuam elevadas, conforme podemos observar no Gráfico 10. No que diz respeito à convergência entre as regiões brasileiras, apesar da redução da incidência da doença em 4 das 5 regiões — no Nordeste a incidência da doença aumenta ligeiramente — a convergência foi muito pequena ao longo do período analisado. Com relação à convergência entre os estados numa dada região, o comportamento é semelhante ao observado para as grandes regiões, exceto para a Região Sul, onde há uma maior convergência entre os estados em função da grande redução ocorrida no Paraná. Em suma, o país ainda não se encontra em situação confortável em termos da incidência de hanseníase, principalmente quando consideramos seu nível de renda per capita. Ou seja, os níveis da doença que prevalecem ainda em grande parte dos estados brasileiros demonstram total incompatibilidade com o nível de desenvolvimento socioeconômico do país. 2.6 - Garantir a sustentabilidade ambiental O sétimo objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do Milênio é garantir a sustentabilidade ambiental. Três metas fazem parte desse objetivo: (i) integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a perda de recursos ambientais, (ii) reduzir pela metade, até 2015, a proporção da população sem acesso permanente à água potável e esgotamento sanitário, e (iii) até 2020, ter alcançado uma melhoria significativa na vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de assentamentos precários.

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Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 11 Porcentagem da população que vive em domicílios sem abastecimento adequado de água e sem instalações adequadas de esgoto Sem abastecimento adequado de água

UFs

1981

1990

2003

Variação 1981-2003

Variação 1990-2003

Sem instalações adequadas de esgoto

1981

1990

2003

Variação 1981-2003

Variação 1981-2003

N

47,0

34,0

26,0

-21,0

-8,0

TO

-

-

25,6

-

41,5

-

-

0,0

-

-98,0

NE AL BA CE MA PB PE PI RN SE CO DF GO MT MS SE

70,5

58,6

30,9

-39,6

-27,7

80,0

70,0

0,0

-30,9

27,7

71,0 67,0 78,0 87,0 57,0 64,0 82,0 64,0 65,0

53,0 58,0 64,0 78,0 45,0 46,0 72,0 55,0 54,0

33,0 32,0 29,0 45,0 23,0 27,0 42,0 18,0 16,0

-38,0 -35,0 -49,0 -42,0 -34,0 -37,0 -40,0 -46,0 -49,0

-20,0 -26,0 -35,0 -33,0 -22,0 -19,0 -30,0 -37,0 -38,0

88,0 76,0 60,0 86,0 81,0 86,0 79,0 81,0 79,0

79,0 67,0 73,0 74,0 59,0 64,0 61,0 58,0 56,0

0,0 0,2 0,2 0,1 0,2 0,1 0,2 0,2 0,1

-33,0 -31,8 -28,8 -44,9 -22,8 -26,9 -41,8 -17,8 -15,9

20,0 26,2 35,2 33,1 22,2 19,1 30,2 37,2 38,1

55,6

31,3

6,7

-48,9

-24,6

70,0

60,0

0,0

-6,7

24,6

15,0 58,0 71,0 55,0

8,0 36,0 42,0 26,0

2,0 5,0 16,0 4,0

-13,0 -53,0 -55,0 -51,0

-6,0 -31,0 -26,0 -22,0

17,0 85,0 88,0 91,0

8,0 69,0 65,0 85,0

0,7 0,1 0,0 0,1

-1,3 -4,9 -16,0 -3,9

6,7 31,1 26,0 22,1

24,4

12,1

2,8

-21,6

-9,3

30,0

20,0

0,0

-2,8

9,3

ES MG RJ SP

45,0 43,0 21,0 14,0

26,0 25,0 11,0 5,0 126,8 54,2

3,0 6,0 3,0 1,0

-42,0 -37,0 -18,0 -13,0

-23,0 -19,0 -8,0 -4,0

57,0 51,0 25,0 23,0

36,0 36,0 16,0 13,0 126,8 54,2

0,4 0,4 0,6 0,7

-2,6 -5,6 -2,4 -0,3

23,4 19,4 8,6 4,7

S PR RS SC BR

38,7

17,1

2,9

-35,8

-14,2

50,0

40,0

0,0

-2,9

14,2

46,0 33,0 35,0

21,0 16,0 12,0

3,0 2,0 4,0

-43,0 -31,0 -31,0

-18,0 -14,0 -8,0

63,0 49,0 41,0

54,0 31,0 22,0

0,3 0,5 0,4

-2,7 -1,5 -3,6

18,3 14,5 8,4

43,0

29,0

12,0

-31,0

-17,0

53,0

41,0

0,4

-11,6

17,4

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil) Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1981 a 2003. Notas: Considera-se adequado o abastecimento através de rede geral com canalização interna ou através de poço ou nascente com canalização interna. Porcentagem da população que vive em domicílios particulares permanentes com acesso a instalações adequadas de esgoto. Entende-se como instalações adequadas aqueles domicilios que têm banheiro de uso exclusivo e com escoaduro conetado a rede coletora de esgoto ou pluvial ou a uma fossa séptica ligada ou não a uma rede coletora.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

105


Dois indicadores foram utilizados para analisar o desempenho do Brasil, grandes regiões e estados em garantir à população acesso à água potável e esgotamento sanitário: (i) porcentagem da população que vive em domicílios sem abastecimento adequado de água, e (ii) porcentagem da população que vive em domicílios sem instalações adequadas de esgoto. Porcentagem da população que vive em domicílios sem abastecimento adequado de água A porcentagem da população que vive em domicílios sem abastecimento adequado de água pode ser obtida com base nas Pnads. Gráfico 11 Porcentagem da população que vive em domicílio sem abastecimento adequado de àgua nos estados brasileios (1 0, 2003 e meta para 201 ) %

80,0 ,0 0,0 6 ,0 60,0 ,0 0,0 4 ,0 40,0

42,0

4 ,0

3 ,0 33,0

30,0 2 ,0

32,0 2 ,0

2 ,6

20,0

2 ,0 23,0

1 ,0 10,0

16,0 18,0

,0 2,0

0,0 TO

norte

1 0

AL

PI

MA

PE

BA

CE

nordeste

2003

PB

SE

RN

14, 12,0

16,0

DF

MT

,0

4,0

6,0

3,0

3,0

2,0

1,0

3,0

4,0

GO

MS

MG

ES

RJ

SP

RS

PR

SC

centro-oeste

total Nac. 2003

sudeste

sul

meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana.

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Sinais Sociais • maio > agosto 2006


As estimativas que serão analisadas aqui consideram como adequado o abastecimento através de rede geral com canalização interna ou através de poço ou nascente com canalização interna. A Tabela 11 mostra que, em 2003, 12% da população brasileira vivia em domicílios sem abastecimento de água adequado. Em 1981 essa porcentagem era 43%, significando uma redução de 31 pontos percentuais no período. As disparidades entre estados ainda são elevadas, conforme podemos ver no Gráfico 11, com todos os estados da Região Nordeste se posicionando acima da média brasileira, apesar da redução nesse indicador ter sido maior nesses estados. Fora da Região Nordeste, o estado do Mato Grosso também se situa acima da média brasileira. Com a redução desse indicador, principalmente nos estados da Região Nordeste, as estimativas revelam uma forte convergência entre as regiões brasileiras. De fato, em 1981, a distância entre a região com o melhor indicador e aquela com o menor indicador era de 46 pontos percentuais; em 2003 essa distância havia se reduzido para 28 pontos percentuais. Entre os estados da Região Nordeste, no entanto, não houve convergência com respeito a esse indicador. A distância entre o estado com o melhor indicador e aquele com o pior se manteve constante ao longo de todo o período. Já com relação às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, podemos observar um processo de convergência bem mais acentuado. Na Região Centro-Oeste, por exemplo, a diferença em 1981 entre o estado com o melhor indicador e aquele com o pior indicador era de 56 pontos percentuais; em 2003 essa diferença cai para apenas 14 pontos percentuais. Evidentemente, não devemos esquecer o fato de que quanto mais próximo do objetivo, mais difícil é a obtenção de melhorias. Assim, estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul se defrontam com dificuldades crescentes para reduzir a porcentagem de sua população que vive em domicílios sem abastecimento adequado de água. Porcentagem da população que vive em domicílios sem instalações adequadas de esgoto A porcentagem da população que vive em domicílios sem instalações adequadas de esgoto também foi obtida com base nas

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

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Gráfico 12 Porcentagem da população vive em domicílios sem instalações adequadas de esgoto nos estados brasileiros (1 0, 2003 e meta para 201 ) %

100,0 ,0 0,0 8 ,0 80,0 ,0 0,0 6 ,0 60,0 ,0 0,0 4 ,0 40,0 3 ,0 30,0 2 ,0 20,0 1 ,0 10,0 ,0 0,0

84,0

86,0 81,0

6 ,0 6,0 8,0

61,0 ,0

8,0 ,0 4,0 4 ,0 42,0

3 ,0

34,

31,0

24,

24,0

2 ,0

1 ,0 14,0

,0 ,0 TO

norte

1 0

AL

PI

MA

PE

BA

CE

nordeste

2003

PB

SE

RN

DF

MT

GO

MS

centro-oeste

total Nac. 2003

MG

ES

RJ

SP

RS

sudeste

PR

SC

sul

meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana.

Pnads. As estimativas que serão analisadas aqui consideram a porcentagem da população que vive em domicílios particulares permanentes, sem acesso a instalações adequadas de esgoto. A pesquisa considera como instalações adequadas aqueles domicílios que têm banheiro de uso exclusivo e com escoadouro conectado a rede coletora de esgoto ou pluvial, ou a uma fossa séptica ligada ou não a uma rede coletora. A Tabela 11 mostra que, em 2003, 34% da população brasileira vivia em domicílios sem instalações adequadas de esgotamento sanitário. Em 1981 essa porcentagem era 62%, significando uma redução de 28 pontos percentuais no período. As disparidades entre estados ainda são elevadas, conforme podemos ver no Gráfico 12, com

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apenas os estados das regiões Sul e Sudeste, além do Distrito Federal, situando-se abaixo da média brasileira. Em alguns estados como Tocantins e Alagoas a meta a ser atingida até 2005 encontra-se ainda a 35 pontos percentuais de distância a partir de 2003; a distância a ser percorrida pelo Mato Grosso do Sul é ainda maior, 40 pontos percentuais. Pernambuco, Ceará, Paraíba e Goiás precisam eliminar ainda distâncias entre 25 e 30 pontos percentuais. Com relação à convergência entre as regiões brasileiras ao longo desse período, as disparidades entre as regiões aumentaram em cerca de 10 pontos percentuais. De fato, em 1981, a distância entre a região com o melhor indicador e aquela com o menor indicador era de 50 pontos percentuais; em 2003 essa distância havia aumentado para 60 pontos percentuais. Com relação aos estados, podemos observar uma aproximação entre os estados da Região Centro-Oeste, onde a distância entre o estado com o melhor indicador e aquele com o pior caiu em 45 pontos percentuais, entre os estados da Região Sudeste, onde essa distância caiu em 8 pontos percentuais, e entre os estados da Região Sul, onde essa distância caiu em 4 pontos percentuais. Entre os estados da Região Nordeste, no entanto, não houve convergência com respeito a esse indicador. De fato, a distância entre o estado com o melhor indicador e aquele com o pior aumentou em 18 pontos percentuais ao longo de todo o período. 3 - Sumário e principais conclusões Em pleno século XXI podemos ainda encontrar milhares de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, apesar de todo o crescimento econômico e de todas as transformações pelas quais a política social brasileira vem passando, contando hoje com novos desenhos e estratégias, e apresentando grande variedade de programas sociais modernos e descentralizados. A luta por melhores condições de vida para a população nas regiões menos desenvolvidas tem tido grande ênfase nas últimas décadas. O objetivo é reverter o quadro de extrema pobreza, fome, analfabetismo e doenças que afetam milhares de pessoas. O sentido de urgência torna-se ainda maior quando observamos que a ori-

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

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gem do elevado grau de pobreza não é a falta de recursos (absoluta ou relativa) de nosso país, mas sim o fato de que esses recursos encontram-se concentrados nas mãos de uma pequena parcela da população. O Brasil, longe de poder ser considerado um país pobre é, seguramente, um país com muitos pobres. Portanto, a existência de recursos é importante mas não é suficiente para reverter esse quadro. A elevada desigualdade na distribuição da renda (estável ao longo das últimas décadas) constitui o principal determinante da pobreza em nosso país. Além de possuir os recursos necessários para reverter esse quadro, nosso país não gasta pouco na área social — são cerca de R$ 200 bilhões ao ano. Os indicadores sociais, contudo, não refletem toda essa riqueza, revelando uma política social muito pouco efetiva, apesar de todo o seu dinamismo. Em verdade, as Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM) constituem mais uma oportunidade para refletirmos sobre que país se quer construir. Hoje, esse é um país de grandes desequilíbrios. Quando observamos o país como um todo, este já atingiu ou está prestes a atingir várias das metas estabelecidas internacionalmente, mas quando focamos nossa atenção nas regiões e estados brasileiros, observamos que as disparidades regionais ainda são alarmantes, e que o esforço necessário para que esses estados venham a cumprir as metas estabelecidas parece inatingível. Apesar da porcentagem de pobres estar diminuindo, ainda que lentamente, a parcela da renda nas mãos dos mais pobres — que reflete o grau de desigualdade na distribuição dos recursos — caiu entre 1981 e 2001. Ou seja, a porcentagem de pessoas abaixo da linha de extrema pobreza é elevada e vem caindo lentamente, e a parcela da renda apropriada por esse grupo, quando não está estacionada, está diminuindo. Assim, muitos estados não vão conseguir atingir a meta de redução da extrema pobreza em função do seu elevado nível de desigualdade na distribuição da renda. Em educação, a distância da taxa de conclusão do Primeiro Grau à meta estabelecida para 2015 é hoje de 40 pontos percentuais, sendo que para a metade dos estados brasileiros esse hiato ultrapassa os 50 pontos percentuais. Assim, apesar do acesso à escola estar praticamente universalizado, o desafio pela frente é aumentar o núme-

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ro de crianças que concluem o Primeiro Grau, sem esquecer, obviamente, da qualidade do ensino, pois, apesar de as crianças estarem freqüentando a escola tanto nos estados do Nordeste quanto nos estados do Sul, isto é, apesar das diferenças na taxa de freqüência à escola serem mínimas, quando observamos os indicadores de qualidade, as diferenças ainda são alarmantes. Por exemplo, a freqüência à escola de crianças de 7 a 14 anos em Pernambuco e em Santa Catarina é de, respectivamente, 98% e 99%, ao passo que a taxa de analfabetismo de crianças entre 10 e 14 anos nestes mesmos estados é de 9,8% e 0,4%. Ou seja, a diferença entre os dois estados em termos da freqüência à escola é de 1 ponto percentual, ao passo que a diferença entre eles com respeito à taxa de analfabetismo é de mais de 9 pontos percentuais. No que diz respeito aos indicadores de saúde e saneamento, o Brasil ainda está longe de se encontrar em situação confortável em termos do nível de mortalidade infantil, da incidência das várias doenças analisadas, como Aids, tuberculose, malária e hanseníase, e do acesso aos serviços de água e esgotamento sanitário. Ou seja, os níveis desses indicadores que prevalecem ainda em grande parte dos estados brasileiros demonstram total incompatibilidade com o nível de desenvolvimento socioeconômico do país. Em suma, o Brasil apresenta grandes diferenças regionais que precisam ser eliminadas. Evidentemente, o fato de os indicadores em grande parte dos estados do Norte e do Nordeste ainda se encontrarem bem abaixo dos indicadores observados nas demais regiões, apesar de toda a convergência observada nos últimos vinte anos, revela uma oportunidade para o país atingir as metas estabelecidas, uma vez que é mais fácil melhorar o nível dos indicadores nessas regiões do que naquelas onde os indicadores já estão próximos dos objetivos. Portanto, o país deveria concentrar seus esforços para melhorar os indicadores nas regiões Norte e Nordeste, aumentando, desta forma, as chances de todos os seus estados atingirem as metas estabelecidas para 2015. Vale ressaltar, por fim, que, apesar da riqueza de informações existente no país, ainda é fundamental empreender esforços para a melhoria da qualidade das informações, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, onde a cobertura ainda é extremamente precária.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

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Essas dificuldades na obtenção de informações adequadas dificultam sobremaneira conhecer a diversidade dos problemas e sua magnitude e, portanto, dificultam o desenho de políticas voltadas para a solução dos problemas. •••

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REFERÊNCIAS BARROS, R., Firpo, S., Guedes, R. e Leite. P. (2000). Demographic Changes and Poverty in Brazil. Texto para Discussão No. 755, IPEA, Setembro. BARROS, R., Henriques, R. e Mendonça, R. (2000a). Pelo fim das décadas perdidas: educação e desenvolvimento sustentado no Brasil. In: HENRIQUES, Ricardo (org.). Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. p.405-423. BARROS, R., Henriques, R. e Mendonça, R. (2000b). A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. In: HENRIQUES, R. (org.). Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. p. 21-47. BARROS, R., Foguel, R. (2000). Focalização dos gastos públicos sociais e a erradicação da pobreza no Brasil. In: HENRIQUES, R. (org.). Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2000. FERNANDES, M. A. da Cunha (coord.) (1998). Gastos Sociais das Três Esferas de Governo – 1995, Texto para Discussão No. 598, IPEA, Brasília, Outubro. FUNDAP (2001). Tendências do Gasto Público em Saúde, por Esfera de Governo: Resultados e Limites Metodológicos para a Análise Comparativa das Décadas dos 80 e 90. HOLDEN, P. and Prokopenko, V. (2001). Financial Development and Poverty Alleviation: Issues and Policy Implications for Development and Transition Countries, IMF Working Papers, October. IBGE (2002). Censo Demográfico 2000: fecundidade e mortalidade infantil. Resultados preliminares da amostra. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – vários anos. LI, H., Squire, L., Zou, H. (1998). Explanining international and intertemporal variations in income inequality. The Economic Journal, 108 (January), 26-43. MENDONÇA, R. (2000). A oportunidade imperdível: expansão educacional e desenvolvimento humano no Brasil. Tese de Doutorado defendida no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. MENDONÇA e Ramos (2005). Pobreza e Desigualdade de Renda no Brasil. In: Giambiagi, Fábio, Villela, André, Barros de Castro, Lavínia e Hermann, Jennifer. Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004). Editora Campus, 2004. Pnud (1990). Relatório de Desenvolvimento de 1990. Pnud (1998). Relatório de Desenvolvimento de 1990. The World Bank (1998). Brazil: Public Spending on Social Programs; issues and options (in two volumes), May 27. The World Bank (2000). World Development Report, 1999/2000.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça

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PROGRAMAS SOCIAIS VOLTADOS À EDUCAÇÃO NO BRASIL O IMPACTO DO BOLSA ESCOLA Simon Schwartzman1

Presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro (Iets).

