ISSN 1809-9815 ano 2 | janeiro > abril | 2008
SESC | Serviço Social do Comércio
O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS CONDICIONALIDADES DE SAÚDE EM NÍVEL MUNICIPAL UM PROGRAMA POPULISTA OU ESTRUTURAL?
Juliana Estrella Leandro Molhano Ribeiro
HUMOR NA LITERATURA BRASILEIRA NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Leandro Konder
A CIDADE-OBRA OU 'OS OLHOS DA CIDADE SÃO DELES' Luizan Pinheiro
POBREZA E SAÚDE INFANTIL UMA ANÁLISE A PARTIR DOS DADOS DA POF E DA PNAD
Maurício Reis Anna Crespo
A SOCIEDADE INDUSTRIAL E SUAS VULNERABILIDADES Sergio Elias Couri
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v.2 nº6 janeiro > abril | 2008 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional
ISSN 1809-9815 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.2 nº6 | P. 1-152 | JANEIRO > ABRIL 2008
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SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC Antonio Oliveira Santos DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO EDITORIAL Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Sebastião Henriques Chaves CONSELHO EDITORIAL Álvaro de Melo Salmito Luis Fernando de Mello Costa Mauricio Blanco Raimundo Vóssio Brígido Filho SECRETÁRIO EXECUTIVO
Sebastião Henriques Chaves ASSESSORIA EDITORIAL
Andréa Reza EDIÇÃO Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral Christiane Caetano PROJETO GRÁFICO
Vinicius Borges PRODUÇÃO EDITORIAL
Rosane Carneiro REVISÃO
Márcio Mará Elaine Bayma Sinais Sociais / Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional - vol.2, n.6 (janeiro/ abril) - Rio de Janeiro, 2008 v. ; 29,5x20,7 cm. Quadrimestral ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO5 EDITORIAL6 SOBRE OS AUTORES9 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS CONDICIONALIDADES DE SAÚDE EM NÍVEL MUNICIPAL12 UM PROGRAMA POPULISTA OU ESTRUTURAL? Juliana Estrella Leandro Molhano Ribeiro
HUMOR NA LITERATURA BRASILEIRA44 NO INÍCIO DO SÉCULO XX Leandro Konder
A CIDADE-OBRA OU ‘OS OLHOS DA CIDADE SÃO DELES’74 Luizan Pinheiro
POBREZA E SAÚDE INFANTIL102 UMA ANÁLISE A PARTIR DOS DADOS DA POF E DA PNAD Maurício Reis Anna Crespo
A SOCIEDADE INDUSTRIAL E SUAS VULNERABILIDADES126 Sergio Elias Couri
NÚMEROS ANTERIORES150
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A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil, hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-seão manifestar. Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo”. Igualmente é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos. Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das idéias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo. O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país. Disseminar idéias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais.
Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do SESC
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EDITORIAL Os sinais que afloram em nossa sociedade, nos últimos anos, são alvissareiros. Indicam que se estabelecem as condições para um desenvolvimento sustentável. O Brasil começa a deixar de ser o país do futuro. As crises externas que provocavam seqüelas graves, hoje, aparentemente, poderão, quando muito, ter efeitos secundários facilmente superáveis em curto prazo. Os fundamentos macroeconômicos da economia brasileira são sólidos. Pode-se afirmar que, pela primeira vez em nossa história, olhamos o amanhã já com um otimismo comedido. Fortalece-se a autoestima da população e o sentimento de sermos o país da desesperança se desvanece. Estamos deixando de ser um povo que não deu certo. Esta constatação, apoiada nos dados econômicos, não deve, entretanto, levar a uma atitude panglossiana, ou seja, de que estamos no melhor dos mundos. O IDH indica que temos um padrão de qualidade de vida ainda bastante baixo, as doenças sociais ainda fazem vítimas, a escolaridade é muito baixa e a violência é a tônica de nossos dias. Não temos dúvidas de que, ao se estabelecer as bases de um desenvolvimento sustentável, temos a condição necessária para as medidas voltadas a um incremento significativo na qualidade de vida dos brasileiros, notadamente daqueles que, hoje ainda, se situam abaixo da linha da pobreza. Entretanto, isso não é suficiente para a construção da sociedade que todos almejamos. Neste sentido, dentro de seus limites e possibilidades, o SESC envida esforços para produzir respostas de redução das enormes desigualdades sociais que enodoam nosso país e que envergonham a todos nós. A revista Sinais Sociais, produzida e editada pela Entidade, é uma manifestação de nossa preocupação com as questões sociais. Ela é um espaço que traz à reflexão de todos a contribuição daqueles que pensam soluções para o equacionamento ou a redução dos nossos graves problemas sociais.
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Nesta perspectiva, neste número da revista Sinais Sociais temos artigos que analisam o Programa Bolsa Família, a relação entre pobreza e saúde infantil e as vulnerabilidades da sociedade industrial. Abordados com profundidade e acuidade, os artigos trazem subsídios que permitem o pensamento de caminhos ajustadores do desenvolvimento sustentável com qualidade de vida. Completando o número 6 da Sinais Sociais, temos uma análise do humor na literatura do início do século XX e um estudo sobre o olhar de vários autores sobre a cidade como obra de arte. Pensar as artes e disseminar esses resultados é, igualmente, objetivo do SESC, que tem a cultura entre as suas prioridades programáticas. Entende o SESC que nem só de pão vive o homem. Qualidade de vida não se restringe à melhoria do corpo e das suas condições materiais de existência. Vai além. O corpo sem idéias é apenas um organismo, não constitui o homem capaz de se transformar e transformar o mundo onde se insere. Sem cultura, o homem de humano “só tem o gesto e o peito”, nas palavras de Camões. Com a publicação deste novo exemplar da revista Sinais Sociais, temos a expectativa de atender ao objetivo que justifica sua existência: acolher a produção científica deste país e fazê-la chegar àqueles comprometidos com um Brasil melhor.
Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
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SOBRE OS AUTORES Anna Crespo Doutoranda em Economia da Universidade de Princeton. Possui Mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Juliana Estrella Doutoranda em Ciência Política, Iuperj/Ucam-RJ com concentração em Políticas Públicas. Mestre em Ciência Política com ênfase em Política Comparada - DCP/UFMG. Graduada em Administração de Empresas - Face/UFMG. Ex-aluna do Vilmar Faria Fellowship Program in Quantitative Analysis and Public Policy, UT-Austin, USA e do Curso em Metodologia de Pesquisa Aplicada pela Ence/IBGE. Pesquisadora do Ipea, IETS, FGV, Sebrae e Ucam, nas áreas de microfinanças e instrumentos financeiros para população de baixa renda, desenvolvimento local, educação e juventude. Professora da FGV-RJ. Principais publicações: “Transferindo recursos para os estudantes no Brasil: mais escola e menos trabalho infanto-juvenil?” In: Gestão e avaliação de políticas sociais no Brasil. FAHEL, Murilo e NEVES, Jorge Alexandre Barbosa (2007); Mercado dos Cartões de Crédito no Brasil e sua Relação com as Micro e Pequenas Empresas. Editora Sebrae (2007); “Uma lupa sobre algumas comunidades rurais do Amazonas, um caso sobre a educação brasileira”. In: TEIXEIRA, Pery; BRASIL, Marília; RIVAS, Alexandre. Produzir e viver na Amazônia rural: estudo sociodemográfico de comunidades do Médio Solimões. Manaus: Editora EDUA, (2007). Leandro Konder Nasceu em janeiro de 1936, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em dezembro de 1958. Trabalhou de 1958 até 1963 no escritório de advocacia do Dr. Evandro Lins e Silva. Atingido pela repressão que se seguiu ao golpe de 1964, foi editor cultural do semanário Folha da Semana (1965). Exilado na então República Federal da Alemanha, lecionou Português na Universidade de
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Bonn, de 1973 a 1977. Morou em Paris, como correspondente da revista Visão (1977 a 1979). Lecionou Filosofia na Pós-Graduação do Instituto Bennett (1981 a 1984). Lecionou História das Idéias na Universidade Federal Fluminense, de 1984 a 2003. Leciona atualmente, desde 1984, Filosofia da Educação na PUC/Rio. Publicou 27 livros. Leandro Molhano Ribeiro Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997), mestre (1999) e doutor (2005) em Ciência Política pelo Iuperj/Ucam. Professor assistente e pesquisador da Universidade Cândido Mendes (Ucam), professor do curso de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) e pesquisador da equipe técnica de apoio do FGV Opinião. Realiza pesquisas na área de Ciência Política, com ênfase em Políticas Públicas, Instituições Políticas e Análise do Processo Decisório. Autor de artigos na área de ciência política e co-autor dos livros Agências reguladoras: inovação e continuidade no sistema político-institucional brasileiro (Editora Garamond, 2007) e Teias de relações ambíguas: regulação e ensino superior (MEC/Inep 2002). Luizan Pinheiro da Costa Professor Doutor em História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da Faculdade de Artes Visuais (FAV) do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará (ICA/UFPA). Leciona Estética e História da Arte na mesma Universidade. Autor de IN:POSTURAS ESTÉTICAS (no Prelo na Editora da UFPA). Mauricio Cortez Reis Doutor em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e economista do Ipea-Rio. Sergio Couri Nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 1948. Estudou Economia na UFRJ (1966-9), graduando-se pela Universidade de Brasília (1970). É mestre pela Universidade de Nova York (1978). Pela Universidade Federal Fluminense, é ainda bacharel em Ciências Jurídicas (1970) e licenciado em Inglês e Fran-
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cês (1966). No plano acadêmico, dedica-se à Economia Política. Lecionou Empresas Multinacionais na UnB (1980). Introdução à Economia para candidatos ao Instituto Rio Branco (1980-2), Economia Internacional, Política Internacional e Ideologias Políticas Contemporâneas para especialistas do Executivo federal (1984-6), Economia Brasileira no Instituto Rio Branco (1987), e Direito do Comércio Internacional na Universidade Católica de Brasília (2000). Diplomata de carreira, serviu em Nova York, Bogotá, Roma e Montreal, e tem passagens menores por Islamabade, Varsóvia, Georgetown, São Salvador, Luanda, Iaundê, Porto Príncipe, Tegucigalpa e Ciudad del Este. Em 1992, foi agraciado pela Santa Sé com a Ordem de São Gregório Magno, no grau de comendador, e, em 2006, pelo Itamaraty com a Ordem de Rio Branco, no grau de grande oficial. Atualmente, é o chefe do Escritório de Representação do Ministério das Relações Exteriores no Paraná. Obras editadas: Ensaios sobre a evolução do capitalismo e do marxismo (DF/UNB, 1983, 2ª. ed. 2001); Duas reflexões para uma Economia Política. (Roma: Bulzoni. Editore, 1990); Liberalismo e societalismo (DF/UnB, 2001); A política externa brasileira na sociedade industrial global: elaboração de algumas percepções (ed. Restrita, 1992); O processo negociatório do Nafta e o prisma canadense (ed. Restrita, 1993); Timós (coletânea poética reunindo O vento e a vela, luz e sombra e Pós-poesia, Rio de Janeiro, Sette Letras, 2002).
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O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS CONDICIONALIDADES DE SAÚDE EM NÍVEL MUNICIPAL UM PROGRAMA POPULISTA OU ESTRUTURAL?1 Juliana Estrella Leandro Molhano Ribeiro
1 Os autores agradecem a Aline Diniz e a Natália Sátyro, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), por dar suporte a esse paper com dados do Programa Bolsa Família, e a Wendy Sinek por seus comentários.
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Esse paper discute o principal programa de bem-estar social do governo Lula: o Bolsa Família. Este programa provê benefícios monetários diretamente a famílias que vivem em estado de extrema pobreza e estabelece como requisito para o recebimento dos recursos as seguintes condicionalidades: freqüência escolar dos seus filhos e visitas regulares a centros e postos de saúde. Essas condicionalidades distinguem o Programa Bolsa Família de vários programas populistas, os quais procuram aliviar a pobreza no curto prazo, mas não visam ao rompimento do ciclo de pobreza a longo prazo. A primeira parte do trabalho discute os aspectos teóricos do Bolsa Família, contrastando dois tipos de políticas sociais: populistas versus estruturais. A segunda parte analisa, no nível municipal, como o programa tem, na prática, afetado o acesso das famílias pobres aos serviços de saúde. A análise leva em consideração dimensões políticas, demográficas e socioeconômicas. Em resumo, conclui-se que o Programa Bolsa Família se caracteriza por ser um programa populista, no bom sentido do termo.
This paper will discuss the major social welfare program of Lula’s government, the conditional cash transfer program, the Bolsa Família. The Bolsa Família targets cash benefits directly to families in extreme poverty only if they send their children to school and visit health centers on a regular basis. This conditionality aspect distinguishes the Bolsa Família from many populist programs, which aim to alleviate poverty in the short term but do not shift the behavior of poor families with an eye toward long term change. The first part of the paper will place the Bolsa Familia program in theoretical context, contrasting populist versus structural policies. The second part of the paper will analyze, at the municipal level, how the program has in practice affected public health access and usage by targeted poor families. The analysis takes into account political, demographic and socioeconomic variables, and in short, finds that Bolsa Família Program is classically populist, in the best sense of the concept.
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1. INTRODUÇÃO O Programa Bolsa Família é considerado um dos mais ambiciosos programas de benefício social na América Latina. Lançado em 2003 pelo Governo Lula, o Bolsa Família é um programa de transferência de renda condicionada que provê benefícios monetários diretamente às famílias pobres assistidas tão-somente se elas enviam as suas crianças à escola e freqüentam os postos de saúde regularmente, de acordo com as condicionalidades de educação e saúde que o programa exige. Além disso, enquanto a transferência monetária é centralizada no Governo Federal, as condicionalidades são descentralizadas, representando responsabilidade de cada uma das municipalidades que oferecem os serviços de educação e saúde. Desde que o programa foi implementado, a oposição ao Governo Lula vem tratando o Bolsa Família como um programa social populista. Entretanto, as condicionalidades de educação e saúde distinguem o Programa Bolsa Família de outros programas populistas. Esses programas se propõem a aliviar a pobreza no curto prazo, através de transferências de renda, mas não melhoram as condições de bem-estar das famílias pobres no longo prazo. O objetivo desse paper é analisar, em nível municipal, como o Programa Bolsa Família vem afetando o acesso às condicionalidades de saúde2 e o seu uso pelas famílias pobres cobertas pelo programa, visando à melhoria de bem-estar no longo prazo. Analisando o desempenho das municipalidades em prestar os serviços de saúde, poderemos mostrar em que sentido o programa pode ser considerado populista. Primeiro, situaremos o Programa Bolsa Família na literatura de políticas sociais e discutiremos em que dimensão ele pode ser considerado populista3. Segundo, analisa2 Esse paper especificamente se restringirá a analisar as condicionalidades de saúde, apesar de estarmos cientes de que o Programa envolve tanto condicionalidades de saúde quanto de educação. 3 O conceito de populismo é controverso na literatura, apresentando mais de uma definição. Ademais, populismo é um conceito multidimensional, abrangendo aspectos econômicos, políticos, simbólicos etc. Este paper fará uma discussão do populismo em suas diferentes dimensões, discutindo diferentes abordagens a partir da literatura de Panizza, 2005.
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remos em que medida o Programa Bolsa Família tem afetado o acesso aos serviços de saúde pública e o uso desses serviços pelos beneficiários do programa, considerando-se variáveis políticas, demográficas e socioeconômicas. Em suma, argumentamos que enquanto o Programa Bolsa Família possui alguns aspectos populistas, o acesso às condicionalidades de educação e saúde, em nível municipal, o distingue de programas tradicionalmente populistas e permite uma estrutura sustentável para que as famílias pobres beneficiadas possam vir a romper o ciclo de pobreza intergeracional. 2. PERSPECTIVAS SOBRE O POPULISMO Recentemente, o termo populismo tem sido empregado em um sentido negativo, para se referir, por exemplo, a políticos demagogos ou a corrupção. Contudo, uma breve revisão teórica do conceito revela o quanto a questão é mais complexa. O populismo surgiu com o People’s Party nos Estados Unidos em meados dos anos 1890, na medida em que os membros desse partido eram chamados de “populistas”. Nesse primeiro momento, portanto, o populismo não tinha qualquer conotação valorativa. Além disso, é possível identificar, na teoria democrática, referências ao populismo como resultados de políticas correspondentes a uma vontade da maioria (do povo). Panizza (2005) apresenta três possíveis abordagens para explicar a emergência do populismo: generalizações empíricas, relatos históricos e leituras sintomáticas. A realização de generalizações empíricas, no entanto, depende da definição de um conjunto de características concretas que configuram o fenômeno e, até o momento, não há consenso na literatura sobre quais características devem ser incluídas em uma definição generalizante desse tipo. Os relatos históricos, por sua vez, referem-se a períodos ou fenômenos específicos. Essa abordagem associa, normalmente, líderes personalistas e carismáticos a políticas de inclusão (política, social e econômica) das massas ou dos trabalhadores urbanos; forma de inclusão concebida como soluções do tipo “de cima para baixo”. O exemplo brasileiro dessa abordagem é a liderança de Getúlio Vargas no Estado Novo e as normas implementadas durante seu governo para a regulamentação
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do trabalho e sua política de industrialização, via substituição de importações. A terceira abordagem é baseada em considerações sobre o povo como ator político. Shils (1956) considera que o populismo tem dois aspectos essenciais: a noção de governo trabalhando diretamente com o povo e a noção da vontade do povo como uma questão central para o poder político. Esse texto se baseia nessa abordagem. Nesse sentido, o populismo é visto como um discurso anti-status quo que simplifica o mundo entre “o povo” e “os outros”. Isso não significa que os líderes ignoram as instituições, mas que usam o discurso político como um modo de falar diretamente com a população e, assim, romper a fronteira entre “o povo” e “os outros”, “os sem poder” e os “poderosos”. Nesse sentido, o populismo é muito mais um construto político, um modo de ter identificação com as massas através de discursos sobre antagonismos, do que uma categoria sociológica. Um elemento essencial do populismo, para este tipo de abordagem, consiste em construir o antagonismo utilizando elementos para mostrar o quanto “o povo” é diferente “dos outros”. Chantal Mouffe reforça essa concepção ao argumentar que o populismo consiste, essencialmente, na criação do “Nós” em oposição a “Eles”: A oposição ‘os outros’, em relação ‘ao povo’, pode ser apresentada em termos políticos ou econômicos, ou ambos conjuntamente, significando ‘a oligarquia’, ‘os políticos’(...) ou qualquer outro grupo que impede o povo de alcançar sua plenitude. (Panizza, 2005:04)
Worseley, Shils e Laclau (2005) argumentam que a constituição de uma identidade popular é central para qualquer tipo de apelo populista. De fato, os autores sustentam que o populismo em sociedades modernas é mais bem percebido como um apelo contra as idéias sociais dominantes e as estruturas de poder estabelecidas, dirigido ao povo (Panizza, 2005). É importante ressaltar que, na medida em que o populismo é concebido como um apelo, ele pode ser reconfigurado para diferentes contextos, dependendo apenas da redefinição do “povo” e “seus inimigos”. Panizza (2005) levanta três questões para determinar se uma dada política pública
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pode ser considerada populista: “Quem é o povo? Quem fala pelo povo? Como a identificação populista é estabelecida?” QUEM É O POVO? Para os populistas, o “povo comum” tem pouco a ver com a noção marxista de aliança de classes contra as elites econômicas. Além disso, o povo não é necessariamente pobre, mas constituído por pessoas que se percebem como sistematicamente desfavorecidas em relação “aos outros”. Além disso, essa identidade pode mudar com o tempo. Na América Latina, por exemplo, essa identidade (o povo) foi formada tanto pelos membros dos trabalhadores industriais como pelos empresários nacionais durante os anos 1950 e 1960. Já no final do século XX, essa identidade se modificou, incluindo as pessoas desempregadas, os autônomos e os trabalhadores informais do setor urbano (Laycock, 2006). QUEM FALA PELO POVO? Geralmente, os líderes populistas não são apenas carismáticos, eles têm também uma história de vida que não se difere da história daqueles que se identificam como “povo comum”. Os líderes aparecem como pessoas comuns, mas com habilidades extraordinárias, as quais explicam, em grande parte, sua mobilidade social excepcional: O povo se identifica com os líderes através das estórias que estes relatam não apenas através das palavras, mas, de forma mais ampla, pelo uso de símbolos, incluindo sua expressão corporal e suas vidas pessoais. Como em qualquer outra narrativa política, o populismo articula uma variedade de mitos, símbolos, temas ideológicos e argumentos racionais ao dizer, para sua audiência, de onde vem o povo, qual o sentido das suas condições atuais e para oferecer caminhos para um futuro melhor. (Panizza, 2006:20)
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COMO A IDENTIFICAÇÃO POPULISTA É ESTABELECIDA? Laclau (2005) mostra que uma condição necessária para a emergência do populismo é a existência de um contexto de pluralidade de demandas conjugado com a falta de capacidade do sistema institucional em absorvê-las. Nesse sentido, é essencial entender o significado das demandas “do povo” e quando o sistema não é capaz de processá-las. Observando o contexto socioeconômico brasileiro, por exemplo, observa-se que a falta de capacidade de consumo e de ativos (educação, propriedade, ativos financeiros etc.) das classes baixas é muito acentuada em comparação com as classes médias e altas4. Ao mesmo tempo, o sistema institucional não foi capaz de prover um aumento consistente no nível de renda, nem na difusão de crédito para o consumo de bens para as classes baixas até a inauguração do governo Lula: A explicação para a persistência da pobreza em um país relativamente rico, de novo, parece simples: grosso modo, a renda das pessoas deriva da utilização dos ativos que possuem. Como no Brasil a propriedade de ativos valiosos – capital físico, terra, educação, ativos financeiros – é historicamente muito concentrada, seguem-se os persistentemente baixos níveis de renda dos mais pobres. (...) O pobre brasileiro, (...) em função de sua destituição dos ativos que têm valor, ganha miseravelmente pouco: ele integra o contingente de trabalhadores ‘informais’ que hoje responde por cerca de metade de todo o mercado de trabalho no país. Ademais, sua capacidade de endividamento – de oferecer colateral, por exemplo, para financiar o acesso aos ativos valiosos que poderiam libertá-lo de sua pobreza, é nula. (Kerstenetzky, 2002, p.655-56)
Na última década, o Plano Real proveu uma estabilidade monetária significativa que permitiu que brasileiros de baixa renda começassem a consumir produtos e serviços que até então 4
Apesar de decrescente nos últimos anos, a desigualdade de renda brasileira permanece como uma das mais elevadas no mundo. Nosso Coeficiente de Gini em 2005 – o menor em 30 anos – era 0.566 (Paes de Barros, Carvalho, Franco & Mendonça, 2006).
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eram exclusividade das classes médias e altas (Guedes & Oliveira, 2006). No entanto, esse movimento se limitou às maiores cidades e não alcançou a maior parte da população urbana residente em cidades pequenas e remotas do país até o governo Lula assumir o poder. No que se refere ao lado da demanda, o Programa Bolsa Família conferiu capacidade “do povo” para consumir, em bases regulares. O principal efeito do Bolsa Família foi ter difundido a capacidade de consumo das famílias pobres nas cidades menores e mais isoladas, principalmente no Nordeste brasileiro. Para os beneficiários do Bolsa Família, a melhoria de vida foi o resultado da obtenção de fontes regulares de renda, o que os permitiu ter comida, roupas e pequenos bens de consumo em maior quantidade e melhor qualidade. De fato, pesquisas recentes mostram que a maior parte dos contemplados pelo Bolsa Família utilizam os recursos recebidos para complementar os gastos escolares e comprar roupas para seus filhos (World Bank, 2007). Para a beneficiária Dinalva Pereira de Moura, uma mãe que vive em Varjão, favela do Distrito Federal, o programa “tem sido maravilhoso para mim e para minha família. Eu tenho três filhos e meu marido está desempregado. O Bolsa Família me ajuda a comprar comida. Algumas vezes eu posso até comprar frutas para meus filhos. Eles sabem que quando vamos receber o dinheiro teremos mais comida e isso nos faz mais felizes. E eles não faltam à escola, pois sabem que o dinheiro depende deles a freqüentarem”. (World Bank, 2007a)
Além disso, os beneficiários do Bolsa Família são mais conscientes das condicionalidades obrigatórias do programa, as quais exigem a freqüência escolar dos filhos das famílias contempladas e visitas regulares aos centros e postos de saúde. Durante as eleições de 2006, Lula teve expressivas votações nos municípios atendidos pelo Bolsa Família. Como mostram Nicolau & Peixoto (2007), a correlação entre os votos de Lula em 2006 e as transferências monetárias do programa para os municípios foi de r = 0.72, no primeiro turno, e r = 0.69, no segundo.
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Existe uma diferença significativa em relação à maior parte da população urbana que vive nas grandes cidades do Brasil, em que as pessoas podem comprar geladeiras duplex, telefones celulares, viagens aéreas e têm cartões de crédito. Além disso, elas têm acesso a escolas públicas e centros médicos públicos, a despeito do dado de que isso não é obrigatório para quem não recebe o Bolsa Família. No que diz respeito à capacidade de consumo, antes da implementação do Bolsa Família, havia uma forte diferença entre os residentes de grandes e pequenas cidades do Brasil. Contudo, é importante ter em mente que a qualidade da saúde e da educação pública é geralmente baixa para toda população urbana, independentemente da sua localização. O grande diferencial do Bolsa Família comparado aos programas sociais do governo Cardoso – o Bolsa Escola, do Ministério da Educação e o Bolsa Alimentação, do Ministério da Saúde – foi a convergência dos programas sociais existentes em apenas um programa de transferência monetária, o qual definiu as mesmas condicionalidades obrigatórias e, mais importante, contando com uma alocação mais elevada de recursos e atingindo um número maior de beneficiários do que antes. De acordo com o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), o valor dos benefícios sociais concedidos passou de R$ 570 milhões em 2003 – ano em que as transferências passaram a ser feitas através do Bolsa Família – para 7.525 milhões em 2006. Desse total, mais de 50% dos recursos foram destinados a famílias de cidades pequenas e isoladas do Nordeste. Além disso, o Governo Lula aumentou o valor concedido aos beneficiários. Essas mudanças no formato e no escopo do programa foram importantes para atender uma das mais importantes demandas da população pobre: o aumento da sua capacidade regular de consumo5.
5 É importante dizer que o Brasil teve um forte crescimento favorável aos pobres entre 2001-2005. Enquanto a renda média dos brasileiros reduziu 0,22% ao ano, a renda média dos pobres aumentou 3,41% ao ano. Em 2004, foi especialmente favorável aos pobres que tiveram um crescimento médio de suas rendas em 14% contra 3,56% da média da renda nacional. Contudo, esse crescimento não se deveu apenas ao Bolsa Família. Parte se deveu ao crescimento real do salário mínimo (Kakwani, Neri & Son, 2006).
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A construção do antagonismo político entre “Nós” e “Eles” como Mouffe (2006) argumenta foi favorecida no Brasil pela enorme desigualdade existente há décadas, assim como pela sistemática redução dessa desigualdade após o ano 2000. No que se refere especificamente ao Bolsa Família, observa-se que o Programa contribuiu para reduzir em 27% a desigualdade da renda familiar per capita (medida como a razão de renda dos 20% mais ricos em relação aos 20% mais pobres), configurando 45% do total de transferências recebidas pelas famílias. Outras transferências foram: programas de benefícios monetários continuados, 14%; pensão por aposentadoria, 1%; transferências privadas, 3% (Paes de Barros, Foguel, Ulyssea, 2006). Desse modo, o Bolsa Família contribuiu para diminuir a distância entre o “povo” e os “outros” e favorecer o discurso em defesa dos mais pobres contra as elites. “O povo” representava em 2006 onze milhões de famílias abaixo da linha de pobreza. Essas famílias receberam um total de R$ 7.525 milhões, o que correspondeu a um valor médio de R$ 686,19 para cada família por ano. No que diz respeito às respectivas identidades dos presidentes Cardoso e Lula, observa-se uma grande diferença entre eles em seus relacionamentos com “o povo”. Sob essa perspectiva, quase todas as qualidades de Cardoso trabalham contra ele, já que, na concepção popular, ele é um típico representante da elite brasileira: tem origem elitista, teve uma boa educação formal, é sociólogo famoso no Brasil e reconhecido internacionalmente e domina diversos idiomas – em resumo, Cardoso é um perfeito intelectual. Em contraposição, Lula é um migrante do Nordeste, um refugiado da seca e da pobreza. Alguém que conheceu a fome de perto e teve uma formação educacional mínima. Embora sua história não se diferencie da maioria das pessoas pobres no Brasil, ele se tornou uma liderança sindical importante na luta pelos trabalhadores e esteve à frente do Partido dos Trabalhadores (PT) durante a transição democrática. Mesmo quando se dirige à nação como presidente, Lula utiliza uma linguagem simples. Suas características correspondem às das pessoas pobres e desfavorecidas, especialmente daquelas com origem no Nordeste – incluindo os nordestinos que migraram em busca de melhores oportunidades no trabalho for-
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mal e informal nas grandes cidades do Sudeste e do Sul do Brasil. Nesse sentido, Lula rompe a barreira entre “Nós” e “Eles” em dois sentidos: primeiro, ele teve a vantagem de suceder a um dos líderes mais preparados da história brasileira, fortemente identificado como a quintessência da elite do país. Além disso, o governo Lula gozou de uma era de estabilidade monetária sem precedentes, que o permitiu difundir o Programa Bolsa Família e promover um forte aumento de renda dos mais pobres. Em resumo, a história pessoal de Lula e as condições econômicas favoráveis do país na última década o possibilitaram formar uma forte identidade com os beneficiários do Bolsa Família. Além de sua história pessoal, Lula é um dos mais importantes líderes do PT, o principal partido de esquerda do Brasil, fortemente vinculado aos movimentos sociais, que, tradicionalmente, se empenham por políticas voltadas para a população mais desfavorecida (Kinzo: 1993; Leal: 2005; Rodrigues: 2002). Panizza (2005) sublinha que a dimensão simbólica não pode ser separada das melhorias materiais na identificação dos líderes com seus seguidores. Como mostrado acima, o Programa Bolsa Família preencheu todas as condições para ser chamado de “populista”. Contudo, a medida do quanto o programa realmente trabalha como pretendido depende das condicionalidades de saúde no nível municipal. A intenção por trás das condicionalidades é transformar as condições econômicas não apenas para uma geração, mas possibilitar que as famílias pobres superem o ciclo de pobreza. A próxima seção explica os aspectos específicos do Bolsa Família mais detalhadamente. 3. A PERSPECTIVA DA POLÍTICA ESTRUTURAL Neste trabalho, denominam-se como políticas estruturais aquelas que, ao prover recursos e oportunidades aos pobres e desfavorecidos, possibilitam a superação do ciclo intergeracional de pobreza. Nesse sentido (Kerstenetzky 2002) se refere, por exemplo, a políticas educacionais e de acesso financeiro. Essa abordagem é próxima a de Sen (1992), ao inverter a relação entre renda e capacidade: ao invés de conceber a renda domiciliar
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operando como meio para obter determinadas capacidades, o aumento da capacidade produtiva das pessoas determina o aumento da sua habilidade em gerar renda e bem-estar. No sentido elaborado por Sen (1992) e Abranches (1985), políticas que reduzem as desigualdades de condições, de oportunidades e de acesso são exatamente aquelas que têm maior probabilidade de combater a pobreza. Políticas sociais que visam romper o ciclo de pobreza intergeracional precisam levar em consideração estratégias para conferir recursos educacionais e de saúde aos seus beneficiários, na medida em que políticas desse tipo aumentam a capacidade produtiva. Especialmente no caso brasileiro, o acesso aos bens e serviços de educação e saúde de qualidade são fortemente concentrados, o que acaba reforçando a enorme desigualdade existente no país. Além disso, alternativas para a geração de renda e riqueza precisam ser levadas em consideração. Attanasio & Azékely (1999) empregam uma abordagem baseada na análise da propriedade (posse) para se ter acesso à renda e utilizá-la na geração e acumulação de recursos. A principal idéia desses autores é que a renda domiciliar é dada pelo retorno de vários recursos apropriados e usados pelos membros das famílias. Esses recursos incluem capital humano, físico e financeiro, e acesso a recursos que podem ser denominados como capital social 6 Desse modo, a transferência de tipo monetário do Bolsa Família garante o aumento de renda e o atendimento de demandas orçamentárias de curto prazo. As condicionalidades, quando prestadas aos beneficiários com qualidade e regularidade, garantem o bemestar a longo prazo e as condições necessárias para romper o ciclo intergeracional de pobreza. Ambos os aspectos do Programa Bolsa 6
A definição de capital social de Putnam (1993) refere-se a um conjunto de normas e redes sociais que facilitam a ação coletiva entre os indivíduos. Diferente de outras formas de capital, o capital social é inerente às estruturas de relações entre os indivíduos (apud Attanasio & Székely, 1999). Contudo, a tradução desse conceito abstrato em um conjunto uniforme de variáveis mensuráveis é um desafio que poucos projetos de pesquisa realizaram. Desse modo, o conceito capital social está envolvido em algum tipo de disputa conceitual (Sinek, 2006).
