v.1 nº2 setembro > dezembro | 2006 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional
issn 1809-9815 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.1 nº2 | p. 1-216 | setembro > dezembro 2006
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC Antonio Oliveira Santos DIRETOR GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Maron Emile Abi-Abib
COORDENAÇÃO Gerencia de Estudos e Pesquisas/Divisão de Planejamento e Desenvolvimento CONSELHO EDITORIAL Álvaro de Melo Salmito Luis Fernando de Mello Costa Mauricio Blanco Mônica Pereira dos Santos secretário excutivo
Sebastião Henriques Chaves Editado pela Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geral projeto gráfico
Vinicius Borges revisão
Rosane Carneiro
Sinais Sociais / Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional - vol.1, n.2 (setembro/ dezembro. 2006) - Rio de Janeiro, 2006 v. ; 29,5x20,7 cm. Quadrimestral ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.
SUMÁRIO EDITORIAL4 BIOGRAFIAS5 DISTINÇÃO, AUTARQUIA E ANIMAÇÃO8
UM ENSAIO SOBRE O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Renato Lessa
ASPECTOS POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL44 UM CONVITE À REFLEXÃO
Carlos Frederico B. Loureiro
EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS84 PARA ALÉM DAS METAS DO MILÊNIO Jorge Teles
LIMITES E POSSIBILIDADES DO DESENVOLVIMENTO LOCAL142 Juliana Simões Speranza
PERFIL E DESAFIOS DOS MICROEMPREENDIMENTOS NO BRASIL188 Adriana Fortes
EDITORIAL A resposta que tivemos do público leitor ao primeiro número da revista Sinais sociais deu ao SESC a convicção de que a opção editorial escolhida é a adequada. Com o alento recebido pelas manifestações favoráveis à revista, cumpre, agora, envidar esforços para manter o nível de qualidade obtido no primeiro número e perseverar na direção estabelecida. Mantém-se, assim, a pluralidade de temas, a diversidade de enfoques e a liberdade de manifestação dos autores na abordagem dos assuntos que trazem à sua reflexão. Representação política no Brasil contemporâneo, políticas públicas educacionais, educação ambiental, desenvolvimento local e microempreendimentos econômicos no Brasil são as questões abordadas neste segundo número. A escolha dos temas que dão vida aos artigos teve como critério norteador a opção por assuntos vistos como pontos de estrangulamento no processo de desenvolvimento nacional. E, portanto, estão de forma constante nos debates que procuram encontrar saídas aos impasses que dificultam o Brasil deixar de ser um país permanentemente em vias de desenvolvimento. São questões polêmicas e, portanto, não-consensuais. Nossa expectativa é que os artigos propiciem elementos para intelecção ampliada dos problemas tratados e contribuam para a confluência de respostas. E que, se possível, sejam capazes de sensibilizar a inteligência nacional para novas reflexões, confirmadoras das conclusões obtidas pelos articulistas, ou, ainda, para a produção de novas soluções às questões tratadas nos textos publicados.
Antonio Oliveira Santos
Presidente do Conselho Nacional do SESC
BIOGRAFIAS Renato Lessa Nasceu no Rio de Janeiro, em 1954. É bacharel em Ciências Sociais, pela Universidade Federal Fluminense (1976), e Mestre (1987) e Doutor (1992) em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). É Professor Titular de Teoria Política do Iuperj e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de diversos textos – livros, ensaios e artigos – sobre Teoria Política, Política Brasileira e Estudos sobre o Holocausto, entre os quais A invenção republicana (1987 e 2003); Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo (2000); Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política (2004) e Presidencialismo de animação (2006). Desde 2003 é Diretor Presidente do Instituto Ciência Hoje, instituição ligada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e devotada à divulgação científica. É Presidente, no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, do Comitê Gestor do Programa de Cooperação em Ciências Sociais para os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Foi professor visitante de diversas instituições nacionais e internacionais, a saber: Universidade de São Paulo (USP), The Queen´s University of Belfast (Irlanda do Norte), Universidad de la República (Uruguai), The American University (USA), Universidade de Lisboa, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (França). Em 2002 exerceu as funções de Presidente da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Carlos Frederico B. Loureiro Biólogo (bacharel em Ecologia e licenciado em Ciências Físicas e Biológicas – Instituto de Biologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro), mestre em Educação (Pontifícia Universidade Católica-Rio) e doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Escola de Serviço Social/ UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos), ambos da UFRJ. Professor convidado do Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente (Prodema) da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Coordenador do Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (Lieas) da Faculdade de Educação (FE)
da UFRJ. Colaborador de outras instituições de ensino superior, ministrando disciplinas sobre Educação Ambiental. Participação na criação de entidades ambientalistas como: Apedema-RJ, Baía Viva, Nude. Participação em projetos de pesquisa e consultorias junto a instituições como: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Nacional do Comércio (Senac), Ministério da Educação e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente. Autor, dentre outros, dos livros: Trajetória e fundamentos da educação ambiental - Cortez; O movimento ambientalista e o pensamento crítico - Quartet; e Educação ambiental crítica - Hotbook; e co-autor dos livros: Pedagogo ou professor? - Quartet; A contribuição da educação ambiental à esperança de Pandora - RIMA; Pensamento complexo, dialética e educação ambiental, sociedade e meio ambiente: a educação ambiental em debate, e Educação ambiental: repensando o espaço da cidadania - Cortez; Os caminhos da educação ambiental – Papirus; Cidadania e meio ambiente - Centro de Recursos Ambientais da Bahia; e Educação ambiental e gestão participativa em unidades de conservação - Ibase/Ibama. Jorge Luiz Teles da Silva Economista, mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense (1999), possui graduação em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995). Desde março de 2006 é Coordenador-Geral de Estudos e Avaliação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação (MEC). De 2004 a 2006, foi Assessor da Secad/MEC. Em 2004, foi Coordenador-Geral de Operações da Secretaria de Inclusão Educacional do MEC. O autor foi professor da Universidade Candido Mendes (2000-2001) e da Universidade Federal Fluminense (1998-2001). Possui publicações tais como: “Trabalho infantil: realidade, diretrizes e políticas”, com Leonardo Neves e Marcos Antunes, no livro Trabalho infantil: a infância roubada” (2002), coordenado por Maria E. Marques, Magda A Neves e Antonio C. Neto; Juventude e mercado de trabalho no Rio de Janeiro e em Minas Gerais (2002), com Ricardo Freguglia e Fabrício Carvalho; A mobilidade no mercado de trabalho brasileiro: uma visão qualitativa (2002), com Ricardo Freguglia e Bruno Rodrigues; “A eficácia das políticas de trabalho e renda no combate à pobreza”, com Ricardo Paes de Barros e Mauricio Cossio, para Soluções para a questão do emprego (2001), coordenado por João P. dos Reis Velloso e Roberto C. de Albuquerque. Recebeu prêmios tais como: VII Prêmio Brasil de Economia, 1999, Conselho Federal de Economia, 2º lugar na categoria Artigo: Os serviços e a informalidade: o
caso do comércio ambulante no Rio de Janeiro, com Hildete P. Melo; e VII Prêmio de Monografia, 1996, Conselho Regional de Economia, 1ª Região/ RJ, 1º Lugar: Inserção ocupacional no mercado de trabalho brasileiro: heterogeneidade e opcionalidade. Juliana Simões Speranza Mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA/UFRJ e economista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Técnica da área social da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. Trajetória de pesquisa nos temas do combate à pobreza, desenvolvimento local e avaliação de projetos sociais, tendo trabalhado na área social do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fundação Getúlio Vargas – São Paulo (Programa Gestão Pública e Cidadania), Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) e consultorias diversas (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, ActionAidBrasil, Ministério do Trabalho, entre outras). Adriana Fontes Doutoranda do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) desde janeiro de 2001. Fez Mestrado em Engenharia de Produção pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe/UFRJ) e Graduação em Economia pelo IE/UFRJ. Coordenou o boletim Rio de Janeiro: Trabalho e Sociedade do Iets e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Entre outras publicações deve-se mencionar Diagnóstico das instituições de microcrédito no Brasil, co-autoria com Rudi Rocha; Trabalhadores por Conta-Própria como Atores do Desenvolvimento, co-autoria com André Urani, para Cadernos Adenauer (v. 2), São Paulo, 2002. Escreve para o Boletim do Fórum de Microfinanças do Rio de Janeiro.
Distinção, autarquia e animação: um ensaio sobre o problema da representação no Brasil contemporâneo Renato Lessa
Professor Titular de Teoria Política do Iuperj e da Universidade Federal Fluminense; Diretor-Presidente do Instituto Ciência Hoje.
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.1 nº2 | p.p.216-216 8-43 | setembro > dezembro 2006
The central argument in this piece is that Brazil’s system of representation, in the last deCades, introduced an autarkical dynamic as opposed to the traditional distinction principle – common to all regimes founded upon a system of representation – by which the political playing field is driven by a legislative–executive interaction in contrast to a nexus with the wider world. In this autarkical policy, the role of the presidency is one of mobilizing the national “state of mind”, that is to animate the Republic. To put it simple, this text intends to reflect upon this curious merge – distinction, autarky and animation – as a clue to an interpretation of the state of the country’s political representation. Thus, distinction and autarky will be discussed through a theoretical approach. Upon this base an application to a Brazilian scenario will be developed. O argumento central desse ensaio é o de que o sistema representativo no Brasil, nas últimas décadas, no lugar do tradicional princípio da distinção – comum a todos os regimes fundados na representação – introduziu uma dinâmica autárquica, segundo a qual o âmbito da política concentra-se nas interações entre Legislativo e Executivo, em detrimento dos nexos com o mundo exterior. Nessa forma política autárquica, cabe acrescentar, o exercício da Presidência da República cumpre uma função de mobilização dos humores nacionais, vale dizer, de animação da República. Para dizê-lo de modo conciso, o texto pretende refletir sobre essa curiosa mescla – distinção, autarquia e animação –, como pista para uma interpretação do estado da representação política no país. Para tal, se discutirão de modo teórico os temas da distinção e da autarquia. A partir delas, alguma aplicação ao cenário brasileiro será desenvolvida.
Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.1 nº2 | p.p.216-216 8-43 | setembro > dezembro 2006
Abertura Ao longo da história republicana, o Brasil viveu diversas crises políticas e institucionais, com desfechos variados e para todos os gostos: golpes de estado, tutela e impeachment do Presidente da República, pronunciamentos militares e, no limite, suicídio. Houve até mesmo um atentado fracassado (a Prudente de Moraes, em 1897), a registrar a pouca perícia e disposição dos brasileiros na arte do regicídio. Há quem diga que crises institucionais e políticas ocorrem nas melhores regiões do globo e que, portanto, a gravidade das mesmas quando em solo pátrio deveria contar com a doce e estudada benevolência do olhar comparativo. Prescrição estranha. Se generalizada para outros campos do conhecimento, provocaria efeitos nefastos. A grave incidência de malária em Moçambique, por exemplo, poderia servir como atenuante para a compreensão e o tratamento da menor incidência da doença no Brasil. É evidente que se trata de um absurdo. A péssima escolaridade no Sudão ou a instabilidade iraquiana, idem. A possível generalidade das crises não faz com que cada uma delas perca um milímetro de sua carga dramática e de seu potencial de desorganização da vida social. Ítalo Svevo, em uma de suas magníficas histórias curtas, fala-nos do bonde que conectava Servola a Trieste e cujos passageiros assemelhavam-se a “animais pacientes e surrados”. As principais características do veículo eram os atrasos, os horários imprevisíveis e a incerteza quanto à duração das viagens, quando ocorriam. Pois bem diante do infortúnio, multiplicavam-se os comentários, dois dos quais evocam o talento do comparativista. O primeiro assevera que as comunicações entre Servola e Trieste eram mais freqüentes do que as existentes entre duas cidades muito mais importantes, Nova Iorque e São Francisco. O segundo complementa, ao informar que “ao passo que o bonde de Servola só atrasa umas horas, o trem de Vladivostok uma vez atrasou três semanas” . A comparação é uma arte a ser exercida em terreno muito estreito e exige sensibilidades mais do que ordinárias. Ela deve, a um só
Cf. SVEVO,Ítalo, Nós do bonde de Servola, In: SVEVO,Ítalo, Argo e seu dono. São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 2001.
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tempo, ser capaz de revelar que nossas mazelas não são necessariamente originais e, ainda assim, permitir que as consideremos como graves e intoleráveis. Com freqüência, ao contrário, a comparação induz a uma certa mansidão e ao discutível consolo secreto de que alhures as coisas são ainda piores. Há quem julgue, ainda, que aprendemos com as crises e que delas saímos melhores do que quando entramos. Trata-se de juízo temerário, posto que há crises que são terminais e devastadoras e que superam as piores expectativas; outras, a depender da capacidade de aprendizado e de criatividade política, podem dar ensejo a inovações e a aperfeiçoamentos. A crise final do governo Collor, por exemplo, e a sua solução institucional deixaram entrever a muitos que eventuais utilizações heterodoxas das atribuições dos poderes públicos estariam, no mínimo, dificultadas no futuro. Na altura, não contávamos com a vasta criatividade e persistência dos heterodoxos. O Brasil, nos anos de 2005 e 2006, vive uma das mais dramáticas crises de sua história republicana. Ainda que o desfecho não esteja à vista, pode-se dizer que se trata de uma crise com múltiplas dimensões e que diz respeito tanto à vida política e institucional do país como ao modo usual de a observarmos. Em outros termos, é possível indicar a presença de uma dupla crise: a que incide sobre a política e as instituições e a que afeta hábitos mentais arraigados em nossa observação da política brasileira. A hipótese de uma dupla crise, a incidir tanto sobre a política quanto sobre suas formas profissionais de observação, pretende sugerir que a atenção excessiva prestada pelos politólogos ao desempenho das instituições e a seus modos internos de funcionamento acabou por descurar de questões importantes, tais como a de saber quais são os nexos entre a vida política e institucional do país com a dinâmica da sociedade. Ao mesmo tempo, tal hipótese parte da caracterização da crise republicana corrente como uma crise de representação, cujos contornos, embora agravados pelos dramas imediatos, podem ser detectados em uma tradição de afastamento entre o sistema parlamentar e partidário e a dinâmica da sociedade, que vem dos anos do regime de 1964. Mas, antes de tratarmos dessa última faceta da crise, convém refletir sobre uma das mais caras crenças profissionais dos politólogos: a crença na excelência das instituições.
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Voz corrente entre os cientistas políticos brasileiros assegura a sanidade e, porque não dizê-lo, a excelência dos mecanismos institucionais que configuram a democracia no país. Muitas seriam as evidências do pleno funcionamento das instituições políticas pátrias: a consolidação de um sistema partidário plural, uma lógica legislativa dotada de racionalidade – a despeito de sua fenomenologia por vezes bizarra – e uma forte correlação entre comPetitividade político-eleitoral e aceitação das regras do jogo. Os movimentos recentes da Ciência Política no Brasil reforçam tal percepção. Assim o demonstram, por exemplo, investigações no campo dos estudos legislativos e na área dos estudos eleitorais e sobre o sistema partidário. Este, a despeito de anomalias localizadas, parece, segundo os seus estudiosos, cumprir sua função de canalizar para os espaços institucionais regulares a energia cívica dos cidadãos, através de eleições comPetitivas e com taxas de alienação eleitoral não-preocupantes. Vale dizer, à partida, que à parte dessas análises devemos argumentos importantes, erigidos contra uma agenda de reforma política de corte claramente oligárquico e dogmático. Tal virtude, no entanto, não as exime de críticas, não orientadas por dimensões estritamente institucionais, e que podem ser resumidas na seguinte questão: estamos bem com tais instituições, mas de onde vem a sensação de que as coisas não estão a correr tão bem? Ou, em outros termos: são as evidências factuais apresentadas pelos diagnósticos institucionalistas e otimistas as únicas a considerar para fins de avaliação do estado da democracia no país? É suficiente que as instituições funcionem bem (na suposição de que o estejam) para que a qualidade da política seja garantida? O escritor israelita Amós Oz, em sua pungente autobiografia De amor e de trevas, sustenta que “muitas vezes os fatos ameaçam a verdade” . O regime de evidências adotado pelas análises institucionalistas, para sustentar a normalidade dos mecanismos institucionais no Brasil, está fundado em um conjunto de dados sobre os padrões de votação nominal dos parlamentares no Legislativo. De acordo
Cf. OZ,Amós, De amor e de trevas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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com tais padrões, o Legislativo brasileiro, nas últimas décadas, vem sendo marcado pela disciplina nas votações e pela nitidez do posicionamento das bancadas, tanto no campo do governo como no da oposição, a despeito de incessante troca de legendas. Mas será esse o único regime de evidências possível para avaliar o estado da democracia no Brasil? A meu juízo, tal regime releva da crença na autonomia das relações entre Poder Executivo e Poder Legislativo diante da sociedade e dos eleitores em geral. Tal crença nos impede de tratar de modo consistente uma questão relevante, tornada crucial pela crise política e institucional vivida no biênio 2005-2006: quais são os fundamentos da representação política no Brasil? O argumento central desse ensaio é o de que o sistema representativo no Brasil, nas últimas décadas, no lugar do tradicional princípio da distinção – comum a todos os regimes fundados na representação – introduziu uma dinâmica autárquica, segundo a qual o âmbito da política concentra-se das interações entre Legislativo e Executivo, em detrimento dos nexos com o mundo exterior. Nessa forma política autárquica, cabe acrescentar, o exercício da Presidência da República cumpre uma função de mobilização dos humores nacionais, vale dizer, de animação da República. Para dizê-lo de modo conciso, o texto pretende refletir sobre essa curiosa mescla – distinção, autarquia e animação –, como pista para uma interpretação do estado da representação política no país. Para tal, as duas sessões seguintes discutirão de modo teórico os temas da distinção e da autarquia. A partir delas, alguma aplicação ao cenário brasileiro será desenvolvida. O tema da representação e o princípio da distinção No léxico político contemporâneo, democracia e representação parecem pertencer ao mesmo campo semântico. Sem qualquer dificuldade de ordem conceitual, cidadãos de repúblicas realmente existentes podem formular suas demandas por mais democracia através da exigência de maior qualidade no exercício da representação. Em outros termos, é possível exprimir a adesão à democracia através da linguagem da representação. Hanna Pitkin, em seu texto clássico The Concept of Representation, indica a forte pregnância do
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tema: “In modern times almost everyone wants to be governed by representatives...every political group or cause wants representation... every government claims to represent.” Mesmo os observadores profissionais da política – os politólogos –, por conforto vocabular e por crença, acabaram por aderir à expressão democracia representativa para designar as formas políticas e institucionais que se generalizaram sobre mais da metade do globo, durante o século XX. Nesse amálgama, democracia e representação aparecem como partes de um nexo necessário. No entanto, nem sempre foi assim. Houve momentos na história do pensamento político – e na história da política propriamente dita – nos quais os campos semânticos das duas idéias mencionadas foram cuidadosamente distinguidos. Lembrar tais episódios não cumpre aqui tanto a função de exortar o leitor a aderir de modo nostálgico a projetos de refundação democrática, com base em uma improvável rehelenização da política, quanto para indicar o caráter artificial, sensível ao engenho humano e, portanto, perecível da associação teórica à prática entre democracia e representação. James Madison, no século XVIII, pode ser hoje apresentado como um dos inventores daquilo que seguimos a nomear de modo um tanto imperito como democracia representativa. A seu juízo havia uma clara distinção entre o que seria uma república moderna e uma república democrática à antiga. Tal diferença dar-se-ia pela adoção, pelo desenho de república moderna que propõe, do que ele mesmo designou como o esquema da representação . A democracia, ao contrário, é apresentada como uma “sociedade formada por um pequeno número de cidadãos que se unem e administram pessoalmente o governo”, enquanto que o que define como república caracteriza-se pela “delegação do governo a um pequeno número de cidadãos eleitos pelos demais” . A história do conceito de democracia representativa diz, pois, do trajeto percorrido entre a primeira concepção – “cidadãos que admi
Cf. PITKIN,Hanna, The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press, 1972, p. 2. Cf. MADISON,James. Federalista # 10. In: Os Artigos Federalistas, 17871788. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993 Idem.
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nistram pessoalmente o governo” – e a segunda – o governo de “um pequeno número de cidadãos eleitos”. Através do artifício da representação, a operação do que o próprio Madison definiu como um filtro institucional garante a não-transitividade entre o universo da cidadania em estado bruto e o domínio da decisão legislativa. Ao defender o mecanismo, James Madison, mais do que se distanciar teoricamente dos fundamentos da democracia clássica, preocupa-se com a dispersão de concepções e alternativas no próprio contexto norte-americano de fins do século XVIII, marcadas por forte componente libertário e, por assim dizer, acrático. Com efeito, nos tempos que antecederam à Convenção da Filadélfia, predomina o que alguns analistas denominam como “política de liberdade”, marcada por resoluta desconfiança com relação a qualquer idéia de governo que não esteja submetido fortemente a controle popular direto . O próprio Madison, no Federalista # 63, reflete a respeito dos “abusos da liberdade”, a seu juízo tão nefastos quanto os “abusos do poder” . Na formulação madisoniana, a representação age como mecanismo alternativo a outras modalidades de organização institucional, tais como o acesso direto do público às decisões e à feitura de leis, a escolha por sorteio e, o que é evidente, a monarquia hereditária. A crença de Madison na virtude da representação e de seu filtro residia na expectativa de que instituições representativas, ao mesmo tempo em que fundam a autoridade necessária para que o governo governe, garantem que o exercício da representação orienta-se para o bem público. Tratava-se, a seu juízo, de escolher homens cuja sabedoria lhes permitiria discernir o interesse público, indiscernível em um cenário no qual a potência da soberania estivesse dispersa de modo isonômico entre todos os cidadãos. O tema da representação, assim definido, passou a ser crucial para
Para uma útil e vívida reconstituição do debate pré-constitucional norte-americano, ver o excelente ensaio de Isaac Kramnick, em Apresentação aos Federalist Papers, incluído na edição brasileira (Os Artigos Federalistas, 1787-1788, op. cit). Ver, ainda, o ótimo artigo de Gordon Wood, The Origins of the Constitution. In: This Constitution: a bicentennial chronicle, # 15, Summer, 1987. Cf. MADISON,James, Federalista # 63. In: Os Artigos Federalistas, 17871788, op. cit.
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o entendimento de como funcionam os governos a partir do século XIX. Por conforto vocabular, emprestamos o adjetivo democrático a sistemas políticos nos quais a intervenção dos cidadãos nos assuntos públicos se dá a partir da escolha de representantes parlamentares, em eleições livres protagonizadas por eleitorados de massa, constituídos por cláusulas universais. A despeito do caráter corrente do adjetivo, tais sistemas, de modo mais apropriado, devem ser designados como governos representativos. Sua dimensão democrática estaria dada pelo alcance da incorporação eleitoral e por sua capacidade de a todos representar. Esta parece ser a prescrição de Stuart Mill, feita em 1861, em seu livro clássico Considerations on Representative Government : o modo mais efetivo para constituir a representação se dá pela escolha de representantes capazes de refletir a extensão plena do eleitorado e a sua diversidade interna. Nessa forma política representativa de base alargada, o parlamento, a despeito do regime político adotado, tem um papel estratégico. Os parlamentos em geral sustentam-se em um ato ficcional básico, segundo o qual um corpo diminuto de seres humanos constitui-se como amostra e miniatura dos demais, para fins de deliberar a respeito do interesse público. O aspecto ficcional é evidente, dado que não parece ser da natureza de qualquer contingente humano apresentar-se politicamente de modo amostral. A não ser que se prove o contrário, trata-se de um artifício que, mais do que permitir que o público em geral fale através de seus representantes, na verdade constitui-se como impedimento para que ele fale de forma direta. Como vimos, o princípio da representação constitui-se como um filtro, por meio do qual os poucos e bons decidem pelos muitos e não tão bons assim. Em outros termos, o esquema da representação é uma alternativa a formas democráticas clássicas, fundadas na ação direta dos cidadãos em assembléias e no princípio do sorteio como critério de preenchimento de funções públicas. A representação é uma forma intermediária entre a potência democrática das multidões e a concentração do poder de corte absolutista. O resultante é um sistema que combina tinturas aristocráticas – o governo dos selecionados – com alguma sanção popular, através de eleições.
Cf. MILL, John Stuart. Considerations on Representative Government, 1861.
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O politólogo francês Bernard Manin, em seu livro seminal, Princípios do Governo Representativo, demonstrou que o mecanismo da representação política está sempre associado ao estabelecimento de um princípio de distinção: o governo representativo foi instituído com a plena consciência de que os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidadãos proeminentes e socialmente diferenciados daqueles que os elegeram...a isso chamaremos de ‘princípio da distinção’”10. Neste sentido, mesmo quando se democratiza, com o processo de constituição de eleitorados de massa fundados no sufrágio universal, tal regime mantém sua marca elitista de origem: trata-se, para Manin, de um sistema aristocrático11. Se aplicarmos critérios aristotélicos, poder-se-ia falar de um regime oligárquico. Não foi outra a sensibilidade dos clássicos Robert Michels – ao sugerir o imperativo prático da oligarquização de processos democráticos – e Joseph Schumpeter – ao definir a democracia como um regime de oligarquias comPetitivas12. Os segredos do governo representativo – quer em sua versão restrita, quer em sua manifestação democratizada – residem em dois tipos de relação que ele necessariamente encerra, e que se estabelecem: (i) entre os representantes e os representados e (ii) entre os representantes e o governo.
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Cf. MANIN,Bernard. The Principles of Representative Government, Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 94. 11 Há um sentido indelevelmente aristocrático nas escolhas eleitorais, mesmo as que ocorrem em contextos nos quais não há restrições à participação e dotados de forte comPetitividade. Na medida em que cada eleitor escolhe a melhor alternativa – i. e., o melhor candidato – o resultado agregado é a seleção de uma assembléia de melhores. Em termos gregos, uma assembléia de aristoi. Logo, uma aristocracia. 12 Cf., respectivamente, MICHELS,Robert, Political Parties e SCHUMPETER,Joseph, Capitalism, Socialism, and Democracy, New York: Harper & Brothers, 1942. Tal sensibilidade servirá, ainda, de base para as formulações de Robert Dahl em Poliarchy: Participation and Opposition, New Haven: Yale University Press, 1971, que serão tratadas adiante de modo mais pormenorizado. Há edição brasileira – pela Edusp – com ótimo estudo introdutório de Fernando Limongi.
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A primeira dimensão fala das relações entre eleitores e seus representantes, tanto em termos individuais como no que diz respeito à vocalização de interesses e expectativas coletivas. A depender dos rigores do filtro acima mencionado, tais relações podem revelar forte representatividade como, ao contrário, considerável dissociação e alheamento. Nesse último caso, teríamos representantes politicamente irresponsáveis com relação a seus eleitorados. A segunda dimensão contém as interações entre governo e representantes parlamentares. Muitas são as possibilidades nesse caso: a mais benigna é a de um corpo de representantes, com fortes vínculos com suas bases sociais, exercendo fiscalização sobre os governos. No pior, governo e representantes fecham-se em interações e barganhas pouco visíveis, a despeito do que se passa no mundo exterior, habitado pelos cidadãos. Nos dois tipos de relação mencionados, opera um princípio de distinção. É da natureza do regime representativo, qualquer que seja a extensão de sua base eleitoral, que os representantes se distingam dos representados. O esquema da representação não decorre apenas de imperativos de escala, mas de uma crença precisa: a qualidade da deliberação a respeito do interesse público decorre de um afastamento entre o exercício refletido da representação e a espontaneidade e rusticidade da expressão dos cidadãos. Nesse sentido, a busca de uma representação não mediada, na qual o princípio da distinção não opere, parece ser uma demanda logicamente inconsistente. Outra faceta da distinção opera nas relações entre representantes e governo. Sendo função da representação o controle do governo, a distinção entre ambos os termos é algo necessário. Mesmo em formatos parlamentaristas, o componente executivo deve estar claramente demarcado com relação à expressão parlamentar. Da distinção à autarquia: a lacuna de Robert Dahl Do até agora exposto, pode se depreender que a associação entre representação e democracia é de ordem contingente. Trata-se de um nexo que poderá, ou não, ocorrer. Ele dependerá, em termos teóricos, da redefinição dos quesitos necessários para estabelecer o que
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seja um arranjo democrático – um esquema no qual todos escolhem, mas poucos governam e representam – e, em termos práticos, da ampliação dos eleitorados e de sua conseqüente liberdade de escolha entre alternativas comPetitivas. Se aquela relação é contingente, a que se estabelece entre representação e distinção é de ordem necessária. Quer isto dizer que as representação e distinção são coextensivas: a eliminação de qualquer uma implica o mesmo efeito para a outra. Mas, embora a distinção seja um corolário lógico do princípio da representação, é pela sua materialidade – vale dizer, por sua inscrição prática e contingente – que ela pode ser detectada e analisada. É possível, pois, imaginar uma variedade institucional e normativa de formas de distinção. Do mesmo modo, e esse é o ponto mais importante, pode-se especular a respeito de diferentes extensões do princípio da distinção. No limite, a questão pode ser posta nos seguintes termos: em que medida o “excesso” de distinção desconfigura o princípio da representação? Antes que imaginemos pirotecnias modelísticas, voltadas para a detecção de um ponto ótimo de saturação, o problema que pretendo considerar diz respeito ao trânsito da distinção para a autarquia. Enquanto o primeiro princípio pressupõe – lógica e existencialmente – a alteridade e o nexo com o que lhe é distinto, posto que a distinção exige o distinguir-se de algo, o segundo é index sui. Um universo autárquico, tal como na definição dada por Aristóteles, na Metafísica, aos processos naturais, é um domínio que contém de modo autônomo os princípios de seu movimento. Suas conexões com o que lhe é exterior são erráticas e contingentes. Pode-se dizer que elas obedecem aos caprichos de seu insulamento e não se constituem como sua substância. Sendo index sui, a substância de uma entidade autárquica reside nela própria13. O rebatimento empírico dessa consideração permite pôr sob foco situações nas quais, para além da distinção ordinária para com o 13
O sempre providencial léxico de Liddell e Scott registra como significado para a palavra grega autarkeia as expressões “sufficient in oneself, independence”. Ver Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon, Oxford: Oxford at the Clarendon Press, 1999 (1889), p. 133.
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corpo dos representados, o mundo da representação age segundo uma lógica autárquica. Ainda que não esteja disposto a subscrever que o princípio da distinção contém, de forma larvar, o princípio da autarquia, como se este fora seu corolário, é a própria rationale da democracia representativa que indica o lugar – ou a lacuna - a ser preenchido por experimentos autárquicos. Em outros termos, a filosofia pública oficial da democracia representativa – a chamada teoria descritiva da democracia ou teoria da poliarquia –, ciosa da necessidade da distinção como norma e mecanismo institucional, abriga a possibilidade da autarquia como desdobramento do princípio da distinção. Penso poder demonstrar essa hipótese, a partir da formulação que, desde a década de 50, vem operando como a filosofia pública hegemônica do sistema representativo. Para tal, procederei à exumação de um argumento por mim desenvolvido em 1988 no contexto da análise da transição brasileira para a democracia14. Tal argumento pretendia elucidar o que então julgava ser uma peculiaridade do arranjo específico que emergiu dos anos 1985-1988. Um argumento prematuramente desativado, pois agora dou-me conta de sua pertinência para lidar com o tema das relações entre sistema político e ordem social no país. O argumento em questão foi desenvolvido a partir da seguinte pergunta: qual a virtude da transição brasileira? O sentido do termo virtude está aqui a indicar, em sentido aristotélico, o atributo que resulta de um determinado processo e que ao mesmo tempo revela de modo exemplar a sua potência. Em termos mais diretos, o termo foi utilizado no mesmo sentido em que, para Aristóteles, o vento é a virtude do ar. Em meu ensaio de 1988, a virtude da transição brasileira foi assim apresentada: A virtude da transição brasileira se expressa na maximização da coextensividade entre polis (i. e., o mundo da representa14
O argumento foi desenvolvido no ensaio “Reflexões sobre a gênese de uma democracia banal”, publicado em Renato Lessa et ali, Modernização e Consolidação democrática no Brasil: dilemas da Nova República, São Paulo: Vértice, 1989.
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ção) e governo, sem a criação de canais alternativos de integração entre esses dois domínios e o demos15. A “demonstração”, cujos termos podem ser trazidos para o debate brasileiro contemporâneo, tomou como ponto de partida uma insatisfação com o modelo desenvolvido por Robert Dahl, tal como apresentado em seu texto clássico Poliarchy: Participation and Opposition, e uma discussão dirigida a alguns desdobramentos de sua teoria. Os termos do modelo são por demais conhecidos, o que torna sua apresentação um tanto tediosa e supérflua. No entanto, para que meu argumento tenha um mínimo de sentido, é importante marcar os passos principais que constituem o paradigma dahlsiano, ainda que de modo breve. Além disso, os termos formalizados por Robert Dahl constituem o paradigma no qual as questões da representação vêm, desde a sua formulação, sendo tratados. É nesse sentido que a obra de Dahl pode ser considerada como a filosofia pública da assim chamada democracia representativa. O primeiro passo do argumento dahlsiano foi o da célebre, e de inspiração huntingtoniana, indicação e distinção das duas variáveis que compõem os processos de democratização, por ele designadas como liberalização (liberalization) e incorporação (inclusiveness). Mais do que fatores presentes em processos de transição para a democracia, tais aspectos podem ser tomados como dimensões macropolíticas necessárias a qualquer sistema político. Em outros termos, é possível avaliar os diferentes sistemas políticos de acordo com o grau de liberalização e de incorporação que contêm. A primeira dimensão – liberalização –, de acordo com Dahl, diz respeito à institucionalização do conflito interelites e à aceitação pacífica de sua pluralidade. Tal institucionalização diz respeito ao estabelecimento de regras do jogo e à aceitação dos resultados da competição política, por todos os participantes. Em outros termos, a liberalização tem por foco as interações no interior da polis, compreendida esta como o conjunto dos atores que – pelo exercício do governo ou da representação – têm controle sobre a agenda pública. 15
Cf. Renato Lessa, op. cit., p. 165.
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A segunda dimensão – inclusiveness – fala-nos da extensão do demos, ou seja, do grau de incorporação da população adulta ao eleitorado e, por essa via, aos espaços de participação política. O subtítulo do livro de Dahl – participação e oposição – releva da distinção entre as dimensões mencionadas. Participação pertence ao universo da incorporação, enquanto que o exercício da oposição diz respeito aos processos de liberalização. A representação espacial das duas dimensões, proposta por Dahl, tem a forma de dois eixos, cada qual a indicar o grau em que contêm suas substâncias, tal como pode ser visto a seguir:
I: Liberalização
II: Incorporação
O passo seguinte do argumento de Dahl, a partir dos valores (+) e (-) atribuídos aos dois eixos, é a definição de quatro combinações típicas, configurando tipos distintos de regimes, de acordo com a figura a seguir. Ainda segundo a figura, os regimes políticos resultantes são: 1. Hegemonias fechadas, marcadas pela combinação entre reduzida incorporação e baixa institucionalização na competição entre as elites;
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2. Hegemonias includentes, dotadas de grande incorporação em contraste com baixa institucionalização (regime não dotado de regras estáveis de interação no corpo da polis); 3. Oligarquias comPetitivas, definidas pela existência de alto grau de pluralismo e aceitação das regras de competição, por parte da polis, mas com reduzida incorporação popular; 4. Poliarquias (ou, nos termos desse ensaio, democracias representativas), nas quais ocorreria o desempenho ótimo das duas dimensões: plena institucionalização com máxima incorporação.
O movimento que segue aos passos indicados, ainda no âmbito da formulação dahlsiana, procura distinguir trajetos possíveis de transição da situação 1 (hegemonias fechadas) para a situação 4 (poliarquias); em outros termos, trata-se de indicar trajetórias possíveis de democratização, ou de poliarquização, na perspectiva de detectar trajetos mais seguros. Independentemente da trajetória indicada por Dahl como a mais plausível para obtenção de sucesso no percurso poliárquico (a que obedece a seqüência 1, 3, 4), é importante notar que opera no argumento um macrorequisito fundamental, a saber, o de que regimes políticos são combinações entre as duas variáveis indicadas. Quer isto dizer que, no limite, não há desempenho autônomo de qualquer uma delas. Ao comentar tal requisito ontológico de fundo, tendo em vista a experiência dos primeiros anos da Nova República (governo Sarney), observei que:
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Se esta suposição for plausível, o que dizer, então, de experiências políticas caracterizadas pela disjunção entre o que se passa tanto no eixo vertical como no eixo horizontal? Situações nas quais as mudanças no conflito interelites e a maior incorporação parecem seguir caminhos autônomos e exteriores ao domínio acima configurado. A pergunta, como pode ser depreendido com facilidade, tem por objetivo colocar sob foco a experiência brasileira recente, representada como de disjunção entre a maior coextensividade obtida entre polis e governo e a existência de amplas franquias de incorporação eleitoral16. Em outros termos, a suspeita revelada na altura indicava a possibilidade de um efeito de ocultação. Mesmo sob a vigência das condições básicas para a poliarquia – i. e., institucionalização e incorporação –, um cenário perverso pode se apresentar marcado pela disjunção entre o que se passa no universo da polis e o que vai pelo mundo do demos. Mas, mais do que uma peculiaridade da cena brasileira dos anos oitenta, essa hipótese está a sugerir dois desdobramentos mais sérios. O primeiro deles diz respeito aos limites da filosofia pública hegemônica da democracia representativa, restrita às dimensões da institucionalização e da generalização das franquias eleitorais. O segundo indica um processo, senão permanente, ao menos de longo curso na constituição do campo político e institucional brasileiro, posterior a 1985, com efeitos presentes até os dias que correm. Com relação ao debate teórico propriamente dito, cabe sustentar que a plena vigência das condições poliárquicas pode encobrir situações nas quais o mundo das instituições e o domínio dos cidadãos mantêm escassas e erráticas relações. Para levar adiante tal suposição, é necessário proceder a duas operações analíticas, tendo como foco o modelo original desenvolvido por Robert Dahl. Em primeiro lugar, trata-se de distinguir no eixo vertical do esquema dahlsiano – liberalização – duas dimensões distintas: o grau de 16
Idem, p. 169.
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pluralismo e institucionalização do conflito entre as elites, tal como na definição original, e o que pode ser designado como o grau de coextensividade entre polis e governo (ou em que medida o mundo da representação é coextensivo ao governo). Em seguida, é preciso distinguir, da mesma forma, no eixo horizontal – incorporação – duas dimensões distintas: incorporação do demos ao processo eleitoral e coextensividade entre demos e polis (grau de correspondência entre as identidades que se constituem nos corpos do demos e da polis) O primeiro procedimento fala-nos das relações entre representantes entre si e com o governo. O segundo repõe a questão básica da representação, ao introduzir o tema das relações entre representantes e representados. A primeira distinção pode ser representada na figura a seguir, na qual I representa coextensividade entre polis e governo e II pluralismo e institucionalização do conflito entre elites.
As combinações derivadas são as seguintes (p.26). O ponto 1’ da figura indica uma situação hipotética na qual tanto o grau de pluralismo e institucionalização do conflito quanto a coextensividade apresentam índices muito baixos. O governo é controlado por um reduzido segmento da elite que, por deter os recursos de poder mais relevantes – astúcia, força e riqueza –, exclui as demais
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elites. Tal situação é compatível com a dos regimes de hegemonia fechada, do modelo dahlsiano original.
O ponto 2’ apresenta um cenário no qual a baixa coextensividade entre polis e governo indica a presença de um governo excludente, mas obrigado a contracenar com elites dotadas de capacidade de combinação autônoma, dadas as altas taxas de pluralismo e de aceitação da diversidade. Trata-se de um cenário de forte confronto potencial, cujas saídas possíveis parecem ser: (i) alargar a coextensividade, na direção das hegemonias inclusivas (ou democracia de notáveis) ou (ii) apelo ao demos, por parte das elites excluídas, para obter maior coextensividade por via revolucionária (caso de shortcut, ou trânsito direto para a poliarquia, no modelo dahlsiano original). O ponto 3’ exibe alta coextensividade, porém com baixa institucionalização do conflito. Trata-se de um cenário de caos institucional potencial, no qual todo conflito interelites transforma-se em conflito intragovernamental. Por fim, o ponto 4’ apresenta em termos lógicos um máximo simultâneo de coextensividade e de institucionalização. Tal situação é compatível tanto com as hegemonias inclusivas quanto com as poliarquias plenas, nos termos definidos por Robert Dahl. A segunda distinção pode ser representada na figura a seguir, na qual I representa coextensividade entre polis e demos e II incorporação da população ao processo político via franquias eleitorais.
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As combinações derivadas são as seguintes:
O ponto 1’’ revela, em termos formais, um quadro de baixa coextensividade entre polis e demos e reduzida incorporação. Trata-se de uma polis completamente estranha, habitante de um mundo no qual inexistem franquias eleitorais, e de um demos diminuto, suplantado demograficamente por uma população politicamente amorfa e não incorporada ao processo político. Tal situação é compatível tanto com as hegemonias fechadas quanto com as hegemonias includentes do modelo dahlsiano, e com todos os casos n’.
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O ponto 2’’ indica a possibilidade de um demos dotado de consideráveis franquias eleitorais, a contracenar com uma polis com a qual mantém baixa coextensividade e cujas identidades não derivam de vínculos com o eleitorado. As afinidades dessa interessante combinação serão tratadas adiante. O ponto 3’’ apresenta franquias rigorosas e excludentes. No entanto, o demos diminuto reconhece na polis uma amostra de suas identidades básicas. O cenário é compatível com o de oligarquias comPetitivas, do modelo dahlsiano original e, ainda, com todos os casos n’. O ponto 4’’ indica índices máximos, tanto para a incorporação, quanto para a coextensividade. Na verdade, aqui estaria a condição essencial da poliarquia, ou da democracia representativa, não contida necessariamente na definição dahlsiana da mesma, na verdade compatível com o ponto 2”. Nos termos por mim desenvolvidos, na altura da elaboração do texto que deu origem a esta discussão, a transição brasileira poderia ser representada como passagem de uma situação de tipo (2’-2’’) – governo Figueiredo - para uma tipo de (4’-2’’) – governo Sarney – , com os seguintes termos: (2’-2’’): 1. Governo excludente e não coextensivo à maioria da polis; 2. Significativa capacidade de combinação autônoma entre os segmentos majoritários das elites; 3. Não-coextensividade entre polis e demos; 4. Incorporação da população ao processo político eleitoral, pela existência de amplas franquias. (4’-2’’): 5. Coextensividade entre polis e governo; 6. Significativa capacidade de combinação autônoma entre os segmentos majoritários das elites; 7. Não-coextensividade entre polis e demos; 8. Incorporação da população ao processo político eleitoral, pela existência de amplas franquias. À distinção entre os atributos 1 e 5 cabe a diferença entre os dois
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momentos da transição, na verdade um trânsito da não-coextensividade para a coextensividade entre polis e governo. O ponto de continuidade básico residiria na não-coextensividade entre polis e demos. Em termos menos analíticos, o quadro derivou da observação de um processo político, durante o governo Sarney, no qual o principal movimento executado pela polis brasileira foi o de obtenção da maior aproximação possível com o Executivo, fazendo da coextensividade algo como sua principal virtude. No entanto, mais do que buscar elucidar o foco preciso da transição, o argumento pretende sugerir uma lacuna – ou buraco negro – da teoria que serve de base para avaliações usuais a respeito da democracia representativa. A suposição de que a continuidade das eleições e a ausência de impedimentos à participação eleitoral cumprem os requisitos básicos para a representação é débil. Tais requisitos, como vimos, podem estar presentes em um cenário de descolamento da representação, para além dos contornos ordinários do princípio da distinção. Nesse movimento, não cabe mais falar em distinção, mas sim em autarquia. O que a lacuna de Dahl está a nos revelar é a possibilidade teórica e o fundamento prático da autarquia, como forma de organização institucional. O cenário aceitável da distinção, a levar a sério a associação entre democracia e representação, tem como requisito necessário a combinação entre 4’ e 4”, tal como apresentados acima. Nele, a plena incorporação eleitoral convive com vínculos significativos entre representantes e representados, ao mesmo tempo em que o exercício do governo dá-se em contexto marcado por nexos de responsabilidade política. Se o desenho do mundo realmente existente afasta-se cada vez mais de tal imagem, talvez seja tempo de pensar de modo mais crítico e cuidadoso a respeito da pertinência de utilizar a expressão democracia representativa. Para além desse percurso um tanto árido, creio ser importante sugerir, tendo como referente a experiência brasileira, duas ordens de narrativa a respeito das razões da autarquia. A primeira delas terá como alvo, com alguma comparação internacional, algumas características do processo de constituição do demos brasileiro. A segunda incidirá sobre a polis, vale dizer, sobre o processo de autarquização do mundo da representação no país.