Os programas sociais orientados para a área de educação, conhecidos como “Bolsa Escola”, têm por objetivo pobre as famílias pobres com crianças com um estipêndio monetário de tal forma a permitir e estimular estas famílias a colocarem seus filhos na escola. No Brasil, alguns programas deste tipo existem desde meados dos anos 90, e se transformaram em um programa federal desde 2001. Em 2004, o governo brasileiro juntou o programa Bolsa Escola com outros programas de renda mínima com o propósito de criar um programa amplo de ajuda familiar (Bolsa Família). Este artigo examina os impactos sobre a educação e a igualdade destes programas sociais na área de educação, utilizando dados da Pnad 2003. A análise revela que esses programas não são bem focalizados desde a ótica da educação. Esses programas são mais bem focalizados desde um ponto de vista de geração e transferência de renda, mas, ainda assim, possuem certas limitações. O artigo conclui que essas políticas ou programas não estão baseados em um processo de pesquisa bem fundamentado e, portanto, assumem presssupostos equivocados. simon@iets.inf.br

1

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Antecedentes – os programas do Bolsa Escola Por vários anos, os governos municipais, estaduais e o governo federal mantiveram programas para fornecer às famílias de baixa renda com filhos um pequeno estipêndio mensal, em geral chamado Bolsa Escola, requerendo em troca que a família matriculasse e mantivesse as crianças na escola. O pressuposto é que, em famílias muito pobres, as crianças não vão à escola porque precisam trabalhar, e um estímulo monetário poderia mudar esta situação. O Bolsa Escola tornou-se a menina-dos-olhos dos governos e agências internacionais, e recebeu amplo apoio da opinião pública, como um instrumento efetivo para melhorar as condições educacionais dos segmentos mais pobres da população. Os primeiros programas desse gênero tiveram início em 1995, nas cidades de Campinas, São Paulo e Brasília, e desde então foram adotados em inúmeros outros lugares. De acordo com as estimativas de Cardoso e Souza, existiam 61 programas semelhantes em 1999, além dos 17 mantidos pela instituição não-governamental Missão Criança (Cardoso e Souza, 2003). Em 2001, uma lei criou o programa federal Bolsa Escola, com base na transferência de recursos feita através da Caixa Econômica Federal. A legislação de 2001 estabelecia que os programas fossem executados pelos municípios, que seriam responsáveis pelo registro das pessoas carentes, e desempenhariam um papel importante para trazer as crianças para a escola. Para participar

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

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do programa, os municípios deveriam criar um “conselho de controle social”, com a participação de autoridades e líderes locais. Somente famílias com crianças entre 6 e 15 anos de idade, matriculadas em escolas regulares e abaixo de uma determinada faixa de renda, poderiam participar (Brasil, Presidência da República, 2001). No final de 2003, o governo do Presidente Lula decidiu unificar diferentes programas federais de transferência de recursos em um diretamente sob a Presidência, a ser dirigido por um conselho interministerial especial e um secretário especial nomeado para a função. Esperava-se que o novo programa concedesse uma renda mínima de R$ 50,00 por mês para cada família com renda per capita mensal de R$ 50,00 ou menos, com benefícios adicionais para mulheres grávidas, crianças pequenas, crianças na escola, subsídios para alimentação e gás, que antes faziam parte de programas separados (Brasil, Presidência da República, 2004). Algum tempo depois, o governo anunciou que cerca de 5,3 milhões de famílias estavam recebendo o novo benefício, estimado em R$ 75,00 em média, ou cerca de US$ 26 por família, por mês (Rocha Filho, 004). Se considerarmos que há duas ou três crianças em idade escolar por família, e que a maior parte do novo programa corresponde ao antigo Bolsa Escola, isso significaria que 10 a 15 milhões de crianças vivem em famílias que recebem o benefício. O orçamento total do programa para o ano de 2004 era de R$ 5,8 bilhões, aproximadamente US$ 2 bilhões. Esses dados precisam ser comparados com o número de jovens com idades entre 5 e 17 anos, vivendo em famílias que ganham menos de US$ 1 por dia, por pessoa (12 milhões, ou 30% do grupo etário) e com o orçamento federal para a educação (R$ 17,3 bilhões, em 2004, dos quais 13,3 bilhões para o ensino superior). A educação básica e o ensino médio, no Brasil, são atribuições dos governos estaduais e municipais e não do governo federal, mas os recursos do governo federal são importantes na implementação de vários programas, incluindo merenda escolar e livro didático, assim como para compensar os estados com menos recursos, através do Fundo Nacional para a Educação Básica (Fundef). Entretanto, o Bolsa Família está se tornando maior do que todos os outros programas do governo federal voltados à educação, fora o ensino superior.

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Há vários trabalhos na literatura que tentam avaliar os efeitos de tais programas (Ramos, 1999; Rocha, 2000; Bourguignon, Ferreira et al., 2002; World Bank, 2002; Bourguignon, Ferreira et al., 2003; Ferro e Kassouf, 2004). Lendo os documentos oficiais publicados pelos governos e pelas agências multilaterais, pareceria que sua efetividade é inquestionável (Aguiar e Araújo, 2002). Entretanto, não é assim. Não há pesquisa empírica sistemática sobre efeitos reais do programa sobre a freqüência às aulas e, mais crítico ainda, de seus efeitos sobre a aprendizagem2. Estudos qualitativos tendem a assinalar as formas aleatórias com que os controles de freqüência são realizados, a resistência das escolas em lidar com alunos com dificuldades de aprendizagem, e a falta de vontade dos professores de reportar a ausência às autoridades, preservando assim pequenas rendas para famílias muito pobres (Barbosa e Lavinas, 2000; Castro 1999). Em 2004, o programa federal Bolsa Família foi alvo de forte ataque por parte da imprensa brasileira, depois de uma série de críticas feitas pela maior rede de comunicação do país, a Globo. O primeiro ataque veio de um artigo assinado por Ali Kamel, denunciando que o governo não tinha nenhum controle sobre se as crianças provenientes de famílias que recebiam o benefício efetivamente freqüentavam a escola (Kamel, 2004). A segunda crítica partiu de um programa da TV Globo que se baseou em uns poucos casos dispersos para afirmar que o benefício estava sendo concedido a famílias de classe média, que não tinham necessidade dele, enquanto famílias mais pobres eram excluídas, muitas vezes porque o programa era conduzido por autoridades locais, que preparavam suas próprias listas de Como Cardoso e Souza apontaram, “o apoio do Banco Mundial ao Programa Bolsa-Escola no Brasil baseia-se em um estudo de caso: o de Brasília, Distrito Federal (World Bank, 2002). O aval da Organização Mundial do Trabalho (OIT-ILO) baseia-se no estudo de caso de Recife (Lavinas, Barbosa et al., 2001). Escrevendo em 2003, os autores observam que “até agora, não existe uma avaliação do impacto deste conjunto de programas sobre a pobreza, a educação e o trabalho infantil. Não se sabe o que aconteceu com os programas municipais depois da introdução do programa de Renda Mínima e o governo nunca fez ou publicou uma análise deste programa. O programa desapareceu em 2001 quando o governo substituiu-o pelo Bolsa Escola Federal” (Cardoso e Souza, 2003). 2

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

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beneficiários (Fantástico, 2004). A respeito da primeira crítica, o governo reconheceu o problema, e respondeu que, em breve, colocaria controles em prática. Dando um passo mais à frente, o Ministro da Educação anunciou que em alguns meses um sistema de ponto eletrônico seria instalado em algumas escolas para conferir a freqüência das crianças às aulas3. À segunda crítica, o governo respondeu que casos de uso indevido são inevitáveis em um país tão grande e complexo, mas que o programa, em geral, estava corretamente focalizado nos segmentos mais pobres da população. Ao mesmo tempo, o governo anunciou ações de investigação e punição dos possíveis desvios. Está claro, entretanto, que uma das maiores fraquezas do programa é a ausência de um cadastro nacional confiável de famílias pobres candidatas ao benefício. A única agência nacional que poderia produzir tal cadastro seria o IBGE, mas o Instituto não mantém identificações individuais nas operações de censos decenais. Exceto talvez em São Paulo, não há institutos estaduais de estatística que possam realizar a tarefa. A Secretaria da Receita Federal tem um bom banco de dados das pessoas que possuem um número de CPF, mas isso, por definição, exclui os mais pobres, que freqüentemente não têm registros nem documentos. O último censo foi realizado em 2000, e havia planos para uma Contagem da População em 2005, o que teria sido uma oportunidade para criar um registro nacional. Isto, porém, foi cancelado por falta de verbas. Os cadastros existentes são feitos por autoridades locais, e sujeitos a todo tipo de imprecisões técnicas e administrativas, assim como a manipulações políticas. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Desde 2001, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios — Pnad, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE, investiga se as crianças de 5 a 17 anos, residentes no doIsso foi uma afirmação surpreendente, considerando que a maioria dos estudantes mais pobres nas zonas rurais está espalhada em cerca de 100 mil escolas municipais, de uma única sala de aula, freqüentemente com um único professor e instalações e equipamentos muito precários (Schwartzman, 2004a). 3

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Sinais Sociais • maio > agosto 2006


micílio, participam ou não de “programas sociais voltados à educação”4. Tipicamente, a Pnad é realizada em setembro, e seus resultados, junto com os microdados, são divulgados um ano depois. A pesquisa tem uma amostra de cerca de 130 mil domicílios, abrangendo cerca de 370 mil pessoas, e é representativa de todos os estados brasileiros, das regiões metropolitanas e rurais, com exceção das áreas rurais da Região Norte, escassamente povoadas. Em 2003, pela primeira vez os participantes dos programas foram divididos em dois grupos: os que já recebiam o benefício e os que já estavam registrados para recebê-lo e aguardavam homologação. De acordo com a pesquisa, em setembro de 2003, havia 8,4 milhões dos 43,1 milhões de crianças de 5 a 17 anos de idade que já estavam recebendo o benefício, enquanto 3,8 milhões estavam aguardando uma decisão. Infelizmente, a pesquisa não distingue se o auxílio vem do governo federal, estadual ou municipal. Pelos números conhecidos, pode-se supor que a maior parte se refere aos programas do governo federal, embora existam também outros programas locais, por exemplo, nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo5. O impacto sobre a matrícula e a freqüência escolar O pressuposto desses programas é que o principal efeito do benefício monetário é de livrar as crianças da necessidade de trabalhar, possibilitando-lhes ir à escola. Supõe-se também que o auxílio criaria uma obrigação moral das famílias de mandarem seus filhos à escola, o que poderia ser reforçado por conselhos comunitários locais encarregados da supervisão do programa, a serem estabelecidos com esse fim. O que de fato acontece? É verdade que, sem o benefício, crianças de famílias pobres não vão à escola porque precisam trabalhar? É verdade que, ao receber o benefício, param Neste texto usaremos “Bolsa Escola” para nos referirmos a estes programas. Antes de lançar o novo programa Bolsa Família, o governo federal tentou negociar sua integração aos programas similares estaduais e municipais, para evitar duplicidade e reduzir custos. Na maioria dos estados, entretanto, não se chegou a um acordo. 4 5

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

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de trabalhar e começam a estudar? É verdade que, se fossem levadas à escola, aprenderiam? A Pnad pergunta se uma pessoa está matriculada em uma escola. Os principais resultados podem ser conferidos na Tabela 1. Esta Tabela mostra que receber ou não um benefício faz diferença para crianças de 5 a 6 anos de idade, assim como para as de 14 a 17. Para crianças de 7 a 13, entretanto, o efeito é menos de 2%. O motivo é simples. Uma vez que a cobertura da educação básica está praticamente universalizada, um pequeno benefício em dinheiro não consegue fazer uma diferença significativa na matrícula escolar. No entanto, a educação pré-escolar não está universalizada, e os adolescentes aos 14 anos começam a abandonar a escola por diversas razões. Nesta idade, um programa para estimular as crianças a ficar ou voltar à escola pode fazer diferença. Não podemos ver, porém, através desses dados, se o impacto percebido os dois grupos foram provocados pelo Bolsa Escola ou por outros programas mais focalizados em grupos específicos, trabalhando em parceria com as escolas6. Uma hipótese é que tais programas poderiam ser mais efetivos em trazer e manter as crianças na escola, comparados aos programas mais gerais. Entretanto, se analisarmos os efeitos do Bolsa Escola em relação à renda familiar per capita, encontramos efetivamente algumas diferenças, embora não muito grandes (Tabela 2). No decil de renda mais baixo, para o grupo de 5 a 15 anos de idade, ter ou não um auxílio em dinheiro faz uma diferença de 11,5% na matrícula escolar. Efeitos similares, porém menores, podem ser encontrados em outros grupos, até o quinto decil de renda. Curiosamente, no entanto, observa-se que as taxas de matrícula para os que ainda estão esperando pela homologação da concessão do benefício são similares às dos que já o estão recebendo, e não à dos que estão fora do sistema. Uma possível interpretação para esse resultado é que o que faz a diferença na matrícula não é o benefício monetário em si, mas o fato de ele estar de alguma forma vinculado às redes sociais, ou a outras condições que colocam as pessoas ao alcance do programa. Pode Exemplos de tais programas são o “Programa de Erradicação do Trabalho Infantil” e o “Programa Agente Jovem”, no Estado de São Paulo. 6

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ser também conseqüência da regra de que o benefício só seja dado às famílias cujos filhos já estejam freqüentando a escola, excluindo os que já a abandonaram, ou têm mais de 15 anos de idade. Tabela 1 Porcentagem de pesssoas que freqüentam a escola, por idade e participação no programa Bolsa Escola Idade

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Diferença (C-A)

Total de pessoas no grupo etário

5

82,3

80,8

68,6

13,7

3.211.921

6

94,9

92,1

86,0

8,9

3.203.202

7

98,0

97,4

95,2

2,8

3.345.282

8

99,1

99,2

97,3

1,8

3.331.262

9

99,6

98,2

97,7

1,9

3.303.329

10

99,7

98,3

97,8

1,9

3.276.524

11

99,7

97,9

97,9

1,8

3.207.807

12

99,1

97,4

97,8

1,3

3.187.444

13

98,7

96,5

95,5

3,2

3.272.166

14

98,0

93,3

92,4

5,6

3.343.000

15

95,8

92,0

87,5

8,3

3.530.120

16

92,3

87,4

81,7

10,6

3.520.102

17

73,8

79,9

73,8

0,0

3.431.171

total

97,8

95,0

88,4

9,4

43.163.330

Grupo A: Pessoas que recebem o Bolsa Escola (%) Grupo B: Pessoas matriculadas e esperando o programa (%) Grupo C: Pessoas que não participam do programa (%) Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria

Estar matriculado não significa necessariamente estar freqüentando regularmente as aulas. O ano letivo no Brasil começa em fevereiro, e a Pnad acontece em setembro. Nesta época, as crianças matriculadas mais cedo podem já ter abandonado a escola. Em 2001, a pesquisa domiciliar incluiu um suplemento sobre o trabalho infantil, e perguntou quantos dias os alunos tinham faltado

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

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às aulas nos últimos dois meses, e os motivos dessa ausência. Havia também uma pergunta sobre se a criança participava de algum programa social voltado à educação, sem, entretanto, distinguir os que já estavam recebendo o benefício dos que estavam cadastrados, mas ainda esperavam por ele. Dadas as semelhanças entre estes dois grupos, como mostra a Tabela 2, esta distinção não parece ser importante aqui. A Tabela 3 mostra a distribuição dos alunos de acordo com sua situação real na escola, nos dois meses anteriores à pesquisa. O padrão geral é que, de 7 a 13 anos, cerca de 90% dos estudantes freqüentem as aulas regularmente, faltando menos que cinco dias nos dois meses, e que cerca de 8% faltem mais do que isso, com um pequeno percentual não freqüentando as aulas. Como foi anteriormente observado, a falta à escola é maior no grupo etário mais baixo e mais alto, antes de 7 e depois de 13. O padrão se mantém estável Tabela 2 Porcentagem de pessoas que freqüentam a escola, por decil de renda e participação no programa Bolsa Escola, com idade entre 6 e 15 anos Decil de renda

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Diferença (C-A)

Renda(*)

1

98,5

95,9

87,0

11,5

30,80

2

98,9

96,2

88,8

10,0

67,13

3

98,8

96,6

91,9

6,9

100,87

4

98,6

98,0

93,5

5,1

138,83

5

98,7

97,8

94,9

3,8

182,75

6

98,1

96,6

96,7

1,3

236,60

7

98,5

97,8

96,9

1,6

308,45

8

99,0

97,0

97,8

1,2

419,29

9

99,4

98,8

98,0

1,4

621,96

10

100,0

95,9

99,4

0,6

1.302,29

total

98,7

96,7

94,1

4,6

43.163.330

Grupo A: Pessoas que recebem o Bolsa Escola (%) Grupo B: Pessoas matriculadas e esperando o programa (%) Grupo C: Pessoas que não participam do programa (%) Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria (*) renda familiar per capita por mês, em reais.