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Família podem ser sintetizados na seguinte disposição de possibilidades analíticas das políticas públicas: “Dimensão Política” (transferência) Curto prazo
“Eficiência” (Condicionalidades) Longo Prazo
% elevado de votos no presidente
IGD alto
Política pública populista e estrutural
% elevado de votos no presidente
IGD baixo
Política pública populista e nãoestrutural
% baixo de votos no presidente
IGD alto
Política pública nãopopulista e estrutural
% baixo de votos no presidente
IGD baixo
Política pública nãopopulista e nãoestrutural
Resultado Esperado
Fonte: autores
Analiticamente, uma política será estritamente populista se na dimensão política ela proporciona votos (nesse caso específico, por meio da identificação simbólica povo-líder proporcionada através da transferência monetária, sem nenhuma condicionalidade. Em outro extremo, uma política pode ser estritamente estrutural quando impõe o cumprimento das condicionalidades sem nenhuma transferência aos eleitores; portanto, não desenvolvendo a identificação simbólica povo-líder. O quadro acima não opõe populismo versus estrutural. Busca ilustrar todas as possibilidades empíricas dentro de um continuum entre esses extremos. 4. O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA O Programa Bolsa Família foi lançado em outubro de 2003 como a principal bandeira dos programas sociais do Governo Lula. O Programa procura reduzir a pobreza e as desigualdades existentes através da transferência de recursos monetários para as famílias que vivem em estado de extrema pobreza. O Bolsa Família se propõe, também, a combater a transmissão de pobreza
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entre gerações, através da imposição de condicionalidades como requisito obrigatório para a obtenção de recursos por parte dos beneficiários, tais como freqüência escolar, a vacinação e a realização de exames pré-natal. O Programa Bolsa Família se expandiu rapidamente e, atualmente, cobre mais de 11 milhões de famílias, o que representa cerca de 48 milhões de pessoas (aproximadamente 24% da população brasileira formada por 189 milhões de habitantes). Quase metade das 11 milhões de famílias atendidas tem como principal responsável uma pessoa desempregada e 92% dos beneficiários são mulheres. Além disso, 56,2% dos beneficiários diretos são analfabetos ou têm menos de quatro anos de estudo, enquanto outros 24,6% têm entre quatro e oito anos de estudo (O Globo, 2007). De acordo com o perfil demográfico ou econômico das famílias, os benefícios variam entre R$ 18,00 e R$ 112,00 por mês. Uma família para se tornar elegível ao programa deve ter uma renda per capita familiar menor ou igual a R$ 120,00 por mês. 5. CONDICIONALIDADES: EDUCAÇÃO E SAÚDE As condicionalidades do Programa Bolsa Família relacionadas à educação exigem que todas as crianças e adolescentes entre seis e 15 anos de idade, das famílias beneficiadas, freqüentem a escola e não tenham mais do que 15% de faltas diárias durante o mês. Além disso, todas as faltas devem ser justificadas pelos pais e o gestor local do Programa deve ser informado sempre que a criança mudar de escola. A faixa etária requerida pela condicionalidade educacional do Bolsa Família tem sido criticada por Schwartzman (2005) e Portela Souza (2006). Para os autores, atualmente o foco no ensino fundamental é redundante, na medida em que as matrículas neste ensino já são elevadas, atingindo cerca de 94% das crianças na faixa etária correspondente, e 92% das crianças no quintil mais pobre. O foco era apropriado nos primeiros anos do Programa Bolsa Escola (World Bank 2007a). As condicionalidades relacionadas à saúde são diferentes para as famílias com filhos até sete anos de idade e famílias com mulheres
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grávidas ou com filhos em idade de amamentação. No primeiro caso, todas as crianças devem completar sua vacinação de acordo com o calendário recomendado, assim como fazer consultas e exames médicos de rotina regularmente. Para famílias com mulheres grávidas ou com filhos em amamentação, exige-se exames pré e pós-natal e a participação em seminários municipais sobre saúde e nutrição. Contudo, na prática, o Governo Federal não realiza um monitoramento da participação das mulheres nos seminários (Lindert, Linder, Hobbs & de la Briere, 2007). 6. ÍNDICE DE GESTÃO DESCENTRALIZADA (IGD) O Índice de Gestão Descentralizada (IGD) é o principal instrumento utilizado pelo Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) para monitorar a qualidade da implementação do Cadastro Único e o cumprimento das condicionalidades7 do Bolsa Família. Esse sistema é baseado em incentivos financeiros formais para assegurar uma melhor qualidade na realização das condicionalidades no nível municipal. Esses incentivos consistem em recursos para cobrir, parcialmente, os custos administrativos dos municípios com a implementação do Programa. Para encorajar a implementação do instrumento nos pequenos municípios, o programa repassa às administrações locais duas vezes o valor correspondente aos recursos do IGD per capita para as primeiras 200 famílias cadastradas. O MDS também definiu um valor mínimo de condescendência com a qualidade, de 40% do IGD, para que os subsídios sejam recebidos. Municípios com indicadores abaixo desse valor não recebem o IGD (Lindert, Linder, Hobbs & de la Briere, 2007). O pagamento desses incentivos financeiros depende da assinatura de um termo de adesão e dos resultados obtidos através do IGD.
7 Vale frisar que a existência das condicionalidades, per si, não é suficiente para tornar o Programa estrutural. Para que isso ocorra, é condição necessária o cumprimento das condicionalidades e a sua adequação às necessidades sociais.
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O IGD é um instrumento de monitoramento que cobre certos aspectos do Bolsa Família, tais como o registro e informações sobre as condicionalidades, e se baseia em dados da administração municipal e não em avaliações de campo sobre a qualidade do Programa. O IGD é formado por quatro componentes: • Indicador de qualidade do Cadastro Único – número de famílias no “cadastro” (beneficiários existentes) dividido pela estimativa de famílias no município (beneficiários potenciais) com renda até 1/2 salário mínimo per capita. • Indicador de certificação do Cadastro Único – os municípios devem recadastrar todos os beneficiários existentes e potenciais ao menos a cada dois anos para assegurar a validade do Cadastro. • Indicador de condicionalidade de educação – número de estudantes entre 6 e 15 anos de idade, beneficiários do programa, atendidos nas escolas, dividido pelo número total de crianças no município, na mesma idade, beneficiadas pelo Bolsa Família. • Indicador de condicionalidade de saúde – número de famílias com informação sobre saúde monitoradas pelo SISVAN8 divididas pelo número total de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família com perfil de saúde a ser monitorado pelo programa. O IGD é uma média simples (não ponderada) desses quatro indicadores.
8
SISVAN significa Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional. Através desse sistema, os municípios registram informações de saúde sobre os beneficiários do Programa Bolsa Família e as repassam ao Ministério da Saúde.
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7. UMA ANÁLISE DA DIMENSÃO POLÍTICA E DA EFICIÊNCIA DO BOLSA FAMÍLIA Nessa seção, as dimensões política e de eficiência do Bolsa Família serão correlacionadas, com o objetivo de apreender os aspectos populistas e estruturais do programa. Os dados referem-se a 5.563 municípios brasileiros de um total de 5.564 casos da base de dados (Brasília foi excluída da análise por não ser um município). As variáveis utilizadas nas análises de correlação e regresão são: Dimensão Política do Programa: 1. Porcentagem de votos recebidos por Lula no primeiro e no segundo turno das eleições de 2006. Dimensão da Eficiência do Programa: 2. IGD total de cada município; 3. IGD Educação – Condicionalidade de educação de cada município; 4. IGD Saúde – Condicionalidade de saúde de cada município. Variáveis de controle: 1. Componente Renda do Índice de Desenvolvimento Municipal (IDH-Renda) de cada município – medida da condição socioeconômica da população; 2 Mortalidade até 1 ano de idade – medida da condição socioeconômica da população e da qualidade do atendimento de saúde; 3. Log da População – medida demográfica do tamanho da população municipal; 4. Cobertura do Bolsa Família – número de famílias beneficiadas no “cadastro” divididas pelas famílias potencialmente beneficiárias (renda até 1/2 salário mínimo per capita) de cada município; 5. Transferências monetárias por família – dimensão do investimento do Governo Federal no programa.
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Análise: Correlações mais detalhadas entre as variáveis podem ser encontradas no anexo deste trabalho. Os resultados da análise de regressão abaixo referem-se à dimensão política, tendo como variável dependente (1) o percentual de votos em Lula no primeiro turno das eleições de 2006. As variáveis explicativas e de controle são IGD total, a média anual de transferências por família (valores agregados de 2003 a 2006) e IDHM–renda. Síntese do Modelob Modelo 1
R
R2
R2 Ajustado
Erro Padrão Estimado
,720a
,519
,518
,10701
a. Preditores: (Constante), IGD – Índice de Gestão Descentralizada no mês, repasse anual médio por família (2003-2006), IDHM-Renda, 2000 b. Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
ANOVAb Modelo
Soma dos Quadrados
Graus de Liberdade df
Média dos Quadrados
F
Sig.
1 Regressão
67,849
3
22,616
1974,991
,000a
Resíduos
63,005
5502
,011
130,854
5505
Total
a. Preditores: (Constante), IGD – Índice de Gestão Descentralizada no mês, repasse anual médio por família (2003-2006), IDHM-Renda, 2000 b. Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
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Coeficientesa
Modelo 1
B
(Constante)
Coeficientes não Padronizados
Coeficientes Padronizados
Erro Padrão
Beta
t
Sig.
31,406
,000
,815
,026
- ,909
,021
- ,570
- 42,370
,178
Repasse anual médio por família (2003-2006)
,000
,000
,189
14,186
,000
IGD – Índice de Gestão Descentralizada no mês
,027
,011
,023
2,435
,083
IDHM-Renda, 2000
a. Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
Histograma Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
Gráfico de Dispersão Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
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O coeficiente de determinação (R2) é elevado (0,519) e estatisticamente significativo no nível de .0001. O gráfico de dispersão dos resíduos mostra a não existência de viés. Resumindo, os votos em Lula são correlacionados positiva e fortemente com as transferências do Programa e negativamente relacionado com o IDHM-Renda. Por um lado, isso significa que Lula recebeu elevados percentuais de votos exatamente nos municípios mais contemplados pelo Programa Bolsa Família. No entanto, isso significa, também, que os municípios com pior IDHM-Renda (os quais mais se beneficiaram do Programa) foram aqueles nos quais Lula obteve as mais altas porcentagens de votos. O Programa Bolsa Família tem sido considerado por alguns analistas e pela oposição como populista (em um sentido negativo), na medida em que seu objetivo principal é visto como eleitoreiro (render votos) ao invés de combater a pobreza e/ou a vulnerabilidade social. O elevado número de votos em Lula, especialmente nas áreas contempladas pelo Programa, pode ser considerado evidência de um viés populista. No entanto, considerando os aspectos formais do Bolsa Família, as condicionalidades e o IGD, o Programa tem um componente estrutural que não permite sua classificação apenas como populista no sentido negativo indicado acima. Soma-se a isso, como discutido anteriormente, o fato de que as transferências monetárias têm forte correlação negativa com as condições socioeconômicas dos municípios. Ou seja, cidades com piores condições socioeconômicas receberam, proporcionalmente, mais benefícios do Bolsa Família do que aquelas com melhores condições. Isso significa que o critério adotado para transferência de benefícios está, em alguma medida, relacionado com a pobreza e bem focado. A média de transferências por família (2003-2006) também apresenta uma correlação forte e positiva com a mortalidade até 1 ano de idade – indicador da condição socioeconômica da população e do atendimento à saúde. Isso reforça o fato de que os municípios com piores condições de mortalidade foram os que receberam, proporcionalmente, mais benefícios do Programa. No que se refere à dimensão da eficiência, a regressão realizada utilizou o IDG total como variável dependente (1). As outras va-
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riáveis foram o percentual de votos em Lula no primeiro turno das eleições de 2006, a média anual de transferências monetárias por família (total de 2006) e o IDH-Renda em 2000.
Síntese do Modelob R
R2
R2 Ajustado
Erro Padrão Estimado
,132ª
,017
,017
,13120
Modelo 1
a. Preditores: (Constante), % de votos no PT (1º turno 2006), repasse médio por família em 2006, IDHM-Renda, 2000 b. Variável Dependente: IGD – Índice de Gestão Descentralizada no mês
ANOVAb Modelo
Soma dos Quadrados
Graus de Liberdade df
Média dos Quadrados
F
Sig.
1 Regressão
1,685
3
,562
32,622
,000a
Resíduos
94,712
5502
,017
96,397
5505
Total
a. Preditores: (Constante), % de Votos no PT (1º turno 2006), repasse médio por família em 2006, IDHM-Renda, 2000 b. Variável Dependente: IGD – Índice de Gestão Descentralizada no mês
Coeficientesa
Modelo 1
(Constante)
Coeficientes nãoPadronizados
Coeficientes Padronizados
B
Erro Padrão
Beta
t
Sig.
,837
,028
30,124
,000
Repasse médio por família em (2006)
-2,4E-005
,000
-,022
1,346
,178
IDHM-Renda, 2000
- ,162
,028
- ,118
- 5,813
,000
% de votos no PT ,028 ,016 ,033 1,735 (1º turno 2006) a. Variável Dependente: IGD – Índice de Gestão Descentralizada no mês
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,083
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Histograma Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
Gráfico de Dispersão Variável Dependente: % de votos no PT (1º turno 2006)
O R2 é baixo (0.017), embora estatisticamente significativo (0.000). O gráfico de dispersão dos resíduos mostra a não ocorrência de viés. O IGD é negativamente correlacionado com as transferências do Programa em 2006 e com o IDHM-Renda. Contudo, apenas a correlação com o IDHM-Renda é estatisticamente significativo. A correlação negativa do IGD com o IDHM-Renda indica que os municípios com piores condições socioeconômicas apresentaram melhores resultados para o IGD. A interpretação desse resultado parece indicar que alguns municípios têm registrado melhor as informações sobre o Cadastro Único e sobre condicionalidades do Programa do que outros municípios com melhor IDHM-Renda.
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Todavia, parece que a medida do IGD não funciona muito bem. A análise foi realizada apenas com o IGD total, pois, embora condicionalidade de saúde (IGD saúde) pudesse ser considerada a mais adequada, ela, de fato, apresentou resultados extremamente fracos. Por isso, decidiu-se pelo uso do IGD total na análise como uma medida mais adequada, já que este representa uma média dos indicadores – a informação incompleta de um indicador pode ser diluída no resultado final. Uma revisão da literatura complementar sobre o tema explica o motivo dos problemas com o registro das condicionalidades relacionadas à saúde. Segundo estudos recentes, as informações sobre a condicionalidade de saúde repassadas pelos municípios são fortemente precárias, o que torna o IGD de saúde um indicador imperfeito: Há algum debate sobre a freqüência e o número de exames prénatal requeridos. O guia do Bolsa Família não especifica exatamente o número de visitas requeridas, simplesmente afirma que elas devem seguir o calendário recomendado pelo Ministério da Saúde, o qual recomenda, em geral, de 6 a 7 visitas. Contudo, o número médio de visitas ao sistema público de saúde é, normalmente, bem menor (1 a 3 visitas). Além disso evidências anedóticas sugerem que os trabalhadores da saúde certificam os beneficiários do Bolsa Família como tendo atendido as condicionalidades caso eles realizem ao menos três visitas. A política sobre o número de vistas necessita ser esclarecida e comunicada (Lindert, Linder, Hobbs & de la Briere, 2007:59).
A figura a seguir sintetiza o processo de monitoramento da condicionalidade de saúde:
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Monitoramento das Condicionalidades do PBF (visualização simplificada)
De acordo com Lindert, Linder, Hobbs & de la Briere (2007), as exigências de coleta e de consolidação das informações de saúde no nível municipal, e, em seguida em uma base de dados nacional, são mais complexas do que no que se refere aos dados educacionais. Os dados de saúde são consolidados com menos freqüência nos municípios e o sistema de saúde é muito mais fragmentado e inseguro do que o sistema de educação. O principal sistema de informação nacional, o SISVAN tem seis módulos. Um módulo especial é o Mapa Diário de Acompanhamento que contém informações sobre os beneficiários do Bolsa Família: seus nomes, suas identificações nacionais e seus endereços. Os agentes de saúde local coletam informações sobre todos os beneficiários, que são transmitidas, regularmente, aos municípios. As autoridades de saúde municipais são responsáveis por consolidar as informações. Cada município é responsável por assegurar que essas informações sejam enviadas ao sistema de dados do SISVAN e transmitidas ao Ministério da Saúde (MS) duas vezes por ano, uma em 30 de junho e outra no dia 31 de dezembro. O Ministério da Saúde consolida as informações em nível
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nacional e as transmite ao Ministério de Desenvolvimento Social. Esse processo só foi adotado, no entanto, para o Bolsa Família no início de 2005. Para 2006 não houve penalidades registradas pelo não cumprimento das condicionalidades de saúde, refletindo o fato de que a maior parte das famílias incluídas no relatório de informações “tinham sido isentas de tais condicionalidades” ou os serviços foram oferecidos enquanto o monitoramento ocorria, o que não é permitido. Monitoramento do Cumprimento das Condicionalidades de Saúde do PBF Primeiro Semestre 2005
Segundo Semestre 2005
Primeiro Semestre 2006
% de municípios que reportaram a informação
21,9%
70,4%
81,7%
% de famílias monitoradas
6,0%
31,2%
38,3%
93,4%
95,4%
99,5%
6,8%
36,0%
43,1%
99,3%
99,4%
99,6%
29,8%
31,6%
85,4%
Dentre as quais: % de famílias em cumprimento com as condicionalidades de saúde % de crianças monitoradas Dentre as quais: % de famílias em cumprimento com as condicionalidades de saúde % de mulheres grávidas monitoradas
Fonte: dados do MS/MDS apud Lindert, Linder, Hobbs & de la Briere, (2007). Tradução dos autores.
Além disso, as informações não são confiáveis porque o número de pessoas monitoradas é baixo e, entre as pessoas monitoradas, observa-se um elevado nível de comparecimento. O principal motivo se relaciona com a administração e transmissão de informações relativas aos atendimentos prestados das condicionalidades de saúde. Enquanto a média do IGD total é 74%, a média do IGD saúde é 48% para todos os municípios no mesmo período (dezembro de 2006). É importante sublinhar que os municípios que apresentaram um IGD abaixo do mínimo de 40% não receberam qualquer pagamento para subsídios administrativos.
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A despeito de tudo isso, os ministérios têm entendido que o problema não é a falta de monitoramento, o qual é realizado no nível local, mas se refere a restrições inerentes aos dados para a consolidação da informação no nível nacional. Segundo Lindert, Linder, Hobbs & de la Briere, (2007), isso é um problema particularmente nos municípios maiores que têm seus próprios sistemas de informação e ainda não se habilitaram a integrar o SISVAN. Os autores alertam, ainda, sobre a possibilidade dos repasses para os governos locais subsidiarem os custos administrativos para a implementação do Programa criarem incentivos perversos para que os municípios sejam condescendentes com as condicionalidades, a fim de obter mais recursos. Essa preocupação foi recentemente manifestada pelo MDS, baseando-se em informações que mostravam que 800 municípios (quase 15%) registraram 100% de atendimento para 100% de seus estudantes (IGD-educação). Esses casos extremos são um sinal vermelho para as autoridades investigarem o processo operacional do Programa Bolsa Família. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como Dahl (1956) argumenta, a democracia populista se caracteriza pela configuração de políticas públicas de acordo com as preferências da maioria da população. O princípio da regra da maioria determina que, quando escolhendo entre alternativas de políticas sociais, a implementação de políticas públicas deve resultar daquela que atende às preferências do maior número de cidadãos. A afirmação de que os políticos maximizam votos é tão forte para a ciência política quanto a lei de gravidade de Newton o é para o mundo físico. A maximização de votos dirige a natureza da política. Adicionalmente, os eleitores premiam os políticos que realizam suas preferência através do voto. Nesse sentido, o Bolsa Família é, sem dúvida, bem-sucedido. O governo Lula se mostrou eficiente em conferir aumento de renda e capacidade de consumo aos mais necessitados, levando-se em conta o IDHM-Renda no nível municipal. Como resultado, Lula foi eleitoralmente premiado nas áreas de menor IDHM-Renda contempladas pelo Programa.
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No entanto, pode-se ressaltar que, levando em consideração os aspectos estruturais do programa através do IGD total, parece que os eleitores contemplados pelo Bolsa Família não têm um bem-estar de longo prazo garantido. O indicador apresenta problemas de registro, assim como há incentivos perversos para os municípios registrarem apenas os casos bem-sucedidos. Isso torna os aspectos estruturais do Programa pouco confiáveis e reduz a possibilidade de medir de forma adequada a capacidade dos municípios em garantirem o cumprimento das exigências condicionais previstas, especialmente aquelas relacionadas à saúde. Atualmente, o Bolsa Família pode ser considerado um programa populista e, diante das deficiências do IGD, um programa de política pública não-estrutural. O pior neste caso é que o IGD não permite saber como as condicionalidades de saúde estão sendo executadas no nível municipal. A capacidade de avaliar a gestão das condicionalidades é essencial para saber se o programa está funcionando adequadamente no nível municipal no sentido de proporcionar bem-estar no longo prazo. A percepção de populismo é essencialmente nacional, relacionada à personalidade do Lula. A desobrigação federal da eficiência das condicionalidades provavelmente favorece o presidente Lula por causa da sua ligação com o Bolsa Família. Contudo, tal desobrigação é um resultado local, descentralizado. Nesse sentido, dependendo de como as heterogeneidades municipais atuam, o Bolsa Família pode ser um componente para a redução de desigualdades de renda por enquanto e um componente de aumento de desigualdade, levando-se em conta o acesso aos serviços públicos e bem-estar intergeracional. Conclui-se que o Bolsa Família tem sido extremamente bemsucedido como instrumento eleitoral e como política que confere melhor capacidade de renda e consumo. Nesse sentido, o Bolsa Família pode ser considerado uma política populista com conotação positiva. Contudo, no que se refere aos aspectos estruturais da política pública, o governo deve melhorar a qualidade de monitoramento do IGD e os municípios devem melhorar os serviços de educação e saúde. Quando isso ocorrer, possivelmente haverá uma armadilha a ser investigada – pois essa política
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será mais populista do que o é atualmente. A despeito do fato de que as condicionalidades são garantidas pelos municípios, Lula provavelmente será associado a elas, especialmente por sua história pessoal pregressa, conferindo não apenas melhoria de renda e consumo, mas, acima de tudo, por aumentar o bem-estar. Na medida em que o Bolsa Família se tornar mais estrutural, mais populista no sentido clássico do termo ele será, ou seja, no bom sentido do termo9.
…
9
No “bom sentido do termo” entendido como atendendo as preferências da maioria em suas duas dimensões; tanto no aspecto de curto prazo, com transferência monetária aliviando a pobreza imediata, quanto no longo prazo, rompendo o ciclo intergeracional de pobreza, por meio do cumprimento adequado das condicionalidades.
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1,000 . 5564
,972(**) ,000 5564
,615(**) ,000 5564
,505(**) ,000 5563
,145(**) ,000 5559
,111(**) ,000 5563
% de votos no PT (2º turno)
Repasse anual médio por família (2003-2006)
Repasse médio por família em 2006
Cobertura do programa em 2006
IGD - Índice de Gestão Descentralizada no mês
% de votos no PT (1º turno)
% de votos no PT (1º turno)
ANEXO
,084(**) ,000 5563
,132(**) ,000 5559
,499(**) ,000 5563
,610(**) ,000 5564
1,000 . 5564
,972(**) ,000 5564
% de votos no PT (2º turno)
,061(**) ,000 5564
,185(**) ,000 5560
,879(**) ,000 5564
1,000 . 5565
,610(**) ,000 5564
,615(**) ,000 5564
Repasse anual médio por família (20032006)
,075(**) ,000 5563
,254(**) ,000 5560
1,000 . 5564
,879(**) ,000 5564
,499(**) ,000 5563
,505(**) ,000 5563
Repasse médio por família em 2006)
,348(**) ,000 5560
1,000 . 5560
,254(**) ,000 5560
,185(**) ,000 5560
,132(**) ,000 5559
,145(**) ,000 5559
1,000 . 5564
,348(**) ,000 5560
,075(**) ,000 5563
,061(**) ,000 5564
,084(**) ,000 5563
,111(**) ,000 5563
IGD - Índice de Gestão Cobertura Descendo programa tralizada em 2006 no mês
Correlação Spearman’s rho
,440(**) ,000 5560
,001 ,940 5560
,014 ,288 5560
,001 ,934 5560
,010 ,474 5559
,014 ,281 5559
,804(**) ,000 5563
,046(**) ,001 5560
,037(**) ,006 5563
,031(*) ,022 5563
,043(**) ,001 5562
,071(**) ,000 5562
-,135(**) ,000 5507
-,057(**) ,000 5507
-,609(**) ,000 5507
-,736(**) ,000 5507
-,699(**) ,000 5506
-,711(**) ,000 5506
,074(**) ,000 5507
,102(**) ,000 5507
,563(**) ,000 5507
,702(**) ,000 5507
,710(**) ,000 5506
,713(**) ,000 5506
Mortalidade IGD (taxa IGD (taxa de até um ano de crianças famílias com de idade com inforacompa(por 1.000 mações de nhamento nascidos freqüência de agenda de IDHM-Renda, vivos), escolar saúde) 2000 2000
-,223(**) ,000 5564
,016 ,239 5560
,073(**) ,000 5564
,130(**) ,000 5565
,107(**) ,000 5564
,101(**) ,000 5564
População (log)
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,130(**) ,000 5565
,107(**) ,000 5564
-,711(**) ,000 5506
,713(**) ,000 5506
,101(**) ,000 5564
Mortalidade até um ano de idade (por 1.000 nascidos vivos), 2000
População (log)
** Significante ao nível de 0.01 (2-tailed). * Significante ao nível de 0.05 (2-tailed).
,710(**) ,000 5506
-,699(**) ,000 5506 ,702(**) ,000 5507
-,736(**) ,000 5507
,031(*) ,022 5563
IDHM-Renda, 2000
,043(**) ,001 5562
,071(**) ,000 5562
,001 ,934 5560
IGD (taxa de famílias com acompanhamento de agenda de saúde)
,010 ,474 5559
,014 ,281 5559
% de votos no PT (2º turno)
IGD (taxa de crianças com informações de freqüência escolar
% de votos no PT (1º turno)
Repasse anual médio por família (20032006)
5564
,073(**) ,000
,563(**) ,000 5507
-,609(**) ,000 5507
,037(**) ,006 5563
,014 ,288 5560
Repasse médio por família em 2006
5560
,016 ,239
,102(**) ,000 5507
-,057(**) ,000 5507
,046(**) ,001 5560
,001 ,940 5560
Cobertura do programa em 2006
5564
-,223(**) ,000
,074(**) ,000 5507
-,135(**) ,000 5507
,804(**) ,000 5563
,440(**) ,000 5560
IGD - Índice de Gestão Descentralizada no mês
5560
-,243(**) ,000
,019 ,148 5507
-,081(**) ,000 5507
,101(**) ,000 5560
1,000 . 5560
5563
-,144(**) ,000
,037(**) ,006 5507
-,096(**) ,000 5507
1,000 . 5563
,101(**) ,000 5560
5507
,133(**) ,000
-,843(**) ,000 5507
1,000 . 5507
-,096(**) ,000 5507
-,081(**) ,000 5507
5507
,046(**) ,001
1,000 . 5507
-,843(**) ,000 5507
,037(**) ,006 5507
,019 ,148 5507
Mortalidade IGD (Taxa IGD (taxa de até um ano de Crianças famílias com de idade com Inforacompa(por 1.000 mações de nhamento nascidos freqüência de agenda de IDHM-Renda, vivos), escolar saúde) 2000 2000
Correlação Spearman’s rho (cont.)
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1,000 .
,046(**) ,001 5507
,133(**) ,000 5507
-,144(**) ,000 5563
-,243(**) ,000 5560
População (log)
HUMOR NA LITERATURA BRASILEIRA NO INÍCIO DO SÉCULO XX Leandro Konder
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Este ensaio tem uma primeira parte, teórica, sobre o humor, e uma segunda parte, crítica, que revisita a literatura brasileira do início do século XX. Ele está dividido nos seguintes tópicos: 1) Dialética do Humor 2) Humor e Práxis 3) O Humor e a Filosofia 4) O Humor Parnasiano 5) Humor e Modernismo 6) O Humor e a Boemia 7) O Barão de Itararé 8) Bibliografia
This abstract consists of two parts. The first one describes the theory of humor. The second part, a critical analysis, revisits the Brazilian Literature from the early 20th century. The abstract (ou “It”) is divided among the following topics: 1) Dialectic of Humor 2) Humor and Praxis 3) The Humor and the Philosophy 4) The “Parnasiano” Humor 5) Humor and Modernity 6) The Humor and the Bohemia 7) The Baron of Itararé 8) Bibliography ou Works Cited
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1. DIALÉTICA DO HUMOR A palavra “humor” nasceu no espaço da medicina. Acreditava-se, na Idade Média, que os temperamentos dos seres humanos eram determinados pelos “humores”. Essa crença vinha da Antigüidade: no século II da era cristã, Galiano havia ensinado que os humores eram quatro: o sangue, a fleugma, a bílis amarela e a bílis negra - melan + colé - em excesso gerava a melancolia. A fleugma em excesso gerava a indiferença. A bílis amarela estava ligada à cólera, aos acessos de fúria. O sangue, quando pressionava demais, causava derrames (para evitar isso, os médicos aplicavam sanguessugas). Esse uso do termo humor está presente em diversos autores, cristãos e árabes, medievais e renascentistas. Os “humores” eram lembrados para os autores tentarem explicar por que determinadas pessoas, com determinados temperamentos, agiam como agiam. Os autores de textos cômicos achavam que a tendência ao ridículo era conseqüência do excesso de um “humor” peculiar, que não era nenhum dos quatro citados. Essa linha de interpretação levava os observadores a concentrar sua atenção sobre o sujeito, mais do que sobre o objeto; sobre os autores, mais do que sobre as obras. Com o tempo, entretanto, a teoria foi se enfraquecendo. Na medida em que a adotavam, as pessoas verificavam que as observações que faziam nem sempre eram convincentes. Se o humor resultasse de um “humor” no organismo, quem tivesse maior provisão desse ”humor”, teria maior fecundidade “humorística”. No entanto, é fácil constatarmos que existem sujeitos mal-humorados, mas engraçadíssimos. E existem criaturas bem-humoradas e sem graça. Então, o problema não está nos sujeitos: está na realidade objetiva das obras. Pertence a uma estética do cômico. Por isso, uma abordagem “filosófica” do humor precisa passar por algumas considerações sobre a comicidade na linguagem. O domínio do cômico é reconhecidamente amplo. Abrange a comédia, a sátira, a paródia, o grotesco, a anedota, a ironia, a farsa, o burlesco, a piada, o trocadilho, a caricatura etc. Essa diversidade não era problema para os grandes criadores, para a intuição dos gênios
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da literatura, como Shakespeare. Para os teóricos, porém, no imenso campo da comicidade, muitas coisas permaneciam um tanto vagas. Aristóteles, o filósofo, incluiu na sua Arte poética uma parte dedicada à comédia, que, no entanto, se perdeu. (O italiano Umberto Eco, no seu romance O nome da rosa, criou um personagem de ficção – Jorge de Burgos, sacerdote cego, ultraconservador – que destrói a última cópia que ainda existia da “Comédia” de Aristóteles, argumentando que nas Sagradas Escrituras não consta que Jesus tenha permitido que aparecesse em sua face divina esse “esgar”; nada indica que Ele tenha rido alguma vez.) A explicação do humor como conseqüência de um ”humor” existente nos organismos humanos foi perdendo sua credibilidade na medida em que a teoria dos “humores” não encontrava fundamentação científica. O nome, porém, prevaleceu e permaneceu: o humor. Os séculos XIX e XX registram numerosas controvérsias a respeito do tema. Surgem obras “engraçadas”, que, no entanto, não se deixam “encaixar” com facilidade nas classificações disponíveis. O crítico russo Mikhail Bakhtin , na primeira metade do século XX, observou que a história dos gigantes Pantagruel e Gargantua, recontada por Rabelais no século XVI, não se deixa reduzir a uma paródia do relato medieval. Nenhum relato medieval apresenta algo como a utópica Abadia de Theleme, cujo lema, afixado no portão de entrada, era Fais ce que vouldras ( Faz o que quiseres). O Dom Quixote de Cervantes também não se reduz a uma paródia das novelas de cavalaria. A presença permanente de Sancho, “forçando” seu patrão ao diálogo, abre espaço na cabeça do leitor para maior aceitação do inesperado, do surpreendente. Como classificaríamos o Tristram Shandy, de Lawrence Sterne? Podemos verificar que a propósito dessas três obras, justamente, se falou muito em humor. Em geral, o humor não provoca gargalhadas. Expressa-se, antes, no “sorriso” (palavra que teria sido criada por São Jerônimo). Gosta de sutilezas e ambigüidades. Vive de paradoxos. E se mostra atento para as contradições íntimas da subjetividade. O humorista acha graça em indivíduos que são engraçados sem saber que o são. Acha graça no mundo. Ri da condição humana. E ri de si mesmo (não se leva muito a sério).