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Incorporação e Dinâmica Representativa: dois paradigmas Os processos de incorporacão popular à política configuram uma das principais crises de constituição das modernas ordens democráticas. Em termos básicos, eles estabelecem mecanismos de transformação da população de um dado país, um agregado demográfico bruto, em um conjunto de sujeitos dotados do direito de exercer escolhas públicas. Se a assim chamada crise distributiva estabelece um processo de atribuição de direitos sociais, a crise de incorporação tem como resultado a configuração de critérios para a definição de direitos políticos, bem como a delimitação do alcance desses últimos com relação à população global. Essa poderia ser designada como a dimensão linear dos processos de incorporação política, que exibe tão somente a extensão dos direitos políticos sobre o conjunto da população e que podem ser tomados como os requisitos mínimos de constituição do demos.17 Outra dimensão relevante dos processos de incorporação política diz respeito à relação entre constituição do demos e a configuração de identidades coletivas fundamentais. Esse aspecto não se confunde com o primeiro, já que o processo de “titulações” políticas não exerce sobre a sociedade, de modo necessário, o poder demiúrgico de fabricar identidades coletivas. Estas podem preceder a incorporação eleitoral ou seguir-se a ela sem correlação significativa com a extensão dos direitos políticos. Enquanto que no primeiro aspecto – a dimensão linear – importa saber o número de pessoas politicamente incorporadas, bem como as regras para que isto se efetive, na segunda dimensão trata-se de saber se existe correlação positiva entre constituição do demos e configuração de identidades coletivas. Essas premissas podem sustentar um quadro bidimensional de incorporação política apoiado nas seguintes oposições: (i) incorporação seqüencial versus incorporação rápida e (ii) presença de nexos entre incorporação e constituição de identidades coletivas versus ausência de tais nexos. O desenho pode ser representado da seguinte forma: 17
Para uma avaliacão do impacto dessas crises sobre os processos de institucionalização política ver BINDER,Leonard, Crisis and Sequences in Political Development. New Jersey: Princeton University Press, 1971.
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Relações entre incorporação e constituição de identidades Identidades
Presentes
Coletivas Ritmo da incorporação
Ausentes
Seqüencial
1
2
Rápida
3
4
Como resultado, são configuradas quatro possibilidades lógicas: (i) incorporação seqüencial conectada à emergência de identidades coletivas; (ii) incorporação seqüencial sem a conexão antes referida; (iii) incorporação rápida conectada a identidades coletivas; e (iv) incorporação rápida sem relação com a constituição de identidades. Para os fins desta reflexão gostaria de explorar particularmente as situações (i) e (iv). Antes, contudo, é importante esclarecer o que significam as expressões seqüencial e rápida, utilizadas para diferenciar os processos de incorporação. Pela primeira são designados os processos de incorporação que, além de graduais e dilatados no tempo, procedem à titulação política da população incorporando parcelas sociais nítidas. É o caso, por exemplo, dos processos de incorporação caracterizados pela ampliação de franquias censitárias, comum à maior parte da experiência democrática européia. A cada onda de incorporação tem-se ao mesmo tempo uma extensão quantitativa do demos, como também a introdução no sistema político de categorias sociais dotadas de um mínimo de nitidez. Alguns exemplos desse modelo seqüencial serão dados adiante. Os processos aqui definidos como rápidos, além da velocidade da incorporação, apresentam um padrão difuso de configuração do demos. Através de uma norma jurídica universal, são definidos os critérios de incorporação, sem que estes contenham de modo explícito a definição dos alvos precisos a serem incluídos ou excluídos. A diferença entre esses processos pode ser percebida quando se
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compara, por exemplo, a exclusão da classe operária inglesa no Reform Act de 1832 – nesse caso explícita – com a interdição da franquia aos analfabetos no Brasil da Primeira República. Nesse último caso, embora possam ser inferidos com facilidade os setores sociais excluídos, o contingente de analfabetos não configura, assim como o dos menores de 21 anos, os loucos, mendigos e mulheres, um coletivo social dotado de experiências significativas comuns ou laços internos de solidariedade. No primeiro caso, portanto, são definidos processos de incorporação que estabelecem direitos políticos para segmentos sociais inteiros. No segundo, a definição de uma norma jurídica universal transforma a aquisição de direitos políticos em um processo de adequação de cada indivíduo aos requisitos estabelecidos por lei. As propriedades presentes na situação (iv) podem ser encontradas na experiência republicana brasileira. Esta, ao contrário do período imperial, no qual vigorou um padrão seqüencial de incorporação eleitoral, caracterizou-se pela definição de uma norma jurídica abrangente e de aplicação sumária.18 O padrão de incorporação brasileiro, durante a República, pode ser caracterizado como de predomínio da norma jurídica sobre os processos sociais reais. Independentemente da constituição das identidades sociais, de seus conflitos e acomodações, o direito eleitoral reduz a obtenção de direitos políticos à mera adequação individual aos requisitos legais, tanto no que concerne à alfabetização como no que diz respeito à idade mínima para votar. A literatura especializada não registra na história republicana a presença significativa, 18
Na verdade, o Império caracterizou-se pela adoção de um processo de incorporação que poderia ser denominado como seqüencial inverso. Entre a franquia estabelecida pela Constituição de 1824 e a última reforma eleitoral do Império – a Lei Saraiva, de 1881 – houve, de fato, desincorporação, já que ocorreu uma drástica diminuição no tamanho do eleitorado. Ver a esse respeito CARVALHO,José Murilo de, Teatro de sombras: a política imperial, São Paulo: Vértice/Iuperj, 1988 (especialmente o capítulo 5, “Eleições e partidos: um erro de sintaxe política”) e LESSA,Renato, A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República Brasileira, São Paulo: Vértice/Iuperj, 1988 (especialmente o capítulo 1, “Absurdo, aventura e veto”).
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por parte da assim chamada “sociedade civil”, de pressões pela incorporação dos analfabetos ou pela redução do limite de idade para a titulação política. No que diz respeito à incorporação dos analfabetos, as propostas favoráveis a essa ampliação da franquia parecem circunscritas a debates parlamentares ou à subjetividade de componentes ilustrados da polis.19 O atributo rápido, emprestado ao processo de incorporação brasileiro, diz respeito, pois, ao estabelecimento sumário de uma franquia abrangente, fazendo com que os mecanismos de titulação deixem de depender de decisões políticas substantivas a respeito de que identidades sociais incorporar ou excluir. A dinâmica por assim dizer natural da vida social se encarregaria de estabelecer essas titulações. Do ponto de vista da constituição de identidades coletivas, o processo de incorporação brasileiro parece não ter sido fundamental para a definição de padrões de geração de solidariedade social ou de ação coletiva. Dito de outra forma, a extensão de entitlements políticos não possui correspondência no modo de organização dos atores sociais com vistas ao conflito distributivo. Essa fratura entre a titularidade de direitos políticos e a aquisição de uma identidade coletiva introduz na ordem brasileira uma dupla lógica de geração de coalizões. No plano da política formal, marcada pelo predomínio de instituições poliárquicas, a formação de coalizões circunscreve-se ao domínio da polis, sem que isso implique a consideração estruturada de identidades extracongressuais. No plano das identidades sociais, a formação de coalizões ocorre sem referência necessária ao mundo da política poliárquica. O conflito distributivo independe do comportamento de atores políticos parlamentares, sendo, pois, processado por identidades coletivas que derivam sua origem do mundo exterior à vida institucional. A não-transitividade entre incorporação e definição de identidades 19
A esse respeito ver, de RODRIGUES,José Honório, “O voto do analfabeto e a tradição política brasileira”, em seu livro Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-político, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. A confinação, nos limites da polis ilustrada, de propostas de inclusão eleitoral dos analfabetos foi atestada, ainda, por Sérgio Buarque de Hollanda, em História geral da civilização brasileira, V. II/5: do Império à República, São Paulo: Difel, 1972.
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coletivas faz da poliarquia brasileira um universo de rituais políticos com baixa capacidade de formular decisões de política substantiva, enraizadas nas principais identidades sociais. Os processos de constituição do demos resumidos na situação (i), acima apresentada, possuem seqüência e dinâmica diferentes. Creio que essas diferenças básicas têm importantes implicações na avaliação das possibilidades de convivência entre dinâmica corporativa e democracia política. A primeira diferença básica diz respeito à constituição seqüencial do eleitorado. O caso inglês, como de hábito, aparece aqui como paradigmático. A primeira reforma eleitoral inglesa – o Reform Act de 1832 – pode ser percebida como exemplo de incorporação característica dos processos seqüenciais. Em primeiro lugar, tratou-se de extensão das franquias eleitorais que resultou em duplicação do eleitorado existente. Além disso, essa extensão seguiu-se à Emancipação Católica que dois anos antes eliminou parte importante das restrições à participação política movidas por critérios religiosos.20 O mais importante, contudo, foi o fato de que a reforma eleitoral de 1832 prefigurou o padrão das reformas subseqüentes. Em 1867 e 1881 o eleitorado inglês seria consideravelmente alargado segundo um “modelo” já presente em 1832, e que poderia ser sumarizado do seguinte modo: 1. Incorporação de segmentos da população que correspondiam a recortes sociais nítidos. Por exemplo: as chamadas “classes médias industriais”, em 1832, as classes médias urbanas e mesmo segmentos operários, em 1867, trabalhadores rurais e mineiros, em 1881 e, por fim, mulheres em 1928. 20
Sobre a Reform Act de 1832, ver o excelente estudo de POWELL JR.,Bingham “Incremental Democratization: The British Reform Act of 1832”, in: ALMOND,Gabriel, Crisis, Choice, and Change: Historical Studies of Political Development. Boston: Little, Brown and Co., 1973. Sobre o Reform Act de 1867, ver WALTON,John, The Second Reform Act, London: Methuen, 1987. Para uma visão de conjunto a respeito do tema da reforma, na Grã-Bretanha do século XIX e início do século XX, ver PEARCE,Robert e STEARN,Roger, Government and Reform 1815-1918, London: Hodder & Stoughton, 1994.
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2. A presença de coalizões pela reforma eleitoral, anteriores à definição parlamentar da lei eleitoral. Trata-se da mobilização combinada de identidades sociais – associações operárias, clubes radicais, suffragetes, etc... – que já possuem formas internas de solidariedade e padrões de ação coletiva estabelecidos previamente à sua incorporação eleitoral.21 A combinação desses dois atributos permite desvendar um padrão de incorporação no qual segmentos sociais dotados de identidade própria demandam inclusão na comunidade política nacional. A posse de direitos políticos pode, então, ser representada como projeção das identidades sociais sobre o mundo da política, com suas conseqüências clássicas: direito de intervenção na definição da agenda pública e introjeção no corpo da polis de versões da sociedade até então excluídas. Com variações, esse padrão parece ter predominado na experiência política européia. Mesmo em países nos quais a incorporação das “classes baixas” se deu tardiamente (para os parâmetros europeus), como por exemplo na Alemanha, a sua inclusão dependeu de uma decisão política nítida por agregá-las à comunidade política nacional. O caso alemão é ainda ilustrativo do fato de que a mobilização política das “classes baixas”, bem como a definição de suas identidades políticas e formas de ação coletiva, antecederam a sua titulação política formal. Por outro lado, essa antecipação não implicou a busca de um tipo de ação política que dispensasse a conquista dos direitos políticos ditos formais. Como demonstraram brilhantemente Carl Schorske e Peter Gay, a mobilização política e social do operariado alemão, cuja identidade política foi dada pela tradição social-democrata, incidiu sobre a exigência de inclusão nos direitos de cidadania política.22 21
Sobre a tradição radical e a formação de coalizões visando à reforma eleitoral, o trabalho clássico é o de THOMPSON,E.P., The Making of English Working Class, England: Penguin Book, 1968. 22 refiro-me ao ótimo livro de SCHORSKE,Carl, German Social Democracy 1905, 1917: the Development of the Great Schism, Cambridge: Harvard University Press, 1983 e à biografia de Berstein escrita por Peter Gay: The
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O caso norueguês, analisado por Rokkan, apresenta algumas similaridades com relação ao padrão acima descrito. As peculiaridades referem-se ao fato de que a constituição de identidades sociais tem por substrato a configuração plural da sociedade norueguesa. Além disso, o próprio sistema partidário é posterior à definição dessas identidades. Estas, portanto, são anteriores tanto à incorporação quanto à estruturação do sistema partidário. Os partidos, na verdade, tenderão a expressar essas identidades e a lhes dar forma institucional.23 Essas considerações impressionistas e excessivamente sumárias a respeito dos padrões de incorporação seqüencial, marcados por uma correlação forte entre presença de identidades sociais e titulação política, são suficientes para sustentar a seguinte hipótese: os processos seqüenciais têm como resultado agregado e não antecipado a transitividade entre lógica representativa e lógica social. Pelo fato de as identidades sociais básicas se definirem por antecedência, o sistema representativo terá parte significativa de seu desempenho substantivo marcado pelo enraizamento social de seus diferentes atores políticos. Da mesma forma, a performance associativa e os modos de articulação de interesses, por terem alguma correspondência com o domínio da política formal, habitam um cenário institucional que contém os atores do mundo da representação. O que parece ser fundamental para atestar afinidades e aversões é o modo de constituição do demos nas sociedades onde o problema se coloca. Uma experiência histórica marcada pela incorporação de eleitores, identificando o acesso à cidadania política a um atributo meramente jurídico, e na qual a definição das identidades sociais se dá em contexto exterior ao mundo da representação, cria condições para que a agenda de política substantiva e o conflito distributivo sejam processados fora do assim denominado mundo poliárquico. Dilemma of Democratic Socialism: Eduard Bernstein’s Challenge to Marx, New York: Collier Books, 1970. 23 Ver ROKKAN,Stein, “Norway: Numerical Democracy and Corporate Pluralism”, in: DAHL,Robert, Regimes and Oppositions in Westwern Democracies, London/New Haven: Yale University Press, 1966.
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O princípio da distinção em versão brasílica e sua deriva autárquica A prática regular do regime representativo no Brasil foi iniciada em 1824, sob a Monarquia (1822-1889). Sob distintas formas eleitorais, o traço indelével da prática da representação no Brasil monárquico foi o da subordinação dos representantes ao governo e ao Poder Moderador, este uma atribuição exclusiva do Imperador. Apesar de alterações constantes nos mecanismos eleitorais – ou reformas políticas, para adotarmos expressão corrente –, um traço constante do modelo foi o da presença de um diminuto corpo eleitoral, sobre o qual os governos exerciam forte controle. Um modo pouco ortodoxo de caracterizar as práticas representativas no Brasil do século XIX poderá tomar como ponto de partida uma doutrina estabelecida pelo estadista brasileiro Manuel Alves Branco, chefe de governo na primeira metade dos anos quarenta. Segundo Alves Branco, as derrotas eleitorais que os governos, na altura, invariavelmente impunham à oposição não resultavam de violências e fraudes. Alves Branco assegurava que tal seria o caso das “maiorias artificiais”, sustentadas no princípio da “lealdade por compressão”. Nosso liberal antepassado estava convicto de que o caso brasileiro teria outras características: aqui são as “maiorias de amor” que sustentam os governos, definidas a partir de um princípio de “lealdade por gratidão”. O conteúdo amoroso desta política dizia respeito à relação entre o governo e, digamos, sua base parlamentar. Em tempos imperiais, e também nos idos da Primeira República (1889-1930), a obtenção da aquiescência amorosa dos representantes fundava-se em dois mecanismos fundamentais: a limitação do número dos representados e a coação e fraude no alistamento e no processo eleitorais. Neste sentido, pode-se dizer que o problema da cooperação entre Executivo e Legislativo resolvia-se na própria origem do processo representativo, isto é, no próprio ato eleitoral. Nos tempos do Presidente Campos Sales (1898-1902), no início da vida republicana, eventuais vitórias de deputados não-oficiais eram tratadas pela célebre “guilhotina Montenegro” (em homenagem a seu operador, o deputado paraense e Presidente da Câmara de De-
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putados Augusto Montenegro), que cuidava do não-reconhecimento de seus diplomas eleitorais. De Campos Sales tudo pode ser dito, exceto que ocultava as intenções de seus atos políticos: de seu próprio punho, em carta a Rodrigues Alves – seu sucessor (1902-1906) –, reconheceu que na dúvida sobre a validade de diplomas eleitorais concorrentes, a presunção de legitimidade pertence, por princípio, ao candidato da situação24. Esses foram tempos com poucos eleitores e marcados por rígido controle, por parte dos governos – federal e estaduais –, sobre o processo eleitoral. Em tempos democráticos, inaugurados com a Constituição de 1946 – marcados pelo crescimento do eleitorado e pela multiplicação dos atos eleitorais, ambos associados à forte competição político-partidária –, as formas de obtenção de aquiescência amorosa dos representantes não podem depender exclusivamente da coação e da fraude, exercidas sobre os representados. Dada a impossibilidade do controle generalizado sobre os representados, a operação dos princípios do “amor” e da “gratidão”, de acordo com os termos adotados por Alves Branco, deve incidir sobre o corpo dos representantes. Vale dizer que, na República de 1946, não se tratava de tarefa trivial, dado o maior peso que o Legislativo possuía diante do Executivo. A experiência perdida da República de 1946, está à espera, ainda, de um revisionismo analítico, capaz de destacar sua dinâmica representativa. Acusações de populismo e corporativismo, como “gramáticas” subjacentes à representação, devem ser revertidas: tais “gramáticas” podem, de modo alternativo, ser percebidas como formas de organização substantiva do demos a exigir correspondência e interlocução no campo institucional e representativo. Na experiência brasileira posterior a 1964, a busca de aquiescência parlamentar acabou por ganhar contornos próprios. Durante os anos autoritários, de 1964 a 1985, o Congresso Nacional permaneceu na maior parte do período em funcionamento, apesar das graves restrições à vida política. 24
Para uma consideração mais detida do modelo Campos Sales, ver LESSA,Renato, A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira, Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
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Mas o fato é que, por limitada, a atividade político-partidária ficou confinada ao âmbito congressual. Pelo arbítrio e pela inércia, os nexos entre a vida congressual e o mundo exterior tiveram menos peso do que as escaramuças estritamente institucionais. O campo da oposição consentida sempre esteve restrito à arena congressual. É como se o preço a pagar pela existência de alguma política fosse o não estabelecimento de nexos entre os mundos da representação e o dos representados. Essa última dimensão é grave, já que nos anos autoritários a sociedade brasileira experimentou uma série significativa de transformações em sua estrutura. Foram anos de vertiginoso crescimento econômico, de deslocamentos sociais e espaciais, de predação ambiental e de redefinição de várias identidades sociais. Em resumo, uma sociedade cujas mutações fundamentais ocorreram sem qualquer nexo com a atividade política. É legítimo sustentar que no período ocorreu uma dissociação entre o processo social e o processo político. Tal distinção constitui o legado do autoritarismo. Deve-se a isto acrescentar o fato de que, sob a concordata da atividade política, o eleitorado brasileiro cresceu de forma significativa: cerca de 22 milhões de eleitores em 1966 para aproximadamente 58 milhões em 1982. Tal acréscimo superou as taxas de crescimento demográfico (cerca de 84 milhões em 1966 para 126.806.000 estimados em 1982). Mesmo quando o Congresso vocalizou, nos anos 80, o sentimento geral de repulsa ao regime autoritário, acolhendo demandas da sociedade, a forma insulada acabou por domesticar a substância democratizante. Em outros termos, o processo social e o processo político seguiam cursos específicos e em grande medida independentes. É importante lembrar a singularidade do processo brasileiro de transição para a democracia. Tal singularidade reside no fato de que, diante dos demais casos internacionais de transição democrática, foi o único baseado no estrito cumprimento das regras institucionais estabelecidas pelo regime autoritário. O Presidente Tancredo Neves, líder de uma coalizão oposicionista, foi eleito pelo Colégio Eleitoral, em 1985, de forma ortodoxa, segundo os cânones do regime cessante. Vale dizer que, em tal processo, o Congresso apareceu como ator decisivo. Foi nesse espaço que se estabeleceram os protocolos de encerramento da ordem autoritária.
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É um Congresso devotado à sua forma e a seu insulamento, pois, que deflagra a transição à democracia e, em seus primeiros anos, estabelece com o Executivo uma relação amorosa e monogâmica. Do ponto de vista da maioria congressual o que importa é obter o máximo de acesso e controle sobre recursos e posições na máquina governamental; do ponto de vista do governo, importa usufruir da “lealdade por gratidão”. Os idos do governo Sarney (1985-1990) foram, nesse aspecto, notáveis: a captação de apoio parlamentar, por parte do governo, revestiu-se em privilegiado laboratório para observarmos as artes do chamado “presidencialismo de coalizão”. Ali esteve em jogo não apenas a duração do próprio mandato do Presidente em exercício, mas, o que é mais grave, a própria condução do processo constituinte. Em outros termos, as artes do “amor”, ainda na notação de Alves Branco, inscreveram seus sinais no desenho constitucional do país, dada a natureza congressual da Assembléia Constituinte, e não se limitaram a resolver questões ordinárias de governo. Os anos iniciais da democracia, a partir de 1985, estabeleceram um padrão de relacionamento entre o Congresso e o Executivo que ainda está presente na cena brasileira. A transição brasileira para a democracia pode, nessa chave, ser interpretada como um processo de aproximação e de indistinção entre o mundo da representação e o governo. Aspectos centrais da República de 1988 permitiram que o Executivo tivesse forte ingerência na dinâmica do Legislativo. Com efeito, o Presidente da República detém um conjunto de prerrogativas que o definem como o principal ator no processo legislativo: medidas provisórias, iniciativa de legislação e de proposta de reforma constitucional aí incluídas. O padrão mencionado diz respeito, portanto, às estratégias de captura do parlamento por parte do Poder Executivo. Em busca de base parlamentar para governar, o Executivo estabelece com segmentos do Congresso barganhas nem sempre defensáveis do ponto de vista da legalidade republicana. A condição necessária para que tais trocas se estabeleçam é justamente o afastamento entre representantes e representados. Dada a força dessa distinção autárquica, o congressista típico é alguém que se representa a si mesmo e está à disposição de trocas e vantagens. Foi esse contingente parlamentar
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que deu sustentação, no governo Fernando Henrique Cardoso, à reforma da Constituição que instituiu a possibilidade da reeleição para os cargos executivos. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, para além de suas mazelas próprias, sucumbiu a essa tradição. Em outros termos, a lógica política do governo priorizou no curto prazo a constituição de uma base parlamentar, na mesma linha adotada pelo governo anterior e na tradição da aproximação entre Legislativo e Executivo. O que do ponto de vista puramente formal indica a continuidade do modelo do chamado “presidencialismo de coalizão”, do ponto de vista substantivo significa a continuidade de uma forma vetusta de complementaridade entre parlamento e governo, tornando o vínculo da representação – isto é, o vínculo entre representantes e representados – remoto e litúrgico. O patético no governo Lula foi o fato de que a formação dessa base parlamentar se deu através da concessão de benefícios pecuniários a três partidos de corte conservador (PP, PTB e PL). Um apoio a políticas que, em princípio, os três partidos sustentariam, dadas suas trajetórias e programas. Além disso, dissolve-se na crise a identidade do partido do governo, cujo processo de crescimento e de fortalecimento eleitoral sempre esteve ligado à defesa de novos padrões de comportamento político e de aproximação entre os processos social e político. Não desconheço o argumento dos que defendem a inevitabilidade das artes amorosas de aproximação entre Executivo e Legislativo como forma de obter maiorias, ao sustentar que, dessa forma, importantes decisões para o país tornam-se possíveis. Só que, nessa chave, invertemos o bom La Rochefoucauld: trata-se da homenagem que a virtude presta ao vício. No entanto, o preço a pagar é a descaracterização de qualquer vestígio representativo em nosso sistema político. Trata-se de uma erosão cuja reversão está além do alcance de qualquer “reforma política”. Tal como está, a política reduz-se aos jogos entre o Executivo e o Congresso, lugar de coalizões guiadas pelo amor e pelo ódio, sendo este tão-somente a véspera do amor de amanhã. Em outros termos, é a própria idéia de governo representativo que acaba erodida. Não há vida republicana possível na qual a represen-
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tação consiste em representar os aPetites dos próprios representantes e na qual a agenda do governo orienta-se para a sua satisfação. O que do ponto de vista puramente formal indica a continuidade do modelo de “presidencialismo de coalizão”, do ponto de vista macropolítico e substantivo significa a continuidade de uma forma vetusta de coextensividade entre polis e governo, tornando o vínculo da representação remoto, litúrgico e, no limite, orientado para uma perspectiva autárquica. Algumas implicações finais desse atavismo da coextensividade devem ser anotadas: (i) no padrão definido pela coextensividade, a polis, para o governo, faz às vezes de demos, na medida em que é reconhecida como o locus prioritário para a obtenção de “governabilidade”; (ii) a coextensividade como virtude é um impedimento a que o tema da transformação social seja considerado como relevante: no limite, mesmo as dimensões não-sistêmicas dessa agenda acabam subordinadas aos termos e aos modos da coextensividade; (iii) a coextensividade como “causa final”, em sentido aristotélico, sustenta-se em uma posição autárquica com relação ao demos: é como se este não existisse enquanto entidade positiva; seus espasmos eventuais são registrados, sem que isso implique um reconhecimento de sua presença imanente: qualquer que seja o desenho da polis e de sua relação com o governo, o demos é sempre imanente; (iv) a imanência do demos traz consigo a impossibilidade de sua inércia; de algum modo o demos busca expressão ou é capturado por múltiplas formas de configuração identitária: aqui o espaço das identidades coletivas de corte não-político (em sentido estrito); aqui o espaço das sociabilidades “alternativas” e o nexo com a dinâmica das sociedades civis reais; (v) o contraste entre plena incorporação eleitoral e ausência de coextensividade entre demos e polis indica o ponto cego da teoria (e da prática) da poliarquia, ou democracia representativa. Os politólogos institucionalistas, por terem naturalizado a condição poliárquica, não estão aptos a perceber a extensão dessa falha tectônica: mesmo quando mencionam a necessidade de
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políticas redistributivas substantivas, o fazem do ponto de vista da estabilidade poliárquica, e não no da precedência ontológica e moral do demos (ponto de vista exclusivo dos democratas). Em outros termos, não o fazem por razões de justiça substantiva, posto que não há, no universo de suas crenças, abrigo para tal expressão e para o que dela resulta como forma de ação no mundo. O institucionalismo é ontologicamente demofóbico. Breve nota final, ou autarquia e animação, ou, ainda, da representação sem distinção A vigência de um modo autárquico de configurar e preencher as instituições não dispensa, contudo, a idéia de representação. Sobretudo em cenário no qual a expressão eleitoral da multidão tem efeito real sobre a distribuição do poder político. A forma dessa representação, no entanto, estará tão afastada das modalidades representativas clássicas quanto for a profundidade da dinâmica autárquica. Em casos extremos, não cabe mais falar em representação por via da distinção, mas de um laço simbólico no qual algum agente condensa em si mesmo a idéia – senão a extensão – do corpo social e político. Tal parece ser a rationale do presidencialismo de animação, uma forma na qual cabe ao Presidente o papel de animador geral da República e erradicador das expectativas de fracasso e de pessimismo. Trata-se, em outras palavras, de estabelecer com o demos relações diretas de animação. Nessa interação, as formas de envolvimento retórico são invariavelmente despolitizadas e marcadas por imagens e metáforas da vida privada. São os jogos e os afetos que constituem esse lado doce da vida republicana, em uma espécie de decantação da imagem de Sergio Buarque de Hollanda, a do homem cordial. •••
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Aspectos Políticos e Pedagógicos da Educação Ambiental no Brasil: um convite à reflexão
Carlos Frederico B. Loureiro
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No presente artigo analiso o processo de institucionalização da Educação Ambiental no Brasil e as implicações políticas e pedagógicas de abordagens teórico-metodológicas que a compõe, posicionando-me no campo crítico. Considerando as múltiplas nuances conceituais e a historicidade dos acontecimentos, o contraponto analítico é estabelecido entre a perspectiva emancipatória ou crítica, baseada em pedagogias libertárias e histórico-críticas, no método dialético e na teoria da complexidade, e a perspectiva conservacionista, fundamentada na pedagogia de projetos ou nas pedagogias de cunho comportamental, no pragmatismo e na teoria de sistemas. Com isso, sinalizo para a necessidade de reconhecimento da Educação Ambiental como campo de saber plural, dinâmico e conflituoso nas proposições e ações dos agentes sociais envolvidos e para a compreensão do que representa a incorporação de determinados posicionamentos diante dos desafios que os educadores ambientais se colocam. Por fim, reafirmo a especificidade da Educação Ambiental na prática educacional e sua pertinência para a concretização de um distinto patamar societário na natureza.
In this article I analyze from a critical point of view the institutionalization process of Environmental Education in Brazil, the political and pedagogical entanglements of its theoretical-methodological aspects. Considering the multiple conceptual nuances and the historicity of the facts, the analytical counterpoint is established between the critical or emancipating perspective, based on libertarian and critical pedagogy, on the dialectical method and on the complexity theory, and the conservative perspective, based on either pedagogy projects or behavior pedagogy, on pragmatism and on the theory of systems. Hence I point out the need of recognizing Environmental Education as a field of plural knowledge, that is dynamic and conflictive in the propositions and actions of the social agents that are involved, also the understanding of what the incorporation of some attitudes represent before the challenges faced by environmental educators. At last, I reaffirm the particularity of Environmental Education in the educational practice and its relevance for establishing a distinct social level in nature.
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Situando a institucionalização da Educação Ambiental no Brasil As discussões afetas à Educação Ambiental adquirem caráter público de projeção no cenário brasileiro em meados da década de 1980, com a realização dos primeiros encontros nacionais, a atuação crescente das organizações ambientalistas e a ampliação da produção acadêmica. Sua importância para o debate educacional se explicita na obrigatoriedade constitucional, em 1988, no primeiro Programa Nacional de Educação Ambiental, em 1994, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, lançados oficialmente em 1997, e na Lei Federal que define a Política Nacional de Educação Ambiental – Pnea (Lei 9795/1999). São instrumentos que asseguram à Educação Ambiental um caráter interdisciplinar e transversal, indispensável e indissociável das políticas educacional e ambiental brasileira. A despeito destes instrumentos estabelecidos e mesmo considerando os inegáveis avanços obtidos após a promulgação da Pnea e sua regulamentação em 2002 (Decreto no 4281), é possível inferir que a Educação Ambiental ainda não se consolidou como política pública de caráter democrático e universal, ou seja, enquanto um direito extensível a todos, segundo as especificidades culturais de cada grupo social. Há dificuldades institucionais, políticas e econômicas de inserção nas diferentes políticas setoriais e de adequação dos sistemas educacional e ambiental às suas finalidades. Além disso, é preciso admitir que a Educação Ambiental é um campo de saber recente (entre trinta ou quarenta anos, dependendo do país), o que exige um tempo de acúmulo teórico e prático e de amadurecimento de suas estratégias junto às instituições públicas e privadas ainda não ocorrido. Tais constatações estimularam o governo federal, no mandato atual, a instituir uma política de fomento à criação de espaços de diálogo entre redes, universidades, Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Ministério da Educação (MEC), por meio da consolidação do Ór
Caráter público entendido no sentido de um campo de conhecimento que adquire presença concreta nas questões inerentes à dinâmica dos múltiplos grupos e classes sociais, redefinindo configurações institucionais e aspectos normativos do Estado.
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gão Gestor e seu Comitê Assessor. Outra iniciativa relevante foi a reorganização do Programa Nacional de Educação Ambiental - ProNEA (MMA/DEA, 2004), em 2004, elaborado em amplo processo de debates e estímulo à mobilização dos educadores ambientais e secretarias estaduais e municipais de educação e meio ambiente, além da dinamização de encontros regionais, nacionais e internacionais. As iniciativas adotadas se pautam nas seguintes diretrizes oficiais (MMA/DEA, op. cit.): • Transversalidade – estabelecimento de espaços de interlocução bilaterais (MMA e MEC) e de internalização da Educação Ambiental no conjunto do governo e das políticas setoriais. • Fortalecimento do Sistema Nacional de Meio Ambiente e do Sistema de Ensino – promoção da Pnea e do ProNEA em diálogo com as políticas estaduais e municipais de educação e de meio ambiente. • Sustentabilidade – pressuposto balizador das ações, visando à construção das denominadas “sociedades sustentáveis”, ou seja, aquelas em que não se considere como fator de satisfação social o crescimento econômico, segundo os interesses do mercado, mas o respeito à diversidade cultural, a busca por justiça social, a promoção de relações produtivas coletivistas, a preservação e a conservação ambiental, o equilíbrio ecossistêmico e o fortalecimento de instituições democráticas. • Descentralização espacial e institucional – envolvimento dos agentes governamentais ou não na implementação da Educação Ambiental em todos os setores sociais e esferas de governo. • Participação e controle social – socialização de informações essenciais à discussão, formulação e fiscalização de políticas ambientais e educacionais e fortalecimento de espaços públicos instituídos (conselhos, fóruns, Agendas etc.). Mesmo sem entrar aqui no mérito da qualidade dos trabalhos e do sucesso ou não destes , são mecanismos e diretrizes institucionais
O número total de iniciativas é elevado, cujo tratamento analítico de cada uma merece um texto próprio.
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que permitem, de fato, sinalizar para o processo de consolidação desta como política pública, numa atuação interministerial e integrada voltada para a formação de educadores ambientais e à construção de espaços interinstitucionais inimagináveis há duas décadas atrás e pouco vista em outros países. Dito isto de modo introdutório, várias são as possibilidades de se pensar a Educação Ambiental, considerando seu caráter público. Contudo, para efeito de delimitação do escopo e objetivos do texto, abordarei exclusivamente os aspectos inerentes à inserção da Educação Ambiental no desenho de Estado brasileiro, com foco na Coordenação Geral de Educação Ambiental do MEC (Coea) e na Diretoria de Educação Ambiental do MMA (DEA), pela centralidade que assumiram nos debates recentes , e as tendências teórico-metodológicas que permeiam as ações. Este segundo aspecto mencionado será tratado com dupla finalidade: (1) como base teórica para o entendimento de que a institucionalização apontada se dá articulada à dinâmica conflitiva interna da Educação Ambiental, em que educadores ambientais com visões distintas de mundo, sociedade e educação buscam hegemonizar práticas sociais (Carvalho, 2001); (2) para a explicitação de posições diferenciadas nesse movimento, como subsídio ao posicionamento do próprio leitor. Julgo isto pertinente, pois, diferentemente do que o senso comum transmite, em função dos mecanismos de divulgação utilizados em alguns programas governamentais ou empresariais, materiais didáticos e meios de comunicação de massa, a Educação Ambiental não é uma perspectiva educacional homogênea, mas sim uma teia complexa de posicionamentos políticos, pedagógicos e ideológicos sobre a relação sociedade-agentes sociais-natureza (ou melhor, a respeito
Intencionalmente não entrarei na especificidade das ações promovidas pelo Ibama, apesar de o mesmo estar vinculado ao MMA. A escolhe se justifica, pois tal Instituto vem desenvolvendo um trabalho contínuo, sob um enfoque emancipatório, há cerca de uma década, portanto, para além do que ocorre na atual gestão federal, o que exige uma análise separada, apesar de se vincular ao teor das considerações feitas no presente texto. Para maior conhecimento da proposta do Ibama, ler: Ibama, 2002; Oliveira, 2003; Quintas, 2000.
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das relações sociais na natureza), sendo conformada em seu realizar, preponderantemente, pelos movimentos sociais, sistema educacional e sistema ambiental que constituem o Estado. Políticas Públicas e Educação Ambiental no Brasil pós-anos 1970 No processo dinâmico que caracteriza a Educação Ambiental no Brasil, o poder governamental, ao estabelecer sua política para a área, explicita o caráter de sustentabilidade que assume em relação não somente a esta, mas em relação à gestão do ambiente em sentido amplo, qual seja, os modos pelos quais nos definimos na natureza, a utilizamos, produzimos e nos apropriamos dos bens gerados, em dado contexto social e localização espaço-temporal. E, por meio de seus canais institucionais e normativos, marca os processos de mediação de interesses e de conflitos entre diferentes grupos e classes pelo uso e acesso à base vital. Isso significa afirmar que toda e qualquer política pública, mesmo realizada em nome do bem comum, não é neutra, pois ao decidir a destinação de determinados bens materiais estabelece quem se beneficia preponderantemente ou quem fica à margem do processo, reproduzindo as relações sociais vigentes ou favorecendo a construção de canais de exercício democrático em busca de novos patamares societários (Quintas e Gualda, 1995), compatíveis com a perspectiva de “sociedades sustentáveis”. Políticas Públicas podem ser sinteticamente definidas como as ações planejadas de governo, enquanto instância do Estado capaz de operacionalizar políticas universalistas, includentes e igualitárias ou não (Azevedo, 2003). Estas se baseiam, em uma sociedade democrática, pelo menos em seu significado formal no Estado de Direito, nos limites inerentes a uma sociedade de classes, na construção participativa, envolvendo os agentes sociais representativos de determinada problemática, campo político ou tema. Normalmente, sua viabilidade se apóia em dois pilares: 1. a busca constante de diálogo, apoio dos envolvidos, gestão transparente e democrática de conflitos e necessidades distintas
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e obtenção de consenso quanto às diretrizes, aumentando o grau de aprovação e capacidade de implementação; 2. a definição de normas, instâncias públicas deliberativas e procedimentos para a solução dos conflitos e situações imprevistas que surgem no processo. No caso da Educação Ambiental no Brasil, o que se percebe, diante das leis, documentos oficiais aprovados e da articulação das organizações da sociedade civil, é um forte movimento no sentido de concretizá-la como política pública, dando a esta um caráter permanente e inerente à política educacional e ambiental do país. Assim concretizada, significará o reconhecimento pelo Estado brasileiro de que deve ser incorporada como perspectiva e componente de um dos direitos vistos como inalienáveis do ser humano: a educação. Tal característica é, evidentemente, permeável a ajustes segundo os interesses e prioridades de governos sob mandato eleitoral e a capacidade de organização, diálogo, proposição e pressão de educadores ambientais e movimentos sociais. Feitas essas considerações, apresento alguns marcos e diretrizes gerais que definem a trajetória de institucionalização e expansão da Educação Ambiental no Brasil. O debate ambiental se instaurou no país em 1973, no âmbito do Estado, sob a égide do regime militar, muito mais por força de pressões internacionais do que por movimentos sociais de cunho ambiental consolidados. Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a política ambiental brasileira foi gerida de forma centralizada, tecnocrática, sem a participação popular na definição de suas diretrizes e estratégias, à luz da Lei Federal 6.938, de 31/08/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente. Nessa época, um viés conservacionista influenciado por valores da classe média européia, deu o “tom” político predominante nas organizações recém-formadas (Loureiro, 2006). Além disso, falar em ambiente era pensar em relações ecológicas descoladas da totalidade social, em um assunto técnico voltado para a resolução dos problemas ambientais ou em algo que impedia o desenvolvimento do país (para os grupos mais reacionários e desenvolvimentistas refratários às discussões ambientais).
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Nesse contexto, a Educação Ambiental se inseriu nos setores governamentais e científicos vinculados à conservação dos bens naturais, com forte sentido comportamentalista, tecnicista e voltada para o ensino da Ecologia. Havia iniciativas socioambientais, entendendo a natureza como totalidade indissociável, mesmo entre setores de órgãos de meio ambiente como a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), no Rio de Janeiro, e a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), em São Paulo, contudo, não eram tendências hegemônicas e nem possuíam grande capilaridade no tecido social. Para ilustrar o quanto a relevância da Educação Ambiental não era devidamente reconhecida pelas instituições oficiais, cabe lembrar o Relatório Nacional (Cima, 1991), produzido pela extinta Comissão Interministerial para o Meio Ambiente (Cima), que fez parte da programação da ONU para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio’92. O relatório governamental colocou, dentre outros aspectos, que um dos maiores problemas ocorridos nas décadas de 1970 e 1980 foi a Educação Ambiental não ter sido abordada como parte de área de educação e sim como de meio ambiente, sem a devida busca por sua transversalização institucional. A falta de compreensão da Educação Ambiental como processo educativo de cunho interdisciplinar, reflexo de um movimento histórico que rediscute nossa inserção na natureza, produziu, principalmente até aquele momento, uma prática descontextualizada, focalizada na solução de problemas de ordem biológica do ambiente, incapaz de discutir questões sociais que condicionam tais problemas e categorias teóricas centrais da educação. E mais, a ausência de reflexão sobre o movimento ambientalista, seus propósitos e significados políticos, levou à incorporação acrítica em programas e projetos das tendências fundamentadas em concepções abstratas de ser humano e generalistas no modo como definem a responsabilidade humana no processo de degradação ambiental. O ocorrido nas duas primeiras décadas no país gerou uma separação prática e, por vezes e em decorrência das premissas de algumas abordagens, teórica no tratamento dos aspectos ecológicos e pedagógicos (Layrargues, 2004; Lima, 2005). O resultado foi a definição
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de características comuns a certos setores da Educação Ambiental de difícil aceitação nos meios educacionais (principalmente Academia, sindicatos de docentes e órgãos de governo), em decorrência: • da promoção das ações sem preocupação com a reflexão teórica sistematizada e com as implicações macrossociais e políticas de tais iniciativas, havendo clara ênfase na Educação Ambiental como meio para a mudança comportamental de indivíduos pensados sem historicidade; • da hegemonia de concepções que instrumentalizam a Educação Ambiental, sem problematizar tais concepções à luz das teorias de educação e das tendências pedagógicas; • do baixo entendimento de que a Educação Ambiental, sendo uma prática social, precisa pensar os indivíduos não somente como organismos vivos em suas relações com o planeta, mas também como seres definidos por mediações sociais que conformam o nosso “eu” na natureza (unidade do ser humano traduzida no par dialético ser biológico-ser social, espécie que se realiza pela cultura – Morin, 1999, 2003). Sem dúvida, são elementos que situam as dificuldades múltiplas da Educação Ambiental na educação e sua inserção em projetos político-pedagógicos , mesmo considerando que tais contradições em muito foram minimizadas na última década. Por outro lado, é oportuno fazer a crítica à própria educação em seus espaços institucionalizados. Educadores, ao olharem “de fora” para a Educação Ambiental como algo homogêneo, sem tensionamentos e disputas internas, e como se esta tivesse uma inerente compreensão comportamentalista do processo educativo, reduzida às relações ecológicas, ignoraram sua dinâmica e relevante contribuição para o repensar das questões sociais contemporâneas e da existência humana na natureza. Algo que é inaceitável diante da especificidade do fazer edu
Pesquisa recente realizada pelo MEC/Inep indica que 94,9% das escolas do Ensino Fundamental afirmam realizar atividades de Educação Ambiental. Contudo, isso, quando de fato ocorre, é entendido de diferentes formas, não necessariamente passando pelo projeto político-pedagógico (Veiga, Amorim e Blanco, 2005).
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cativo e da necessária abertura do educador perante novos desafios, caracterizando um certo “fechamento corporativo” das pesquisas e das questões teóricas, com rebatimento nas políticas e priorizações feitas pelo MEC e por instâncias como o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Apesar desse cenário, de uma cultura política tecnocrática e das orientações econômicas contrárias a demandas emancipatórias, é preciso explicitar outros processos ocorridos no país que caminham no sentido de ruptura com o padrão estabelecido, dialetizando o quadro histórico e evidenciando as possibilidades existentes. No início da década de 90, seja pela mobilização social em decorrência da Rio’92, seja pelo alcance global que o debate ambientalista adquiriu, ou em função de maior capilaridade que este conquistou entre os setores sociais, o governo federal produziu alguns documentos e ações importantes. O Programa Nacional de Educação Ambiental, de 1994, que foi definido por meio de sete linhas de ação (MEC, 1997): (1) Educação Ambiental no Ensino Formal; (2) Educação no Processo de Gestão Ambiental; (3) Realização de Campanhas Específicas de Educação Ambiental para usuários de Recursos Naturais; (4) Cooperação com os que atuam nos Meios de Comunicação e com os Comunicadores Sociais; (5) Articulação e Integração das Comunidades em Favor da Educação Ambiental; (6) Articulação Intra e Interinstitucional; (7) Criação de uma Rede de Centros Especializados em Educação Ambiental, integrando Universidades, Escolas Profissionais, Centros de Documentação, em todos os Estados da Federação. Apesar das relevantes linhas de ação, o foco ficou mais no gestor do que no educador ou no sujeito do processo educativo, ocasionando algumas dificuldades de compreensão e absorção da Educação Ambiental. Além disso, não ocorreu à época uma articulação interministerial necessária para a devida transversalização da temática ambiental, faltando o apoio de áreas estratégicas. A Câmara Técnica Temporária de Educação Ambiental do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), criada em 1995, e que em 1996 contribuiu com a discussão de subsídios a uma Política Nacional de Educação Ambiental, ratificando princípios como: par-
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ticipação, descentralização, pluralidade e diversidade cultural e interdisciplinaridade. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, lançados oficialmente em 15 de outubro de 1997, documentos que definiram como temas transversais, em função da relevância social, urgência e universalidade: saúde, ética, pluralidade cultural, orientação sexual e meio ambiente. Apesar das críticas que receberam pelo modo como pensaram a transversalidade em educação (mantendo como eixos principais as disciplinas de conteúdos formais, sem alterar os alicerces da estrutura curricular dominante no país) e pela baixa operacionalização da proposta, tiveram o mérito de procurar abordar a temática articulada às diversas áreas de conhecimento. Isso foi projetado e planejado para ocorrer desde o entendimento do significado das ações cotidianas no local de vida, passando pela reconstrução e gestão coletiva de alternativas de produção que minimizem e superem o quadro de degradação, até a inserção política na sociedade como um todo. A Lei 9795 de 27 de abril de 1999, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental. Resultado de intenso processo de discussão iniciado em 1993, a Lei, primeira do gênero na América Latina, expressa a superação de dúvidas comuns quanto aos pressupostos da Educação Ambiental, principalmente quanto aos seus objetivos e finalidades. Há na Lei uma preocupação com a construção de atitudes e condutas compatíveis com a “questão ambiental” e a vinculação de processos formais de transmissão e criação de conhecimentos a práticas sociais, permitindo ao educando aplicar em seu cotidiano o que é aprendido no ensino formal. Há também efetiva preocupação em fazer com que os cursos de formação profissional insiram de modo transversal conceitos que os levem a padrões de atuação profissional minimamente impactantes sobre a natureza e que todas as etapas do ensino formal tenham a Educação Ambiental não de modo disciplinar, adotando uma perspectiva interdisciplinar. Críticas corretas ao veto do artigo 18, que definia a origem dos recursos financeiros para a execução da Política Nacional de Educação Ambiental, bem como a uma baixa “amarração” quanto às obrigações dos diferentes setores sociais (empresários, movimentos
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sociais, governos, escolas etc), precisam ser consideradas, sem, com isso, desconsiderar sua validade. Após a regulamentação da Lei que define a Pnea, em 2002, e a posse da atual gestão federal, a Educação Ambiental assume uma dinâmica intensa em termos políticos-institucionais e de projetos de formação de amplos setores sociais. Conforme dito no início do texto, passa a ocorrer uma efetiva atuação conjunta entre MMA e MEC por meio do Órgão Gestor e a definição de eixos estratégicos para a politização dos debates, a consolidação de espaços interinstitucionais, tendo por referência o ProNEA e o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, documento aprovado no Fórum Global, durante a Rio’92 . Assim, avançam a estruturação de redes de diferentes escalas (temáticas, locais, regionais, nacionais etc.) em diálogo permanente com o governo federal (sem perda aparente de autonomia), a ampliação de Centros de Educação Ambiental (CEAs), a criação de Comissões Interinstitucionais Estaduais de Educação Ambiental (Cieas) nos estados, o fomento à criação de pólos locais, salas verdes e Agendas 21, inclusive escolares. O ProNEA, reorganizado em 2004, sinaliza claramente para um novo patamar de compreensão do processo educativo. Articula as mudanças de percepção e cognição no aprendizado às mudanças sociais e explicita o reconhecimento de que a intenção básica da educação não está apenas em gerar novos comportamentos ou trabalhar no campo das idéias e valores, como se estes se objetivassem automaticamente. Propõe compreender as especificidades dos grupos sociais, o modo como produzem seus meios de vida, como criam condutas e se situam na sociedade, para que se estabeleçam processos coletivos pautados no diálogo, na problematização do mundo e na ação. Permite que se retome um pressuposto da educação, em consonância com as perspectivas pedagógicas críticas e emancipatórias: é a transformação das condições materiais e simbólicas que expressa a concretude do ato educativo na superação das formas alienadas de existência e das dicotomias entre sociedade-natureza. Na exposição dos princípios norteadores do ProNEA, alguns se
mais detalhes sobre as premissas de elaboração do Tratado podem ser encontrados em Viezzer e Ovalles, 1994.