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Tabela 3 Dias de falta às aulas, nos últimos dois meses, segundo a idade Idade

Zero (%)

2 a 5 dias (%)

6 dias ou mais (%)

Não frequentaram (%)

5

36,0

23,1

6,7

34,1

6

45,9

31,4

8,9

13,7

7

52,9

34,7

8,2

4,2

8

55,7

33,6

8,0

2,6

9

56,2

33,7

7,7

2,3

10

57,9

32,7

7,6

1,9

11

56,7

32,8

8,4

2,1

12

56,4

32,8

8,9

3,0

13

55,0

31,7

9,5

4,3

14

51,4

31,3

9,9

7,5

15

48,5

28,9

10,1

12,4

16

43,0

27,6

10,8

18,5

17

41,5

24,0

8,2

26,2

Fonte: IBGE, Pnad 2001, tabulação própria

para todos os grupos de renda, com uma variação de 1% a 3% dos estudantes faltando mais que cinco dias de aula, dos segmentos mais ricos aos mais pobres. A Tabela 4 mostra o efeito geral do Bolsa Escola sobre a freqüência à escola: há alguma diferença na freqüência plena para os que recebem o benefício, de cerca de 7%, e uma diferença maior entre os que não a freqüentam nada de 10%. Mas é impossível saber se esta última diferença se deve ao fato de que os nãomatriculados não estão qualificados para recebê-lo, de acordo com a legislação de 2001 do Bolsa Escola. A Tabela 5 mostra as razões apresentadas pelos estudantes ou por seus pais para a falta às aulas, nas famílias do quintil de renda mais pobre. Os principais motivos são doenças e problemas com a escola, e não questões de trabalho ou dinheiro, e não há diferenças significativas relacionadas ao fato de o estudante participar ou não do programa Bolsa Escola. A análise da freqüência escolar, comparada à matrícula, mostra que a informação sobre a matrícula, como apresentada na Tabela 1,

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

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Tabela 4 Freqüência à escola, nos dois meses anteriores à pesquisa, por participação no Bolsa Escola Participação no Bolsa-Escola Dias de falta

sim (%)

não (%)

nenhum

56,70

49,40

1a5

33,80

29,90

6 a 10

5,50

4,80

11 a 20

1,60

1,80

mais de 20

1,30

2,20

não freqüentaram

1,10

11,90

100,00

100,00

Total

Fonte: IBGE, Pnad 2001, tabulação própria.

Tabela 5 Razões para faltar às aulas (quintil de renda mais baixa) Participação no Bolsa Escola Razões para faltar às aulas

sim (%)

não (%)

Ajudam nos afazeres domésticos

4,6

3,2

Trabalham ou procuram trabalho

4,9

6,5

Falta de transporte escolar

6,3

4,0

Falta dinheiro para as despesas escolares (mensalidade, material etc.)

0,9

1,6

A escola é distante

1,0

0,8

1,1

0,8

10,9

13,4

Não tiveram quem os levasse Falta de professor, greve Dificuldade de acompanhar as aulas Doença Não quiseram comparecer Os pais ou responsáveis não quiseram que comparecessem Outros Motivos Total

0,3

0,4

46,6

42,9

10,6

12,5

0,7

1,5

11,9

12,3

100,00

100,00

Fonte: IBGE, Pnad 2001, tabulação própria.

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Sinais Sociais • maio > agosto 2006


corresponde à freqüência real, com um padrão de falta às aulas não relacionado ao benefício. As principais variações na participação escolar se devem às diferenças de idade, e poder-se-ia esperar que o Programa Bolsa Escola estivesse focalizado nos grupos etários de maior risco. Porém isto não acontece, como mostra a Tabela 6. Podemos concluir que, em geral, o Bolsa Escola tem um problema sério de focalização em termos de seu impacto sobre a matrícula escolar. Está focalizado nas crianças que menos precisam, e, se considerarmos o número de crianças que ainda estão esperando pelo benefício como um indicativo de tendência, não havia sinais, em 2003, de correção de rumo, uma vez que a maioria dos novos benefícios foi para crianças de 7 a 11 anos. Uma outra forma de se olhar para esta questão é ver se os beneficiários dos programas estão matriculados em cursos regulares ou em

Tabela 6 Participação no Bolsa Escola e matrícula escolar Idade

Recebem bolsa (%)

Matriculados e esperando (%)

Fora da escola (%)

5

2,00

6,00

24,20

6

2,40

8,40

10,40

7

3,00

12,30

3,60

8

5,70

14,00

1,80

9

11,70

8,90

1,40

10

12,90

8,30

1,30

11

12,80

8,30

1,20

12

12,50

7,40

1,40

13

11,90

7,20

2,80

14

10,30

6,90

5,10

15

9,10

6,20

9,20

16

4,90

4,90

14,90

17

1,00

1,30

22,60

Total

100,00

100,00

100,00

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

125


Gráfico 1 Participação no Bolsa Escola e matrícula escolar 30,0%

2 ,0%

20,0%

1 ,0%

10,0%

,0%

0,0%

6

8

10 11 12 13 14 1 16 1 idade

participação

fora da escola

outros tipos de programas educacionais. Podemos ver na Tabela 7 que a massa dos benefícios é concedida aos estudantes que freqüentam a educação fundamental regular, onde a falta às aulas é menos problemática. Muito pouco é concedido aos estudantes nos programas mais necessitados, de recuperação dos estudantes mais velhos que abandonaram a escola e precisam de programas compensatórios para trazê-los de volta ao nível esperado para seus grupos de idade. Como já sinalizamos, a legislação federal do Bolsa Escola exige que os estudantes estejam em cursos regulares, não em programas especiais de qualquer tipo. Ao examinar a última coluna da Tabela 7, podemos verificar que existe uma tendência de aumentar o auxílio às crianças na pré-escola, onde os benefícios educacionais são incertos, dado que a maioria das pré-escolas no país são na verdade creches, com pouco ou nenhum conteúdo pedagógico.

126

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 7 Participação no Bolsa Escola, por tipo de curso Tipo de Curso

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Grupo D

Grupo E

Regular de 1º Grau

7.592.509

3.034.205

20.710.617

33,9

40,0

Regular de 2º Grau

301.422

152.993

8.051.030

5,3

50,8

Supletivo de 1º Grau

33.533

10.307

1.028.503

4,1

30,7

Pré-escolar

4.015

1.770

780.606

0,7

44,1

340.223

462.834

5.602.562

12,5

136,0

8.273.468

3.662.109

43.489.444

21,5

44,3

Alfabetização de adultos Total

Grupo A: Recebem bolsa Grupo B: Matriculados e esperando Grupo C: Não participam Grupo D: Pessoas que recebem bolsa (%) Grupo E: Crescimento esperado (%)* Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria. * matriculados e esperando, como proporção dos que já recebem bolsa

Os efeitos do Bolsa Escola sobre o trabalho infantil Supostamente, as crianças beneficiadas pelo Bolsa Escola deixam de trabalhar, para ir à escola. A questão do trabalho infantil no Brasil tende a ser apresentada como um problema alarmante, com milhões de crianças pobres perambulando pelas ruas das grandes cidades pedindo esmolas, vendendo balas ou consumindo drogas, e outras sendo exploradas em tarefas árduas ou em trabalhos semi-escravos, na zona rural. Um olhar cuidadoso na evidência mostra um panorama muito diferente (Schwartzman e Schwartzman, 2004). A Pnad 2003 encontrou cerca de 6,2 milhões de pessoas com idade de 10 a 17 anos relatando algum tipo de trabalho, ou fazendo um esforço para procurar trabalho, na semana anterior ou no último ano. Utilizando o conceito tradicional de atividade econômica como “trabalhando ou procurando trabalho na semana anterior”, o número cai para 5 milhões. Isso inclui trabalho ocasional, trabalho para consumo próprio, e um grande número de crianças e adolescentes trabalhando com suas famílias no campo, sem remuneração monetária. O trabalho infantil é predominantemente rural,

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

127


e ocorre com maior incidência em idades mais elevadas, de 15 a 17 anos, quando muitos adolescentes já abandonaram a escola7. Trabalhar ou não trabalhar tem algum impacto sobre a freqüência à escola, mas não é um grande impacto, como se vê na Tabela 8. Esse impacto é mínimo quando a criança é mais jovem e trabalha algumas horas por dia com sua própria família em atividades rurais; e tende a ser maior sobre adolescentes que trabalham mais horas em ambientes urbanos. Tabela 8 Freqüência escolar, por idade e atividade econômica % dos que freqüentam a escola Idade

Economicamente ativos

Economicamente inativos

Ativo (%)

10

98,0

98,5

5,8

11

97,4

98,6

7,8

12

98,5

98,2

9,9

13

93,9

97,0

14,2

14

88,7

95,3

19,5

15

83,0

92,3

28,6

16

77,3

87,2

39,5

17

68,6

79,3

50,4

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Há situações de óbvio abuso do trabalho infantil, que requerem uma intervenção ativa das autoridades públicas para contê-las e para interromper um padrão de adolescentes urbanos fora da escola, fora do mercado de trabalho ou de qualquer outra forma de atividade orDeve-se notar que o conceito de “atividade econômica” inclui também os desempregados, definidos como aqueles que não estão trabalhando, mas estão ativamente procurando trabalho. A Pnad 2003 encontrou que 9,7% da população ativa brasileira estavam desempregados; entre 15 e 17 anos, 50% estavam economicamente ativos, e, destes, 23% ou 995 mil estavam desempregados e procurando trabalho. 7

128

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


ganizada, terreno fértil para o comportamento delinqüente. Mas, em geral, o trabalho infantil é em sua maioria associado aos padrões de trabalho familiar, nas zonas rurais, particularmente no campo mais próspero da Região Sul, bem como nas áreas rurais pobres da Bahia e de outros estados do Nordeste. Nesses estados, o trabalho infantil faz parte de uma síndrome mais ampla de pobreza e falta de acesso aos serviços sociais, o que também limita a capacidade das crianças de irem à escola. A Tabela 9 mostra a associação entre atividade econômica e Bolsa Escola por idade, para o grupo de 10 a 17 anos de idade (a Pnad só coleta dados sobre ocupação a partir de 10 anos de idade, exceto em suplementos especiais). Em vez da esperada correlação negativa entre Bolsa Escola e trabalho, encontramos o oposto: os que recebem o benefício são os que mais trabalham. Tabela 9 Porcentagem de jovens economicamente ativos, com idade entre 10 e 17 anos, por participação no Bolsa Escola Recebem o Bolsa Escola (%)

Matriculadas e esperando o programa (%)

Não participam do programa (%)

10

8,00

10,00

3,80

11

11,60

11,00

5,00

12

14,80

13,00

6,60

13

17,90

21,70

11,30

14

24,20

28,50

16,50

15

33,50

38,40

26,20

16

43,10

45,80

38,60

17

57,20

53,40

50,20

Idade

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Isto é de se esperar, uma vez que o Bolsa Escola está focalizado nas pessoas mais pobres, que precisam trabalhar mais do que as do grupo de renda mais alta, especialmente depois dos 14 anos, quando 24,2% dos jovens em famílias que recebem benefício já traba-

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

129


lham. Por outro lado, quando examinamos a relação entre Bolsa Escola e atividade econômica por nível de renda familiar, efetivamente encontramos diferenças importantes nos grupos de renda mais baixa, como se vê na Tabela 10 e no gráfico 2. Ter ou não o auxílio, nos grupos de nível de renda mais baixa, significa uma diferença de cerca de 20 pontos percentuais até o quarto nível, e de cerca de 10 a 5 pontos percentuais a partir daí8. O impacto de só esperar pelo benefício é mais errático, e está aberto à interpretação. Tabela 10 Porcentagem de pessoas economicamente ativas, com idade entre 10 a 17 anos, segundo sua participação no Bolsa Escola, por grupo de renda Decil de renda

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Total de pessoas no grupo etário

1

26,7

32,6

44,9

3.695.461

2

23,4

35,2

37,8

3.629.234

3

23,4

25,0

33,7

3.518.977

4

20,2

21,5

33,0

3.032.758

5

26,9

32,9

31,8

2.792.441

6

23,7

23,8

32,3

2.196.695

7

25,3

30,3

29,4

2.176.048

8

24,8

37,3

28,6

1.942.812

9

15,0

24,0

21,1

1.665.973

10

5,6

21,6

10,6

1.459.007

total

24,0

29,3

30,2

26.109.406

Grupo A: Pessoas que recebem o Bolsa Escola (%) Grupo B: Pessoas matriculadas e esperando o programa (%) Grupo C: Pessoas que não participam do programa (%) Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Esse resultado é consistente com uma análise de regressão que mostra que o Bolsa-Escola é eficiente na redução do número de horas trabalhadas, em duas horas e meia por dia nas áreas urbanas, e três horas e meia por dia, nas rurais. Entretanto, os resultados não foram conclusivos em relação ao efeito do benefício na decisão da família de inserir suas crianças no mercado de trabalho. (Ferro e Kassouf, 2004) 8

130

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 2 Porcentagem de pessoas economicamente ativas, com idade entre e 10 anos, segundo sua participação no Bolsa Escola por grupo de renda 0,0% 4 ,0% 40,0%

economicamente ativa

3 ,0% 30,0% 2 ,0% 20,0% 1 ,0% 10,0% ,0% 0,0%

1

2

3

4

6

8

10

decis de renda

recebem bolsa

esperando

não recebem

Focalização socioeconômica e as diferenças entre Estados Em geral, os programas de Bolsa Escola são bem focalizados nos grupos de renda mais baixa, como pode ser visto na Tabela 11. Nos dois decis de renda mais baixa, 45% das crianças recebem o benefício, e 50% dos benefícios são destinados a esse grupo. Entretanto, há cerca de 1,5 milhões de crianças no quinto quintil e acima, 18% do total, que também o recebem. Isso significa que, apesar dos programas estarem em geral bem focalizados, há também distorções, que não são apenas casos isolados.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

131


Tabela 11 Crianças de 5 a 17 anos que participam de programas do Bolsa Escola, por nível de renda familiar rti Pa a

nd Re

ão aç

p ci

po

po

ru

ru

G

G

(* )

D

C

B

A

%

po

po

ru

ru

G

G

de il ec a D end r

1

2.281.579

938.125

3.520.167

6.739.871

47,8

2

1.971.244

849.018

3.317.920

6.138.182

45,9

30,21 68,18

3

1.481.162

703.457

3.521.954

5.706.573

38,3

102,78

4

1.088.977

498.837

3.250.577

4.838.391

32,8

140,94

5

682.082

356.762

3.283.590

4.322.434

24,0

185,37

6

341.456

179.777

2.819.846

3.341.079

15,6

239,06

7

214.064

140.831

2.971.418

3.326.313

10,7

311,07

8

132.394

68.571

2.769.996

2.970.961

6,8

427,86

9

88.257

41.276

2.438.756

2.568.289

5,0

646,77

10

23.987

12.365

2.212.288

2.248.640

1,6

1.569,38

total

8.305.202

3.789.019

30.106.512

42.200.733

28,7

260,34

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola Grupo B: Matriculadas e esperando o programa Grupo C: Não participam do programa Grupo D: Total de pessoas no grupo etário Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria. (*) Renda Familiar em R$ por pessoa por mês