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Manifestações de humor nos surpreendem em obras ”sérias”. Em Hamlet, de Shakespeare, o príncipe mata Polonius e, quando lhe perguntam onde está o conselheiro, responde: “Na ceia”. Acrescenta: “Não na ceia em que ele come, e sim naquela em que ele é comido”. No mesmo Hamlet, o príncipe da Dinamarca ouve dois coveiros conversando, falando sobre ele, sem reconhecê-lo. Dizem que Hamlet está louco e por isso mandaram-no à Inglaterra. E comentam: “se ele estiver realmente louco, vai se dar bem, porque lá todos são malucos”. Esse é um dos paradoxos do humor. Para se elevar ao nível filosófico (rir de si mesmo), o sujeito precisa desenvolver uma extraordinária capacidade de se distanciar do seu objeto. Necessita de uma notável sofisticação intelectual e também de alguma crueldade. Para florescer, o humor costuma ir além do terreno demarcado para a prática da caridade; costuma se dispensar mesmo do exercício da solidariedade humana, em sua expressão sentimental. Isso fica muito claro quando o inglês Jonathan Swift aborda o tema da miséria das crianças pobres na Irlanda. Em vez de expressar sua solidariedade em termos explícitos, apaixonados, veementes e provavelmente inócuos, Swift recorreu à ironia e fez uma obra-prima do humor, cobrando dos pais das crianças pobres que eles tivessem mais iniciativa, que eles matassem seus filhos, que os cozinhassem e vendessem a carne deles, transformada em delicadas iguarias, disputadas pelos fregueses dos melhores restaurantes. A construção do humor é complicada. André Gide disse uma vez que com bons sentimentos se faz má literatura. A afirmação é discutível. Mais convincente é a constatação de que com bons sentimentos é possível fazer piadas mas dificilmente se conseguirá fazer um humor de qualidade, universalmente acessível (capaz de ultrapassar as fronteiras constituídas pelas circunstâncias particulares). O humor, na literatura, em geral, tende a ser consumido pelo grande público em suas formas mais acessíveis. E nós, no Brasil, temos tido excelentes humoristas, sempre surpreendentes, no traço ou nas palavras, em geral acessíveis em suas invectivas, nas crônicas e nos contos engraçados, nos poeminhas jocosos, nas charges e nas blagues. Temos um time de craques, desde Emílio de Menezes
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a Carlito Maia e ao Barão de Itararé, passando por Millôr Fernandes, Henfil, Sérgio Porto, os irmãos Caruso e Cassio Loredano, entre tantos outros. Podemos nos orgulhar do humor na nossa cultura. E devemos reconhecer que, atualmente, uma das fontes desse humor é a revolta contra as classes dominantes (qualquer que seja a aparência delas); é o protesto contra os aproveitadores da onda de calhordice que varre o país. O quadro diante do qual nos puseram exigia muito sarcasmo, muita contundência, muito deboche. Molière, escritor francês, autor de comédias inesquecíveis, já dizia que, para cozinhar um animal de grande porte (uma “besta”), precisa-se de sal grosso (Il faut du gros sel pour saler les grosses bêtes). Os nossos humoristas estão correspondendo plenamente a essa demanda. Estão – com gosto! – baixando o sarrafo. Como costuma dizer o humorista Macaco Simão, em São Paulo, a degenerescência ética e a degradação política fizeram do Brasil o país da piada pronta: os fatos dispensam a versão ridícula, eles mesmos provocam o riso. Desde que fizemos a opção por discutir o humor na sociedade brasileira do início do século XX, não teremos ocasião de abordar aqui as características dos nossos humoristas do século XXI. Não podemos, contudo, deixar de observar que um dos mais notáveis humoristas brasileiros do século XXI – Bussunda – fortalece nossa convicção de que no humor mais importante é o fazer e não o ser. Os pais de Bussunda eram simpatizantes do movimento comunista. O humorista, entretanto, viveu as questões que emocionavam sua família de um ângulo diferente do ponto de vista do pai e da mãe. Sem deixar de ser um homem de esquerda, agudamente crítico em relação ao capitalismo, Bussunda preservou-se e manteve uma clara independência, que era aquela que convinha ao seu projeto como humorista. Quem adota a solidão como princípio de vida se condena ao duplo fracasso. Renuncia ao intercâmbio que poderia enriquecê-lo e perde o poder de agir de maneira historicamente significativa. O humorista é, no fundo, um solitário, que precisa da solidão para preservar sua autêntica identidade, porém paga um alto preço pelo sofrimento e pelo risco que pode sempre liquidá-lo.
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2. HUMOR E PRÁXIS As relações entre arte e humor têm tido momentos de grande intimidade. Humoristas notáveis têm sido reconhecidos como artistas destacados e artistas importantes; e escritores como o teatrólogo inglês George Bernard Shaw têm sido chamados de humoristas. Nem sempre se pode separá-los. Há casos em que a classificação é difícil. Millôr Fernandes, por exemplo, tem peças que foram encenadas com imenso sucesso. O que prevalece no seu trabalho: o teatrólogo? Ou o humorista? Nossa ambição aqui, agora, não é a de abordar a criação dos escritores como escritores. Um humorista que escreve uma peça de teatro legitima o humor esteticamente como teatrólogo, como comediógrafo. O humor, por importante que seja, fica subordinado à literatura. O humor, por sua íntima relação com as circunstâncias, pertence evidentemente à categoria das impressões e expressões humanas que tendem a ser historicamente fugazes. O que nos fez rir e o que tinha intenção cômica que não fez sucesso dependiam do quadro de referências momentâneo do piadista e do seu público. Para alcançar seu êxito, o humorista tende a “colar” no presente, na atualidade, correndo o risco de tornar-se rapidamente arcaico, atingido pela superação inevitável do “atual”. Felizmente, há casos excepcionais de expressões de humor antigas e bem-sucedidas. Aristófanes, em Atenas, Plauto e Menandro em Roma, Rabelais na França, estão distantes de nós muitos séculos e ainda podem nos fazer rir. Mas eles exigem de seus leitores um esforço crítico considerável, a criação de um quadro de referências especial, uma verdadeira decifração de linguagem. Na realidade, o riso do leitor do século XXI não é, de fato, o riso dos leitores da Antigüidade e do Renascimento. O que era engraçado para eles não é o que é engraçado para nós. Com a formação do modelo do ”homem burguês”, isto é, do indivíduo autônomo, empreendedor e competitivo, a comunicação com o passado remoto se ampliou, a modernidade prometeu, com desenvoltura, proporcionar as chaves que abririam as nossas cabeças, para uma perspectiva universal. Houve, então, um avanço na direção da universalidade. Não, porém, na direção de uma universalidade positiva.
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O filósofo Hegel advertiu: é o negativo que nos abre – dialeticamente – para o universal. É o negativo que nos possibilita a compreensão de que é o não-ser que, negando o ser, abre caminho para o novo, para o tornar-se outro. O teatrólogo e poeta Bertolt Brecht fez essa aproximação de Hegel (colecionador de piadas) com o humor: “Nunca conheci ninguém desprovido de senso de humor que tenha compreendido a dialética de Hegel.” Tal como o humor, a dialética, se não for adaptada a alguma doutrina, se ela não cair na armadilha de um contrato de exclusividade com a prestação de serviços a uma determinada corrente de pensamento e ação, pode nos ajudar muito no convívio com as contradições inesgotáveis. O humor, porém, está livre não só para se infiltrar no castelo dos conhecimentos ”sérios” e sacudi-los, mas também para ficar eternamente instalado no telhado, jogando com as ambigüidades e surpreendendo todo mundo. A dialética se impõe uma complementação da sua capacidade desmistificadora, que é a práxis. O humor já é, por si mesmo, uma forma de práxis. Seria um erro lançar um contra a outra, ou uma contra o outro, a práxis e o humor. Precisamos de ambos. A dialética pode ser cobrada em sua intervenção na política (e as cobranças internas no campo das discussões sobre a dialética giram em torno dessa sua, digamos, “vocação explosiva”). Que cobrança, contudo, poderia ser feita aos humoristas? Por sua historicidade radical, por seu ceticismo, o humor relativiza tudo. No entanto, se todas as coisas e todos os seres estão condenados a ser relativos, então está criado um novo princípio absoluto. Essa contradição incomoda bastante. Uma das reações possíveis é aquela que tem sido adotada por pessoas que se recusam a encará-la, que vivem o dia-a-dia “como todo mundo”. Estão pragmaticamente convencidas de que não há o que fazer. Estão impregnadas de conformismo e resignação. Outra reação possível é a dos inconformados, que buscam valores capazes de substituir os antigos valores desacreditados. Os dialéticos pertencem a esta segunda família. Se aceitassem o mundo tal como ele é, lhes faltaria a sensação de que a realidade é
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absurda. Não haveria motivo nenhum para a insubordinação, para a crítica radical. E não haveria razão alguma para a rebeldia, o riso. O riso pode ter diversas origens. Os mesmos objetos e situações idênticas podem fazer-nos dar muita risada. Como podem, igualmente, nos deixar indiferentes, porque o riso não está nas coisas, está na nossa maneira de ver as coisas. As atividades dos homens são de diferentes espécies. Muitas das atividades que realizamos ao longo de um dia são “espontâneas”, “automáticas”, “mecânicas”, “fisiológicas” etc. Nessas atividades, as decisões, em geral, são tomadas com facilidade. Ninguém precisa de uma reflexão dramática para resolver beber alguma coisa na hora da sede, ou para urinar, cuspir, defecar. Há, porém, atividades nas quais os seres humanos se assumem mais ostensivamente como sujeitos – e como sujeitos cidadãos – e fazem escolhas, definem critérios, criam objetos, criam instituições. Divergem, convergem, fazem acordos. Assim como seus antepassados mudaram o mundo, os trabalhadores acham que valeria a pena mudá-lo ainda mais. Só não sabem como. Essa atividade do segundo tipo às vezes põe os homens diante de problemas de difícil solução; e eles, então, precisam de teoria. O nome práxis, na perspectiva de Marx, se aplica a essa espécie de atividade. Que assume seu movimento, suas contradições, mas sabe que, quando a caminhada se torna muito complicada (como costuma acontecer), é preciso contar com uma boa theoria. 3. O HUMOR E A FILOSOFIA O humor é uma forma de poiésis, que é como os gregos antigos falavam da criação espiritual. Práxis era um termo que designava exclusivamente os objetos materiais produzidos pelo trabalho. Em seu novo sentido, a práxis não é uma atividade qualquer. É uma interferência do sujeito na realidade objetiva. Depende de convicções que proporcionem culturalmente instrumentos e referenciais para uma aventura solitária. Cada pessoa é, por assim dizer, interpelada pela vida. Não escolhemos o dia e o lugar do nosso nascimento, não escolhemos os problemas que vivemos na nossa formação, na infância e
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na adolescência, porém desde muito cedo descobrimos que um dos espaços que permitem um aumento da nossa liberdade é aquele que criamos, forçando um recuo da necessidade. O que importa não é o que fizeram de nós; e sim o que fazemos daquilo que fizeram de nós. Os que se excedem na invocação abusiva da relação de causa e efeito degradam uma conquista preciosa da humanidade, desmoralizam o conhecimento científico. Subestimam o papel essencial que a relação de causa e efeito desempenhou e continua a desempenhar na construção do conhecimento. Não se justifica que sutis e complexas realidades históricas sejam abrangidas sumariamente pela ampla esfera regida pelas relações de causa e efeito (como, por exemplo, “a causa da Revolução Francesa foi...” ou “o Renascimento foi causado por...”). Essa tendência a abusar da relação de causa e efeito pode ser apenas a ponta de um iceberg. Como toda construção humana, o conhecimento realiza um esforço constante para resgatar o imprescindível vigor crítico que a razão pode ter parcialmente perdido, tanto nas experiências singulares dos indivíduos como nas inquietações coletivas dos grupos e das comunidades. Quando relação de causa e efeito é invocada para esclarecer mais do que pode, proporciona à razão um caminho pelo qual ela se estreita, se mecaniza, se atrela a rotinas. Em vez de se dedicar a trabalhar sobre processos múltiplos que mostram sujeitos contra sujeitos, esse é um dos momentos em que caracteriza muito mais uma ação recíproca do que uma relação de causa e efeito. O pensamento do tipo ”positivista” tem horror à subjetividade e recua diante dos problemas subjetivos, considerando-os, do ponto de vista filosófico, viciados de nascença. Nem todas as pessoas suportam a instabilidade, as incertezas, as inseguranças, as tensões exacerbadas que vêm com os períodos históricos de conflagrações agudas. Muita gente precisa compensar os sustos, os medos, com doutrinas bem armadas, esquemas teóricos tranqüilizadores. A linguagem reflete essas experiências. Ela pode se tornar seca, acentuadamente autoritária, funcional, e pode disseminar convicções engessadas, fazer afirmações peremptórias, conclusivas, em nome de Deus ou da ciência. Outra possível reação consiste numa renúncia a toda e qualquer especulação filosófica e numa opção pragmática pelo
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caminho utilitário, que jamais se eleva acima do nível da existência quotidiana, com sua mediania (ou devo dizer mediocridade?). A linguagem, porém, expressa a realidade do homem tão poderosamente que acrescenta uma dimensão prazerosa à experiência dos seus usuários: torna-se solo propício a brincadeiras. Os dois pólos se complementam, se corrigem. Um privilegia a razão, a ordem, a hierarquia, o ser, a identidade, a confiança. O outro flerta com a intuição, a desordem, o caos, o tornar-se, a mudança e a desconfiança. Um prefere averiguar com sobriedade o mundo tal como está constituído e quer administrá-lo com bom senso. O outro questiona a realidade tal como está constituída e o bom senso. Além disso, o dialético suspeita que a recomendação de sobriedade encubra ideologicamente operações cujo objetivo é sufocar os ímpetos e entusiasmos que estimulariam as transformações. A compreensão do real constituído não combina espontaneamente com a compreensão do real constituinte. É o que se passa nos bastidores de decisões dramáticas que se manifestam já na infância e na adolescência. Valores éticos, direitos, princípios de justiça são cobrados dos jovens e dos Estados, dos indivíduos e das organizações. É o garoto que se pergunta: não sei se caso ou compro uma bicicleta... É o caso do agente da lei que tem dúvidas: não sei se prendo esses vigaristas ou entro na mamata... E é o caso do rei que ainda não decidiu: não sei se começo uma guerrinha amanhã contra a Pérsia ou contra o Afeganistão... As dúvidas que lembrei acima não são certamente as mais adequadas para servir de exemplo, na minha argumentação, mas me ocorreram como um sorriso - e ficaram no texto. Retomando o raciocínio: há duas tendências para pessoas que, antes de tomar decisões, querem compreender melhor o campo do jogo em que as decisões vão ser tomadas. A primeira tendência é aquela que se manifesta no cuidado especial com a ordem, a preocupação com a redução dos riscos, a vontade de não dar nenhum passo maior do que a perna. A segunda sensibiliza idealistas, indivíduos convencidos de que sem uma ousada intervenção humana, as mudanças serão lentas e malfeitas. A grande maioria dos humoristas se mostra receptiva à segunda tendência.
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Filólogos, gramáticos, lingüistas, professores, às vezes se assustam quando se defrontam com frases malformuladas com palavras inadequadas. De fato, embora a língua não pertença aos gramáticos, eles contribuem para a renovação efetiva do idioma, na medida em que ajudam a combater renovações ilusórias, modismos equivocados e passageiros. Não lhes cabe a função de polícia da linguagem, mas a de colaboradores da sua autocrítica. Prestam à sociedade bons serviços, quando mostram que expressões obscuras e fracas, mal articuladas, poderiam ser substituídas – bem articuladas – por expressões claras e vigorosas... A vantagem é para todos: para quem fala e para quem ouve; para quem escreve e para quem lê. O sujeito que quer se comunicar ou se expressar está naturalmente empenhado em entender corretamente o que o outro está lhe dizendo e quer que o outro o entenda bem. Trata-se, no caso, de um interesse partilhado. Jürgen Habermas, filósofo alemão contemporâneo, aborda o tema com grande valentia intelectual. Ele chega a imaginar que a necessidade humana geral de entender e ser entendido poderia inspirar a construção de uma sociedade mais justa, mais paritária, na qual as pessoas se veriam numa “situação ideal de fala”. Sabemos que a perspectiva mais ou menos abrangente corresponde às necessidades ou conveniências mais ou menos particulares dos grupos humanos e podemos reconhecer que, no nível da máxima abrangência, se acha aquilo que podemos chamar de universalidade. A necessidade da expressão lingüística é universal. Contudo, cada pessoa interpreta a seu modo particular em que consiste a universalidade. É impossível a um ser humano elevar-se sozinho à plena compreensão da realidade. Mesmo coletivamente, o real sempre de algum modo nos escapa. Não há como, entretanto, ignorarmos a força das convicções que precisamos ter para agir, para sermos os agentes da práxis. 4. O HUMOR PARNASIANO No final do século XIX, começou a prevalecer no Brasil o uso da palavra parnasiano, tal como na França, com sentido concreto de rejeição das expressões exageradas da sentimentalidade romântica. Mesmo Castro Alves e Gonçalves Dias, poetas maiores, que ainda tinham fiéis admiradores, foram considerados superados em alguns
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círculos. Uma bateria de críticos combativos saudava com entusiasmo qualquer corrente estilística e qualquer tendência estética que fizesse críticas ao romantismo. Recomendava-se aos poetas em geral que extraíssem em seus poemas as conseqüências de uma clara opção pela ciência e pelo comportamento científico. Sublinhava-se a afinidade que existiria entre a linguagem artística literária e o rigor da linguagem científica. Augusto dos Anjos (seria ele um parnasiano?) levou mais longe do que qualquer outro o emprego de vocábulos esdrúxulos, homenageando a ciência. Se o relemos agora, ele nos traz na sua poesia não tanto temas histórico-sociais como problemas existenciais, subjetivos e talvez tardo-românticos. O parnasianismo arrebanhou quase todas as manifestações da oposição à sensibilidade romântica. Por isso não existia propriamente um programa parnasiano. Havia, porém, exemplos a seguir. Os campeões do chamado parnasianismo eram Raimundo Correa (1860-1911), Alberto de Oliveira (1820-1937) e Olavo Bilac (18651918). Havia, na esteira desses campeões, um número considerável de poetas menos conhecidos, que, no entanto, conseguiram certa notoriedade passageira, mais pelo caráter brincalhão de seus escritos do que pelas qualidades literárias. Francisco Paula Nei e Guimarães Passos, por exemplo. Um personagem típico desse período foi o caricaturista Raul Pederneiras, que combinava a condição de boêmio com a de delegado de polícia. Outros, muitos outros, bebiam e contavam piadas. Francisco Paula Nei, Guimarães Passos e o filho de José do Patrocínio, o “Zeca”, José do Patrocínio Filho, mentiroso compulsivo que precisou ser afastado do Rio. Mandado para a Europa, a situação piorou: inventou amores com mulheres formosas, atrizes famosas, um duelo de espada com Leopoldo, rei da Bélgica, e culminou com a história de como se tornara amante da espiã Mata-Hari (o que lhe valeu ser preso na Inglaterra). Como criar uma obra, produzir literatura, nas condições de dedicação integral à boemia? Como conciliar a escrita “séria” com o cultivo de uma imagem pitoresca, anedótica? Relembremos algumas das piadas que circulavam a respeito deles. Os costumeiros Guimarães Passos e Paula Nei estavam bebendo e até comendo um pouco, quando Coelho Neto apareceu e comeu
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um croquete de siri. “Que tal?”, perguntaram. O recém-chegado opinou: “Parece croquete suíço.” Os dois estranharam: “Mas a Suíça não tem siri.” E Coelho Neto: “Esse croquete também não.” Luiz Edmundo escreveu sobre o consumo de bebidas alcoólicas no Brasil por volta de 1900: “Bebia-se como talvez não havia idéia de se haver bebido tanto no nosso país.” Na medida em que alguns setores da sociedade esboçavam um movimento contra o alcoolismo, havia também intelectuais que bebiam muito e faziam disso uma forte manifestação de rebeldia. Não havia como ignorar, contudo, que a rebeldia, no caso, ficava limitada a um plano individualista. A defesa do direito de beber não tinha como se tornar um movimento “democrático” porque os intelectuais boêmios não tinham como constituir um grupo coeso, uma genuína comunidade: eles eram indivíduos isolados, cada um encastelado na sua perspectiva, numa solidão apenas temperada pelas amizades. Uma certa “dureza”, talvez se possa dizer uma certa “contundência”, fazia parte da preservação de um estilo adotado não só na literatura, mas na própria vida. Além disso, é possível que essa “dureza” tenha funcionado como o pressentimento de que os caminhos de uma intervenção mais efetiva na cultura exigiriam daqueles que se dispusessem a trilhá-los um preparo especial para serem mais “duros”. Alguns humoristas se preocupavam em atenuar o possível sofrimento de suas vítimas; outros, ao contrário, escalpelavam-nas. Emílio de Menezes, identificado numa cervejaria e logo abraçado por um jovem poeta, ouviu-o pedir-lhe que lesse dois sonetos que havia escrito em homenagem ao “mestre” Emílio. Emílio leu o primeiro soneto e ficou calado. O rapaz insistiu: “Gostou, Mestre?”. E Emílio, implacável, opinou: “Prefiro o outro.” Na linha que seguia, o poeta parnasiano sabia que não podia dispensar um pouco de crueldade. Fazia epitáfios freqüentemente agressivos para confrades que tinham acabado de morrer. Sobre João Lage, diretor de O País, escreveu: “Quando ele se achou sozinho,/ da cova, na escuridão, / surrupiou de mansinho / os bordados do caixão.” E sobre Bandeira Júnior, que tinha orelhas enormes e levara uma surra poucos dias antes: “Morreu depois de uma sova/ E como não tinha campa / de uma orelha fez a cova / e da outra fez a tampa.”
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O mesmo Emílio de Menezes, segundo consta, encontrou-se na rua, por acaso, com o positivista Teixeira Mendes. Perguntou-lhe, então, para onde ia. O outro respondeu: “Para o apostolado.” Emílio rápido informou: “E eu vou para o lado oposto.” Às vezes, uma piada ou um trocadilho parecem ser mera tolice, no entanto podem ser indícios de questões capazes de interessar um pesquisador. Emílio de Menezes, em seus últimos anos, tinha engordado muito. Pegou um bonde e ouviu duas senhoras rirem dele e uma perguntando à outra que bicho seria parido daquele ventre imenso. Virando-se para elas, o poeta informou: “Um elefante, minhas senhoras. E a trombinha dele já saiu.” Emílio de Menezes vinha do Paraná e era um trocadilhista fantástico. Tinha certa liderança entre os diversos poetas, que também eram provenientes de outras cidades que não o Rio de Janeiro. Paula Nei e Capistrano de Abreu vieram do Ceará. Raimundo Correa, Coelho Neto e os irmãos Arthur e Aluízio de Azevedo vieram do Maranhão. José do Patrocínio, símbolo vivo da luta contra a escravidão, era nascido em Campos. Alberto de Oliveira era de Saquarema, Guimarães Passos, de Alagoas. Esses escritores jovens se misturavam aos escritores nascidos no Rio, num clima cordial, que se mantinha graças ao humor. Essa convergência, baseada em interesses e admirações que os moços tinham em comum, era inevitavelmente contrariada pela competição e disputa de lugares de trabalho superiores aos que eram oferecidos. Em sua maioria, os escritores que vinham para a então capital do país pertenciam a famílias de classe média e não se sentiam seguros para aguardar tranqüilamente, durante muito tempo, um bom emprego. Arthur de Azevedo conta que, quando veio de São Luiz, seu pai lhe deu cartas de recomendação que deveriam lhe garantir trabalho e uma boa remuneração. Mas a manobra não deu certo. Um empresário que não estava na lista elaborada pelo pai de Arthur foi o único que lhe ofereceu emprego: condutor de bonde. Naquela época os bondes eram puxados por burros. Arthur agradeceu mas recusou o convite. Declarou ao seu quase futuro patrão que lhe ficava grato pela magnífica oferta, já que, como condutor de bonde, logo de manhã, estaria vendo a figura do empresário à sua frente. O empresário não percebeu que estava sendo chamado de burro e considerou a frase sarcástica “uma gentileza do rapaz”.
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Mais tarde, já famoso como autor teatral, isto é, como reabilitador do teatro de revista, prestou relevantes serviços ao humor carioca. Em 1896, ficou solidário a uma cartomante condenada como exploradora da boa fé de um cliente. E escreveu: “Prenderam a cartomante / Por crime? Quem foi que disse? / O tolo que pague o imposto / Lançado sobre a tolice.” E no epitáfio do seu personagem Frivolino, Arthur de Azevedo escreve: “Encobre essa lousa fria/ Os pobres restos mortais/ Do esposo melhor que havia, / Pois morreu quando cumpria/ Seus deveres conjugais.” Os escritores desse momento da hegemonia parnasiana tiveram sucesso no Brasil e chegaram a ter uma popularidade muito superior à dos poetas ligados a outras tendências. O simbolismo, por exemplo, como observou Otto Maria Carpeaux, teve uma influência menor do que esperava e, segundo alguns críticos competentes, merecia. O realismo (em sentido estrito) bem como o naturalismo ficaram decepcionados com a absorção de alguns de seus textos, que vieram a ser considerados parnasianos. A literatura parnasiana é, com muita freqüência, “bem-feita” e superficial. Seu ideal implícito era a perfeição formal; e a perfeição não era nada engraçada. A obra de Olavo Bilac (1865-1918), nesse sentido, é paradigmática. O autor da letra do Hino à Bandeira era também o ardoroso defensor do serviço militar obrigatório. Pouco a pouco, seu lado boêmio — que o levou a bater numa árvore com o automóvel importado por José do Patrocínio — foi cedendo espaço à imagem de um escritor que cumpria seus deveres e honrava seus compromissos. Um artista confiável. Admiradores de Bilac sublinhavam a convergência que existia entre a colaboração do poeta com a política educacional do governo e a qualidade de seus versos, que não era sacrificada na opção de Bilac pela sua adesão ao sistema. Devemos reconhecer, contudo, que o ideal da perfeição formal não é nada estimulante para o humor. O parnasianismo fortaleceu muito o individualismo e a difusão de idéias provenientes do positivismo e do evolucionismo (leia-se Auguste Comte e Herbert Spencer). Sua contribuição ao avanço do conhecimento científico e ao aprimoramento do discurso da ciência, afinal, não resultou em nada. E, no plano da legitimação do humor, a “seriedade” do poeta “cívico” e “patriótico” entrava em choque com o humor.
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5. HUMOR E BOEMIA Um personagem ao qual não se pode atribuir um valor literário especialmente significativo, e que, no entanto, expressa em sua trajetória um fenômeno muito interessante a respeito do declínio do humor parnasiano, é Manoel Bastos Tigre, nascido no Recife em 1882, falecido no Rio de Janeiro em 1957. Seu perfil profissional é surpreendente. Começou como engenheiro, jornalista, poeta; depois foi compositor, teatrólogo, publicitário, humorista e, ao longo de 40 anos, bibliotecário. Defrontando-se com as grandes dificuldades que eram enfrentadas pelos poetas parnasianos para escreverem seus poemas e simultaneamente garantirem sua subsistência, Bastos Tigre optou por um caminho decididamente mais “moderno”: trabalhou em várias coisas, sempre assegurando remuneração condigna. Nem por isso deixou de publicar seus escritos humorísticos. Começou com Saguão da posteridade (em 1902) e Versos perversos (em 1905). Passando por Penso, logo... eis isto (em 1923) até chegar a Musa gaiata (em 1949). Manteve uma coluna de jornal ao longo de 50 anos. A trajetória diversificada e reveladora de múltiplas possibilidades, compatível com o estilo de vida e com a personalidade de Bastos Tigre, não servia como receita para todos. Nunca poderia ser, por exemplo, a de um Lima Barreto (1881-1922). A obra de Bastos Tigre, por seu lado, não tem comparação possível com a obra inestimável do criador de Policarpo Quaresma (1911). Curiosamente, os dois foram amigos. O talento de Bastos Tigre ia, de fato, para a publicidade. Isso ficou claro quando ele inventou o slogan “se é Bayer, é bom”. O jornalista Maurício Azedo me informa que é dele, também, o “basta ser um rapaz direito para ter crédito na Exposição”. Um aprofundamento na análise das formas de humor que podem ser encontradas em obras literárias densas e admiráveis, como as de Lima Barreto e, ainda mais, as de Machado de Assis (1839-1908), é algo que não pode ser empreendido nos limites deste artigo. A importância das formas mais evidentes de humor nos aponta outra direção que não é a das qualidades dos autores clássicos. Para não deixar de mencionar a presença desses dois grandes escritores na história do humor no Brasil, registramos rapidamente o fato de
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que Lima Barreto, mulato, pobre, vítima de preconceitos e discriminações freqüentes, ficava reduzido a recorrer a expressões contundentes das modalidades mais rudes do humor (à caricatura, ao deboche, ao sarcasmo). O próprio Lima fala de sua “suculenta ironia” e diz que ela ia “da simples malícia ao mais profundo humour”. E Machado de Assis com sua finíssima ironia evitava colisões (dizia que detestava controvérsias) e desarmava seus contraditores com uma atitude sempre compreensiva e tolerante, falando a linguagem que os contraditores gostariam de falar. As qualidades humoristas do escritor e do homem, tais como são perceptíveis em quase todos os seus textos – a moderação, o equilíbrio e uma amabilidade cética – são exatamente as características contrárias ao espírito dos humoristas. Machado, decididamente, não era um deles. O humor de Machado era sonso, agia com “bons modos”. O humor de Lima Barreto era truculento, era campo de batalha. Entre os jornais anarquistas de que ele era colaborador há um que se intitulava O Diabo (só saíram quatro números). E o subtítulo era: Revista infernal de troça e filosofia. Ao que tudo indica, os dois notáveis escritores não se admiravam reciprocamente. Lima Barreto diz de um dos seus personagens que, tal como Machado de Assis, “só bebia água”. Machado não se identificava em nada com o grande mundo – ao qual Goethe vinculava fortemente a literatura mundial – e as formas de humor usadas muitas vezes como tacapes nos conflitos político culturais não lhe despertaram maior interesse. Do continente do humor, o que ele conhecia mesmo era a vastíssima província da ironia. Na medida em que as instituições e os costumes que prevaleciam na vida cultural brasileira pareciam estar bloqueados em alguns momentos que os professores e jornalistas consideravam deploráveis, tornava-se necessário abrir caminhos alternativos. Com este estado de espírito, esboçou-se a alternativa como uma ousada opção pela modernidade: a história cultural deslocou-se do centro onde tinha morado, no Rio, para novas instalações, em São Paulo. Nas décadas da mudança de século, o Brasil desenvolveu suas forças produtivas, mas as relações de produção mudaram muito pouco. A direção política oscilava entre a ditadura ostensiva e a modernização conservadora.