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referem a um entendimento pedagógico crítico e democrático da Educação Ambiental: respeito à liberdade e apreço à tolerância; vinculação entre ética, estética, educação, trabalho e práticas sociais; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; compromisso com a cidadania ambiental ativa; transversalidade construída a partir de uma perspectiva inter e transdisciplinar; entre outros igualmente importantes que apontam para a vinculação da educação à construção da cidadania. A atuação da DEA, potencializada com a articulação entre Secretarias do Ministério do Meio Ambiente (Comissão Intersetorial em Educação Ambiental - Cisea), formalmente constituída em 2003, por meio da portaria ministerial no 269, possui como eixos: Gestão e Planejamento da Educação Ambiental – apoio à gestão e à internalização da Educação Ambiental no governo e na sociedade, por meio da apropriação do Programa Nacional de Educação Ambiental e fortalecimento de coletivos e espaços de interlocução e tomada de decisão. O denominado “enraizamento” é feito prioritariamente por meio da articulação com Cieas, Redes, Núcleos de Educação Ambiental do Ibama (NEAs), conselhos e outros espaços. Formação de Educadores Ambientais – potencialização de processos de formação de educadoras e educadores ambientais. O trabalho é executado basicamente por meio dos denominados PAPs (Pessoas que Aprendem Participando), utilizando-se a metodologia de Pesquisa-Ação-Participante, segundo a especificidade de cada contexto socioambiental (Ferraro Junior, 2005). Comunicação para Educação Ambiental – publicização da temática da sustentabilidade. A principal iniciativa é o programa de Educomunicação Socioambiental, repensando o produto e a criação dos conteúdos das mensagens veiculadas e servindo de apoio às demais iniciativas. No âmbito do MEC, a Coea tem cinco eixos, sendo os três primeiros inseridos no Programa Vamos Cuidar do Brasil com as Escolas, que visa construir um processo permanente de Educação Ambiental na escola e na comunidade. Fortalecimento da Política Nacional de Educação Ambiental – fomento às denominadas Com-Vida – Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida nas Escolas –, como meio para a participação
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ampla da comunidade escolar, favorecendo a inserção da Educação Ambiental em suas atividades e proposta pedagógica e a construção da Agenda 21 Escolar (MEC/Secad, 2004). Nesse eixo está também a realização das Conferências Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente, visando mobilizar setores escolares e levar as sugestões de prioridades ao âmbito governamental. Formação Continuada na Educação Básica – multiplicação de educadores ambientais com a formação em diferentes níveis. Projetos e Experiências de Educação Ambiental – implementação da Agenda 21 Escolar, como meio de fortalecimento de espaços coletivos de participação, definição de prioridades, atividades e inserção da Educação Ambiental no conjunto das ações curriculares ou extracurriculares. Comunicação/Eventos – divulgação das ações e apoio a eventos nacionais e internacionais. Educação Ambiental no Ensino Superior – incentivo a programas de pós-graduação com linhas em Educação Ambiental. O percurso apresentado permite compreender a história contraditória em que se move a Educação Ambiental e as iniciativas federais para torná-la uma política pública consolidada nacionalmente e inserida nas três esferas de poder do Estado em um sistema integrado. Há dúvidas quanto à efetiva mobilização e participação de bases sociais indispensáveis a um processo de democratização da sociedade (professores, alunos, militantes de movimentos sociais, integrantes de ONGs ambientalistas etc.) e quanto à estabilidade institucional dos espaços criados para além da alternância de poder partidário no governo federal. São dúvidas que se justificam, mas que se situam determinantemente em aspectos estruturais do Estado e na ausência de uma “cultura cidadã” (Jelin, 1994) em um país cuja história da cidadania é marcada por autoritarismos, paternalismos e assistencialismos (Carvalho, J. M. 2001; Demo, 1988), enquanto condicionantes da intencionalidade democrática existente. Além disso, há questionamentos pertinentes, em função do tipo de perspectiva assumida pelo governo federal, politicamente situado à esquerda, quanto à necessidade ou não de se priorizar os agentes do processo educativo ambiental, dando destaque aos grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade socioambiental (Loureiro et
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alli, 2005), procurando minimizar as relações desiguais da sociedade capitalista, tal como é adotado pelo Ibama, por exemplo. Esse é um ponto polêmico que envolve inúmeros aspectos teóricos e de estratégia política, merecendo tratamento específico em outros textos, e que fica para a reflexão do leitor. Mas como “pulsa” a Educação Ambiental por detrás dos aspectos normativos e institucionais? O que se pensa e o que se tem por finalidade? Considerações sobre as Tendências em Educação Ambiental Dois grandes blocos político-pedagógicos disputam hegemonia no campo das formulações teóricas, nas articulações internas às redes de educadores ambientais e na definição da Pnea, com vertentes internas e interfaces complexas e diferenciadas. Cabe destacar que não afirmo que somente existam estes dois blocos, pois poderia lembrar de experiências e formulações que não se enquadram estritamente e que apresentam proximidades ou não de acordo com suas orientações específicas. É o caso de educadores ambientais que adotam, por exemplo, um praticismo voltado para a resolução ou minimização de problemas ambientais específicos e localizados, sem maiores inserções no campo da formulação teórica e da análise dos efeitos sociais das ações empreendidas (comum entre voluntários de ONGs e professores do Ensino Fundamental). Todavia, explicito os eixos norteadores que historicamente alcançaram destaque no cenário da Educação Ambiental brasileira pela proximidade com as discussões políticas da área, por possuírem tradição na educação ou por terem afinidade com teorias que obtiveram maior acúmulo no debate ambientalista. Feito esse esclarecimento e utilizando de sistematização feita por Lima (2005) e de elementos que indiquei em obras anteriores (Loureiro, 2004, 2004a), é possível classificar os dois blocos em suas ênfases da seguinte forma. Um denominado conservador ou comportamentalista, cujas características centrais são: - Compreensão naturalista e conservacionista da crise ambiental;
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- Educação entendida em sua dimensão individual, baseada em vivências; - Despolitização do fazer educativo ambiental, apoiando-se em pedagogias comportamentalistas; - Baixa problematização da realidade e pouca ou nenhuma ênfase em processos históricos; - Foco na redução do consumo de bens naturais, descolando essa discussão do modo de produção que a situa; - Diluição da dimensão social na natural, faltando entendimento dialético da relação sociedade-natureza (sociedade enquanto realização coletiva e objetivada de nossa espécie, ou melhor, enquanto realização e exigência para a nossa existência); - Leitura das relações sociais a partir de analogias e transposição de categorias definidas por determinada compreensão das relações ecológicas; - Responsabilização pela degradação posta em um ser humano genérico, fora da história, descontextualizado social e politicamente. O outro, chamado de crítico ou emancipatório, cujas características mais comuns são: - Busca da realização da autonomia e liberdade humanas em sociedade, redefinindo o modo como nos relacionamos com os entes de nossa espécie, com as demais espécies e com o planeta; - Politização e publicização da problemática ambiental em sua complexidade; - Convicção de que a participação social e o exercício da cidadania são práticas indissociáveis da Educação Ambiental; - Preocupação concreta em estimular o debate e o diálogo entre ciências e cultura popular, redefinindo objetos de estudo e saberes; - Indissociação no entendimento de processos como: produção e consumo; ética, tecnologia e contexto sociohistórico; interesses privados e interesses públicos; - Busca de ruptura e transformação de valores e práticas sociais contrários ao bem-estar público, à eqüidade e à solidariedade. Sinteticamente, tais diferenciações podem ser organizadas, no que
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se refere às categorias estruturantes da Educação Ambiental, da seguinte forma: EIXOS
VISÃO EMANCIPATÓRIA
VISÃO COMPORTAMENTALISTA
Quanto à condição de ser natureza
Certeza de que somos seres naturais e de que nos realizamos e redefinimos culturalmente o modo de existir na natureza pela própria dinâmica societária na história da natureza
Convicção de que houve um afastamento de nossa espécie de relações adequadas, idealmente concebidas como inerentes aos sistemas ditos naturais, sendo necessário o retorno a essa condição natural pela cópia das relações ecológicas
Quanto à condição existencial
Entendimento de que somos constituídos por mediações múltiplas, impossível de ser pensado exclusivamente em termos racionais, genéticos ou espirituais – sujeito social cujas liberdade e individualidade se definem na existência coletiva
Sujeito definido numa individualidade abstrata, numa racionalidade livre de condicionantes sociais, cuja capacidade de mudança se centra na dimensão “interior”, minimizando ou excluindo a determinação histórica
Educação como práxis e processo dialógico, crítico, problematizador e transformador das condições objetivas e subjetivas que formam a realidade
Educação como processo instrumental, comportamentalista, de adequação dos sujeitos a uma natureza vista como harmônica e como processo facilitador da inserção funcional destes em uma sociedade definida sem historicidade, como um sistema preestabelecido
Quanto ao entendimento do que é educar
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Quanto à finalidade do processo educativo ambiental
Busca por transformação social, o que engloba indivíduos, grupos e classes sociais, culturas e estruturas, como base para a construção democrática de “sociedades sustentáveis” e novos modos de se viver na natureza
Busca por mudança cultural e individual como suficiente para gerar desdobramentos sobre a sociedade e como forma de aprimorar as relações sociais, tendo como parâmetro as relações vistas como naturais, sem entrar no mérito a possibilidade histórica de construir outro sistema social, adotando geralmente uma abordagem funcionalista de sociedade e organicista de ser humano
Poderia didaticamente dizer que o bloco emancipatório apresenta maior aceitação no meio acadêmico, entre agentes vinculados ao campo da educação, movimentos sociais e a atual gestão do governo federal, ganhando concretude por meio de tais agentes sociais. O bloco comportamentalista alcança elevados níveis de representação e desenvolvimento conceitual em setores empresariais, ONGs ambientalistas, particularmente as conservacionistas, e educadores ambientais com trajetória inserida exclusivamente no âmbito das ciências naturais ou exatas. Tais blocos organizam-se, no que se refere à compreensão de mundo e sociedade, a partir da apropriação de métodos que se estruturaram em cima de categorias centrais para a perspectiva ambientalista (totalidade, complexidade, processo, fluxo, relações etc). Isto se traduz no uso da teoria de sistemas, do holismo, da fenomenologia e da dialética (basicamente hegeliana e marxista, com incursões na hermenêutica de Gadamer e em variações dialógicas como a teoria da complexidade) .
Sobre as relações entre dialética e a hermenêutica supracitada, ler Almeida (2002). Para o entendimento das formulações do autor mencionado, ler Gadamer (2003). No âmbito da educação formal, começa a aparecer nos debates acadêSinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.1 nº2 | p.p.216-216 44-83 | setembro > dezembro 2006
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Em função da necessidade de recorte e atendimento aos objetivos propostos, selecionei aqueles métodos que geram maior confusão no entendimento e usos diferenciados por ambos os blocos: a teoria de sistemas (mais aplicável ao bloco comportamentalista, com incursões respeitáveis no bloco emancipatório) e a dialética (associada exclusivamente ao campo emancipatório). Há aspectos similares existentes e, sem dúvida, a teoria de sistemas, reconhecida a partir dos anos de 1950, por ser oriunda das ciências exatas e naturais, permitiu que estas quebrassem sua tradição objetivista e linear. Isso abriu novos diálogos com a filosofia e as ciências sociais, mais permeáveis a compreensões relacionais e que historicamente foram influenciadas pela dialética, método ou filosofia milenar que afirma princípios como: contradição, unidade de contraditórios, superação, totalidade (princípio da interrelação), transformação (princípio do movimento universal), historicidade, entre outros (Bornheim, 1977; Foulquié, 1978; Konder, 1997; Lefebvre, 1975). Há três pontos em comum que merecem destaque (Cirne-Lima, 2003; Cirne-Lima e Rohden, 2003): 1) partem do pressuposto de que a realidade envolve movimento ou é o próprio movimento. Como diria Engels, “vida é movimento. O estático é a não vida” (Marx e Engels, 1986), retomando uma máxima de Heráclito: o sentido do universo é a mudança. Na abordagem sistêmica, os denominados holons (partes que são em si totalidades) emergem a partir das interações espontâneas de outros holons. Na abordagem dialética, a síntese emerge da oposição, interpolação e complementaridade entre tese e antítese, que se combinam em pares múltiplos, dependendo do recorte feito pelo pensamento, em que cada pólo é uma totalidade inserida em outras totalidades. Portanto, em ambas não há um todo e suas partes, mas todos-partes em movimento. micos reflexões sob abordagens pós-críticas e pós-estruturalistas. Contudo, além de serem em número reduzido, apresentam algumas dificuldades teóricas de aceitação, uma vez que trabalham com categorias que são a negação de categorias mais aceitas como: totalidade, historicidade e estruturas (Loureiro, 2006a).
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2) compartilham a idéia de que as entidades pertencentes a níveis superiores (mais complexas em termos organizacionais) simultaneamente incluem e transcendem as entidades de níveis inferiores. Na abordagem sistêmica, os holons mais elevados superam os subholons, incluindo-os e transcendendo-os. Na abordagem dialética, a síntese supera a tese e a antítese, incluindo-as e transcendendo-as. Assim, o infinito corresponde ao processo dialético. Este não é uma realidade transcendente ao finito, mas a contínua superação dialética da finitude. 3) na dialética, cada estágio da sociedade atinge suas limitações, as quais podem iniciar o processo de auto-superação. As limitações criam “contradições insolúveis” ou antagonismos estruturais que podem caminhar para a superação, passando para um grau mais complexo de organização. Essa nova ordem, contudo, igualmente possui suas contradições, que geram perturbações e possibilidades de superação e assim sucessivamente (Marx, 2004). A abordagem sistêmica se caracteriza pelo reconhecimento de que estruturas ou sistemas são uma característica do universo. Uma vez constituído, o holon procura manter sua identidade, por meio: da preservação de suas partes e suas relações (organização); das relações com outros holons do mesmo nível, dando origem a novos holons em um nível superior (emergência do complexo); da tendência em adaptar-se às relações (adaptação ao ambiente); e da decomposição quando fracassa na preservação de suas partes. No entanto, há um elemento distintivo, já presente de certa forma no terceiro item acima elencado, que impede uma simples justaposição entre teoria de sistemas e dialética . Na dialética, existe a compreensão de que os processos sociohistóricos, próprios do Homo sapiens, se vinculam ao todo (natureza), definindo-o em suas particularidades. É a conhecida relação universal-singular-particular (Lefebvre, 1975). Assim, as relações sociais se associam às
Mais detalhes sobre as implicações pedagógicas e políticas de ambos os métodos serão tratadas adiante, já pensando em termos específicos para a Educação Ambiental.
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relações ecológicas não por analogia ou por uma leitura transposta unidirecionalmente, como acaba ocorrendo em leituras derivadas da teoria de sistemas. Como lembra Demo (2000), as metodologias sistêmico-funcionalistas, amplamente utilizadas por educadores ambientais que possuem uma visão organicista de mundo, ficam presas à circularidade dinâmica e sua forma, a princípios universais, sendo, por isso, comum as analogias genéricas entre sistemas distintos, secundarizando as especificidades no estabelecimento de análises e considerações sintéticas. Isso se observa, por exemplo, quando se compara equivocadamente a dinâmica de reprodução celular, que é uma exigência da manutenção da vida biológica, com o processo de produção em uma unidade industrial, que é intrínseco a determinada configuração social na história e não uma exigência de todo modelo societário. Além disso, nas teorias sistêmicas as hierarquias não constituem uma hierarquia em sentido tradicional, em que as relações de poder são determinantes. Ao contrário, na dialética a “não-verticalização estática” é reconhecida como premissa da natureza, mas entende-se que as relações sociais se configuram estruturalmente em determinada organização social, estabelecendo sim hierarquias de poder associadas à historicidade dos processos e fenômenos econômicos e políticos no todo social (Quijano, 2005). Há, portanto, condicionantes sociais que precisam ser considerados nas proposições. As similaridades e a sutileza filosófica das discordâncias explicam parcialmente a busca de interlocuções e diálogos, por vezes proveitosos, por vezes equivocados. Para exemplificar, no campo do “diálogo profícuo” lembro que há autores de reconhecido e notório saber que procuraram estabelecer novas sínteses entre dialética e teoria de sistemas, dos quais se destacam Edgard Morin, um dos autores de maior influência na Educação Ambiental brasileira (Piva, 2005). No que se refere às apropriações problemáticas de categorias conceituais de pensamentos contrários no modo de entender o mundo e as finalidades da educação, é possível identificar, não raramente, educadores ambientais que realizam suas ações no campo do pragmatismo ambientalista norte-americano e sob abordagens ecológicas funcionalistas, utilizando-se discursivamente de autores críticos como Enrique
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Leff e Paulo Freire, sem dialetizar e discernir o que há de contribuição possível e recíproca e o que é incongruente. Um caso “exemplar” é a aproximação pouco criteriosa entre Paulo Freire e Fritjof Capra. Isso, até um certo ponto, é cabível pelo questionamento comum à sociedade atual e aos valores culturais dominantes, em busca de “sociedades sustentáveis”, porém, é feita sem o devido cuidado em se entender criticamente onde se aproximam, onde se distanciam e onde estão suas incompatibilidades. O primeiro supramencionado é um pensador identificado com o marxismo, o existencialismo e o humanismo cristão, que privilegia a educação como processo dialógico, coletivo, político e emancipatório, que se dá pela ação dos agentes sociais a partir da problematização da realidade e do conhecimento de sua historicidade (práxis). Tem por princípio que o ser humano se realiza enquanto ser natural transformando, interpretando o mundo e criando cultura, e que para concretizarmos valores como liberdade e cooperação é preciso a superação das relações sociais que caracterizam o capitalismo, processo que ao ser viabilizado igualmente requalifica nossa inserção na natureza (Freire, 1979, 1988, 1992, 1996). Logo, para este não há valores absolutos, essência boa ou ruim e nem relações naturais perfeitas que devem ser copiadas pela sociedade, mas sim a constituição histórica do ser humano no próprio movimento da vida. Fritjof Capra é um autor que também se coloca no campo democrático e crítico à sociedade, manifestando simpatia por posições freireanas, mas que tem por base de suas formulações concepções funcionalistas e biologizantes de sociedade (Capra, 1982, 1988, 1993), permanecendo, apesar de alguns avanços importantes mais recentemente (Capra, 2002, 2003) nos limites da teoria de sistemas e variações em seu interior (Layrargues, 2003). A conseqüência disso é que suas teorizações se mostram relativamente inovadoras no campo epistemológico das ciências naturais, dando contribuições ao diálogo entre ciências, mas pouco contribuem com um projeto transformador no campo político e a um entendimento historicizado da sociedade na natureza e de como se operam mudanças nesta. Portanto, é um autor que, na totalidade social, contribui com mudanças na parte (paradigma científico), mas que minimiza ou ig-
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nora a ação dos agentes sociais e as mediações culturais que nos definem como seres da natureza, não analisando adequadamente o potencial que temos de estabelecer ou não movimentos que nos conduzam a rupturas sistêmicas, estruturais. Reconhece a existência dos processos culturais pelos quais interpretamos a natureza, mas tende a vê-los sob o prisma biológico, secundarizando a capacidade de trabalho e, neste, a constituição social e histórica da linguagem . Acaba, assim, fornecendo subsídios conceituais para que se façam mudanças no sistema e não do sistema, como se fosse possível compatibilizar capitalismo com sustentabilidade democrática e planetária ou até mesmo transformá-lo abstratamente pela “boa vontade” ou por mudanças focalizadas no indivíduo. Estabelece, então, um grave dualismo entre as esferas do pensar e da ética e as relações sociais, inclusive as de produção, historicamente definidas. Além disso, este pensador, em sua polêmica proposta de alfabetização ecológica, dentre outros problemas, retoma princípios de três tradições filosóficas cujas implicações pedagógicas apresentam alguns limites sérios à luz de um referencial que parta das pedagogias críticas e libertadoras, nas quais, dentre possíveis menções a outros autores, são centrais as obras de Henry Giroux (2003, 1999) e Paulo Freire (op. cit.): (1) do pragmatismo norte-americano – priorizar determinadas relações sociais vistas idealmente como harmônicas em detrimento de outras, enfatizando na aprendizagem a dimensão positiva da realidade, sem a sua problematização complexa, como forma de buscar soluções aos problemas que passam a ser finalidades em si e não meios para a conscientização e a ação cidadã e política, faltando a articulação prática entre a dimensão individual e a coletiva (Layrargues, 1999). (2) do escolanovismo – se apoiar na pedagogia de projetos como algo que, por si, pode levar à interdisciplinaridade e a um entendimento concreto da realidade, e focalizar a ação pedagógica num indivíduo pensado como estando descolado da totalidade
Linguagem definida como capacidade de nossa espécie de criar símbolos de representação e de conferir sentido à realidade, permitindo a comunicação (verbal, icônica, corporal etc.) nas diferentes relações sociais.
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social. Isso implica ignorar como os projetos e os indivíduos se definem no contexto escolar e da estrutura curricular formal e como estas dimensões se institucionalizam na sociedade10. (3) do comportamentalismo – conceber ser possível a mudança de comportamento como a propulsora da mudança cultural e da sociedade, sem considerar as mediações sociais e as condicionantes estruturais que situam nossas escolhas e atitudes e que, em última instância, situam os próprios padrões comportamentais. Isso pode resultar em se agir no plano do comportamento, reproduzindo padrões sociais normatizados e vistos como universalmente válidos, sem discutir o modo de constituição desses próprios padrões. Ao partir do princípio de que fazer o movimento saudável de diálogo entre pensadores é importante para a Educação Ambiental, isso só pode ser feito sabendo-se utilizar categorias conceituais dos autores no sentido de superar seus limites e buscar novas sínteses, sem se produzir uma “colcha-de-retalhos” aparentemente interessante, mas conceitualmente frágil e epistemologicamente inconsistente. Finalizando essa questão, cabe transcrever um trecho de Carvalho (2004: 167), que resume bem o exposto como caso ilustrativo de incongruências teóricas observadas na Educação Ambiental: Seguindo a tradição freireana e a concepção de aprendizagem aí inscrita, poderíamos dizer que a pretensão de uma formação que também se poderia chamar alfabetização ambiental estaria vinculada a uma leitura do mundo que não silenciasse sobre a natureza e o ambiente e nem renunciasse a dimensão cultural que constitui o acesso humano à natureza e ao ambiente. Uma educação ambiental que assumisse essa condição de prática cultural poderia reivindicar, inspirada em 10
Apesar da presença do escolanovismo e do posicionamento pragmático de John Dewey no pensamento de Paulo Freire, este soube superá-los criticamente ao incorporar e reler o mundo a partir da dialética marxiana, método que marca profundamente sua concepção de educação e sua prática como educador.
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Paulo Freire, sua ação como um acréscimo de sentido que o sujeito humano faz ao mundo que não criou, mas que recria continuamente, no sentido material e simbólico. E isso é bastante diferente da pretensão da chamada alfabetização ecológica proposta por Capra que supõe, ao contrário da visão freireana, uma redução do mundo da cultura ao modelo biológico da ecologia, como modelo de interpretação para o mundo humano. Considerações ilustrativas feitas, é oportuno problematizar um pouco mais as formulações sistêmicas clássicas e a matriz holística normalmente a esta associada, fazendo o contraponto com a dialética emancipatória. Em decorrência das similaridades apresentadas anteriormente, não é incomum se falar dentro do jargão ambientalista de visão sistêmica em sentido amplo, incluindo aí perspectivas relacionais dos mais diferentes tipos e que estão presentes nos dois blocos, posto que um sistema pode ser definido como um conjunto de partes coordenadas entre si, cujas leis ordenam os fenômenos que são vistos prioritariamente como fluxos e processos, ou no dizer de Bertalanffy (1977), como um conjunto de unidades em inter-relações mútuas. No entanto, essa generalidade conceitual utilizada por praticamente todos os educadores ambientais, sem os devidos cuidados, pode acarretar em algumas complicações no entendimento do que fundamenta a Educação Ambiental. Cabe destacar que em ciência um conceito quando tem um grau de abrangência muito grande e baixa capacidade heurística perde credibilidade e validade explicativa. Apresento alguns desses aspectos problemáticos a serem considerados. Na teoria de sistemas há a leitura direta dos fenômenos sociais fundamentada em modelos matriciais de retroação alimentados por elos de feedback, secundarizando o fato de que o ambiente é também produto do trabalho humano. Uma coisa é alimentação e retroalimentação, outra bem distinta é criação pela ação mediada culturalmente. Formular um pensamento sistêmico em cima de fluxos energéticos e materiais enfatiza adequadamente os organismos vivos, mas dissolve a existência e a cultura.
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Para Floriani e Knechtel (2003), a teoria de sistemas contribui efetivamente para a emergência de paradigmas que procuram relacionar sistemas sociais e sistemas ecológicos, em construções interdisciplinares baseadas no conceito de autopoiese11. Contudo, como destacam os referidos autores, nesse movimento recaem na perigosa certeza de se ter alcançado o “método unificador” das ciências e saberes, sintetizando em matrizes sistêmicas os processos materiais e mentais das sociedades. Segundo Morin (2003), apesar de Bertalanffy (op. cit.) proclamar a possibilidade do conflito em um sistema, não desenvolve essa importante noção sob uma perspectiva histórica. Como resultado, o sistema vira sinônimo de harmonia, funcionalidade, síntese superior que comanda as partes; algo incapaz de ser pensado em sua totalidade necessariamente dissonante e antagônica, sem a qual não existem organização e transformação. Essa simplificação se dá prioritariamente por duas premissas não necessariamente consonantes. Uma primeira em que o conflito e o antagonismo são reduzidos ao sentido de diversidade natural, previsíveis na dinâmica sistêmica, e não entendidos como constituintes das estruturas históricas e sociais que formam a realidade complexa. E outra, em que o conflito é visto como uma fragilidade, uma incorreção a ser superada quando o ser humano atingir seu estado integral, ou seja, harmônico, numa concepção similar ao positivismo comteano e ao evolucionismo spenceriano. Um aspecto rapidamente mencionado no caso ilustrativo comentado refere-se a uma possibilidade de raciocínio lógico-formal. Um sistema dinâmico procura sempre se recompor de modo a funcionar em equilíbrio, e isso é válido para sistemas ecológicos ou sociais. Caso desconsidere-se, nesse ponto em particular, a especificidade histórica humana, pode-se recair no funcionalismo, em que as mudanças se dão para o bom funcionamento do sistema (em termos de sociedade contemporânea, do capitalismo). A conclu11
Poiésis. vem do grego e significa literalmente produção ou criação, constituindo-se, portanto, em uma dimensão da práxis (sem se esgotar nesta) e não algo externo a esta (Marx, 2004 e 2002), como se chega a falar entre educadores ambientais que estabelecem a dicotomia social-biológico.
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são é inevitável: o que pode ser feito com a sociedade é torná-la ecologicamente sustentável e não superá-la. E isso acarreta uma visão sistêmica politicamente conservadora e reformista, em que a educação aí se inscreve para cumprir a função social de fazer as pessoas se adaptarem e aceitarem determinado modo de organização social como se este fosse a-histórico ou “natural” (algo que é assim porque é). Na Educação Ambiental de cunho conservacionista, as formulações sistêmicas geralmente estão associadas a premissas teóricas da chamada visão holística, enquanto modo de pensar a totalidade. Isso tem que ser ressaltado, pois não é raro seu uso como uma “idéia-força” imprecisa para denotar a preocupação com o todo. Suas formulações mais comuns no país, influenciadas por autores do Movimento Holístico Internacional (Crema, 1989 e Weil, 1990, 1994), apresentam igualmente alguns problemas que merecem atenção e reflexão crítica. Os holísticos, partidários da teoria de sistemas ou não, tendem a reificar, deificar ou sacralizar a natureza, retirando desta a dimensão humana em seu processo contínuo de transformação. Buscam, dessa forma, a (re)ligação cósmica, capaz de encontrar uma autenticidade humana latente, como se esta tivesse sido perdida em algum tempo passado, numa atitude dogmática, de cunho religioso e de distanciamento entre o natural e o social. Além disso, ao colocarem a harmonização com a natureza enquanto resultante de um movimento espiritual, de transcendência pessoal, focalizam a educação como processo individual, vivencial e comportamental, sem mediações sociais ou maiores preocupações com as dimensões sociopolíticas, posto que a condição para mudar o cenário contemporâneo passa a se situar nas pessoas e não no modo como socialmente nos organizamos, dissociando indivíduo-sociedade. Os holistas, sistêmicos funcionalistas e organicistas minimizam os conflitos entre grupos e classes sociais em nome de uma cooperação e de um amor abstrato que pode, hipoteticamente, nos levar à harmonia com a natureza, como se existisse um estado absoluto e atemporal. Tendem, portanto, a desconsiderar o modo como tais valores se definem em sociedade e o movimento objetivo da realidade no qual se situam a ética e as idéias. Isso dificulta a construção de
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um “amor concreto” e de uma solidariedade que sejam decorrentes da explicitação das contradições e estabelecimento do diálogo, considerando os diferentes “lugares” ocupados pelos agentes sociais numa sociedade historicamente definida. A Educação Ambiental comportamentalista, sob bases holísticas e da teoria de sistemas, se apresenta como caminho para a superação do conflito em nome da harmonia e do consenso, desconhecendo a dinâmica contraditória das sociedades e a base conflitiva e antagônica de uma sociedade de classes. Cria procedimentos de (re)ligação com a natureza a partir de processos individualizados, psicológicos e místicos. Isso acarreta a compreensão de que somos organismos essencialmente biológicos e espirituais, não dando a devida relevância ao cultural e ao econômico. O mais grave, em termos políticos e de educação enquanto prática dialógica, é que tal prática promove um deslocamento da esfera pública de discussão e construção de projetos societários alternativos para a esfera privada e pessoal (Pelizzoli, 2002). Mesmo quando partem de pedagogias construtivistas tendem a despolitizar a educação e a esvaziá-la como prática social, não apresentando necessariamente como pressuposto pedagógico a construção participativa de temas geradores e o conhecimento problematizador da realidade em que os grupos sociais se inserem. Após a análise teórica feita, reafirmo as mesmas conclusões que Petraglia (2001), no que se refere ao sentido da educação para essas amplas tradições teórico-metodológicas em que se baseiam a perspectiva ambientalista. O pensamento complexo e a tradição dialética, em sua formulação pedagógica crítica e libertária, enfatizam a educação enquanto processo permanente, cotidiano e coletivo pelo qual agimos e refletimos transformando a realidade de vida. Está focada na pedagogia do conflito, no princípio da incerteza, como forma de se estabelecer movimentos emancipatórios e políticos de transformação social. A abordagem sistêmica funcionalista e holística está centrada no indivíduo, no alcançar a condição de ser humano harmônico. Focaliza o ato educativo enquanto estímulo ao potencial transcendental que há em cada um de nós descolado da imanência, com uma tendência a se aceitar a ordem social estabelecida como condição dada. O importante para esta vertente não é pensar processos educativos que associem mudança pessoal à mudança socie-
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tária como pólos indissociáveis na requalificação de nossa inserção na natureza e na dialetização entre subjetividade-objetividade; mas sim pensar a transcendência integradora, a transformação da pessoa pela ampliação da consciência. Em resumo, concebo que a adoção de uma perspectiva crítica e emancipatória pelos agentes de governo promotores da atual política de Educação Ambiental não é casual, denotando a coerência teórico-prática dos mesmos. Tal perspectiva avança em relação à comportamentalista no tratamento político da Educação Ambiental e suas implicações pedagógicas e sociais, considerando a totalidade natural, o que me parece crucial em um momento de busca de consolidação de institucionalidades e de um sistema público e compartilhado de Educação Ambiental. Dizer isso não significa menosprezar a outra abordagem mencionada, principalmente no detalhamento das relações ecológicas e na proposição de atividades de alta relevância para processos de autoconhecimento e de uma postura mais “humilde” na natureza. Mas significa se posicionar em favor de uma perspectiva que se mostra consistente diante dos desafios inerentes à construção de uma política pública no Estado brasileiro, sabendo historicizar os problemas ambientais sem recair em qualquer tipo de dualismo ou cisão entre relações ecológicas e relações sociais, indivíduo e sociedade. Após essa rápida análise, discorro sobre alguns conceitos que permitem ampliar a compreensão da Educação Ambiental sob uma perspectiva emancipatória e dialeticamente unitária da natureza, destacando sua pertinência para o processo educativo. Por uma visão emancipatória de Educação Ambiental O pensamento moderno dominante, que influencia algumas propostas pedagógicas e a vertente comportamentalista em Educação Ambiental, é marcado por uma visão essencialista/transcendental, oriunda da Grécia Antiga. Basicamente, o que se afirma como verdade é o princípio segundo o qual nos desdobramos na história por meio de determinações essenciais. Com isso, a ação prática não tem sentido condicionante e nem a realidade histórica pode ser alterada pela atividade de nossa espécie (Lessa, 2001). A con-
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seqüência dessa concepção ontológica do ser é: o fundamento da história deixa de ser ela própria, mas sim algo que a ela transcende. Dentre as conseqüências desse aspecto, ter um fim determinado por uma essência a-histórica permite supor uma teleologia na natureza, uma finalidade prévia e atemporal, o que fere, por exemplo, a concepção desta como auto-organização (Maturana e Varela, 2001), cujas leis se definem em seu próprio movimento e relações (Morin, 2003, 2002, 1999, 1991). A reprodução acrítica desse tipo de formulação tem uma conseqüência direta na Educação Ambiental. Com extrema simplificação de como nos constituímos, não raramente nos discursos é imputado ao Homo sapiens uma essência ruim, egoísta e destrutiva. Isso tem como clara implicação se poder dizer que o limite máximo de nossa existência genérica está na atual formação social, pois é a expressão mais acabada de uma essência imutável – é o fim da história, o que se busca como exeqüível é minimizar os efeitos da ação na natureza por mecanismos estritamente tecnológicos, normativos ou espirituais (comportamentais). No que se refere à educação, tal entendimento essencialista atribui a esta um grau de responsabilidade no processo de formação de valores e comportamentos que só é cabível se a imaginarmos ou como algo cuja dinâmica independa da sociedade ou como sendo a reprodução direta e fiel desta, como no pensamento escolanovista (Gadotti, 2004, 2000, 1997; Saviani, 2003, 1997). Torna-se o meio para a “salvação da espécie”, deixando de ser compreendida de modo dialético no conjunto das práticas sociais pelas quais somos formados e suas contradições específicas. A produção do novo é uma das características mais marcantes do trabalho realizado pelo Homo sapiens, pois sempre que se realiza estabelecemos o movimento (dialético) permanência-superação. Ao transformar na natureza, o indivíduo transforma a si mesmo e à sociedade. Como nos diz Lessa (2001: 95): Todo processo de objetivação cria, necessariamente, uma nova situação sócio-histórica, de tal modo que os indivíduos são forçados a novas respostas que devem dar conta da satisfação das novas necessidades a partir das novas possibilidades. Por
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isso, a história humana jamais se repete: a reprodução social é sempre e necessariamente a produção do novo. No escopo dessa orientação paradigmática, é possível afirmar que o caráter da atividade de nossa espécie possui um sentido eminentemente prático, posto que a atividade teórica per se, que se opera apenas no pensamento e que propicia conhecimentos imprescindíveis à transformação da realidade, não é em si mesma uma forma de práxis. Para que as idéias ganhem materialidade são necessários agentes sociais que as ponham em ação como uma força prática (Marx e Engels, 2001). E é nesse movimento dinâmico que a atividade redefine a idéia que, por sua vez, permite a constituição de novos valores e significados que interferem na prática. Ou seja, aí se estabelece a vinculação complexa entre linguagem e trabalho pela práxis. A primazia ontológica do trabalho não apresenta caráter absoluto e linear. Mas refere-se ao reconhecimento dessa categoria como sendo a que permite a transformação do ente social, pelo simples fato de ser o nosso próprio metabolismo na natureza, possibilitando a definição das categorias já estritamente sociais (sociabilidade, divisão do trabalho e linguagem). Como afirma Antunes (1999: 141), “as formas mais avançadas da práxis social encontram no ato laborativo sua base originária. Por mais complexas, diferenciadas e distanciadas, elas se constituem em prolongamento e avanço e não em uma esfera inteiramente autônoma e desvinculada das posições teleológicas primárias”. Este prolongamento complexificado e não meramente derivativo do trabalho permite estabelecermos relações dialéticas sem recair em dualismo ao pensarmos o “mundo da economia”, o “mundo da linguagem” ou o “mundo das relações ecológicas”. Em síntese, naquilo que se refere à atividade educativa ambiental, quando se procura mudar a realidade em busca de novos patamares societários na natureza não basta a ação comunicativa, a razoabilidade argumentativa, a transmissão de conhecimentos e conteúdos ecológicos, a alteridade ou a transcendência espiritual. O diálogo deve ser construído na prática pedagógica vinculada à compreensão crítica dos interesses, necessidades e conflitos estabelecidos em dada organização social por agentes concretos, no caso, uma organização capitalista, portanto, desigual no uso e apropriação da base vital e na distribuição do que é socialmente criado.
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A concepção dialética de nossa espécie, e não meramente interacionista, evita reduzir a pessoa a um reflexo de determinações econômicas e, igualmente, evita o reducionismo inverso: submeter a existência ao biológico. Desse modo, o senso ético, a responsabilidade diante de si, do outro e do mundo, as escolhas relativas às dimensões individuais se situam em contextos complexos do movimento objetividade-subjetividade (Ragazzini, 2005). Em resumo, somos uma espécie da natureza que se constitui enquanto tal e aos indivíduos que a ela pertencem pelo constante metabolismo com o exterior, o que nos transforma em “seres naturais ativos”, atividade vital que garante a existência individual e da sociedade (Marx e Engels, 2002; Foster, 2005). Ao mesmo tempo, essa atividade vital do “eu” na natureza é permeada pelas relações que o indivíduo estabelece com outras pessoas, subjetivando-as. Nesse processo, cada indivíduo é a síntese singular das relações sociais (Labica, 1990). A subjetivação na atualidade impregna e é impregnada pela cultura da “sociedade do espetáculo” (Debord, 1997)12, que enfatiza o autocentramento, num enfoque atomístico que reforça as relações utilitárias a serviço do mercado, a coisificação da natureza. Essa racionalidade que preside as relações sociais, por meio da reificação do presente, não só reforça a perspectiva de manutenção do ordenamento capitalista, como investe na destruição de vínculos que ocasionem a humanização dos sujeitos. Ao fazê-lo, busca um tipo de formatação das subjetividades numa perspectiva de imediaticidade, na qual o efêmero e o fragmentário, a produção de curto prazo e a insensibilidade perante o outro são componentes fundantes. (Silveira, 2002: 109).
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Para Debord (1997), no que denominou por “Sociedade do Espetáculo”, na atual fase do capitalismo, em seu uso da imagem e do simbólico, a mercadoria ocupa totalmente a vida social, retornando fragmentadamente ao indivíduo fragmentado. A origem da “espetacularização” é a perda da unidade do mundo. A sua linguagem diz reunir os separados, mas os reúne como separados. É a cisão do mundo em realidade e imagem.
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Como conclusão, sob a cultura dominante, o fetichismo da individualidade feito em nome da liberdade individual e o discurso da “reconexão com a natureza” por meios transcendentais, sem considerar a trajetória de cada um e o lugar a partir do qual nos situamos e atuamos no mundo, acaba sendo a própria negação da liberdade. Qual é o desafio da Educação Ambiental diante de tal panorama? Para Tertulian (2004: 7), “se a essência do homem se define com a totalidade das relações sociais, então a realização e a libertação do gênero humano está indissociavelmente ligado (sic) à transformação do mundo”. É por meio do conhecimento das especificidades sociais em suas interfaces desenhadas na história (classes, grupos sociais, etnia, gênero, família, comunidade, região, Estado, relações de apropriação e produção etc.) que é possível entender o sentido de adequação ou não das relações sociais na natureza. Quando se dilui o particular de uma espécie, no caso a nossa, numa natureza abstrata, hipostasiada do movimento concreto da vida, recai-se em um tipo de formulação simplificada e reducionista. Ignorar que somos seres sociais-biológicos, formados por múltiplas mediações, é desprezar o caráter histórico do que fazemos, facilitando a culpabilização da humanidade como um todo homogêneo e idealmente concebido que gera frustração e impotência diante da ordem estabelecida. Logo, chego a uma máxima da pedagogia crítica e libertária de Paulo Freire, presente no Pedagogia do oprimido (Freire, 1988): somos seres inacabados – este educador entendeu que tornamo-nos humanos; não nascemos prontos, nos formamos na história. Com efeito, se cada indivíduo humano sintetiza relações sociais, isto significa que ele só se constitui como homem por meio das relações que estabelece com os outros homens, isto é, só pode tornar-se homem se incorporar em sua própria subjetividade formas de comportamento e idéias criadas pelas gerações anteriores e retrabalhadas por ele e por aqueles que com ele convivem. (Saviani, in: Duarte, 2004: 46). Eis o desafio para todos os educadores ambientais e, simultaneamente, a grande contribuição da Educação Ambiental ao proces-
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so educativo: revolucionar agentes sociais em suas subjetividades e práticas nas estruturas sociais-naturais existentes. Em termos concretos, isso significa atuar criticamente na superação das relações sociais vigentes, na conformação de uma ética que possa se afirmar como “ecológica” e na objetivação de um patamar societário que seja a expressão da ruptura com os padrões dominadores e de expropriação que caracterizam a contemporaneidade. Considerações Finais Como esforço de síntese das implicações políticas e institucionais que resultam da adoção de uma Educação Ambiental de matriz emancipatória no Brasil, apresento algumas considerações últimas que servem para balizar a reflexão sobre o tema proposto no artigo. Pelo exposto, fica evidente que não é aceitável se pensar em processos educativos ambientais ignorando a concretude dos agentes sociais envolvidos (seus interesses, necessidades, especificidades culturais e de classe, conflitos etc.) e os canais institucionais junto ao Estado para garantir democraticamente sua universalização e permanência nos programas educativos, sejam estes formais ou não. Assim, sob a perspectiva teórica assumida, não cabe a promoção de programas e projetos de Educação Ambiental com leituras simplistas das relações sociais feitas a partir das relações ecológicas e nem ações que abstraiam suas propostas da complexidade social em que se inserem, descolando indivíduos de sociedade e comportamento da produção social da existência. Em um momento histórico em que a confusão entre o público e o privado se faz presente, reforçar esse aspecto é crucial para a conformação de espaços públicos nos quais as parcerias e cooperações com setores privados fiquem subordinadas aos interesses coletivos e às determinações legais do Estado, respeitando-se as diretrizes presentes na Pnea e no ProNEA. Uma política pública em Educação Ambiental exige a transparência e o fortalecimento do Estado, sob controle social, para se garantir: (1) reversão dos processos privatistas-mercantis da educação; (2) mobilização e organização popular para o atendimento a necessidades materiais básicas e à justiça distributiva; e (3) problematização historicizada da realidade socioam-
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biental e busca de alternativas econômicas com os grupos sociais, particularmente aqueles em situação de maior vulnerabilidade socioambiental, garantindo a devida autonomia aos mesmos (Loureiro et al, 2005). A consolidação de um sistema de Educação Ambiental, integrando Estado e sociedade civil, pode potencializar a proliferação de iniciativas com parâmetros de análise das conseqüências socioambientais das mesmas, exercitando, assim, a responsabilidade cidadã, a otimização de investimentos e a definição de prioridades vinculadas à sustentabilidade democrática. Outro aspecto a se destacar, como inerente a uma perspectiva emancipatória de Educação Ambiental, é a necessidade de se conhecer as bases epistemológicas das propostas pedagógicas e suas implicações educacionais. Pelas características culturais vigentes, que reforçam a racionalidade instrumental e a fragmentação de saberes, há uma forte tendência em se desconsiderar a história das idéias pedagógicas e a funcionalidade da educação em uma sociedade estruturalmente desigual. Isso é tensionado pelas proposições críticas, posto que situam as iniciativas no escopo de políticas educacionais específicas e contextualizam as práticas, evitando que sejam, paradoxalmente, fator de reprodução social do que foi historicamente posto em questão ou negado pelo ambientalismo. Por fim, a adoção de tal perspectiva teórico-metodológica enfatiza processos de consolidação da Educação Ambiental como política pública, principalmente no que se refere a: • garantir a transversalização do ambiental em todas as esferas do Estado. • reivindicar estrutura material nos sistemas de Meio Ambiente e de Educação, como condição elementar para a implementação de programas de alcance nacional. • fortalecer canais de diálogo e acompanhamento do Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental e seu Comitê Assessor. • priorizar e consolidar programas que articulem a educação formal com a não-formal e a informal, num processo educativo popular e permanente. • aproximar governos de redes e movimentos coletivos de edu-
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cadores ambientais e outras frentes democráticas que buscam redefinir o modelo de Estado e de sociedade. • favorecer a articulação e o diálogo dos educadores ambientais com os agentes sociais que classicamente debatem e influenciam a Política Nacional de Educação e a Política Nacional de Meio Ambiente no Brasil. •••
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EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: PARA ALÉM DAS METAS DO MILÊNIO Jorge Teles
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Este artigo discute a Educação Básica pelo ângulo dos esforços de políticas públicas implementados no Brasil visando aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Apesar de o país apresentar desempenho favorável dos indicadores escolhidos para mensurar a meta do milênio referente à educação, o Governo brasileiro ampliou o escopo da análise para abarcar a realidade enfrentada no país, no intuito de atingir plenamente o proposto na Declaração do Milênio das Nações Unidas. Nesse contexto, destacam-se o impacto provocado pelas mudanças no financiamento do ensino, em um cenário federativo, e a relação direta entre educação e mundo do trabalho explicitada na educação profissional. Percebe-se, pela análise das políticas públicas destacadas, que o país ainda tem um caminho longo para percorrer, na busca por educação de qualidade para todos, em um contexto de desenvolvimento econômico com maior eqüidade. This paper discusses basic education from the perspective of Brazilian public policy efforts that aim to the Millennium Objectives and Goals. Despite of the fact that Brazil presents a favorable development of the education indicators chosen to gauge the Millennium Goals and Objectives, the Brazilian Government broadened the scope of analysis to encompass the country’s reality, to fulfill the purposes of the United Nations Millennium Declaration. In this context, the impact of education financing changes and the straightforward relation between education and labor, explicit in professional education, are highlighted. The analysis of these public policies makes clear that Brazil still has a long way to endure in its quest for an all-encompassing, good-quality education, in the context of an equitable economic development.