Para entender a distribuição, é importante examinar as diferenças geopolíticas. A primeira observação é que, apesar de a maioria das famílias de baixa renda residir em áreas urbanas, o programa tem um viés em direção ao setor rural. Dos 12,8 milhões de crianças em famílias do quinto quintil de renda mais baixa, 35% vivem em áreas rurais, mas recebem 40% dos benefícios. Entre os pobres rurais, 39% recebem o benefício; entre os pobres urbanos, somente 30% o recebem. A lógica sob esse viés não fica muito clara, mas pode estar relacionada ao fato de que, para se candidatar a diversos programas federais, a renda média do município deve ser mais baixa do que a renda média do seu estado. Isso exclui as grandes áreas metropolita-

132

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


nas, que têm rendas acima da média, mas também grandes bolsões de pobreza, e está em oposição à noção de que a maioria dos problemas sociais brasileiros está nos cinturões urbanos de pobreza e nas favelas. O custo de se viver no campo é menor, com oportunidades de atividades não monetárias de subsistência que não existem em ambientes urbanos, e as conseqüências de uma renda monetária muito baixa nas áreas rurais e urbanas são bem diferentes. Gráfico 3 Pessoas entre e 1 anos de idade no quintil de renda mais baixa, que recebem o Bolsa Escola, por área de residência .000.000 8.000.000 .000.000 6.000.000 .000.000 4.000.000 3.000.000 2.000.000

recebem

1.000.000

esperando

0.0

não recebem

urbano

rural

A Tabela 12 mostra a distribuição dos beneficiários por estado. É natural que os estados mais pobres e populosos — Bahia, Minas Gerais, Maranhão, Ceará — recebam mais benefícios. A baixa participação dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, entretanto, merece atenção. Em parte, a situação pode ser explicada pelo fato de que esses estados são relativamente mais ricos, e têm uma pequena percentagem de famílias de baixa renda. Porém, mesmo no segmento de renda mais baixa, a proporção de beneficiários é menor, como mostra a Tabela 13. A comparação entre as colunas 1 e 2 da Tabela 12 permite-nos ver qual direção o programa está tomando, nos diferentes estados.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

133


Tabela 12 Crianças de 5 a 17 anos de idade que participam de programas do Bolsa Escola, por Unidades da Federação UF

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Grupo D

Grupo E

RO

37.571

21.890

227.814

287.275

13,1

AC

29.360

13.047

81.228

123.635

23,7

AM RR

95.844

29.970

578.927

704.741

13,6

14.244

2.504

67.924

84.672

16,8

PA

251.984

172.208

862.454

1.286.646

19,6

AP

34.958

11.797

97.094

143.849

24,3

TO

100.617

21.557

213.856

336.030

29,9

MA

605.042

177.426

1.011.843

1.794.311

33,7

PI

290.225

57.535

455.712

803.472

36,1

CE

683.818

332.012

1.155.950

2.171.780

31,5

RN

220.218

85.477

476.188

781.883

28,2

PB

308.231

90.400

515.006

913.637

33,7

PE

560.550

317.140

1.200.057

2.077.747

27,0

AL

241.303

95.229

528.373

864.905

27,9

SE

120.103

16.422

360.953

497.478

24,1

BA

1.197.691

474.764

1.966.448

3.638.903

32,9

MG

925.184

508.901

2.995.469

4.429.554

20,9

ES

165.148

94.308

540.013

799.469

20,7

RJ

223.686

97.749

2.580.782

2.902.217

7,7

SP

714.572

410.486

7.356.386

8.481.444

8,4

PR

450.132

196.501

1.748.277

2.394.910

18,8

SC

137.192

89.760

1.084.498

1.311.450

10,5

RSul

342.442

254.256

1.716.442

2.313.140

14,8

MS

109.621

25.312

398.010

532.943

20,6

MT

109.239

62.737

520.926

692.902

15,8

GO

263.603

88.526

969.205

1.321.334

19,9

DF

72.624

41.105

396.677

510.406

14,2

total

8.305.202

3.789.019

30.106.512

42.200.733

19,7

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria. Grupo A: Recebem o Bolsa Escola Grupo B: Matriculadas e esperando o programa Grupo C: Não participam do programa Grupo D: Total de pessoas no grupo etário Grupo E: Porcentagem dos que recebem

134

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 13 Nível de renda familiar dos participantes de programas do Bolsa Escola por Unidades da Federação UF

Grupo A

Grupo B

Grupo C

razão C/A

razão B/A

Grupo D

RO

141,40

110,33

282,57

2,00

1,08

17,2

AC

119,26

115,34

376,24

3,15

0,97

34,1

AM RR

110,37

136,00

229,11

2,08

1,23

19,4

187,48

115,89

315,61

1,68

0,62

21,7

PA

125,83

132,73

236,79

1,88

1,05

24,5

AP

96,29

115,47

252,50

2,62

1,20

34,2

TO

113,58

113,34

237,48

2,09

1,00

36,0

MA

92,57

94,37

164,97

1,78

1,02

38,0

PI

83,76

96,27

198,39

2,37

1,15

41,6

CE

92,28

97,48

194,62

2,11

1,06

37,2

RN

93,49

106,91

222,15

2,38

1,14

35,2

PB

99,96

98,91

216,43

2,17

0,99

41,2

PE

83,54

87,44

201,68

2,41

1,05

34,4

AL

78,57

85,71

165,45

2,11

1,09

33,0

SE

81,72

106,39

219,22

2,68

1,30

33,8

BA

83,71

99,98

196,48

2,35

1,19

40,3

MG

113,80

125,82

306,40

2,69

1,11

35,8

ES

114,54

111,70

331,44

2,89

0,98

33,7

RJ

193,04

121,52

367,43

1,90

0,63

15,3

SP

154,73

160,16

399,31

2,58

1,04

17,6

PR

129,80

135,17

377,16

2,91

1,04

37,5

SC

156,87

187,94

424,06

2,70

1,20

29,6

RSul

132,20

128,86

392,87

2,97

0,97

29,8

MS

130,15

107,13

315,81

2,43

0,82

33,2

MT

139,70

128,19

293,25

2,10

0,92

22,3

GO

126,45

128,19

315,32

2,49

1,04

34,0

DF

151,71

110,77

599,81

3,95

0,73

28,9

total

110,33

118,51

599,81

2,90

1,07

33,0

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola Grupo B: Matriculadas e esperando o programa Grupo C: Não participam do programa Grupo D: Pessoas que recebe no quintil inferior de baixa (%) Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman

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Serão os futuros beneficiários mais pobres, tão pobres ou menos pobres do que os atuais participantes? A tendência geral é de que os recém-chegados tenham um nível de renda ligeiramente superior, mas há grandes diferenças entre os estados. O programa está se focalizando mais no Rio de Janeiro, no Distrito Federal e no Mato Grosso do Sul. Os estados menos focalizados são Amapá, Bahia e Santa Catarina. É impossível entender essas diferenças e tendências simplesmente examinando os dados; é necessário verificar o que está realmente acontecendo, nos diferentes estados. No caso do Rio de Janeiro, parece claro que um número significativo de beneficiários estava recebendo auxílio não de programas do governo federal, mas do governo estadual, através de um programa chamado Cheque Cidadão. De acordo com fontes estaduais, esse programa atendeu cerca de 100 mil famílias em 2004, e exigia que todas as crianças abaixo de 14 anos estivessem na escola. O uso político desse programa estadual para propósitos eleitorais tornou-se notório em 2004, nas eleições municipais. O estado de São Paulo também tem seu próprio programa de auxílio monetário, o Renda Cidadã. Poder-se-ia esperar que o programa federal fosse mais consistente nacionalmente, mas ele sofre de uma grave limitação, a falta de um cadastro nacional adequado das famílias de baixa renda. O viés rural observado no Bolsa Escola se torna mais evidente quando olhamos para as principais concentrações urbanas, as principais regiões metropolitanas brasileiras. As Tabelas 14 e 15 mostram que a cobertura do programa nas áreas metropolitanas é consideravelmente menor que no campo como um todo, especialmente no quintil de renda mais baixa, com cobertura de 22,6%, em contraste com os 33% de média nacional. Conclusões e implicações de políticas públicas Nossa análise mostra que os programas de Bolsa Escola estão razoavelmente bem focalizados nas famílias de renda mais baixa, apesar de um viés contra as áreas urbanas pobres, de algumas distorções regionais e do fato de que, em 2003, dos 8,3 milhões de crianças de famílias que recebiam o benefício, 1,5 milhões, ou 17%, estavam no grupo de 50% de renda mais elevada da população. Por

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Tabela 14 Crianças de 5 a 17 anos de idade que participam de programas do Bolsa Escola, por Área Metropolitana Área Metropolitana Belém Fortaleza Recife Salvador Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo Curitiba Rio Grande do Sul Brasília total

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Total

Grupo D

65.124

38.071

317.040

420.235

15,50

201.045

148.195

473.542

822.782

24,43

137.097

135.428

512.159

784.684

17,47

167.847

107.627

463.128

738.602

22,72

153.382

109.879

779.098

1.042.359

14,71

128.368

61.160

1.906.775

2.096.303

6,12

344.382

212.592

3.447.195

4.004.169

8,60

67.418

37.286

590.562

695.266

9,70

68.044

64.967

700.548

833.559

8,16

72.624

41.105

396.677

510.406

14,23

1.405.331

956.310

9.586.724

11.948.365

11,76

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola Grupo B: Matriculadas e esperando o programa Grupo C: Não participam do programa Grupo D: Porcentagem dos que recebem Fonte:IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

outro lado, vimos que os programas estão em geral mal focalizados como instrumento de política educacional, uma vez que a maior parte dos benefícios é concedida a famílias que de qualquer maneira manteriam os filhos na escola9. O absenteísmo escolar tornase um problema importante no Brasil aos 14 anos de idade, quando os adolescentes começam a abandonar a escola em grande número. Em sua análise de regressão, Cardoso e Souza concluem que o Bolsa-Escola tem um impacto significativo sobre a freqüência à escola, mas nenhum impacto perceptível sobre a redução do trabalho infantil. Eles concluíram que “enquanto 95% das crianças freqüentam a escola no grupo de tratamento, 92% a freqüentam no grupo de controle. O efeito médio de tratamento é de três pontos percentuais na freqüência à escola entre as crianças e o efeito é altamente significativo. Considerando que no grupo de comparação há 9

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Tabela 15 Nível de renda familiar dos participantes de programas do Bolsa Escola Área Metropolitana Recife Salvador Fortaleza Belo Horizonte Belém Rio Grande do Sul Brasília Curitiba São Paulo Rio de Janeiro total

Grupo A

Grupo B

Grupo C

Total

Grupo D

65.124

38.071

317.040

420.235

15,50

201.045

148.195

473.542

822.782

24,43

137.097

135.428

512.159

784.684

17,47

167.847

107.627

463.128

738.602

22,72

153.382

109.879

779.098

1.042.359

14,71

128.368

61.160

1.906.775

2.096.303

6,12

344.382

212.592

3.447.195

4.004.169

8,60

67.418

37.286

590.562

695.266

9,70

68.044

64.967

700.548

833.559

8,16

72.624

41.105

396.677

510.406

14,23

1.405.331

956.310

9.586.724

11.948.365

11,76

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola Grupo B: Matriculadas e esperando o programa Grupo C: Não participam do programa Grupo D: Porcentagem dos que recebem Fonte:IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

No entanto, a legislação que criou o programa federal do Bolsa Escola, em 2001, estabelece explicitamente que os benefícios devem ser concedidos somente às famílias com filhos entre 6 e 15 anos de idade, que estejam freqüentando cursos regulares. Em outras palavras, excluíram-se dois grupos: o de crianças mais velhas e o daqueles que já abandonaram a escola, incluindo os que freqüentam cursos supletivos ou programas especiais de recuperação (cursos supletivos ou de educação de jovens e adultos).

somente 8% de crianças fora da escola, uma mudança de 3 pontos percentuais é um grande efeito” (Cardoso e Souza, 2003). Na Tabela 2, vimos que 98,5% das crianças que recebem o benefício do Bolsa Escola estavam matriculadas em escolas, contra 94,1% que não estavam matriculadas, uma diferença de 4,6%. Esses 4,6% significam que o Bolsa Escola poderia estar mantendo 1,4

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O Bolsa Escola baseia-se em um pressuposto errado, ou seja, que a razão para a falta de educação das crianças de baixa renda é que elas não vão à escola porque precisam trabalhar. Na realidade, milhões de crianças de baixa renda vão à escola todos os dias, mesmo quando trabalham. Quando não vão, geralmente não é porque precisam trabalhar, mas porque a escola não é acessível, não funciona como deveria, ou porque são incapazes de aprender, e desistem porque se tornam marginalizadas e atingem uma idade quando já podem começar a trabalhar, e são menos dependentes do controle dos pais. Mesmo que um subsídio, combinado com algum tipo de controle social e programas motivacionais, possa induzir a família a manter os filhos na escola, não há garantia de que aprendam, se a escola não está preparada para lidar com crianças provenientes de famílias economicamente e culturalmente carentes. A análise dos resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica — Saeb, bem como avaliações comparativas internacionais, mostram que a correlação entre as condições socioeconômicas da família e o desempenho dos alunos é extremamente alta no Brasil. Tal fato é indicativo de que as escolas não estão preparadas e equipadas para lidar com estudantes que chegam sem o “capital cultural” associado aos ambientes de famílias de média e alta renda (OECD, 2001; Oliveira e Schwartzman, 2002; Oliveira, 2004; Soares, 2004). Mesmo que o Bolsa Escola esteja induzindo um pequeno grupo de crianças a irem à escola, isto não justifica transformá-lo na iniciativa mais importante da política educacional do país. Do ponto de vista educacional, o melhor uso para os bilhões de reais atualmente gastos com esse tipo de programa seria investir na melhoria da qualidade da educação pública brasileira, e em programas de recuperação para adolescentes que tivessem abandonado a escola recentemente, e ainda pudessem ser trazidos de volta.

milhões de crianças na escola, supondo que essa seja a única diferença entre os dois grupos. No entanto, se considerarmos que somente estar matriculado sem receber benefício também aumenta a matrícula em 2,6%, o provável efeito do Bolsa Escola parece não ser maior que 2%, ou 600 mil matrículas adicionais, para cerca de 8,4 milhões que recebem bolsas.

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Na década de 1990, o governo brasileiro, com o forte apoio do Banco Mundial, investiu pesadamente em um programa chamado Fundescola, que deveria melhorar a qualidade das escolas brasileiras em áreas rurais e nos estados pobres. O investimento total no programa, previsto pelo Banco Mundial, deveria ser de cerca de US$ 1,3 bilhões, em um período de dez anos, a começar em 1998 (Horn, 2002). Atualmente existe uma clara mudança de ênfase, tanto no Brasil como nas agências internacionais, dando preferência aos programas de transferência monetária, associados a fortalecimento, organização e mobilização da sociedade. Só é possível especular os motivos desse deslocamento; uma possibilidade é frustração com a ausência de efeitos tangíveis do Fundescola e de programas similares, depois de vários anos de trabalho e investimentos significativos. Mais amplamente, a mudança poderia ser explicada pelo crescente ceticismo sobre a capacidade das instituições públicas de se desenvolver, e na crença renovada nas virtudes da “sociedade civil”, que está disseminada entre as organizações não-governamentais e instituições de todo tipo, à esquerda e à direita do espectro ideológico10. Uma terceira explicação é que melhorar a escola é notoriamente difícil de implementar, carregado de controvérsias e difícil de avaliar, enquanto transferências monetárias para os pobres é mais simples de entender e mais fácil de medir. Por outro lado, o Bolsa Escola e seu sucessor, o Bolsa Família, poderiam ser justificados como políticas de redistribuição de renda. O Brasil tem um dos piores perfis de distribuição de renda no mundo, e levaria muito tempo esperar a economia crescer, para que a população tivesse mais educação, e para que todos começassem a ganhar um salário decente. Isso não significa que a pobreza poderia ser reduzida significativamente com esse nível de subsídios, como qualquer cálculo elementar pode mostrar. Em 2003, havia 5,3 milhões de famílias no Brasil informando uma renda familiar per capita de US$ 2 por dia (cerca de R$ 60,00/mês) ou menos, com uma renda média de R$ 40,1/mês. Supondo que todas essas famílias recebessem R$ 45,00 por mês como benefício para três Este tema é discutido mais extensivamente em (Schwartzman, 2004b), capítulo 10. 10