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A partir da decepcionante proclamação da república, um setor (majoritário) das classes médias passou a cultivar o discurso liberal. Como escreveu Raymundo Faoro: “Ser culto, moderno, significa, para o brasileiro do século XIX e do começo do século XX, estar em dia com as idéias liberais, acentuando o domínio da ordem natural, perturbada sempre que o Estado intervém na atividade particular.” A geração do século XX, segundo mestre Antonio Cândido, foi um estouro de enfants terribles. “Tinha muito do personalismo faroleiro de Oswald de Andrade, que qualificava a si mesmo de palhaço da burguesia.” Um setor que exerceu a função instigante em favor da Abolição no final do Império, foi o setor das revistas, freqüentemente humorísticas. A Revista Ilustrada e a Revista Dom Quixote, de Ângelo Agostini, acolhiam caricaturas cuja dimensão crítica saltava aos olhos e fazia rir os leitores. Entre os caricaturistas, destacavam-se Kalixto, Raul Pederneiras e, sobretudo, J. Carlos. As condições históricas e políticas apontaram naquele momento para uma contraposição exagerada entre a seriedade no compromisso que o governo assumia para a promoção do progresso e a atribuição de um alcance desmedido às idéias e às atividades dos boêmios. É interessante vermos um boêmio vocacional como Paulo Barreto (João do Rio) renegando a boemia, diante do quadro da expulsão dos conjuntos de populares que moravam no centro do Rio e foram empurrados para as “favelas”. “Quanto à boemia, a própria transformação urbana, acabando com as pensões, restaurantes e confeitarias baratas do centro, acabou a infra-estrutura que a sustinha. Só restaram as alternativas de um emprego no centro ou a mudança para o subúrbio.” “E essa coisa nojenta que os imbecis divinizaram chamada boemia também se acabou.” A fundação da Academia Brasileira de Letras interferiu nas discussões e bebedeiras dos intelectuais boêmios. Em 1905 morreu José do Patrocínio e alguns amigos propuseram Emílio de Menezes para ocupar sua vaga. Machado de Assis foi energicamente contrário a essa candidatura e justificou sua oposição apontando uma foto de Emílio bebendo. Emílio foi rejeitado pela ABL e só conseguiu se eleger em 1914 quando Machado de Assis já tinha morrido (morreu em 1908).
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E, no discurso de posse, Emílio assumiu a condição de boêmio considerando-a um valor cultural. Para conseguir um empréstimo do dono da Confeitaria Colombo, Emílio escreveu um hino “à dentada” (ou “mordida”, dinheiro tomado de empréstimo), considerando a confeitaria uma “verdadeira sucursal da nossa muito douta Academia”. Alguns dos intelectuais boêmios freqüentavam compositores da música popular. Raul Pederneiras, Emílio de Menezes, Hermes Fontes, Afonso Arinos de Mello Franco e Bastos Tigre estavam entre os visitantes de Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres. 6. HUMOR E MODERNISMO Mônica Pimenta Velloso, em seu livro O Modernismo no Rio de Janeiro, aponta para o humor na MPB, tema vasto, que se liga ao tema do humor no modernismo. Por um lado, o exame crítico da criação literária mais significativa, da contribuição de cada literatura ao que seria, tendencialmente, um “valor literário universal”, especialmente da contribuição do modernismo, é um exame extremamente trabalhoso, porque implica uma revisão rigorosa de conceitos sempre polêmicos e já bastante utilizados nos caminhos percorridos por diversos teóricos. Por outro lado, o resgate da MPB ainda tem muito trabalho preliminar pela frente. E, apesar dos esforços extraordinários dos pesquisadores, a pesquisa ainda não dispõe de análises suficientes para lidar com a notável riqueza do material empírico. Em todo caso, a conexão entre as duas – a literatura e a MPB – começou muito antes de alcançar o alto nível que alcançou com Vinicius de Morais. Já nos primeiros anos do século XX, encontra-se, por exemplo, entre os autores de composições carnavalescas o nome de Bastos Tigre, co-autor de Vem cá, mulata. Nos anos 20, o movimento de mobilização dos intelectuais se amplia e se acelera. E o humor cresce. Em 1917 é grande o sucesso de Pelo telefone, ridicularizando a proibição do jogo pela polícia. Uma das versões da letra dizia: “Pelo telefone / o Chefe de Polícia / mandou me avisar / que na Praça Onze / tem uma roleta para se jogar” (autoria controvertida, atribuída a Mauro de Almeida, mas também a Sinhô e a Donga).
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Esse movimento da MPB resultaria, depois, no surgimento de Noel Rosa, em 1931, com a composição Com que roupa?. Comentando o comportamento de alguns portugueses que vinham enriquecer no Brasil, se amasiavam com mulheres brasileiras e depois voltavam de navio para Portugal, e lá se casavam com “cachopas”, Noel, solidário, dava voz à brasileira abandonada: “O português agora deu o fora / já foi se embora e levou meu capital,/ esqueceu quem tanto amou outrora,/ foi no Adamastor pra Portugal,/ pra se casar com uma cachopa.” Curiosamente, uma outra estrofe de Com que roupa?, Noel Rosa põe na boca de sua personagem feminina a ameaça: “Vou tratar você com a força bruta” que não é convincente, na medida em que o português já foi se embora, isto é, foi no Adamastor para Portugal... Nicolau Sevchenko, em seu livro clássico Literatura como missão, localiza um espaço no qual se discutia a mesma contradição que contrapunha os boêmios à eficiência dos que defendiam o progresso a qualquer custo. Servchenko articula “a polêmica” entre Euclides da Cunha e Lima Barreto, ressalvando que o confronto, de fato, não ocorreu. Os dois “provavelmente nunca se defrontaram, certamente jamais trocaram uma palavra”. A divergência de ângulo, que se manifestava nas obras de um e do outro, era muito marcante. “Dentro dos padrões do progresso europeu, Euclides acreditava ainda na necessidade da grande empresa, uma vez que a natureza mesma da civilização industrial repousava sobre projetos de grande envergadura.” “Para Lima Barreto, justamente o grande empresário representava a maior ameaça que pairava sobre a sociedade.” Apesar da diferença de pontos de vista, tanto a literatura de Euclides como a de Lima Barreto tinha compromisso com o ideal da democracia e se ressentia de uma imensa decepção com a República. As impressões se intensificavam e se confundiam. Os hábitos se modificavam. A multidão dos consumidores tinha preferências que oscilavam não só no plano da literatura, porém cada vez mais também no plano do cinema (ou, como se dizia na época, do “cinematógrapho”). Os meios de transporte também mudavam com a multiplicação dos automóveis e a velocidade dos aviões. O riso não escapava a essa transformação generalizada. Entrando em choque com os critérios enrijecidos das tradições consagradas e mantidas artificialmente vivas, novas tendências se
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manifestaram com clareza nos anos vinte com o nome de Modernismo. Oswald de Andrade (1890-1954), Mario de Andrade (18931945), Manuel Bandeira (1886-1968) são alguns dos principais representantes das novas tendências literárias. Os dois escritores que nos vêm à cabeça, imediatamente, quando se fala de Modernismo, são evidentemente Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Eles foram muito amigos, porém se desentenderam e não falavam mais um com o outro. Oswald era muito brigão, mas, passada a raiva, ele se reconciliava com aquele com quem tinha brigado. Não se reconciliou com Mario porque o autor de Macunaíma ficou muito magoado com ele e não tinha, por temperamento, facilidade para perdoar. Não se sabe exatamente o que motivou o rompimento. Oswald, com seu jeito brincalhão, numa entrevista que viria a conceder ao poeta Paulo Mendes Campos (em 12/10/1947), explicou: “A minha briga com Mario de Andrade foi uma feroz briga de namorados. Eu o ataquei, ele me omitiu.” Oswald desempenhou um papel ativo mais importante que o de Mario na elaboração e na difusão dos ideais modernistas. Ele foi à Europa (Mario nunca saiu do Brasil) e trouxe referências culturais incomuns entre nós. Além disso, contribuiu para aproximar intelectuais e artistas na preparação da Semana de Arte Moderna (1922). Em 1923, Oswald publica Memórias sentimentais de João Miramar e Mario, que havia publicado Paulicéia desvairada, no ano anterior, foi saudado por Oswald num artigo entusiástico intitulado “Meu poeta futurista”. Para constrangimento geral, Mario esclareceu que não era futurista. Constrangimento para todos, menos para Oswald, que replicou ao esclarecimento de Mario que os artistas e escritores às vezes não compreendem o caráter inovador de suas obras. Ao longo dos anos 30, Oswald de Andrade publicou possivelmente seus melhores livros diretamente comprometidos com os princípios do modernismo. Paralelamente, cresceram os grupos de intelectuais modernistas em Belo Horizonte, Porto Alegre e no Nordeste. Rio e São Paulo, contudo, eram efetivamente os centros irradiadores da novidade. Oswald era uma influência talvez menos profunda que a de Mario, porém mais capaz de ampliar as áreas de discussões e pesquisa.
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As Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, sátiras politizadas, tiveram imensa repercussão. Oswald era por si só um espetáculo de humorismo. Algumas frases nos ajudam a relembrar o estilo do escritor: “O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça.” “Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.” “Não podemos deixar de ser doutores, pais de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim.” “Só não se inventou a máquina de fazer versos. Já havia o poeta parnasiano.” “Só a antropologia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”. “A nossa independência ainda não foi proclamada. Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte”. Na época em que publicou Serafim Ponte Grande, Oswald fazia autocrítica, já convertido ao comunismo, numa perspectiva que mais tarde também seria abandonada por ele. Lamentava ter perdido tempo em Paris na juventude: “Com pouco dinheiro, mas fora do eixo revolucionário do mundo, ignorando o Manifesto comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio”. De fato, Oswald de Andrade se tornou comunista e permaneceu durante algum tempo um seguidor do movimento comunista internacional. Terminada a Segunda Guerra Mundial, Oswald se entusiasmou com a proposta de um dirigente comunista norte-americano (Earl Browder) que aparecia como uma alternativa às idéias de Stalin. Irreverente, o autor do Manifesto antropofágico se permitia fazer referências debochadas a seus contemporâneos e esse estilo se radicalizou depois que ele se afastou do comunismo. Para Oswald, o ponto essencial estava na nossa capacidade de recuperar os valores básicos da nossa identidade primitiva, que vinham sendo trocados pela cultura dos eruditos alienados. Daí a frase famosa: “tupy or not tupy, that is the question”. Mario de Andrade era mais sóbrio, mais discreto do que Oswald, mas mesmo depois de terem rompido relações, o autor de Amar, verbo intransitivo respeitava e admirava muito seu ex-amigo. É “a figura mais característica e dinâmica do movimento modernista”, escrevia.
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Mario tinha origem em uma família de classe média que tinha preocupações com o orçamento. Era poeta, crítico literário, crítico de música e conhecedor de artes visuais. Vivia dos pagamentos que lhe faziam seus alunos particulares. Viajou muito pelo Brasil, pesquisando o nosso folclore. Usou os conhecimentos folclóricos, combinando-os com conceitos modernos de crítica literária. Seu Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de 1928, era classificado por ele como uma rapsódia. Seria, então, uma rapsódia cômica, já que provocou o riso de numerosos leitores. Mario não era um humorista. Os bons momentos de humor que aparecem em sua obra convivem com uma preocupação permanente do escritor de aprofundar seu conhecimento, na perspectiva humanista de que o conhecimento é imprescindível a quem quer servir à humanidade. Em sua poesia, entretanto, expressa-se o lado sério, mas também o lado ”não sério”. No “prefácio interessantíssimo” do livro de poemas Paulicéia desvairada, o próprio autor comentou: “muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei”. Tem plena consciência da ambigüidade do riso, do risco que o acompanha: você ri do outro, o outro pode rir de você. “Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.” Quer ser lido por gente que saiba cantar, rezar, urrar. Declara seu “Ódio aos temperamentos regulares! / Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia! / Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!” /. Este poema – Ode ao burguês – começa com um verso que não deixa margem para dúvidas: “Eu insulto o burguês!”. Suas obras mais influentes nos anos 20 foram o já citado Macunaíma e o romance Amar, verbo intransitivo, com observações bem-humoradas a respeito da maneira de improvisar e sobre o modo de viver a sexualidade típico de “preceptora alemã” e o modo de vivê-la nas reações características de seus pupilos, jovens de uma família paulista rica. Como poeta, Mário parece ter alcançado sua plena maturidade nos anos 30 e 40, com poemas belíssimos, como A meditação sobre o rio Tietê, que, no entanto, por seu tema lírico e idéia central, não comporta um tratamento humorístico. A grande arte e a grande poesia têm uma inesgotável riqueza de valores e um campo de criação tão diversificado, tão surpreendente
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que jamais se poderia exigir delas que se deixassem enfeudar às forças do humor. Em algumas áreas reservadas para situações comprometidas com sentimentos absolutamente delicados, ou infinitamente sutis, o humor se retrai, com espontâneo respeito. Erasmo de Rotterdam já observara que aquele que não ri de nada é um idiota e acrescentava que aquele que ri de tudo é outro idiota. Não se trata, aqui, de uma incompatibilidade entre a lírica e o humor. Trata-se de uma tensão crescente das exigências de cada um dos dois lados. Basta lembrarmos a lírica de Manuel Bandeira, um “clássico” do modernismo, que manifesta um senso de humor bastante peculiar, em sua profunda melancolia, em seu “não-me-importismo irônico” (conforme palavras de Alfredo Bosi). Às vezes, o humor irrompe da saúde pessoal que lhe faltava; às vezes, aparece na sociedade, nos grupos que consomem drogas: “uns tomam éter, outros cocaína, / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria”. Não é só o senso de humor de Manuel Bandeira que é peculiar; seu lirismo também o é. Em Poética — que Ivan Junqueira considera um dos melhores e mais importantes poemas que Manuel Bandeira escreveu – o poeta quer o lirismo dos loucos, “o lirismo difícil e pungente dos bêbedos / o lirismo dos clowns de Shakespeare” e se declara “farto do lirismo namorador,/ político, / raquítico, / sifilítico”. Para concluir: “Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.” Relendo o poema, podemos verificar que o lirismo, tal como Bandeira o concebia, estava associado à luta pela libertação de cada um por si e de todos por todos. Daí a recusa do lirismo “namorador” (a vida amorosa inconseqüente), e daí também a rejeição do lirismo político-raquítico-sifilítico. O desprezo por qualquer lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. O desprezo pelo oportunismo político-sifilítico, pela ética-raquítica, que se opõem à libertação. Trata-se de um poema libertário, um dos primeiros poemas (talvez o pioneiro) identificados com a esquerda e com a perspectiva de uma história da poesia “engajada” no Brasil. A história às vezes parece fazer piadas. Levando em conta os desentendimentos ocorridos algumas décadas mais tarde entre o poeta Manuel Bandeira e a esquerda, registramos a ocorrência de incidentes, que, no entanto, vistos à distância, acrescentam um episódio cômico à nossa história.
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E nesse episódio, o que nos faz rir não é o poeta, nem a esquerda, em geral. Afinal, foram poucos os intelectuais de esquerda que hostilizaram Manuel Bandeira. O que nos faz rir é a constatação de que os homens que fazem a história (muito mais eles do que nós) são capazes de criar situações absurdas, nas quais emergem contextos que, involuntariamente, assumem características risíveis. A história no nosso país pulula de momentos de humor. 7. O BARÃO DE ITARARÉ Mas o espírito do Modernismo também se expressava diretamente no âmbito do humorismo, através do jornalista Aparício Torelly (ou Aporelly). Nascido no Rio Grande do Sul, ele desenvolveu, de 1925 a 1955, intensa atividade jornalística, dirigindo um jornal intitulado A Manha, com o subtítulo: Órgão de ataques... de riso. Em 1930, preparou-se para fazer uma grande reportagem sobre aquela que seria a maior batalha da história da América do Sul, contrapondo as tropas favoráveis a Getúlio Vargas às tropas que permaneciam fiéis a Washington Luiz. A batalha acabou não acontecendo: os generais fizeram um acordo. Aporelly, convencido de que, afinal, tinha sido ele a pessoa que maior bravura demonstrara no episódio, concedeu-se o título de duque de Itararé. Depois, por modéstia, rebaixou-se para barão. Essa historinha é muito conhecida, no entanto continua a ser engraçada. Ela nos põe imediatamente diante do enigma do Barão: seu mundo mudou, seu quadro de referências envelheceu, suas observações muitas vezes são datadas, porém seu riso ainda é capaz de nos contagiar. O humor está sempre muito ligado às circunstâncias do momento. Boa parte dos escritos do Barão exige dos leitores que eles recordem o ambiente histórico particular em que o autor os redigiu. A nossa sensibilidade para o cômico, hoje, é diferente. Os textos de Aporelly não poderiam ter permanecido imunes à passagem do tempo. O que surpreende é o fato de, com um mínimo esforço, o leitor poder se tornar um cúmplice do humorista, rindo com ele.
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O humor de Aporelly mantinha algumas das características da verve e da graça de seus antecessores. Nos números do jornal A Manha se encontram trocadilhos e piadas ao gosto parnasiano. O Barão tinha algo do estilo de Emílio de Menezes. Contudo, nele se encontram elementos de um novo riso, aspectos de um novo programa para “castigar os costumes” (ridendo castigat mores, diziam os antigos romanos). “A gratuidade” cedia espaço ao engajamento. O humorista se definia a favor de uns, contra outros. Tomava partido. Brincava com as palavras, era poético. Propunha reflexões surpreendentes, era filosófico. Mas era, mais do que seus predecessores, politizado, subversivo. O Barão não se conformava com os discursos moralistas de personagens cínicos, que exploram o trabalho alheio, contribuem para o agravamento das desigualdades sociais, desviam dinheiro público e se dizem caluniados. O humor do Barão era concretamente solidário com os pobres, com os que viviam “na pindaíba”, como se dizia na época. Dava forma humorística aos lamentos dos excluídos: “Pobre, quando mete a mão no bolso, só tira cinco dedos”; “Pobre, quando come frango, um dos dois está doente”; “Pobre, só vai pra frente quando dá topada”; “Pobre só levanta a cabeça para ver se vai chover”; “Testamento de pobre se escreve na unha.” O Barão batia forte em Menotti Del Picchia, chamando-o de Pinotti Del Micchia. A Câmara (integralista) dos Quarenta virava Câmara dos Qua-qua-quarenta. A oratória gaúcha obscura de João Neves da Fontoura justificava o apelido: João Névoas da Fronteira. Contava que ao ver o lema dos integralistas – “A Deus, Pátria e Família” - chegara a aderir ao movimento, pensando que o lema era “Adeus Pátria e Família”. Condenou sarcasticamente a subserviência do governo brasileiro diante dos Estados Unidos, no período em que o presidente norte-americano era Harry Trumann. Acusou o presidente do Brasil de estar sofrendo de delirium trumanns. O humorismo do Barão era sem dúvida democrático, mas, certamente, radical. Não tinha os bons modos e a moderação de um liberal. Quando lia artigos de autores reacionários, publicados pelos jornalões da imprensa autonomeada “sadia”, comentava: “Antigamente, os animais falavam, hoje eles escrevem também.”
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A Manha enfrentava dificuldades, nem sempre conseguia sair às quintas-feiras. Para atenuar o atraso, renegava sua condição de “quintafeirina” e se apresentava como um “devezemquandário”, que não saía em “dias certos”, mas em “certos dias”. Como saía uma vez por semana, também poderia ser chamado de “hebdromedário” . Em 1935, a situação do jornal piorou: o diretor foi preso. Acusado de ter envolvimento com a tentativa revolucionária comunista, passou quase um ano e meio na cadeia, até que o soltaram por falta de provas. Apesar dos sofrimentos e tristezas – recordados por Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere – o Barão sobreviveu e manteve suas convicções políticas, sua postura antifascista, antinazista, antifranquista, anti-salazarista e antigetulista. Sua popularidade, no fim do Estado Novo (“o estado a que chegamos”, dizia o Barão), em 1944/1945, estava no auge. O Partido Comunista lançou sua candidatura a vereador pelo Rio de Janeiro, e ele foi eleito. Teve um desempenho unanimemente reconhecido como magnífico e... engraçadíssimo. Seus apartes causavam riso, seus discursos eram curtos e diretos. Uma vez, lamentou que o então Ministro da Viação, Senhor Pestana, tivesse tomado uma medida infeliz, acrescentando: e tomou essa medida sem pestanejar! Aparteando um colega seu, de convicções conservadoras, ouviu do colega a declaração de que era inútil aparteá-lo dizendo-lhe tolices. “Suas palavras entram por uma das minhas orelhas e saem pela outra!”. O Barão replicou: “É impossível, nobre colega. A física nos ensina que o som não se propaga no vácuo.” Em outra ocasião, o vereador Moura Brasil reconhecia suas dúvidas a respeito de determinada situação e confessava: “não vejo claro”. E o Barão, rápido: “duas gotas, dois minutos, colírio, Moura Brasil!”. Logo, o Partido Comunista foi posto fora da lei, os mandatos dos comunistas foram cassados, o Barão deixou de ser vereador. Já se ressentia da idade avançada e de um derrame, que lhe afetou os movimentos das pernas. Morreu em 1971, com 76 anos. O mundo tinha mudado, o Brasil estava diferente. Surgiram novos humoristas, novas manifestações de humor. Novos modos de rir e de fazer rir.
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REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: Martins, 1928. ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [19--]. ARISTÓTELES. Arte poética. Tradução de Pietro Bassetti. São Paulo: M. Claret, 2003. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938. BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1952. BARRETO, Lima. Um longo sonho do futuro. Rio de Janeiro: Graphia, 1993. BÉRGSON, Henri. Le rire. Paris: F. Alcan, 1924. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultura, 1971. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, [19--]. 2 v. CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, [196-]. 8 v. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. Madrid: Espasa-Calpe, [19--]. ECO, Humberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Globo, 1975. 2 v. FIGUEIREDO, Cláudio. As duas vidas de Aparício Torelly, o Barão de Itararé. Rio de Janeiro: Record, 1985. FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade. São Paulo: Art: Secretaria de Cultura de São Paulo, 1990. JUNQUEIRA, Ivan. Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. MAGALHÃES JÚNIOR, Raymundo. Arthur Azevedo e sua época. São Paulo: Martins, 1955. ------. O fabuloso Patrocínio Filho. São Paulo: Martins, 1943.
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MENEZES, Emílio de. Poesia: lírica & satírica. Introdução, organização e notas: Cassiana Lacerda Carollo. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba, 1996. PONTES, Eloy. A vida exuberante de Olavo Bilac. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948. RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003. TIGRE, Bastos. Musa gaiata. Rio de Janeiro: O Papel, 1949. ------. Poesias humorísticas. Rio de Janeiro: Flores & Mário, 1932. ------. Saguão da posteridade. Rio de Janeiro: Altina, 1902. ------. Versos perversos. Rio de Janeiro: Cruz Coutinho, 1905. VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
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A CIDADE-OBRA OU ‘OS OLHOS DA CIDADE SÃO DELES’ 1
Luizan Pinheiro
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Alusão ao título brasileiro do filme Os olhos da cidade são meus (Anguish/ Angústia/1987), do diretor espanhol Bigas Luna.
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Neste ensaio revelamos pelo olhar de diversos autores os sentidos da cidade como obra de arte. Cidade-obra visitada por olhares que a expõe e desnuda. Eles estão por aí, atravessando o tempo em deslocamentos insuspeitados porque “os olhos da cidade são deles”.
In this paper, we reveal through the study of several authors, the senses of the city as artwork. City as artwork and studied by looks that expose and denudate it. They are around, crossing the time in unsuspected movements, because “the eye’s city belongs to them”.
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“A forma de uma cidade muda mais rapidamente — ai de mim — que o coração de um mortal.” Charles Baudelaire
1. INTRODUÇÃO Pensar a cidade como espaço experimental, onde nela é possível todas as intervenções estético-artísticas, é descobrir seus sentidos, intensidades e potencialidades discursivas. Propomos aqui um atravessamento pelos olhares-vozes de diversos autores: historiadores da arte, teóricos, arquitetos, poetas, artistas plásticos, compositores, filósofos etc., parindo um retrato fragmentário da cidade-obra, dimensionando seus fluxos poéticos, estéticos e experimentais; colocando, no âmbito de sua reflexão, aspectos que produzem novos modos de considerá-la, não mais como o locus da ação artística, mas da sua própria existência de objeto humano. Nesse sentido, os olhares-vozes que aparecem nesse trânsito nos permitem o encontro com as diversas cidades, ao mesmo tempo em que reinventam-nas sem cessar. O ponto central é o pensamento estético da cidade. E aqui o estético infere o sentido das significações possíveis da cidade encontrados nas fendas dos olhares-vozes. É nessa direção que, nos juntando ao coro desses olhares-vozes insurgentes, evidenciamos a condição da cidade para além de um locus vivencial na história, qual seja, o de obra de arte. Na medida em que a cidade é um objeto criado por mãos humanas na história, temos assim a configuração de um objeto complexo marcado por inúmeros devires que suportam as mais diversas formas de intervenções e fruições. Os deslocamentos no corpo da cidade revelam modos de descobri-la, os trajetos nunca são os mesmos, assim como nunca somos os mesmos. É a cidade revestida do movimento do rio de Heráclito. A cidade se abre como um lugar que potencializa nossa experiência estética do mundo, implicando mapas, desvios, trajetos, perdas, retornos, interrupções, mas sempre encontrando lugares que desde sempre são mais que lugares topológicos, pois, por mais que queiramos identificá-los e defini-los como sendo da ordem de uma identi-
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dade irremovível, só estamos cavando o fosso de nossa experimentação. Cabe-nos assim pensar com Jonathan Raban, que a “cidade é um lugar demasiado complexo para ser disciplinada dessa forma; labirinto, enciclopédia, empório, teatro, a cidade é lugar em que o fato e a imaginação simplesmente têm de se fundir”. 2 E é exatamente pela condição da imaginação dos olhares-vozes encontrados aqui, que este retrato fragmentário se constrói, para, na virada da página final, descobrir que qualquer cidade que encontramos pelo mundo nos solicita sua descoberta real, sua construção desde nossos próprios sentidos, ou seja, nos convida a encontrá-la em algum ponto e percorrê-la no infinito mesmo de seu corpo-forma. Andiamo! 2. OLHARES-VOZES-CIDADE-OBRA A cidade sempre foi mirada por artistas, poetas, escritores, filósofos, compositores etc. Um olhar fragmentário tomando estas miradas sobre a cidade, seja olhando-a como obra, seja submetendo-a ao encantamento de registros, os mais díspares possíveis, promove uma espécie de densidade imagética que só nos ajuda a entender o quanto temos ainda para desbravar das nuanças e sutilezas que o corpo totalizador da cidade instaura, e que assinala uma espécie de vidência como quer o Rimbaud: O poeta se faz vidente através de um longo, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos.3
O olhar artístico e estético sempre promoveu a dilatação dos sentidos do homem no mundo, buscando o próprio sentido de sua existência. Daí inúmeras vozes e olhares que, num trânsito pelas cidades, captaram e se deixaram captar pelos estímulos construídos em sua história, aquilo que elas têm de mais peculiar, insólito, expressivo. Giulio Carlo Argan enfatiza a dimensão artística da cidade tomando-a como obra, produto artístico, na medida em que se dá a superação da idéia de arte como sendo produto de um indivíduo 2 3
Harvey, 1993. p. 17. Rimbaud, 2000. p. 9.
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criador do objeto, caracterizando um sentido idealista da cidade. O que Argan infere é a noção de arte que revela um entendimento da cidade enquanto ela própria é o objeto, afastando o foco que predominava sobre a figura do artista como produtor do objeto, no sentido tradicional inaugurado pela Renascença. A cidade, diz Argan, “não é apenas […] um invólucro ou uma concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma”, 4 e isso é o que nos coloca na possibilidade de uma leitura específica de sua forma. Assim, buscamos cada vez mais enunciar a idéia desse produto artístico à mercê de fatores socioculturais que dinamizam internamente sua configuração matérica. Visualizamos sua complexidade ao defini-la como esse objeto, pois todas as experiências das cidades apontam para a percepção e fruição de uma vivência intensiva do homem. Esta cidade que Argan chama de “cidade real”, em oposição a uma outra noção de “cidade ideal”, articula um campo de interferências, comportamentos e sentidos no tempo histórico, “a qual pode, sem dúvida, ser concebida como obra, uma obra de arte que no decorrer de sua existência, sofreu modificações, alterações, acréscimos, diminuições, deformações, às vezes verdadeiras crises destrutivas.”5 Estas transformações a que as cidades passam podem perfeitamente ser identificadas a partir de fenômenos que se manifestam no próprio espaço urbano, engendrando novas configurações e sentidos daquilo que a cidade pode ser para nós. E nessa direção todas as experiências da cidade como obra são possíveis. Possibilitam descobertas infindáveis: texturas, nuanças, perfis, histórias, contradições, solicitando interpretações e significações, dilatando nossa experiência urbana. Desse modo, tal como Argan coloca, a idéia de uma cidade ideal se dá a partir de uma concepção modular que vai refletir a ordem social ou mesmo metafísica ou divina da instituição urbana. Ele enfatiza o contraponto das cidades modernas em relação às tradicionais, afirmando que aquelas por não se basearem numa espécie de instituição carismática “podem continuar a mudar sem uma ordem 4 5
Argan, 1998. p.73. Idem. p. 73.