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1. Introdução A Declaração do Milênio das Nações Unidas é um marco para uma visão mais coordenada em nível mundial, voltada para o desenvolvimento dos países de modo cooperativo no século XXI. Ela define questões centrais a serem enfrentadas, que foram agrupadas em oito objetivos, denominados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODMs. Os objetivos escolhidos foram: i) erradicar a extrema pobreza e a fome; ii) atingir ensino básico universal; iii) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; iv) reduzir a mortalidade na infância; v) melhorar a saúde materna; vi) combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças; vii) garantir a sustentabilidade ambiental; e, viii) estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. Estes organizam as proposições da Declaração e as traduzem em metas quantificáveis, estabelecendo uma data para o alcance das mesmas: 2015. Para cada meta, buscou-se construir indicadores que a refletissem e fossem passíveis de cálculo pelos diversos países. Em consonância com a Declaração do Milênio, o governo brasileiro realizou um diagnóstico da situação do país perante as metas do milênio e um levantamento das políticas públicas federais que contribuíam para o alcance dessas metas. Os resultados obtidos foram publicados no primeiro Relatório Nacional de Acompanhamento, em 2004 (Brasil, 2004b). Este destacou que a prioridade dada pelo governo para o objetivo de reduzir pela metade a pobreza e a extrema pobreza se materializava no “Fome Zero” , em especial no Programa Bolsa Família – cuja estratégia de expansão privilegiava
O Fome Zero é uma estratégia de política pública que objetiva a erradicação da fome e da exclusão social, por meio da articulação de diversos atores sociais em prol de ações que visam superar a miséria e emancipar sócioeconomicamente as famílias em situação de risco. Essas ações podem ser agregadas em cinco áreas: segurança alimentar e nutricional, renda de cidadania, programas complementares estruturantes, ações emergenciais e educação cidadã. Para maiores informações, ver sítio www.mds.gov.br. O Bolsa Família é um programa de transferência de renda a famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, que associa ao recebimento do benefício financeiro o acesso a direitos sociais básicos – saúde, educação,
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as regiões metropolitanas, núcleos que concentram a população do país e onde as desigualdades são mais contrastantes. Essa opção deixa patente o reconhecimento da necessidade de adoção de modelo de desenvolvimento includente e sustentável a longo prazo para que as referidas metas sejam realmente atingidas. O Relatório em questão avalia como positivo o desempenho do Brasil quanto às metas dos ODMs, mostrando que em alguns casos a meta já fora alcançada. Todavia, aflora a questão das desigualdades no país. O cenário varia muito quando se analisam os dados por região, revelando a situação desfavorável dos estados do Norte e do Nordeste. Igualmente, quando se observam os indicadores segundo cor/raça, os negros apresentam resultados geralmente muito piores. O alvo posto para o país não é tanto alcançar as metas dos ODMs per se, mas, sim, assegurar uma distribuição de recursos e de serviços que garantam eqüidade entre os diversos segmentos da população brasileira, independente do tipo de estratificação (regional, racial, gênero etc.). Mais uma vez, o problema do Brasil é combater desigualdades. De modo geral, para atingir as metas do milênio propostas, dentro de uma abordagem de eqüidade e justiça social, as questões a serem enfrentadas podem ser estruturadas em dois eixos: i) combate às desigualdades regionais; e, ii) combate às desigualdades raciais. Ambos os eixos possuem como traço comum as disparidades de renda. O grande desafio para o país está refletido, então, no objetivo de “Erradicar a extrema pobreza e a fome”, pelo efeito cascata que o alcance deste possui sobre os demais. Cabe frisar, no contexto, a importância da questão educacional para as estratégias de combate efetivo da pobreza. Nesse sentido, podem ser ressaltados dois pontos importantes para a equalização de uma educação promotora do desenvolvimento: financiamento de um sistema educacional de qualidade para todos, considerando questões regionais e étnico-raciais, e um aspecto ligado mais diretamente à geração de trabalho e alimentação e assistência social. Este programa unificou os outros programas federais de transferência de renda existentes em 2003, que tratavam isoladamente de auxílio financeiro ou para a alimentação, ou para a freqüência à escola de crianças de 7 a 14 anos ou para comprar gás de cozinha. Para mais detalhes, ver sítio www.mds.gov.br.
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renda em um contexto de globalização e mudanças no mercado de trabalho – mais especificamente, a educação profissional. Apesar de o Brasil estar bem colocado no tocante ao objetivo referente à educação – a taxa de freqüência líquida do ensino primário passou de 78% em 1992 para 90% em 2002 –, a universalização não garante qualidade. Problemas de existência de analfabetismo entre jovens de 15 a 24 anos, incidência de analfabetismo funcional entre aqueles que completaram as primeiras quatro séries do Ensino Fundamental, taxas de evasão, abandono e de defasagem escolar consideráveis, além de expressivas desigualdades regionais, raciais e de gênero, são questões a serem enfrentadas para o caminhar rumo à universalização do Ensino Fundamental com qualidade e eqüidade. Algumas ações governamentais se destacam na contribuição para o alcance desse objetivo, tais como: a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB ; o sistema de financiamento do Ensino Fundamental; o sistema de avaliação da Educação Básica; as diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais; as ações de alfabetização e Educação de Jovens e Adultos, e a articulação entre elas; as ações para valorização e formação de professores e trabalhadores da Educação Básica; a criação de uma rede nacional de centros de pesquisa e desenvolvimento da educação; a proposta de ampliação do Ensino Fundamental para nove anos; mudanças na forma de apoio ao estudante e de repasse de recursos em alguns programas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE ; o enfrentamento explícito de questões referentes a diversidade e cidadania, principalmente no tocante a afrodescendentes e indígenas; e, por fim, mudanças institucionais dentro do Ministério da Educação, como a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – Secad, em 2004, para cuidar exatamente desse enfrentamento. Dado esse cenário, o presente artigo se debruça sobre o segundo objetivo – atingir o ensino básico universal, analisando a situação do país perante a inter-relação deste com o primeiro objetivo, o de erradicar a extrema pobreza e a fome, e dentro de um contexto de
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Para mais detalhes sobre o FNDE, ver sítio www.fnde.gov.br.
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desenvolvimento proposto pela Declaração do Milênio. Entende-se que a educação é uma peça-chave em qualquer processo de melhoria do bem-estar social e, principalmente, quando se pretende combater a pobreza e promover um país desenvolvido. Ela é reconhecida como fator crucial para o sucesso dos indivíduos e do próprio país, repercutindo em benefícios não só econômicos (como elevação da empregabilidade e da remuneração percebida), como diversos outros (saúde, cultura, cidadania etc.). Apesar de não ser suficiente por si só, é imprescindível para o alcance dos objetivos enfocados. No que tange à estrutura do presente artigo, este primeiramente trata do tema do ensino básico universal e a questão do financiamento do sistema educacional no país. Em seguida, considerando a relação entre os dois primeiros ODMs, é levantada uma discussão sobre o desafio da educação e as estratégias de educação profissional no Brasil no contexto de desenvolvimento e combate à pobreza. Por último, são apresentadas as considerações finais. 2. Ensino Básico Universal e a Questão do Financiamento do Sistema Educacional 2.1 – O Financiamento do Sistema de Ensino Fundamental A educação no Brasil está estruturada em Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior, conforme se conclui do texto da Constituição Federal de 1988, Capítulo III, Seção I. Segundo o estabelecido no art. 208 desta Carta, o Ensino Fundamental é obrigatório, sendo dever do Estado ofertá-lo de forma gratuita. No tocante ao financiamento, a Constituição estabelece que os entes da federação deverão organizar seus sistemas de ensino em regime de colaboração (art. 211) e aplicar, anualmente, parcela mínima das receitas resultantes de impostos, inclusive transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Cabe à União aplicar 18% de sua receita, e aos estados, Distrito Federal e municípios, 25% das suas (art. 212) . Da porcentagem da União, pelo menos 30% desses
Além dessas fontes, de acordo com o § 5º do art. 212 da Constituição, o Ensino Fundamental público recebe como financiamento adicional os recur-
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recursos devem ser aplicados na erradicação do analfabetismo e na manutenção e desenvolvimento do Ensino Fundamental . Contudo, a orientação constitucional para gastos em educação não produziu inicialmente o efeito esperado, devido à ausência de regulamentação dos preceitos estabelecidos na Carta Magna. Faltavam mecanismos que garantissem uma sistemática na implementação dos gastos previstos que se sustentasse ao longo do tempo, o que gerou uma série de atitudes que descumpriam aquela orientação. As ações eram descontínuas, não havia controle e a fiscalização era insuficiente, possibilitando que os estados e municípios tirassem proveito da ausência de regulamentação para computar como inversão em educação outros gastos com a máquina pública. Dado o aproveitamento de brechas legais, esses malabarismos orçamentários terminavam sendo aprovados pelos Tribunais de Contas (Semeghini, 2001). Para enfrentar essas dificuldades, foram implementadas mudanças no arcabouço legal. A Emenda Constitucional nº 14/96 deu nova redação ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, criando um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento de Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – Fundef, de natureza contábil, para assegurar a distribuição de responsabilidades e recursos entre as Unidades da Federação e Municípios. A constituição deste Fundo foi definida com pelo menos 15% dos recursos das seguintes fontes: Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS (incluindo os recursos relativos à desoneração de exportações, de que trata a Lei Complementar nº 87/96), Imposto sobre Produtos Industrializados (proporcional às exportações) – IPIexp, Fundo de Participação dos Estados – FPE, e Fundo de Participação dos Municípios – FPM. Sua distribuição seria realizada automaticamente, tendo como referência o número de alunos matriculados em cada rede pública de Ensino Fundamental, de acordo com o Censo Escolar do exercício anterior. sos da contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas, de acordo com o Decreto nº 3.142, de 16 de agosto de 1999. Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996. O Censo Escolar é um levantamento de informações estatístico-educacionais de âmbito nacional, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep/MEC, em parceria com
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A referida Emenda também definiu no § 4º deste Art. 60 que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão contribuir para o Fundo de tal modo que garantam um valor por aluno correspondente a um padrão mínimo de qualidade de ensino, que deve ser definido nacionalmente. Ainda estabelece, na nova redação dada ao § 1º do art. 211 da Constituição, que caberá à União exercer função redistributiva e supletiva, de tal modo que garanta a equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Todavia, a caracterização deste “padrão mínimo de qualidade” referido na Carta Magna continua pendente. Como foi determinada a prioridade para o atendimento das necessidades do Ensino Fundamental, por ser obrigatório, na distribuição dos recursos para educação (art. 212, § 3º), e de acordo com o art. 60 do ADCT, o Governo promulgou a lei que dispõe sobre a organização do Fundef, a distribuição proporcional de seus recursos, sua fiscalização e controle, e fixou um valor nacional mínimo por aluno/ano. Este Fundo foi regulamentado em dezembro de 1996, pela Lei nº 9.424, oito anos depois da promulgação da Carta Magna, e pelo Decreto nº 2.264, de 27 de junho de 1997. Todavia, o Fundo só foi realmente implantado no âmbito nacional a partir de janeiro de 1998, dez anos depois da Constituição ser aprovada. O Fundef apresenta uma estratégia geográfica federativa de alocação financeira para oferta educacional, redistribuindo recursos dos Estados com maior arrecadação para aqueles com maior carência orçamentária e procurando, dentro de suas limitações, promover uma eqüidade territorial na aplicação desses recursos – pelo menos o cumprimento de uma quantidade mínima por aluno matriculado no Ensino Fundamental. A União tem a obrigação de complementar os recursos do Fundo sempre que, em cada Estado ou no Distrito Federal, o valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente, conforme o § 3º do art. 60 do ADCT. Segundo o § 7º deste mesmo artigo, a lei deveria as secretarias estaduais e municipais de Educação. Ele abrange a Educação Básica, em seus diferentes níveis – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio – e modalidades – Ensino Regular, Educação Especial e Educação de Jovens e Adultos.
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dispor sobre a forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno, mas o que ocorreu inicialmente foi o estabelecimento de um valor, sem a devida explicitação da fórmula para calculá-lo. A Lei nº 9.424/96, em seu art. 6º, § 4º, definiu como valor mínimo R$ 300,00 (em valores correntes). A partir de 1998, o valor foi fixado por meio de Decreto Federal. De 2000 em diante, o valor passou a ser diferenciado conforme as séries do Ensino Fundamental (Tabela 2.1), convergindo para o disposto no art. 2º, § 2º da referida Lei, que estabelece que a distribuição dos recursos deverá considerar a diferenciação de custo por aluno, segundo os níveis de ensino (1ª a 4ª séries ou 5ª a 8ª séries) e tipos de estabelecimentos (de ensino especial ou escolas rurais). O completo atendimento desta determinação só ocorreu em 2005, conforme pode ser constatado na tabela abaixo. Tabela 2.1 – Valor Mínimo Nacional por Aluno/Ano do Fundef – 1997-2005 (R$ Correntes)
1ª a 4ª série
5ª a 8ª série e educação especial
2000
333,00
349,65
2001
363,00
381,15
2002
418,00
438,90
2003
462,00
485,10
2004
537,71
564,60
Ano
1ª a 8ª série
1997
300,00
1998
315,00
1999
315,00
2005
1ª a 4ª série rural
1ª a 4ª série urbana
5ª a 8ª série rural e educação especial
5ª a 8ª série urbana
632,97
620,56
664,00
651,59
Fonte: Ministério da Educação.
O total de recursos do Fundef em 1998 foi de R$ 13,2 bilhões, evoluindo para R$ 28,6 bilhões em 2004. A despeito desse aumento no volume financeiro, o peso da complementação por parte da União apresentou trajetória decrescente entre 1998 e 2004, reduzin-
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do-se para a metade daquilo que significava no primeiro ano da implementação do Fundo (Tabela 2.2). A base de cálculo para o coeficiente de distribuição desses recursos em 1998 e 1999 foi consoante o total de alunos matriculados no Ensino Fundamental regular constante no Censo Escolar do ano letivo anterior. A partir de 2000, o critério de definição da quantia que cada Estado ou município iria receber por seus alunos foi modificado, alterando a fórmula dos coeficientes para diferenciar o per capita de acordo com a segmentação do Ensino Fundamental em 1ª a 4ª séries, por um lado, e 5ª a 8ª séries e Educação Especial, por outro – com um fator de diferenciação para este último . Tabela 2.2 – Total de Recursos do Fundef e Complementação da União – 1998 - 2004 (R$ milhões Correntes)
Ano
Total de Recursos do Fundef (a)
Complementação da União (b)
Percentual (b)/(a)
1998
13.222,28
434,82
3,3%
1999
15.346,53
675,06
4,4%
2000
17.649,19
505,64
2,9%
2001
19.941,75
451,94
2,3%
2002
22.950,80
421,80
1,8%
2003
25.176,61
335,75
1,3%
2004
28.620,32
485,00
1,7%
Fonte: Ministério da Educação.
No caso da distribuição da Complementação da União aos recursos do Fundef por região, percebe-se, de acordo com a Tabela 2.3, que a distribuição desses recursos se concentrou nas Regiões Nordeste e Norte. Normalmente a Região Nordeste recebeu em média 80% destes recursos (começando com 75% em 1998, atingindo o pico de 84% em 2001 e depois se retraindo para 77% em 2004).
Para mais detalhes, ver Brasil 2004a.
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Tabela 2.3 – Distribuição dos recursos da Complementação da União ao Fundef por Região e Esfera de Governo – 1998 a 2004 (R$ milhões Correntes) Região Norte
Esfera
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
Est.
62,9
56,5
33,7
21,3
19,9
19,0
26,9
Mun.
44,5
77,2
57,7
49,4
51,8
52,3
83,3
Total
107,4
133,7
91,4
70,6
3
71,3
110,1
Nordeste
Est.
128,3
189,6
135,9
123,2
109,3
74,7
82,6
Mun.
199,2
351,7
278,4
258,1
240,8
189,7
292,2
Total
327,4
541,4
414,3
381,3
350,1
264,4
374,9
Brasil
Est.
191,2
246,1
169,6
144,4
129,2
93,7
109,5
Mun.
243,7
429,0
336,1
307,5
292,6
242,0
375,5
Total
434,8
675,1
505,6
451,9
421,8
335,7
485,0
Fonte: Ministério da Educação.
O montante de recursos da complementação da União aumentou em 11,5% no total. No caso do Nordeste, elevou-se em 14,5%, contra 2,6% no Norte. A distribuição para as redes estaduais apresentou evolução negativa entre 1998 e 2004, contrariamente ao recebimento da complementação por parte das redes municipais. Isso reflete o processo de municipalização que ocorreu com o Ensino Fundamental no período considerado. Em termos de redes estaduais, a redução foi maior no Norte (-57%) do que no Nordeste (-36%) e no total da complementação (-43%). Quanto à expansão para as redes municipais, apesar de as redes do Nordeste terem se beneficiado mais, em termos absolutos, o maior crescimento relativo se deu na Região Norte (87%) – mas ambas as redes se beneficiaram muito com a expansão de 54% na representação dos municípios no total dos recursos de complementação. Gastos Comparados em Educação O gasto total com educação no Ensino Fundamental aumentou consideravelmente ao longo da década de 90. Segundo Almeida (2001), o
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gasto realizado nas redes municipais elevou-se 45% em termos nominais e 31% em termos reais para o período de 1997 a 1999. O gasto nas redes estaduais aumentou em 17% e 5% respectivamente, para o mesmo período. Essa diferença pode ser explicada, por um lado, pela municipalização do ensino ocorrida na década passada e, por outro, pela orientação do Fundo para o Ensino Fundamental, que é de responsabilidade do município. Todavia, esse aumento não se refletiu em uma variação relevante no gasto em educação medido como percentual do PIB – que permaneceu pouco acima de 4% nos anos considerados. Em termos da proporção do PIB, o Brasil está em posição similar a países como Argentina, Chile, México e Coréia do Sul, e bem próximo à média apresentada pela OCDE. Por outro lado, apesar desta semelhança, o gasto por aluno/ano no Ensino Fundamental brasileiro é muito inferior ao dos países em desenvolvimento. A Argentina gasta o dobro por aluno no Ensino Fundamental por ano frente ao executado pelo Brasil. Em comparação com o Chile, essa relação eleva-se para 2,5 vezes. No caso da Coréia, chega a atingir 4,5 vezes. O México possui gastos 63% maiores que o Brasil. Em relação à média da OCDE, este percentual chega a 483%! (Tabela 2.4) Tabela 2.4 Gastos em Educação Fundamental (*) em países da OCE - 2001 (PPCUS$10)
Países
Gasto anual em educação por aluno
Gasto anual em educação por aluno em relação ao PIB per capita (%)
Alemanha
4.237
17
Coréia
3.714
23
Dinamarca
7.572
26
O termo “Ensino Fundamental” é equiparado aos seis anos da Educação Básica, chamados de “primary education”, pela OCDE. Para mais detalhes, ver OCDE, 2004. 10 Refere-se ao valor do dólar ajustado pela Paridade do Poder de Compra (PPC), que elimina as diferenças de custo de vida entre os países.
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95
Espanha
4.168
20
Estados Unidos
7.560
21
França
4.777
18
Grécia
3.299
19
Itália
6.783
27
Japão
5.771
22
México
1.357
15
Portugal
4.181
23
Reino Unido
4.415
17
Média dos países OCDE
4.850
20
Argentina
1.655
14
Chile (**)
2.110
22
Índia
405
14
Paraguai
802
15
Peru
431
9
Uruguai
1.202
14
832
13
Brasil
(***)
Fonte: OCDE (2004). Notas: (*) O equivalente a “primary education”. (**) Ano de referência: 2002. (***) Ano de referência: 2000.
Em termos de proporção dos gastos com aluno por ano comparados ao PIB per capita, a situação do Brasil também está aquém da média da OCDE – 13% contra 20%, respectivamente. Mais uma vez, a situação é inferior à da Coréia (23%). Quanto ao México, a diferença é pequena. No caso da América do Sul, o país também se encontra em posição menos favorável que o Chile (22%), porém seu desempenho aproxima-se do apresentado pela Argentina e pelo Uruguai (ambos com 14%). Ainda que se chame a atenção para o fato da existência de grande desigualdade na distribuição da renda no Brasil, a comparação dos gastos com o PIB per capita é útil como referência para contrastar o esforço de investimento em educação do país em nível internacional.
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Evolução da Matrícula A matrícula no Ensino Fundamental se elevou na segunda metade da década de 90 – período marcado pelo Fundef, passando de 31,9 milhões de alunos para 35,7 milhões entre os anos de 1994 e 2000 – significando expansão de cerca de 12%. As matrículas nas redes públicas aumentaram de 28,3 milhões em 1994, para 32,5 milhões em 2000, representando elevação de 15%. O aumento líquido das matrículas no ensino público foi acompanhado por uma retração nas matrículas em instituições privadas – em torno de –11% (Tabela 2.5). Tabela 2.5 – Matrícula Inicial no Ensino Fundamental por Dependência Administrativa – Brasil – 1994 e 2000 Dependência Administrativa
1994
2000
Variação (%)
Privada
3.568.832
3.189.241
-10,6
Federal
34.422
27.810
-19,2
Estadual
18.053.264
15.806.726
-12,4
Municipal
10.254.456
16.694.171
62,8
Brasil
31.910.974
35.717.948
11,9
Fonte: Inep, 2003.
As matrículas nas redes estaduais reduziram-se -19%, enquanto nas municipais se expandiram muito mais do que o total das matrículas: 63%! Essa evolução das redes estaduais e municipais está refletindo, na realidade, o impacto do mecanismo de financiamento do Fundo e o processo de municipalização do ensino, que só apresentou resultados sobre o número de matrículas após a promulgação da Lei do Fundef. Essa evolução das matrículas nas redes públicas repercutiu no grau de escolaridade média da população brasileira, que passou de 5 anos de estudo em 1993 para 6 anos em 2001 – segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad/IBGE. Mesmo com esse aumento de um ano de estudo para a população de 25 ou mais anos de idade no país, a escolaridade média no Brasil ainda é inferior ao padrão dos países da OCDE para a população adulta, que é de 11,8 anos de estudo (OCDE, 2004).
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Valorização do Magistério Segundo a EC nº 14/96, pelo menos 60% dos recursos do Fundo em cada Estado e município devem ser destinados ao pagamento dos professores do Ensino Fundamental em efetivo exercício no Magistério. A Lei nº 9.242/96 regulamenta que esses recursos podem ser usados para pagar professores do Fundamental em efetivo exercício no ensino regular, especial e indígena, abrangendo aqueles em sala de aula e também os que exercem atividades de suporte pedagógico em uma ou mais escolas da respectiva rede de ensino, como: direção ou administração escolar, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional. Os profissionais remunerados com recursos do Fundef podem ter relação trabalhista com a rede tanto como integrantes do Regime Jurídico Único do Estado ou do Município, quanto como da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, ou contratados temporariamente para substituir formal e legalmente algum professor da rede ou para suprir a carência de docentes. Contudo, não se pode pagar professores terceirizados, pois constitui prestação de serviços e não vínculo empregatício do docente com o Estado ou Município. O restante dos recursos do Fundef, os 40%, poderão ser utilizados em remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e dos profissionais da educação; aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino; uso e manutenção de bens vinculados ao sistema de ensino; levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento do ensino (como vigilância, limpeza e conservação, materiais de consumo, dentre outros); amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos outros itens (como quitação de empréstimo para construção de escola etc.); e, por fim, aquisição de material didático-escolar e manutenção de transporte escolar11. 11
Os governos dos Estados e Municípios são responsáveis pelo transporte escolar dos alunos de suas respectivas redes de ensino, conforme Lei nº 9.394/96, art. 10, VII, e art. 11, VI, e alteração feita pela Lei nº 10.709, de 31 de julho de 2003.
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Para que o percentual destinado ao pagamento de professor também tenha reflexos qualitativos na educação e no intuito de que o Fundo realmente contribua para a valorização do magistério, a Lei nº 9.242/96 determina que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotem novo plano de carreira e de remuneração do magistério. Somando-se a isso, a Lei faculta o investimento dos 40% restantes na elevação da qualificação dos docentes, por meio de programas de formação continuada. A LDB, em seu art. 62, determina que os professores da Educação Básica deverão possuir formação em nível superior (licenciatura plena), admitindo como formação mínima a de nível médio, modalidade normal, para o exercício da docência na Educação Infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental. O impacto do Fundef pode ser percebido pela análise do número de professores em exercício no Ensino Fundamental e a evolução da remuneração dos mesmos. De acordo com Semeghini (2001), entre 1997 e 2000 houve um crescimento do número de funções docentes neste nível de ensino em torno de 10%, basicamente nas redes municipais, destacando-se o aumento daqueles com formação em nível médio (modalidade normal) e em nível superior (licenciatura plena) – os quais representavam a grande maioria desses profissionais. A possibilidade de utilizar os recursos do Fundo para habilitação de professores leigos levou a uma redução no percentual destes nos quadros das redes públicas, caindo de 6,3% para 3,1% entre 1997 e 2000, devido à elevação da escolaridade dos professores em exercício, principalmente nas Regiões Norte e Nordeste. Quanto à remuneração, houve melhoria generalizada, com aumento de 29,5% dos salários médios para o mesmo período, contra 12% de inflação (INPC/IBGE). Os docentes da rede municipal foram os maiores beneficiados, mais ainda em áreas mais pobres, o que contribuiu para reduzir um pouco a disparidade entre os padrões de remuneração no país (Semeghini, 2001). Vale lembrar que os investimentos em formação inicial e continuada do corpo docente não se limitam aos recursos oriundos do Fundef, pois os Estados e municípios devem aplicar 25% de todas as suas receitas de impostos e transferências na educação, por força de lei, o que vai além dos recursos direcionados ao Fundo. Os recursos não direcionados ao Fundo podem ser utilizados em formação,
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Educação Infantil e Ensino Fundamental pelos Municípios, e em formação e ensinos Fundamental e Médio pelos Estados. Cabe a cada um desses governos determinar sua estratégia de oferta de educação para a população, e, conseqüentemente, imprimir o grau de qualidade que lhe convier, dentro do permitido orçamentariamente12. Por outro lado, cabe, por sua vez, aos beneficiados e aos interessados exercerem a pressão necessária, utilizando os mecanismos legais pertinentes, para que os referidos investimentos na qualidade da educação pública sejam efetivados nas redes estaduais e municipais de ensino. Participação e Controle social Em relação a mecanismos sociais de acompanhamento e fiscalização, a organização dos recursos para a oferta da educação, no tocante à aplicação dos recursos do Fundef, deve ser acompanhada pelos Conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, conforme o art. 4º da Lei 9.242/96. Cabe a estes Conselhos o acompanhamento e o controle social da repartição, transferência e aplicação dos recursos do Fundo. A infra-estrutura (espaço para reuniões, material, equipamentos etc.) fica por conta do poder executivo local, bem como o fornecimento das informações necessárias ao exercício das funções do Conselho (registros contábeis e demonstrativos gerenciais etc.). A comprovação da aplicação dos recursos do Fundef deve ser feita mensal, bimestral e anualmente, podendo o poder executivo responsável sofrer penalidades em caso de irregularidades. O Conselho pode encaminhar as denúncias para o chefe do executivo, para o legislativo local, Tribunais de Contas, Ministério Público ou para o Ministério da Educação, de acordo com o que for mais pertinente. Para assegurar o legítimo e transparente exercício de suas funções, os Conselhos são independentes dos governos estaduais e municipais, apesar de terem membros dos poderes executivos em seu colegiado; 12
Cabe observar que a destinação de 60% dos recursos do Fundef para remuneração de professores não é conflitante com o estabelecido na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), que define que o gasto máximo com pessoal não deve ultrapassar 49% das receitas correntes líquidas nos Estados e 54% nos Municípios. Para mais detalhes, ver Brasil, 2004a, Nota Técnica do Anexo II, páginas 57 a 63.
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e devem ser criados com o envolvimento do poder legislativo e tendo a participação de entidades de classe (conselhos de educação, associação de pais e mestres, representante dos dirigentes da educação, associação de professores etc.), na indicação dos seus componentes. Em junho de 2000, 92,6% das redes estaduais e 93,1% das municipais já possuíam os Conselhos funcionando. Desses, 85,2% e 65,4%, respectivamente, contavam com representantes indicados por entidades de classe – pais, trabalhadores em educação, etc (Semeghini, 2001). Visando ao cumprimento do papel desses Conselhos, o MEC realizou treinamentos com os conselheiros municipais nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os esforços, juntamente com outras ações de sensibilização, resultaram em um progresso no desempenho de determinados Conselhos, os quais chegam a acompanhar não só a execução do Fundef, mas, igualmente, questões de melhoria de infra-estrutura e pedagógica nas escolas com recursos do Fundo. Indícios de necessidade de mudanças Apesar da importância do Fundo para que o Brasil prosseguisse rumo à universalização do Ensino Fundamental na idade adequada, o veto do presidente à época inviabilizou o financiamento de uma modalidade do Ensino Fundamental essencial para a estratégia de elevação da escolaridade da população como um todo, incluindo aqueles que não cursaram a Educação Básica na idade apropriada: a Educação de Jovens e Adultos – EJA. Além disso, tardou um pouco a reconhecer as diferenças entre ciclos e a especificidade da educação especial. A inclusão do corte espacial, de acordo com os meios rural e urbano, no estabelecimento de valores mínimos diferenciados por ciclo do Ensino Fundamental, só ocorreu em 2005, mas mesmo assim significou um avanço no reconhecimento da existência de custos diferentes entre escolas nesses meios. Contudo, o desenho de um fundo que compreenda a diversidade do país demanda aperfeiçoamento desses critérios, para contemplar determinados segmentos populacionais, como, por exemplo, os indígenas e os remanescentes de quilombolas. A evolução da complementação da União demonstrou retração ao longo do tempo e a fixação do valor nacional por aluno/ano, como pode ser constatado tanto internamente quanto ao comparar com va-
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lores internacionais, ainda se encontra abaixo do necessário para promover uma educação com padrão mínimo de qualidade – mesmo que a discussão sobre esse padrão ainda seja muito preliminar. Isso pode se refletir negativamente no comprometimento do Fundo enquanto instrumento de combate às desigualdades territoriais. Quanto mais rico o estado/município, mais facilmente poderá avançar sozinho em elevar gastos rumo à educação de qualidade. Quanto menor o valor mínimo, mais longe desse objetivo estarão os estados/municípios mais pobres. Apesar do impacto positivo sobre planos de carreira e valorização do magistério, a estruturação de um sistema de financiamento nacional abre um campo para aprimoramento de uma política de valorização docente que tem sido muito pouco explorado. Por exemplo, há possibilidades de avançar na criação de um piso mínimo nacional para remuneração dos professores, na articulação de um programa nacional de formação inicial e continuada de qualidade, com previsão de beneficiar todos os professores em exercício dentro de um cronograma pactuado entre os níveis de governo, dentre outras ações pertinentes. Uma estratégia nessa linha também apresentaria impacto relevante no que concerne ao combate às desigualdades regionais, em consonância com as Metas do Milênio. A proposição dos Conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef é interessante, mas a criação de mais um conselho local sobrecarrega municípios menores, onde os representantes se alternam entre os diferentes conselhos obrigatórios por lei. Uma proposta interessante seria capacitar os próprios membros dos conselhos estaduais e municipais de Educação para desempenhar o papel de instância de controle social, criando mecanismos de interação desses conselhos com os conselhos escolares (compostos pelo diretor e por representantes dos professores, dos pais dos alunos e dos trabalhadores da escola), que atuam dentro das escolas, portanto totalmente imersos na realidade que se pretende melhorar com instrumentos como o Fundef. De um modo geral, a instituição do Fundo não solucionou os nós da baixa qualidade da oferta de Ensino Fundamental pelas redes públicas, da evasão escolar e dos índices de repetência e atraso escolar, refletidos na defasagem série-idade – estes ainda apresentam valores elevados. Por outro lado, deixou à margem o encadeamento natural do processo de escolarização regular, ao não incluir a Educação Infantil e o Ensino Médio dentro dos itens financiados. Isto contribuiu para, por
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exemplo, a expansão da oferta privada de Ensino Médio – o que acentua as desigualdades, pelo fato de selecionar aqueles que podem acessar por nível de renda e aumentar a concorrência por vagas na rede pública, sobrecarregando a capacidade instalada desta rede. Além disso, a diferença de qualidade entre os ensinos público e privado no nível Fundamental também é passível de ser invocada para o Médio. 2.2 – A Proposta de Expansão do Sistema de Financiamento A LDB, em seu art. 21, organiza o sistema educacional brasileiro em dois segmentos: Educação Básica (formada pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio), e Educação Superior. O que difere da classificação dada pelas Nações Unidas, que colocam como Educação Básica algo equivalente ao Ensino Fundamental no Brasil. Além de a disposição brasileira ser mais ampla, o objetivo maior desse nível educacional é diferente – o art. 22 da LDB define como finalidade da Educação Básica: “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. A configuração de Educação Básica da LDB é mais pertinente à noção de desenvolvimento pretendida pela Declaração do Milênio do que a das Nações Unidas, para o caso brasileiro. Pois pensando em impactos sobre pobreza, vários estudos já comprovaram a relevância e efeito direto dos anos de escolaridade sobre renda percebida13. Estes constatam que, no Brasil, para elevação da renda e saída da pobreza, faz-se necessário um grau de escolaridade que ultrapasse os quatro primeiros anos de estudos. No tocante à contribuição da Educação Infantil, os resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – Saeb14 compro13
Ver, por exemplo, Ehrenberg & Smith (2000), Fernandes & Menezes-Filho (2002), dentre outros. 14 O Saeb coleta informações sobre alunos, professores, diretores e escolas públicas e privadas em todo o país. Ele é realizado pelo Inep, em parceria com os Estados, a cada dois anos, e foi aplicado pela primeira vez em 1990. Os alunos da 4ª e da 8ª séries do Ensino Fundamental e os do 3º ano do Ensino Médio são avaliados, mediante provas de língua portuguesa e matemática, e respondem a questionário sobre hábitos de estudo e características
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vam que a antecipação do processo de alfabetização ao se inserir as crianças na pré-escola faz com que estas posteriormente venham a apresentar maiores médias de proficiência na avaliação, confirmando a influência positiva da educação pré-escolar sobre a progressão do aluno na Educação Básica (Brasil, 2004c). Como a passagem pela Educação Infantil tem resultados favoráveis sobre a continuidade dos estudos e sobre desempenho na escola, a expansão da oferta pública desse nível de ensino irá afetar abandono e evasão escolar, defasagem série-idade e, conseqüentemente, permanência e sucesso na educação, contribuindo para elevar a escolaridade média da população e para combater o analfabetismo funcional. Além disso, outro fato a ser colocado para discussão é a qualidade do ensino no primeiro ciclo do Fundamental na rede pública do país. Quais os tipos de habilidades e qualificação são outorgados aos alunos que cursam as quatro primeiras séries do Ensino Fundamental no Brasil? Segundo pode ser apreendido das definições usadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em suas pesquisas, as habilidades e qualificações seriam mínimas a ponto de somente retirar o indivíduo da condição de analfabeto, incluindo-o no grupo de analfabetismo funcional. Pelas avaliações do Saeb, há deficiências significativas dentre os alunos das quatro primeiras séries do Fundamental nas disciplinas básicas: língua portuguesa e matemática. As médias de desempenho têm caído na série histórica do Saeb, seja qual for o nível de escolaridade observado, e todos apresentaram valores em 2003 inferiores aos obtidos no ano de 1995 (Brasil, 2004c). Essa evolução desfavorável evidencia que o impacto do Fundef sobre a qualidade do ensino não foi significativo nesse aspecto. Ainda podem ser citadas as pesquisas elaboradas pelo Instituto Paulo Montenegro – IPM15, que divulga desde 2001 o Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional – Inaf, alternando pesquisas sobre habilidades em língua portuguesa e matemática. Os resultados revelam um desempenho insuficiente da população brasileira, desócioculturais. Os diretores e os professores respondem sobre perfil e prática docente, mecanismos de gestão e infra-estrutura da escola. 15 O Instituto Paulo Montenegro é uma organização sem fins lucrativos criada pelo Ibope em 2000 para desenvolver e implementar projetos na área educacional.
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monstrando que o fenômeno do analfabetismo funcional extrapola as quatro primeiras séries, ocorrendo inclusive em indivíduos com grau de escolaridade mais avançado16. O conceito de analfabetismo funcional utilizado por esse Instituto é muito mais amplo do que o do IBGE, que é baseado apenas em número de séries concluídas (as quatro primeiras do Fundamental). Mesmo se for considerado apenas anos de estudo, o IPM chama a atenção para o fato de que tanto na América do Norte quanto na Europa o indivíduo só é considerado alfabetizado funcional após completar oito ou nove anos de estudo. O IPM segue a orientação da Unesco na definição de analfabetismo funcional. Em 1958, a Unesco definia como analfabeto quem não conseguisse ler ou escrever algo simples. No final da década de 70, a Unesco adotou o conceito de analfabetismo funcional, que significa carência de habilidades necessárias para satisfazer as demandas do cotidiano e se desenvolver pessoal e profissionalmente, independente de saber ler e escrever. De acordo com a finalidade da Educação Básica segundo a LDB (art. 22), com a Declaração do Milênio das Nações Unidas e para efeitos de impacto sobre pobreza e promoção do desenvolvimento, esse último conceito, centrado na habilidade para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida, seria mais adequado – o que ratifica a necessidade de expansão da universalização do ensino para além do Fundamental no país, atentando-se para a questão da qualidade. Quanto ao Ensino Médio, o Plano Nacional de Educação – PNE17 – estipula como meta a garantia de acesso a todos aqueles que concluam o Ensino Fundamental em idade regular no prazo de três anos, a partir do ano de sua promulgação. A realidade mostra que o país ainda está longe de alcançar tal alvo. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad/IBGE, apenas 37% da população de jovens entre 15 e 17 anos estava matriculada no Ensino Médio em 2001. Outros 10% estavam cursando o Fundamental, em cursos de EJA ou profissionalizantes. Logo, a maioria dos jovens em idade regular para cursar o Ensino Médio não estava sequer matriculada em escolas. 16
Para mais detalhes, ver sítio do Instituto Paulo Montenegro: www.ipm. org.br. 17 Lei nº 10.172 de 2001.
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Além disso, 37,5% dos jovens que concluíram o Ensino Fundamental o fizeram com idade superior a 17 anos. Este dado confirma a distorção idade-série e pode indicar aumento da mesma, devido ao retardamento no ingresso ao nível Médio logo após a conclusão do Fundamental – além do risco do aluno não retornar ao sistema de ensino, corroborado pelas taxas de não-continuidade e abandono do Ensino Médio. Evolução das Matrículas As matrículas na Pré-escola apresentaram uma retração de 5,7 milhões em 1994 para 4,4 milhões em 2000. A principal redução de matrículas se deu nas redes estaduais (-71,5%). Mesmo as redes municipais, que são legalmente responsáveis por esse nível de ensino, também tiveram evolução negativa nos anos considerados: -6%, de acordo com a Tabela 2.6. Tal fato pode estar relacionado a problemas de financiamento da Educação Infantil, o que corrobora a necessidade de expansão do Fundo para contemplar a manutenção deste nível de ensino. Tabela 2.6 – Matrícula Inicial em Pré-Escola e no Ensino Médio por Dependência Administrativa – Brasil – 1994 e 2000 Pré-Escola
Ensino Médio
Dependência Administrativa
1994
2000
Variação (%)
1994
2000
Variação (%)
Privada
1.307.228
1.089.159
-16,7
1.041.772
1.153.419
10,7
Federal
6.199
1.247
-79,9
100.007
112.343
12,3
Estadual
1.178.198
335.682
-71,5
3.522.970
6.662.727
89,1
Municipal
3.184.654
2.995.244
-5,9
267.803
264.459
-1,2
Brasil
5.676.279
4.421.332
-22,1
4.932.552
8.192.948
66,1
Fonte: Inep, 2003.
A matrícula no Ensino Médio tem crescido nos últimos anos de modo surpreendente, com taxas que superam a expansão no Ensino Fundamental – 66% contra 12%, respectivamente. O principal aumento se deu nas redes estaduais, responsáveis legais por esse nível de ensino, atingindo 89%! Entretanto, destaca-se que o número de
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matrículas no Ensino Médio ainda é muito inferior ao apresentado pelo Fundamental: 8,2 milhões contra 35,7 milhões, respectivamente. Portanto, a elevação nas vagas disponíveis no Ensino Médio necessita de maior intensidade, caso se pretenda atender à demanda por este nível de ensino que está sendo incrementada pelos alunos oriundos do Fundamental financiado com o Fundef. Isso significa que a expansão deste Fundo para atender o Ensino Médio é crucial para a estratégia de promover o acesso a esse nível da educação e, conseqüentemente, o aumento da escolarização no país. A despeito da significativa expansão das matrículas no Ensino Médio, esta não contou com fôlego suficiente para impactar de modo significativo a escolaridade média no Brasil – que se elevou em um ano de estudo para o período considerado. A carência de um esforço maior pela universalização do Ensino Médio pode ser sentida quando se compara a situação nacional com aquela apresentada pelos países da OCDE. Dentre 20 países que apresentaram dados comparáveis para 2001, 17 deles exibiram mais de 70% de diplomados em Ensino Médio entre a população em idade típica para ser diplomado. Nos casos da Dinamarca, Alemanha, Japão, Noruega, Polônia e Suíça, essa porcentagem supera os 90%. A velocidade com que as novas gerações têm acessado o Ensino Médio se acelerou em quase todos os países da OCDE – em dois terços deles a comparação entre a média de escolaridade das faixas etárias entre 25 e 34 anos de idade e entre 45 e 54 anos mostra que a proporção daqueles que completaram o Ensino Médio varia de 70% a 95% para a geração mais jovem (OCDE, 2004). Almeida (2001) mostra que o gasto por aluno com Ensino Médio não acompanhou o aumento do número de matrículas no Brasil. Isso fortalece a necessidade de um Fundo que financie este nível de ensino. Até porque, o aluno de Ensino Médio custa mais caro para o governo do que o de Ensino Fundamental, funcionando como mecanismo perverso no estímulo pela expansão de sua oferta pela rede pública. Os dados comprovam que a rede privada nesse nível de ensino aumentou muito mais rapidamente que a pública, contribuindo para a formação de um gargalo no acesso ao Ensino Médio e continuidade da escolarização para parcela significativa da população brasileira. Cabe lembrar que os problemas de financiamento terminam se refletindo diretamente sobre a qualidade do ensino ofertado. Pela Tabela 2.7, pode-se constatar que a média de gastos do Brasil
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com Educação Infantil e com Ensino Médio é muito inferior à da OCDE (75% e 87% menores, respectivamente). As diferenças são mais relevantes no tocante aos gastos com Ensino Médio do que com Educação Infantil, sinalizando que o caminho a ser percorrido pelo país para melhorar a qualidade daquele nível de ensino será um grande desafio a ser enfrentado pela expansão do Fundo. O total de gastos do Brasil com os três níveis de ensino considerados é muito inferior à média da OCDE, correspondendo a apenas 17,6% dessa média. Quando comparado com países da América Latina, o Brasil apresenta gastos inferiores aos do Chile, Argentina, México e Uruguai – representando 46%, 48%, 58% e 79% dos gastos nestes países, respectivamente. Quando são analisados os gastos com os níveis educacionais infantil e médio, constata-se que estes significam 70% dos gastos totais com educação por aluno frente ao total dos três níveis no Brasil. Neste sentido, o país encontra-se até em situação mais favorável do que a média dos países da OCDE (69%), bem como superando a porcentagem apresentada pelo Chile e pelo Uruguai (ambos com 65%). Tabela 2.7 Gastos Anuais com Educação (*) por Aluno – 2001 (US$ PPP) Porcentagem gasta com nãoFundamental [e = (a+c)/d] (%)
Alemanha
4.956
4.237
6.620
15.813
73,2
Coréia
1.913
3.714
5.159
10.786
65,6
Espanha
3.608
4.168
5.442
13.218
68,5
Países
Ensino Médio (c)
Total dos três níveis (d = a+b+c)
108
Educação Infantil (crianças de 3 anos ou mais) (a)
Ensino Fundamental (b)
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7.560
8.779
24.861
69,6
Japão
3.478
5.771
6.534
15.783
63,4
México
1.410
1.357
1.915
4.682
71,0
7.595
4.415
5.993
18.003
75,5
4.187
4.850
6.510
15.547
68,8
1.745
1.655
2.306
5.706
71,0
Chile (**)
1.766
2.110
2.085
5.961
64,6
Uruguai
1.200
1.202
1.046
3.448
65,1
Brasil (***)
1.044
832
864
2.740
69,6
Reino Unido Média OCDE Argentina
Estados Unidos
8.522
Fonte: OCDE (2004). Notas: (*) O equivalente a “pre-primary education”, “primary education” e “secondary education”. (**) Ano de referência: 2002. (***) Ano de referência: 2000.