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crianças, isso significaria R$ 10,00 adicionais per capita, elevando a média para R$ 50,00 — ainda abaixo da linha de pobreza de US$ 2 por dia. Além disso, considera-se que os benefícios existentes já estão incluídos na estimativa da renda familiar per capita11. As políticas de distribuição de renda estão imersas em fortes disputas ideológicas, remanescentes da velha noção malthusiana de que o bem-estar social estimula a preguiça e os hábitos negligentes, e está presente no conhecido debate americano sobre os efeitos morais do Programa de Auxílio às Famílias com Crianças Dependentes (Aid to Families with Dependent Children Program — AFDC) (Jencks, 1993). O programa Bolsa Família parece inscrever-se nesse viés conservador, já que requer a existência de algum tipo de condicionalidade ou reciprocidade por parte dos beneficiários, em termos de freqüência à escola para as crianças, ou presença em postos de saúde pública para mulheres grávidas, ou exigindo que as pessoas comam uma dieta balanceada, como no início do programa Fome Zero. Existe uma discussão contínua sobre como estas condicionais devem ser implementadas — através de agências públicas ou através de conselhos especiais de controle social, estabelecidos fora das agências e instituições existentes. O governo federal é incapaz de supervisionar nacionalmente o comportamento das famílias pobres; as prefeituras, por sua vez, são ineficientes, ou comprometidas com elites locais, ou as duas coisas. As comunidades e organizações comunitárias são presas fáceis dos partidos e movimentos políticos, e desenvolvem suas próprias burocracias e grupos de interesse, especialmente quando lidam com dinheiro público. É possível argumentar, assim, que seria melhor se os programas de renda mínima fossem concedidos incondicionalmente. No Brasil, pessoas idosas no campo recebem há anos uma aposentadoria de um salário mínimo (três vezes mais do que o Bolsa Família), indeIsto é consistente com a conclusão de Bourguignon, Ferreira e Leite, em sua sofisticada análise econométrica ex-ante do Bolsa-Escola, de que este programa tem um “impacto nulo sobre a redução dos níveis atuais de pobreza e desigualdade”. No entanto, não podemos confirmar sua outra conclusão, de que há “um efeito surpreendentemente forte das condicionalidades sobre a freqüência escolar” (Bourguignon, Ferreira et al., 2002). 11

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pendentemente de terem ou não contribuído para a Previdência, e ninguém diz que isso é um programa social injustificado ou moralmente perverso. No entanto, famílias pobres sem crianças pequenas parecem não ter direito ao mesmo tratamento. Um dos líderes das propostas de políticas de renda mínima no Brasil, o Senador Eduardo Suplicy, tem defendido que tais políticas devem ser realmente universais, sem nenhum tipo de teste ou outras tentativas de convencer ou coagir pessoas a fazer alguma coisa (Suplicy, 2002). Um programa universal desse tipo redundaria necessariamente em benefícios para os mais pobres, livre das complicações burocráticas e das influências e perversões que tendem a ser associadas a todo tipo de distribuição de benefícios sob controle de políticos, burocratas e organizações não-governamentais. Uma política de renda mínima realmente universal, como a proposta, seria muito dispendiosa nesse momento, mas o princípio do auxílio incondicional poderia ser aplicado aos programas existentes. Em resumo, a melhor maneira de melhorar a educação dos pobres é melhorar as escolas, e torná-las mais capazes de lidar com crianças provenientes de famílias carentes; e a melhor maneira de usar as transferências monetárias para reduzir a desigualdade é fazer da forma mais simples e direta, sem tentar controlar o comportamento dos beneficiários, e sem permitir que os programas de renda mínima sejam utilizados por antigos ou novos grupos políticos em prol de seus próprios objetivos. Uma consideração final sobre o papel da pesquisa empírica avaliar as políticas sociais e justificar sua existência se faz. O Bolsa Escola tem sido apresentado como pertencendo a uma nova geração de políticas sociais, fortemente baseado em pesquisa, e cuidadosamente monitorado em sua implementação. Na realidade, a evidência empírica que lhe serve de suporte é superficial e controversa. Não há mecanismos de avaliação integrados ao programa, e análises indiretas, tais como as apresentadas neste artigo, levantam sérias dúvidas sobre seus pressupostos e impacto real. O uso de pesquisa como justificativa retórica para políticas não é o mesmo que efetivamente usá-la para identificar as melhores formas de fazer, e para fazer as necessárias mudanças e ajustes, quando apropriado. ••• 142

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REFERÊNCIAS Aguiar, M. e C. H. Araújo, Eds. Bolsa-Escola - education to confront poverty. Brasília: UNESCOed. 2002. Bourguignon, F., F. H. Ferreira, et al. Ex-ante evaluation of conditional cash transfer programs: the case of Bolsa Escola. Washington, DC: World Bank Development Research Group Poverty Team. 2002. 31 p. Bourguignon, F., F. H. G. Ferreira, et al. Conditional cash transfers, schooling, and child labor: micro-simulating Brazil’s Bolsa Escola program. World Bank Economic Review, v.17, n.2, p.229-54. 2003. Brasil Presidência da República. Lei 10.219, de 11 de abril, Cria o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à educação - “Bolsa Escola”, e dá outras providências. 2001 Cardoso, E. e A. P. Souza. The impact of cash transfers on child labor and school attendance in Brazil. São Paulo: Departamento de Economia da Universidade de São Paulo 2003. Fantástico. Falhas graves no bolsa família. TV Globo. Rio de Janeiro. 2004 2004. Ferro, A. R. e A. L. Kassouf. Avaliação do Impacto dos programas de bolsa Escola sobre o trabalho infantil no Brasil. Trabalho apresentado no I Congresso da Associação Latinoamericana de População, Caxambu, setembro de 2004 2004. Horn, R. Improving schools and schooling in Brazil: the Fundescola approach. En Breve (The World Bank), n.10, October, p.1-4. 2002. Jencks, C. Rethinking social policy race, poverty, and the underclass. New York: Harper Perennial. 1993. vi, 280 p p. Kamel, A. Bolsa família, sem escola. O Globo. Rio de Janeiro: 7 p. 2004. Lavinas, L., M. L. Barbosa, et al. Assessing local minimum income programmes in Brazil: ILO - World Bank Agreement. Geneva: International Labour Office. 2001. ix, 79 p. p. OECD. Knowledge and skills for life - first results from PISA 2000 Education and skills. Paris: OECD Programme for International Student Assessment. 2001

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Oliveira, J. B. A. Expansion, inequality and compensatory policies. In: C. Brock e S. Schwartzman (Ed.). The Challenges of Education in Brazil. Oxford: Triangle Journals, Ltd., 2004. Expansion, inequality and compensatory policies Oliveira, J. B. A. e S. Schwartzman. A escola vista por dentro. Belo Horizonte: Alfa Educativa Editora. 2002 Ramos, C. A. e. S. Programas de renda mínima e bolsa escola: panorama atual e perspectivas. Inteface, v.1, July. 1999. Rocha, S. Applying minimum income programs in Brazil: two cases studies, Belém and Belo Horizonte. Rio de Janeiro: IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Textos para Discussão 2000. Schwartzman, S. Dinheiro jogado fora. O Estado de São Paulo. São Paulo: 2 p. 2004a. ______. Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo. São Paulo: Augurium Editora. 2004b Schwartzman, S. e F. Schwartzman. Tendências do trabalho infantil no Brasil entre 1992 e 2002. Brasília: Organização Internacional do Trabalho. 2004. 130 p. Soares, F. Quality and equity in Brazilian basic education: facts and possibilities. In: C. Brock e S. Schwartzman (Ed.). The challanges of education in Brazil. Oxford, UK: Triangle Journals, Ltd., 2004. Quality and equity in Brazilian basic education: facts and possibilities Suplicy, E. M. Renda de Cidadania. A saída é pela porta. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Cortez Editor. 2002 World Bank. Brazil: An Assessment of the Bolsa Escola Programs. Washington: The World Bank, Human Development Sector Management Unit, Brazil Country Management Unit, Latin America and the Caribbean Regional Office 2002.

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LEREIS COMO DEUSES

A TENTAÇÃO DA PROPOSTA CONSTRUTIVISTA João Batista Araujo e Oliveira

O autor é Ph.D em Educação e autor do ABC do Alfabetizador e Alfabetização de crianças e adultos: Novos Parâmetros.

O presente artigo levanta a polêmica sobre os métodos de aprendizagem no processo de alfabetização. Este debate se concentra nos argumentos defendidos pelos métodos construtivista e fônico de leitura. Segundo o autor, este é um campo minado no Brasil, pois a ideologia não permite que as pessoas participem de um debate racional. Na primeira parte do artigo, o autor defende o fato de que — no contexto internacional — este debate foi superado pela supremacia na eficácia do método fônico nas últimas duas décadas. No Brasil, o caráter ideológico da discussão possui duas conseqüências: em primeiro lugar, o silêncio dos intelectuais ante as abundantes e robustas evidências. Em segundo lugar, na aplicação de etiquetas de que a proposta construtivista seria “progressista” versus um suposto “tradicionalismo reacionário” pedagógico do sistema fônico. O resultado final deste debate no Brasil — extemporâneo e ideologizado — tem como resultado um sistema educacional atrasado e que é uma das causas dos magros desempenhos dos alunos brasileiros quando comparados com os alunos de outras nações.

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Alfabetização: o que funciona e o que não funciona I - Um campo minado: as advertências de Marilyn Adams Marilyn Adams é a cientista mais citada na comunidade científica internacional, quando se trata de alfabetização. Ressalto cinco itens de nosso primeiro encontro, no café ao lado da estação de Metrô Alewife, em Boston: •  Logo após nos apresentarmos, perguntou-me: “Quantos sons tem a palavra cat? (gato, em inglês). Pensei estar falando com uma professora de jardim de infância, até captar, momentos depois, a importância da pergunta. A resposta correta é: a palavra cat tem três sons: /k/ /a/ /t/. •  Contou-me, a seguir, um episódio de sua vida profissional. Marilyn fora designada pelo Laboratório de Leitura da Universidade de Illinois para chefiar relatório sobre alfabetização encomendado pelo Congresso norte-americano. Um dia, seu chefe, o Dr. David Pearson, entra em seu escritório e lhe pergunta: - Marilyn, que confusão é essa que você está causando com seu relatório, que até parece que o mundo vai se tornar um caos? Ao que ela respondeu: -  É tudo muito simples, chefe. Para o establishment acadêmico de nosso país, dizer que a palavra cat tem três sons é politicamente incorreto. No mesmo instante, o chefe se apercebeu do porquê de tanta celeuma, pois quase sempre as pessoas preferem a aco-

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modação e não a ousadia de uma nova visão, embora esta possa transformar e fazer a evolução. •  Também me disse que, durante muitos anos, em conseqüência de seus trabalhos, foi considerada persona non grata pela International Reading Association (IRA). IRA é uma instituição que reúne acadêmicos e profissionais da área de leitura e que, durante duas décadas, sustentou e ajudou a consolidar a hegemonia do pensamento construtivista sobre alfabetização em diversos países. Finalmente, a ideologia cedeu à razão e o trabalho de Marilyn acabou sendo reconhecido pela IRA, que hoje advoga os princípios científicos da neurociência e da psicologia cognitiva como base para propostas de alfabetização. •  Respondendo a uma pergunta minha sobre especialistas brasileiros na área, citou o Professor Fernando Capovilla, um dos poucos brasileiros que contribuem regularmente com publicações sobre alfabetização e que circulam na comunidade acadêmica internacional1. •  E me alertou: se você for levantar essa questão no Brasil, prepare-se para perder amigos. O campo é minado, a ideologia não permite que as pessoas participem de um debate racional. Anotações do caderno de campo • Nos últimos três anos tenho proferido palestras a grupos de professores, pedagogos e secretários de educação em todo o país. Talvez tenha proferido mais de 100 palestras para públicos que variam entre 100 e 600 pessoas — incluindo capitais e cidades do interior, próximas e longínquas. Normalmente, aplico um questionário antes de começar a falar, no qual a primeira pergunta é sempre: assinale qual é o Sistema de Escrita da Língua Portuguesa. Há seis opções, mas apenas uma resposta é a correta. Impressionam-me três fatos. Primeiro: nunca obtive mais de 40% de respostas corretas. Segundo: em nenhum caso, mesmo quando as pessoas se professam fervorosamente a favor de uma determinada visão pedagógica, não há uma Posteriormente identifiquei outros brasileiros que participam ativamente com suas publicações em periódicos internacionais, como por exemplo, Cláudia Cardoso-Martins e Leonor Scliar-Cabral. 1

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resposta predominante, ou seja, não erram sequer de forma sistemática. Terceiro: o número de respostas “não sei” é praticamente inexistente. Fica o registro: as pessoas que decidem sobre políticas e práticas de alfabetização, e que são estimuladas a inventar materiais para alfabetizar e ajudar os alunos a “construir conhecimentos”, não sabem sequer qual o Sistema de Escrita da língua de seu país. •  Analisando os dados para a elaboração do livro A escola vista por dentro (Oliveira e Schwartzman, 2002), um fato nos chamou a atenção: mais de 80% dos professores alfabetizadores declaram não ter recebido formação como alfabetizadores, mas se julgam bem equipados para alfabetizar e não vêem relação entre seu (des)preparo e o pífio desempenho de seus alunos. •  Resposta de um Secretário Estadual de Educação a um questionário enviado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados à pergunta sobre quando a Secretaria considera que o aluno deve ser alfabetizado: “Não importa quando o aluno esteja alfabetizado; a alfabetização é um processo permanente”. Esta resposta, evidentemente, é absurda, mas verdadeira, embora tal Secretário nunca tenha sido indiciado ou preso por abuso a menores. E nem poderia sê-lo, pois os PCNs suportam esse tipo de afirmação, ao confundir o processo da alfabetização com o seu objetivo, que é a compreensão. O que funciona: o peso da evidência científica •  A ciência possui regras para validar afirmações científicas. Partindo de teorias, o pesquisador formula hipóteses, que são testadas e podem ser verificadas ou não. Se verificadas, podem confirmar ou modificar a teoria. Se não verificadas, freqüentemente requerem novas teorias. E há casos de hipóteses formuladas e testadas sem teoria, mas o caminho é o mesmo (Gazzaniga e Heatherton, 2004, pp. 63-65). Os resultados das pesquisas são publicados em revistas científicas, após analisados de forma independente e anônima por pesquisadores da área — os comitês de pares. A reputação das revistas decorre do rigor exercido na análise. Normalmente, a porcentagem de artigos aceita para publicação está fortemente relacionada com o rigor e, conseqüentemente, com o status científico da revista. Um

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critério básico para a publicação de artigos nessas revistas é a competente e exaustiva revisão da literatura, ou seja, um pesquisador é obrigado, profissionalmente, a recuperar a tradição de sua área e apresentar suas teorias e hipóteses dentro do quadro do paradigma ou paradigmas dominantes. •  Qual o paradigma dominante nessa área? Existem evidências que suportam as propostas construtivas para a alfabetização? Uma breve sinopse da trajetória dos principais estudos e revisões de estudos sobre alfabetização, ao longo dos últimos vinte anos, pode ser esclarecedora: -  1983. A publicação do relatório A Nation at Risk (NCEE, 1983) provoca uma nova onda de reformas educativas nos Estados Unidos. O espetacular fracasso da alfabetização de base construtivista implementado no estado da Califórnia levou o Congresso Americano a tomar iniciativas que incluem a encomenda de revisões da literatura científica e avaliações de desempenho dos alunos em leitura e escrita. -  1990. Jeanne Chall, que na década de 60 suscitara um debate sobre alfabetização, conhecido como o “Great Debate”, retomou o tema e já sai afirmando no prefácio: “Dada a maneira como a língua e a leitura são adquiridas, a fase inicial (da alfabetização) deve enfatizar o reconhecimento de palavras e a decodificação, e apenas mais tarde deve enfatizar questões de linguagem e sentido das palavras.” (Chall, Jacobs e Baldwin, 1990,p. x). -  1990. Adams publica Beginning to Read (Adams, 1990), que é uma versão mais elaborada do relatório apresentado pelo Reading Research and Education Center da Universidade de Illinois ao Congresso Norte-Americano. Esse livro é reconhecido internacionalmente como o trabalho mais importante na área publicado nos últimos trinta anos e, por isso mesmo, é o mais citado. Prevendo reações negativas ao livro, o autor do prefácio adverte: “Advogados do construtivismo (conhecido como ‘whole language’ nos países de língua inglesa) ficarão desapontados com a insistência de Adams ao fato de que o sistema alfabético (sons-símbolos) deve ser ensinado cedo, e de forma explícita. Ficarão alarmados com suas recomendações sobre treinamento da consciência fonológica como item central a ser