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providencial e que, portanto, exatamente a sua mudança contínua é representativa, de modo que o que resta do antigo é interpretado, sim, como pertencente à história, mas a um ciclo histórico já encerrado”.6 Daí a necessidade de examinarmos sua forma dada como um todo orgânico. A forma da cidade revela-se intensiva e mutável como Argan deixa entrever ao afirmar “que o devir nunca tem um ritmo ou um andamento linear, não corresponde a nenhum esquema, ou padrão, a priori. Não é certamente a lógica da história, mas a desordem dos eventos que se reflete na realidade urbana herdada do passado.”7 Entendemos, assim, que a desordem que se manifesta nesse devir de cidade-obra é um dos princípios de sua riqueza significativa. Que por essa desordem é possível ampliarmos a gama de experiências de sua configuração em contraposição aos modelos acabados de cidade, que não levam em conta essa desordem necessária. A complexidade da cidade ressoa o passado, mas constrói-se pelas contradições e especificidades dos eventos insólitos que lhe re-configuram a forma no tempo atual. Há assim um diálogo com o passado, inevitável. Porém, permitir um entendimento linear e homogêneo da existência da cidade torna-se uma dificuldade a ser considerada. Captamos no próprio movimento da cidade pequenos fenômenos que nos levam a mapeá-la a partir de sua dinâmica intrínseca, pois entendemos o fluxo contínuo de mudanças da cidade por meio das interferências que se processam; diríamos, numa rápida percepção, que fenômenos como passeatas, atos públicos, fechamentos de rua, alagamento, desabamento etc., e outros, como uma lata de refrigerante jogada na rua, uma calçada quebrada, bares no meio das calçadas ou um pixo8 explodindo num muro qualquer, que esses movimentos produzem a mutabilidade da cidade no seu devir cotidiano. Instala-se um agudo movimento estranho que produz uma série de interessantes percepções do objeto-cidade a partir desses eventos que afirmam a cidade como um campo 6
Argan, p.75. Idem. p. 75. 8 Pixo – qualquer interferência sobre qualquer espaço da cidade: casa, muro, prédio etc., feito especificamente com lata de tinta spray. A matéria da pixação. 7
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de experimentação. Não à toa as linguagens artísticas a tomam na sua plenitude: vide o caso da fotografia, do cinema e do grafite, só para ficarmos em três. Apreendemos os sentidos dessas e de outras intervenções experienciadas em interpretações e imagens: registros afirmadores da cidade como organismo vivo e, por conseguinte, como obra, apontando para aquilo que podemos reter de nossa relação com ela. O crítico Mário Pedrosa discute a importância dada ao conceito da cidade como obra de arte dando importância a vários aspectos, dentre eles “o que associa à noção o bom artesanato, a qualidade, a propriedade, a justeza de todas as suas partes, de coisa feita pela mão do homem. Por exemplo, uma cadeira, um utensílio caseiro”.9 É interessante tal afirmação, contudo, ainda circunscreve a idéia da qualidade da forma constitutiva desse objeto, do conceito de forma adequada pela justeza das suas partes, e não considera o dinamismo caótico da forma da cidade, pois sugere a idéia de uma forma fechada, acabada. É necessário enfatizar que independente da caracterização que os diversos autores possam fazer da cidade como obra, ela está colocada, indiscutivelmente, no âmbito da pesquisa artística e estética, como o próprio Pedrosa destaca do pensamento de autores como Lethaby e Munford. De Lethaby ele destaca: “uma cidade é uma obra de arte, em função de sua qualidade de morar dos homens e sua ‘arte’ consiste no serviço e no estímulo que dão vida à cidade”.10 De Munford ele enfatiza que se a cidade é “fato da natureza, do mesmo modo que uma cova ou um formigueiro, é também uma obra de arte consciente e contém, dentro de sua armação comunal, muitas formas de arte mais simples e mais pessoais.”11 Com isso, explicita-se de um modo mais agudo inúmeras definições da cidade como obra, dado o fato de que a amplitude de leituras a ela recorrentes, só enriquecem e ampliam o modo como podemos tomá-la no sentido da reflexão artística e estética.
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Pedrosa. 1998. p. 405. Idem. p. 405. 11 Idem. p. 405. 10
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Nessas tomadas de posições estão os fatos urbanos do arquiteto Aldo Rossi; considerando a cidade como obra de arte, ele diz: “[…] podemos declarar desde já que admitimos que na natureza dos fatos urbanos há algo que os torna muito semelhantes, e não só metaforicamente, à obra de arte.”12 Isto reitera para além das metáforas da cidade, sua constituição matérica como um fruir que gera sentidos novos. E inúmeros agentes naturais e culturais contribuem para essa espécie de retrato heraclitiano da cidade. Mutatis mutandis, a cidade projeta-se no tempo histórico ligandonos às suas fases. Múltiplos sentidos agenciam-se para nos colocar em confronto com novas experiências que vão sendo registradas pela arte, filosofia, semiótica, urbanismo etc. E Kevin Lynch diz em relação à cidade que “apenas parcialmente podemos controlar o seu crescimento e a sua forma. Não existe um resultado final, mas somente uma contínua sucessão de fases”.13 Nessas sucessões de fases, inúmeros agentes naturais e culturais contribuem para essa espécie de retrato heraclitiano da cidade. A cidade projeta-se no tempo histórico ligando-nos a suas fases. Múltiplos sentidos agenciam-se para nos colocar em confronto com novas experiências que vão sendo registradas pela arte, filosofia, semiótica, urbanismo etc. Contudo, é fundamental percebermos que nos atravessamentos de todos esses discursos o sentido de interpretação da própria forma da cidade resvala no estético. Em seu estudo Fisiognomia da metrópole moderna (Willi Bolle), no capítulo “A cidade como escrita”, Bolle analisa a obra Contramão de Walter Benjamin, no intuito de uma leitura da cidade e de suas relações político-sociais a engendrar modos de apreensões, visualidade, sensações e intervenções no locus urbano. Bolle diz que o objetivo “era representar a grande cidade contemporânea como espaço de experiência, sensorial e intelectual da Modernidade”14. No fundo da discussão que Bolle trava com a obra de Benjamin, aloja-se um perspicaz desbravamento da cidade, sua configuração. A face da cidade se mostra de dentro para fora marcada por inúmeras situações, conflitos e estruturas. Todas essas estruturas vão 12 13 14
Rossi. 1995. p.18. Lynch. 1982. p. 12. Bolle. 2000. p. 271/ 272.
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sendo sutilmente construídas por Benjamin no texto da Contramão, fundando assim uma escrita que em última análise é a própria cidade. Ela é texto; escrita marcada por seus infindáveis elementos: “Canteiro de obras”, “Papelaria”, “Ótica” etc. Assim, a cidade pode ser muita coisa desde que qualquer olhar ou linguagem a apreenda. Contramão responde a essa idéia, pois revela a cidade moderna na sua materialidade concreta. Cada elemento da cidade constitui sua forma, e a mobilidade desses elementos instaura uma dinâmica muito peculiar às cidades do início do século XX. Podemos muito bem mapear a cidade como uma infinidade de textos que se expõem aos olhos dos habitantes-expectadores. Trava-se aqui um confronto ininterrupto entre o habitante da cidade e a forma-escrita da cidade, sendo que a vida urbana implica mapeamentos, referências, distanciamentos, aprisionamentos, legibilidade,15 e nesse sentido perceber o espaço da cidade como esse campo de referências permite um entender com mais profundidade os fluxos citadinos. Dessa forma Contramão é uma representação da metrópole moderna, assim como ela se ergue diariamente diante de seus habitantes: uma imensa aglomeração de textos: placas de trânsito, outdoors, sinais, letreiros, tabuletas, informações, anúncios, cartazes, folhetos, manchetes, luminosos - uma gigantesca constelação de escrita.16
Neste fragmento, Bolle deixa clara a idéia de uma cidade que se ergue na sua complexidade imagética no cotidiano. A cidade, que é objeto artístico, também é texto, como uma pintura, uma escultura ou um monumento arquitetônico. A cidade é constantemente tatuada por imagens-textos que se acumulam em seu corpo movente. Incessantemente vai sendo violentada por toda sorte de textura dada pelo imbricamento das imagens-textos que criam uma estranheza no tecido citadino. Comunica por meio de suas inscrições de épocas diferentes. E nessa proliferação de significações, o passado e o presente dialogam sobre a mesma superfície. 15 16
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Lynch. p. 12. Bolle. p. 273.
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Matéria e texto, imagem e textura: a cidade é agora um objeto pulsante, grafitado, interferido, intercalado por um emaranhado visual de tantos signos. Podemos percorrer as ruas da cidade e nesse flanar entre imagens encontrar uma cidade aberta em que nos alojamos em seu complexo sistema de signos e imagens que afrontam-nos a percepção. Logo, o que podemos sentir se dá dentro desse caldeirão jorrante de todos os significados superpostos. Essas sensações nos tornam seres estranhos em constante conflito com os múltiplos discursos que o texto-cidade insere. Algo de movente nos avilta enquanto somos impossibilitados de nos livrarmos desse fruir intenso. Movemos e somos movidos nesse mar de imagens e escrita que é a cidade, nos inscrevendo em sua própria história ininterruptamente. O poeta francês Charles Baudelaire inaugura uma espécie de estética do cotidiano, ao perscrutar a metrópole moderna, Paris no caso, a partir do impacto que ela produz à percepção do poeta; ao mesmo tempo em que confronta suas experiências com as questões da arte e da cultura de seu tempo. Aberto às experiências que a cidade instaura, cria de maneira perspicaz uma profusão de imagens que solicitam do leitor um novo modo de conceber o espaço urbano e seu metamorfoseamento. Em seu clássico “O Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire constrói as percepções do tempo moderno, no que este tem de sedutor e impactante; a própria cidade está demarcada nas linhas de Baudelaire sob o jugo de um olhar agudo no tempo histórico. Ao falar de seu personagem G., “homem do mundo”, imprime-lhe a inalienável marca do flâneur: Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no mundo e permanecer oculto ao mundo.17
Isso revela que no nascedouro das grandes metrópoles modernas tudo estava em ebulição, que ao mesmo tempo gerava um certo 17
Baudelaire. 1988. p. 170.
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prazer e júbilo marcado por uma adaptação (sentir-se em casa) do homem na cidade. É a paixão pela cidade moderna que Baudelaire revela como sendo o habitat perfeito para a densidade imaginativa que o artista necessita, existencialmente; acirra-se no percurso de um desbravar a cidade e suas contradições. Esta será de certa forma a marca inconfundível a que inúmeros analistas irão imprimir na figura de Baudelaire: aquele que sabe desfrutar do tempus novum na sua profundidade e intensidade. Baudelaire dirá que G. admira a eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia tão providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol.18 Essa admiração da eterna beleza no tumulto sugere uma sutil ambigüidade do olhar pelo espaço urbano; assim como a contemplação da cidade impinge uma função precisa de sua descoberta como “reservatório de eletricidade” na mais perfeita expressão baudelaireana. Cria-se acerca do burburinho da cidade algo de fascinante, pois o movimento e a mutabilidade ali se estribam. E nesse estar no mundo e permacer oculto ao mundo recoloca um abrir-se para as experiências do tecido citadino. De um modo fundamental a cidade passa a existir como um objeto de arte em que nos é possível adentrar, possuí-lo, manuseálo em toda a sua profundidade, pois nela está contido o lugar da dinâmica intrínseca caro aos objetos artísticos. E se a obra de arte reflete o tempo histórico, a cidade como obra o faz de um modo muito mais intenso, pois torna-se também naquela clássica formulação de Baudelaire: o transitório, o fugidio, o contingente e de outro o eterno e o imutável. Assim, é possível pequenos registros fragmentários da complexidade do objeto-cidade e seu percurso de objeto mutável. Afirmando um sentido de liberdade humana como um dos fins da relação objeto-homem. Tal liberdade repercute nos achados que o corpo da cidade revela reacendendo nossos delírios cotidianos, atirando-nos para dentro desse estado convulsivo que é a cidade-obra.
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Idem. p. 171.
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Em Baudelaire: o Modernismo nas ruas, Marshall Berman discute alguns escritos do poeta e sua postura contraditória diante das novas transformações pelas quais a capital francesa atravessava, com sua remodelação no período da modernização urbana de Paris por Haussmann, na segunda metade do século XIX. Berman mostra que os escritos de Baudelaire são fundamentais para se perceber as contradições geradas pelo início do modernismo, necessários para nosso modo de compreensão do tempo presente. Algo como a perspectiva tecnológica e administrativa de um lado e de outro uma unidimensionalidade onde liberdade, beleza etc. podem produzir escravização e horror. Afirma que o próprio poeta assentava-se num comportamento ambivalente, ressoando o próprio espírito da época moderna: Podemos encontrar ambas polaridades em Baudelaire, que, de fato […] pode reivindicar ter sido o inventor de ambas. Mas podemos igualmente ver em Baudelaire algo que falta à maioria dos seus sucessores: a vontade de combater até à exaustão as complexidades e contradições da vida moderna, a fim de encontrar e criar a si mesmo em meio à angústia e à beleza do caos.19
Palavras que colocam a perspectiva de um pensar a cidade com tudo o que ela potencializa no espírito do homem. A beleza do caos passou a forjar inúmeros modos de compreensão das cidades contemporâneas, atravessadas por uma modernidade tardia e referenciadas em bases ideologizantes amiúde diluidoras, herdadas do processo de modernização processada em Paris no final do século XIX. O que nos chama a atenção é que os autores citados, “tomam a cidade de assalto” numa correlação de força demarcadora de sentidos novos a explicitar seus significados na história. Olhar a cidade a partir do lugar da obra de arte é orientar-nos à sua dimensão viabilizadora de intencionalidade comunicativa e humana. Estudar a cidade como objeto artístico é ponto pacífico na contemporaneidade, pois remete-nos à descoberta de sua materialidade. Quando 19
Berman. 1986. p. 164.
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Benjamin entende a cidade como escrita, onde as relações que nela se constroem chama-nos a um re-olhar sua estrutura, configuração e materialidade, é para que nela possamos entender o que somos e como vivemos, e assim estabelecer novas relações políticas, sociais, culturais, artísticas e suas interferências no tempo histórico. Muitos trabalhos literários e poéticos tomam a experiência da cidade como lugar de interferência na história. É o caso de As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, em que o autor constrói nas palavras de Agnaldo Farias “cidades dentro de uma mesma cidade”.20 A personagem de Marco Pólo é o criador de muitas cidades de um vastíssimo império do imperador mongol Kublai Khan. Marco Pólo as visita e relata ao imperador como de fato são essas cidades, levando o imperador a pôr em dúvida a possibilidade de uma só pessoa conhecer tantas cidades. Numa de suas descrições maravilhosas, Marco Pólo diz: A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. […] Mas a cidade não conta o seu passado, contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.21
Cada ínfima imagem, matéria, elemento que constitui a cidade contém sua memória. Conta histórias em detalhes. O autor vai apreendendo as partículas que sugerem tempos e histórias de seus habitantes. São, nesse sentido, modos de achar cidades dentro de outras cidades como sugere Calvino. E estas tantas cidades nascem do confronto com linguagens diversas da arte, ponto de chegada da vivência humana. Assim, construir leituras da cidade, como foco de resistência a um certo estado de dessubjetivação, pressupõe uma rejeição ao preestabelecido, ao préconcebido. Esta cidade passa a existir sob o ângulo 20 21
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Farias. 1997. p. 4-6 Calvino. 1990. p. 14.
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de nossa “lente” como uma cidade que possibilita modos de criação, no embate perceptivo e ativo, como captadas por Lobão nos versos de Essa Noite Não: A cidade enlouquece sonhos tortos na verdade nada é o que parece ser as pessoas enlouquecem calmamente viciosamente sem saber.22
Forja-se aqui, da cidade em tela do poeta, um emaranhado de situações que nos enlouquecem calmamente, geram conteúdos estéticos demarcados pelo lugar poético. Com não menos intensidade, Chico Buarque desmonta o acomodado olhar, re-significando-o nos versos da canção Carioca: […] Cidade maravilhosa és minha o poente na espinha das tuas montanhas quase arromba a retina de quem vê.23
Esse arrombamento de portas enferrujadas da percepção solicita um desarmamento da obviedade precípua de decantadas imagens de outrora, corroborado num outro lugar poético. A provocação do olhar do poeta num estado de encantamento é o registro da experiência da cidade interiorana que Drummond revela em seu poema “Cidadezinha Qualquer”. Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar.
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Lobão. 1989. 1 disco sonoro. Chico Buarque. 1998. 1CD.
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Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus24
Aqui o poeta está tomado com as impressionantes cenas que lhe geram um estranho prazer. Drummond descobre e cria versos que, simples como as personagens que assomam-se ante seus olhos, remetem-nos aos tempos imemoriais de nossos pais, avós ou de nós mesmos envoltos nos mistérios da inocência quase letárgica da vida besta. Esse encantamento do poeta processa a dilatação assombrosa de um tempo desplugado do veloz tempo urbano (um cachorro vai devagar...). Tudo repercute nesse tempo desacelerado a intensidade de um mundo menor, mas de nenhum outro modo desimportante. Duas afirmações sobre uma mesma cidade nos chegam para perceber que, de ângulos diferentes, porém percorrendo praticamente as mesmas entranhas, a visão do artista nos oferta cortes abruptos intensificadores de nosso modo de viver na cidade. O arquiteto Oscar Niemeyer sobre Brasília disse: “Espero que Brasília seja uma cidade de homens felizes; homens que sintam a vida em toda a sua plenitude, em toda a sua fragilidade”.25 E o poeta Nicholas Behr retruca em “Canta a tua quadra”: Blocos, eixos, Quadras Senhores, esta cidade É uma aula de geometria26
E Leminski esgarça o tecido poético em “Curitibas” extravasando sua desmesurada paixão pelo seu lugar de origem:
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Barbosa. 1988. p. 46. Kaq. 2002. Idem. p. 107.
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Conheço esta cidade Como a palma da minha pica. Sei onde o palácio sei onde a fonte fica. Só não sei da saudade A fina flor que fabrica. Ser, eu sei. Quem sabe, esta cidade me significa.27
Captamos a força do olhar e da fala, destilada sobre a cidade, mas com texturas diferentes. É o que nos permite pensar que a cidade, para além de suas complexidades e contradições, é lugar de muitos sentidos tensionados pelo lugar das vozes que nele vão se constituindo num retrato plurívoco, heterogêneo, próprio da vida complexa das cidades. Em inúmeras poéticas contemporâneas o entorno “move-se” em obra,28 tornando imprescindível o papel do espectador como elemento do processo artístico no fluxo criativo do cotidiano. Afirmando que a existência da cidade-obra prenhe de significações humanas, pressupõe modos de apreensão que de forma alguma se realiza num conceito mais tradicional de obra de arte. Assim como a paisagem nas pinturas tradicionais que apenas eram tomadas como pano de fundo das representações secundarizadas nas composições até o Impressionismo que a tomou como tema principal de suas obras. Até então, a cidade quedava-se como locus de obras escultóricas e arquitetônicas. Com as tendências contemporâneas do pós-guerra, mudou-se o status da cidade, deixando de ser apenas locus para ser elevada à condição de obra, sofrendo intervenções e interferências de diversas formas. Jean Pierre Keller discute o caminho que a arte tomou a partir das poéticas de inúmeros artistas que contribuíram para a ampliação da noção de arte. Keller abre seu ensaio dizendo que: “O cotidiano é esta parte do nosso meio físico e social que nos é mais próxima. Logo, menos visível, em princípio. Por si, ela não atrai a atenção, não se oferece ao olhar.”29 De um modo inusitado 27 28 29
Góes; Marins. (Org.). 1999. p. 168. Rosemberg. In: Battcock. 1986. p. 215 Keller. 1985. p.33
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é necessário entender a cidade como um objeto desconhecido que carece de um tempo de experimentação para ser apreendido em suas múltiplas fisionomias, daí o fato de que ela não atrai, não se oferece ao olhar. Keller cita o testemunho do artista americano Claes Oldemburg, em que este revela seu fascínio pelas ruas da América: “Elas parecem ter uma existência própria, e aí, eu descobria todo um mundo de objetos que me eram desconhecidos até então. Embalagens sem importância se transformam, aos meus olhos, em esculturas e vejo os refugos como sábias composições do acaso.”30 É nesse olhar para o inusual, o desprezível, que o pensamento artístico insurge, novo, ou pelo menos diferente. Nesse trânsito de autores, que logicamente não se esgota neste trabalho (ainda bem!), gostaríamos de trazer à tona um depoimento de Hélio Oiticica, um dos artistas brasileiros que muito contribuiu para sentidos novos da arte, na medida em que sempre pensou o ilimitado da prática artística, inesgotavelmente trabalhado naquilo que ela tem de mais transgressor, inclassificável e irredutível. Ele diz: Não existe pois o problema de saber se arte é isso ou aquilo ou deixa de ser – não há definição do que seja arte. Na minha experiência, tenho em programa e já iniciei o que chamo de ‘apropriações’: acho um ‘objeto’ ou ‘conjunto-objeto’ formado por partes ou não, e dele tomo posse como algo que possui para mim um significado qualquer, isto é, ‘transformo-o em obra’, […] pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc., e ao próprio conceito de ‘exposição’.31
Entendemos, assim, que as coisas do mundo com que o artista se depara nas ruas instalam, incondicionalmente, esse tomar a cidade na sua excrescência, nas suas feridas cotidianas. As imagens 30 31
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Idem. p. 34. Canton. 1997. p. 8
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citadas por Oiticica dão de alguma forma uma idéia de que o desbravamento processado pela arte são reveladores de lugares nunca d’antes transitados, no sentido de que é necessário esse adentramento, esse vasculhar dos sentidos sobre as profusões de imagens que a cidade se nos expõe, para chegarmos a algum significado de sua existência fugaz. Do mesmo modo como Baudelaire nos chama para esse “contemplar as paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol”, do mesmo modo a cidade contemporânea nos chama a um redescobrir em sua geografia física, na densidade de seu corpo nu, as imagens que lhe assomam a tez marcadamente experienciada. Por fim, uma última contribuição para a discussão de sentidos novos da arte contemporânea como ampliação de práticas outras que se afastam da institucionalidade do sistema tradicional de arte pode ser tomada das reflexões do artista americano Allan Kaprow, que num certo sentido serve de referência para o tipo de leitura que estamos empreendendo da cidade, na medida em que dialoga com um sentido de arte que está vincado no tempo contemporâneo. Em Formas do tempo, o crítico e artista plástico carioca Ricardo Basbaum discute uma inusitada proposta de Kaprow escrita a partir de sua trilogia: “A Educação do A-Artista”. Basbaum diz que para Kaprow “importa conservar os traços paradoxais desta possibilidade abandonando a reverência ao circuito institucional da arte.”32 O artista americano escreve sobre tal possibilidade: Digamos que eu me impressione com um desses aparelhos que se usam em lavanderias para levar as roupas para o banho de vapor. Flash! Enquanto as máquinas continuam automaticamente a introduzir uma peça de roupa na caldeira a cada 20 segundos, eu as torno também em um Ambiente Cinético – simplesmente porque pensei nisso e o escrevi aqui. [...] Arte é muito fácil de fazer hoje em dia.33
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Basbaum. 1998-1999. p. 46-57. Idem. p. 48.
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Esta postura para Kaprow é geradora de um novo sujeito denominado de UN-ARTIST (A-ARTISTA). Basbaum destaca acerca dessa questão um estado paradoxal da “dialética arte-não-arte”, que emplaca uma nova consciência do fazer a partir de um lugar mental. “Um estado de consciência tão agudo como este permite que o universo inteiro possa ser considerado pelos artistas como obra de arte”34, diz Kaprow. Para o crítico carioca, se percebe nessas colocações o campo dilatado gerado desde as contribuições de Duchamp, da vanguarda soviética e de Joseph Beuys, e que é resultante do próprio desenvolvimento da arte moderna e contemporânea ligando-se de um modo mais intenso com o objeto comum industrializado, com a produção de uma didática deselitizante ou com a transformação de todo mundo em artista, as operações da arte estenderam-se tanto para um ‘arrancarsignos-sensoriais-de-tudo’ como para a atividade complementar de ‘sobrepor-às-coisas-signos-verbais’ – ações realizáveis por todos: o mundo e a vida estão repletos de possibilidades sensoriais e narrativas jamais imaginadas e realizadas pelo campo convencional da arte.35
Esta afirmação afina-se com nossas reflexões sobre a cidade, enquanto atravessa a idéia tradicional da arte, concretizando-se num “arrancar-signos-sensoriais-de-tudo”, pois esses signos são a própria cidade reverberante, pautada numa prática que realiza tantos outros confrontos provocando diversas reações em espectadores que se negam a contemplá-la como um objeto estranho. E tomando uma outra expressão de Kaprow: “sobrepor-às-coisas-signosverbais”, equivale a tomar a cidade como um campo de perscrutação em que nossos delírios cotidianos caminham na perspectiva de cada vez mais colocar no contemporâneo outros tantos olhares que possam perceber a cidade com maior intensidade teórica. Esses possíveis olhares antagonizam as práticas mais tradicionais, mesmo que suas caracterizações radicalizem ao extremo aspecto 34 35
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Idem. p. 48/49. Basbaum, 1998-1999. p. 46-57.
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das poéticas contemporâneas, focalizam para o devir da cidade enquanto objeto artístico criado por mãos humanas e sujeita a infinitas intervenções. 2. A CIDADE E SEUS FRAGMENTOS CAÓTICOS Na ilogicidade da vida da cidade, todos os disparos são possíveis, na medida em que seu corpo é atravessado por diversos fluxos estéticos e artísticos, pois no âmbito da cultura e da arte contemporâneas vê-se inúmeros estudos, tal como fora mencionado anteriormente, em abordar a cidade levando em conta sua dimensão estética. Nesse sentido, o tecido urbano aparece como um dos campos privilegiados da incursão desses estudos. Portanto, elencar uma série de matérias e suas possíveis caracterizações se constitui numa estratégia de apreensão de seus sentidos, enquanto ensejam a necessidade de uma definição, e aqui a entendemos sob a designação de fragmentos caóticos. Tal definição tem referência na própria idéia da obra de arte enquanto construída por inúmeros elementos visuais: linhas, cores, texturas, superfícies, volumes, cortes, incisões etc., o que induz-nos a ver a cidade como um campo de possibilidades em que sua leitura pode ser dada por esses fragmentos caóticos, em vista de sua caracterização imagética: todas aquelas matérias em estado de apodrecimento ou caotização como resíduos, restos, feridas, que a cidade expunha, mas deflagradora de outros significados que a nosso ver constitui uma outra cidade em pleno dinamismo e mutabilidade. E na medida em que tal definição se articula na compreensão dessas matérias, nossa reflexão pode promover noções e sentidos novos para a leitura do objeto em questão. O estilhaçamento do espaço tradicional processado a partir do final do século XIX pela arte moderna permitiu a apreensão do real a partir da própria idéia de fragmentação como se viu desde o impressionismo até às vanguardas artísticas. O cubismo, por exemplo, em 1905, foi um dos principais movimentos a empreender uma visão do real tendo em vista sua fragmentação. Produziu uma espécie de dissecação do espaço geométrico renascentista em profusão, gerando a idéia de um novo espaço: plural, ambíguo e fragmentário. No mesmo ano em que Einstein publicava seus artigos sobre a teoria da
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relatividade, na medida em que os eventos acontecem na natureza de maneira diferente para observadores em lugares e velocidades diferentes. Uma outra interpretação do tempo e do espaço que o cubismo plasticamente se aproximou. Os inúmeros modos de apreender a realidade pelo cubismo sugerem a idéia de pequenas peças que se montam como um quebracabeças. A visão monoangular da realidade explode numa pluralidade de visões que permitem a apreensão do objeto por inúmeras visões e representações. Espaço e tempo percebidos de uma outra maneira. Assim, o lugar das partes no todo da obra tem cada vez mais importância assim como no modo de entendê-la. E esse entendimento pode ser definido na própria existência do fragmento, do resíduo, de estruturas que carregam em si potências discursivas, sentidos estéticos e socioculturais. E a cidade como obra é prenhe desses elementos. Assim, entendemos que as diversas matérias, os fragmentos que a cidade produz, como constituintes de sua fisionomia, definem uma identidade metamorfoseadora que caracteriza a existência da própria cidade contemporânea. 3. ‘CENÁRIOS EM RUÍNAS’36 A cidade pode ser tomada como um cenário complexo a viabilizar nossas percepções significativas do lugar, onde os fragmentos são os elementos dinamizadores da própria forma da cidade-obra. Encontramo-nos assim com inúmeras referências que Nelson Brissac Peixoto cria para encontrar a cidade e seus fragmentos caóticos. E na busca de um modo cada vez mais perceptivo de entender a cidade, atravessamos os dias que repercutem nas matérias que qualquer olhar mais atento pode registrar e que revelam uma outra cidade que emerge definida em seus fragmentos e resíduos. Brissac afirma a relação da arte com a cidade na busca de uma compreensão mais profunda dos sentidos e significados que são gerados nessa relação. Um dos lugares fundamentais desse diálogo são as ruínas. Ele diz que as ruínas 36
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Título do livro de Nelson Brissac Peixoto. 1987. p. 169.
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são o testemunho, vivido cotidianamente, da perda do mundo. O indivíduo fora do tempo, o sobrevivente, faz delas o seu lugar. Ele se reconhece nelas. A mistura de objetos quebrados e fragmentos arquitetônicos se parece muito com sua própria falta de unidade e história pessoal, são o espelho daquele que não tem rosto nem lugar. Refletem o seu vazio, sua confusão, seu deslocamento.37
Aqui o lugar do fragmento caótico e sua densidade significativa para um entendimento do contemporâneo reflete um deslocamento, enquanto a própria apreensão da cidade na sua dimensão estética reflete a condição do homem e sua relação com a cidade. Nesse sentido há um movimento que se constrói pela forma da cidade e seus elementos matéricos, inclusos aqueles caóticos ou quebrados, como observa Brissac. Não obstante, a idéia da relação entre a arte e a cidade, no confronto interdependente da produção de significados das relações mais complexas que o homem urbano instaura, nossa tomada de posição indica um entender o fragmento como matéria discursiva e expressiva de conteúdos variados em si, isto é, sem a mediação da obra de arte, mas sendo o espaço a própria arte, a cidade-obra dada por suas matérias. Daí que nossa relação com o fragmento configura esse reconhecer-se nele, na medida em que intensifica nossa relação com a cidade e os inúmeros fragmentos por ela gerados, constituindo aos poucos um retrato da cidade na exposição visual de suas feridas. É no seu inevitável processo de decadência que a história se revela estampada nas coisas e nos lugares. Esses restos perdidos servem para o homem sem identidade tentar se encontrar. É com ruínas do passado que aquele que chegou tarde demais pretende construir seu lugar.38 E desse encontro reconhecer o lugar e suas matérias, tudo o que parece desprezível. E compreender o próprio cotidiano no confronto com a história do lugar ativando os significados inerentes a esses fragmentos. Pode-se dizer que aquele que habita a cidade
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Peixoto. 1987. p. 169. Peixoto. 1996. p. 168.
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dá outro significado a essas coisas em decadência: as transforma em sinais pelos quais tenta nortear sua deriva. Procura mapear essas cidades arrasadas, descobrir objetos jogados fora, muitos ainda com as marcas de quem as possuiu, para reconstruir sua própria história.39
Desse modo o que se apresenta na busca de apreensão desses fragmentos é esse contar e revelar histórias e sentidos por trás dessas matérias. Significados intensos. Tal como na própria arte. Em Paisagens urbanas, Brissac diz ainda que cada obra de arte se apresenta como mero fragmento, uma minúscula peça arbitrariamente recortada de um tecido infinitamente mais amplo.40 E esse tecido tanto pode ser a cidade como o mundo, o universo41, cabendo aqui a possibilidade de interpretação de quem a ele recorre e que se mostra intenso e infinitamente necessário às descobertas dos fluxos da cidade e de seu modo de existência. Cidades feitas de fluxos, em trânsito permanente, sistema de interfaces. Fraturas que esgarçam o tecido urbano, desprovido de rosto e história. Mas esses fragmentos criam analogias, produzem inusitados entrelaçamentos. Um campo vazado e permeável através do qual transitam as coisas. Tudo se passa nessas franjas, nesses espaços intersticiais, nessas pregas.42
Esses fragmentos criam analogias, produzem inusitados entrelaçamentos, e quais são essas analogias e entrelaçamentos está no modo de lê-los, interpretá-los como respostas possíveis ao comportamento caótico da cidade enquanto produtora de sentidos estéticos passíveis de compreensão. E compreender a cidade como objeto, um objeto pleno de significações estéticas, nos leva a uma compreensão de nossa própria situação urbana dada pelos inusitados entrelaçamentos. Podemos ainda dizer que o que caracteriza de um modo específi39 40 41 42
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Idem. p. 169. Peixoto. 1996. p. 10. Sentido dado por Kaprow. Peixoto. 1996. p. 12.