A formatação de um fundo que contemple a Educação Infantil e os ensinos Fundamental e Médio terá que lidar com a distribuição de recursos por cada um desses níveis, além das modalidades pertinentes,
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de tal modo que se consiga um equilíbrio entre: as possibilidades de financiamento do Fundo; as necessidades e as perspectivas de expansão de cada nível e modalidade; as questões políticas e de gestão de cada nível de governo; e, as determinações da legislação aplicável. Somando-se, deverá considerar os padrões internacionais da distribuição de gastos entre níveis educacionais, guardadas as devidas especificidades, bem como lidar com as questões territoriais e raciais no Brasil. A proposta do Fundeb Entendendo o contexto acima, o Ministério da Educação avançou no desenho de uma proposta de expansão do sistema de financiamento da educação para abranger o Ensino Médio e a Educação Infantil. Apesar de a Constituição estabelecer como obrigatório o Ensino Fundamental, ela igualmente define no art. 208, inciso II, que é dever do Estado a progressiva universalização do Ensino Médio gratuito18 – fato ratificado na LDB como progressiva extensão da obrigatoriedade deste nível educacional. Portanto, um sistema de financiamento que abranja os outros níveis de ensino considerados está em consonância com o proposto originalmente pela Carta Magna há 17 anos atrás. Quando se analisa a evolução do arcabouço legal, percebe-se que vários dos elementos que compõem a proposta do MEC já haviam sido colocados, ainda que de forma embrionária, por diversas Propostas de Emenda Constitucionais – PECs. Podem ser citadas: proposta de prolongamento da vigência do Fundo (PECs nº 467/01, 522/02, 29/02); inclusão da Educação Infantil no Fundo (PECs nº 570/98, 342/01) ou criação de um fundo específico para esse nível da educação (PEC nº 37/03); e a proposta de um fundo para Educação Básica (PECs nº 112/99, 34/02) (Abreu, 2003). A proposta do MEC, conforme PEC encaminhada ao Congresso Nacional em 14 de junho de 2005, dá uma nova redação ao § 5º do art. 212 da Constituição Federal, autorizando a utilização da contribuição social do salário-educação para o financiamento da Edu18
Esta redação foi dada ao inciso II pela Emenda Constitucional nº 14, de de setembro de 1996. O texto original dizia: “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao Ensino Médio”. 12
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cação Básica. Antes o uso desta fonte de recursos estava restrito ao Ensino Fundamental. Esta PEC também reescreve o art. 60 do ADCT, criando o Fundeb, estipulando sua vigência até 31 de dezembro de 2019 e definindo seus parâmetros, como a elevação para 20% dos recursos dos impostos que compunham a cesta de fontes do Fundef, além de anexar 20% de outras fontes, a saber: Imposto sobre Transmissão Causa Mortis (ITCMD), Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), Imposto sobre Renda e Proventos incidentes sobre rendimentos pagos pelos municípios, Imposto sobre Renda e Proventos incidentes sobre rendimentos pagos pelos estados, e cotaparte de 50% do Imposto Territorial Rural (ITR) devida aos municípios. A vinculação de pelo menos 60% dos recursos do Fundo para pagamento dos profissionais do magistério em efetivo exercício se manteve, apenas aumentando a abrangência para todas as etapas e modalidades da Educação Básica. A estratégia definida na PEC prevê a implantação paulatina do Fundeb nos primeiros quatro anos. A expansão do uso dos recursos oriundos dos impostos se dará de forma crescente nos primeiros anos até atingir o montante de 20% no quarto ano. Por sua vez, a contabilização das matrículas na Educação Básica será gradual. As matrículas no Ensino Fundamental serão integralmente levadas em conta, mas as da pré-escola, do Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos serão computadas em um quarto no primeiro ano de vigência do Fundo, metade no segundo ano, três quartos no terceiro e a totalidade das matrículas a partir do quarto ano – considerando as metas de universalização da Educação Básica estabelecidas no PNE. A PEC dispõe que a complementação da União na questão do mínimo nacional será de R$ 4,3 bilhões a partir do quarto ano de vigência do Fundeb, em detrimento de outras despesas, inclusive de custeio, e limita em, no máximo, 30% a participação dos recursos da União no total dos recursos do Fundo. Intenta-se, com isto, reverter a queda na contribuição ao Fundef apresentada pelo governo federal (Tabela 2.2), expandindo-a da seguinte forma: R$ 1,9 bilhão no primeiro ano, R$ 2,7 bilhões no segundo, R$ 3,5 bilhões no terceiro e R$ 4,3 bilhões a partir do quarto ano de vigência do Fundeb. A previsão do MEC é que o Fundeb, quando plenamente implantado, atenda 47,2 milhões de alunos, com recursos anuais da ordem
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de R$ 50,4 bilhões – incluindo os R$ 4,3 bilhões da União. Estes recursos serão distribuídos tendo como base 11 faixas de valores por aluno/ano: Educação Infantil, 1ª a 4ª série rural, 1ª a 4ª série urbana, 5ª a 8ª série rural, 5ª a 8ª série urbana, Ensino Médio rural, Ensino Médio urbano, Ensino Médio profissionalizante, Educação de Jovens e Adultos e Educação Especial, além da educação indígena e de remanescentes de quilombos. Portanto, o novo Fundo não só é mais abrangente do que o Fundef, como também lida melhor com as questões étnico-raciais. Ainda cabem melhorias para poder contemplar plenamente essas questões, mas o novo desenho já é um avanço significativo. A discussão agora é se os recursos realmente chegarão a cada público-alvo no montante devido, dado que os recursos serão destinados ao novo Fundo de acordo com as matrículas em cada uma destas faixas, mas não há nenhum atrelamento entre o recurso e o público da faixa a ser beneficiada. Isto se constitui em um problema de incentivos e de flexibilidade na aplicação dos recursos do Fundeb. Pode ser alegado, por um lado, que, dado a maioria dos negros estudarem em escolas públicas, e a maioria dos alunos públicos serem negros, as melhorias no sistema público, principalmente de qualidade, terão impacto direto sobre esta parcela da população. Contudo, essa visão passiva não enfrenta o cerne da desigualdade. Por outro, o MEC tem implementado ações afirmativas, em busca de enfrentar as distorções históricas no acesso, permanência e sucesso de determinados segmentos populacionais à educação. Como exemplos, tem-se: o estabelecimento de um valor maior no repasse de recursos para alimentação escolar para alunos indígenas e remanescentes de quilombolas; a promulgação da Lei nº 10.639, sobre o ensino de história da África; ações de apoio a cursos pré-vestibulares gratuitos voltados a esses segmentos; dentre outras ações de valorização da diversidade no espaço escolar19. Avanços e pontos críticos A instituição do Fundef foi uma grande inovação na oferta de Ensino Fundamental público no Brasil. Este Fundo alterou a estrutura de 19
Para mais detalhes, ver sítio www.mec.gov.br.
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financiamento desta oferta, co-responsabilizou governos estaduais e municipais, subvinculou a esse nível de ensino parcela dos recursos da educação e redistribuiu-os de forma automática, conforme o número de matrículas em cada rede pública de Ensino Fundamental. Outro ponto relevante foi a instituição de mecanismos de controle social. A implementação do Fundef significou um esforço de garantir um gasto em educação compatível com o nível de desenvolvimento do Brasil, e uma redistribuição mais eqüitativa do financiamento público da educação, de tal forma que viabilizou a redução das diferenças de custo por aluno entre as redes municipais e estaduais pelo país. Contribuiu, de igual modo, para os planos de carreira e valorização do magistério e a elevação dos rendimentos percebidos por professores e trabalhadores em educação, principalmente em municípios onde o governo federal entra com complementação. A proposta de expansão para o Fundeb é uma evolução que se faz premente na busca por promoção da escolarização e educação de qualidade para todos. Neste cenário se destacam as iniciativas para enfrentamento das questões regionais e étnico-raciais e a expansão da complementação da União para fins de combate às desigualdades territoriais. Todavia, cabe saber se com a necessidade de manter a decisão de superávit primário e estabilidade fiscal, juntamente com os 20% destinados a Desvinculação de Recursos da União – DRU, esse aumento no aporte de recursos realmente significará mais dinheiro para o fundo (“dinheiro novo”). Vale lembrar que a PEC determina que, dos 4,3 bilhões complementados, parte seja obtida mediante a redução permanente de outras despesas, inclusive de custeio. Outro assunto relevante para discussão é a questão da distribuição dos recursos entre os entes da Federação. Segundo a EC nº 14/96, os municípios devem dar prioridade para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, enquanto os Estados e o Distrito Federal devem priorizar o Ensino Médio, mas também o Fundamental. Pelo disposto, os entes deverão atuar de modo colaborativo, para assegurar a universalização do ensino obrigatório. Todavia, os custos por aluno e o número de matrícula diferem de acordo com o nível e a modalidade de ensino considerados, o que pode significar maior necessidade de articulação política para chegar a um consenso quanto à distri-
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buição dos recursos do Fundo. Tal articulação será decisiva para a possibilidade de alcance das metas do PNE quanto à expansão e ao grau de cobertura de cada nível de ensino. Um outro ponto é a exclusão do financiamento das creches, que suscitou polêmica na discussão da proposta do Fundeb. De quem seria a responsabilidade por financiar as creches? Da Educação, da Saúde ou da Assistência Social? A resposta a esta pergunta define a posição do Governo quanto à orientação de recursos para este fim. Isso pode ser conflitante com a PEC nº 33 de 2005, de autoria da Senadora Heloísa Helena, que foi aprovada pelo Senado Federal20 e determina que os municípios ofereçam obrigatoriamente o serviço de creches para crianças de 0 a 3 anos custeadas com recursos da educação. Por outro lado, os municípios podem financiar creches com o percentual de recursos que eles por força de lei têm que aplicar na educação, mas não estarão incluídos no repasse para o Fundeb. Poderia ser alegado o impacto sobre permanência e sucesso na vida escolar daqueles que passam pela Educação Infantil. Contudo, os resultados dizem respeito à pré-escola e não à creche. Nesse ponto, vale chamar a atenção para os gargalos representados pelas taxas de evasão e abandono escolar, e sua influência sobre a aprendizagem. Segundo o Saeb (2003), o desempenho dos alunos piora à medida que são reprovados ou que abandonam a escola. A conseqüência é o atraso escolar e o baixo desempenho dos alunos. Isto afeta negativamente a auto-estima dos alunos e seu aproveitamento escolar. A evolução dos indicadores do Saeb revelam que a situação não mudou com a instituição do Fundef; pelo contrário. Como tornar o mecanismo do Fundo algo além de simples estímulo ao aumento e manutenção do número de matrículas? Por fim, restam ainda esforços a serem realizados para alcançar um patamar de qualidade na educação de tal modo que impacte positiva e decisivamente no desenvolvimento no país, mais uma vez pondo em destaque os desafios da eqüidade e justiça social21. A Constituição define em seu art. 206, inciso I, que o ensino deverá 20
A referida PEC aguarda votação na Câmara Federal. Nesse contexto, o processo para se gerar tal nível de qualidade na educação é tão importante quanto a qualidade per se. 21
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proporcionar igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Como o Ensino Fundamental tem caráter obrigatório, mas, segundo o art. 208, § 1º, o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, faz-se necessário aprimorar os incentivos à inserção e continuidade na educação22. Isso passa por criar e melhorar políticas de retenção no Fundamental e incentivo ao acesso e retenção no Médio. Essa discussão envolve diretamente a relação entre educação e mercado de trabalho, passando por questões de renda e impacto sobre empregabilidade – dado que um importante motivo de abandono escolar é a necessidade de trabalhar, ou a incompatibilidade entre escola e trabalho. Daí a relevância de estratégias como a combinação entre Educação de Jovens e Adultos e qualificação profissional, por exemplo. 3. O Desafio da Educação no Contexto de Desenvolvimento e Combate à Pobreza e as Estratégias de Educação Profissional A Constituição estabelece em seu art. 205 que a educação, além de ser direito de todos e dever do Estado, deve ser orientada para o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Atentando para este último ponto, pode-se notar que a Carta Magna já relaciona diretamente educação e trabalho, orientando essa relação sob a égide da qualificação. Segundo a LDB, em seu art. 2º, a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para exercer a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Estabelece, também, que o ensino deve ser ministrado tendo como um de seus princípios a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (art. 3º). No art. 22, deixa bem claro que a Educação Básica visa desenvolver o educando, assegurando a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecendo meios para que ele progrida no trabalho e em estudos posteriores. 22
Já existem ações de governo que exigem como contrapartida ao serviço prestado e renda concedida a manutenção das crianças e adolescentes na escola, como é o caso do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti, e do Programa Bolsa Família.
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Portanto, se a educação tem como um de seus objetivos qualificar o indivíduo para a vida profissional, deve ser responsiva às mudanças no mundo do trabalho, e na sociedade como um todo. Tal assertiva se torna ainda mais pertinente quando se pensa em estratégias para mudar a curto e médio prazos a situação sócioeconômica de parcela significativa da população, por meio de políticas de desenvolvimento. Os investimentos em educação produzem elevação no estoque de capital humano, o qual atua sobre a renda do indivíduo e da própria nação. Aumentos nesse tipo de capital significam maior produtividade do trabalho e também se refletem sobre progresso tecnológico23. Por exemplo, uma análise do crescimento do PIB nos países da OCDE para os anos de 1990 a 2000 revela que pelo menos metade desse crescimento é representado pelo aumento da produtividade do trabalho (OCDE, 2004). No caso do Brasil, os impactos da elevação da escolaridade sobre nível de renda, pobreza e desigualdade são notórios. Todavia, como o sistema educacional do país não está construído de tal forma que realmente dê oportunidades iguais para todos, o trabalhador brasileiro se vê, por vezes, diante de uma desigualdade de acesso a fatores que possibilitariam sua melhoria econômica e social. Daí decorre a necessidade de o Governo entrar corrigindo essas disparidades de oportunidade, principalmente quando se analisam as características do mercado de trabalho no Brasil. Em um cenário de mundialização, em que a integração das economias nacionais e as mudanças tecnológicas se aceleram, dominado pelas tecnologias da informação e cada vez mais capital-intensivo, o trabalhador que não estiver em constante atualização, tornar-se-á obsoleto, perderá oportunidades e não conseguirá se recolocar no mercado de trabalho24. As novas tecnologias reduzem o uso de mãode-obra com baixa ou nenhuma qualificação, gerando, juntamente
23
Ver, por exemplo, Eherenberg & Smith, 2000. De acordo com o Suplemento da Pesquisa Mensal de Emprego realizada pelo IBGE em abril de 1996, mais da metade (cerca de 60%) das pessoas acreditavam que seus empregos estavam ameaçados por deficiências de conhecimento e de qualificação. 24
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com os novos modelos gerenciais e administrativos25, aumento do desemprego, principalmente em países com grande contingente de pessoas economicamente ativas com qualificação insuficiente, como é o caso de vários países da América Latina, dentre eles o Brasil. Como saída para as crises econômicas da década de 80, a queda do poder de compra dos salários e a insuficiente criação de novos postos de trabalho assalariados formais, muitos indivíduos optaram pelo “empreendedorismo” e por inserção informal26 no mercado de trabalho latino-americano e, mais especificamente, no brasileiro. O fenômeno do trabalho autônomo se expandiu de tal modo que hoje representa parte significativa da população ocupada brasileira – o que não significa, necessariamente, melhoria da qualidade na inserção. A despeito do grande número de micro e pequenas empresas que surgem a cada ano, principalmente ligadas ao setor serviços, muitas não sobrevivem e uma massa de indivíduos retorna ao desemprego ou busca outras alternativas de obter renda, aumentando a rotatividade dos trabalhadores e deteriorando a mobilidade dos mesmos, em termos de qualidade dos novos postos de trabalho27. Com alta rotatividade e mobilidade espúria, faltam tempo, estabilidade, segurança, estímulo, visão de longo prazo e principalmente recursos para que esses trabalhadores invistam em qualificação, ou seja, potencializem sua empregabilidade. No caso dos trabalhadores sem carteira assinada, a situação no mercado de trabalho é ainda mais precária, o que acirra as dificuldades para sua qualificação. Essa nova realidade produtiva e a reorganização dos processos de trabalho exigem do trabalhador novas qualificações, com a aquisição de competências laborais e o domínio de métodos e técnicas, em um contexto de critérios cada vez mais ligados a produtividade, eficácia e eficiência dos processos. Mas essa qualificação profissional deve estar inclusa em um processo maior de formação geral, que 25
Para mais detalhes sobre mudanças organizacionais em empresas industriais no Brasil, ver CNI/Senai, 1998. 26 Para uma discussão sobre opção por inserção informal no mercado de trabalho brasileiro ver Teles, 1996. 27 Sobre abordagem qualitativa da mobilidade no mercado de trabalho brasileiro, ver Freguglia, Teles e Rodrigues, 2002.
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associe profissionalização com processos educativos e relacione conhecimento com prática de trabalho, em um contexto de articulação orgânica do saber com o processo produtivo. Em uma perspectiva de desenvolvimento, relacionar qualificação profissional aos processos educativos é fundamental, pois possibilitará promover a “(...) integração renovada do saber pelo fazer, do repensar o saber e o fazer, enquanto objetos permanentes da ação e da reflexão crítica sobre a ação” (Brasil 2004d, p. 13). Nesse sentido, deve enfatizar a reflexão e a discussão crítica, principalmente devido ao atual dinamismo das mudanças e avanços tecnológicos. O resultado dessa orientação tanto significa um profissional mais flexível e mais adaptável às mudanças nas tecnologias e no mercado de trabalho, quanto facilita um prosseguimento do processo de educação continuada. Além disso, irá contribuir para a melhoria do casamento da oferta de mão-de-obra (qualificada ou semiqualificada) com a demanda posta pelo mercado de trabalho. A educação profissional, entendida enquanto conjunto que engloba tanto as ações de qualificação per se quanto os processos de ensino regular, fica constituída, então, como uma estratégia para o desenvolvimento nacional, não apenas em termos tecnológicos, mas, ao impactar qualificação da mão-de-obra e empregabilidade, reflete-se sobre produtividade e nível de renda, desdobrando-se em crescimento econômico e redução da pobreza. 3.1 – Educação Profissional no Brasil A formatação e a consolidação da institucionalidade do modelo de educação profissional do país podem ser remetidas às décadas de 20 a 40 do século XX, apesar de algumas instituições que lidam com esta modalidade da educação serem mais antigas. É a partir dos anos 20 que as teses e técnicas da administração científica tomaram corpo e começaram a ser amplamente divulgadas no país. Por exemplo, datam desse conjunto de décadas a construção e o fortalecimento de grandes sistemas, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai, e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac, bem como a rede federal e determinadas redes estaduais de ensino técnico.
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De modo geral, as instituições à época não eram integradas, cada uma atuando de forma isolada. Cada rede tinha a sua gestão, que era executada sem a participação dos demais atores sociais (sem consulta aos reais interessados na oferta de educação profissional) e a linha pedagógica seguida era segmentada: havia os cursos com formato “escolar” e os cursos mais rápidos e focados em treinamento para o trabalho, que não abrangiam formação geral e não tinham validade para o prosseguimento da escolarização. Existia uma dicotomia entre educação generalista e cursos profissionalizantes. A primeira era mais voltada para uma formação mais sólida e orientada para a continuidade dos estudos, enquanto os outros cursos eram mais imediatistas, centrados somente na necessidade de (re)inserir o indivíduo no mercado de trabalho, ou seja, arrumar emprego, desvinculados da elevação da escolaridade. Além disso, a noção de trabalho era muito limitada ao emprego formal em determinados setores da economia. Foi na década de 70 que o termo educação tecnológica passou a ser mais utilizado, em grande parte devido à criação de cursos de tecnólogos ou superiores de tecnologia, apoiados pelo governo federal28. Em 1990, o Ministério da Educação deu maior visibilidade organizacional a essa modalidade do ensino, criando a Secretaria Nacional de Educação Tecnológica – Senete, que em 1992 se transformaria em Secretaria de Educação Média e Tecnológica – Semtec. Esta estrutura foi modificada novamente em 2004, com a separação do Ensino Médio (que foi agregado ao Fundamental, na Secretaria de Educação Básica – SEB) e do ensino tecnológico, que passou a integrar uma secretaria específica: a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica – Setec. O desenho da política adotada na década de 90 para educação profissional foi orientado para atender às necessidades que supostamente os gestores da mesma acreditavam existir no mercado de trabalho. Nesse sentido, legitimou cursos modulares, segmentados, com uma gama de cargas horárias para qualificação e reprofissionalização de trabalhadores, a despeito de escolaridade prévia, e o 28
O termo educação profissional é colocado pela LDB, em seu cap. III, art. 39, em 1996.
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aproveitamento de experiência profissional para certificação e prosseguimento ou conclusão de estudos29. Como características da educação profissional na segunda metade da década em questão, podem ser citadas: “a) definição de uma política voltada para atenuar as conseqüências da reestruturação produtiva e do desemprego que acompanhou a nova gestão da força de trabalho; b) ampliação do espectro de entidades e instituições privadas que foram contempladas com recursos públicos para as ações de educação profissional e tecnológica; c) incentivo à privatização progressiva de instituições públicas, como os Cefets e as escolas técnicas; e d) geração, não obstante, de um tipo de avanço na mobilização de setores organizados da sociedade civil, no sentido do reconhecimento da necessidade do aumento do nível de escolaridade dos trabalhadores e de sua educação profissional e tecnológica” (Brasil 2004d, p. 27). Nesse contexto, dentro das novas orientações dadas à educação profissional no país, destaca-se a implementação do Programa de Reforma da Educação Profissional – Proep30, que foi financiado por meio de parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. As participações do Ministério do Trabalho e Emprego e do Banco Mundial também devem ser destacadas no alcance de financiamento para este programa. Os impactos do Proep foram sentidos tanto pela rede federal quanto nas estaduais e privadas. Os Centros Federais de Educação Tecnológica – Cefets, por exemplo, tiveram que se adaptar muito rapidamente ao referido Programa, para conseguir acesso aos recursos, bem como ao Decreto Federal nº 2.208/9731 – a rede federal teve pouco tempo para fazer uma transição mais consistente, assim como os sistemas de Ensino Médio técnico estaduais (Brasil 2004d). O arcabouço legal da educação profissional construído na segun29
Decreto nº 2.208, art. 3º, I, e Portaria nº 646/97, que regulamenta os artigos 39 a 42 da LDB. 30 Portaria MEC nº 1.005, de 10 de setembro de 1997. 31 O referido Decreto regulamenta os artigos 30 a 42 do capítulo III, Título V, da LDB.
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da metade da década de 9032 provocou uma restrição na oferta de Ensino Médio técnico nas redes públicas, tanto federal quando estaduais, em benefício de uma prática de cursos modulares e fragmentados, implicando um viés de favorecimento à privatização e orientação mercadológica. Um exemplo do enfraquecimento da atuação estratégica das redes públicas perante este viés foi o estabelecido na Lei Federal nº 9.649/98, que desautorizava a criação de novas unidades federais, a não ser que algum outro ente da federação, do setor produtivo ou organização não-governamental se responsabilize pela manutenção e gestão do estabelecimento. De acordo com o Decreto Federal nº 2.208/97, a educação profissional se organiza em: i) formação inicial e continuada de trabalhadores, chamada de nível básico e independente de escolaridade anterior; ii) educação profissional técnica de nível médio, chamada de nível técnico e orientada para aqueles que estão cursando ou já cursaram o Ensino Médio; e, iii) educação profissional tecnológica de graduação e pós-graduação, chamada de nível tecnológico. Os objetivos da educação profissional foram definidos, nesse mesmo Decreto, como formação de técnicos e tecnólogos para os diversos setores da economia, especialização e aperfeiçoamento para o trabalhador no tocante a conhecimentos tecnológicos, e, por fim, treinamento e (re)qualificação de jovens e adultos para sua (re)inserção e melhoria de desempenho no mercado de trabalho, independentemente de seu grau de instrução. Ficou estabelecido que o aluno poderia cursar o Ensino Médio e o curso técnico concomitantemente ou ingressar no segundo logo depois de ter terminado o primeiro. A estrutura dos cursos técnicos foi flexibilizada, podendo se organizar em disciplinas ou em módulos. Se o aluno cursasse o Ensino Médio e fizesse todos os módulos de uma habilitação, além de passar por um período de estágio supervisionado, ele teria o diploma de técnico. Caso só quisesse, ou pudesse, cursar um módulo, ou alguns deles, ainda assim receberia um certificado, mas de qualificação profissional. A referida flexibilidade possibilitou a formação de sistemas 32
Decreto Federal nº 2.208/97, Portaria MEC nº646/97, Portaria MEC nº 1.005/97, Portaria MEC/MTb nº 1.018/97 e Lei Federal nº 9.649/98.
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e redes distintas de Ensino Médio e de curso profissional, que muitas vezes não dialogavam entre si. E mais, a proliferação de cursos modulares careceu de uma organização que orientasse os diferentes módulos em rotas profissionais, ou seja, os diversos cursos de curta duração não se constituíam em um plano de formação continuada. Na realidade, essa tentativa de flexibilização em grande parte responde a questão dos custos e do interesse em se adequar rapidamente os currículos às necessidades imediatistas do mercado. A oferta de Ensino Médio regular fica muito mais barata para o Estado sem a parte de profissionalização, o que supostamente permitiria maior atendimento aos egressos do Ensino Fundamental. Por outro lado, a modularização facilita o processo de negociação e o estabelecimento de parcerias com instituições privadas, possibilitando a expansão da oferta de cursos profissionalizantes para a população jovem e adulta. O ponto crítico não está nos módulos per se, mas sim em uma falta de planejamento e organicidade entre os vários cardápios de disciplinas e cursos existentes atualmente. O caso da Qualificação Profissional O Ministério do Trabalho e Emprego lançou em 1995 o Plano Nacional de Qualificação Profissional – Planfor, que vigorou até 2002. Este Plano objetivava garantir uma oferta de qualificação profissional perene, como mecanismo da Política Pública de Trabalho e Renda, que contribuísse para dirimir o desemprego e o subemprego da População Economicamente Ativa – PEA, combater a pobreza e a desigualdade social e aumentar a produtividade, a qualidade e a comPetitividade do setor produtivo. Em termos quantitativos, visava qualificar a cada ano pelo menos 20% da PEA – representando mais ou menos 15 milhões de pessoas/ano –, o que possibilitaria dar uma chance de atualização profissional para cada trabalhador de cinco em cinco anos – ainda assim sendo relativamente pouco, considerando o dinamismo do mercado de trabalho na última década. O Planfor qualificou 15,3 milhões de trabalhadores, entre 1995 e
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2001, e os investimentos aumentaram de R$ 28 milhões em 1995 para R$ 493 milhões em 2001, com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, além das contrapartidas dos governos estaduais e parceiros privados. Apesar de ter ficado muito abaixo da meta de 20% da PEA, o resultado pode ser considerado representativo, com destaque para sua abrangência – a qualificação profissional alcançou mais de 85% dos 5,5 mil municípios do Brasil, principalmente aqueles mais atingidos pelo processo da pobreza. Segundo os relatórios de gestão do Plano, 97% do total de treinandos e dos investimentos em 2000 foram voltados para: pessoas desocupadas; pessoas em risco de desocupação permanente ou conjuntural; empreendedores urbanos/rurais; e, pessoas autônomas, cooperadas ou autogeridas. As pessoas desocupadas participaram com 60% dos treinandos e investimentos. Buscou-se, também, focalizar setorialmente o Planfor, com o intuito de qualificar para novas demandas efetivas do mercado de trabalho. Tais demandas ocorrem em dois tipos de setores: aqueles em expansão, abrindo postos ou nichos de trabalho; e aqueles em processo de modernização ou reestruturação, exigindo novos perfis profissionais. De acordo com os relatórios de gestão, tal propósito foi alcançado por 98% dos cursos no ano de 2000 – 73% dos investimentos e 78% dos treinandos no primeiro tipo de setor; e 19% dos treinandos e 26% dos recursos no segundo tipo. Outra preocupação referia-se à focalização geográfica do Planfor através de três orientações: alocação regional de recursos baseada na distribuição da PEA, ponderada por fatores como pobreza e baixa escolaridade; atendimento preferencial a focos de pobreza e desemprego, que tendem a se concentrar nas capitais e áreas metropolitanas; e, municipalização das ações. A alocação regional com base na PEA ponderada foi respeitada na distribuição dos investimentos em 2000, a não ser no Sudeste e Centro-Oeste – devido ao Sudeste ter participado relativamente menos nos recursos do Planfor, ser a região mais desenvolvida do país e contar com maior oferta pública de educação profissional, através da rede de escolas técnicas e do Sistema S. O Centro-Oeste participava relativamente mais, dado o citado efeito compensatório da ponderação. Além do fato de se tratar de recursos aplicados (e não
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somente repassados), refletindo também a capacidade de execução dos PEQs e parceiros. A distribuição regional de treinaudos acompanhava o perfil dos investimentos, a não ser no Nordeste e Sul, pois apresentavam maior rendimento dos recursos devido a custos relativamente menores que nas outras regiões. Quanto às áreas metropolitanas, elas concentravam 45% dos investimentos e 44% dos treinandos no ano de 2000, percentuais acima de sua participação média na PEA (37%). Tal concentração se deu principalmente no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde há maior precariedade da malha urbana. Entretanto no Sul e no Sudeste, onde há uma rede de cidades médias mais solidificada, a atuação do Planfor nas áreas metropolitanas estava mais consoante com a participação destas na PEA. No tocante à municipalização, foi garantida vasta cobertura, descentralizando a oferta de qualificação e ampliando as oportunidades aos trabalhadores em toda a nação. Por exemplo, no ano de 2000 foram selecionados 1,4 mil municípios mais vulneráveis, nos quais o Planfor qualificou mais de 1,4 milhão de pessoas e investiu R$ 181,5 milhões. Foram atendidos não apenas os municípios mais pobres, como também os que concentravam focos de miséria e exclusão social do país, além de atendimento a 143 municípios que atravessavam uma experiência de incentivo ao desenvolvimento local, respeitando a vocação econômica de cada município. Em relação à efetividade, espera-se que a situação do treinado no mercado de trabalho mude ou melhore, como resultante do movimento de qualificação, isto é, que o mesmo venha a conseguir galgar novas oportunidades. Tal fato se reflete principalmente na conquista de uma vaga para aqueles que se encontravam desocupados ou subempregados. Logo, o encaminhamento para o mercado de trabalho é um aspecto importante da qualificação. No ano de 2000, por exemplo, quase 1,9 milhão de desocupados receberam qualificação e, deste total, 15% (284 mil) foram encaminhados para o mercado de trabalho logo após a conclusão dos cursos. A tendência deste índice era elevar-se passado algum tempo após o término dos cursos, dado que o tempo de busca de emprego encontrava-se em torno de 6 a 12 meses, dependendo da região. No entanto ainda não existem parâmetros de mercado que possam
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balizar o índice de encaminhamento desse programa, pois essa atividade não era regularmente realizada nem contabilizada por sistemas de formação profissional. Mesmo considerando essa carência de referências para comparabilidade, o índice registrado pode ser considerado representativo, dado o irrisório crescimento do emprego no país à época. Outra questão que se coloca quanto à efetividade das ações do programa diz respeito ao conteúdo dos cursos oferecidos e as necessidades postas pelo mercado de trabalho. A qualificação profissional deve abarcar o desenvolvimento de habilidades básicas, específicas e de gestão. As básicas se referem a conhecimentos, atitudes, valores que fundamentam o trabalho atualmente. As específicas englobam os conhecimentos técnicos de cada ocupação. As de gestão envolvem competências essenciais para trabalho autônomo, cooperado, associativo, em pequenos negócios, bem como para gestão pessoal no mercado de trabalho. Os cursos podem combinar essas habilidades, abordá-las de forma transversal ou concentrar-se em uma delas, dependendo de seus objetivos e do público-alvo. Em 2000, cada treinando fez mais de um curso ou módulo, combinando habilidades distintas. Dos treinandos, mais de 80% passaram por habilidades específicas, sendo também significativos os percentuais de habilidades básicas (77%) e de gestão (57%). Tal distribuição demonstra que a qualificação estava integrando, em maior escala, habilidades básicas e específicas, sendo a oferta de habilidades de gestão dosada para públicos específicos. O que pode estar sinalizando para uma certa coerência com alguns padrões exigidos pelo mercado de trabalho. Todavia, apesar dos relatórios favoráveis elaborados sobre o Planfor, diversas avaliações externas demonstraram que o Plano possuía muitos pontos frágeis, em geral resultando em um diagnóstico de baixa qualidade dos cursos e efetividade insuficiente das ações. Na prática, não se percebia integração satisfatória com outras políticas públicas de emprego (seguro-desemprego, intermediação de mãode-obra, microcrédito etc.); não havia articulação com políticas públicas de educação; não existia participação da sociedade civil na elaboração, fiscalização e condução das ações. O programa apre-
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sentou um baixo grau de institucionalização de uma rede nacional de qualificação profissional e ênfase nos cursos de curta duração, voltados para “habilidades específicas” requeridas por determinados postos de trabalho; além de não conseguir implementar um sistema de planejamento, monitoramento e avaliação que cumprisse com seu objetivo (Brasil, 2005). Com a entrada do novo governo em 2003, muitas das considerações acerca do Planfor foram ponderadas e a análise crítica dos resultados originou um novo desenho de plano para qualificação profissional no Ministério do Trabalho e Emprego. O novo plano, denominado Plano Nacional de Qualificação – PNQ, foi criado pela Resolução nº 333, do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – Codefat, em 10 de julho de 2003. De acordo com esta Resolução (art. 1º), o PNQ foi instituído no âmbito do Programa do Seguro-Desemprego, para executar ações de qualificação social e profissional, mediante convênios plurianuais com instituições promotoras de atividades de ensino ou de qualificação profissional. Todavia, este só prevê apoio a projetos que apresentem contrapartidas reais e comprovadas, cujo valor é definido de acordo com o porte e a capacidade econômica do empreendimento. Os resultados do PNQ ainda são insuficientes para uma avaliação mais profunda, a ponto de poder ser contrastado com o Planfor. O PNQ só foi implantado plenamente em 2004, pois o ano de 2003 foi o primeiro ano do novo governo, o último ano de execução do Plano Plurianual – PPA 2000-2003, e o ano para a elaboração do novo PPA para 2004-2007. Tendo como referência esse contexto, podem ser citados alguns pontos de comparação entre os programas, de modo incipiente e meramente ilustrativo. Primeiramente, o PNQ procura enfrentar mais diretamente questões étnico-raciais, colocando esses públicos de forma mais explícita e detalhada dentre os prioritários. Somando-se a isto, este Plano abre possibilidade de financiamento de projetos inovadores para essas populações, além de contribuir para o combate à desigualdade também privilegiando projetos que incluam outros segmentos em situação de risco e vulnerabilidade. Merece igual atenção o fato de o PNQ procurar lidar melhor com a relação entre
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qualificação e ensino regular. Todavia, será necessária uma avaliação mais detalhada dos projetos para confirmar uma efetiva implementação dessas diretrizes. Em termos de indicadores, alguns já podem ser levantados para ilustrar diferenças básicas entre os referidos programas. Houve elevação da carga horária média dos cursos com o PNQ em 2004, em comparação com o último ano do Planfor – 193,35 horas por curso contra 62,4 horas, respectivamente (Brasil, 2005). O PNQ consegue identificar, entre a população prioritária, aqueles que são beneficiários de políticas de trabalho, de inclusão social e de desenvolvimento e geração de renda – revelando que 75% do público atendido pelo PNQ em 2004 também era beneficiário de alguma das políticas de trabalho do Governo Federal (Primeiro Emprego, Intermediação de Mão-de-obra, Economia Solidária e Microcrédito). Com relação a grupos vulneráveis específicos, para as mulheres e os de baixa escolaridade, a participação relativa desses grupos em ações do PNQ em 2004 não se diferencia da apresentada pelo Planfor em 2002; para os negros e indígenas, a participação relativa é ligeiramente superior; e a grande diferença se encontra no público jovem, com o PNQ mostrando desempenho muito acima do Planfor. A participação de desocupados também se elevou no PNQ, assim como o encaminhamento ao mercado de trabalho (Brasil, 2005). 3.2 – Educação Profissional e ODMs: desigualdades e elevação da escolaridade O ensino técnico no Brasil tem evoluído nas últimas décadas, tanto em termos de arcabouço legal quanto em possibilidade de expansão. Nesse ponto, a proposta do Fundeb representa um grande avanço, ao propor financiar esta modalidade da educação e viabilizar um padrão mínimo nacional para o financiamento. O impulso que o acesso a este tipo de recurso dará à educação profissional será sentido não só pelas gerações futuras, mas também por aquelas já inseridas no mercado de trabalho, devido à abertura dada pelo Fundo para o suporte à Educação de Jovens e Adultos.
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Apesar dessa expansão no financiamento, a política de ensino técnico carece de um redesenho que permita maior flexibilidade e responsividade do sistema educacional às mudanças sócioeconômicas, mais especificamente, que ocorrem no mundo do trabalho. O grau de dinamismo e a margem de liberdade dos PCNs para esta modalidade da educação não permitem uma evolução mais harmonizada entre escola e trabalho, o que contribui para a manutenção da defasagem profissional no mercado nacional. Cabe ilustrar a questão notando que boa parte do comércio internacional que ocorre atualmente corresponde a produtos que não existiam na década de 80 (tão-somente cerca de duas décadas atrás), e, por conseguinte, são elaborados a partir de tipos de postos de trabalho ou ocupações que igualmente não existiam à época. Portanto, a necessidade de um processo dinâmico de atualização do sistema de educação, mais especificamente do ensino técnico, torna-se premente. A política de qualificação profissional gerida pelo MTE, por sua vez, também goza, por sua vez, de maior financiamento atualmente, graças à expansão da utilização de recursos oriundos do FAT. Cabe acompanhar a execução do PNQ para saber se realmente esse maior aporte de recursos se refletirá em expansão da qualificação e, principalmente, melhoria da qualidade dos cursos ofertados. Por outro lado, a estratégia regional do PNQ prevê uma orientação voltada para o combate às desigualdades, o que poderia significar necessidade de elevação dos recursos para promover ações de maior fôlego nas áreas que se destacam pelas suas fragilidades e deficiências na qualidade da mão-de-obra. Essa política de qualificação profissional deve promover relações efetivas entre demandas atual e futura de qualificação, levantada pelo poder público e pela sociedade civil organizada, e a oferta efetiva ou potencial de serviços de entidades públicas ou privadas, conforme a Resolução nº 333 do Codefat. Por enquanto, as ações implementadas pelo PNQ não sinalizam a garantia dessa determinação na prática. No tocante a questões regionais, a inclusão do ensino técnico no Fundeb contribuirá para uma melhor distribuição e expansão mais eqüitativa da oferta dessa modalidade da educação pelo país.
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Quanto ao PNQ, a possibilidade de planos que contemplem a questão territorial e os critérios definidos para a distribuição pelas Unidades da Federação e os municípios, se fossem seguidos à risca, produziriam efeitos positivos de distribuição espacial dos recursos. Será necessário avaliar a capacidade do PNQ de atuar sobre desigualdades regionais, bem como priorizar o corte espacial na construção de seus indicadores. Quanto às questões étnico-raciais, o sistema educacional tem procurado enfrentá-las com ações suplementares, baseadas em intervenções transversais aos conteúdos e nos diferentes níveis de ensino, ações afirmativas e valorização da diversidade no ambiente escolar. Merecem menção os esforços para implementação da Lei 10.639/05, que versa sobre o ensino de história da África nos diferentes níveis da educação, bem como as ações de formação de professores para segmentos populacionais específicos, como os indígenas e os quilombolas. Ainda assim, a maior parte dos recursos disponíveis tem sido direcionada para atividades junto ao Ensino Fundamental regular. Faz-se mister fortalecer ações afetas para o ensino técnico e tecnológico. Com relação ao PNQ, a abordagem de públicos específicos evoluiu muito em comparação ao Planfor. Contudo, esse Plano permanece focalizando, ainda em boa parte, públicos mais fáceis de serem mobilizados e qualificados (devido, em grande parte, a restrições financeiras), mas carece de maiores esforços no intuito de alcançar o núcleo duro da exclusão social. Isso implica metodologias e formas de mobilização específicas para os mais excluídos, além de solução para a difícil questão da oferta de profissionalização a indivíduos sem requisitos mínimos de educação exigidos para a maior parte das ocupações no mercado de trabalho. Por fim, apesar da aprendizagem alcançada com a execução do Planfor e da experiência atual com o PNQ, bem como do papel da qualificação na política pública de trabalho e renda do país, ainda é evidente a necessidade de maior articulação com a política de ensino técnico e tecnológico implementada pelo Ministério da Educação, caso realmente o governo brasileiro pretenda caminhar a passos largos na direção do desenvolvimento proposto pela Declaração do Milênio.