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ensinado no início de um Programa de Alfabetização.” (p. vii). -  1994. José Morais, um dos mais atuantes pesquisadores no campo da Ciência Cognitiva da Leitura, publica na França o livro L’art de Lire, logo traduzido para o Português (Morais, 1995). Trata-se não apenas de uma síntese do estado-da-arte à época, mas de uma denúncia bem-humorada às idéias equivocadas que estavam contribuindo para comprometer a eficácia do ensino da leitura e da escrita na Europa. -  1997. Diane McGuinness publica o livro Why Our Children Can’t Read and What We Can Do about It (McGuiness, 1997), com o provocativo subtítulo: A scientific revolution in reading. O insuspeito psicólogo cognitivo e criativo pesquisador Steven Pinker, autor de importantes obras de divulgação, como How Mind Works e The Blank Slate, prefacia elogiosamente o livro. A autora volta à carga com uma revisão dos estudos empíricos sobre alfabetização (2004) e das teorias (2005) subjacentes. -  1998. O Conselho Nacional de Pesquisas dos Estados Unidos publica o relatório de um grupo de trabalho sobre prevenção de dificuldades de leitura intitulado Preventing Reading Difficulties in Young Children (Snow, Burns & Griffin, 1998). No sumário executivo da publicação lemos à página 5 que “crianças que experimentam dificuldades de leitura na escola primária são aquelas que começam com menos conhecimentos e habilidades nos domínios relevantes, especialmente habilidades verbais, capacidade de prestar atenção aos sons da língua como algo diferente de seu sentido, familiaridade com os objetivos e mecanismos básicos da leitura e conhecimento do alfabeto”. E na página seguinte o relatório recomenda o uso de “ensino explícito para direcionar a atenção da criança para a estrutura sonora da linguagem oral e para as conexões entre os sons da fala e as letras que os representam...” (op. cit. p. 6) e conclui: “Embora o contexto e as ilustrações possam ser usados como instrumentos para monitorar a capacidade de reconhecer palavras, as crianças não devem ser ensinadas a usá-los como substitutos para obter informação a partir das letras que formam a palavra.” (op. cit. p. 7) -  1999. Jane Oakhill e Roger Beard (Oakhill e Beard, 1999) publicam, na Inglaterra, uma coletânea de estudos acadêmicos sobre os

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avanços da pesquisa científica sobre alfabetização. Diferentemente dos relatórios e estudos de governo supracitados, que são objeto de concessões e compromissos entre os participantes dos grupos responsáveis por sua elaboração, o livro de Oakhill e Beard é eminentemente acadêmico e, portanto, apresenta uma revisão atualizada das descobertas científicas, sem nenhuma concessão a doutrinas e ideologias que ainda predominam, mesmo no seio da comunidade de alfabetizadores e de alguns pesquisadores de seu país. Perseguindo essa mesma veia científico-experimental, Johnston e Watson (2005) publicam resultados de um estudo longitudinal de sete anos, realizado no país de Gales, no qual corroboram a superioridade dos programas de alfabetização que utilizam métodos fônicos sintéticos, que vêm sendo recomendados pelas autoridades da Inglaterra, da Irlanda e do País de Gales. -  2000. O Ministério da Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos publica o relatório do National Reading Panel, com o subtítulo “Uma avaliação baseada em evidência da literatura científica sobre leitura e suas implicações para a alfabetização” (NICHHD, 2000). Esta é a maior revisão da literatura sobre alfabetização já empreendida, e as conclusões são apresentadas de forma inequívoca, já no Sumário: quatro quintos do livro referem-se ao ensino do alfabeto: consciência fonêmica, decodificação e desenvolvimento da fluência (op. cit. p.v). -  2000. É publicada a obra póstuma de Jeanne S. Chall, The Academic Achievement Challenge (Chall, 2000), no qual a autora reafirma, com base em sólidas evidências, a importância de uma alfabetização com base científica. E na parte dedicada à revisão de métodos de alfabetização, sua conclusão é peremptória: “Ensino sistemático usando métodos fônicos leva a melhores resultados” (op. cit. p. 182). -  2003. A Universidade de Rennes publica o livro L´Apprentissage de La Lecture — Perspectives Comparatives, no qual se pode verificar a convergência de estudiosos de diferentes culturas sob o paradigma da Ciência Cognitiva da Leitura (Romdhane, Gombert e Belajouza, 2003). -  2005. O Centro Patronal do Cantão de Vaud, na Suíça (Wettstein-Badour et alia, 1995) publica o livro Apprendre à lire et à écri-

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re e faz um balanço da devastação causada no desempenho dos alunos dos cantões francófones da Suíça pela introdução de idéias construtivistas sobre alfabetização e aprendizagem da leitura. -  Uma análise dos periódicos mais conceituados, nos quais se publicam artigos referentes à alfabetização2, deixa claro que os paradigmas predominantes na área são os paradigmas derivados da neurociência e da psicologia cognitiva, tais como os paradigmas conexionistas e de processamento de informações. O chamado “paradigma construtivista” e a “psicogênese da escrita” —aclamados como grande novidade pelos PCNs no Brasil, não são considerados como atualizados ou adequados. -  Todos esses estudos se baseiam, de uma forma ou de outra, nos avanços científicos possibilitados pela neurociência, fundamentados nos estudos seminais de Sperry (1963, 1983), posteriormente desenvolvidos com o uso de técnicas de imagística cerebral, aprimoradas na década de 90, e que demonstram como o cérebro funciona e aprende a ler. Fazendo a alfabetização funcionar na sala de aula: políticas e práticas de sucesso Depois de quase duas décadas da controvérsia que se seguiu à publicação do “Great Debate”, e depois de forte degradação no desempenho dos alunos em leitura e escrita, que foi comprovadamente associada à utilização de métodos globais e outros de inspiração construtivista, autoridades de vários países encontravam-se diante de um dilema: seguir orientações muito difundidas e populares, mas que estavam contribuindo para piorar o desempenho dos alunos ou adotar as recomendações fundamentadas em conhecimentos científicos e que preconizam o uso de métodos de alfabetização comprovadamente eficazes, ainda que não gozassem de tanta popularida-

Applied Psycholinguistics, British Journal of Educational Psychology, Cognition, Cognitive Psychology, Developmental Psychology, Journal of Eduational Psychology, Journal of Memory and Language, Journal of Research on Reading, Reading Research Quarterly, Scientific Studies of Reading. 2

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de entre os setores ditos “progressistas” da comunidade acadêmica e profissional. Essa tomada de posição foi reforçada pelo fato de que, se, até por volta de 1990, a oposição a essas idéias populares poderia se dar apenas com argumentos baseados no bom senso, a partir de então o peso da evidência científica já não permitia mais aos governos dar-se ao luxo — ou à irresponsabilidade — de pactuar com idéias equivocadas sobre alfabetização. Alguns exemplos: •  Na Inglaterra, dada a gravidade da situação da alfabetização, o governo lançou uma ofensiva denominada National Literacy Strategy, com vários aspectos do programa, tendo caráter compulsório. •  Nos Estados Unidos, um dos dois maiores sindicatos de professores daquele país, a American Federation of Teachers (American Educator, 1998) toma posição a favor de uma abordagem científica para a alfabetização e para pressionar os Distritos Escolares (nome pelo qual são conhecidas as Secretarias de Educação naquele país) e Universidades a atualizarem seus programas de alfabetização e de formação de professores. A partir do ano 2000, o governo federal promulga o Reading First Act, que incorpora as recomendações do National Reading Panel. •  Na França, o governo revê seus programas de ensino, especialmente os seus programas de alfabetização, com base nas novas evidências. Em 2002, o Ministério Nacional da Educação daquele país promulga os Novos Programas de Ensino, calcados na evidência científica atualizada sobre o tema, compilada por uma comissão internacional de cientistas reunidos sob a égide do Observatório Nacional de Leitura daquele país. Entre outras recomendações, encontram-se a proscrição dos métodos globais e a adoção de manuais escolares (cartilhas), cuja avaliação passaria a ser baseada em rigorosos critérios científicos3. •  Depois de anos de desacertos no ensino da língua francesa, a Suíça se envergonha de ter obtido o 17º. lugar no Pisa, com uma mé-

Na França, embora tenha havido uma condenação peremptória dos métodos globais e a recomendação explícita da adoção de critérios científicos para o professor justificar a adoção de seus métodos, ainda ficaram ambigüidades no texto do Ministério da Educação e mesmo na aplicação dos critérios para aprovação de cartilhas de alfabetização. Com isso, perduram 3

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dia de 494 pontos. Esse resultado foi considerado medíocre, pois colocava os cantões francófonos da Suíça bem abaixo dos 546 pontos da Finlândia4. O desempenho em matemática fica entre os melhores, o que leva os analistas e os políticos a suspeitar de que o problema é de ensino da língua, e não um problema geral do sistema escolar: “O que se deve questionar é o ensino do ‘francês renovado’, introduzido nos anos 80: esse método é um fracasso... Os dois Cantões que obtêm melhores notas são os que resistiram a essas idéias...” Também não se trata de elaborar um novo método de ensino: basta utilizar as cartilhas usadas com êxito em outros cantões e em outros países como a França e o Canadá, de onde provêm as cinco cartilhas atualmente recomendadas na Suíça francesa” (Wettstein-Badour et alia. pp. 67-68). •  Organismos internacionais também atualizam suas orientações e propostas. O Bureau Internacional de Educação da Unesco — presidido no passado por ilustres figuras como Jean Piaget e Edouard Claparède — publica estudo reconhecendo as novas orientações da Ciência Cognitiva da Leitura e recomendando sua adoção nos países de língua alfabética (Pang et alia, 2003). •  Especialistas em leitura do Banco Mundial, como Helen Abadzi (2003), realizam avaliações e estudos em diversos países do mundo para orientar a atuação daquela instituição aos países onde o Banco atua5. Enquanto isso num país chamado Brasil •  1990-2000 — Surgem os primeiros trabalhos de lingüistas e psicolingüistas, como Miriam Lemle (2000), Ângela Maria Pinheiro (Pinheiro, 1995), Cardoso-Martins (1996), coerentes com o paradigma contemporâneo da ciência cognitiva, aplicada ao entendimenainda cartilhas que utilizam métodos semiglobais e a prática de métodos mistos. Esse assunto continua sendo objeto de amplo debate na França (Le Figaro, 20 fev. 2002) 4 A média do Brasil nesse teste foi de 396 pontos, abaixo dos 422 pontos do México. 5 Esses estudos e orientações da Unesco e do Banco Mundial, circulados internacionalmente, não são conhecidos, divulgados ou citados no Brasil nem pelos pesquisadores da área nem pelos técnicos dessas instituições.

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to da aprendizagem da leitura e da escrita. O grupo liderado pelo professor Capovilla, da USP, permanece como único enclave acadêmico nessa área. •  1997. O MEC divulga os PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais — Introdução e o documento PCN - Língua Portuguesa, que contém referências explícitas à alfabetização. Nesse documento se lê que o socioconstrutivismo e a psicogênese da escrita constituem o “paradigma” para a alfabetização6. •  2002. Alessandra e Fernando Capovilla publicam o livro Alfabetização: método fônico, onde resumem resultados de suas e de outras pesquisas, apresentam propostas sobre alfabetização e cotejam o estado da arte com as propostas do construtivismo (Capovilla e Capovilla, 2002). O livro encontra muitos leitores, mas não suscita maiores debates. •  2002. A Revista Ensaio publica Alfabetização e construtivismo: um casamento que não deu certo (Oliveira, 2002). O artigo é recebido com total silêncio pela comunidade acadêmica, fenômeno conhecido como o “silêncio dos intelectuais” e cujo significado já tem sido suficientemente analisado pelos sociólogos. •  2003. A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados apresenta ao país “O Relatório: Alfabetização infantil: os novos caminhos” (Câmara dos Deputados, 2003). O relatório foi elaborado por sete especialistas, 4 deles de outros países e que são reconhecidos internacionalmente pelos seus trabalhos. O relatório é acolhido com um profundo silêncio pela comunidade acadêmica e pelas autoridades educacionais. -  Até o momento presente, não há registro de citação do referido relatório em nenhum trabalho sobre alfabetização, publicado no Brasil. -  As listas bibliográficas constantes dos programas de alfabeO leitor curioso poderá comparar a bibliografia citada pelo documento do MEC com a bibliografia citada pelos documentos nacionais de outros países desenvolvidos. Pela bibliografia citada, até mesmo pela data dos estudos citados — sem falar em sua natureza e qualidade — o leitor concluirá por si só sobre quem está mais atualizado nesta área: se os autores do documento do MEC ou os autores dos documentos dos demais países. 6

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tização de dezenas de universidades e enviadas à Comissão de Educação da Câmara, como parte das pesquisas que fundamentaram o relatório, não citam NENHUMA das fontes mencionadas no referido relatório. -  As autoridades constituídas e as instituições responsáveis pelos destinos educacionais do país como o MEC, Conselho Nacional de Educação, Consed — Conselho dos Secretários Estaduais de Educação, Undime — União Nacional dos Dirigentes Municipais de Ensino, Crub — Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras, entre outras instadas pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e pelo coordenador do relatório não se dispuseram a debater o relatório, suas conclusões e recomendações. -  Os ministros da Educação que ocuparam o Ministério desde essa época — Cristovam Buarque e Tarso Genro, bem como o ex-Ministro Paulo Renato Souza e o Presidente do Conselho Nacional de Educação, não se pronunciam a respeito, apesar de convidados a se manifestar. O atual Ministro Fernando Haddad também ainda não se pronunciou. -  O SESC promove, na mesma época, uma teleconferência sobre o tema, em todo o país, com a participação de especialistas que participaram do relatório. Os interlocutores não se apresentaram para o debate. •  2003. Leonor Scliar-Cabral publica o livro Princípios do sistema alfabético do português do Brasil, em que “apresenta de forma sistemática e exaustiva os princípios que governam os valores das letras na leitura e a conversão dos fonemas em letras na escrita”. •  2003. O autor deste artigo publica o livro ABC do alfabetizador. Este é, possivelmente, o primeiro compêndio em Língua Portuguesa, publicado no país nos últimos trinta anos, e que apresenta, de forma completa e sistemática, uma descrição das competências da alfabetização e dos métodos e técnicas adequados para o seu ensino. Esse livro não é adotado em nenhum curso de formação de professores alfabetizadores no país. •  2003. O Ceale — Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais apresenta suas Orientações para a organização do Ciclo Inicial de Alfabetização, destinado a orientar as políticas e práticas de alfabetização da Secretaria de

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Educação do Estado de Minas Gerais. Embora contenha avanços em direção ao estado da arte, o estudo não cita os principais trabalhos científicos que orientam a pesquisa científica, as políticas e práticas de alfabetização no resto do mundo (Ceale, 2003). •  2004. A Revista Pátio começa timidamente a publicar alguns artigos que apresentam uma visão de alfabetização baseada em evidências. O debate não prospera, pois os interlocutores não comparecem para sustentá-lo. •  2004. O FNDE incluiu nas diretrizes para aprovação de livros didáticos, especialmente os de Português, a seguinte orientação: “A escolha de um texto justifica-se pela qualidade da experiência de leitura que possa propiciar, e não pela possibilidade de exploração de algum conteúdo curricular. Portanto, a presença de pseudotextos, criados única e exclusivamente com objetivos didáticos, não se justifica” (MEC/FNDE, 2004, p. 1). Esta norma expressa uma perspectiva especiosa sobre o que seja gênero didático, texto didático e o tipo de texto adequado para alfabetizar. Esse entendimento é radicalmente diferente da definição universal do que seja gênero didático e das recomendações a respeito do uso de textos e materiais apropriados para a alfabetização existentes no resto do mundo. •  2004. A UNB, por solicitação do Ministério da Educação, publica um volume de estudos sobre alfabetização, os quais não mencionam NENHUMA das referências bibliográficas apresentadas ou citadas aqui, neste artigo, nem se referem ao corpo de conhecimentos documentados na literatura científica mencionada neles. •  2005. O desempenho dos alunos em Língua Portuguesa permanece caótico, conforme reiteradamente documentado nas avaliações do Saeb, do Pisa e de instituições como o Instituto Montenegro. O MEC suspende a aplicação da avaliação da alfabetização, anunciada no ano anterior pelo Presidente da República. •  2005. Permanece a recusa das autoridades e da comunidade acadêmica de participar do debate contemporâneo sobre alfabetização. A impressão é que existiria uma ciência da alfabetização brasileira, desconectada da ciência universal. No entanto, a simples idéia de uma ciência do particular não seria uma contradição com a rejeição à ciência?