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co os fragmentos caóticos são todos quanto apresentam um estado de deterioração, apodrecimento, corrosão, definidos como materialidade caótica. O caótico aqui tem sentido estético, pois reativa a densidade imagética do contexto em que se espraiam, e revelam um substancial sentido histórico, mais real e menos simulador, visto que a tendência da cultura contemporânea é velar as contradições inerentes a essas matérias. E a cidade é sempre um lugar complexo, dinâmico onde o corrosivo é pleno. E os fragmentos têm razão de ser a partir de suas verdades matéricas. Assim, o modo como entendemos os fragmentos caóticos no espaço da cidade-obra possibilita pensá-los como geradores desses sentidos estéticos que sua dimensão caótica supõe; diferentemente daquelas matérias que se distanciam de uma possível caotização, pois seu aspecto sugere outros significados que, se abordados a partir de uma outra definição produzem outros tantos sentidos necessários ao entendimento dos fenômenos. Daí a cidade estar profundamente enraizada nesse sentido de fragmento caótico, pois consubstancia significados novos, mas nem por isso conclusivos quanto à sua existência histórica. O modo com que processamos esses tantos entendimentos só é possível no seu diálogo com o contexto em que fora gerado. Portanto, suporta uma dimensão histórica que lhe dá sentido e, ao mesmo tempo, articula um diálogo com o contemporâneo. Os fragmentos caóticos insurgem de fato como elementos da cidade, do próprio tecido urbano. Constitui a fala da cidade no sentido desse estar ligado no corpo próprio da cidade. Não possui o sentido de produção de novos sentidos do espaço como intervenção de outrem (em geral, o artista), daquele que intervém como forma de reativação.43 Mas revela questionamentos e evidencia a própria constituição matérica e existencial das relações desenvolvidas na cidade: estruturas que reverberam no cotidiano. Daí os fragmentos caóticos serem uma possibilidade de leitura estética que interliga os diversos campos de ressonância das estruturas do espaço-cidade como obra na sua contingência histórica e sociocultural: terreno 43 Esta é outra possibilidade de leitura: a interface cidade-obras de arte, como propõe Brissac.
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baldio, restos de construções, um cavalo morto no meio da rua, a carcaça de um carro, pneus amontoados, um lixão, as palafitas na orla das cidades, um navio antigo afundado... Tudo o que os olhos podem tocar, olhos famintos de quem habita a cidade. Porque os olhos da cidade são deles. CONCLUSÃO Nesse cruzamento de referências que tomam a cidade de um lugar estetizante, constituímos aqui uma espécie de retrato fragmentário da cidade para dar ênfase ao modo como a cidade aparece pelas imagens-textos plenos de significações nos autores, poetas, artistas etc. O fragmentário aqui remete à própria condição da citação como estilhaços reflexivos aptos a intensificar o objeto de sentidos estéticos. Porém, as vozes-textos a que fizemos menção estão repletas de uma práxis vivencial de seus autores, marca de uma vivência urbana que revela a cidade. E de um certo lugar, tais vivências é que tornam a relação arte-mundo fundamentais, pois nelas se constituem os lugares mais recônditos do espírito do homem, filtrando e lendo o mundo através de imagens. A cidade-obra não tem o sentido de uma criação fechada numa forma homogênea, mas um campo experimental em que todos os diálogos, deslocamentos, intervenções são possíveis. Eis porque cada autor-leitor a submete a uma densidade imagética própria para que a vejamos em seus diversos perfis. E quanto mais a descobrimos, mais temos a descobrir pois sua mutabilidade matérica está em constante ebulição. A cidade é um organismo vivo em que suas leis intrínsecas nascem e morrem, se criam e recriam tornando sua forma deveras mutável. E esse corpo-forma é tomado de diversos lugares possíveis. Eis porque o pensamos a certa altura a partir dos fragmentos caóticos, vislumbrados como potência artística e estética. Com isso, nossa vivência do objeto-cidade se torna cada vez mais imprevisível e ao mesmo tempo rica, tal como fora exposto nas imagenstextos que atravessamos. E abrir-se para a obra-cidade na vivência cotidiana e pessoal de
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cada um de nós, é condição sine-qua-non para descobrirmos o mundo e nossa relação com ele, na busca de construção de nossa própria existência urbana e intensa.
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POBREZA E SAÚDE INFANTIL UMA ANÁLISE A PARTIR DOS DADOS DA POF E DA PNAD Maurício Reis Anna Crespo
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Este trabalho procura analisar como a saúde infantil é afetada pela pobreza. Existem diversos estudos, inclusive aplicados para o Brasil, mostrando que a renda é um importante determinante da saúde infantil. Neste trabalho, apresentamos evidências de que crianças pobres e, principalmente, crianças vivendo abaixo da linha de extrema pobreza tendem a ter piores condições de saúde. Crianças vivendo em domicílios pobres ou extremamente pobres apresentam estatura menos desenvolvida e menor peso – o que indica pior nutrição experimentada por estas crianças. Da mesma forma, elas tendem a ter pior saúde reportada pelos pais e mais dias doentes de cama, em média. Podemos concluir, a partir destes resultados, que melhorias nas condições nutricionais e de saúde das crianças vivendo na pobreza, especialmente daquelas na extrema pobreza, parecem fundamentais para a redução das disparidades nas condições de bem-estar.
This paper seeks to analyze the effect of poverty on children’s health. There are several studies, including some about the Brazilian case, which show that income seems to be one of the main determinants of children’s health. In this paper we provided evidence that children who live in poverty, especially those living in extreme poverty, are likely to have worse health conditions. They tend to be shorter and lighter, comparing to children in the same age group, and this fact is probably a result of worse nutrition provided to these children. Also, they are more likely to report worse health in general and to experience more days sick in bed on average. Therefore, we could conclude from these results that improvements in nutritional and health status of children living in poverty, in particular of those living in extreme poverty, are essential for reducing welfare disparities.
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1. INTRODUÇÃO Vários estudos revelam que uma elevada parcela da população brasileira vive na pobreza. Barros et al. (2007), por exemplo, mostram que em 2005 a proporção de pobres no Brasil era de 34,1% e a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza era de 13,2%.1 Certamente, as pessoas que se encontram nessas condições devem experimentar uma grande perda de bem-estar, devido a diversos fatores. Em particular, entre os fatores responsáveis pelo menor grau de bem-estar pode-se apontar as piores condições de saúde apresentadas por essas pessoas vivendo em domicílio com baixos níveis de renda familiar per capita. Diversas evidências na literatura econômica associam baixos níveis de renda com piores condições de saúde (Preston, 1975; Pritchett e Summers, 1996; Fogel, 1994 e 1997; Smith, 1999 e Case e Deaton, 2005). Pessoas mais pobres devem estar expostas a pior nutrição e piores condições de saúde, se tornando mais sujeitas a doenças, assim como devem ter menos acesso a serviços de saúde. Por outro lado, a própria precariedade da saúde pode levar a rendimentos mais baixos, já que a produtividade deve estar positivamente correlacionada com as condições de saúde e nutrição2. Evidências da correlação entre nutrição durante a infância e produtividade futura podem ser encontradas em Dasgupta (1993), Strauss e Thomas (1998) e Duflo (2000). Evidências de estudos voltados para saúde infantil também apontam para um impacto significativo da renda na saúde. Case, Lu-
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Para isso, são utilizadas linhas de pobreza regionalizadas, considerando R$ 162,6 a média nacional para a pobreza e R$ 81,3 a média para a extrema pobreza. 2 Case e Paxon (2006) mostram uma forte correlação positiva entre altura e rendimentos. O argumento das autoras é que, entre outros fatores, crianças que não foram bem nutridas durante a infância tendem a desenvolver menos suas habilidades cognitivas, se tornando no futuro trabalhadores menos produtivos. Isso significa que parte dos resultados encontrados pelas autoras vem da correlação entre nutrição na infância e do desenvolvimento de habilidades cognitivas.
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bostsky e Paxson (2002) encontram uma relação positiva entre renda familiar e condições de saúde para crianças de 0 a 17 anos nos EUA. Duflo (2000) mostra que programas de transferências de renda na África do Sul melhoraram a saúde (medida pela altura) das crianças de 0 a 5 anos, no caso das meninas e quando os benefícios foram recebidos por uma mulher. Para o Brasil, Hoffmann (1998, 2007) encontra evidências de que a renda da família tem estreita relação com o grau de insegurança alimentar dos indivíduos e de que a pobreza é um determinante fundamental do estado nutricional das crianças. Deve-se enfatizar ainda que, no caso das crianças, a pior saúde proporcionada pela renda baixa da família tem implicações ainda mais graves, pois, além da perda de bem-estar, essa situação pode comprometer o desempenho educacional dessas crianças. Como conseqüência disso, a produtividade dessas pessoas quando chegarem à idade adulta seria menor, aumentando a chance de permanecerem pobres. Machado (2007), por exemplo, apresenta evidências de que crianças em condições precárias de saúde tendem a entrar mais tarde na escola no Brasil e, com isso, acabam mais atrasadas do que crianças mais saudáveis. O objetivo desse trabalho é investigar como o fato de crianças viverem em condições de pobreza no Brasil influencia nas suas condições de saúde3. Para isso, são utilizados dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2002/2003 para crianças com idade entre 0 e 5 anos e do suplemento de saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2003 para crianças com idade entre 0 e 9 anos. A análise empírica consiste em comparar as medidas de saúde entre crianças em domicílios abaixo das linhas de pobreza e de extrema pobreza com crianças vivendo em domicílios cuja renda familiar per capita é maior do que a linha de pobreza. A POF oferece informações sobre peso e altura das crianças. Piores condições de saúde podem contribuir para que a criança apresente altura e peso menores quando comparadas a outras mais saudáveis
3 É importante mencionar que a pobreza no Brasil incide principalmente sobre as crianças. Barros (2007) mostra que a proporção de crianças em situação de extrema pobreza chega a quase 20%, o que é quase o dobro da média total do país.
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na mesma faixa etária. Assim sendo, medidas antropométricas, especialmente em países subdesenvolvidos, normalmente representam a forma mais objetiva de se acessarem as condições de saúde e nutrição em crianças menores de 5 anos (WHO, 1986)4. Por outro lado, com a Pnad, é possível obter informações que, embora apresentem determinado grau de subjetividade, estão mais diretamente relacionadas ao estado de saúde das crianças. Da Pnad, são utilizadas as seguintes variáveis: a saúde da criança reportada pelos pais ou responsáveis e o número de dias em que a criança ficou doente de cama no período de duas semanas anteriores à entrevista da Pnad. Os resultados mostram que crianças em domicílios pobres apresentam condições de saúde significativamente piores do que crianças vivendo em domicílio cuja renda familiar per capita é maior do que a linha de pobreza. Crianças em domicílios extremamente pobres apresentam condições de saúde ainda piores. Ou seja, crianças pobres e principalmente extremamente pobres normalmente possuem níveis de peso e altura menores, têm saúde reportada pior e ficam mais dias doentes, mesmo apesar de diversos outros fatores, como características individuais e dos pais. Desta forma, crianças que vivem em domicílios pobres tendem a ter pior saúde de acordo com os resultados apresentados neste trabalho. Além disso, crianças menos saudáveis tendem a ter pior desempenho escolar e a se tornarem adultos menos saudáveis, conforme mostram outros trabalhos na literatura. Estes dois últimos fatores, por sua vez, constituem conjuntamente determinantes significativos do desempenho no mercado de trabalho na vida adulta. Portanto, estas crianças que se encontram em desvantagem nutricional e de saúde serão provavelmente menos capazes de gerar renda quando adultos, permanecendo na pobreza no longo prazo. Sendo assim, este trabalho parece apresentar importantes implicações de política, ao identificar determinantes da persistência da pobreza ao longo do tempo. 4
Duflo (2000) argumenta que o déficit em desenvolvimento infantil em países subdesenvolvidos se deve a dois fatores principais: alimentação inadequada e infecções. Somente na adolescência é que fatores genéticos desempenham um papel importante.
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Este artigo está composto por três seções, além desta introdução. Na seção 2, são descritos os dados da POF e da Pnad utilizados neste estudo, e é feita uma análise descritiva comparando as medidas de saúde entre crianças pobres e não-pobres no Brasil, assim como entre crianças vivendo abaixo da linha de extrema pobreza e crianças vivendo acima dessa linha. A seção 3 apresenta uma análise de regressão que procura estimar o impacto da pobreza sobre as condições de saúde das crianças. As principais conclusões da nossa análise e uma discussão das suas implicações estão contidas na seção 4. 2. DADOS E ESTATÍSTICAS DESCRITIVAS 2.1 DADOS Os dados utilizados neste trabalho provêm de duas fontes: a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002/2003 e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2003, ambas realizadas pelo IBGE5. Através da POF, podemos utilizar medidas mais objetivas de saúde, como o peso e a altura das crianças. Embora medidas antropométricas constituam uma das melhores formas de avaliar as condições de saúde infantil, tanto no curto como no longo prazo, a análise se limita apenas a crianças de 0 a 5 anos de idade, conforme sugerido pela Organização Mundial de Saúde (WHO, 1986). Com os dados do Suplemento de Saúde da Pnad 2003, por outro lado, é possível utilizar outras medidas, como a saúde reportada pelos pais e o número de dias de cama nas duas semanas que precederam a entrevista. Essas medidas são utilizadas para mensurar a saúde das crianças de 0 a 9 anos, já que nesse caso não precisamos nos restringir às crianças mais novas como na análise das medidas antropométricas. Assim sendo, as amostras tanto da POF quanto da Pnad se limitam apenas a crianças mais novas. O corte de 9 anos feito na amostra da Pnad se deve ao problema de dupla causalidade entre saúde e renda. Ao mesmo tempo em que menos renda pode contribuir para uma 5 A POF é representativa da população brasileira como um todo. Já na Pnad, não são incluídas as áreas rurais da Região Norte, exceto para o Estado de Tocantins.
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saúde mais debilitada, através dos canais discutidos acima, também é possível que pior saúde implique rendimentos inferiores. Pessoas menos saudáveis são menos produtivas, e tendem a ter rendimentos mais baixos. Como trabalho infantil ainda constitui um problema relevante entre as crianças no Brasil, preferimos nos concentrar em crianças menores, que são menos prováveis de estarem participando do mercado de trabalho e contribuindo significativamente para a renda da família6. Neste trabalho, seguindo as recomendações da OMS, avaliamos a saúde das crianças na amostra da POF com a construção do z-score para a altura e para o peso, usando como população de referência crianças norte-americanas. A principal vantagem em se trabalhar com o z-score do peso e da altura, em vez de usar diretamente as medidas antropométricas das crianças, é que o z-score viabiliza a comparação entre diferentes idades; isto é, trata-se de uma medida cuja unidade independe da idade da criança considerada. Mais especificamente, o z-score da altura para a criança i é definido da seguinte maneira:
z-score (altura i) =
onde A é a altura da criança i, M é a mediana da altura para crianças americanas da mesma idade e mesmo sexo da criança i, e, finalmente, S é o coeficiente de variação da altura para a população de referência e L é o coeficiente de Box-Cox para remover a assimetria na distribuição da variável, também referente a crianças americanas da mesma idade e do mesmo sexo. A idade das crianças é medida em meses. O mesmo procedimento é empregado para o z-score do peso.
6 Menos de 1% das crianças entre 5 e 9 anos declarou participar do mercado de trabalho em 2003.
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Por outro lado, com os dados da Pnad, medimos saúde infantil com informações reportadas pelos pais ou outro respondente da pesquisa, em uma escala de 1 a 5. Nesta escala, 1 refere-se à saúde muito boa, 2 é relativo à saúde boa, 3 identifica a saúde como sendo regular e 4 e 5 referem-se à saúde ruim e muito ruim, respectivamente. Embora esse tipo de medida de saúde esteja sujeito a inúmeras críticas devido ao seu grau de subjetividade, existem diversos estudos mostrando que ela tende a ser consistente com outras medidas mais objetivas (Ware et al., 1978; Idler and Benyamini, 1997). A outra medida que utilizamos com a amostra da Pnad refere-se ao número de dias de cama nas duas semanas anteriores à entrevista. É possível, porém, que essas duas medidas estejam viesadas e correlacionadas com a renda. Entre famílias mais pobres pode haver menos casos de crianças reportadas como estando acamadas ou em piores condições de saúde por doenças não terem sido diagnosticadas, por exemplo. A definição das linhas de pobreza e de extrema pobreza utilizadas neste trabalho segue os valores computados por Barros et al. (2007)7 e deflacionados para janeiro de 2003 no caso da POF e para setembro de 2003 no caso da Pnad, que são os respectivos meses de referência destas pesquisas. Para a POF, os valores a serem utilizados são R$ 137,45 e R$ 68,72 para pobreza e extrema pobreza, respectivamente. Analogamente, para a análise dos dados da Pnad os valores utilizados são R$ 146,16 e R$ 73,07. A seguir, são apresentadas estatísticas descritivas comparando os grupos que vivem abaixo e acima das linhas de pobreza e extrema pobreza conforme definidas acima. 2.2 ESTATÍSTICAS DESCRITIVAS Os gráficos abaixo apresentam algumas das estatísticas básicas desta análise. De acordo com o esperado, podemos observar que crianças vivendo abaixo da linha de pobreza têm condições bem inferiores de saúde. Elas têm, em média, menor estatura e menos 7 Para uma discussão mais detalhada sobre o uso de diferentes linhas de pobreza na análise de condições nutricionais das crianças, veja Hoffman (1998).
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peso. Da mesma forma, identificamos uma pior saúde reportada pelos pais, assim como mais dias doentes de cama, em média. Condições ainda piores são observadas para as crianças vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, com a ampliação do diferencial em relação às crianças não-pobres.
Os gráficos 1 e 2 mostram comparações dos z-scores do peso e da altura para crianças extremamente pobres, moderadamente pobres e não-pobres. O z-score médio do peso para crianças vivendo abaixo da linha de extrema pobreza é -0,87 e para as moderadamente pobres esse valor é igual a -0,33. Já para as crianças não-pobres o z-score médio do peso é 0,20. Esses resultados indicam que as crianças vivendo na pobreza não só são menos pesadas do que o grupo de não-pobres vivendo no Brasil como também apresentam, em média, piores condições de nutrição do que a mediana do grupo de referência, conforme esperado. As mesmas conclusões se aplicam à estatura, que avalia mais apropriadamente as condições nutricionais de longo prazo. As crianças extremamente pobres apresentam uma desvantagem extremamente acentuada em relação ao grupo de re-
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ferência (-1,14), enquanto para as crianças moderadamente pobres o z-score médio da altura é -0,61. Os não-pobres, por outro lado, apresentam somente uma pequena desvantagem (-0,12). Ao fazer a comparação de peso e altura por faixas de idade (nos gráficos 3 e 4), observamos exatamente o mesmo resultado, isto é, as crianças mais pobres tendem de fato a ser menos desenvolvidas. É interessante notar aqui que parece haver um aumento do diferencial de altura ao longo do tempo. Ou seja, ao compararmos crianças mais novas, o diferencial entre crianças pobres e não-pobres é menor do que quando comparamos as crianças mais velhas. Isso provavelmente se deve ao fato de que as condições de saúde são cumulativas, de acordo com os resultados de Case, Lubotsky e Paxon (2002) e Currie e Stabile (2003) para os Estados Unidos e para o Canadá, respectivamente. Apesar da diferença ao nascer ser pequena entre pobres e não-pobres, a pior nutrição e mais casos de doenças não tratadas apropriadamente no primeiro grupo podem contribuir para uma crescente desvantagem em relação ao grupo com melhores condições de renda.
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Os gráficos de 5 a 8 referem-se aos dados da Pnad. Mais uma vez é possível identificar a desvantagem na saúde experimentada pelas crianças vivendo em domicílios de mais baixa renda. Notase que as crianças vivendo na pobreza, e principalmente aquelas vivendo na extrema pobreza, têm saúde reportada pior do que as crianças do grupo cuja renda familiar per capita é superior à linha de pobreza (gráfico 5). Quando analisamos a média do número de dias de doente de cama, notamos que a média é menor para crianças vivendo acima da linha de pobreza (gráfico 6). No entanto, crianças moderadamente pobres apresentam condições piores do que crianças na extrema pobreza. Esse resultado pode ser um indício de que crianças muito pobres podem não ter suas doenças propriamente identificadas e tratadas, ou simplesmente não terem condições de ficarem de cama, pois elas podem estar dando assistência aos seus pais e/ou outros membros do domicílio em casa. Se isso é verdade, as crianças pobres, que vivem em privações de boa nutrição, podem também estar sofrendo privações de tratamento quando necessário. Desta forma, elas acabam se desenvolvendo mais lentamente ao longo da vida, uma vez que a falta de nutrição adequada deve levar a mais episódios de doença e com mais severidade, que podem estar sendo negligenciados e não receberem o tratamento apropriado. Vale também destacar que, embora seja claramente observada uma ampliação da diferença de peso e altura ao longo do tempo, o mesmo não parece ocorrer com a saúde reportada e com o número de dias de cama, conforme mostrado nos gráficos 7 e 8. Esse resultado, provavelmente, se deve ao fato de que essas medidas são subjetivas e dependem da percepção dos pais ou responsáveis que reponderam ao questionário8.
8
Para uma discussão mais detalhada sobre o aumento da desigualdade nas medidas de saúde ao longo da vida das crianças, veja Case et al (2002) e Currie e Stabile (2003).
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3. ANÁLISE ECONOMÉTRICA 3.1 METODOLOGIA O passo seguinte deste trabalho é fazer uma análise utilizando regressões e desta forma mensurar o impacto da pobreza na saúde infantil. A saúde das crianças pode ser fortemente influenciada pela renda familiar, mas este certamente não é o único determinante. Inúmeros outros fatores podem ajudar a explicar a saúde, incluindo fatores que não podem ser considerados nesta análise. De uma forma geral, a saúde poderia ser expressada como uma função da condição de renda do domicílio, características individuais e do domicílio onde vivem, e outros fatores. Assim sendo, temos o seguinte modelo:
onde Si seria uma das medidas discutidas acima, isto é, z-score do peso ou da altura, saúde reportada ou o número de dias que a criança passou acamada em algum momento entre as duas semanas anteriores à entrevista. Yi é uma medida de pobreza, sendo medida por dummies com valor igual a 1 se a criança vive abaixo da linha de (extrema) pobreza, e zero caso contrário. Também apresentamos resultados utilizando a renda familiar per capita em vez de uma variável que indica a presença ou não do domicílio abaixo da linha de pobreza. Xi é um vetor de caraterísticas individuais e do domicílio, incluindo a idade, o sexo e a raça da criança, assim como características dos pais (idade, escolaridade e presença no domicílio) e a região em que vivem. Finalmente, ει representa o erro das respectivas regressões. Para cada medida de saúde, diferentes modelos de regressão são estimados. Todas as regressões estimadas com dados da POF 2002/2003 utilizaram modelos de regressão linear através do método de Mínimos Quadrados Ordinários. Por outro lado, para a estimação dos modelos usando dados da Pnad utilizamos um probit ordenado.
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3.2 RESULTADOS As tabelas a seguir apresentam os resultados do modelo econométrico, em que diferentes medidas de saúde são regredidas em variáveis explicativas comuns, conforme descrito acima. As duas primeiras tabelas usam como variável dependente o z-score do peso e da altura, respectivamente. As tabelas seguintes usam primeiramente a saúde reportada, e em seguida o número de dias de cama. A tabela 1, portanto, analisa o impacto da pobreza sobre o peso das crianças. Podemos observar na coluna (1) que o fato de a criança estar em um domicílio abaixo da linha de pobreza implica uma redução do z-score do peso em aproximadamente 0,20 unidade. A dummy para crianças em domicílios extremamente pobres também apresenta coeficiente negativo (-0,37) e estatisticamente significativo, como mostra a coluna (2). Na coluna (3), nota-se que o z-score para o peso das crianças vivendo em extrema pobreza é menor do que para crianças não-pobres. No entanto, comparando crianças moderadamente pobres, ou seja, com renda familiar maior do que a linha de extrema pobreza e menor do que a linha de pobreza, com as não-pobres, não são encontradas diferenças significativas. Finalmente, a coluna (4) da tabela 1 apresenta o resultado de uma regressão que inclui o logaritmo da renda familiar per capita como variável explicativa. Podemos perceber que quanto mais alta a renda, isto é, quanto mais longe da pobreza, maior é o z-score do peso. Ou seja, quanto mais alta a renda, melhores são as condições nutricionais das crianças. Na tabela 2, a variável dependente é o z-score da altura. A coluna (1) mostra que a diferença de altura entre crianças pobres e nãopobres é negativa e significativa para o nível de 10%. Na coluna (2), também podemos perceber que as crianças na extrema pobreza são menores do que as crianças em domicílios cuja renda familiar per capita é maior do que a linha de extrema pobreza, em média. A diferença no z-score entre esses dois grupos foi estimada em 0,38 unidades, controlando para os demais fatores.
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TABELA 1 RELAÇÃO ENTRE POBREZA E PESO DAS CRIANÇAS
Pobre
(1) -0.1923 [0.0626]***
Pobre mas não extremamente
(2)
(3)
-0.097 [0.0633] -0.3677 -0.4265 [0.0829]*** [0.0930]***
Extremamente pobre Log da renda domiciliar per capita Idade (meses) Mulher Negro Asiático Pardo Indígena Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Outras crianças de 0 a 4 anos Outras crianças de 5 a 9 anos Outras crianças de 10 a 14 anos Número de pessoas no domicílio Pai que mora no domicílio
0.0046 [0.0022]** 0.0163 [0.0564] -0.2388 [0.1850] 0.2775 [0.2717] -0.1443 [0.0574]** -0.7062 [0.2112]*** 0.195 [0.0599]*** 0.4556 [0.0893]*** 0.3558 [0.0770]*** 0.3157 [0.0746]*** -0.2023 [0.0662]*** -0.1658 [0.0621]*** -0.0858 [0.0727] -0.014 [0.0428] -0.2373 [0.1800]
0.0046 [0.0022]** 0.0246 [0.0561] -0.2731 [0.1845] 0.268 [0.2692] -0.1464 [0.0569]** -0.6918 [0.2151]*** 0.2236 [0.0595]*** 0.461 [0.0887]*** 0.354 [0.0770]*** 0.3176 [0.0745]*** -0.1948 [0.0666]*** -0.146 [0.0605]** -0.0789 [0.0712] -0.0148 [0.0426] -0.2262 [0.1778]
0.0045 [0.0022]** 0.022 [0.0561] -0.2606 [0.1841] 0.2716 [0.2669] -0.1429 [0.0571]** -0.6995 [0.2135]*** 0.2278 [0.0596]*** 0.4486 [0.0889]*** 0.3425 [0.0773]*** 0.3121 [0.0747]*** -0.1853 [0.0664]*** -0.1407 [0.0606]** -0.0753 [0.0715] -0.0144 [0.0427] -0.205 [0.1791]
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(4)
0.2278 [0.0492]*** 0.0043 [0.0022]** 0.0135 [0.0556] -0.2041 [0.1712] 0.2911 [0.2654] -0.1279 [0.0569]** -0.7283 [0.2145]*** 0.2286 [0.0605]*** 0.4282 [0.0893]*** 0.3279 [0.0781]*** 0.3056 [0.0747]*** -0.1808 [0.0684]*** -0.1396 [0.0628]** -0.0718 [0.0723] -0.0068 [0.0420] -0.0925 [0.1844]
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Mãe mora no domicílio Educação do pai (se presente) Educação da mãe (se presente) Idade do pai (se presente) Idade da mãe (se presente) Constante Número de Observações R2
-0.7256 -0.7625 -0.7313 -0.49 [0.2653]*** [0.2625]*** [0.2640]*** [0.2635]* 0.009 0.01 0.0084 -0.003 [0.0111] [0.0110] [0.0111] [0.0120] 0.0424 0.0424 0.0401 0.0293 [0.0118]*** [0.0116]*** [0.0118]*** [0.0115]** 0.0094 0.0091 0.0087 0.0074 [0.0048]** [0.0047]* [0.0048]* [0.0048] 0.0122 0.0132 0.0129 0.0101 [0.0048]** [0.0048]*** [0.0048]*** [0.0048]** 0.0485 0.0052 0.0151 -1.3848 [0.2599] [0.2574] [0.2576] [0.3830]*** 10923 10923 10923 10923 0.09 0.1 0.1 0.1
Fonte: POF 2002/2003 Nota: Modelo de regressão linear, onde a variável dependente é o z-score do peso. Foram incluídas crianças de 6 a 59 meses de idade. Erro padrão robusto entre parênteses.* significante a 10%, ** significante a 5%, *** significante a 1%.
TABELA 2 RELAÇÃO ENTRE POBREZA E ALTURA DAS CRIANÇAS (1) Pobre
(2)
(3)
-0.3822 [0.1214]***
-0.072 [0.1064] -0.4258 [0.1461]***
Pobre mas não extremamente Extremamente pobre Log da renda domiciliar per capita Idade (meses) Mulher Negro Asiático Pardo Indígena
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(4)
-0.1743 [0.1059]*
0.0136 [0.0027]*** 0.2041 [0.0852]** -0.4221 [0.2553]* 0.0014 [0.3456] 0.1106 [0.1024] -0.8354 [0.4434]*
0.0135 [0.0027]*** 0.2121 [0.0852]** -0.4548 [0.2585]* -0.0076 [0.3427] 0.1094 [0.1023] -0.8225 [0.4482]*
0.0135 [0.0027]*** 0.2102 [0.0851]** -0.4456 [0.2562]* -0.0049 [0.3428] 0.112 [0.1021] -0.8283 [0.4477]*
0.2666 [0.0585]*** 0.0133 [0.0027]*** 0.1996 [0.0849]** -0.3757 [0.2568] 0.0191 [0.3518] 0.1319 [0.1025] -0.8654 [0.4461]*
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Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Outras crianças de 0 a 4 anos Outras crianças de 5 a 9 anos Outras crianças de 10 a 14 anos Número de pessoas no domicílio Pai que mora no domicílio Mãe que mora no domicílio Educação do pai (se presente) Educação da mãe (se presente) Idade do pai (se presente) Idade da mãe (se presente) Constante Número de Observações R2
0.4285 [0.0843]*** 0.3732 [0.1306]*** 0.5401 [0.1141]*** 0.3724 [0.1141]*** 0.131 [0.1433] -0.1601 [0.0993] 0.052 [0.1411] -0.0903 [0.1175] 0.0404 [0.3128] -0.7703 [0.3723]** 0.0185 [0.0146] 0.0478 [0.0158]*** 0.0054 [0.0064] 0.0102 [0.0079] -0.7453 [0.3343]** 10923
0.4606 [0.0852]*** 0.3749 [0.1315]*** 0.5343 [0.1130]*** 0.3726 [0.1139]*** -0.1197 [0.1463] -0.137 [0.0999] 0.0607 [0.1409] -0.0911 [0.1176] 0.0593 [0.3093] -0.7996 [0.3694]** 0.0191 [0.0142] 0.047 [0.0156]*** 0.005 [0.0063] 0.0111 [0.0078] -0.7885 [0.3339]** 10923
0.4638 [0.0858]*** 0.3656 [0.1298]*** 0.5257 [0.1136]*** 0.3685 [0.1139]*** -0.1127 [0.1435] -0.1331 [0.0991] 0.0634 [0.1402] -0.0908 [0.1179] 0.0751 [0.3103] -0.7764 [0.3719]** 0.0179 [0.0145] 0.0454 [0.0158]*** 0.0047 [0.0063] 0.0109 [0.0079] -0.7812 [0.3338]** 10923
0.4726 [0.0851]*** 0.3333 [0.1313]** 0.4997 [0.1130]*** 0.3571 [0.1136]*** -0.099 [0.1467] -0.1246 [0.1003] 0.0713 [0.1425] -0.0817 [0.1191] 0.2246 [0.3104] -0.4765 [0.3702] 0.0035 [0.0148] 0.031 [0.0158]** 0.0028 [0.0064] 0.0076 [0.0080] -2.4193 [0.5026]*** 10923
0.05 0.05 0.05 0.06 Fonte: POF 2002/2003 Nota: Modelo de regressão linear, onde a variável dependente é o z-score da altura. Foram incluídas crianças de 6 a 59 meses de idade. Erro padrão robusto entre parênteses.* significante a 10%, ** significante a 5%, *** significante a 1%.