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Tentativas de articulação: o caso da EJA Profissionalizante A iniciativa de concatenar ações de elevação de escolaridade e atendimento das demandas por capacitação profissional tem nos projetos de EJA profissionalizante uma solução alternativa de curto prazo, com desenho que não apresenta empecilhos significativos e ainda possibilita resultados mais tempestivos. O governo federal tem procurado construir articulações entre escolarização e qualificação fazendo uso da oportunidade representada por estes projetos, concretizadas em programas como o Projovem33 e o Proeja34. A oferta de EJA é posta pela Constituição Federal como obrigação do Estado, que deve garantir o ensino gratuito para todos aqueles que não tiveram acesso a ele na idade própria (art. 208, inciso I). Todavia, o veto presidencial à inclusão de EJA no Fundef tornou os alunos desta modalidade do ensino um custo extra nas redes estaduais e municipais, que não possuíam recursos oriundos do Fundo para arcar com esse tipo de gasto. Isso, por um lado, desestimulou a oferta dessa modalidade de ensino e, por outro, estimulou as redes públicas a migrarem os jovens e adultos para o ensino regular noturno, para poderem financiar esses alunos com recursos do Fundo, principalmente entre 1998 e 2000. A situação mudou em 2000, com a criação de um programa específico para financiar EJA35, que provocou elevação no número de matrículas nesta modalidade, a partir de sua implantação. Contudo, ainda existem gargalos na provisão dessa modalidade de ensino, pois o valor por aluno/ano para EJA permanece muito inferior ao repassado pelo Fundef. Mesmo assim, o impacto de um programa que financiasse especificamente esse tipo de aluno foi decisivo para a expansão de matrículas no 1º segmento de EJA36, principalmente no Norte e no Nordeste. Isto contribui para 33
Para mais detalhas, ver sítio www.presidencia.gov.br. Sobre o programa, ver sítio www.mec.gov.br. 35 Programa Recomeço – hoje em dia é denominado Programa Fazendo Escola. 36 O 1º segmento de EJA equivale ao ensino de 1ª a 4ª série do Fundamental. O 2º segmento ao de 5ª a 8ª série. 34
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os esforços do país em aumentar o acesso e o sucesso no grau de escolaridade escolhido pelo ODM como referência para a Meta 2. Nesse sentido, como a prática demonstrou a importância da existência de recursos vinculados à matrícula comprovada em EJA para a expansão dessa modalidade de ensino, pode-se prever um impacto extremamente positivo da inclusão de EJA no Fundeb sobre oferta educacional e nível de escolaridade da população brasileira. A associação entre EJA e qualificação profissional contribui para que esta modalidade do ensino comece a avançar no sentido de reconhecer o mundo do trabalho como eixo produtor de outros conhecimentos. Isto significa que esse reconhecimento terá de ser contemplado nos currículos de EJA, conforme a LDB e o PNE já prognosticavam. As questões sobre mercado de trabalho têm que estar presentes na sala de aula, gerando não só leitura crítica da realidade, como também instrumentalizando os jovens e adultos para dominar tecnologias e técnicas profissionais, atuando sobre sua empregabilidade e sobre sua inserção social. Por outro lado, os problemas reais dos jovens e adultos no mercado de trabalho devem ser considerados pela oferta de EJA – tais como dificuldades de acesso e permanência, duração da jornada de trabalho, grau de apoio dos empregadores (Ireland et alli, 2005) e a informalidade, que acirra essas dificuldades para os trabalhadores que nela estão. Os programas Projovem e Proeja procuram articular ações de aumento da escolaridade com profissionalização. São iniciativas que já apontam para um avanço no diálogo mais afinado entre educação e trabalho no contexto das políticas públicas. O fato de se injetar recursos em programas específicos desse tipo resultará em experiências de alto valor didático e que indicarão próximos passos rumo a uma maior harmonização das políticas do MEC e do MTE no tocante a ações de educação profissional. Apesar de estarem ainda em processo de implantação, cabe chamar a atenção para um acompanhamento mais próximo e um sistema de avaliação que permita retirar as lições que esses programas podem propiciar. Por outro lado, uma crítica que já se pode antecipar sobre esses programas é a necessidade de se tornarem
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mais permeáveis às experiências locais de aprendizado e novas formas e metodologias de articulação entre educação e trabalho, bem como às transformações pelas quais o mercado de trabalho tem passado na região. As mudanças ocorridas no mundo do trabalho transformaram os postos de trabalho e, conseqüentemente, as exigências para preenchê-los. Atualmente a titulação é um fator necessário, sem dúvida, mas não é suficiente para garantir uma boa posição no mercado de trabalho. Sem entrar no mérito do que seria essa boa posição, cabe ressaltar o impacto da elevação da produtividade sobre a disponibilidade e o tipo de vagas, tornando mais rarefeito o emprego e intensificando a exigência e a seletividade no preenchimento das vagas. Estes fatos se refletem diretamente sobre que tipo de educação se faz necessária, principalmente no tocante à qualidade e à relação com o mundo do trabalho. Como conseqüência, é imprescindível uma maior reflexão sobre as ações governamentais de escolarização e qualificação, bem como a articulação entre ambas. Com a crescente demanda por maiores escolarização e qualificação, o governo é desafiado a assegurar oportunidades que respondam verdadeiramente aos anseios dos indivíduos e às necessidades do mundo moderno. Uma política nacional de educação profissional deve reconhecer o saber oriundo do exercício da profissão e promover sua aceitação concreta tanto nas redes de ensino quanto nos ambientes de trabalho, garantindo e estimulando a continuidade da educação e a certificação formal. O reflexo sobre a escola seria de transformá-la em um espaço que propicie a aquisição de “(...) princípios científicos gerais que impactam sobre o processo produtivo; habilidades instrumentais básicas que incluem formas diferenciadas de linguagens próprias envolvendo diversas atividades sociais e produtivas; categorias de análise que facilitam a compreensão histórico-crítica da sociedade e das formas de atuação do ser humano, como cidadão e trabalhador; capacidade instrumental de exercitar o pensar, o estudar, o criar e o dirigir estabelecendo os devidos controles” (Brasil, 2004d, pg 8). Somando-se, os sistemas de ensino devem dialogar melhor com as experiências inovadoras de articulação entre educação e trabalho que vêm ocor-
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rendo pelo país – como, por exemplo, as experiências relativas à economia solidária (Kruppa, 2005). 4. Considerações Finais A adaptação das Metas do Milênio referentes à educação para a realidade do Brasil segue a direção de elevação da escolaridade e universalização do Ensino Fundamental, tendo como horizonte o pretensioso alvo de se chegar ao Fundamental completo como nível de escolaridade média da população brasileira. Em breve as pressões das gerações beneficiadas pelas políticas educacionais voltadas à expansão e melhoria da qualidade do Ensino Fundamental se farão sentir, principalmente sobre a demanda por Ensino Médio. Pelo menos, dessa vez o governo está pensando primeiramente em sistema de financiamento, para depois universalizar o Ensino Médio – o que não aconteceu com o Fundamental. Antes houve a expansão das redes públicas de Ensino Fundamental, com a colocação deste nível de ensino como obrigatório, para anos depois ser implantado o seu financiamento de modo sistemático. A instituição do Fundef, enquanto instrumento para financiar a educação em nível nacional, reforça valores republicanos e democráticos, ao estabelecer regras claras e incentivar o controle social. A constituição de um mecanismo contábil e orçamentário gerido dentro de um arcabouço legal amparado na Constituição afasta práticas de clientelismo político e repasses de recursos baseados em critérios sem transparência nem reconhecimento pelos atores envolvidos com a educação no Brasil. O resultado pode ser visto na ampliação do acesso ao Ensino Fundamental, o que contribui para o alcance dos ODMs e para a elevação do IDH do país. A expansão para abranger os outros níveis e modalidades da Educação Básica promoverá uma aceleração rumo ao proposto pela Declaração do Milênio. A extensão do Fundo para o Ensino Médio vem de encontro ao espírito da Constituição, da LDB e do PNE, além de atender a uma demanda social por oferta deste nível de ensino, contagiada pelos resultados do Fundef. Todavia, a ampliação da cobertura de determinado nível educacional sem ações complementares estru-
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turantes se reflete diretamente na qualidade do ensino. O financiamento do Ensino Médio já está planejado. Agora será necessário agir antecipadamente também nas duas outras bases para que uma expansão deste nível de ensino se dê com qualidade: infra-estrutura e corpo docente devidamente formado e qualificado. Somandose, há de se intensificar a discussão mais substancial de conteúdo – os parâmetros curriculares nacionais para o Ensino Médio contextualizados para a sociedade da informação/conhecimento em um cenário globalizado e, principalmente, a questão da educação profissional. A despeito da difusão de novas tecnologias e inovações organizacionais, modernas e velhas práticas produtivas coexistem no Brasil, tanto na parte técnica-operacional, quanto na gestão, muitas vezes dentro das próprias empresas consideradas inovadoras. No bojo desse processo heterogêneo de modernização, a educação profissional se torna vital e estratégica. Além disso, uma atenção diferenciada deve ser dada à EJA, aliada à economia solidária e à qualificação, dentro do contexto de geração de trabalho e renda no Brasil. Vale lembrar que, mais do que habilidades manuais ou disciplina e compromisso com detalhes formais da relação de trabalho (como respeitar horários etc.), a qualificação demandada atualmente envolve uma formação mais abrangente e maior conhecimento, não apenas do parafuso específico que se tem que apertar, mas do processo como um todo. Agora é requerido do trabalhador não só saber fazer, como também saber conhecer e, principalmente, saber aprender (Leite, 2003). No âmbito da sociedade do conhecimento, a informação é abundante, o que é escassa é a habilidade para transformar essa informação em conhecimento e vantagem comPetitiva. Cabe aqui uma pergunta: os cursos profissionalizantes no Brasil estão atendendo a esse requerimento? Fica a sugestão de maior esforço em avaliações de impacto para averiguar isso nas ações profissionalizantes realizadas pelo país. Somando-se ao exposto, ainda permanecem dificuldades nas instituições promotoras de educação profissional em atuar eficazmente sobre a combinação adequada entre as habilidades demandadas
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pelos mercados e aquelas oferecidas pelos indivíduos economicamente ativos. Torna-se patente, então, que as redes de educação profissional devem se aprimorar para desenvolver e potencializar habilidades e competências nesses indivíduos, com o intuito de capacitá-los para melhor aproveitar as oportunidades que estão postas ou construí-las eles mesmos. Portanto, as discussões de metodologias e conteúdos dos cursos básicos, técnicos, tecnológicos ou profissionalizantes, sejam eles de formação inicial ou continuada, devem obrigatoriamente levar em consideração esta questão, para o alcance da efetividade esperada em termos de impacto sobre empregabilidade e nível de renda, afetando diretamente o combate à pobreza e, conseqüentemente, contribuindo para a promoção do desenvolvimento do país. Para alcançar o objetivo proposto, há de se atentar para a falta de organicidade das ações de qualificação e ensino técnico, em seus diferentes níveis, e enfrentá-la de tal modo que realmente se construa para o país uma política nacional de educação profissional integrada. Esta deve contemplar tanto formação inicial e continuada, quanto necessidades mais específicas voltadas para o desempenho estrito em determinada atividade que gere renda, visando articular e desenvolver o ensino em seus diversos níveis juntamente com ações do poder público que conduzam à formação para o trabalho, dentre outras. Esta política deve ser constituída de tal modo que integre sistemicamente as diversas iniciativas de qualificação e ensino técnico e tecnológico, traçando estratégias para sua implementação que ponderem o tempo necessário para contribuir para a garantia de qualidade das ações propostas. A construção de uma política nacional de educação profissional integrada deve englobar ações de ensino básico, técnico e tecnológico e qualificação profissional, tanto com estratégias para áreas urbanas quanto rurais, bem como contemplando efetivamente eixos de atuação específicos para enfrentamento das questões étnico-raciais e do núcleo duro da pobreza. O desenho desta política deve ser comprometido com uma escola de qualidade, outros espaços de qualificação igualmente de qualidade, uma relação estreita com os diversos níveis de ensino, a integração com o mundo do trabalho, a redução das desigualdades sociais e os
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desenvolvimentos territoriais e do país. Há de se criar um sistema de planejamento, acompanhamento e avaliação, que subsidie o (re)desenho de programas e ações em tempo oportuno, para o alcance de maior eficiência, eficácia, efetividade e eqüidade da política em foco. Esta política deveria ser implementada de modo articulado pelas pastas competentes, com as partes de ensino regular e EJA sendo coordenadas pelo MEC e de qualificação pelo MTE. Também deveria contar com a participação crucial do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, para ações em áreas rurais e do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, para estratégias que atinjam o núcleo duro da pobreza. Para coordenar todo o processo e gerir a política, seria importante a formação de um órgão gestor, que congregasse as pastas consideradas, e fosse um canal de diálogo com os outros atores relevantes da sociedade (educandos, trabalhadores, empregadores, profissionais liberais, técnicos, agências formadoras, Conselho Nacional de Educação, Sistema S etc.), e possuísse papel normativo e de controle. Para isso, teria que ser munido dos devidos instrumentos e da institucionalidade requerida para cumprir efetivamente as funções propostas. O Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Profissional constituiria a política nacional para educação profissional e monitoraria a implementação da mesma, promovendo pesquisas, avaliações e meta-avaliações, propondo aperfeiçoamentos, indicando o devido encaminhamento dos mesmos e averiguando sua aplicação. Outra instância necessária para a efetivação de tal política seria um Conselho Nacional de Educação Profissional, com caráter consultivo, que reunisse os principais atores que promovem este tipo de educação no país (como Sistema S, centrais sindicais, confederações empresariais, dentre outros), os órgãos da administração pública pertinentes (Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT, MEC, MTE, MDA etc.) e as instituições relevantes para o tema, como representantes do IBGE e o Ipea. Seria de grande importância reservar assento neste Conselho para representantes do Conselho Nacional de Educação – CNE, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – Cades, e do Conselho Deliberativo do Fundo
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de Amparo ao Trabalhador – Codefat. Tanto o conselho quanto o Órgão Gestor deveriam ter seus correlatos no nível estadual, considerando as devidas adaptações. Para que essa nova estruturação ganhe corpo e produza efetivamente diferença positiva na educação profissional no país, de tal modo que contribua para o desenvolvimento da nação, dois pontos têm que ser ponderados. Em primeiro lugar, haveria necessidade de pensar uma engenharia de financiamento que reunisse as fontes do FAT e do Fundeb37 em um sistema de vasos comunicantes, de tal modo que houvesse algum grau de flexibilidade na reorientação de um dos fundos para o financiamento de atividades que estejam na área de abrangência do outro fundo, e vice-versa, possibilitando maior eficiência no uso dos recursos, elevando a eficácia na promoção de atividades e fortalecendo a efetividade da política. O segundo ponto se refere à questão da institucionalidade. Nos últimos dezessete anos o arcabouço legal evoluiu no tocante a ensino técnico e à qualificação. Todavia, tanto a experiência do Planfor quanto do PNE deixam como lição a necessidade de dar concretude aos dispositivos legais. Sem um esforço maior na transposição das normas para atividades no mundo real, para o cotidiano dos gestores e executores, os resultados das políticas implementadas sempre ficarão muito aquém do esperado. Isso engloba uma série de atividades e a categórica necessidade de um sistema de avaliação que realmente subsidie melhorias tempestivas na política, mais especificamente nas ações, e contribua para afinar a orientação dessa política com os objetivos de desenvolvimento referidos no Plano Plurianual, na Declaração do Milênio e nos demais marcos legais. Em suma, para o devido alcance das Metas colocadas para a área de educação nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e para a transformação das intenções da Declaração do Milênio das Na37
Um exemplo seria um projeto que envolvesse EJA e qualificação, onde o Fundeb financiasse o aumento da escolaridade (EJA) e o FAT a parte relativa à qualificação. Esta seria uma alternativa mais simples do que o que está sendo proposto.
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ções Unidas em um projeto nacional de desenvolvimento integral, faz-se necessário avançar no aperfeiçoamento do sistema de financiamento da educação, em seus vários níveis e modalidades, atentando mais detidamente para o enfrentamento das desigualdades regionais e étnico-raciais. A promoção de uma educação de qualidade e para todos passa pela reflexão sobre a relação entre educação e mercado de trabalho, o que demanda nova abordagem do ensino e das ações de qualificação profissional no Brasil. A construção de um novo paradigma para a educação profissional no país, sob a ótica da cidadania e da sustentabilidade, é um desafio a ser encarado para além das Metas do Milênio. •••
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Limites e possibilidades do desenvolvimento local Juliana Simões Speranza
Mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA/UFRRJ e técnica da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida – Comitê Rio.
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Na década de 90 a expressão desenvolvimento local passa a ser amplamente difundida junto ao campo das políticas públicas de desenvolvimento e à própria reelaboração do conceito de desenvolvimento. O presente artigo aponta alguns indícios das circunstâncias que levam ao aparecimento da expressão, no cenário internacional e nacional, e entender o que significa promover o desenvolvimento local em termos de princípios norteadores e práticas. Como fonte de pesquisa são estudados trabalhos de pesquisadores que vêm se dedicando a definir o marco conceitual e teórico da noção, bem como as políticas brasileiras de promoção do desenvolvimento no Brasil que se baseiam na abordagem do desenvolvimento local, a saber, algumas: Programa de Desenvolvimento Local do BNDES, Programa de Desenvolvimento Econômico Local do Sebrae, Comunidade Ativa (Dlis). Como conclusão, observa-se que no cenário brasileiro a difusão da expressão guarda relações com o impacto das alterações no perfil do federalismo brasileiro com as mudanças na Constituição de 1988, relações com a construção de uma agenda internacional em favor da diminuição do papel do Estado e, existe entre os pesquisadores e instituições que pensam a abordagem do desenvolvimento local uma disputa por espaços e atenção das políticas públicas. In the nineteen nineties “Local Development” was an expression widely used in development policies and in rebuilding the very notion of development. This paper enlightens some circumstances that led to the advent of the term, in both international and national theaters, and to the understanding of what it means to promote local development guideline principles and practices. As research sources this work referred to papers dedicated to define the conceptual and theoretical framework of the expression, as well as to Brazilian development policies based upon local development, such as: the Local Development Program of the National Economic and Social Development Bank (BNDES); the Sebrae (a brazilian public-private small business development bureau) Local Development Program, and the Comunidade Ativa (a non governmental effort) Dlis Program. The conclusion is that in Brazil the term was spawned due to the impact of changes in the country’s federative profile, a result of the 1988 Constitution, of a new global agenda that favored the reduction of the state in society and, some researchers perceive the subject as a struggle for space and attention in public policies.
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Essas categorias, originadas em sua maioria em discursos críticos ao desenvolvimento vigente, têm sido apropriadas e ressemantizadas nos discursos e nas práticas dominantes do mainstream, expressos principalmente através dos bancos e das agências de desenvolvimento multilaterais e bilaterais, dos governos e de diversas organizações da sociedade civil. Inevitavelmente, como em geral acontece, quando atores sociais com ideologias, enfoques e práticas muito diversas confluem num conjunto comum de conceitos, existe uma considerável falta de clareza e até confusão com o seu significado real. Ao mesmo tempo existe uma desconfiança – justificável pela experiência recente – entre os críticos do desenvolvimento dominante que usaram inicialmente essas idéias, sobre os perigos de cooptação, diluição e distorção das mesmas (Sen, G;1997)
1. Introdução A década de 90, em especial no Brasil, mas, também, no cenário internacional, é marcada pelo aparecimento e a difusão da expressão desenvolvimento local, nos campos das políticas públicas, das experiências endógenas de promoção do desenvolvimento, e da produção acadêmica. Embora a expressão desenvolvimento local seja comumente usada nos mais variados campos, ainda se encontra pouco claro um entendimento sobre o seu significado. Em outras palavras, este artigo sustenta o argumento de que a expressão desenvolvimento local é apenas uma noção, pois seu referencial teórico encontra-se difuso e em construção, até o momento, portanto, de poder considerá-la finalmente um conceito definido. Por outro lado, o fato de a expressão ser utilizada pelos mais variados atores e, por possuir, conforme mais adiante será visto, múltiplas dimensões (social, política, econômica, humana, ética, ecológica), vem contribuindo para a dificuldade de definição de um conceito.
Extraído de ROMANO, Jorge. Recuperando a questão do poder no combate à pobreza. In: ROMANO, Jorge e ANTUNES, Marta. (Orgs.). Empoderamento e direitos no combate à pobreza. Rio de Janeiro: ActionAid Brazil, dezembro de 2002, p.9.
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Dessa forma, um dos objetivos deste artigo será delimitar – ainda que de forma múltipla em razão da sua própria natureza – algumas interpretações que permeiam o debate do desenvolvimento sobre o significado do desenvolvimento local: seus pressupostos, marco conceitual e princípios norteadores. O caminho escolhido para a apresentação das interpretações disponíveis identificadas é recuperar e apresentar as variadas linhas de entendimento para o desenvolvimento local presentes no debate nacional e internacional. Esta discussão estará presente na primeira seção do trabalho, intitulada de O que podemos compreender por desenvolvimento local? A construção desse caminho é autoral na medida em que são selecionadas dentre as diversas interpretações que compõem o complexo debate do desenvolvimento local aquelas consideradas mais representativas a explicar o grau de atração e difusão que a expressão desenvolvimento local ganha no Brasil. Vale destacar que se considera aqui o desenvolvimento local também uma abordagem, uma vez que a expressão possui um forte caráter de política pública, ou seja, a partir de metodologias e processos participativos é possível gerar intencionalidade política em direção a um projeto de desenvolvimento local. O território em construção aparece como o locus insubstituível da inclusão social. Em segundo lugar, assumindo que os conceitos são socialmente construídos e encerram um processo de disputa simbólica e econômica, entender os diferentes significados que têm sido dados à expressão desenvolvimento local irá revelar que essa expressão é um exemplo concreto no qual a luta simbólica e econômica do campo das classificações e categorias sociais tem se dado de forma bastante extremada. Sobre esse segundo aspecto, é a dimensão cidadã da expressão desenvolvimento local que merece considerável destaque. Isso porque categorias como participação social, cidadania, emancipação social, “empoderamento”, controle social e transparência social, presentes na abordagem do desenvolvimento local, têm sido apropriadas por variados atores e instituições e, por vezes, ressemantizadas. Assim, um movimento social, uma organização não-governamental, uma agência multilateral de desenvolvimento etc. podem utilizar as mesmas expressões – por exemplo,
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participação social –, todavia em alguns casos com significados completamente distintos. Na medida em que alguns autores acusam determinadas instituições, principalmente as agências de desenvolvimento multilaterais, de se apropriarem de categorias que por décadas foram preconizadas pelos movimentos sociais seguidos mais tarde pela sociedade civil organizada, sendo que as agências estariam despolitizando as categorias, ou seja, negando a existência de conflito nas relações sociais e no processo de promoção do desenvolvimento, esse assunto será tema da segunda seção do trabalho, Entendendo o processo de disputa da dimensão cidadã do desenvolvimento local. Ao ver deste artigo, a importância de tal problemática, a justificar a construção de uma seção específica neste trabalho, decorre principalmente do fato de que é o reconhecimento da dimensão cidadã junto ao processo de desenvolvimento uma das contribuições mais relevantes que a abordagem do desenvolvimento local consegue oferecer; porém, uma vez que essa dimensão cidadã passa a ser campo de disputa pelos atores e instituições, faz-se importante lançar algum entendimento sobre tal disputa. Finalmente, uma terceira seção que se segue tem como objetivo discutir os limites e as possibilidades da abordagem do desenvolvimento local. Este artigo sustenta que o desenvolvimento local representa importantes avanços para a compreensão do desenvolvimento enquanto um processo mais sistêmico e integrado, não obstante muito tem se esperado da abordagem do desenvolvimento local, sendo que a mesma apresenta limitações para o alcance do tamanho das expectativas geradas. Apenas a título de exemplo do conteúdo que será discutido nessa terceira seção, espera-se do desenvolvimento local a erradicação da pobreza no país; por outro lado, tem-se a limitação de que o desenvolvimento local é uma categoria relacional, logo, um projeto de desenvolvimento sem conexão com o plano nacional não é capaz de sozinho diminuir a pobreza brasileira – portanto, pergunta-se, como a articulação entre o desenvolvimento local e o plano nacional, ou mesmo global tem se dado? Para a compreensão das seções a seguir, dois pressupostos devem ser tomados em consideração. Por um lado, o aparecimento da expressão e abordagem do desenvolvimento local no Brasil guarda
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relação direta com um processo de construção de uma agenda do desenvolvimento local, realizada pelo Conselho da Comunidade Solidária . Ao mesmo tempo, o aparecimento e a difusão da expressão no país são influenciados pelos debates em torno do desenvolvimento no cenário internacional. 2. O que podemos compreender por desenvolvimento local? O debate brasileiro do desenvolvimento local na década de 90 é bastante extenso e difundido, especialmente no tocante à orientação de políticas públicas, a ponto de poder se afirmar que no Brasil é construída uma agenda do desenvolvimento local. As discussões que orientam essa agenda em parte têm origem no próprio debate em torno da reelaboração do conceito de desenvolvimento, que busca se adaptar às mudanças sociais, políticas e econômicas recentes vivenciadas pela maioria das regiões do mundo. Nesse processo de reelaboração, o desenvolvimento local e territorial ganha crescente importância. O território é compreendido como o locus ideal para as iniciativas de combate à pobreza e à desigualdade e de construção de processos participativos e democráticos – território aqui entendido como espaço socialmente construído, de fronteiras flexíveis, conforme as relações de proximidade e de co-presença entre os atores. Por outro lado, não se deve negligenciar existir uma forte intencionalidade política no debate do desenvolvimento local no Brasil, expressa de forma mais significativa a partir do Programa Comunidade Ativa e do seu Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável. O reconhecimento do desenvolvimento local como intencionalidade se dá através da criação de metodologias, fundamentos e métodos voltados para o desencadeamento de processos de desenvolvimento. As metodologias seriam definidas como indução ou apoio aos processos, a se somarem aos outros fatores tão decisivos quanto elas, que são os elementos endógenos do território.
Através das Rodadas de Interlocução Política da Comunidade Solidária, foi gerida a concepção do Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável (Dlis), com conseqüentes proposições de políticas.
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Existiriam múltiplas iniciativas que sugerem o desenvolvimento local como um processo nucleado a partir de experiências desencadeadoras. Nestes casos, a idéia do desenvolvimento local aparece como extensão e desdobramento de acúmulos focalizados, como uma perspectiva que se traduz em arranjos progressivos no território (novos atores, novas esferas de intervenção, novas ações), em vez de arranjos pré-desenhados. Porém, o cenário também viria sendo visivelmente pontuado por ações que envolvem metodologias explícitas de desenvolvimento local, gerando modelos, mais ou menos flexíveis, porém passíveis de implementação simultânea em diferentes lugares e regiões . Alguns estudiosos lançaram hipóteses para o porquê de no Brasil o debate do desenvolvimento local ter recebido tamanha atenção. Miranda e Magalhães (2004), por exemplo, sustentam que a expansão da abordagem do desenvolvimento local guarda relações com o aumento da pobreza e o fracasso de prognósticos otimistas e idealistas. Num ambiente de estagnação econômica para alguns e progresso econômico para outros, porém com crescente exclusão social, idéias sobre Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável teriam sido desenvolvidas. As condições criaram um ambiente onde era preciso construir alternativas urgentes. Os projetos de Dlis apresentariam elementos bastante sedutores para uma aproximação com a pobreza. Tais projetos incorporam o já tradicional modelo de práticas participativas, e ainda com a determinação de funções e lugares para os pobres se inserirem no processo de desenvolvimento e no mundo globalizado. Observar, por exemplo, segundo os autores, que os processos de capacitação são baseados no incremento da sua aptidão através do empreendedorismo. Já para Vianna da Cruz (2005), quando um mapeamento das políticas passa a ser realizado, este revela que as políticas públicas de promoção de desenvolvimento local no Brasil fazem parte de um campo diversificado e heterogêneo de atores que tem produzido inúmeras e profícuas parcerias. Em conseqüência, o campo de ações derivadas dessas parcerias possui nuances variadas de conteúdos, formas e sentidos. O alto grau de difusão e de influência das Conforme Silveira et alli (2001).
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propostas de desenvolvimento local ocorre tanto nos países capitalistas considerados mais desenvolvidos como na sua periferia, na qual se encontra o Brasil. O apelo das perspectivas e práticas de desenvolvimento local no Brasil viria da capacidade de aliar elementos tecnológicos e de mercado a aspectos políticos, sociais e culturais, tais como solidariedade, espírito comunitário, níveis elevados de renda e emprego. Em outras palavras, decorre da capacidade de realizar um processo efetivo de democratização do crescimento. Finalmente, o local entendido nos projetos em curso permite um recorte de múltiplas feições, pois o local tem sido difundido como espaço socialmente construído. Concorda-se com Miranda e Magalhães ao afirmarem que tal concepção de local, que permite abranger desde uma favela numa área urbana metropolitana a um bairro de cidade média e/ou uma pequena localidade rural, responde pela difusão dos programas, metodologias e experiências de desenvolvimento local no país. O local passa a ser produto do olhar e haveria disputas sobre a qual pobre os projetos voltam sua atenção. Algumas reflexões questionam sobre a viabilidade do desenvolvimento local como abordagem para a promoção do desenvolvimento nas grandes metrópoles. Mas o fato é que, seja no campo ou na favela, o desenvolvimento local tem sido empregado em diferentes localidades . Políticas públicas para o meio rural geralmente são elaboradas com um viés setorial e sem levar em conta os seus efeitos no desenvolvimento local. Essa fragmentação contribui para o avanço de alguns e a estagnação de outros setores, agravando mais os desequilíbrios do que propriamente os problemas que geram as desigualdades sociais. O desenvolvimento local seria importante na medida em que se constitui em uma política que viabilize para as comunidades menos favorecidas o acesso à infra-estrutura e serviços básicos, ao crédito, assistência técnica, mecanismos de comercialização e outros. Ainda
Na favela surge com o objetivo de responder aos desafios do conflito social local no quadro de crise urbano-metropolitana. Insere-se numa perspectiva de afirmação dos direitos das classes populares e de resgate da relação entre favela e cidadania (Bocayuva, 2005).
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tem por mérito abordar uma gestão participativa e democrática dos territórios. Trata-se de um novo processo de construção social, que vai depender muito da predisposição das instâncias públicas em abrir mão do seu poder em prol de decisões coletivas . Conforme os estudiosos do desenvolvimento rural, as novas formas de integração e a troca entre os diferentes segmentos espaciais e setores de atividade têm contribuído para que o corte urbano-rural ceda espaço para o enfoque na economia local. Finalmente, muito do debate do desenvolvimento local no Brasil se dá impulsionado pela realidade de um conjunto de experiências endógenas de desenvolvimento local que passam a existir nos municípios, estados e microrregiões. Isto reflete o impacto das alterações no perfil do federalismo brasileiro com as mudanças na Constituição de 1988. Inaugurando um ciclo descentralizador, o papel dos estados e, principalmente, dos municípios fora redefinido. Ao mesmo tempo em que os municípios e estados ganham maiores responsabilidades, em muitos casos, se vêem diante de uma diminuição da transferência de recursos da União para os mesmos. Perante esse panorama de uma necessidade de responderem rápido à escassez de recursos e à crescente demanda social da população, surgem diversas experiências inovadoras na gestão pública. A partir dessas experiências os pesquisadores passam a investigá-las impulsionados pelo anseio da replicabilidade e disseminação, e o tema do desenvolvimento local surge mais uma vez enquanto uma questão: qual a capacidade que os espaços locais têm em dar respostas aos desafios da promoção do desenvolvimento social, combate à pobreza e construção do exercício da cidadania ? Seja qual for a razão que leva ao aparecimento e à difusão do desenvolvimento local no Brasil, o importante a ser registrado é que o mesmo tem norteado um conjunto significativo de políticas
Campanhola e Graziano da Silva (2001). Pergunta feita pelo Programa Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e a Fundação Ford em parceria com o BNDES – criado em 1996, especialmente motivado por esta questão.
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públicas, assim como tem sido objeto de disputa de significados e sentidos pelos mais variados movimentos sociais, atores e instituições. Na medida em que um volume grande de recursos tem sido despendido no Brasil sob os marcos do desenvolvimento local, tendo como meta um objetivo caro para o país por décadas, a erradicação da pobreza e da desigualdade, pesquisar os princípios, eixos norteadores e resultados alcançados pelos variados programas de desenvolvimento local no país torna-se relevante para um monitoramento e avaliação da efetividade das ações. Outra razão a justificar um interesse no acompanhamento do tema do desenvolvimento local é que novos zoneamentos territoriais têm sido propostos, pactos sociais têm sido estabelecidos a partir das idéias de consórcios intermunicipais, agências de desenvolvimento, fóruns e conselhos, e nesses espaços recursos financeiros e a atenção da política pública têm sido disputados pelos diferentes atores sociais em jogo. Sendo assim, um primeiro passo para se inserir no debate do desenvolvimento local é identificar e compreender as diferentes linhas de interpretação, das mais variadas origens (econômica, ecológica, política, sociológica etc.) que se aproximam e se apropriam da abordagem do desenvolvimento local. Este é o objetivo dos apontamentos a seguir, que vêm a se constituir numa resenha crítica sobre as diferentes interpretações. Esta seção está organizada em duas subseções principais. É o próprio debate em torno do desenvolvimento local que delimita a construção de duas subseções específicas. Essas subseções guardam relação com os caminhos que o debate em torno do tema do desenvolvimento local tem percorrido no Brasil. A primeira subseção, Desenvolvimento local e deslocamento de paradigmas, mostra a influência do debate internacional em torno das discussões brasileiras. A segunda subseção, A construção de uma agenda brasileira do desenvolvimento local, apresenta o debate que é construído internamente no país, através de um grupo de pesquisadores que tem apresentado uma forte capacidade de influenciar os rumos das políticas públicas de desenvolvimento no Brasil.
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2.1 Desenvolvimento local e deslocamento de paradigmas: a influência do debate internacional Este artigo sustenta que parte da relação entre o tema do desenvolvimento local e o debate internacional em torno do desenvolvimento decorre da interpretação de que o próprio conceito de desenvolvimento estaria em crise e passando por um processo de reelaboração – em função de importantes mudanças sociais, econômicas e políticas recentes. O estado das artes do desenvolvimento busca respostas para o fim do fordismo, crise do Estado do Bem-Estar Social, aumento do trabalho imaterial, os processos de redemocratização na América Latina, o período pós-Consenso de Washington, as conseqüências da globalização, dentre outras mudanças importantes. Seja a partir de uma abordagem econômica ou a partir de uma abordagem político-social, o que se tem é que o debate do desenvolvimento vem realizando uma aproximação crescente à idéia do território como o espaço ideal à promoção de um desenvolvimento mais inclusivo, capaz de lutar pela eliminação das desigualdades sociais e pelo fim da pobreza. Essa aproximação seria resultado da observação, na prática, de locais e regiões que foram capazes de promover um desenvolvimento econômico diversificado – baseado em cadeias e inovações produtivas locais – e que também a partir da mobilização comunitária e da participação popular foram capazes de romper relações de dominação e poder e instaurar processos mais participativos e democráticos. Vale ressaltar que o debate do desenvolvimento local como a seguir poderá ser observado é um debate heterogêneo, extenso e difuso. Recebe fortes influências de desenvolvimentos experimentados pautados em clusters e distritos industriais internacionais (desenvolvimento econômico local), recebe fortes influências do debate em torno do desenvolvimento enquanto fim e meio para a melhoria da qualidade de vida das pessoas (desenvolvimento humano), recebe fortes influências das discussões em torno das conseqüências da globalização (nexo global-local), recebe fortes influências das inovações participativas e democráticas hoje em curso no planeta (instauração de governos de proximidade).
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2.1.1 Estado, Mercado e Sociedade Civil Silveira (2004), em seu esforço de sumariar os marcos conceituais e teóricos do desenvolvimento local, aponta que o redescobrimento da dimensão territorial, em especial o elo entre globalização e localização, estaria relacionado a mudanças estruturais ocorridas nas últimas décadas. Estas mudanças, componentes de um conjunto de aspectos combinados, teriam também introduzido novas alternativas em torno do desenvolvimento local, conforme o autor, “claramente distintas das idéias que – com a mesma denominação – surgiram em décadas anteriores”. O padrão de produção fordista teria entrado em colapso, e, ao contrário de anteriormente, quando as empresas eram capazes de padronizar a vida social dos indivíduos, nesse momento não existiria nenhum padrão ou modelo determinista, mas sim percursos diversos em direção ao pós-fordismo, que no limite nos permitem apenas identificar estar ocorrendo uma recomposição entre as dimensões política, econômica e social, tendo a informação e a comunicação como elementos norteadores. Diferentes formas organizacionais e configurações produtivas estariam convivendo junto a novas modalidades de articulação territorial da vida produtiva, como os distritos industriais. Quanto à condição de produção de bens e serviços, esta passa a depender mais da subjetividade e dos níveis de socialização e comunicação entre os trabalhadores, do que de uma relação entre a produtividade do trabalho e os salários. O trabalhador não precisa mais separar sua força de trabalho de seus recursos intelectuais e afetivos e, dessa forma, são as articulações sociais dos fatores imateriais que vêm a tornar-se as potencialidades típicas das dinâmicas produtivas pós-fordismo, estando essas articulações difusas nos territórios. Nesse cenário de alterações produtivas com o fim do padrão fordista, o desenvolvimento passa a incorporar elementos extra-econômicos do campo da cultura e dos direitos, dos vínculos sociais e de relações de confiança e ajuda mútua, a conformar um tecido social cooperativo, e no qual os indivíduos sejam integrados socialmente a partir do acesso aos seus direitos. Torna-se afirmativo que
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o crescimento econômico por si só, mesmo que acompanhado de ações redistributivas, não garante a inclusão social. Para Silveira, se no fordismo a inserção produtiva era a condição da integração cidadã, no pós-fordismo a cidadania tornou-se a condição sine qua non da integração produtiva. Tais mudanças e deslocamentos apresentados estariam revelando a necessidade de elaborar outros parâmetros de desenvolvimento que não fossem pautados nos mercados e nem nos Estados, e o que se vislumbra é uma recomposição da articulação entre as dimensões social, econômica e política, em direção a outros referenciais de desenvolvimento – distintos do padrão de desenvolvimento desigual e combinado. Nesse modelo de desenvolvimento que começa a se configurar, estariam sendo requeridos novos mecanismos de socialização e de democratização, e o ambiente no qual são identificadas as condições estruturais para tais mecanismos contempla perspectivas como a de desenvolvimento territorial ou desenvolvimento local. Para Dowbor (2005), a sociedade estaria vivendo um momento no qual, cotidianamente, se faz necessário repensar os seus caminhos. O Capitalismo de hoje remete a novas dinâmicas e a outros conceitos. A classe trabalhadora, por exemplo, tornou-se um universo extremamente diversificado no quadro da nova complexidade social, e a sua compreensão resiste cada vez mais às simplificações tradicionais. A socialização dos meios de produção mudou de rumo. O Estado estaria à procura de novos papéis, não mais como substituto das forças sociais, mas enquanto articulador. O autor ressalta que o conjunto de mudanças em curso é qualitativo. Diante das mudanças, que ocorreram de forma progressiva e sem um momento preciso de ruptura, chama a atenção para um “espichamento” ocorrido dos conceitos – para cobrir uma realidade cada vez mais complexa e que ninguém saberia ainda ao certo interpretar. Na visão do autor a construção da política tem de ser mais ampla: trata-se de resgatar a dimensão cidadã da política, a força do cotidiano comum, no lugar das discussões em torno da grande utopia. Pelo lado da articulação entre os objetivos econômicos, sociais e ambientais da eficiência econômica não decorre naturalmente a justiça social, ou o respeito ao meio ambiente. Da mesma forma,
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centrar tudo na justiça social sem assegurar os recursos econômicos dos investimentos sociais tem pouco sentido. Finalmente, dentre as principais tendências de deslocamentos de paradigmas e perspectivas futuras identificadas por Dowbor, ressalta-se a afirmação de que o período atual assiste a um deslocamento do desenvolvimento pautado no tripé estatal para um desenvolvimento pautado no tripé social. O Estado surge como articulador de um novo pacto social a definir. Os objetivos sociais e democráticos deixam de ser assistenciais para serem pautados na cidadania. Não é suficiente atingir os objetivos sociais, é preciso atingi-los de maneira democrática. Trata-se de compreender o direito de construir o próprio caminho e não apenas o de receber coisas úteis sob forma de favor. Com isso, o debate deve se deslocar da discussão obsessiva sobre se será melhor o poder nas mãos das oligarquias empresariais ou das oligarquias políticas, para colocar o problema no nível da relação entre o poder econômico e o poder político e a sociedade civil. O momento é de uma diversidade de soluções institucionais, de uma articulação de mecanismos diversificados de regulação. Ao mesmo tempo em que há uma fragilização do Estado diante do quadro da globalização, por outro lado o contrapeso da sociedade civil torna-se maior. A sociedade civil, a partir das novas tecnologias facilitadoras da conectividade, passou a se organizar em rede e abriu oportunidades para um espaço de modernização e democratização da gestão pública, econômica e social. Dessa forma interroga-se o problema da emergência de um capitalismo global e a legitimidade interna – “Como construir projetos políticos nacionais, regionais e locais, dentro de um quadro econômico e político manejado por atores que trabalham a nível global divorciados dos controles sociais e políticos?”. Em outras palavras, a busca por uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável se choca com o fato evidente de a economia ter sido tornada, em grande parte, global, enquanto os instrumentos políticos continuam nacionais. Não obstante a isso, para o autor, essa dificuldade, todavia, não impede as pessoas de defenderem um projeto de desenvolvimento que privilegie a qualidade de vida das populações, tenha como
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foco de ação a inserção dos excluídos, e valorize os objetivos sociais dos processos produtivos. Aponta-se que, dentre alguns estudiosos do desenvolvimento, uma tendência parece assinalar que são os espaços locais os universos capazes de, perante as mudanças sociais recentes, atender ao projeto de promoção do desenvolvimento humano, sustentável, e com inclusão social. 2.1.2 O nexo global-local Bourdin (2001) é outro autor que, embora fora do circuito brasileiro, oferece importantes contribuições para entender a problemática da questão local . Interessado em entender o lugar da dimensão local nas sociedades contemporâneas, o pesquisador tenta encontrar um fio condutor para organizar o debate e assim elabora três frentes de pesquisa: (i) a existência de uma visão hiperfocalista da sociedade, (ii) o local como baluarte da mundialização; (iii) o local como o lugar principal da democracia. Sobre o primeiro item coloca-se que os sociólogos estariam se perguntando se ainda existe uma sociedade, e daí decorrem as teorias que procuram justificar o valor atribuído à localidade, à proximidade, ao “enraizamento num lugar”. Segundo Bourdin (2001), as ciências sociais se desenvolveram em torno da hipótese de uma complexificação das sociedades, mas, nas últimas décadas, uma corrente questiona esta hipótese, afirmando que tal forma de complexificação social representa um fracasso e que o futuro das sociedades humanas está numa volta aos grupos primários (família, vizinhos, comunidade). O segundo debate gira em torno da mundialização. A linguagem ofereceria então um caminho, e o antônimo habitual do mundial em muitas línguas vem a ser o local. Segundo o autor, é
Bourdin é sociólogo e professor do Instituto Francês de Urbanismo (Universidade de Paris VIII) e traz contribuições para entender alguns aspectos e dimensões do desenvolvimento local, embora trabalhe com a noção de questão local, ao invés de desenvolvimento local. Seus trabalhos têm sido bastante utilizados como fontes de pesquisa na discussão brasileira em torno do tema do desenvolvimento local.
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assim que se há de imaginar o local como lugar de resistência à mundialização. O local seria exacerbado enquanto procura pela estabilidade. O indivíduo recorre a ele em busca de proteção, procurando projetar sua subjetividade recusada pelo global e o ligar-se com o mundo teria produzido um local de identidade radical na busca pela autenticidade . A terceira frente coloca em evidência as dimensões da gestão local, da boa governança e do modelo dos direitos humanos e do governo democrático. As sociedades (complexas) teriam sido tornadas cada vez mais difíceis de serem governadas e, nesse contexto, elas procuram se refugiar na democracia local. O desafio é o de articular todos os atores locais, públicos e privados, políticos, econômicos e sociais, na busca da ação coletiva pelo bem comum, e a preferência é pela instauração de democracias de proximidade. Em Bourdin (2001), a mundialização para além da sua vertente econômica deve ser também interpretada como um processo de redefinição de pertenças sociais, que vem por sua vez estruturar fortemente a localidade. Essa recomposição dos sistemas de pertença caracteriza-se pela busca do “entre si” e da exclusividade. O apego ao local, por outro lado, também permite pensar, além de estar relacionado, ao definhamento do Estado. Estado e nação não estariam mais casados. O Estado se torna cada vez mais exterior aos cidadãos e vice-versa. A associação entre soberania, territorialidade, cidadania e nacionalidade, que são os fundamentos do Estado moderno, fica cada vez mais difícil de ser sustentada. O local assume importância como o único nível real possível de se construir as verdadeiras solidariedades para a construção da vontade coletiva, ou,
A título de comparação, Bauman (2003) é outro autor que comunga de uma visão próxima. Na atual pós-modernidade, o tema da comunidade e identidade ressurge como a busca por segurança no mundo contemporâneo. A dura realidade da pobreza, violência, criminalidade, mais a crise do Estado protetor tornam a comunidade ainda mais atraente nos dias atuais. Isso porque comunidade remete à coisa boa, à proteção, a relações entre vizinhos, amigos e iguais, e, portanto, ao invés da idéia do desaparecimento das fronteiras, segundo o autor, as fronteiras têm sido erguidas em cada nova esquina de cada bairro decadente de nosso mundo.