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II - Lereis como deuses: a tentação da proposta construtivista As idéias chamadas “progressistas” têm suas origens no Iluminismo e se nutrem nos ideais de “progresso”, decorrentes do racionalismo, do cientificismo e do Romantismo. Com o cogito de Descartes, o homem assume o papel de centro do Universo. Em seu tempo Nietsche anunciava ao mundo que Deus havia morrido. No apogeu do Romantismo, Rousseau aboliu o pecado original — “o Homem é bom, a sociedade o corrompe”. Mais do que depressa, Marx anunciou o paraíso na terra — a ser conquistado com a abolição das classes sociais e a ditadura do proletariado. A psicanálise de Freud dá vazão aos instintos, o homem fica livre de condicionamentos, de seu passado e totalmente aberto para abraçar o futuro por meio da razão e dos frutos do progresso. Vejamos como essas idéias — de que se nutre o construtivismo — impactam o pensamento e as práticas educacionais, inclusive a alfabetização. O ideário “progressista” em educação tem sua inspiração mais direta nas idéias de Jean-Jacques Rousseau, expressas especialmente no livro Emile. Subjacente ao motto “o homem é bom, a sociedade o corrompe”, permanece a idéia do naturalismo7. As idéias progressistas em educação desenvolveram-se em várias vertentes. Comum entre elas é a fé no futuro — o progresso e o novo é que vão permitir a “libertação”. É a libertação do passado — representado por símbolos e realidades como a autoridade, o currículo, o saber acumulado, a divisão do trabalho, as classes sociais, a superioridade intelectual do professor etc. A vertente mais ligada ao termo “a sociedade o corrompe” preconiza destruir os “instrumentos da opressão”, tais como gramática, currículo, conteúdo, professor, didática, livros didáticos e até a escola — que nada mais seriam do que meios de dominação da burguesia. A vertente mais ligada ao termo “homem natural” preconiza o construir — o novo homem, o conhecimento, a nova escola — tudo em bases naturais, livre de coerções de qualquer espécie. Na sua versão mais extrema, tudo que é natural é considerado bom — veneno feito de ervas naturais seria bom? Para alguns, o estado natural do homem são os instintos. Para outros, em número cada vez menor, a razão. 7

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O termo “escola ativa” denomina correntes de pensamento, geralmente associadas aos ideais do “progressismo” pedagógico europeu. O termo foi utilizado, pela primeira vez, em 1907, por Pierre Bovet, um dos diretores do Instituto Jean-Jacques Rousseau, fundado por Claparède e, posteriormente, dirigido por Jean Piaget. As correntes que se enquadram sob esse manto incluem uma gama de propostas muito diferentes. Claparède, com sua concepção funcionalista (em oposição ao estruturalismo de autores como Jean Piaget), introduz o conceito de “centração” e propõe uma “pedagogia revolucionária”, centrada no aluno, numa escola que deve ser ativa e onde o papel do mestre deve ser completamente transformado de professor em colaborador. Decroly propõe uma pedagogia baseada em centros de interesse. Na alfabetização, propõe a retomada do método global. Suas idéias foram retomadas por autores como Freinet, que propôs seu método “natural” de alfabetização. A lista de adeptos de correntes progressistas, também conhecidas sob o nome de “educação nova”, inclui nomes como os de Béatrice Ensor, mais tarde associada a Neill, da famosa escola “Summerhill” dos anos 60, na Inglaterra; Maria Montessori, na Itália; Freinet e Cousinet na França, Ferrière e Piaget na Suíça. Essas idéias influenciaram gerações seguintes que incluem Paul Langevin, Henri Wallon, Gaston Mialaret, Robert Gloton, Odette Bassis e, contemporaneamente, Philippe Meirieu. É óbvio que cada autor escolhe e prioriza determinados aspectos do ideário “progressista” e a divergência entre eles pode ser maior, por vezes, do que suas divergências com os proponentes dos chamados métodos tradicionais. Na versão norte-americana, o termo Escola Ativa tem precursores importantes como Stanley Hall, criador no termo “pedocentrismo”. Essa proposta educacional se baseia “nas necessidades e interesses da criança”. Stanley Hall previa o declínio da gramática, da retórica e da sintaxe e sua substituição pelas “artes da linguagem” (Language Arts, nos Estados Unidos) que seriam mais “democráticas e próximas da expressão oral”. Mas seu grande arauto é John Dewey, cujo nome ficou associado ao movimento da Escola Nova, que formou uma legião de seguidores e teve profundo impacto na educação nos Estados Unidos e no pensamento educacional em outros países — Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro são seus principais se-

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guidores no Brasil. A ênfase de Dewey é menos no naturalismo e mais no pragmatismo, daí privilegiar o saber a partir do fazer. Em sua concepção, a escola deve se adaptar ao aluno e, portanto, se diferenciar para atender às suas necessidades. Pragmatista, Dewey apresenta uma proposta menos romântica do que muitos de seus colegas europeus, pois não perde de vista a função da escola de preparar crianças e jovens para a sociedade. Em algumas de suas vertentes, as idéias “progressistas” são apresentadas como uma espécie de “pedagogia de libertação”. Marcuse utiliza o termo revolução — a educação progressista seria o substituto moderno para a luta de classes: só a educação liberta! O termo “progressista” se opõe ao termo “tradicional”. A palavra tradicional (do latim tradere, transmitir) refere-se ao ideário que privilegia a transmissão da cultura, do saber adquirido, da valorização e da atualização do passado8. No ideário tradicional, a função primordial da escola é transmitir o conhecimento adquirido pelas gerações anteriores. A função do mestre é ensinar. Os métodos didáticos e de descoberta guiados pelo professor são usados por serem mais eficazes do que os métodos de descoberta por ensaio e erro. Na versão “progressista”, o saber constituído, a escola, o currículo, o professor, tudo isso é entidade ou instituição perversa: cabe à criança, e só à criança, descobrir o próprio conhecimento. O construtivismo coincide com essas versões ao preconizar, por exemplo, que a criança, como Champolion, deve redescobrir o código alfabético. Em outras vertentes, as idéias “progressistas” se apresentam como uma espécie de “pedagogia da suspeição”. Panchaud fala da “tirania da ortografia” e se insurge contra a gramática, “a gramática burguesa, instrumento do capitalismo, se fundamenta sobre uma lógica formal e imutável, e não sobre uma lógica dialética... e reflete o poder exercido pelas classes privilegiadas por esse meio, que impede uma verdadeira democratização do ensino (Panchaud, 1983)”. O ensino, sob todas as formas, torna-se objeto de suspeição. A escola e a aprendizagem, um instrumento de tirania, e não de autonomia. O termo tradicional deve ser distinguido do termo reacionário ou retrógrado. O tradicional traz, traduz, transmite, atualiza a tradição. O reacionário cristaliza o passado. 8

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Comentando sobre o choque entre as ideologias que consideram a escola como instrumento de exclusão ou de inclusão, e denunciando a submissão da função de transmissão do saber e da escola à negociação infinita e a um processo de deslegitimação do conhecimento, o filósofo Jean Romain (2001) conclui: “Todas as tiranias do mundo seguiram essa ideologia destruidora: revolucionar a sociedade, agindo sobre os futuros vassalos. Essa utopia exclusivamente política sempre leva a resultados idênticos: uma desestruturação da infância e um desarranjo generalizado.” O construtivismo tem parte de suas raízes no movimento progressista, vinculado às idéias de Jean Piaget, originalmente desenvolvidas na década de 20 e retomadas nos anos 60. Piaget, por sua vez, busca sua inspiração em autores norte-americanos, como Mark Baldwin, que foi o primeiro a propor o termo “psicologia genética” e no matemático holandês L.J. Brouwer, de quem assimilou o termo construtivismo. O construir, em Piaget, refere-se à atividade cognitiva pela qual o indivíduo aprende a lidar com os conhecimentos (assimilação). Piaget nunca conseguiu superar devidamente a ambigüidade entre sua formação empírica — que não lhe permitia assumir conhecimentos inatos — e sua formação filosófica com as idéias de Kant. Mas foi dessa ambigüidade que surgiu a moderna ciência cognitiva, cuja paternidade é atribuída ao psicólogo Jean Piaget9. Outra vertente do construtivismo está associada às idéias conhecidas sob o nome de “psicogênese da escrita”, idéias que retomam as propostas do naturalismo lingüístico de Benjamin Goodman e Frank Smith, e são apoiadas numa tosca lógica: falar é natural, compreender é natural, portanto, ler e escrever é natural. A partir desse sofisma, alguns autores desenvolveram a concepção de que o ensaio-e-erro (teste de hipóteses), usado pela criança na descoberta de categorias naturais (como espaço, tempo, números etc.), também se aplica à descoberta de um sistema artificial, como o código alfabético. Tudo que a criança precisa é de um contexto social falante.

Uma análise da gênese e dos erros filosóficos do construtivismo encontrase em Devitt (2000, pp. 235-258). Chapman (1998) propõe uma releitura do conceito de estruturas em Piaget que o eximiria desses erros. 9

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A esses equívocos são incorporadas idéias do sociointeracionismo, originalmente desenvolvidas por Vygotsky, que acentua o papel das interações sociais na “construção do saber”. Na versão mais radical dessa escola de pensamento, é a linguagem que estrutura o pensamento — o pensamento é fruto da linguagem e esta, como o próprio conhecimento, deriva do meio social10. Pedagogia progressista: a teoria na prática Torna-se necessário explicitar o pano de fundo no qual se movimentam idéias “progressistas”, para que o leitor situe o construtivismo dentro da evolução do pensamento pedagógico. Resumindo uma longa história, o Quadro 1 apresenta uma visão simples, mas não caricatural, das idéias associadas ao pensamento “progressista”. E, para torná-las mais nítidas, contrasta essas idéias e suas implicações com o que se denomina de enfoque “tradicional”. Cabe registrar que nenhum desses enfoques existe, na prática, em estado 100% puro. O quadro serve apenas para ressaltar os extremos de uma tensão entre dois pólos: o de reflexão e o de ação pedagógica. O Quadro 1 foi adaptado de Chall (2000, pp. 187-192). Para efeitos da presente discussão, interessa identificar em que medida as idéias propostas pelos movimentos progressistas e pelo construtivismo afetam positivamente a sala de aula. E isso não se faz em assembléias ou por meio de votos, de jargões, de aplausos ou no grito. Isso se faz por meio da investigação científica. Os parágrafos seguintes resumem a evidência científica disponível sobre o impacto dessas idéias: •  Chall (2000) revê cem anos de pesquisas sobre métodos centrados no aluno versus métodos centrados no ensino, e que estão

A gênese das idéias de Vygotsky está ligada aos trabalhos que ele desenvolveu na década de 20 a pedido do recém-instalado regime comunista na União Soviética, que procurava entender como o meio social poderia contribuir na formação do novo homem socialista. Daí a ênfase do meio influenciando o pensamento: o pensamento burguês conforma um modo de pensar burguês, mas é possível construir, a partir do ambiente, um pensamento socialista políticamente correto: o pensamento é mero produto do meio. 10

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Quadro 1 Tradição e progresso em educação

-  conhecimento acumulado -  competências necessárias para o indivíduo e para a sociedade -  currículo baseado em disciplinas, organizado em ordem de dificuldade -  disciplinas ensinadas separadamente -  ênfase nos aspectos cognitivos

- baseado nos interesses e necessidades do aluno - sem estrutura curricular baseada em disciplinas - ênfase na integração de conhecimentos, para tornálos significativos, com ensino integrado das disciplinas - ênfase nos aspectos socioemocionais

- ênfase no conteúdo - habilidades cognitivas e solução de problemas aprendidas junto com o conteúdo

- ênfase na solução de problemas e em processos cognitivos - conteúdo considerado como secundário, escolha sujeita à motivação do aluno

- espera que os alunos aprendam o que é ensinado - currículo deve ser ensinado de forma interessante, mas reflete as competências que devem ser ensinadas - os alunos chegam à escola com hábitos bons e maus: a função da escola é “humanizar” os alunos e formar bons hábitos

- professor deve seguir interesses dos alunos, pois eles aprendem quando estão motivados - alunos são naturalmente bons e têm propensão natural para aprender e tornar-se bons cidadãos

- uso de testes formais e informais para avaliar domínio dos conteúdos e habilidades - uso de boletins e notas

- ambivalência quanto ao uso de testes, preferência para instrumentos qualitativos, testes diagnósticos e “portfólios” - uso de relatórios verbais ou escritos

Padrões e avaliação

Conteúdo e orientação do currículo

“Progressista”

Produto ou processo

“Tradicional”

Expectativas sobre os alunos

Item

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Diferenças individuais Nível de dificuldade e tratamento de dificuldades

- ensino deve se concentrar em habilidades e conteúdos mais difíceis do que nos mais fáceis - dificuldades acadêmicas tratadas diretamente (recuperação, reforço etc.)

- os conteúdos devem ser os mais fáceis para permitir que o aluno aprenda independentemente - dificuldade geralmente atribuída a problemas socioemocionais e a fatores extra-escolares

- por mérito: repetência é indesejável, mas é possível e ocorre

- preferência pela promoção automática; não há razão para enturmar alunos em função de critérios de competência

- considerados importantes e amplamente usados, embora não exclusivamente

- considerados enfadonhos e não voltados para as necessidades do indivíduo - preferência por materiais “autênticos”

- alunos devem aprender o que é certo e errado, nas aulas e atividades extras - há regras de comportamento e sanções

- o desenvolvimento moral decorre das experiências e não deve ser ensinado diretamente - assunto raramente explicitado ou discutido, presume-se que ensino centrado no aluno minimiza questões disciplinares

Moral e disciplina

Uso de livros didáticos

Promoção

- alunos têm diferenças, mas todos devem aprender o que está prescrito no currículo, pelo menos em níveis básicos

- não deve haver padrões comuns, pois os alunos são diferentes; eles não devem aprender conteúdos e, sim, habilidades para resolver problemas, pensar e aprender a aprender; os próprios alunos devem definir o que precisam aprender

Fonte: adaptado de Chall (2000), pp. 187-192

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apresentados de forma sucinta no Quadro1. Originalmente ela intitula essas duas visões, de forma intencional, como Dionísio e Baco, mas nossa tradução denomina-as de Tradicional e Progressista. Chall analisa praticamente todos os estudos e avaliações consistentes que comparam propostas de ensino mais “tradicionais” ou mais “progressistas”. A autora observa que não existe um sistema totalmente tradicional ou progressista: o que há são ênfases, uma tensão entre pólos, mais do que uma dicotomia. Eis o veredito: “A conclusão mais importante é que um ensino tradicional, centrado no professor, geralmente resulta em ganhos de aprendizagem maiores do que um ensino progressista. Isso é particularmente verdadeiro para os alunos menos preparados para a aprendizagem escolar — e isso se aplica a alunos com dificuldades de aprendizagem de qualquer nível econômico ou social.” (p. 182) “Os resultados também indicam que as abordagens ditas tradicionais levam a melhores resultados em testes que medem desempenho em habilidades cognitivas de nível mais elevado, como o raciocínio e a solução de problemas.” (p.183) Os resultados são claramente favoráveis às abordagens “tradicionais”, nos níveis mais elementares da escola. Em níveis mais avançados, há intervenções em que as abordagens “progressistas” levam a melhores resultados com jovens que já adquiriram condições e hábitos que lhes permitam trabalhar de forma independente. •  O Projeto Follow-Through é um dos estudos de grande escala, empreendido com 70 mil crianças entre os anos 67 e 76, com acompanhamento dos egressos até 1995. Os resultados desse projeto corroboram a superioridade dos métodos estruturados de ensino, inclusive e particularmente seus efeitos positivos sobre o desenvolvimento cognitivo (Carnine, 2000). Estudos posteriores, realizados pelas equipes da Universidade de Laval, no Canadá, corroboram esse ponto de vista (Clermont Gauthier et. al.2005). •  Da mesma forma, os estudos realizados por mais de duas décadas por Robert Slavin (Slavin et alia 1889) sobre ensino estruturado, especialmente aplicados a grupos desfavorecidos e ao ensino da língua, reforçam a superioridade dos métodos estruturados e de descoberta guiada sobre os métodos centrados no aluno ou no professor. •  A conceituada revista American Psychologist publicou artigo do professor Richard Mayer (2004), da Universidade da Califórnia,

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em Santa Bárbara, em que ele apresenta resultado de testes de três linhas de pesquisa pedagógica, associadas às idéias advogadas pelos “progressistas”: (i) o ensino por hipóteses e estratégias de descoberta para resolver problemas, (ii) aprendizagem de estratégias de conservação do tipo piagetiano e (iii) aprendizagem de estratégias de programação, usando o programa LOGO, e que envolve aprendizagem “natural” e por ensaio-e-erro. Para cada uma dessas abordagens, ou métodos, Mayer reviu estudos publicados sobre o tema, durante as décadas de 60, 70 e 80, respectivamente para cada tipo de intervenção. E comparou os resultados com pesquisas que tinham objetivos semelhantes, mas utilizavam métodos de descoberta guiada ou de ensino didático, do tipo “tradicional”. A conclusão, nos três conjuntos de casos, envolvendo dezenas de comparações, em cada um, favorece as abordagens de descoberta guiada (ensino “tradicional”), em detrimento de abordagens que favorecem uma exploração desestruturada, preconizada pelos chamados modelos construtivistas (Mayer, 2004). Mayer observa que as abordagens estruturadas são mais eficazes para desenvolver os três processos cognitivos mais importantes, ou seja, a seleção, a organização e a integração do conhecimento (op. cit. 17). Isso significa que as abordagens ditas “tradicionais” são mais eficazes para atingir até mesmo os objetivos cognitivos propostos pelos adeptos de orientações construtivistas e progressistas. O impacto das idéias “construtivistas” •  Gazzaniga, considerado internacionalmente como um dos mais importantes neurocientistas da atualidade, assim resume o estado-da-arte: “os achados cumulativos convenceram a maioria dos cientistas psicológicos (sic) de que o desenvolvimento não ocorre através de uma progressão, tipo blocos construtores.... e sugere que os humanos nascem com mais capacidades inatas do que se acreditava previamente (refere-se às teorias de Jean Piaget)... os sujeitos “não precisam agir sobre objetos do mundo para demonstrar habilidades cognitivas”. E, embora reconhecendo a contribuição inestimável de Piaget para a psicologia cognitiva, afirma que “o pensamento atual (da psicologia cognitiva) revisou muitas das idéias originais de Piaget (Gazzaniga e Heatherton, 2005, pp. 354 e 355).