Notamos na coluna (3) que as diferenças não são estatisticamente significativas entre crianças moderadamente pobres e não-pobres, enquanto o z-score das crianças na extrema pobreza é menor em 0,42 quando comparado ao de crianças em domicílios com renda familiar per capita superior à linha de pobreza. De acordo com a equação estimada na coluna (4), aumentos na renda familiar per
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capita implicam aumentos na altura das crianças. Portanto, quanto mais distante da pobreza, maior é o z-score da altura, mostrando que viver na pobreza pode ter implicações de longo prazo nas condições nutricionais e físicas das crianças. TABELA 3 RELAÇÃO ENTRE POBREZA E PRECARIEDADE NA SAÚDE DAS CRIANÇAS (1) Pobre
(2)
(3)
0.0463 [0.0138]***
0.1585 [0.0143]*** 0.155 [0.0170]***
Pobre mas não extremamente Extremamente pobre Log da renda familiar per capita Idade (meses) Mulher Negro Asiático Pardo Indígena Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Outras crianças de 0 a 4 anos Outras crianças de 5 a 9 anos Outras crianças de 10 a 14 anos
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(4)
0.1575 [0.0136]***
0.0064 [0.0020]*** -0.0426 [0.0103]*** -0.0509 [0.1237] 0.0392 [0.0267] 0.0824 [0.1286] 0.0659 [0.0118]*** -0.3128 [0.0152]*** -0.4472 [0.0161]*** -0.3008 [0.0190]*** -0.2895 [0.0187]*** -0.024 [0.0112]** -0.0301 [0.0108]*** -0.0424 [0.0119]***
0.006 [0.0020]*** -0.0428 [0.0103]*** -0.0506 [0.1216] 0.0494 [0.0267]* 0.0875 [0.1281] 0.0738 [0.0118]*** -0.3095 [0.0154]*** -0.4578 [0.0160]*** -0.3143 [0.0190]*** -0.2983 [0.0187]*** -0.0166 [0.0114] -0.0238 [0.0109]** -0.0369 [0.0119]***
0.0064 [0.0020]*** -0.0426 [0.0103]*** -0.0505 [0.1237] 0.0393 [0.0267] 0.0826 [0.1286] 0.0659 [0.0118]*** -0.3122 [0.0154]*** -0.4473 [0.0161]*** -0.3009 [0.0190]*** -0.2897 [0.0187]*** -0.0236 [0.0114]** -0.0298 [0.0109]*** -0.0421 [0.0119]***
-0.1237 [0.0071]*** 0.0069 [0.0020]*** -0.0421 [0.0103]*** -0.0795 [0.1252] 0.0296 [0.0267] 0.098 [0.1290] 0.0599 [0.0118]*** -0.3365 [0.0153]*** -0.4441 [0.0160]*** -0.2991 [0.0190]*** -0.2795 [0.0187]*** -0.0406 [0.0113]*** -0.0443 [0.0108]*** -0.0556 [0.0119]***
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Número de pessoas no domicílio Pai que mora no domicílio Mãe que mora no domicílio Educação do pai (se presente) Educação da mãe (se presente) Idade do pai (se presente) Idade da mãe (se presente)
Número de Observações
0.0288 [0.0080]*** 0.1114 [0.0340]*** 0.0735 [0.0565] -0.0129 [0.0017]*** -0.0211 [0.0017]*** -0.0035 [0.0008]*** -0.0038 [0.0010]***
0.0306 [0.0081]*** 0.1291 [0.0339]*** 0.1152 [0.0563]** -0.0163 [0.0017]*** -0.0248 [0.0017]*** -0.004 [0.0008]*** -0.0045 [0.0010]***
0.0288 [0.0080]*** 0.1113 [0.0340]*** 0.0739 [0.0565] -0.0129 [0.0017]*** -0.0212 [0.0017]*** -0.0035 [0.0008]*** -0.0038 [0.0010]***
0.0296 [0.0080]*** 0.0925 [0.0341]*** 0.0205 [0.0567] -0.0087 [0.0018]*** -0.016 [0.0017]*** -0.0028 [0.0008]*** -0.003 [0.0010]***
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Nota: Modelo Probit Ordenado, onde a variável dependente é a saúde reportada (1= muito boa, 2=boa, 3=regular, 4=ruim, 5=muito ruim). Foram incluídas crianças de 0 a 9 anos de idade. Erro padrão robusto entre parênteses.* significante a 10%, ** significante a 5%, *** significante a 1%.
Os resultados apresentados nas tabelas 1 e 2 , utilizando dados da POF, indicam que crianças que vivem na pobreza, principalmente em condições de extrema pobreza, tendem a apresentar piores condições de nutrição. Tanto o z-score do peso quanto o z-score da altura, que reflete condições nutricionais de longo prazo, são significativamente menores para crianças em domicílios cuja renda familiar per capita está abaixo da linha de extrema pobreza. As tabelas 3 e 4 mostram resultados estimados a partir dos dados da Pnad. Na tabela 3, a variável dependente é uma medida da saúde de crianças com idade entre 0 e 9 anos reportada pelos pais ou responsáveis. Essa medida varia de 1, que indica uma saúde muito boa, até 5, que se refere a uma saúde muito ruim. Na coluna (1), o resultado sugere que crianças pobres tendem a ter saúde reportada como pior do que as crianças não-pobres. Resultado semelhante é encontrado na coluna (2) para crianças extremamente pobres em relação àquelas cuja renda familiar per capita é maior do que a linha de extrema pobreza. Como podemos perceber na coluna (3), os coeficientes das dummies indicando pobreza moderada e extrema pobreza são ambos positivos e significativos, e seus valores bastante semelhantes. Esse resultado sugere que crianças pobres apresentam
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piores condições de saúde do que crianças não-pobres, mas não parece haver diferença quando são comparadas crianças moderadamente pobres com aquelas na extrema pobreza. De acordo com a coluna (4), aumentos na renda familiar per capita levam a uma melhor saúde reportada para as crianças. Na tabela 4, a variável dependente passa a ser a do número de dias de doente de cama para a criança durante o período de duas semanas antes da entrevista da Pnad. Ou seja, caso a criança não tenha ficado doente, esta variável assume valor igual a zero. O número de dias de doente de cama é maior para crianças pobres, de acordo com o resultado na coluna (1). Já comparando crianças em domicílios extremamente pobres com as demais, não são encontradas diferenças estatisticamente significativas como mostra a coluna (2). Este resultado pode ser derivado do fato de que crianças vivendo na extrema pobreza têm menos condições de ficar de cama por terem atividades para desempenhar no domicílio ou por não terem as suas doenças propriamente diagnosticadas. TABELA 4 RELAÇÃO ENTRE POBREZA E DIAS DE CAMA DAS CRIANÇAS (1) Pobre
(2)
(3)
0.0298 [0.0265]
0.1142 [0.0269]*** 0.1092 [0.0322]***
Pobre mas não extremamente Extremamente pobre Log da renda domiciliar per capita Idade (meses) Mulher Negro Asiático Pardo
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(4)
0.1128 [0.0257]***
-0.0174 [0.0038]*** -0.0241 [0.0196] 0.0527 [0.2453] -0.0704 [0.0501] 0.1499 [0.1986]
-0.0178 [0.0038]*** -0.0243 [0.0196] 0.0559 [0.2435] -0.0633 [0.0501] 0.1565 [0.1985]
-0.0174 [0.0038]*** -0.0241 [0.0196] 0.0533 [0.2454] -0.0703 [0.0501] 0.1501 [0.1986]
-0.0651 [0.0129]*** -0.0172 [0.0038]*** -0.0236 [0.0197] 0.0417 [0.2449] -0.0719 [0.0502] 0.1594 [0.1987]
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Indígena Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Outras crianças de 0 a 4 anos Outras crianças de 5 a 9 anos Outras crianças de 10 a 14 anos Número de pessoas no domicílio Pai que mora no domicílio Mãe que mora no domicílio Educação do pai (se presente) Educação da mãe (se presente) Idade do pai (se presente) Idade da mãe (se presente) Número de Observações
-0.0208 [0.0229] -0.1724 [0.0289]*** -0.212 [0.0311]*** -0.1161 [0.0359]*** -0.1863 [0.0364]*** -0.0736 [0.0230]*** -0.0199 [0.0215] -0.0042 [0.0239] -0.0096 [0.0160] 0.0098 [0.0643] 0.2153 [0.1071]** 0.0054 [0.0034] -0.0021 [0.0033] -0.001 [0.0015] -0.0033 [0.0018]* 60900
-0.0148 [0.0230] 0.1694 [0.0292]*** -0.2194 [0.0311]*** -0.1255 [0.0358]*** -0.1924 [0.0364]*** -0.0675 [0.0233]*** -0.0151 [0.0217] 0.0004 [0.0241] -0.0083 [0.0160] 0.0236 [0.0643] 0.247 [0.1069]** 0.0029 [0.0034] -0.0049 [0.0032] -0.0014 [0.0015] -0.0039 [0.0018]** 60900
-0.0208 [0.0229] -0.1715 [0.0292]*** -0.2121 [0.0311]*** -0.1163 [0.0359]*** -0.1866 [0.0364]*** -0.073 [0.0233]*** -0.0194 [0.0217] -0.0038 [0.0241] -0.0097 [0.0160] 0.0097 [0.0643] 0.2158 [0.1072]** 0.0054 [0.0034] -0.0021 [0.0033] -0.001 [0.0015] -0.0033 [0.0018]* 60900
-0.0221 [0.0230] -0.1811 [0.0292]*** -0.2111 [0.0311]*** -0.1164 [0.0358]*** -0.1816 [0.0364]*** -0.0791 [0.0232]*** -0.0253 [0.0217] -0.0088 [0.0241] -0.0095 [0.0160] 0.0062 [0.0644] 0.1971 [0.1073]* 0.0069 [0.0034]** -0.0002 [0.0033] -0.0008 [0.0015] -0.003 [0.0018]* 60900
Nota: Modelo Probit Ordenado, onde a variável dependente é o número de dias de cama. Foram incluídas crianças de 0 a 9 anos de idade. Erro padrão robusto entre parênteses.* significante a 10%, ** significante a 5%, *** significante a 1%.
A coluna (3) da tabela 4 mostra que crianças extremamente pobres, assim como as moderadamente pobres, apresentam maior chance de ficarem doentes de cama do que crianças vivendo em domicílios com renda familiar per capita maior do que a linha de pobreza, mas não existe uma diferença significativa entre estar na pobreza moderada ou extrema. Além disso, quanto maior a renda per capita da
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família, menor a chance de crianças no domicílio ficarem doentes de cama, conforme mostra a coluna (4). 4. CONCLUSÃO A relação entre renda e condições de saúde é um tema que vem sendo bastante explorado na literatura econômica, principalmente nos últimos anos. Os resultados empíricos, de uma forma geral, mostram que a renda tem um papel fundamental na determinação da saúde das crianças. Esse impacto da renda na saúde deriva-se de diversos canais, incluindo o acesso à boa nutrição e melhores condições de vida, além do acesso a serviços de saúde. Neste artigo, procuramos investigar para o Brasil a conseqüência de uma criança viver na pobreza sobre as suas condições de saúde. Usamos duas bases de dados para implementar essa análise, a POF e a Pnad. A análise empírica consistiu em estimar os impactos de variáveis dummy indicando se a criança vive em um domicílio com renda familiar per capita abaixo das linhas de pobreza e de extrema pobreza sobre diferentes medidas de saúde, incluindo uma série de variáveis de controle. Resultados obtidos neste trabalho mostram que crianças em domicílios pobres têm, em média, condições de saúde piores do que crianças cuja renda familiar per capita é maior do que a linha de pobreza. Em particular, quando analisamos o peso e a altura, inferimos que as condições nutricionais de crianças vivendo na pobreza, em especial na extrema pobreza, são significativamente piores. Além disso, verificamos também, com a análise dos dados da Pnad, que crianças pobres tendem a ter pior saúde do que as crianças não-pobres. Crianças menos saudáveis tendem a ter pior desempenho na escola e a se tornarem futuramente trabalhadores menos qualificados. A desvantagem no mercado de trabalho para essas crianças pode ser ainda ampliada, já que piores condições de saúde na infância podem persistir ou até se intensificarem na vida adulta. Adultos com pior saúde também são menos produtivos e, portanto, menos capazes de auferir renda no mercado de trabalho. Os resultados aqui apresentados, portanto, têm implicações importantes para a definição de políticas públicas. Na medida em
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que aumentos na renda levam a melhores condições de saúde, políticas de transferências de renda para crianças em condições de pobreza, como o Bolsa-Família, podem gerar benefícios tanto no curto quanto no longo prazo, desde que não influenciem negativamente as decisões de oferta de trabalho dos pais ou de outras pessoas no domicílio. Além disso, transferências de renda condicionadas na utilização dos serviços médicos oferecidos gratuitamente, que podem ajudar a prevenir e tratar problemas que afetam essas crianças, podem possivelmente ajudar a reduzir as diferenças nas condições de saúde entre pobres e não-pobres. Os resultados sugerem, porém, que apesar da oferta gratuita de serviços de saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS), as crianças mais pobres apresentam piores condições, indicando que os serviços privados de saúde possuem qualidade muito superior à dos serviços públicos.
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A SOCIEDADE INDUSTRIAL E SUAS VULNERABILIDADES Sergio Elias Couri
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O presente artigo percorre as vulnerabilidades da sociedade industrial, inicialmente relacionadas com o modo de produção capitalista, mas pouco a pouco apresentadas em escopo mais abrangente, que passou a incluir a própria sociedade industrial, em suas diversas manifestações, como unidade de análise. Ao tema tradicional da exploração do homem pelo homem, agregaram-se os de sua alienação e despersonalização numa sociedade de massas, bem como, mais recentemente, os relacionados com direitos humanos e meio ambiente. Em meio a suas vulnerabilidades, a sociedade industrial nunca deixou, contudo, de evidenciar sustentabilidade, especialmente em decorrência do surto tecnológico de meados do século XIX. Entretanto, as últimas décadas lançaram sombras sobre a contínua dialética da sociedade industrial com suas próprias contradições, como no caso da manutenção dos ritmos históricos de crescimento econômico, de solução dos problemas das massas e do agravamento da crise ambiental.
This article slides across the vulnerabilities of industrial society initially related to the capitalist mode of production, but little by little presented in a more comprehensive scope, which came to include the industrial society itself, as an unit of analysis. Matters like man alienation or depersonalization in a mass society were made to join the traditional theme of exploitation of man by man himself. Same occurred with more recent issues related with human rights and environment. At grips with its shortcomings, the industrial society, however, never failed to display sustainability, especially as a consequence of the technological outbreak of the mid-XIX century. Nevertheless, last decades have launched shadows over the continuous dialectics between industrial society and its own contradictions, as in the case of maintenance of historic rhythms of economic growth, of solution of the problems of masses and of the aggravation of environmental crisis.
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1. REAÇÕES HISTÓRICAS À SOCIEDADE INDUSTRIAL Historicamente, as manifestações contrárias à sociedade industrial estiveram associadas ao modo de produção capitalista, a suas relações de produção, uma vez identificados procedimentos específicos pelos quais o capitalismo industrial, e não o industrialismo em si mesmo, perpetuava a eterna espoliação do homem pelo homem. Ricardo foi o primeiro a identificar notas dissonantes no concerto capitalista, ao sustentar que a maior procura por terras ou trabalho rural por parte da classe burguesa e proletária faria aumentar o preço destes, igualando os de maior aos de menor produtividade, e promoveria mais-valia em favor da classe fundiária. Além disso, a mesma pressão exercida pelas pessoas sobre a terra, pressão esta que reduzia os salários, tinha o efeito de aumentar os aluguéis. Assim, em sua concepção, aos ganhos de uma classe corresponderiam necessariamente perdas de outra, numa espécie de jogo de soma zero em que inexistiria a possibilidade de ganhos para todos os conjuntos de atores envolvidos no jogo econômico. Seguir-se-lhe-ia Malthus, para quem o aumento da população em progressão geométrica, em contraste com o aumento da oferta de bens em progressão aritmética, faria elevar-se o preço dos alimentos. No início do século XIX, entrariam no cenário social os primeiros socialistas, ditos utópicos, que iniciariam a condenação do capitalismo com base numa ética igualitária e em sua crença numa espécie de determinismo ético: a razão e a verdade estavam fadadas a triunfar sobre a paixão e a iniqüidade, por serem os valores mais altos a luzir no firmamento das idéias. Assim, David Owen estabeleceu uma fábrica-modelo de têxteis na Escócia, contemplando boas condições de trabalho e salários, assim como a participação dos trabalhadores nos lucros, a fim de influenciar os empresários quanto a esse tipo de relações de produção. Fourier veria a concorrência como algo destrutivo, que estabelece o conflito entre produtores, consumidores e operários, e leva à eliminação dos fracos pelos fortes. Louis Blanc criticou tanto a propriedade privada quanto a concorrência, mas dirigiu seu ataque maior a esta última, que considerava fonte de miséria para o povo e de ruína para a classe burguesa. Obcecado pela noção de justiça e liberdade, Proudhon buscou um sistema
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econômico que assegurasse a reciprocidade dos serviços trocados e um sistema político que garantisse a liberdade dos indivíduos. É conhecido pela assertiva: “O que é a propriedade? É o roubo.” Além do determinismo ético e da igualdade, defendiam os socialistas utópicos a precedência da sociedade sobre o indivíduo, da reforma sobre a revolução, as liberdades civis (mas, não, políticas ou econômicas), o dirigismo econômico integral, o sindicalismo e a imperatividade da educação. Já então preocupado com a despersonalização do homem na sociedade industrial, Fourier propôs um sistema social em que fosse dada preferência às emoções, de modo que a cooperação e a produção social e econômica se baseassem em afinidades emocionais, companheirismo e compatibilidades. Sugeriu que o trabalho e a vida fossem organizados em pequenas unidades – os falanstérios (com cerca de mil e quinhentas pessoas cada um) –, para permitir a intimidade e a participação, tornando o trabalho agradável. Também Proudhon acreditava na formação de pequenos grupos produtivos, que dariam às pessoas o necessário sentido de participação e poriam fim à exploração dos trabalhadores pelos donos das propriedades. Acima de tudo, substituiriam o estado, sua centralização, a burocracia e a autoridade repressiva que impedia a vida e o crescimento individuais. Aos socialistas utópicos, adicionar-se-iam os científicos, a partir da publicação, em 1848, por Marx, do Manifesto comunista. Tendo por premissa a noção de mais-valia, divisavam duas leis principais no capitalismo: a da tendência à queda da taxa de lucro e da expansão da oferta mais rapidamente que a demanda. Ou seja, o caráter predatório e espoliatório do capitalismo era apontado como o mal intrínseco daquele modo de produção industrial. Os marxistas dividir-se-iam depois em grandes falanges, das quais sobressairiam as leninistas, as trotskistas, as maoístas, as titoístas e as eurocomunistas, além dos ortodoxos independentes da segunda metade do século passado, como Maurice Dobb, Oskar Lange, Paul Sweezy, Paul Baran e Charles Bettelheim, para só citarem-se alguns, proeminentes. Dentro do pensamento liberal ou não-socialista, renasceria, também em fins do século passado, a preocupação com a justiça social, que estivera presente nos primórdios do liberalismo no princípio da liberdade individual de mobilidade social. Leão XIII e sua Rerum No-
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varum seria o precursor da luta por um capitalismo mais humano, que contemplasse com maiores benefícios o fator trabalho. A partir daí, estruturar-se-ia a democracia cristã, ideologia que preconizaria as reformas sociais num ambiente de liberdade e de justiça social, pluralismo político e econômico, dirigismo econômico parcial e sindicalismo. Apesar de todas as restrições que a sociedade industrial sofreu em sua versão capitalista – a única que por enquanto existiu, seja de capitalismo privado, seja estatal – nunca deixou ela de dar mostras de pujança e viabilidade, sobretudo a partir do grande surto tecnológico ocorrido em meados do século XIX, e da irradiação da Revolução Industrial para outras áreas do planeta. A concepção de progresso humano passou a estar-lhe associada, a significar aumento da atividade fabril, do maior peso de um setor secundário, apoiado na indústria de transformação moderna, eficiente, sobre um setor agropecuário dito primário, obsoleto e rural. A noção de desenvolvimento econômico que então se cristalizava passaria a significar canalização desse progresso industrial para o bem-estar das massas, seja diretamente, como no aumento da oferta de emprego, seja indiretamente, através do recolhimento pelo estado, sob a forma de tributo, de parte desses excedentes de produção para um projeto social. Foi a Primeira Grande Guerra que primeiro abalou os alicerces do industrialismo. Até então, o aumento da capacidade produtiva vinha associado a uma crença racional na possibilidade do ser humano de evoluir rumo a cenários cada vez melhores. A Primeira Grande Guerra, do ponto de vista histórico, deixaria no racionalismo suas primeiras cicatrizes, o que influenciou a aceitação do existencialismo e das escolas intuitivistas, como a fenomenológica e a bergsoniana, para quem a intuição, não a razão, era o agente mais eficaz do conhecimento. Nas artes, esse ceticismo se extravasaria, no primeiro pós-guerra, através das escolas surrealista e dadaísta, que eram, em si mesmas, o questionamento do racional. Outro abalo para a sociedade industrial representou a Grande Depressão dos anos 30. Foram tantas as seqüelas sociais e psico-sociais do crackdown da Bolsa de Nova Iorque que o pavor da recessão se instalaria permanentemente nas sociedades industriais. Naquele momento, surge a figura messiânica de John Maynard Keynes, a restabelecer confiança na racionalidade do industrialismo capitalista,
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procurando mostrar, contra os prognósticos apocalípticos de Marx – a quem, contudo, não fez uma só menção na Teoria geral –, que a depressão econômica não era fantasma prematuramente instalado no solar capitalista, mas fruto de algumas vulnerabilidades internas do sistema, que poderiam, não obstante, ser corrigidas mediante política fiscal e revigoramento da demanda efetiva. A crise generalizada que surgiu no esteio da Grande Depressão, entretanto, faria que a própria racionalidade, mais que a crença na racionalidade, entrasse em colapso. A racionalidade chegaria ao ápice de sua crise, precipitando soluções políticas extremas, como o nazismo, que procurava racionalizar o revanchismo e o expansionismo alemão, e exorcizar do seio da sociedade o demônio do marxismo, e o fascismo, que buscava, ademais de conjurar o marxismo, sublimar os interesses expansionistas do Estado italiano. Embora não vinculado à Grande Depressão, mas a um desejo quase obsessivo de expurgar de seus males as relações de produção da sociedade industrial, e por isso mesmo reflexo do criticismo socialista do século XIX, surge nessa época, com Stálin, o sovietismo, disposto a modernizar um país atrasado a qualquer preço sob relações de produção estabelecidas pelo marxismo. A Segunda Grande Guerra seria a catástrofe decorrente dessa paranóia coletiva que se apossou de boa parcela da humanidade. A paz de 1945 encontraria a civilização ocidental desejosa de, como a Fênix, renascer de suas cinzas espirituais. O ideal de racionalidade ressurgia dessa catarse na criação de inúmeros organismos internacionais de cooperação e de integração, e na perspectiva de extensão do progresso industrial a outras áreas do globo. O ideal de liberdade assumia o mesmo vigor de seus tempos primevos, como se houvesse comprovado sua superioridade numa luta maniqueísta do bem contra o mal. O surto de desenvolvimento em nível internacional que se seguiu ao conflito, se não calou, ao menos abafou as vozes que predicavam contra a sociedade industrial. A industrialização internacionalizava-se, e enorme liquidez internacional alimentava os sonhos desenvolvimentistas dos países mais atrasados. Entretanto, à medida que corria a década dos 60, eventos vários contribuiriam para fortalecer novo sentimento de descrença com relação à sociedade industrial; a consciência de existirem males ine-
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rentes à estrutura das sociedades industriais, identificados agora também nos sistemas marxistas, fazia ecoarem mais fortes aquelas vozes. A Guerra Fria assumia, desde 1963, a feição da coexistência pacífica, o que significaria o reconhecimento mútuo dos dois establishments e respectivos status quo político. Esses acontecimentos, e outros por marcarem a década dos 60, reforçavam a consciência de que o capitalismo e o marxismo nada mais eram do que duas formas de sociedade industrial, podendo ambas ser reduzidas a denominador comum de defeitos e distorções. Tomava-se consciência dos vícios dos modelos alternativos ao capitalismo. O fim da década, particularmente o ano de 1968, assistiria, no mundo capitalista e no mundo marxista, a crises conseqüentes de contestações já esboçadas desde os primeiros anos 60, as quais teriam grande influência posterior na formação da mentalidade e nas relações políticas globais. Nos EUA, no auge da Guerra do Vietnã, a opinião pública americana despertou para a brutalidade e inutilidade dessa campanha, e, entre os jovens, aumentaram as pressões para a retirada de tropas de intervenção, que acabariam forçando Lyndon Johnson a ordenar a cessação gradual dos bombardeios e a iniciar conversações com Hanói. A época é, também, de grande agitação na área das reivindicações sociais (choque entre a polícia e os “panteras negras” em Los Angeles e Chicago) e assassinatos políticos (Martin Lüther King e Robert Kennedy). Na França, há uma crise generalizada, culminando na derrota dos gaulistas pela esquerda nas eleições em 1967; as greves descontroladas, o descontentamento com o excessivo centralismo do governo De Gaulle cercam os protestos dos estudantes contra a estrutura ultrapassada do ensino. A agitação de Nanterre é retomada em Paris em 1968; a repressão faz a greve generalizar-se, com apoio de quase todas as universidades do país e de grande parte da população de Paris. Estudantes e operários aliam-se. Nove milhões de pessoas entram em greve, e o governo é forçado a interromper a repressão. Como reação em cadeia, movimentos estudantis eclodem no mundo inteiro contra problemas políticos, econômicos e sociais. Na Tchecoslováquia, as causas da rebelião seriam a insatisfação com o centalismo econômico, que afetava a produtividade e provocava a escassez de certas mercadorias, e com as restrições à liberda-
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de de expressão. Svoboda adotou reformas, descentralizando o processo de tomada de decisões, criando conselhos de trabalhadores na indústria, ampliando direitos sindicais, estabelecendo cooperativas independentes e garantindo os direitos sindicais. Isso desagradaria à URSS, desencadeando o processo que culminaria com a ocupação da Tchecoslováquia pelo Pacto de Varsóvia. O acontecimento, que causou grande indignação na Europa, seria causa determinante do fortalecimento do eurocomunismo, de ruptura com a submissão ao Kremlin e de busca de autodeterminação para os partidos comunistas da Europa Ocidental. Na China, grassava, desde 1966, a Revolução Cultural, que, a pretexto de objetivar a formação do novo homem dentro do socialismo e a guerra contra a burocratização do Partido Comunista, marcava um dos episódios mais repressivos e obscurantistas no marxismo. A esses fatores ajuntar-se-iam, na década dos 70 e dos 80, a estagflação, como ficou conhecida essa recessão maior que a dos anos 30, causa de uma generalizada redução nas taxas de crescimento econômico. 2. O CRITICISMO DA NOVA ESQUERDA E DE GALBRAITH Nos mesmos anos 60, surge na França um movimento que contagiaria o mundo e teria seu momento excelso nas manifestações de Paris de 1968. Trata-se da Nova Esquerda.1 O alvo de seu ataque eram as sociedades industrializadas modernas – independentemente de ideologia –, que viam como repressivas, burocráticas, impessoais e autoritárias. O movimento criticava a falta de liberdade criativa nos rígidos esquemas industriais e o materialismo que orientava a atividade produtiva em direção ao ganho e ao lucro. O estado era visto como aliado do sistema industrial contra o povo, particularmente no que diz respeito ao consumismo, ao consumo supérfluo. O indivíduo, em decorrência, tornava-se alienado, perdendo toda a capacidade de auto-realizar-se e de obter prazer em sua atividade, bombardeado pela disciplina da ideologia do trabalho. Essa alienação – postulava-se – levava à desumanização. 1
Sobre a Nova Esquerda, veja-se Roy C. Macridis, 1987.
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A reação da Nova Esquerda à industrialização era a retomada das críticas de Fourier e Proudhon, atinentes não só à exploração dos trabalhadores, como também à alienação do trabalhador. Por esse mesmo motivo, se a análise marxista do desenvolvimento capitalista era bem recebida pela Nova Esquerda, as soluções marxistas, sempre que tendiam à centralização e ao burocratismo, eram olhadas com reserva. Mais bem, a Nova Esquerda simpatizava com os anarquistas, para quem a industrialização, a ciência e a tecnologia são benéficas, mas quando colocadas sob o controle dos que produzem – algo assim como o corporativismo, as guildas e a autogestão –, não debaixo de grandes estruturas autoritárias. Particularmente incisiva é a crítica da Nova Esquerda à alienação, que resulta da desarmonia entre o indivíduo e a pessoa, ocorrente quando o indivíduo, para constituir-se em parte de um todo, se priva de sua liberdade e espontaneidade. Alienação, portanto, é o rompimento do indivíduo com os grupos sociais primários como a família, a aldeia e os valores simples da vida rural a que estava ligado, com a passagem de uma cultura de folk a uma de civilização, fenômeno que vem ocorrendo sucessivamente desde a industrialização, com a constante migração rural. Alienação é o rompimento de laços entre o homem e o solo, a vida e o ambiente descomplicado, cuja compreensão e cujo controle estão a seu alcance, entre o homem e a liberdade de dispor de seu tempo e lazer, a pesca, a caça, a agricultura, em benefício da divisão do trabalho, da especialização e da interdependência, onde novas relações econômicas e sociais açambarcam crescentemente nossas vidas e as modelam. Alienação é também a decorrente da tecnologia e do pensamento racional e científico, que marginaliza a intuição, já que subordina a verdade a correlações demonstráveis. Alienação é ainda a separação dos trabalhadores daquilo que produzem, seja sob forma de mais-valia, seja porque ele produz, não o de que necessita, mas aquilo que outros querem comprar. Além do mais, os trabalhadores deixam de realizar-se no desempenho de tarefas de rotina que a especialização do trabalho requer: o trabalho não é mais criativo. A Nova Esquerda queria, portanto, trazer os trabalhadores de volta a algumas das associações primárias que
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tiveram de abandonar, substituir a ciência e a racionalidade por sentimentos, imaginação e intuição, restituir aos trabalhadores seu produto e, com isso, a liberdade de decidir o que produzir. A teoria da alienação, que já havia sido desenvolvida pelos socialistas utópicos e por Karl Marx, ganhou, com Marcuse, o filósofo “de palanque” da Nova Esquerda2, apreciável sofisticação. A Nova Esquerda condenava a ética materialista que invade nossas vidas até que não mais possamos refutá-la ou evitá-la; que afeta nossos julgamentos morais, nossos gostos, nossos prazeres, nosso lazer; que subordina os valores políticos e éticos. A educação, o desempenho, os estilos de vida reduzem-se a considerações puramente materiais que podem ser controladas, conferidas, tabeladas. As sociedades industrializadas adiantadas geraram um consenso a respeito através da inculcação em massa dos valores da tecnologia, da abundância material, da eficiência e do consumo. Outra restrição da Nova Esquerda à sociedade industrial era a degradação da qualidade da vida humana nas sociedades industrialmente adiantadas. O ambiente foi usado em prol de benefícios e lucros imediatos. Florestas foram devastadas, os lagos e os rios, poluídos, as vizinhanças, erradicadas em nome da urbanização, feias cicatrizes deformaram as montanhas, e o ar está-se tornando irrespirável. As cidades cresceram, e o crescimento da população continua descontrolado, sem nenhuma consideração da saúde e da beleza, e sem reconhecimento de que as cidades existem para o povo viver reunido nelas. Grandes estruturas substituíram as vizinhanças, e seus lazeres deram lugar aos supermercados, aos super-hospitais e a complexos universitários. A vida na cidade tornou-se tão impessoal como a vida nas grandes organizações em que o povo trabalha. O automóvel particular, com seu apetite 2 Notável referência intelectual da Nova Esquerda foi a Escola de Frankfurt, sucessivamente denominada Escola de Nova York e Escola de Los Angeles, conforme o local de residência e atividade acadêmica de seus membros, entre os quais são de destacar-se Habermas, Adorno, Lowenthal, Horkheimer e Erich Fromm. Marcuse era um dos expoentes dessa escola, que, com o fenômeno hitleriano, deixaria a Alemanha pelos Estados Unidos, onde se dedicava a estudos relacionados com a moderna sociedade industrial, como a cultura de massas, a comunicação social, informação e mídia.