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como também é interpretado, o nível ideal para uma gestão flexível e realista da intervenção pública na resolução dos problemas. Em Globalização e espacialidade: o novo papel do local, Albagli (1999) analisa qual o papel do local diante do processo da globalização hoje em curso. A autora identifica dois grupos de opinião no debate. O primeiro acredita na “desterritorialização” das atividades humanas e na “despersonalização” do lugar como singularidade (fim da geografia e anulação do espaço). Já o segundo acredita numa “reinvenção” do local, que leva à reafirmação da dimensão espacial. Para este último, haveria uma acentuação da importância conferida à diferenciação concreta entre os lugares. A globalização é compreendida a partir da passagem a um novo paradigma tecnológico-econômico, centrado nas modernas tecnologias de informação e comunicação, que acabaram por anular o espaço através do tempo. Em termos socioculturais, segundo a autora, apesar do mito da homogeneização ocidental do planeta, a globalização tem provocado menos a uniformidade e mais a diferenciação e complexificação cultural. Ademais, o próprio desenvolvimento das redes de comunicação tem permitido ampliar a consciência do mundo sobre a sua diversidade cultural. Haveria, assim, aqueles que acreditam que a globalização não significou o fim de toda identidade territorial estável e que cada sociedade ou grupo social seria capaz de preservar e desenvolver seu próprio quadro de representações – expressando uma identidade espacial e comunitária em torno da localidade. É como se a localidade oferecesse uma resistência a uma memória espacial. Como numa contrareação, o local surge como espaço privilegiado de resistência. Finalmente, no plano econômico, a globalização revaloriza e reinventa o espaço local ao promover uma concorrência entre os lugares. Quais são as localidades que oferecem maior vantagem econômica? não é uma pergunta nova, pelo contrário, é antiga, mas o que se apresenta de novo é a sua resposta. Hoje são os recursos informacionais e de comunicação e os imateriais – no lugar dos recursos característicos do período do industrialismo – que influenciam as escolhas sobre as regiões mais dinâmicas. Como conclusão, a autora interpreta o lugar do local nos dois importantes modelos de desenvolvimento em curso, dentre um
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conjunto diverso de trajetórias existentes: o neoliberal de inserção comPetitiva e o do desenvolvimento sustentável. No primeiro, acredita-se que, se hoje o sistema econômico necessita ser globalizado, também demanda ancoragens físicas para os empreendimentos produtivos e a reprodução do capital (baseada principalmente nas tecnologias de informação e comunicação). No segundo, o modelo de desenvolvimento sustentável, o local atua como palco de transformações sociais, políticas e econômicas. O local representa uma fronteira experimental para o exercício de novas práticas solidárias e cooperativas e para o estabelecimento de redes sociais fundadas em novas territorialidades. Em suma, através de uma breve apresentação em torno do nexo global-local, observa-se que o tema do desenvolvimento local também emerge desse debate, quando é compreendido como espaço de contra-reação à exclusão social gerada pela globalização. Também em Silveira (2004), já anteriormente apresentado, foi possível localizar discussões em torno do nexo global-local. Para esse autor, este nexo deve ser interpretado a partir do potencial transformador que reside na produção de vínculos entre o espaço dos lugares e o espaço dos fluxos, e a emergência do desenvolvimento local surge como um dos campos de alternativas hoje em jogo. 2.1.3 Desenvolvimento econômico local O debate sobre desenvolvimento local também emerge a partir de outras duas discussões/influências, complementares entre si: (a) a que associa a apropriação do desenvolvimento local aos novos rumos das políticas públicas ativas de desenvolvimento econômico e social no Brasil, (b) a que debate as inovações produtivas atuais a partir de conceitos como arranjos produtivos locais, cadeias produtivas, e (nova) ambiência produtiva. Para Giuseppe Cocco e Alexandre Galvão (2001), o local estaria sendo apropriado como referência aos novos rumos das políticas públicas ativas de desenvolvimento econômico e social no Brasil, basta ver as recentes proposições e programas do BNDES, Caixa Econômica Federal (CEF), Sebrae, Senai, entre outros. Na sua grande parte o desenvolvimento local estaria relacionado à redescober-
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ta do êxito de importantes clusters industriais e de sistemas locais de inovação do planeta (Terceira Itália, Silicon Valley na Califórnia, Baden-Württenberg na Alemanha). Como características exaltadas destes distritos industriais tomam-se: o foco na flexibilidade produtiva e capacidade inovadora das pequenas e médias empresas (PMEs), o protagonismo das ações locais e regionais, o empreendedorismo como motor do dinamismo, e as novas formas de articulação social da produção. Em suma, as dimensões produtivas das redes sociais que desenham os territórios. O problema dessa interpretação, para os autores, é que ela peca por reduzir o desenvolvimento local às dinâmicas de integração horizontal e vertical das PMEs. No caso da Terceira Itália, por exemplo, os antecedentes de um Estado atuante no controle do desempenho macroeconômico do país e junto às políticas de Welfare State ajudam a explicar em muito o sucesso do desempenho econômico e social alcançado pelos seus distritos. Em outras palavras, reconhecer apenas o papel das PMEs – ignorando seu ambiente político-cultural-institucional (dimensões cidadãs que caracterizam os distritos) – não é suficiente para indicar e apreender as dinâmicas qualificadas do desenvolvimento local. Se for o caso de se aprender com o modelo da Terceira Itália, então, em vez de reconhecer apenas este aspecto, faz-se necessário apreender os elementos universais e paradigmáticos que se processam junto aos deslocamentos das transformações econômicas em curso em tal região. Um desses elementos seria a crise do padrão fordista-taylorista. Para o desenvolvimento local esta crise imposta deveria representar uma oportunidade (desejável) para se alcançar um novo modelo e um novo patamar de desenvolvimento e, sobretudo, de integração política entre o econômico e o social. O novo regime de acumulação, alternativo ao da grande indústria integrada integralmente, aparece na visão destes dois autores, como algo fortemente localizado, ancorado às dimensões sociais, culturais e históricas dos locais de atuação das empresas. A dimensão local torna-se, antes de tudo, o espaço de uma nova dinâmica produtiva, cujas mediações sociais não são mais subordinadas ao Estado. Assim, o debate em torno do desenvolvimento local também remete a pensar as dimensões da construção da cidadania
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e da universalização dos direitos. A construção da esfera pública da cidadania confirma-se como condição essencial à redução das desigualdades e, sobretudo, para a recomposição entre dinâmicas econômicas e de emancipação social. Outra relação interessante apontada pelos dois autores é a do desenvolvimento local com a construção social dos mercados. O local apresenta-se como possibilidade de construção de um novo marco de regulação do mercado e da mediação social: processo de democratização real do acesso aos meios de produção e à propriedade, ampliação da distribuição da renda e das formas de apropriação regional dos dispositivos nacionais de welfare, reorganização do comando em uma nova hierarquização capitalista. Bocayuva (2001) é um segundo autor que também aborda o tema do desenvolvimento local a partir da sua relação com as redes socioprodutivas. Em síntese, o importante a ressaltar sobre o seu trabalho é a importância que é dada à dimensão do conflito. O território é percebido como objeto de construção de novas alternativas/estratégias de desenvolvimento. A temática do desenvolvimento local é apresentada contextualizada a partir da globalização das redes transnacionais financeiras e de produção, diante do seu impacto sobre as relações sociais e produtivas territorializadas. Tal como uma contra-reação à exclusão gerada a uma parte da população pelo processo desigual de acumulação de capital, o autor espera existir, assim como já consegue identificar algumas “trajetórias vitoriosas”, novas saídas políticas e novas vias de desenvolvimento com capacidade de responder aos processos de desterritorialização e exclusão. Um dos resultados da acumulação desigual do capital teria sido que as ações produtivas passaram a depender diretamente da capacidade de ação dos sujeitos sociais e das instituições políticas. Redes de empresas, microempreendimentos, cooperativas e organizações de autogestão surgem como os padrões de solidariedade e de cooperação produtiva – baseados na valorização de processos participativos e redistributivos – a nortear o processo de construção de uma proposta de desenvolvimento alternativo. Os casos bem-sucedidos de desenvolvimento endógeno são orientados por estratégias de formação de redes político-sociais
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como também tecnológicas. Para o autor, a saída para as dificuldades e restrições colocadas para a integração das economias nacionais ao quadro atual das condições para a acumulação de capital exige uma virada de ótica. Tal virada deve observar os padrões de êxito na resistência social das populações, na construção de estratégias políticas socialmente sustentáveis e na organização produtiva com base em recursos desconsiderados pelos padrões tradicionais de modernização. A vitalidade e os processos de resistência e conflito em relação aos mecanismos dominantes, nos fluxos e redes empresariais e na geopolítica multinacional, paradoxalmente, dependem da dimensão local enquanto lugar de ordenamento e agenciamento de contraestratégias. O conflito local gera a emergência de alternativas de mundialização a partir de blocos de forças atravessados pelas metamorfoses na divisão internacional do trabalho10. Diante de um novo ambiente institucional, as lógicas socioculturais e ambientais passam a ser apreciadas para a construção de políticas públicas e na definição da agenda de prioridades dos agentes. Haveria uma disputa de sentidos e iniciativas que redirecionam os projetos e políticas de desenvolvimento. O espaço local, dessa forma, vem tornando-se campo de mobilização e resistência para os mais variados conflitos: movimentos sociais urbanos, disputas entre capital e trabalho, para os movimentos dos sem-terra, das mulheres, dos indígenas, negros etc. Dias Coelho (2001), na tentativa de compreender o território como uma construção social e de delimitar os elementos e questões-chave necessários à criação de uma nova ambiência produtiva dos territórios, oferece importantes contribuições a respeito. Sobre o território, é preciso conhecê-lo, analisar historicamente o jogo social dos atores, sua interatividade, a cultura empreendedora, o lugar e os fluxos materiais e imateriais que o produzem socialmente. Ademais, na construção social do território deve existir intencionalidade voltada a mudanças nas relações de poder. Para tal o desenvolvimento local deve ser pensado como pacto territorial em torno do desenvolvimento e da alta mobilização dos 10
Bocayuva (2001), p.4.
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recursos locais, além da formação de redes econômico-sociais. No caminho da pactuação deve ser incluído o fortalecimento de lideranças locais, tanto comunitárias como sindicais e empresariais. Em segundo lugar, deve incluir a criação de um sentimento de solidariedade social e territorial que rompa com o individualismo exacerbado. Deve estimular, ainda, a formação de uma cultura de responsabilidade pública e de controle social. Por fim, deve, principalmente, mobilizar diferentes culturas, criando redes e uma interconectividade que opere numa dimensão coletiva, a quebrar o isolamento e mobilizar os saberes locais, gerando uma cultura de projetos que rompa com a dependência a agentes externos. Todos esses elementos seriam componentes de uma estratégia integrada de instituições locais no enfrentamento da fragmentação territorial e da exclusão econômica, social e cultural. Para o autor, os processos de desenvolvimento local mostram que a identidade territorial, assim como a sinergia social, não deve ser entendida como algo que simplesmente existe devido a uma determinada conjugação de fatores geográficos e circunstâncias, mas sim como algo que é construído historicamente. Os habitantes de um determinado território devem consolidar a percepção do fato de que, apesar das diferenças e divergências que possam ter, também têm fortes afinidades e muitos interesses em comum. Dessa forma, o desenvolvimento local caracteriza-se pela constituição de uma ambiência produtiva inovadora na qual se desenvolvem e se institucionalizam formas de cooperação e integração das cadeias produtivas e das redes econômicas e sociais, de tal modo a ampliar as oportunidades locais, a gerar trabalho e renda, atrair novos negócios e criar condições para um desenvolvimento humano sustentável. Essa interpretação é desenvolvida sob os marcos de uma nova institucionalidade do local que compreende quatro ambiências principais: econômica, ecológica, social e política. Nessa interpretação o desenvolvimento local também aparece como uma noção relativa ao global, uma resposta a mudanças avassaladoras que partem do plano global e repercutem no território local. Para tal deve haver a constituição de sujeitos sociais locais com capacidade de intervenção, ou seja, a promoção do desenvolvimento local fica entregue ao esforço dos atores locais.
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Parcerias entre os atores públicos e privados com um alto nível de acordo entre as instituições, as empresas e a sociedade civil organizada, em torno de programas estruturantes, passam a ser requeridas. O princípio é o da promoção de um “desenvolvimento partindo de baixo”. Como uma conclusão a ser elaborada, a partir dos três textos apresentados, tem-se que é possível apreender a visão daquilo que Cocco e Galvão (2001) foram enfáticos em destacar. Não há modelo estabelecido de desenvolvimento local em torno do qual seria possível criar e organizar um consenso, não haveria sentido nenhum tentar determinar um modelo único de referência. Não obstante, os textos reconhecem existir uma variedade de experiências e caminhos de resistência ao processo de exclusão social. Estes caminhos, por sua vez, têm como elementos comuns o território como locus de ação das políticas e iniciativas, somando-se à redefinição e à necessidade de reinvenção do papel do Estado no desafio da promoção do desenvolvimento local, com considerável destaque para as administrações municipais. 2.1.4 O debate do desenvolvimento local na América Latina Os processos de redemocratização vivenciados recentemente pela América Latina e a sua forte característica de historicamente apresentar um cenário de constante exclusão e desigualdade social direcionam uma parte do debate sobre desenvolvimento local para o foco na sua dimensão participativa e cidadã. Mais especificamente, na medida em que o desenvolvimento local surge como proposta alternativa ao modelo de desenvolvimento desigual e que tem no esforço dos atores sociais um papel determinante para a construção desse modelo alternativo, alguns autores, críticos, sugerem procurar entender quais são os limites e possibilidades do desenvolvimento local para reversão do atual ordenamento político, social e econômico desigual, e, ainda, se as sociedades locais têm capacidades para gerar iniciativas próprias. Por ora, fica-se com a última pergunta, que foi formulada por Gallichio (2002). A resposta à primeira, por sua vez, está sendo construída ao longo da dissertação deste artigo.
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Gallichio estudou os marcos conceituais do desenvolvimento local em sua relação com a temática do ‘empoderamento’, e em relação às teorias de desenvolvimento na América Latina. Dentre os paradigmas do desenvolvimento e a sua suposta crise, surge então o enfoque do desenvolvimento local. Para o autor não há uma teoria do desenvolvimento local, mas diferentes teorias do desenvolvimento, que diferem entre si quanto à forma de ser considerado o local. Sobre ‘empoderamento’, afirma que o âmbito local surge como o meio mais relevante para dar-lhes corpo. “Os processos de ‘empoderamento’ devem estar fortemente ligados ao território, este entendido como o contínuo entre identidade, história e projeto11”. É nesse sentido que se afirmaria que o desafio do enfoque do desenvolvimento local está na capacidade dos atores em utilizar os recursos endógenos do território e, ao mesmo tempo, captar os exógenos, para a melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes. Em outras palavras, o desenvolvimento local surge como uma nova forma de olhar e de atuar a partir do território, nesse contexto de globalização. O desafio para as sociedades locais está colocado em termos de inserirem-se de forma comPetitiva no global, capitalizando ao máximo suas capacidades locais e regionais, através das estratégias dos diferentes atores em jogo. O desenvolvimento local pressupõe uma visão estratégica do território, atores com capacidade de iniciativa e uma identidade cultural como alavanca do desenvolvimento. Um processo que requer atores e agentes de desenvolvimento no desafio de construção da cidadania. Na busca do ‘empoderamento’ as pessoas devem ser capazes de moldar seus próprios processos e projetos de desenvolvimento. O papel do Estado na promoção da eqüidade permanece, mas ao mesmo tempo é útil reconhecer a importância de práticas sociais autônomas, a existir na sociedade civil. Um dos sentidos últimos do desenvolvimento torna-se dar sentido e significação à participação na sociedade. 11
Por exemplo, enquanto para os evolucionistas os atores locais não têm nenhum papel a cumprir, salvo seguir o melhor possível os rumos do crescimento econômico, já para o historicismo o endógeno é claramente privilegiado, e os fatores estruturais e globais perdem importância.
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Logo, sobre a pergunta formulada pelo autor, se as sociedades locais têm capacidades para gerar iniciativas próprias, este artigo defende que no contexto latino-americano tal pergunta torna-se ainda mais relevante, na medida em que a região passou por um processo de Reforma do Estado, com a diminuição do seu papel e um conseqüente processo de descentralização. Em suma, mais do que respostas sobre se a sociedades locais têm capacidades para gerar iniciativas próprias, o autor traz contribuições que nos levam à percepção de que a partir do desenvolvimento local a sociedade tem sido chamada a ampliar a sua condição de agente do desenvolvimento. Aqui ganham espaço, portanto, a importância da cidadania, engajamento cívico, participação e mobilização popular e controle social das políticas públicas que as pessoas podem realizar. Todas essas iniciativas, no entanto, devem ser direcionadas à promoção de um desenvolvimento econômico-social que só faz sentido se a emancipação social e a autonomia dos indivíduos puderem ser alcançadas, o que por muitas vezes requer mudanças de relações e estruturas de poder históricas para a América Latina. 2.2 A construção de uma agenda brasileira do desenvolvimento local: o desenvolvimento local, integrado e sustentável As diferentes interpretações para o significado do desenvolvimento local anteriormente apresentadas, e que muito têm a ver com o próprio debate em torno do desenvolvimento – perturbado pelas transformações sociais, econômicas e políticas recentes –, fazem parte do debate brasileiro do desenvolvimento local. A partir da década de 90 este debate mostra-se tão intenso no Brasil, em especial influenciando os rumos das políticas públicas, que é possível falar inclusive na construção de uma agenda do desenvolvimento local no país. Essa agenda, conforme destacaram alguns autores anteriormente, gera frutos para o campo das políticas públicas, redirecionando seus rumos e chegando até a elaborar projetos e programas específicos de promoção do desenvolvimento local. Destacam-se os programas de desenvolvimento local do BN/Pnud, mais tarde BNDES/Pnud, do Sebrae, os promovidos por ONGs e entidades do Terceiro Setor, mas, especialmente, iniciativas de promoção do Desenvolvimento Local,
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Integrado e Sustentável (Dlis), abordagem que foi desenvolvida nos marcos do Conselho da Comunidade Solidária e que ganhou expressão e notoriedade nos mais variados espaços de produção acadêmica e científica e de formulação das políticas públicas brasileiras. Em razão da sua expressão e da sua perspectiva de constituirse em um grande programa de desenvolvimento local ao nível nacional, considera-se relevante apresentar rapidamente o que venha ser a abordagem do Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável, em termos analíticos e operacionais. Especialmente porque se acredita que o grupo de pesquisadores e formuladores de políticas que participaram das Rodadas de Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária constitui-se em principal ator social em jogo na disputa de sentidos e significados do desenvolvimento local. Ao discutir os motivos que levaram o tema genérico do desenvolvimento local a atrair a atenção de tantas pessoas e de tantos atores institucionais, governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais, sobretudo na presente década, Augusto de Franco (2000) investiga o porquê de se falar em desenvolvimento local em uma época de globalização12. Segundo Franco (2000) existiriam dois pontos de vista: o daqueles que não interrogam o padrão de desenvolvimento atual e o daqueles que interrogam o padrão. Para o primeiro, cuja dinâmica é reconhecida primordialmente pela economia, a globalização estaria criando a necessidade de formação de identidades e, conseqüentemente, de diferenciação de setores e também de localidades. As localidades em alguns casos chegam a ser mercantilizadas como marca de produtos típicos. Já o segundo campo de interpretação não subordina todas as dimensões do desenvolvimento à sua dimensão econômica – há o reconhecimento de dimensões extra-econômicas do fenômeno da globalização, por exemplo, a dimensão cultural, aumento da diferenciação e complexidade nas sociedades. Esse segundo não acredita que a racionalidade do mercado deva orientar todos os esforços de promoção do desenvolvimento local. 12
Augusto de Franco foi membro do comitê-executivo da Comunidade Solidária e coordenador do Programa de Interlocução Política.
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Em suma, enquanto o primeiro interpreta o desenvolvimento local como uma estratégia a posicionar vantajosamente espaços socioterritoriais delimitados no mercado globalizado, o segundo tem como proposta a adoção de uma visão mais sistêmica de desenvolvimento local e que defende a necessidade de repensar o padrão de desenvolvimento atual tendo por base o local. A segunda visão teria sido formada a partir de várias contribuições: da experiência das comunidades alternativas, do movimento socioambiental, da ação cidadã, dos pressupostos da economia heterodoxa avessa à ditadura do crescimento, das organizações da sociedade civil, entre outras. Concretamente para Franco (2000) promover o desenvolvimento local significa garantir as pessoas o acesso à cidadania e aos recursos da vida civilizada. Não bastaria crescer economicamente, é preciso aumentar o grau de acesso das pessoas à riqueza, ao conhecimento e à capacidade de influir nas decisões públicas (ao poder) simultaneamente. Em outras palavras, gerar renda, multiplicar o número de proprietários produtivos e aumentar o número de organizações da sociedade civil. Todos esses fatores devem ser promovidos ao mesmo tempo para a instauração de múltiplos laços de realimentação de esforço na promoção do desenvolvimento – a gerar círculos virtuosos. Desenvolvimento só é desenvolvimento se for humano (melhorar a vida das pessoas), social (de todas as pessoas) e sustentável (das que estão vivas hoje e das que viverão amanhã). Melhorar a qualidade de vida é a resultante de um conjunto de fatores que envolve entre outros itens, a economia (trabalho, renda etc.), a educação, a saúde e a segurança alimentar e nutricional, a mobilidade, o meio ambiente natural, o ambiente social, a segurança pública, o governo e a política em geral, a cultura, o lazer e o ócio. Ora, de certa maneira, todo desenvolvimento é local, seja este local um distrito, um município, uma microrregião, uma região de um país, um país, uma região do mundo. A palavra local, aqui, não é sinônimo de pequeno e não alude necessariamente à diminuição ou redução. O conceito de local adquire, pois, a conotação de alvo sócio-territorial das ações e pas-
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sa, assim, a ser retro-definido como o âmbito abrangido por um processo de desenvolvimento em curso, em geral quando esse processo é pensado, planejado, promovido ou induzido (Franco, 2000, p.16). Defende-se o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável a partir do argumento de que é na esfera local que os problemas são identificados melhor e, portanto, torna-se mais fácil a busca de uma solução mais adequada. Inclusive a maior proximidade entre as comunidades garantiria maiores chances de continuidade dos processos devido ao controle social que essas exerceriam. Não obstante isso não deve neutralizar o papel e a importância das políticas nacionais. Isso porque os atores nos espaços locais não dispõem de um conjunto de informações necessárias nem tampouco contam com condições suficientes para atuar sobre todas as variáveis que determinam o comportamento econômico-social, mesmo sobre aquelas da própria localidade onde se situam. Em termos das condições políticas e institucionais, o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável estaria exigindo um novo sistema de gestão das políticas públicas, que exercite o novo paradigma da relação entre Estado e Sociedade e a integração das políticas. Entende-se por componentes desse paradigma elementos como: descentralização, parceria, transparência, controle social, participação, articulação entre as políticas econômicas e sociais, articulação entre as diversas esferas do governo. As políticas públicas devem estar sendo concebidas e implementadas de baixo para cima e orientadas por objetivos e estratégias nacionais, estas por sua vez a serviço do desenvolvimento local. Franco (1998), sobre a participação da comunidade, coloca que esta traz conseqüências econômicas e sociais positivas e estimula o desenvolvimento da cidadania. Na medida em que a comunidade está participando por meio de soluções apresentadas e execução de propostas, novos espaços éticos-políticos estão sendo criados nas localidades. Em termos de dinâmica econômica o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável requer que sejam estimuladas a diversidade econômica e a complementaridade de empreendimentos, de forma a gerar uma cadeia sustentável de iniciativas.
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Em resumo, todos esses aspectos estariam apontando um cenário no qual o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável exige cada vez mais uma nova distribuição espacial do desenvolvimento. Isto porque a distribuição atual deixaria de captar e dinamizar as vocações dos territórios, dificultando a integração nacional. O Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável, conforme exposto no artigo, mais do que uma medida voltada à geração de emprego e renda, apresenta-se como uma nova maneira de olhar o desenvolvimento. Para os pesquisadores e formuladores de política, por conseqüência, esse novo olhar demanda novos modelos a compreender configurações socioeconômicas mais sustentáveis, bem como novos indicadores que permitam uma análise mais apurada para auferir os níveis de qualidade de vida e de sustentabilidade alcançados nos diversos momentos do processo de desenvolvimento. Finalmente, como característica singular do Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável, tem-se a coexistência de duas dinâmicas: a cooperativa e a comPetitiva. A dinâmica cooperativa provém da diversidade e forma a comunidade, já a dinâmica comPetitiva insere a localidade no processo de desenvolvimento cuja racionalidade é dada pelo mercado. Em síntese, para Franco o desenvolvimento local é interpretado como campo/possibilidade de questionamento ao padrão de desenvolvimento vigente hoje em curso no planeta13. A importância de se analisar o Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável não decorre apenas do seu caráter analítico, mas principalmente da capacidade que a sua prática, em termos de recursos investidos e população beneficiária, atingiu no Brasil. Em termos de informação histórica do cenário brasileiro, o que hoje se chama de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável é uma denominação ampla para vários tipos de processos de de13
Argumentos extraídos de Franco (1998). Dez consensos sobre o Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável. Cadernos Comunidade Solidária, nº 6, junho de 1998, Ipea, Brasília. Quem quiser saber mais a respeito, ver Cartas Dlis, um conjunto de pequenos artigos publicados entre o período de dezembro de 2001 a agosto de 2003, com variados debates e informes em torno do Dlis. Ver também Rede Dlis, in www.redeDlis.org.br
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senvolvimento lançada institucionalmente em 1997 pelo Conselho da Comunidade Solidária. A partir de então, a expressão teria sido adotada por um grande número de pesquisadores que se dedicam ao estudo do desenvolvimento local no país, como também o Programa Comunidade Ativa e o Programa Comunidade Que Faz foram formulados. Criada em 1995 como um novo modelo de atuação social, a Comunidade Solidária, por intermédio do seu Conselho, procurou articular esforços dos diferentes níveis de governo e da sociedade civil na promoção da melhoria da qualidade de vida dos segmentos mais pobres da população, com o objetivo de impedir sua exclusão social. A proposta da Comunidade Solidária baseia-se no princípio da parceria. O Programa Comunidade Ativa, sob coordenação da Secretaria Executiva da Comunidade Solidária, foi lançado em julho de 1999. A Comunidade Ativa foi concebida como um sistema de ações (envolvendo um modelo de gestão e um fluxo de implementação) voltado para a indução do Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável em municípios de pequeno porte – até 50 mil habitantes (Silveira et alli, 2001, p.21). O desenho do programa baseou-se em uma parcela significativa dos conceitos e referências discutidos nas Rodadas de Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária (março de 1998 e maio de 1999). Entre as referências incorporadas à Comunidade Ativa podem ser destacadas: o fomento à criação de uma nova institucionalidade participativa, a parceria estado-sociedade, a articulação intra e intergovernamental, a necessidade de capacitar para gestão local, a transformação das demandas privadas em demanda pública da sociedade local, a articulação da oferta estatal e não-estatal com essa demanda pública e o fomento à vocação empreendedora (Silveira et alli, 2001, p.22). A partir do final de 1999, a Comunidade Ativa iniciou sua implementação em 150 municípios em todas as unidades da federação, em fase piloto. Para o final do ano 2000 e primeiro semestre de 2001, segundo dados extraídos de Silveira et alli (2001), esteve prevista a sua expansão por mais 850 municípios em duas etapas, número que ainda poderia ser alterado. Já o Programa Comunidade Que Faz é um programa de capacita-
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ção para a gestão empreendedora comunitária do Dlis, que passa a ser ofertado, a partir de 2002, nos municípios da Comunidade Ativa. O Programa Comunidade Que Faz é compreendido como mais um recurso que pode ser utilizado pela Comunidade Ativa para dar continuidade ao processo de Dlis depois da sua implementação. O Programa Comunidade Que Faz utiliza a metodologia do “aprender fazendo”, que, vale destacar, foi desenvolvida inicialmente pelo Programa de Desenvolvimento Local do Banco do Nordeste em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Pnud14. Como a Gespar foi pioneira na proposição do debate sobre a importância do desenvolvimento local enquanto marco analítico das políticas públicas de promoção do desenvolvimento e, assim, por ter acumulado capital e conhecimento desde 1993, essa foi bastante reconhecida e ouvida nas Rodadas de Interlocução Política do Conselho da Comunidade Solidária que deram origem ao Dlis. 3. Entendendo o processo de disputa da dimensão cidadã do desenvolvimento local Ao ver deste artigo, uma das maiores contribuições do desenvolvimento local vem do reconhecimento do processo de desenvolvimento como um processo sistêmico e integrado, que envolve diferentes dimensões, dentre elas a política – para além de uma compreensão reducionista que perdurou até recentemente, de que para promover o desenvolvimento era preciso apenas crescimento econômico. No contexto da América Latina e dos países periféricos, a dominação política e simbólica, e também econômica, de determinados grupos sociais responde em grande parte pela dificuldade de promoção da melhoria da qualidade de vida de uma parcela significativa da sua 14
Através da sua metodologia Gestão Participativa para o Desenvolvimento Local (Gespar), que teve inicialmente como ambiente de construção o Projeto Banco do Nordeste-Pnud e, em 2000, é encerrado o ciclo do Banco do Nordeste, mas há uma nova etapa de continuidade e expansão a partir de parceria BNDES-Pnud, foi então desenvolvida a metodologia do “aprender fazendo”. Esta metodologia parte da experiência do real, através de oficinas e trabalhos práticos, e o educador é visto como um facilitador do desenvolvimento das potencialidades dos atores locais.
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população. Assim sendo, para a promoção de um desenvolvimento social inclusivo em favor de todos faz-se necessário romper com relações de dominação política e social, por vezes históricas. Atualmente, uma das formas defendidas para modificar as relações de poder entre os indivíduos tem sido o estímulo à participação cidadã, engajamento cívico e exercício do controle social por parte dos indivíduos. Acredita-se que, por meio de iniciativas desta natureza, a população, através de alguns instrumentos de participação democrática, teria condições de lutar pelos seus direitos e exercer pressão sob as autoridades públicas, responsabilizando-as, quando necessário, pelos baixos resultados alcançados dos programas e projetos15. É justamente nesse campo do desenvolvimento local que categorias como participação social, ‘empoderamento’ e engajamento cívico, importantes para a compreensão da dimensão política do desenvolvimento, mais têm sofrido com uma grande confusão realizada em torno dos seus significados. Variados atores e instituições têm se apropriado das mesmas, utilizando-as nos mais diferentes discursos, todavia, muitas vezes, com significados completamente distintos entre si. O indesejável é quando ocorre uma despolitização de tais categorias nos discursos dos atores e instituições. Uma crítica ainda mais dura ao desenvolvimento local vem de autores como Oliveira (2001), que afirma que por vezes a dimensão do conflito tem sido negligenciada pela abordagem do desenvolvimento local. Ao invés de conseguir propor mudanças nas relações de poder, o desenvolvimento local pecaria porque a maior parte dos ensaios e definições sobre ele se parece mais com adaptações dos dominados do que com uma alternativa à dominação. O problema ocorre quando o desenvolvimento local pressupõe uma visão apaziguadora da sociedade16. 15
Os principais instrumentos de participação democrática seriam os Fóruns, Conselhos Sociais de políticas públicas e Orçamento Participativo. 16 Para Oliveira (2001), enquanto o campo da racionalidade burguesa não for ultrapassado, o desenvolvimento local, nas suas diferentes formas, níveis e abrangências, não abre possibilidades à instauração da cidadania. A cidadania é interpretada pelo autor como forma contemporânea do conflito de classes, na medida em que é a luta pelos significados, pelo direito à fala e à política. Portanto, o indivíduo é autônomo, é crítico e reflexivo, logo, longe
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A partir desse contexto de crítica e confusão em relação à apropriação das categorias participação social, ‘empoderamento’ e engajamento cívico – presentes na abordagem do desenvolvimento local, o que esta seção rapidamente pretende fazer é lançar alguns alertas com sentido de desfazer possíveis confusões e perigos de cooptação junto aos seus significados, que caso aconteçam poderiam comprometer significativamente a potencialidade que a abordagem do desenvolvimento local mais tem a oferecer: a compreensão de que o desenvolvimento local como meio e fim para o combate à pobreza e à desigualdade implica necessariamente atacar as relações de dominação política, econômica e simbólica entre os indivíduos. Primeiramente em relação ao ‘empoderamento’, o importante a se destacar é que esta categoria tem de significar essencialmente mudanças nas relações de poder, nas relações de dominação. ‘Empoderamento’, entendido como estratégia de combate à pobreza, deve, portanto, significar fundamentalmente alterações nas relações de poder em favor da promoção da qualidade de vida e da emancipação social da população mais desfavorecida. ‘Empoderamento’, compreendido como abordagem e processo, por sua vez, coloca as pessoas e o poder no centro dos processos de desenvolvimento. Um processo pelo qual as pessoas, as organizações e as comunidades assumem o controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida e tomam consciência da sua habilidade e competência para produzir, criar e gerir17. Esta visão sobre ‘empoderamento’ é contrária, portanto, segundo Romano (2002), às compreensões freqüentes que o mainstream do desenvolvimento, especialmente as agências de desenvolvimento bilaterais e multilaterais, têm realizado sobre ‘empoderamento’: ‘empoderamento’ como transformismo, ‘empoderamento’ sem poder, ‘empoderamento’ neutro e sem conflitos, ‘empoderamento’ como do indivíduo-massa. Trata-se de uma aquisição por meio do conflito. Do ponto de vista neoliberal, a cidadania tem sido apresentada como sinônimo de não-conflito, de harmonia, de paz social. Para ele, o desenvolvimento local é uma noção polissêmica e assim necessariamente comporta tantas quantas sejam as dimensões em que se exerce a cidadania. Qualquer tentativa de transformá-la em modelos paradigmáticos estará fadada ao fracasso. 17 Definições extraídas de Romano (2002).
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dádiva, ‘empoderamento’ como uma técnica que se aprende em cursos e a superpolitização e atomização do ‘empoderamento’18. ‘Empoderamento’ como transformismo significa dizer que as agências multilaterais de desenvolvimento, bilaterais e multilaterais, os diversos governos e também as organizações não-governamentais (ONGs) continuariam fazendo em essência o que faziam antes, porém mudando agora para o termo novo de ‘empoderamento’ e desenvolvimento local. Uma situação típica de transformismo é apropriar-se e desvirtuar o novo para garantir a continuidade das práticas dominantes. Adaptando-se aos novos tempos, seria mudar “tudo” para não mudar nada. Sobre ‘empoderamento’ sem poder, a mudança nas relações de poder existentes teria sido deslocada do seu papel central, virando uma questão implícita ou diluída entre os elementos que comporiam o ‘empoderamento’. Isso porque, em geral, as abordagens do mainstream apresentam uma aversão aos conflitos. Para Romano tem se procurado tecnicizar os conflitos, tirando deles suas dimensões ideológicas e políticas, de forma a domesticá-los. Sobre ‘empoderamento’ como dádiva vem sendo recorrente o uso da compreensão de que o ‘empoderamento’ é algo que pode ser outorgado. Nesses casos, o foco passa a ser a maior facilidade de acesso a recursos externos, bens ou serviços, secundarizando ou deixando de lado os processos de organização do grupo e de construção de auto-estima e confiança das pessoas. Sobre esse item, o autor alerta, o ‘empoderamento’ não é algo que pode ser feito a alguém por uma outra pessoa. Nem o governo, nem as agências e nem as ONGs ‘empoderam’ as pessoas e as organizações; as pessoas e as organizações se ‘empoderam’ a si mesmas. 18
Este artigo concorda com todas as críticas realizados por Romano (2002), conforme a seguir apresentadas, principalmente porque a autora se dedicou nos últimos tempos a pesquisar o estado das artes do desenvolvimento segundo as agências multilaterais de desenvolvimento, especialmente o Banco Mundial, e é muito fácil perceber a apropriação das categorias ‘empoderamento’, participação social, engajamento cívico, transparência, dentre outras, com uma tendência à despolitização de tais categorias e de compreender, erroneamente, o processo político enquanto um simples acesso aos benefícios sociais pela população (saúde, educação, habitação etc.).
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Assim, a generalização do uso do conceito e da abordagem do ‘empoderamento’ viria acompanhada por uma redução da prática social e política do ‘empoderamento’ a questões técnicas e instrumentais, isto é, o ‘empoderamento’ passou a ser considerado principalmente como uma técnica que compreende metodologias específicas, e menos como um complexo processo social e político. Finalmente, sobre a superpolitização e atomização do ‘empoderamento’, significa dizer que a identidade da pessoa – como um produto histórico, social e cultural – é secundarizada em função do interesse atomizado do indivíduo enquanto produto do mercado. Por exemplo, quando o Banco Mundial compreende ‘empoderamento’ como acesso aos recursos políticos, não fica muito claro quais são esses recursos. ‘Empoderar’ no plano político parece ser apenas percebido como participação, controle social e mobilização no sentido de a população se organizar para auxiliar a esfera pública na administração dos serviços sociais. Por várias vezes o ‘empoderamento’ foi lembrado como a capacidade de a população participar como co-produtora dos serviços. ‘Empoderamento’ estaria sendo percebido apenas como possibilidade de a população participar na provisão dos serviços estatais (a partir de World Bank, 2002). No tocante à participação social, a principal crítica a ser feita é que algumas abordagens recentes do mainstream compreendem participação como elaboração de consensos sociais, todavia sem reconhecer a dimensão do conflito e das diferenças. Uma segunda crítica diz respeito à compreensão dos atores que participariam do processo de desenvolvimento a ser realizado em co-gestão com o Estado. A população local é vista muitas vezes apenas como “cidadãosconsumidores” bem-comportados no lugar de atores sociais críticos e propositores de mudança do status quo. Também os movimentos sociais, capazes de exercerem pressão política e discordância junto ao arcabouço formulado pelas abordagens, têm sido praticamente ignorados. No plano social e da organização popular parece existir apenas a sociedade civil organizada, uma categoria que por vezes engloba tantos atores e instituições que perde inclusive a capacidade de possuir alguma identidade. Pautados em instrumentos como transparência e controle social, as agências de desenvolvimento – em es-
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pecial – estariam despolitizando o processo de participação social19. Finalmente, sobre engajamento cívico, na direção das críticas que anteriormente foram levantadas, a ressalva a ser feita em relação a este item é que reconhecer engajamento como participação da população no acompanhamento e gestão das políticas públicas deve ser compreendido como uma visão reducionista porque o engajamento cívico compreende principalmente, em si próprio, a atividade da política. Conforme Dagnino (2004) e Mato (2003), o confronto e o antagonismo que durante as décadas de 70 e 80 tinham marcado profundamente a relação entre Estado e a sociedade civil cederam lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democrático. Em outras palavras, o projeto neoliberal encontra no Brasil um contendor relativamente consolidado, embora evidentemente não hegemônico, capaz de constituir um campo de disputa. A existência desse contendor e dessa disputa determina, na nossa perspectiva, direções específicas às estratégias e formas de atuação das forças vinculadas ao projeto neoliberal em nosso país que, se não se afastam das direções adotadas no nível global, adquirem especificidade própria na medida em que são forçadas a estabelecer relações de sentido e um terreno de interlocução com o campo adversário (Dagnino, 2004, p.99). Para Mato, na América Latina os “agentes locais” têm se apropriado das compreensões sobre sociedade civil e “Terceiro Setor” dos “agentes globais”. Tal compreensão estaria relacionada à Reforma do Estado e, segundo o autor, esta não seria um conjunto de simples reformas 19
Como o nome do seu relatório mesmo diz (Do protesto à colaboração), transparência social para o Banco Mundial (accountability), por exemplo, é um processo que permite às pessoas controlarem e participarem das ações do governo sem o necessário protesto social. Assim, na defesa de engenharias, sistemas, gestões sociais modernas e inovadoras, o Banco parece não admitir existir espaço para a discussão e a divergência (a partir de World Bank Social Development Department, 2004).
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econômicas, mas também vem se constituindo em reformas políticas e sociais, daí a importância de entender e interrogar esse processo. Como conclusão desta seção, tem-se que, em termos do debate sobre desenvolvimento local elaborado no Brasil, aquilo que se deve dar especial atenção, decorrendo a importância dos expostos anteriores, é que o mesmo é em parte elaborado tendo a compreensão das categorias sociais participação, engajamento cívico e participação popular da década de 70 e 80, e que foram concebidas pelos movimentos sociais brasileiros como o seu marco conceitual, ou seja, reconhecendo a dimensão do conflito na perspectiva de construção de uma cidadania ativa20. Por outro lado, o debate brasileiro do desenvolvimento local também recebe fortes influências da disputa de significados de tais categorias, originárias do cenário internacional e com algumas tendendo a despolitizar as categorias. Enquanto um discurso emerge no bojo de proposições e medidas em torno do ajuste estrutural e Reforma do Estado, o influenciado pelos movimentos sociais de base tem como marco histórico os processos de redemocratização na América Latina, acabando assim por implicar compreensões por algumas vezes distintas sobre os significados das categorias21. Em suma, um dos cuidados e limitações do debate do desenvolvimento local brasileiro seria a confluência de ambigüidades de sentidos que o mesmo apresenta em relação ao debate do desenvolvimento – proposto por um mainstream que diverge bastante, em alguns casos, da compreensão do debate brasileiro. A preocupação para com esse cuidado torna-se redobrada na medida em que o próprio mainstream em referência, por vezes, também se apresenta como influência ao debate brasileiro. 20
Movimentos Eclesiais de Base da Igreja Católica, movimentos sociais urbanos pelo direito à moradia, luta pela Reforma Agrária no campo, movimentos ambientalistas, entre outros. 21 As categorias participação social e engajamento cívico, no bojo do processo de ajuste estrutural e Reforma do Estado, surgem na medida em que perante a diminuição do papel do Estado na economia – na provisão dos serviços sociais básicos –, chama-se a sociedade civil a participar da cogestão do desenvolvimento e do acompanhamento e avaliação das políticas públicas.
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4. Limites e possibilidades do desenvolvimento local Ao longo do presente artigo foi possível perceber o processo de construção política da agenda do desenvolvimento local no Brasil. Acompanhando um movimento de reelaboração do conceito de desenvolvimento no cenário internacional, somado ao próprio movimento interno, de construção de alternativas a erradicação da desigualdade social e da pobreza que assolam o nosso país, este artigo defende que a abordagem do desenvolvimento local traz grandes contribuições para esse objetivo, porém com importantes ressalvas a serem feitas. Sobre os méritos da abordagem, em primeiro lugar, em razão de contribuir para que recentemente seja aceita, de forma mais ampla e generalizada, a compreensão do desenvolvimento como um processo sistêmico e integrado (ambiências política, econômica, social, ecológica e humana). Essa compreensão talvez permita, do ponto de vista analítico e operacional, chegar mais próximo nesse momento ao desafio de promoção de um desenvolvimento humano mais justo e responsável no país. A compreensão de desenvolvimento como apenas crescimento econômico mostrou-se por sucessivos períodos bastante deficiente nesse sentido. Atualmente, algumas experiências endógenas de promoção do desenvolvimento local, assim como inovações de gestão pública no Brasil, têm revelado ser o âmbito político um dos principais entraves a serem vencidos para o processo de promoção do desenvolvimento brasileiro eqüitativo. Experiências em regiões de demasiado atraso social, pouca atenção por parte das políticas públicas e fortes desigualdades junto a relações de dominação vêm demonstrando ser a mudança nas relações de poder, em favor dos desfavorecidos, talvez o caminho mais rápido, embora bastante difícil, para a promoção de um desenvolvimento social eqüitativo22. 22
Ver, por exemplo, a experiência de associativismo da Associação de Pequenos Agricultores do Município de Valente, no semi-árido da Bahia (Apaeb-Valente). Em 2002 a autora realizou extenso trabalho de campo na região procurando entender o processo de promoção de desenvolvimento local ocorrido. Para saber mais a respeito da experiência ver www.Apaeb.com.br
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Outros casos provêm do campo das políticas públicas, no qual variadas administrações municipais têm dado o exemplo de que a construção de uma ambiência produtiva inovadora passa fundamentalmente pela instauração de processos participativos e democráticos e pela construção de um sentimento de responsabilidade social da população em relação ao destino das cidades, através do caminho da pactuação23. Esses dois exemplos, por um lado, nos ajudam a justificar as potencialidades que a abordagem do desenvolvimento local tem a oferecer para o desafio da erradicação da pobreza e da desigualdade no Brasil – quando reconhece a dimensão política do processo do desenvolvimento. Mostram ainda que, no caminho da pactuação, em direção à promoção de um desenvolvimento local mais justo, em nenhum momento deixaram de existir conflitos e divergências; pelo contrário, o exercício da cidadania e da construção de consensos passa fundamentalmente pelo desafio de reunir diferentes grupos de interesses em torno de um bem comum dos variados territórios. Por outro lado, essas experiências, enquanto “contra-exemplos”, ainda ajudam a refletir sobre os perigos e desafios que a abordagem do desenvolvimento local tem a enfrentar, enquanto uma abordagem que, se cuidados forem dados a estes desafios, tem muito a oferecer enquanto perspectiva teórica e operacional para erradicação da pobreza. No campo da relação Estado-Sociedade, o cenário atual, conforme apresentado anteriormente, é de construção de novas formas institucionais de articulação. Ainda estamos por vivenciar e apreender os benefícios dessas nossas formas. Defende-se um caminho 23
Ver, por exemplo, o caso do Programa de Desenvolvimento Local de Piraí e do Programa Piraí Digital no município de Piraí, Estado do RJ. Em 2005 a autora também realizou trabalho de campo na região procurando entender o processo de promoção de desenvolvimento local ocorrido. Para saber mais a respeito da experiência ver PROGRAMA GESTÃO PÚBLICA E CIDADANIA. Uma cidade em rede. In: Histórias de um Brasil que funciona. São Paulo: Programa Gestão Pública e Cidadania, 2004 e SILVA, Lessandra. Programa de Desenvolvimento Local de Piraí. In: BARBOZA, Hélio & SPINK, Peter (orgs.). 20 experiências de gestão pública e cidadania. São Paulo: Programa Gestão Pública e Cidadania, 2002.
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de parceria entre Estado-Sociedade no lugar de grandes confrontos sociais ou concorrência. A parceria se dá por meio da participação cidadã nos espaços de escuta e participação popular que são oferecidos: conselhos e fóruns. É aqui, no entanto, que reside o perigo de diluição que o potencial da abordagem do desenvolvimento local tem o mérito de oferecer. O mérito mais importante da abordagem do desenvolvimento local é reconhecer o processo de desenvolvimento como não apenas um processo econômico, mas acima de tudo político. A erradicação da pobreza não depende simplesmente de esforços para aumentar a renda da população, mas principalmente de mudanças nas relações de poder e dominação. Defende-se que essas mudanças nas relações de poder e dominação por sua vez podem se dar através do exercício da cidadania e da participação da sociedade no controle social das políticas públicas, por exemplo, com os objetivos de pressionar o Estado no cumprimento da garantia dos direitos sociais para todos de forma igualitária. Uma vez que se defende serem esses espaços de participação popular instrumentos efetivos para a construção de uma sociedade democrática, que se preocuparia e mobilizaria em torno da erradicação da pobreza e da desigualdade brasileira, fica a ressalva. Esses espaços só fazem sentido enquanto espaços de efetiva participação popular e de combate à pobreza se a cultura política brasileira passar por uma profunda transformação – em todas as esferas de governo. Isso porque a construção de um desenvolvimento local participativo e democrático depende que as governanças compreendam que é preciso abrir mão do seu poder em prol de decisões coletivas e da instauração efetiva da democracia. O que infelizmente a prática tem mostrado, com algumas exceções, é que a maioria das lideranças sociais que são representantes da sociedade civil nos Conselhos Sociais têm dificuldade para defender seus interesses, e muitas vezes não conseguem nem ao menos serem ouvidas pelos prefeitos e secretários. Os conselheiros conhecem as leis e os seus direitos, mas eles não conseguem obter o compromisso da maioria dos prefeitos na promoção da melhoria da qualidade de vida da população, que já fora garantida na Constituição Federal. Muitos prefeitos e secretários continuam com uma
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postura autoritária de quererem governar sozinhos. Também se tem que a cultura antiética histórica no Brasil de “vender votos” já foi também introduzida no interior desses novos espaços que se propõe que sejam democráticos24. Para uma sociedade carente de serviços sociais não é difícil a aceitação por parte de alguns representantes da sociedade civil desse mecanismo instaurado. Em suma, muitos dos pressupostos democráticos e participativos da dimensão cidadã da abordagem do desenvolvimento local, que se considera uma das principais contribuições que tal abordagem foi capaz de oferecer, possuem grandes limites para sua operacionalização. Entre a prática e a teoria um grande caminho precisa ser percorrido. Este caminho é o da mudança da cultura política brasileira. Em lugar de regimes autoritários e pouco participativos, os governantes precisam compreender que uma sociedade democrática é uma relação entre cidadãos e cidadãs25. A dificuldade acima listada para a promoção do potencial que a abordagem do desenvolvimento local tem a oferecer decorre de uma outra dificuldade que algumas interpretações do desenvolvimento local precisam romper. O desenvolvimento local deve sempre ser pensado em uma perspectiva relacional. Conforme destacado anteriormente, defende-se que o Estado não deve negligenciar o seu papel na promoção da melhoria da qualidade de vida da população 24
Compreende-se por “venda de votos” a situação na qual os representantes da sociedade civil ao invés de pensarem na melhoria da qualidade de vida do coletivo da população do seu município optam por interesses particulares, ou seja, conforme relatos de conselheira entrevistada pela autora, “existem conselheiros, representantes da sociedade civil, que no momento de uma plenária (votação) opta por se associar aos interesses da esfera pública em troca de recursos (R$) para as entidades filantrópicas que presidem” – Conselheira Tutelar do município de Queimados (RJ). 25 “Cidadania é, portanto, a condição da democracia. O poder democrático é aquele que tem gestão, controle, mas não tem domínio nem subordinação, não tem superioridade nem inferioridade. Uma sociedade democrática é uma relação entre cidadãos e cidadãs. É aquela que se constrói da sociedade para o Estado, de baixo para cima, que estimula e se fundamenta na autonomia, independência, diversidade de pontos de vista e, sobretudo, na ética.” (Herbert de Souza, Betinho).