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•  Abordando diretamente as propostas construtivistas sobre o ensino da leitura e da escrita e referindo-se especificamente a estudos conhecidos sob o título de psicogênese da leitura e aos PCNs brasileiros, José Morais observa que “foi de grande valia a contribuição da autora (Emília Ferreiro) ao chamar a atenção para a importância das representações mentais que a criança tem da escrita, antes da aprendizagem da leitura. No entanto, a sua visão da alfabetização como um processo de resolução de problemas que exige elaborar e provar hipóteses e inferências está hoje claramente refutada.” (Morais, 2005, p. 10) •  A insuspeita e cientificamente qualificada revista Scientific American publicou, em março de 2002, um artigo intitulado “How should reading be taught” — em que conclui da seguinte forma: “a alfabetização deve ser baseada numa sólida compreensão das conexões entre letras e sons. Os professores devem reconhecer a ampla evidência de que as crianças que são ensinadas pelos métodos fônicos tornam-se melhores em leitura, ortografia e compreensão do que aquelas que precisam captar as confusas regras da língua por si mesmas. Os educadores que negam essa realidade estão negligenciando décadas de pesquisa. E também estão negligenciando as necessidades de seus alunos.” (Keith et alia, 2002, p. 91) Essas evidências sobre o impacto das idéias progressistas, em geral, e do construtivismo, em particular, sugerem uma conclusão interessante, que pode ser útil, mesmo com o risco de supersimplificação de implicações filosóficas, científicas e ideológicas: a cada D. Quixote seu Sacho Pança. Os ideais “progressistas” apontam para objetivos elevados, nobres, aprendizagem mais complexa e de nível superior; no entanto, os ideais e práticas “tradicionais” são os mais eficazes para alcançá-los. Analogamente, para se chegar ao paraíso é preciso cruzar o “vale de lágrimas”. Ou, na linguagem de Chall, para fruir das delícias de Baco, é preciso passar, antes, pela disciplina de Dionísio. Em suma, nada mais oportuno do que um extrato do pensamento de Heidegger: “Muitos crêem que a Tradição é coisa do passado, mas ela nada mais é do que uma espécie de objeto da consciência histórica. Imaginam que ela constitui o que se situa atrás de nós quando, na verdade, nós é que somos expostos a ela, porque ela é o nosso destino.”

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As informações e argumentos aduzidos nesta parte do trabalho sugerem que, de certa forma, é possível conciliar as idéias “progressistas” com os meios propostos pelas idéias “tradicionais”. No caso específico da alfabetização, ninguém nega que seu objetivo seja o de, eventualmente, possibilitar a compreensão de textos escritos. O que as evidências mostram, de maneira cabal, é que (i) a capacidade de ler precede, é independente e é essencial para a capacidade de compreender um texto escrito e (ii) a melhor forma da ajudar uma pessoa a compreender o que lê é ensiná-la a ler bem. O conflito a ser superado, portanto, não é o de objetivos, mas o de meios e processos. Seria ingênuo pensar que os meios e métodos são indiferentes ou livres de “ideologias” ou conseqüências. Ainda mais, pior que ser ingênuo é afirmar que os fins coincidem com os meios, que ler é o mesmo que compreender. Ou dizer que meios e métodos são irrelevantes — como se depreende das propostas e das práticas construtivistas em alfabetização. III- Os novos paradigmas da alfabetização: conhecimento científico e opinião Jean Piaget é reconhecido como o pai da psicologia cognitiva. Outro grande vulto nessa história é Leo Vygotsky, reconhecido como criador da psicologia experimental na União Soviética. Esses dois autores fizeram seus primeiros estudos na década de 20 e tiveram seus trabalhos reconhecidos por volta dos anos 60 e 70, o que marcou a revitalização da psicologia cognitiva. Piaget propôs uma teoria para explicar a aquisição do conhecimento e descreveu os estágios em que essa aquisição se desenvolveria. Vygotsky enfatizou a importância do contexto cultural e social no desenvolvimento lingüístico. Mas esses foram os primórdios. Nas décadas de 50 e 60, Chomsky propõe que a linguagem é inata e postula a existência de uma gramática universal. Na década de 60, pesquisadores como Robert Fantz, Peter Eimas, Jacques Mehler e Tom Bever demonstraram que muito do que sabemos é inato no cérebro. Nas décadas de 70 e 80 os estudos de J. Kagan começam a apresentar evidências de que muitas das chamadas respostas aprendidas refletem a maturação cerebral, o que é confirmado e expandido pelos importantes trabalhos

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de W. Sperry. Nos anos 80 e 90, resultados de pesquisas, utilizando esses novos métodos para estudar aprendizagens de nível cognitivo mais elevado, não confirmam a idéia de uma progressão em estágios, como se pode ver de estudos como os de Galman, Osherson, Carey, Gaillargeon, Spelke. A década de 90 aprofunda os estudos neurológicos que exploram as habilidades ou capacidades cognitivas inatas. Os estudos baseados em imagens cerebrais — impulsionados por Michael Posner, entre outros — apresentam novas evidências sobre o funcionamento do cérebro que aprende. É o novo paradigma da Psicologia Cognitiva que se delineia para balizar o entendimento de como aprendemos a ler e a escrever e de como devemos alfabetizar. Ou seja, tudo que propõe o novo paradigma de alfabetização — até mesmo no que diz respeito aos métodos, foi descoberto e justificado cientificamente, depois da morte de precursores como Jean Piaget e Leo Vygostsky. Essas são as bases a partir das quais os cientistas vêm estudando a alfabetização. Essas bases se apóiam fundamentalmente na neurociência e nos novos modelos propostos pela Psicologia Cognitiva, e incorporam os avanços de ciências como a lingüística e a psicolingüística, que descrevem os fenômenos estudados experimentalmente pelos cientistas contemporâneos da alfabetização. Não é objetivo do presente estudo apresentar sequer um resumo do estado-da-arte da Ciência Cognitiva da Leitura; as referências apresentadas nesse artigo podem ajudar o leitor interessado a se informar a respeito. Concluiremos este artigo elegendo apenas um aspecto da discussão sobre alfabetização — a questão dos métodos — para ilustrar como os conhecimentos científicos podem contribuir para a maior eficiência dos métodos de alfabetizar. Alfabetização: a questão dos métodos Desde a invenção do primeiro “alfabeto” dos Sumérios, há mais de três mil e quinhentos anos e até a década de 80, a idéia de alfabetizar ensinando o valor sonoro das letras era apenas uma intuição. As teorias e os métodos de alfabetização baseavam-se em proposições lógicas ou racionais. As evidências empíricas, os méritos e o alcance das várias abordagens e métodos não eram suficientes para

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evitar o surgimento e ressurgimento de idéias inadequadas — como ilustrado nos vaivéns do método global. Mas essa situação mudou. No restante deste artigo, veremos o que nos diz a Ciência Cognitiva sobre os métodos de alfabetização. O balanço realizado em meados da década de 60 nos Estados Unidos — conhecido como “O Grande Debate” — foi frustrante e inconclusivo, deixando a falsa impressão de que a questão de métodos não tinha solução, de que não havia evidências sólidas a favor de uma ou outra abordagem. Foi nesse contexto que ressurgiram os métodos globais e as propostas de alfabetização, inspirados por lingüistas como Benjamin Goodman e pelos construtivistas. Embora contrariassem o bom senso, faltavam evidências mais sólidas para refutá-los. As descobertas da neurociência cognitiva, especialmente a partir da década de 80, trouxeram à luz conhecimentos mais precisos de como o cérebro aprende a ler, e, conseqüentemente, de como se deve ensinar o cérebro a ler. Esses conhecimentos permitiram refutar, de maneira cabal e com base em evidências científicas apropriadas, propostas de alfabetização que afrontam o modo de aprender do cérebro. •  Na abertura de uma palestra que certa feita proferi, o Secretário de Educação de um importante município brasileiro afirmava com orgulho seu respeito à autonomia escolar e aos professores: não me importa que métodos usem — método de alfabetização não é uma questão importante. Perguntei-lhe, então, se aceitaria essa postura por parte de um Secretário de Saúde em relação ao hospital onde sua filha iria se operar... •  Os métodos globais — defendidos historicamente pelos progressistas e, mais recentemente, pelos construtivistas, afrontam a natureza do processamento cognitivo. Os adeptos dos chamados métodos globais ou “naturais” afirmam que as palavras são percebidas em seu conjunto (Gestalt), armazenadas na memória sob forma gráfica e reconhecidas quando identificadas num determinado contexto. Abaixo algumas citações pertinentes: -  Em 1928... Um pequeno círculo de sábios fez uma incrível descoberta: as letras não existem. Só existem as palavras. Em conseqüência, as crianças devem conhecer as palavras globalmente, e não as letras que as compõem. A descoberta veio para aniquilar

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o alfabeto. Tudo isso é explicado no jargão ‘globalista’ — de resto totalmente impenetrável...(Orieux, 1978). -  A leitura é um jogo de adivinhação, a pesquisa construtiva do sentido (K. Goodman). -  “Quanto mais avançamos no texto, mais se reduzem as escolhas semânticas, portanto não é necessário identificar todas as palavras.” (J. Foucambert). •  Esse tipo de afirmação tem o mesmo nível de credibilidade que a afirmação de Aristóteles, quando disse que as mulheres tinham menos dentes que os homens. Quase dezoito séculos depois, alguém resolveu abrir a boca das mulheres e contar-lhes os dentes: Aristóteles estava errado. Da mesma forma, basta abrir um manual de neurociência para verificar que os pressupostos em que se assentam os métodos globais são incorretos. Nem precisamos verificar os desastrosos resultados de sua aplicação. Disso se segue, por princípio, que afirmar que qualquer método serve para alfabetizar é, no mínimo, uma afirmação cientificamente equivocada. •  O mesmo se aplica aos chamados métodos mistos, ou semiglobais, cuja proposta é deixar o aluno descobrir — ou redescobrir — o código alfabético, a partir de encontros casuais com textos ou palavras. A idéia de um aluno pesquisando, como se fosse um Champollion, vem logo à mente, conforme se depreende da citação de Goigoux (1997): -  “Nós partimos de um texto que o aluno decorou para estudar a organização da língua escrita. Sem se preocupar em entender o conteúdo, pois esse já é conhecido, as crianças podem se debruçar sobre o estudo do código escrito. É uma verdadeira aventura tipo Champollion... O decifrador de hieróglifos... Ao longo do ano, de texto em texto, a exploração continua, criando uma comunidade de pesquisadores na sala de aula. É dessa forma que as crianças guardam uma idéia de conquista, de apropriação de segredos, o que aumenta sua auto-estima...” •  O que talvez Goigoux tenha se esquecido de observar é que Champolion possuía um arsenal de conhecimentos de várias línguas, que lhe permitia fazer um trabalho de análise e síntese. •  Afirmações como essa de Goigoux são capazes de suscitar aplausos de multidões. Mas sua aplicação em sala de aula vem con-

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tribuindo para transformar pretensas “comunidades de pesquisadores” em gigantescas assembléias de excluídos, no dizer da Dra. Ghislaine Wettstein-Badour. Lereis como deuses! Basta adivinhar! Basta fazer hipóteses! O importante é a compreensão, são os usos sociais — como enfatizado ad nauseam nos PCNs! O encanto com os métodos globais e seu insidioso vaivém na história da educação deve servir de alerta permanente para os pesquisadores e profissionais da alfabetização. Como a sedutora serpente na árvore do conhecimento, esse tipo de idéia é tentador e libertário, mas é igualmente perigoso, pois transforma a busca pelo conhecimento na submissão à ignorância. A escolha de métodos de alfabetização certamente não é a única decisão relevante para a formulação de políticas de alfabetização. Nem, no caso do Brasil, as decisões incorretas sobre métodos de alfabetização são a única explicação para o fracasso escolar. A mera introdução de métodos fônicos dificilmente resolverá os problemas da alfabetização no Brasil. A forma como a questão continua sendo tratada pela comunidade acadêmica e pelas autoridades, em nosso país, não revela apenas uma ojeriza por esse ou aquele método, mas sim o desconhecimento e o desprezo pelos conhecimentos científicos sobre a psicologia cognitiva da leitura. É o triunfo da ideologia sobre a razão. A evidência apresentada neste artigo é cabal. Ela é sólida e se apóia em conhecimentos científicos compartilhados pela comunidade científica internacional, sendo reconhecida pelas autoridades educacionais da maioria dos países e, certamente, por todos os países onde a alfabetização funciona! É claro que existem outras concepções sobre alfabetização — até mesmo concepções apoiadas por pessoas eminentes e que ocupam posições acadêmicas em importantes universidades. Mas o fato de existirem, ou de as pessoas serem eminentes, não significa que essas concepções sejam corretas. Há pessoas que acreditam no creacionismo e negam a evolução — mas isso não significa que a opinião delas seja correta. Ignorar ou negar o peso da evidência sobre o que é alfabetizar, a eficácia relativa de determinados métodos e as conseqüências disso para a escolha de materiais e práticas pedagógicas é negar a própria ciência e a validade dos seus métodos. Relativizar

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a ciência significa atribuir equivalência epistemológica à opinião (doxa) e ao conhecimento (episteme). Significa, ainda, desqualificar a validade do método científico. Alegar que se trata apenas de uma outra visão de mundo ou de outro paradigma não resolve o compromisso do cientista com a verdade. A ideologização da alfabetização, no Brasil, é mais um capítulo dessa triste história, mas o que mais impressiona é a leveza com que essa questão é conduzida por nossas autoridades. Daí a opção do autor do presente artigo em delinear o contexto filosófico, ideológico e histórico de onde surgem as idéias construtivistas aplicadas à alfabetização. Diante das evidências apresentadas, torna-se imperdoável o silêncio e a omissão da comunidade acadêmica! Com toda certeza, haveria, pelo menos, duas maneiras de reverenciar a memória dos autores mortos. Uma seria olhar para onde eles apontaram e seguir as trilhas que eles abriram. A outra, ficar paralisado, apenas olhando seus vultos, e não para seu importantíssimo legado. Lamentavelmente, a comunidade acadêmica e as autoridades educacionais brasileiras, até hoje, têm optado pela segunda e continuam mesmerizadas. Não seria hora de deslocar essa visão e prestar aos precursores uma justa homenagem, descortinando, como eles, novos caminhos para a alfabetização? Quando um paradigma científico esgota sua capacidade de explicar os fenômenos a que se propõe estudar ele deve ser substituído por outro, mais robusto, pois já se tornou superado. Admitir a igualdade epistemológica de diferentes enfoques, como se todos fossem equivalentes cientificamente, equivale a negar a própria validade da ciência e do método científico. E mais do que negar a ciência e seu modo de validação do conhecimento, é negar às crianças brasileiras o direito de um futuro. A História está cheia de vítimas sacrificadas no altar das ideologias. •••

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ANEXO O vaivém dos métodos globais Método Global: preconiza que o aluno deve reconhecer o conjunto da palavra antes de identificar seus elementos (sílabas, grafemas, fonemas). O método está associado aos princípios da “educação ativa”: métodos naturais, espontaneísmo, construtivismo. Primeira aparição: deu-se no século XVIII, proposto inicialmente por Sicard, na França e adotado pelo médico Jean Itard para tentar alfabetizar o menino surdo-mudo Victor (o selvagem de Aveyron). Segunda aparição: deu-se na Bélgica, no início do século XX, retomado por Decroly e introduzido na Suíça, no Instituto Jean-Jacques Rousseau. Nesse país, com o apoio de Jean-Piaget, é promovido sob o nome de Método Natural por Freinet, na França. Primeira grande reação. A utilização do método é relativamente restrita, e as críticas, crescentes, até que é oficialmente proscrito da Suíça, em 1955. Segunda grande reação: a publicação, em 1954, do livro Why Jonnhy can´t read, de Rodolph Flesch, demonstra a devastação causada pelos métodos globais nos EUA, onde são conhecidos como “whole language”, “sight method” ou “look and say”. Terceira aparição: década de 70, com a utilização dos chamados métodos semiglobais, que incorporam algumas intuições fonológicas e chegam à identificação de sílabas ou fonemas pela decomposição das palavras. Terceira grande reação: a partir dos anos 90, os métodos globais são formalmente proscritos. Nos Estados Unidos, a escola que os adota não pode receber financiamento do governo federal.

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EXPEDIENTE

SINAIS SOCIAIS • ANO I • NÚMERO 1 • MAIO > AGOSTO 2006

PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC Antonio Oliveira Santos DIRETOR GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO Gerencia de Estudos e Pesquisas/Divisão de Planejamento e Desenvolvimento CONSELHO EDITORIAL Álvaro de Melo Salmito Luis Fernando de Mello Costa Mauricio Blanco, Mônica Pereira dos Santos secretário excutivo

Sebastião Henriques Chaves Editado pela Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geral projeto gráfico

Vinicius Borges revisão

Rosane Carneiro


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