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por estradas e combustível, passa a dominar nossas vidas e nossa economia. Outro destaque entre os críticos da sociedade industrial não vinculados ao pensamento socialista é o economista americano John Kenneth Galbraith, que, precisamente por sua postura de analista dos problemas econômicos, sociais e políticos das sociedades industriais avançadas, se tornou um dos mais conhecidos intelectuais e mais influentes críticos sociais dos nossos dias, estreando com American capitalism, onde se preocupou com que o mercado de concorrência perfeita tinha sido deslocado pela organização poderosa, como a empresa-mamute, as cadeias nacionais e os enormes sindicatos. Em The Affluent Society, denunciou o que chama de privatização da riqueza e socialização da pobreza. O homem nasceu em um mundo pobre onde as necessidades eram autênticas, de um consumidor soberano, e o crescimento e alocação ainda revelavam preocupações eminentes. Agora, contudo, as necessidades básicas de alimentação, vestuário e moradia foram tão extensivamente satisfeitas que o consumidor se tornou saciado de opulência e confuso quanto às frívolas bugigangas que ele quer em seguida, e desse modo vulnerável à inseminação artificial de gostos e preferências por meio da propaganda e técnicas de venda. Tais gostos e preferências são deliberadamente manufaturados através de apelo aos mais básicos instintos, aspirações e inseguranças. São contudo tratados pelos economistas como se se originassem dentro do consumidor individual, e desse modo fazem os economistas o jogo dos poderosos, ao disfarçarem intencionalmente a substituição da soberania do consumidor pela do produtor. O reconhecimento dessa seqüência coloca em discussão, naturalmente, a aceitação do PNB como índice de felicidade, e sua taxa de crescimento como índice de progresso social. Com respeito à pobreza pública, Galbraith afirmou que os serviços públicos vitais (estradas, escolas, museus, habitações populares, erradicação de favelas, policiamento) são hoje carentes de renda por causa de fatores como a tradicional visão de que apenas o setor privado é produtivo de riqueza, um armistício com a desigualdade (muitos reformadores que favorecem um estado de bem-estar social estão contudo relutantes em vê-lo financiado através de taxação progressiva, de modo que a provisão de serviço implique redistribuição corrente
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da renda), a ausência de crédito ao consumidor e de promoção de vendas no setor estatal. Contudo, são precisamente esses serviços que crescem em demanda numa sociedade rica, onde os sujeitos econômicos desejam estradas limpas, uma vez que já disponham de um teto, e onde as firmas não querem simplesmente insumos físicos, mas também mão-de-obra treinada. Galbraith afirma que o setor privado simplesmente não pode satisfazer essas necessidades, que são hoje incrivelmente agudas, e insiste em que a alternativa para a plena provisão social é nenhuma provisão. Postula que o equilíbrio social em uma sociedade rica é de maior urgência que o crescimento econômico, e identifica como razão importante para essa maior urgência uma indiscutível propensão por parte do equilíbrio em favorecer os grupos de mais baixa renda: assim, os seguros-desemprego ajudam a combater a insegurança (enquanto seria altamente inflacionário procurar-se a máxima taxa de crescimento econômico), de modo a criar empregos para até mesmo os trabalhadores mais marginais. Em The New Industrial State, Galbraith aponta uma tecnoestrutura na moderna corporação gigante, aquele grupo de peritos altamente treinados (engenheiros, cientistas, economistas, lobistas, homens de propaganda) que, coletivamente, têm um monopólio de habilidades escassas e conhecimento crucial e que, em comitês que substituem gerentes nominais e acionistas sem função, tomam crescentemente decisões para as organizações grandes e tecnicamente avançadas. Entre outras características, esses objetivos são buscados por meio de técnicas que Galbraith denomina de planning (um termo para indicar a tentativa de parte das grandes organizações de, em primeiro lugar, prever, e, depois, modelar o futuro do negócio – de outro modo, de risco proibitivo em virtude da onerosa aplicação de capital). A corporação procura, através da propaganda e venda, modelar as atitudes do consumidor de modo tal a vender sucessivamente uma quantidade planejada a um preço planejado. Em Economics and the Public Purpose, Galbraith chamou atenção para a simbiose burocrática, como denominou o fenômeno pelo qual os objetivos, a ideologia e mesmo o pessoal da tecnoestrutura interagem simbioticamente com os objetivos, ideologia e pessoal do serviço público; de modo que, por exemplo, a expansão de ministérios de defesa resulta de uma expansão de fornecedores de ar-
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mas, e ambos conluiem nos EUA, como conluiavam na antiga URSS, de modo a atingir objetivos organizacionais. Argumentando que o executivo é anormalmente dependente do conselho burocrático, Galbraith enfatiza que o controle do poder organizacional deve ser exercido pelo ramo legislativo do governo. 3. NOVAS REAÇÕES À SOCIEDADE INDUSTRIAL Do fim da década de 60 para cá, a sociedade industrial desceu aos mesmos níveis de ceticismo do fim da Primeira Grande Guerra. A contestação à sociedade industrial abriu-se em leque, aliando outras bandeiras à crítica histórica da concentração de renda e da alienação, como a eliminação do supérfluo, a redução do crescimento pelo crescimento, o aumento da capacidade produtiva, a diminuição do crescimento demográfico, a preservação do meio ambiente, a passagem a um estágio pós-industrial e, nas relações internacionais, o estabelecimento de uma nova ordem econômica. De concentração de renda muito já se falou e escreveu3, não havendo, neste artigo, tanto mais o que acrescentar, senão que é ela a geratriz do consumo supérfluo, que, por sua vez, conduz por um viés o aparelho produtivo; os segmentos beneficiados pela concentração de renda criam mercado para o produto supérfluo, fazendo que o aparelho produtivo canalize fatores de produção dos setores de consumo básico e geral para a produção desse tipo de bens. Claro está que a categorização do que é e do que não é supérfluo não é objetiva, e depende, como todas as escolhas em economia política, daquilo que um partido ou coligação em governo assim considere. Lembra-me, a propósito, que, quando servi à Embaixada do Brasil junto à Santa Sé, participei de recepção no Palazzo Caetani, sede da Embaixada, a um presidente recém-eleito, em cuja comitiva se encontrava aquela que despontava como sua ministra da Fazenda, nomeação que se confirmaria algum tempo depois. Ao contemplar os afrescos barrocos do palácio, a futura ministra deixou escapar: “Se eu for ministra da Fazenda, vou acabar com o supérfluo”. 3
Cf., do autor (2001), em especial capítulos I, IV, V e VII.
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Diante daquilo que a mim pareceu heresia, pois não considero a arte produto supérfluo, desde que verdadeiramente arte, ou seja, expressão e estética, comentei-lhe, à falta de melhor reação, que às vezes é o supérfluo que humaniza, porque ele distingue o homem do animal. Entretanto, com todas as deferências àquilo que o supérfluo, real ou aparente, tem de sofisticado, de refinado, de apelo ao espírito, o fato é que matéria-prima, mão-de-obra, terra, capital e outros recursos, muitas vezes escassos, são desviados para a fabricação de artefatos industriais engenhosos e sofisticados, mas dispensáveis, se levado em conta seu custo social alternativo, que pode ser aferido, por exemplo, pela escassez relativa e pela alta de preços que provoca em setores outros da economia mais vitais, como habitação, educação, saúde, vestuário básico. Com o supérfluo, a indústria deixa de voltar-se para a satisfação das necessidades macrossociais, antes, direciona-se para a satisfação de necessidades artificialmente criadas para que possa encontrar oportunidades rentáveis. Se, em outros tempos, a necessidade foi a mãe da invenção, agora a invenção é a mãe da necessidade. O consumidor, manipulado, alienado de si mesmo, recebe, como evidenciou Galbraith, uma espécie de lavagem cerebral sobre suas próprias prioridades, sobre sua própria escala de preferências, abolindo-se o que a teoria econômica ortodoxa denominava “soberania do consumidor”, isto é, o funcionamento do aparelho produtivo em resposta às indicações daquele, e não inversamente. Mesmo em países de adiantado desenvolvimento, há enormes disparidades de renda, não só entre classes ou camadas como também intra-regionais. Mas a concentração de renda é mais dramática diante dos bolsões de miséria absoluta dos países atrasados, no conjunto dos quais a maior parte da população não tem acesso à maioria dos bens e serviços produzidos pela sociedade industrial. Na sociedade industrial marxista, conforme já se examinou se não existia concentração de renda propriamente dita, uma vez que inexistia propriedade privada, vinha ocorrendo concentração em favor do Estado, de sua máquina burocrática e das prioridades desta; se não ocorria consumo supérfluo propriamente dito, existia maior folgança no consumo da burocracia e menos no da massa do povo; a depressão em seu consumo não advinha do consumo supérfluo de
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outras camadas, mas do conflito entre o Estado e os objetivos sociais, ou, de outra ótica, dos objetivos supérfluos do Estado, e da maior atenção dispensada ao consumo da burocracia, que não deixava de ser relativamente supérfluo. Quanto ao crescimento, o que postulam economistas políticos não afinados com a lógica absoluta do mercado não é a redução de seu ritmo tout court, mas à medida que se consiga reduzir a necessidade subjetiva do crescimento. Como fruto do mecanismo de culpa da sociedade industrial, temse cogitado, para solução dos problemas socioeconômicos que o crescimento tem criado, a diminuição de suas taxas em favor de metas diretamente ligadas ao bem-estar social, tanto mais que o crescimento tem sido muitas vezes contraditório no que concerne a esse bem-estar, como, por exemplo, no caso do protecionismo alfandegário, que dificulta o acesso a um mercado qualquer de bens de procedência estrangeira de preços mais acessíveis e muitas vezes de melhor qualidade; como na própria inflação, que opera processo de transferência de poder aquisitivo dos price-takers para os pricemakers, estes últimos identificados com poupança, investimento, acumulação, crescimento e progresso. Dessa forma, a diminuição do ritmo de crescimento significaria também diminuição da intensidade de certos sacrifícios impostos à maior parte da sociedade, bem como de custos de diferentes espécies, do financeiro ao ecológico. Na verdade, porém, são os países desenvolvidos os que podem abdicar, com menor desconforto, de taxas elevadas de crescimento econômico. Em primeiro lugar, porque, sendo o capital fator neles abundante, a lei dos rendimentos decrescentes impõe-lhes relação capitalproduto substancialmente maior do que onde o capital é escasso, fazendo, portanto, que menores taxas de crescimento sejam a tendência numa sociedade economicamente avançada, o que também acontece porque a menor eficiência marginal do capital torna o investimento menor, em proporção do PNB, do que nos países em vias de desenvolvimento. Em segundo lugar, porque o crescimento anual do produto, ainda que seja normalmente pequeno em números relativos, é grande em
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termos absolutos, uma vez que as taxas de crescimento incidem sobre produtos de magnitude elevada, ao que se soma o fato de que o crescimento populacional costuma ser pequeno nas sociedades industrialmente avançadas. Ainda assim, a estagnação econômica é vitanda nessas sociedades, não só pelo equilíbrio dinâmico que requer o capitalismo, como também porque, como se mencionou, nos países industrializados existe pobreza relativa e até mesmo persiste pobreza absoluta, como entre as comunidades negra e porto-riquenha nos Estados Unidos. Para as sociedades em vias de desenvolvimento, entretanto, a redução no crescimento econômico é mais dramática. Em primeiro lugar, porque nesses países persistem grandes bolsões de pobreza absoluta, o que significa não haverem ainda as respectivas sociedades provido a expressiva maioria de seus membros de uma base material que se possa considerar “suficiente”. Em segundo, porque em muitos países o contingente populacional é elevado e continua crescendo a taxas elevadas, ainda que se venha registrando, em todo o planeta, uma tendência à diminuição das taxas de crescimento vegetativo, como conseqüência da própria sociedade industrial. Em terceiro, porque a redução do crescimento implicaria, per se, retrocesso na superação da defasagem entre o mundo desenvolvido e o em vias de desenvolvimento, superação que é perseguida não só por motivos psicológicos, como querem alguns – como os ligados aos efeitos-demonstração –, como também porque o progresso científico e tecnológico tem valor intrínseco, independentemente das relações de produção que o vertebram e dos subprodutos negativos que dele decorrem, estes últimos conhecidos de Prometeu muito antes que se falasse em sociedade industrial. Em quarto, porque o menor desenvolvimento relativo impõe onerosa importação de capital, ciência e tecnologia, o que é causa de males econômicos crônicos, tais que déficit no balanço de transações correntes, deterioração nos termos de intercâmbio, endividamento externo e depauperamento das reservas, para só citarem-se alguns. Paradoxalmente, a luta pelo desenvolvimento econômico nem sempre contribuiu para livrar os países atrasados daquele mal...
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Em quinto, o crescimento é, finalmente, e em tese, a fonte de recursos com que o Estado, pela via tributária, cumpre seus fins precípuos, inclusive os de bem-estar social. Por aumento da capacidade produtiva, entende-se não só a incorporação de novos fatores de produção ao processo produtivo, mas, sobretudo, sua racionalização, com objetivos como o aproveitamento intensivo de recursos naturais e a redução do desperdício. Uma reorientação da atividade econômica visando não somente ao aumento físico de bens e serviços, como também a uma integração com o meio ambiente, que é importante preservar a fim de que não se continuem deteriorando as condições do planeta como habitat. Viriam ao encontro desses propósitos, exemplificativamente, a redução do consumo supérfluo, a fim de liberar recursos para o investimento produtivo, o desincentivo à formação de monopólio, ou seu rigoroso controle, com vistas a diluir sua tendência à maximização do lucro pelo aumento de preços, e não da oferta, o disciplinamento do capital transnacional, para que se integre harmonicamente no país recipiendário, o incentivo à pesquisa científica e tecnológica, o aproveitamento de capacidade industrial ociosa, o descarte de soluções tecnológicas obsoletas e, sobretudo, o estímulo adequado à demanda, sem o qual não terá ressonância o aumento da capacidade produtiva. É de considerar-se esse aumento em virtude de que a miséria e a penúria existentes não são apenas um problema de distribuição de renda, mas de efetivo aumento do volume físico de bens e serviços à disposição da humanidade, cujo PNB per capita, para um conjunto de 95 países considerados como de renda fraca ou intermediária pelo Banco Mundial, era de apenas US$ 700,00, a preços de 1987, e ainda assim distribuídos de forma suscetível de discussão.4 Mesmo nos países mais adiantados, se a renda per capita coincidisse com a renda real disponível de cada indivíduo, ter-se-ia que todos, sem exceção, teriam padrão de vida na melhor das hipóteses medíocre, o que dá a medida de como a manutenção de padrão de vida como o que permite uma renda além da per capita, para muitos, e até mesmo supérfluo, para outros mais, implica que a maioria das pessoas viva, se tanto, a nível de subsistência. 4
O dado exclui os países socialistas da Europa.
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O crescimento demográfico, por sua vez, sendo geralmente maior onde menor é o desenvolvimento econômico, é entrave ao próprio desenvolvimento. Essa assertiva não é feita em oposição a que o crescimento demográfico seja naturalmente freado por um dinamismo do produto decorrente de sua melhor distribuição ou do aumento da capacidade produtiva, ou que esta, ampliada, possa acomodar os novos contingentes populacionais. Efetivamente, o problema do crescimento populacional tem de ser enfrentado também por esse lado. Contudo, trata-se de problema, a esta altura, emergencial, requerendo, portanto, soluções emergenciais. Assim, paralelamente à questão de introduzirem-se transformações econômicas e sociais como combate indireto ao descontrole populacional, há que se considerar o controle direto. Além do que, o controle da natalidade pelo aumento da capacidade produtiva tropeça na limitação dos recursos naturais como incógnita e nas conseqüentes dúvidas sobre a capacidade de crescimento futuro da sociedade industrial. O problema pode persistir mesmo após tais transformações, como é o caso da China, que, tendo adotado o modelo socialista, se vê obrigada a promover controle drástico da natalidade, mesmo diante de taxas elevadas de crescimento econômico. Aliás, com algumas exceções5, as revoluções marxistas operaram nas sociedades com nivelamento “por baixo”, que será tão mais “baixo” quanto maior for a população, cujo crescimento, coeteris paribus, tende a reduzir a renda per capita. É justamente para impedir que a velocidade aumentada do crescimento populacional dificulte ainda mais uma política redistributiva, seja ela qual for, que o crescimento populacional deve ser diretamente remediado. Perduram as situações de miséria, marginalização, analfabetismo ou penúria, ainda quando as reformas sociais politicamente possíveis, ou mesmo as revoluções, se tenham executado, quando esgotado o potencial reformista do sistema, ou ainda quando uma revolução social haja ocorrido. Raymond Aron, com sangue frio, alertava para o fato de que:
5 Cf., do autor (idem) capítulo VI, particularmente no que concerne aos privilégios da burocracia.
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Na Índia, por exemplo, seria rigorosamente impossível eliminar as formas extremas de miséria. Por humanidade mesmo, é preciso conduzir os esforços para criação de riqueza, para melhora da agricultura, para a industrialização, não para a ajuda aos milhões de infelizes que não se podem salvar. Esta proposição (...) é horrível, mas o fato é que não se pode conceber uma política igualitária num país onde o excesso de população com relação aos recursos ultrapassa um certo ponto. (1964, p.235).
Conquanto existam restrições de origem ética, ideológica ou religiosa ao controle da natalidade, o fato essencial é o de que a miséria hoje existente por si só justifica tal controle como terapia auxiliar ao problema de escassez relativa de recursos. Entre tantas verdades, está a de que os investimentos sociais são subtraídos a atividades diretamente produtivas, que possibilitariam maior dinamismo de produto. Além do mais, o controle da natalidade, a longo prazo, contribuiria para a elevação dos salários reais, na medida em que a redução da oferta de mão-de-obra daria ao fator trabalho maior poder de barganha, à semelhança do que hoje ocorre nos países industrializados, que vêm, inclusive, recorrendo à imigração como modo de reduzir as pressões no sentido da alta dos salários. Nessa ordem de idéias, o controle de natalidade, ainda que suscetível de discussão quanto aos métodos de controle, deve ser visto como requisito não somente da igualdade social, como da liberdade individual, que inelutavelmente se deixa afetar por um crescimento populacional em descompasso com o dos recursos materiais. Parcialismo na matéria residiria na adoção de medidas restritivas da explosão demográfica sem necessária correspondência na reestruturação econômica, particularmente as decorrentes de política social. Nas duas últimas décadas, a variável ambiental passou a integrar a questão do crescimento econômico, como decorrência direta de que a triplicação da produção econômica mundial, desde meados do século, tem aumentado as pressões sobre os sistemas ecológicos, muitas vezes em níveis insuportáveis. Tamanha a importância dessa variável e seu impacto sobre o crescimento econômico, que este assumiu caráter distinto, qualitativo; já não se tratava de teorizar sobre o crescimento da renda através de modelos macroeconômicos con-
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vencionais e quantitativos, mas de inquirir-se o crescimento em si, através da redefinição do conceito de custos e benefícios e de um exame da retroalimentação do crescimento sobre si próprio, o que levou ao conceito hoje consagrado de desenvolvimento sustentável. A introdução da variável ambiental tornou, pois, menos relevante o aspecto meramente quantitativo do crescimento, e enfatizou seu aspecto axiológico. Mais ainda, ampliou a margem da divergência entre economia e sociedade, entre sociedades desenvolvidas e em vias de desenvolvimento, e até o passado recente, entre capitalismo e marxismo. Os objetivos de crescimento econômico e os de bem-estar social têm na questão ecológica área de atrito. Bem-estar social também significa, em prejuízo do crescimento, a preservação de áreas verdes e de regiões ecológicas, a localização de projetos industriais já não em função de critérios de eficiência (proximidade de matérias-primas, transporte, mercado de trabalho, mercado consumidor, etc.), mas de preservação do meio ambiente; a canalização de recursos públicos de atividades produtivas para programas ambientais; o desencorajamento de atividades poluentes e a rejeição do capital estrangeiro poluente. Há, portanto, um trade-off entre crescimento econômico e bem-estar social, que deriva da preservação do meio ambiente, embora essa correlação negativa ainda seja negligenciada ante a correlação positiva, consagrada pela teoria do desenvolvimento, entre crescimento e bem-estar social. Não menos conflitivo é o problema ambiental no contexto do chamado diálogo Norte-Sul, onde interagem, quanto às relações econômicas internacionais, o enfoque das sociedades já industrializadas e o daquelas em vias de desenvolvimento. Se nos primeiros já se verifica um processo, ainda que não em ritmo adequado, de substituição de tecnologia poluente por não-poluente, de preservação de áreas ecológicas e recursos naturais, nos segundos a imperatividade de criar tecnologia e absorver a dos países mais adiantados, poluente ou não – o que estabelece até mesmo concorrência entre os países pobres pelo investimento transnacional –, historicamente relegou a segundo plano a questão ecológica. Foi ela considerada do ângulo de suas influências contrárias a um ritmo rápido de crescimento econômico e, portanto, impeditiva não só da
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superação do fosso entre países ricos e pobres, como também da estabilidade política, que, conforme já foi discutido, repousa atualmente sobre o crescimento da renda mais do que de sua redistribuição. Nos países em desenvolvimento, onde a poluição se apresenta de forma mais modesta, não só era, como ainda é, mais frágil a consciência ambiental como força política e socialmente atuante, como, nos círculos mais diretamente ligados à promoção do desenvolvimento, existia, e ainda existe, a suspeita de que a consciência ambiental e as injunções que dela decorrem no sentido Norte-Sul estão a serviço da preservação do status quo no relacionamento econômico e tecnológico entre os dois tipos de sociedade, como a divisão internacional da produção e do trabalho, a manutenção dos termos de intercâmbio, a supremacia econômica e, enfim, política. Em casos extremos, chegava-se à inquietadora conclusão de que, nos moldes em que está presentemente estruturada a sociedade industrial, a preservação do meio ambiente é um bem superior, só acessível às sociedades de renda relativamente alta, bem este que as demais não podem dar-se o luxo de consumir, inclusive as de modelo marxista. É, entretanto, de ressaltar o progresso da agenda internacional de proteção do meio ambiente, particularmente impulsionada pela Conferência do Rio sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, a ECO-92, a qual sucedia de vinte anos a Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, e pela Conferência de Joannesburgo, realizada em 2002, sucedendo de dez anos a ECO-92. O multilateralismo tem contribuído para encontrar denominadores comuns entre países desenvolvidos e em desenvolvimento no que concerne ao meio ambiente. Registre-se ainda que, para os antigos estados marxistas, a questão ambiental foi fundamentalmente doutrinária e ideológica. A poluição do meio ambiente não seria, assim, inerente ao crescimento em si, mas ao crescimento em bases capitalistas. Do mesmo modo que, para os marxistas, as relações de produção no sistema capitalista não traduzem busca de harmonia entre os homens envolvidos no processo produtivo, não inspiram relacionamento harmonioso entre o homem e a natureza. Ou, em termos ainda mais simples, não visam à harmonia entre natureza, capital e trabalho, os três fatores clássicos de produção. Assim como o trabalho, a natureza é asser-
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viçada ao propósito de lucro do capital. Não existe por si mesma, mas na medida em que fornece recursos ao capital, quando então se converte em recursos naturais. Sustentavam, em conseqüência, os antigos países marxistas que é sob a égide do marxismo que o meio ambiente pode ser mais bem preservado, em virtude da ausência de ânimo de lucro, em função da propriedade estatal dos meios de produção, assim como pela submissão da atividade econômica a um plano integral, onde os objetivos sociais são contemplados em sua totalidade. Interpretando essa corrente, Genrikh Volkov afirmava que O problema de conservar e utilizar racionalmente o meio ambiente é hoje muito agudo em todos os países industrializados do mundo, mas as relações de propriedade e a anarquia da produção capitalista tornam difícil a solução desse problema, não somente em seus aspectos científicos e tecnológicos como também socioeconômicos. Enquanto o desenvolvimento da produção capitalista tem lugar principalmente sob o impacto do mecanismo elementar e pode ser controlado pela sociedade e pelo Estado apenas em extensão insignificante, a economia socialista é desenvolvida como um sistema que é consciente e centralmente governado em base científica. (1978, p.152)
Afirmou também, com maior ênfase: “Os pensadores sociais nãomarxistas ignoram os aspectos sociais do problema, culpando pela crise ecológica tudo, menos o capitalismo.” (Idem, ibidem, p.150). Sem dúvida, um sistema que se assenta sobre a livre iniciativa não só é muito mais rebelde a controles ecológicos, como é muito mais vulnerável a distúrbios decorrentes de problemas ambientais do que outro centralmente planificado. Além disso, o capitalismo é sistema de equilíbrio dinâmico, onde o crescimento cria a necessidade de ulterior crescimento; se a exaustão dos recursos naturais se tornar óbice ao crescimento, isso poderá ter efeito depressor sobre o sistema, e em última análise determinar seu próprio colapso e até mesmo, indiretamente, o da própria sociedade industrial. Em termos meramente conceptuais e teóricos, é também mais difícil o equacionamento dos problemas ambientais num universo onde há
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atomicidade de iniciativa, como o capitalista, do que naquele onde a atividade econômica é disciplinada por um planejamento integral, e onde a tecnologia e as práticas não atentatórias à ecologia não sofrem o crivo dos critérios de eficiência e produtividade. Mas nem mesmo essa verdade teórica imunizou as sociedades até pouco tempo marxistas, assim como as remanescentes do marxismo, de incorrer, em seu esforço de industrialização, nas mesmas faltas contra a ecologia que o capitalismo, conforme comprovava o uso extensivo que faziam dos recursos naturais e a persistência de tecnologias que, já abandonadas no Ocidente por seus efeitos antiambientais, permaneciam em uso naquelas sociedades por seu baixo custo, como a produção de álcool através da hidrólise ácida de madeira. A mesma engrenagem que impele os países do Terceiro Mundo a buscar crescimento a todo custo atuou sobre as sociedades marxistas, onde também o crescimento era forma de solucionar conflitos internos e se revestia de importância militar e estratégica. Era válido também para elas, no caso, a Lei de Engels: a preservação do meio ambiente era bem superior, que lhes ultrapassava o orçamento, ainda que não, a teoria. O acidente na usina nuclear de Chernobyl, em 1986, foi evento expressivo a esse respeito. Com todas as suas vulnerabilidades, a sociedade industrial segue sendo o signo que rege o ambiente no qual se dão as interações humanas, ainda que muitos cientistas sociais já tenham os olhos voltados para uma sociedade pós-industrial que nele se vem instalando paulatinamente. A resiliência da sociedade industrial, entretanto, não retira força das conseqüências que poderão vir a ter aquelas mesmas deficiências. A sociedade industrial vive uma constante dialética de adaptação a suas próprias contradições, enquanto adaptar-se for possível.
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BIBLIOGRAFIA ARON, Raymond., La lutte de classes - Nouvelles leçons sur les sociétés industrielles, Paris, Gallimard, 1964, p. 235. COURI, Sergio Elias. Ensaios sobre a evolução do capitalismo e do marxismo, Brasília, Editora Universidade de Brasília, segunda edição, 2001, em especial capítulos I, IV, V e VII. MACRIDIS, Roy C., Ideologias políticas contemporâneas, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1987, tradução de Maria Ignez e Luiz Tupy Caldas de Moura, pp. 271 e seguintes. VOLKOV, G. “The ecological crisis and the socialist use of nature”; in Economic growth and resources, Moscou, Academia de Ciências da União Soviética, 1978, p. 152. World Bank, World development report, p.161. 1987.
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NÚMEROS ANTERIORES EDIÇÃO 1 O INERTE CULTURAL - E o que se faz contra ele Teixeira Coelho SER DE TODOS OS TEMPOS SEM DEIXAR DE SER DO INSTANTE - Cultura e política em tempos de Brasil Marta Porto EM DIREÇÃO ÀS METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO - Uma análise regional Rosane Mendonça PROGRAMAS SOCIAIS VOLTADOS À EDUCAÇÃO NO BRASIL - O impacto da Bolsa-Escola Simon Schwartzman LEREIS COMO DEUSES - A tentação da proposta construtivista João Baptista Araujo e Oliveira
EDIÇÃO 2 DISTINÇÃO, AUTARQUIA E ANIMAÇÃO - Um ensaio sobre o problema da representação no Brasil contemporâneo Renato Lessa ASPECTOS POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL - Um convite à reflexão Carlos Frederico B. Loureiro EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS - Para além das Metas do Milênio Jorge Teles LIMITES E POSSIBILIDADES DO DESENVOLVIMENTO LOCAL Juliana Simões Speranza
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PERFIL E DESAFIOS DOS MICROEMPREENDIMENTOS NO BRASIL Adriana Fortes
EDIÇÃO 3 O PROBLEMA DO CONTROLE DA POLÍCIA EM CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA EXTREMA - Os casos do Brasil, da África do Sul e da Irlanda da Norte Cristina Buarque de Hollanda UMA ANÁLISE DA FREQÜÊNCIA E DO ATRASO ESCOLAR DAS CRIANÇAS BRASILEIRAS Danielle Carusi Machado EMOÇÃO AGREGADORA Elter Dias Maciel DISCRIMINAÇÃO RACIAL E EDUCAÇÃO NO BRASIL Romero C. B. da Rocha e Valéria Pero TRAGÉDIA DA CULTURA E MODELAGEM DA IDENTIDADE - Uma leitura de Weber e Simmel Valéria Paiva
EDIÇÃO 4 COTAS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS - A contribuição das teorias de justiça distributiva ao debate Fábio D. Waltenberg DESENVOLVIMENTO LOCAL E RESPONSABILIDADE SOCIAL - As ações de responsabilidade social como um instrumento de interlocução entre as empresas e a sociedade Leonardo Marco Muls e Ana Paula Fleury de Macedo Soares FILOSOFIA E DANÇA CONTEMPORÂNEA - Do movimento ilusório ao movimento total Maria Cristina Franco Ferraz
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O POLÍTICO CONTRA A POLÍTICA - Uma agenda de pesquisa em forma de manifesto Thamy Pogrebinschi UMA RELEITURA PRELIMINAR SOBRE A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, ESFERA PÚBLICA E DESIGUALDADE NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX NA AMÉRICA LATINA Érica Pereira Amorim
EDIÇÃO 5 A INSUPORTÁVEL LEVEZA DO CAPITAL - Excertos a partir de Baudrillard André Queiroz MUDANÇAS SOCIETÁRIAS E CRISE DO EMPREGO - Mistificações, limites e possibilidades da formação profissional Gaudêncio Frigotto CONFUSÕES EM TORNO DA NOÇÃO DE PÚBLICO - O caso da educação superior (provida por quem, para quem?) Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho, Samuel Franco, Rosane Mendonça e Paulo Tafner ENTRE A ESPERANÇA E A REALIDADE SOBRE A ARTE E O SEU ENSINO Ronaldo Rosas Reis SOBRE O RELATIVISMO ESTÉTICO PÓS-MODERNO E SEU IMPACTO EXTRA-ESTÉTICO Walzi C. S. da Silva
Obtenção de exemplares: Assessoria de Divulgação e Promoção Departamento Nacional do SESC adpsecretaria@sesc.com.br Tel.: (21) 21365148 Fax: (21) 21365470
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