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brasileira e na erradicação da pobreza. O desenvolvimento local surge como uma contra-reação ao fenômeno de exclusão social gerado pela globalização. Ou seja, as esferas locais não podem e nem têm condições de romper relações que se estabelecem para além dos seus territórios. Elas estão inseridas em um grupo de inter-relações que perpassam e ultrapassam os seus territórios – que se dão nos campos nacional e global. É nesse sentido que esperar do desenvolvimento local a capacidade para a erradicar a pobreza e a desigualdade brasileira é uma expectativa demasiadamente audaciosa. No caso brasileiro vale lembrar que a pobreza brasileira está ligada a um processo de desigualdade e discriminação racial que precisa de um grande pacto social para ser rompido. Atualmente temos que os negros correspondem a 47,3% da população total, mas respondem por 66% do total de pobres (Ipea, 2005). Existe uma grande desigualdade no acesso às oportunidades sociais por esta parcela da população e os esforços têm que vir das várias esferas. O que pode então o desenvolvimento local oferecer ao desafio da erradicação da pobreza? O desenvolvimento local, seja a partir das experiências endógenas de desenvolvimento ou das experiências induzidas, permite que algumas relações de dominação no território possam ser modificadas, a partir do exercício da cidadania dos atores locais. Em outras relações, os atores locais reúnem forças para a mudança, mas precisam agregar parcerias nas demais esferas (municípios, estados e país), para romper as relações de dominação. Tem o mérito de incentivar a pró-atividade dos indivíduos e só uma sociedade participativa e comprometida com o futuro do país muda os seus rumos. Todavia a esfera nacional ainda detém grande parte do poder político e econômico e, se não compactuar com tal parceria, o potencial do desenvolvimento local para a erradicação da pobreza deixa de existir. Um primeiro passo, que de certa forma já começou a ser dado pelo Estado, ainda que timidamente, é que as políticas públicas precisam reconhecer o potencial que as mobilizações sociais possuem. Este pode ser um primeiro indício de que os governos compreenderam que as organizações sociais do campo, as associações de moradores na favela, as organizações da sociedade civil precisam ter voz e vez
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na construção das políticas públicas de desenvolvimento do Brasil, porque nelas reside um grande potencial criativo e inovador para a erradicação da pobreza e da desigualdade brasileira. Finalmente, conforme destacado por Caccia-Bava (1996), os recentes encontros patrocinados pelas Nações Unidas, Banco Mundial e outras agências de desenvolvimento, que tiveram a procura de novos paradigmas para o desenvolvimento como pauta de discussão, na prática refletiram apenas sobre experiências pontuais e localizadas, nas quais alguns governos locais demonstraram êxito em enfrentar a pobreza e a exclusão social. Porém, para o conjunto das gestões públicas no Brasil, ao se negligenciar que as mesmas dependem fundamentalmente da ação do Estado, seja em termos de recursos humanos e materiais, seja em termos de diretrizes de políticas, corre-se o risco de, ao invés da erradicação da pobreza, estarmos caminhando para a produção de um verdadeiro colapso social. É errôneo exigir dos governos locais uma capacidade que eles não têm. O tratamento pontual dos problemas sociais a partir dos municípios esquece que esses problemas são gerados por uma lógica que escapa à governabilidade das prefeituras. O privilégio e a atenção que têm sido dados à disseminação de “best practices”, sob os marcos do desenvolvimento local, devem ser vistos com cautela, principalmente se as potencialidades da abordagem do desenvolvimento local é o que se pretende preservar26. •••
26
Caccia-Bava (1996), p.54.
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Perfil e Desafios dos Microempreendimentos no Brasil Adriana Fontes
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Os microempreendimentos constituem uma realidade cada vez mais presente no contexto brasileiro, onde grande parte da população, sobretudo os mais pobres, adquire seu sustento através de atividades autônomas ou trabalhando em pequenos negócios. O objetivo deste trabalho é analisar detalhadamente os micronegócios e o trabalho por conta própria no Brasil, utilizando os dados da Pesquisa da Economia Informal do IBGE de 2003, para entender suas características, motivações, os principais problemas enfrentados nessas atividades, bem como o acesso aos serviços de desenvolvimento empresarial. Small businesses are very important in the Brazilian context, where great part of the population acquires its livelihood through independent activities or working in microenterprises. The objective of this work is to analyse the small business and self-employment in Brazil, using the Urban and Informal Economy Research (ECINF/IBGE) from 2003, to understand their characteristics, motivations, the main problems faced in these activities and the access to business development services.
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Introdução A importância dos microempreendimentos no Brasil é reconhecida nos dias atuais pela sociedade como um todo, de acadêmicos a formuladores de políticas. Isso se deve principalmente à capacidade de geração de trabalho e renda dos pequenos negócios, constituindo a principal fonte de sustento de grande parte das famílias brasileiras. A tendência crescente de escassez do emprego em grandes indústrias, sobretudo aquele com carteira assinada, provocou, além do aumento do desemprego, o surgimento de novas formas de trabalho no Brasil. São microempresas formais, estabelecimentos informais e trabalhadores autônomos, dentre outras formas de organização que absorvem um expressivo contingente de trabalhadores. Alguns defendem, baseados em experiências internacionais bemsucedidas, como é o caso da Terceira Itália, que em um ambiente com condições necessárias à consolidação de vantagens comPetitivas, os microempreendimentos, ou pelo menos parte deles, podem se tornar dinâmicos. A pequena empresa surge como resposta ao pós-fordismo e pode ter vantagens competitivas perante as grandes empresas devido à sua flexibilidade, essencial para atender às mudanças na demanda. No Brasil, o contexto em que surge o debate da microempresa tem especificidades em relação aos países centrais, tendo em vista que o fordismo se deu em outras bases, de forma incompleta, com uma estrutura sócioeconômica e de emprego diferenciada. A estagnação econômica das décadas de 80 e 90 tem fortes efeitos sobre o mercado de trabalho, com destaque para a queda do emprego com carteira assinada, retração da indústria, crescimento do desemprego. Nesse contexto, o trabalho por conta própria e os microempreendimentos, intensivos em mão-de-obra, têm demonstrado grande capacidade de absorver crescentemente trabalhadores. Sabe-se que os efeitos das transformações econômicas e produtivas são desiguais de acordo com as especificidades de cada local,
Vários autores classificam de fordismo periférico, incompleto ou autoritário, o processo de industrialização ocorrido em países como o Brasil. A essência desta classificação está na industrialização tardia ocorrida nos países periféricos que não foi acompanhada de uma forte transformação social.
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induzindo ao desenho de ações públicas que atuem nesse âmbito. O aproveitamento do potencial endógeno do território passa, necessariamente, pela atenção aos microempreendimentos, que são, no entanto, tradicionalmente, tratados como atividades econômicas marginais e sem dinamismo que constituem apenas uma válvula de escape perante a retração do emprego formal. Seja pela capacidade de geração de trabalho e renda ou por serem produtivamente mais flexíveis e ágeis para atenderem às mudanças no perfil da demanda, os microempreendimentos deveriam ser tratados como parte relevante da estratégia de desenvolvimento. Ainda há, entretanto, grande desconhecimento sobre o funcionamento dos pequenos negócios. Há um mundo de atividades econômicas a ser desvendado para se tornar alvo de políticas públicas que busquem um crescimento econômico com distribuição de renda. Potencializá-los significa, primeiramente, conhecer detalhadamente seus agentes e a sua dinâmica econômica. Apesar da inegável importância dos pequenos negócios nas economias locais, a maioria dos estudos acadêmicos ainda está voltada para as grandes empresas, sobretudo, industriais. Diante desta demanda e do papel primordial na geração de trabalho e renda para o desenvolvimento local, pretende-se analisar aqui os microempreendimentos no Brasil, identificando suas características, dificuldades e potencialidades. Além desta introdução e da conclusão, o artigo se divide em quatro partes. A primeira aborda conceitos e aspectos metodológicos da Pesquisa da Economia Informal (Ecinf/IBGE) de 2002/2003. Diante da grande escassez de informação sobre o setor, essa pesquisa é uma das únicas bases de dados existentes sobre o tema. Em seguida, é feita uma caracterização dos microempreendimentos no Brasil. A terceira parte aborda as motivações, dificuldades e expectativas dos microempreendedores. Por fim, investiga-se o acesso dos microempreendedores aos serviços financeiros e não financeiros, essenciais para o desenvolvimento dos microempreendimentos. 1. Aspectos metodológicos Para suprir a carência de pesquisas voltadas ao setor informal, o IBGE criou a pesquisa da Economia Informal e Urbana – Ecinf/IBGE.
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Uma pesquisa piloto foi realizada no município do Rio de Janeiro em 1994 e, em 1997, foi a campo nas áreas urbanas no Brasil. A pesquisa deveria ser realizada a cada cinco anos, mas não foi possível, em 2002, por falta de verbas. Em 2003, com o apoio do Sebrae Nacional, a pesquisa voltou a campo com o objetivo de “contribuir para melhor compreensão da realidade brasileira no que se refere às características dos pequenos empreendimentos, em especial dos que compõem o setor informal” (IBGE, 2005). A nova pesquisa incluiu novas perguntas mais detalhadas sobre as características individuais dos proprietários e sobre o acesso a serviços financeiros e não-financeiros. Essa pesquisa segue as recomendações da 15ª Conferência Internacional de Estatísticas do Trabalho, realizada em 1993, quando foi estabelecida a última definição da Organização Internacional do Trabalho - OIT para o setor informal. A definição considera as características das unidades de produção (empresas) onde as atividades se desenvolvem e não mais pelas características das pessoas envolvidas nas atividades. A pesquisa considera que (IBGE, 2005): 1. O ponto de partida é a unidade econômica, entendida como unidade de produção, e não o trabalhador individual ou a ocupação por ele exercida. 2. Fazem parte do setor informal as unidades econômicas nãoagrícolas que produzem bens e serviços com o principal objetivo de gerar emprego e rendimento para as pessoas envolvidas, sendo excluídas aquelas unidades engajadas apenas na produção de bens e serviços para autoconsumo. 3. As unidades do setor informal caracterizam-se pela produção em pequena escala, baixo nível de organização, e pela quase inexistência da separação entre capital e trabalho, enquanto fatores de produção. 4. Embora útil para propósitos analíticos, a ausência de registros não serve de critério para a definição do informal na medida em que o substrato da informalidade se refere ao modo de organização e funcionamento da unidade econômica e não a seu status legal ou às relações que mantém com as autoridades públicas. Havendo vários tipos de registro, esse critério não
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apresenta uma clara base conceitual; não se presta a comparações históricas e internacionais; e pode levantar resistência junto aos informantes; 5. A definição de uma unidade econômica como informal não depende do local onde é desenvolvida a atividade produtiva, da utilização de ativos fixos, da duração das atividades das empresas (permanente, sazonal ou ocasional) e do fato de tratar-se da atividade principal ou secundária do proprietário da empresa. A Ecinf/IBGE define operacionalmente que pertencem ao setor informal todas as unidades econômicas de propriedade de trabalhadores por conta própria e de empregadores com até cinco empregados, moradores de áreas urbanas, sejam elas a atividade principal de seus proprietários ou atividades secundárias. 2. Características gerais dos microempreendimentos No Brasil, em outubro de 2003, existiam 10.335.962 empresas informais que ocupavam ao todo 13.860.868 pessoas, incluindo trabalhadores por conta própria, pequenos empregadores, empregados com e sem carteira de trabalho assinada, além dos trabalhadores não-remunerados. A grande maioria dos microempreendimentos representam atividades de trabalhadores por conta própria (88%). A heterogeneidade dos microempreendimentos fica visível quando observamos a distribuição deles por setor de atividade econômica. Cerca de um terço dos microempreendimentos são do setor de comércio e reparação. O segundo setor mais importante é o da construção civil, que representa 18% dos empreendimentos. Notase ainda uma participação não desprezível da indústria de transformação e extrativa, já que 16% dos empreendimentos segundo a classificação do IBGE encaixam-se nesse segmento. Esses três setores (comércio, construção civil e indústria) são os mais significativos
Foram pesquisados 54.595 domicílios na amostra. Os microdados da pesquisa até o momento da elaboração do artigo não tinham sido disponibilizados. As informações utilizadas na análise foram extraídas das tabelas produzidas pelo IBGE e disponíveis na homepage da instituição.
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tanto para negócios de trabalhadores por conta própria quanto para de empregadores. Gráfico 1 Distribuição dos microempreendimentos por setor de atividade – Brasil Comércio e reparação
33% 18%
Construção Civil Indústrias de transformação e extrativa
16%
Transporte, armazanagem e comunicações
8%
Outros serviços coletivos, sociais e pessoais
8%
Serviços de alojamento e alimentação
7%
Atividades imobiliárias, aluguéis serviços prestados às empresas
6%
Educação, saúde e serviços sociais Atividades mal definidas
0%
3% 1% 5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
A alta capacidade de geração de trabalho deve-se, principalmente, ao auto-emprego. A grande maioria dos negócios funciona com apenas uma pessoa trabalhando (80%). Cerca de 12% das empresas têm duas pessoas trabalhando e apenas 8% funcionam com três ou mais pessoas ocupadas. Esses dados variam muito, dependendo do setor de atividade. Por exemplo, no comércio, setor mais representativo, como visto anteriormente, cerca de 30% das empresas funcionam com mais de uma pessoa ocupada. Com relação ao local de trabalho, o caráter domiciliar é predominante. Cerca de 27% das empresas funcionam no domicílio do dono do negócio e 20% no domicílio do cliente. Os locais mais freqüentes de funcionamento, além dos domicílios, são lojas e oficinas (20%). Cerca de 8% dos negócios funcionam dentro e fora do domicílio. A sazonalidade atinge apenas 7% dos negócios. Cerca de 81% dos negócios funcionaram nos 12 meses anteriores ao mês da pesquisa. A sazonalidade é mais significativa para alguns setores como educação, saúde e serviços sociais.
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Através do Gráfico 2, com a distribuição por tempo em que o dono se tornou proprietário, percebe-se que quase ⅓ dos microempreendedores estão estabelecidos há mais de 10 anos. Cerca de 57% está há pelo menos cinco anos. Há também muitos empreendimentos novos, sendo que a redução da parcela de empreendimentos com três a cinco anos evidencia uma alta mortalidade nos primeiros anos de atividade. Gráfico 2 Distribuição dos microempreendimentos por tempo em que o proprietário se tornou dono – Brasil 35% percentual de microempreendimentos
31%
30% 26%
25% 20%
20% 15%
12%
12%
até 1
mais de 1 a 3 mais de 3 a 5 mais de 5 a 10 tempo de funcionamento (anos)
10% 5% 0%
mais de 10
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
O valor médio da receita mensal dos microempreendimentos no Brasil é R$ 1.754 (em reais de outubro de 2003). Uma parcela significativa (21%) recebeu, em média, entre R$ 501,00 e R$ 1.000,00. Cerca de 73% das empresas são lucrativas, sendo que a maior parte delas (36%) era do segmento comércio e reparação. O setor de serviços de alojamento e alimentação sobressai com maior percentual de empresas lucrativas, 84% dos negócios. Mas é também o setor que apresenta um dos lucros médios mais baixos (R$ 585,00). Já a construção civil está no outro extremo, mais da metade dos microempreendimentos neste setor são deficitários. No
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comércio, 79% dos negócios são lucrativos e registram um lucro médio de R$ 926,00. Gráfico 3 Distribuição dos microempreendimentos por faixa de receita (em reais) – Brasil
percentual de microempreendimentos
25% 21%
20% 16%
15%
10%
14% 10%
11%
11%
8% 7%
5%
0%
1 a 100
101 a 200
201 a 300
301 a 500
501 a 1.000 1.001 a 2.000 2.001 a 5.000 5.001 ou mais
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Gráfico 4 Percentual de microempreendimentos lucrativos por setor de atividade – Brasil Serviços de alojamento e alimentação
84%
Outros serviços coletivos, sociais e pessoais
81%
Transporte, armazanagem e comunicações
80%
Atividades imobiliárias, aluguéis e serviços prestados às empresas
80%
Comércio e reparação
79%
Indústrias de transformação e extrativas
79% 75%
Outras atividades
72%
Educação, saúde e serviços sociais Construção civil
46% 41%
Atividades mal definidas
0%
10%
20% 30% 40% 50% 60% 70% percetual de microempreendimentos lucrativos
80%
90%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
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3. Motivações, dificuldades e expectativas dos microempreendedores A maior parte dos microempreendimentos surge pelos desestímulos do mercado de trabalho gerados pelo desemprego e os salários em queda. As respostas dos microempreendedores quando questionados pela Ecinf/IBGE sobre os motivos da abertura do negócio, sintetizados no gráfico, mostram que o motivo mais freqüente é o fato de não terem encontrado um emprego (31%). O segundo fator mais freqüente também está relacionado a desestímulos do mercado de trabalho: 18% declaram a necessidade de complementação de renda. Este último caso foi importante, principalmente, entre as mulheres (32%). Pode-se afirmar então que a precariedade do mercado de trabalho foi a motivação de quase metade dos proprietários de microempreendimentos. Entretanto, é preciso enxergar os microempreendimentos além da conotação negativa tradicionalmente adotada. Existem outros motivos que levam as pessoas a desenvolverem atividades autônomas, relacionados a escolhas pessoais. O desejo de não ter chefe foi o que mais motivou cerca de 16% das pessoas a abrirem um negócio. Esses indivíduos estariam mais próximos a uma estratégia de vida ao valorizarem a liberdade como motivo principal para se tornarem empreendedores. Além da busca pela independência, outros pontos positivos com relação aos microempreendimentos apareceram, porém, com representatividade muito baixa: negócio promissor (7%) e flexibilidade de horário (2%). Vale ressaltar ainda a experiência no ramo do negócio (8%) e a tradição familiar (8%), que também apareceram como motivação e são indicadores importantes na condução dos negócios, tendo em vista que representam conhecimento acumulado na área de atuação. A questão da disponibilidade do capital inicial não parece ser barreira à entrada intransponível para dar início a um pequeno negócio. Segundo a Ecinf/IBGE, cerca de ⅓ dos microempreendedores não precisou de capital para iniciar o negócio. Mais da metade dos proprietários (53%) iniciou o negócio com recursos próprios.
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Gráfico 5 Distribuição dos microempreendedores segundo o motivo de abertura do negócio - Brasil 6%
Outro Motivo
2%
Era um trabalho secundário
7%
Negócio promissor
8%
Expreriência na área
18%
Complementação da renda familiar
8%
Tradição familiar
16%
Independência
2%
Horário flexível
1%
Oportunidades de fazer sociedade
31%
Não encontrou emprego
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
A utilização de recurso de terceiros não é uma forma muito utilizada para dar início a um microempreendimento, sobretudo no que diz respeito a empréstimos de banco, que representam apenas 2%, destacando a baixa capacidade do sistema financeiro para atender esse público. Empréstimos de parentes e amigos foram mais relevantes para os microempreendedores (8%). A herança não apareceu como uma fonte de recursos significativa para a abertura de negócio. Apenas 2% dos microempreendedores declararam herança como fonte de recursos para o início de suas atividades empreendedoras. Esses dados destoam de resultados de estudos para países desenvolvidos, onde a herança é tida como uma fonte importante para a atividade autônoma, o que está relacionado ao fato de os microempreendimentos aqui no Brasil serem originados de famílias de baixa renda. Apesar de todos os problemas vivenciados pela economia brasileira nas últimas décadas, os microempreendedores se declaram otimistas com relação ao futuro dos seus negócios. Conforme o Gráfico
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abaixo, no Brasil, 38% dos empreendedores desejam expandir os seus negócios e 26% tinham a intenção de pelo menos manter-se no mesmo nível em 2003. Isso pode estar refletindo também, em alguma medida, a falta de perspectiva no mercado de trabalho, tendo em vista os índices de desemprego e pelo fato de serem pessoas, em geral, mais velhas, quando as oportunidades de emprego são ainda mais difíceis. Cerca de 10% pensam em mudar de atividade mas continuar independentes e 16% declaram ter a intenção de abandonar e buscar um emprego. Gráfico 6 Distribuição dos microempreendedores segundo o capital utilizado para iniciar o negócio – Brasil 40% 36%
35%
32%
30% 25% 20% 15% 10%
8%
8%
7%
5%
Sócio tinha o capital
Empréstimo de parentes ou amigos
Outros recursos próprios
Poupança anterior ou venda de bens ou imóveis
Herança
Indenização recebida
Não precisou de capital
1% Outra
1% Outras formas de empréstimo
3%
2% Empréstimo bancário
2%
0%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Embora os microempreendedores brasileiros declararem, como planos para o futuro, aumentar o negócio ou pelo menos manter, apenas 8% assumem não possuir dificuldades para desenvolver o empreendimento, como apontado no gráfico abaixo. Ou seja, apesar de estarem dispostos a permanecer com suas atividades autônomas, os microempreendedores passam por uma série de limitações e dificuldades.
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Gráfico 7 Expectativas dos microempreendedores no Brasil 3%
7%
16%
38%
aumentar o negócio continuar o negócio no mesmo nível mudar ativ. e cont. independente outros planos
10%
não sabe abandonar ativ. e procurar emprego 26%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
A concorrência é o grande problema evidenciado pelos microempreendedores. A falta de clientes é a principal dificuldade, identificada por 31% dos donos de negócios. A segunda dificuldade mais citada, extremamente ligada à primeira, é a concorrência grande (25%). A escassez de recursos também é o grande problema de uma parcela significativa dos microempreendedores. A falta de capital próprio é citada por 16% dos empreendedores, o baixo lucro é o quarto problema mais freqüente (13%) e cerca de 4% citam a falta de crédito. Vale destacar ainda que a falta de legalização do negócio não se apresenta como problema para os microempreendedores. Apenas 1% deles citaram como dificuldade questões relacionadas à fiscalização e regularização do negócio. 5. Acesso a serviços de desenvolvimento empresarial Apesar de os microempreendimentos serem os grandes geradores de trabalho e renda no Brasil, eles ainda não são alvos importantes das políticas de desenvolvimento. Escassez de capital, baixa escolaridade, tecnologia defasada, baixa qualificação técnica e de gestão, falta de acesso a crédito são algumas das dificuldades que grande parte dos empreendimentos vivencia.
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Gráfico 8 Distribuição dos microempreendedores segundo as principais dificuldades enfrentadas – Brasil 23%
Falta de clientes
21%
Concorrência muito grande
17%
Baixo lucro
13%
Falta de capital próprio
8%
Não teve dificuldade Falta de crédito
7% 6%
Outras dificuldades
4%
Falta de instalações adequadas Falta de mão-de-obra qualificada
1%
Fiscalização/regularização do negócio
1%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Pelas dimensões e o peso que eles têm na economia, merecem ser parte fundamental de uma estratégia de desenvolvimento. O apoio aos microempreendimentos, entretanto, não deve ser feito através de meras ações compensatórias, mas com políticas que mudem o ambiente em que atuam para a consolidação de um modelo onde o microempreendimento é estratégico. Para isso, há certo consenso de que é necessário um conjunto de condições que permitam o desenvolvimento desses empreendimentos e aumentem a qualidade do trabalho que neles está envolvido. É fundamental que os empreendedores tenham, além do espaço e da infraestrutura necessária para desenvolver suas atividades, acesso a uma série de bens e serviços como: formação básica, capacitação profissional e capacitação em gestão; crédito; apoio à comercialização; etc. A Ecinf pesquisou os serviços considerados mais importantes para os microempreendedores. Cerca de 5,8 milhões responderam o crédito, sendo o serviço que mais se sobressaiu nas respostas. O segundo tipo de serviço foi a formação profissional. O apoio à comercialização também é muito demandado pelos microempreende-
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dores, pois, como apresentado anteriormente, os maiores problemas enfrentados estão relacionados às dificuldades de comercialização dos seus produtos ou serviços. Gráfico 9 Serviços considerados mais importantes para os microempreendedores 5.836.853
Crédito
4.129.570
Formação profissional
2.557.610
Apoio à comercialização
1.170.732
Capacitação em gestão Assistência técnica
588.928
Assistência contábil
436.640
Assistência jurídica
318.359 1.000.000 2.000.000 3.000.000
4.000.000 5.000.000 6.000.000 7.000.000
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Formação e capacitação O primeiro obstáculo ao desenvolvimento dos microempreendimentos está relacionado às deficiências com relação à baixa formação básica e específica que devem ser encaradas pelas ações de apoio ao setor. O baixo nível de escolaridade dos trabalhadores dos microempreendimentos influencia a produtividade e, portanto, a lucratividade dos negócios. Isso sem mencionar a questão da educação como requisito para a cidadania. A escolaridade dos integrantes dos microempreendimentos do Brasil é muito baixa. Os níveis de instrução são inferiores aos da força de trabalho como um todo, já considerados extremamente baixos. Cerca de 9% não chegaram a completar um ano de estudo, o que significa que são analfabetos ou semi-analfabetos. Como podemos observar no gráfico, quase a metade não concluiu o Primeiro Grau.
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Gráfico 10 Grau de instrução dos microempreendedores no Brasil
0%
10%
20%
30%
40%
sem declaração
50%
60%
70%
80%
90%
100%
Ensino Médio ou 2º Grau incompleto
superior completo
Ensino Fundamental ou 1º Grau completo
superior incompleto
Ensino Fundamental ou 1º Grau incompleto
Ensino Médio ou 2º Grau completo
sem instrução ou menos de 1 ano de estudo
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Para aumentar a produtividade dos microempreendimentos, o desafio é atuar não somente sobre a baixa escolaridade dos empreendedores, mas também dos trabalhadores ocupados que possuem níveis educacionais ainda piores. A escolaridade básica é extremamente necessária, porém não é suficiente para o desenvolvimento desses negócios. Formação técnica e capacidade de gestão também são ferramentas importantes para os empreendedores desenvolverem seus negócios. Apenas 21% dos proprietários de microempreendimentos freqüentam ou freqüentaram curso de especialização ou formação profissional voltado para o negócio. Cerca de 60% dos que fizeram o curso utilizaram recursos próprios e para ⅓ o curso foi gratuito. A assistência dada por instituições como o Sebrae tem uma representatividade muito pequena. Cerca de 96% dos empreendedores não receberam nenhum tipo de assistência (técnica, jurídica ou financeira). Dos 4% que declararam ter recebido assistência, 18% foram do governo e 81% de outras instituições. O desafio encontrado por esses empreendedores é conseguir gerir o seu negócio com uma escolaridade tão baixa e sem conhecer
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as ferramentas de administração da produção. As pesquisas evidenciam problemas básicos de gestão, já que uma parte considerável dos empreendimentos não controla de forma alguma as contas do negócio. Muitos deles não separam nem a contabilidade da empresa das contas da família. Apesar das carências educacionais, técnicas e de gestão, os microempreendimentos sobrevivem e muitos deles se desenvolvem e várias vezes conseguem uma renda maior que teriam caso fossem empregados de grandes empresas. Segundo Gurisatti (2003), o desempenho econômico desses empreendimentos está muito relacionado ao conhecimento tácito, não codificado. Algumas competências para a atividade econômica de microempreendimentos não são obtidas na educação formal nem em cursos de capacitação, mas no saber técnico adquirido no exercício da atividade. Grande parte dos microempreendedores tem o conhecimento do trabalho que exercem através de experiências anteriores no ramo de negócio. Nesse sentido, a troca de informações entre os empreendedores sobre esse conhecimento tácito é fundamental para o desenvolvimento dessas unidades. A difusão desse conhecimento técnico é possível através de um ambiente propício à cooperação, que será discutida mais adiante. Existem experiências de formação, capacitação de microempreendedores no Brasil, mas esses programas que não têm escala e são, em geral, descoordenados e isolados de outros instrumentos de apoio. O Sebrae promove ações de capacitação e outros serviços de desenvolvimento empresarial, mas, apesar de existir uma intenção de reformulação da sua política, atualmente só atende os empreendedores mais estruturados. Crédito e outros serviços financeiros A maioria das políticas voltadas aos microempreendimentos avalia que, além da falta de formação e qualificação, a ausência de capital é um dos principais entraves ao desenvolvimento dos empreendimentos. Como vimos anteriormente, quando questionados sobre a principal dificuldade enfrentada para desenvolver o negócio, o baixo lucro (17%), a falta de capital próprio (13%) e a falta
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de crédito (7%) são freqüentemente citados pelos empreendedores brasileiros. Entretanto, o percentual de microempreendedores que utilizam crédito é extremamente baixo (6%), havendo uma diferença considerável dos empregadores (13%) para os conta-própria (5%). O baixo percentual de microempreendedores que solicitam crédito está relacionado à incapacidade deles acessarem o sistema financeiro formal. Isso ocorre pelo racionamento existente no mercado de crédito, ou seja, a situação em que os emprestadores se recusam a fazer empréstimos mesmo que os tomadores estejam dispostos a pagar a taxa de juros estabelecida. Diferentemente dos mercados competitivos de bens e serviços, os ajustes entre oferta e demanda no mercado de crédito não ocorrem através dos movimentos do preço da mercadoria (no caso, a taxa de juros) porque há assimetria de informações entre os tomadores e os emprestadores. Um tomador de empréstimos tem mais informações sobre os retornos potenciais e os riscos envolvidos no projeto que está sendo financiado do que o emprestador. As instituições de crédito não dispõem de informações detalhadas sobre os microempreendedores que têm dificuldades de comprovar seus rendimentos e possuem sistemas de contabilidade e gerenciamento precários. Mais da metade dos microempreendedores (53%) não registra a contabilidade do negócio, 36% registra sozinho e apenas 11% têm contador. Existem indícios de que muitos deles têm dificuldades de separar as contas do negócio das despesas da família. A falta de garantias reconhecidas pelo mercado formal de crédito, por sua vez, não permite a superação do problema da assimetria
O modelo de racionamento de crédito foi elaborado por Stiglitz e Weiss (1981). A assimetria de informações afeta o comportamento dos tomadores de crédito, levando à seleção adversa ou ao risco moral. A seleção adversa descreve a situação em que, dadas as dificuldades de distinção entre os bons e os maus pagadores, os bancos adotam taxas de juros mais elevadas, atraindo mais os tomadores com risco de crédito mais elevado. Já o risco moral está relacionado ao comportamento depois de realizada a transação. Diante de uma taxa de juros mais alta, o tomador de crédito escolhe projetos mais arriscados, diminuindo a probabilidade de que os empréstimos sejam pagos de volta.
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de informações. Na falta de informações disponíveis, as instituições privadas utilizam garantias reais, geralmente maiores do que o crédito concedido. Entretanto, os microempreendedores não dispõem de garantias reais ou seus valores são baixos. Nas duas últimas décadas, várias iniciativas de democratização do crédito surgiram no Brasil, mas ainda são muito restritas, atendendo apenas uma quantidade pequena de empreendedores. Além disso, os créditos são para microempreendimentos já existentes e não incentivam novos negócios. Apoio à comercialização As principais limitações ao desempenho dos negócios segundo os próprios microempreendedores estão relacionadas às dificuldades de comercialização de seus produtos e serviços no mercado. Como visto anteriormente, a maioria dos microempreendedores identifica como principais problemas enfrentados na condução dos seus negócios a falta de clientes e a grande concorrência. As dificuldades de comercialização dos produtos e serviços no mercado podem estar relacionadas a fatores como baixa produtividade, baixa qualidade do produto ou serviço, mas também à falta de acesso aos canais de comercialização e ao funcionamento do mercado de bens e serviços em que esses empreendimentos atuam. Sabe-se que os microempreendimentos são um setor comPetitivo com poucas barreiras à entrada. Por serem unidades muito pequenas, não têm a capacidade de influenciar o preço, atuando em um ambiente, portanto, próximo ao de concorrência perfeita. A forma de determinação de preços dos produtos e serviços mais utilizada pelos microempreendedores é a negociação com os clientes (40% das empresas). A segunda forma de determinação de preços mais utilizada é através do preço de outras empresas concorrentes (23%). A competição via preços e não pela diferenciação do produto ou serviço faz com que a lucratividade dos empreendimentos seja reduzida, já que não possuem vantagens de escala adequada. O custo de produção mais uma parcela fixa é adotado por 18% dos microempreendimentos.
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Gráfico 11 Forma de determinação do preço dos produtos ou serviços comercializados pelos microempreendimentos - Brasil 45% 40%
40% 35% 30% 25%
23%
20%
18%
15% 11%
10% 4%
5%
4%
0% outra forma
o preço é tabelado pelo fabricante ou governo
o cliente determina
negocia com o cliente
custo de produção mais uma parcela fixa
Preço das outras empresas concorrentes
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Os empreendimentos possuem clientela variada, constituída basicamente de indivíduos. O que significa que os microempreendimentos vendem fundamentalmente bens e serviços de consumo final. A proporção de empreendimentos que têm uma clientela fixa de pequenas empresas é muito pequena e é ainda menor a de empresas grandes. Deve ser relativizada, portanto, a tese de que esses empreendimentos surgem para atender à demanda da reestruturação produtiva das grandes empresas, que faz com que terceirizem grande parte das suas atividades. O fato desses empreendimentos não possuírem uma clientela fixa mostra a baixa dependência com relação às demandas das grandes empresas. Por outro lado, como não possuem uma clientela fixa, têm como compradores indivíduos que vivem na sua maioria da renda do trabalho, e ter seu preço definido pelo comprador torna-os muito vulneráveis a oscilações no nível de emprego e salários da economia.
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Há um grande debate em torno das relações existentes entre os microempreendimentos e a economia como um todo, ou seja, se os bens e serviços dos micros competem com os das grandes empresas ou se complementam. Em função da heterogeneidade dos microempreendimentos, há relações de distintas naturezas. Existem aqueles empreendimentos que produzem bens similares ao do mercado formal, mas a um preço mais barato e/ou que fabricam um produto mais personalizado. Aqueles empreendimentos mais relacionados ao setor de comércio competem com grandes empresas que estão vendendo os mesmos produtos. Já os microempreendimentos prestadores de serviços, talvez a grande maioria, não competem por não estarem disponíveis no mercado formal. As dificuldades de comercialização estão relacionadas também ao mercado consumidor, que em geral se restringe à comunidade onde o negócio funciona, ao bairro ou, no máximo, ao município. Se, por um lado, a proximidade do mercado consumidor pode ser vista como uma vantagem da flexibilidade dos microempreendimentos que deve ser aproveitada, por outro constitui um entrave pela capacidade limitada de crescimento da demanda. Para que o negócio sobreviva é necessário ultrapassar as fronteiras dos bairros ou da comunidade. Políticas específicas para encorajar a construção de redes horizontais e verticais poderiam consolidar as perspectivas de mercado para os microempreendedores e ajudá-los a encontrar outros canais de comercialização. Em termos de encadeamentos horizontais a articulação entre os microempreendimentos pode levá-los a disseminar diferentes produtos e serviços em diversas áreas da cidade. Já as redes verticais podem permitir o estabelecimento de relações com médias e grandes empresas ou com o setor público para a comercialização de bens e serviços. Formalização A informalidade pode se constituir em mais um entrave à medida que o empreendimento comece a se desenvolver. De acordo com a Ecinf/IBGE, apenas 26% dos empreendimentos estão regularizados. Os empreendimentos não regularizados têm dificuldades em comercializar o seu produto, principalmente com o setor formal da econo-
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mia, e em acessar crédito. Facilitar a formalização dos microempreendimentos é fundamental para uma estratégia de desenvolvimento. Isso passa, obviamente, por reformas estruturais, como a tributária e trabalhista. Sem uma adequada estrutura de impostos e o peso dos encargos sociais, os pequenos negócios ficam mais inclinados à não-formalização da firma e das relações trabalhistas. O Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Simples) foi uma tentativa de desoneração e simplificação dos tramites burocráticos para as microempresas. Entretanto, o Sistema não corresponde às necessidades dos empreendimentos menos estruturados, já que os custos ainda são altos e a burocracia também. Como podemos observar na tabela abaixo, apenas 2% dos microempreendedores aderiu ao Simples. Vale destacar que a maioria dos microempreendimentos que aderiram ao Simples são do comércio e reparação (53%). Tabela 1 Indicadores de formalização dos microempreendimentos no Brasil número Total
10.335.962
Possui registro de microempresa
1.005.215
Aderiu ao sistema SIMPLES
%
10%
221.701
2%
Possui licença municipal ou estadual
2.341.134
23%
Filiado a sindicato ou órgão de classe
1.102.518
11%
Tem constituição jurídica
1.191.772
12%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
A desoneração e a simplificação da burocracia são medidas fundamentais a serem encaradas por uma estratégia de apoio aos microempreendimentos à medida que a não-formalização pode ser um empecilho ao desenvolvimento desses negócios. O fornecimento de informação sobre os tramites burocráticos também pode auxiliar na formalização dos negócios.
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Quando questionados sobre as dificuldades encontradas na regularização do negócio, a grande maioria dos microempreendedores nem tentou se regularizar, como podemos observar no gráfico. Duas hipóteses podem explicar esse resultado. A primeira é que grande parte dos microempreendimentos estão em um nível de desenvolvimento tão baixo que não sentiram necessidade de se formalizar. A outra está relacionada aos desestímulos provocados pela alta burocracia e pelo custo da formalização. Gráfico 12 Principal dificuldade encontrada na regularização do negócio Não tentou regularizar
72%
Não teve dificuldade Grande burocracia na regularização O custo era alto Falta de informação/orientação
0%
20% 4% 3% 1% 10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Ecinf/IBGE 2003.
Outros Serviços de desenvolvimento empresarial O acesso aos serviços de desenvolvimento empresarial é ponto-chave no sucesso dos empreendimentos. Além do crédito e da capacitação, são instrumentos que visam proporcionar acesso a oportunidades, como a tecnologia, a informação e a assessoria técnica, com o objetivo de aumentar a qualidade das funções de gestão, produção e marketing. Esse público carece de informações de diferentes tipos, desde como gerenciar o negócio até saber as principais tendências do mercado. Dadas as necessidades imediatas de sustento da família, o horizonte desses empreendedores em geral é de curto prazo, o que, muitas vezes, dificulta o planejamento e a definição de estratégias comPetitivas adequadas. A assessoria na área de preparação de planos de negócio, gerenciamento da produção e marketing são fundamentais para a sustentabilidade do negócio.
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O acesso à tecnologia também é um limitador ao desenvolvimento dos negócios. Segundo a Ecinf/IBGE 2003, apenas 11% dos microempreendimentos utilizavam serviços de informática. A maioria desses empreendimentos utiliza tecnologias defasadas, seja pela falta de informação sobre as inovações ou pela insuficiência de capital para investimentos em máquinas ou equipamentos. Este último problema pode ser em parte resolvido pelo acesso ao crédito, enquanto o primeiro requer instituições que prestem aquele serviço. As universidades podem ter importante papel na transferência de tecnologia para esses empreendimentos. 5. Considerações finais A contribuição deste artigo foi analisar as características dos microempreendimentos no Brasil, levantar as suas motivações, expectativas, dificuldades e o acesso desse público aos diferentes mercados de serviços de desenvolvimento empresarial. A heterogeneidade é a grande marca dos microempreendimentos. Há uma variedade de atividades e estratégias do microempreendedores. São organizações desde camelôs até microempresas mais formalizadas, passando pelo comércio do bairro e pelos profissionais liberais. O que elas têm de comum é o fato de terem partido para atividades autônomas cujos riscos e incertezas são mais elevados, mas que possuem vantagens como a independência e, em certos casos, maiores rendimentos dos que os proporcionados pelo mercado de trabalho. A decisão de ser empreendedor é influenciada em grande parte por condições do mercado de trabalho. Mas apesar de ser, principalmente, uma saída ao desemprego ou apenas a possibilidade de conseguir alguma renda para a sobrevivência, os microempreendimentos também parecem ser uma estratégia de vida para alguns. Os microempreendimentos são predominantemente negócios permanentes que funcionam no ano inteiro. Mais da metade dos seus donos está há mais de cinco anos no negócio. Sua clientela é variada e constituída basicamente de indivíduos. Embora otimistas com relação aos seus empreendimentos, declarando a intenção de investir ou pelo menos manter o negócio, os
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microempreendedores têm muitas dificuldades na condução do negócio. Os principais problemas enfrentados são relativos à grande concorrência. Além disso, percebe-se que esses empreendedores não têm acesso a ferramentas básicas necessárias ao desenvolvimento pleno da sua capacidade produtiva, a começar pela sua baixa escolaridade. Os níveis de instrução ainda mais baixos das pessoas que trabalham no negócio limitam a produtividade dos negócios. Os dados evidenciam a exclusão dos microempreendimentos de vários mercados de serviços de desenvolvimento empresarial. O acesso ao crédito e à tecnologia da informação é muito baixo entre os microempreendedores. Percentuais ínfimos têm acesso a algum tipo de assessoria na condução do negócio e a grande maioria não está formalizada, ou seja, não possui direitos de propriedade garantidos. Pelas dimensões e o peso que eles têm na geração de trabalho merecem ser parte fundamental de uma estratégia de desenvolvimento com mecanismos efetivos de distribuição de renda e redução da pobreza. Políticas voltadas aos microempreendimentos, entretanto, não devem ser meramente compensatórias de transferência de renda, ainda que necessárias em alguns casos, mas com ações que mudem o ambiente em que atuam para a consolidação de um modelo onde o microempreendimento é estratégico. Os microempreendimentos necessitam de instrumentos como crédito, formação técnica, capacitação em gestão, apoio à comercialização, acesso à tecnologia, além de uma burocracia mais simples, o espaço e infra-estrutura necessários para desenvolver seus negócios. A capacidade empreendedora conta muito no sucesso do negócio, bem como o nível de atividade da economia. Se muitos dos empreendedores estão conseguindo manter suas atividades sem o acesso a ferramentas importantes e em períodos de relativa estagnação econômica, quando apoiados de forma integrada terão condições de se desenvolverem e gerarem mais trabalho e renda. Quanto maior o conhecimento sobre a realidade dos microempreendimentos, mais eficaz tende a ser uma estratégia de apoio a esse grupo. Dois problemas devem ser encarados nesse sentido: existe uma imensa falta de informações sobre eles e trata-se de um grupo extremamente heterogêneo. A falta de informação é uma das limita-
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ções desse público que impede a adequação de ações efetivas, além de, por exemplo, tornar o crédito mais caro. Uma estratégia de apoio aos microempreendimentos deve levar fortemente em consideração a heterogeneidade intrínseca do setor. O universo de microempreendimentos abrange situações muito diferentes que, necessariamente, precisam de diferentes desenhos de instrumentos de apoio. Para isso, é fundamental o diagnóstico detalhado dos microempreendimentos locais. Esforços de pesquisas para entender melhor esse grupo, os determinantes do sucesso ou da mortalidade, são extremamente necessários, começando pela continuidade de pesquisas como a Ecinf/IBGE. Existem poucos estudos que abordam a dinâmica desses empreendimentos, seus fluxos de produção e comercialização. Futuros estudos de caso poderiam ser aplicados a microempreendimentos em determinado território para analisar questões como as possibilidades de cooperação entre os microempreendedores, a interação com outras empresas e com o local. Alguns programas de apoio aos microempreendedores têm surgido no Brasil por diferentes esferas da sociedade. Mas ainda são programas restritos em relação à magnitude e diversidade do problema, isolados de outros instrumentos, dispersos e, na maioria das vezes, voltados para a fatia mais estruturada dos microempreendimentos. Em suma, falta escala, coordenação, foco e convergência das ações, além de avaliação de todos os programas implementados para identificar o impacto das intervenções e propiciar um desenho mais apropriado às necessidades da demanda. O poder público deve atuar como incentivador e articulador das ações de diferentes segmentos da sociedade (universidades, terceiro setor, sindicatos, setor privado etc.). Além disso, o governo (em seus três níveis) deve direcionar esforços para os microempreendedores que estão nas camadas mais pobres, portanto, menos organizados e excluídos de uma série de mercados. Uma estratégia de desenvolvimento voltada para os microempreendimentos pode compatibilizar critérios de eficiência econômica com justiça social. •••
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