v.4 nº11 setembro > dezembro | 2009 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional
ISSN 1809-9815 SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.4 nº11 | p. 1-168 | SETEMBRO > DEZEMBRO 2009
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC Antonio Oliveira Santos DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO EDITORIAL Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Sebastião Henriques Chaves CONSELHO EDITORIAL Álvaro de Melo Salmito Luis Fernando de Mello Costa Mauricio Blanco Raimundo Vóssio Brígido Filho SECRETÁRIO EXECUTIVO
Sebastião Henriques Chaves ASSESSORIA EDITORIAL
Andréa Reza EDIÇÃO Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral Christiane Caetano PROJETO GRÁFICO
Vinicius Borges ASSISTÊNCIA EDITORIAL
Rosane Carneiro REVISÃO
Elaine Bayma Clarissa Penna Roberto Azul Sinais Sociais / Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional - vol.4, n.11 (setembro/ dezembro) - Rio de Janeiro, 2009 v. ; 29,5x20,7 cm. Quadrimestral ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO5 EDITORIAL7 SOBRE OS AUTORES8 O SIGNIFICADO AMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICO-INSTITUCIONAL DIANTE DA PRESENÇADEESPÉCIESEXÓTICASNOBRASIL10 Anderson Eduardo Silva de Oliveira
MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA50 Andréa F. Costa Maria das Mercês Navarro Vasconcellos
PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA88 Graziela Ansiliero Rogério Nagamine Costanzi
GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL120 ANÁLISE COMPARATIVA DAS AÇÕES RECENTES PARA A REFORMA DOS SISTEMAS EDUCACIONAIS NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS Rafael Parente
INICIATIVAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE150 EM BUSCA DE ABORDAGENS AVALIATIVAS E DE EFETIVIDADE Regina Bodstein
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APRESENTAÇÃO A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar. Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.” Igualmente é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos. Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo. O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país. Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais.
Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do SESC
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EDITORIAL Pode-se afirmar que a universalização do acesso à educação e ao conhecimento produzido é um fenômeno social relativamente recente na história da humanidade. Até o advento da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, somente os integrantes do segmento superior da pirâmide social estavam incluídos no mundo do conhecimento da época. As invenções que transformaram a sociedade europeia das corporações de ofício em sociedades industriais passaram a exigir dos trabalhadores acesso à educação formal, de modo que os habilitassem ao uso de novas ferramentas, impulsionadoras do modo industrial de produzir. A inclusão no mundo da educação ocorreu não por um ato de generosidade, mas sim pela necessidade da sociedade em alterar fundamentalmente seu modo de produção e de organização política e social. Com a revolução microeletrônica informacional e o consequente surgimento do capitalismo cognitivo e da sociedade do conhecimento, a escolarização em patamares superiores e o acesso ao conhecimento produzido tornam-se condições primeiras para o desenvolvimento social e econômico. A revista Sinais Sociais torna-se o meio pelo qual o SESC procura contribuir para que o pensar sobre o Brasil vá além dos muros acadêmicos e, portanto, que seus resultados estejam ao alcance dos comprometidos com a busca de soluções para os graves problemas do Brasil e sua inserção na sociedade do conhecimento. Globalização e convergência educacional; proteção do idoso no país e na América Latina; estruturação de políticas públicas para problemas ambientais; iniciativas de promoção de saúde; e o papel diferenciado dos museus na educação compõem o amplo espectro de artigos do número 11 da revista. A cada leitor, seu uso e bom proveito.
Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
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SOBRE OS AUTORES Anderson Eduardo Silva de Oliveira Graduado em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário da Cidade (1999) e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/Pibic) no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, entre 1997 e 2000. Mestre em Ciências Biológicas (Botânica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Especialista em Planejamento e Controle Gerencial pela Fundação Getúlio Vargas (2002). Foi bolsista de Desenvolvimento Tecnológico e Industrial do CNPq no Projeto RAP Ilha Grande - Um Levantamento de Biodiversidade, entre 2003 e 2004. Atua como consultor técnico para planejamento e implementação de empreendimentos de infraestrutura desde 2002. É doutorando no Programa de PósGraduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) desde 2006. Atualmente é coordenador técnico de empreendimentos energéticos (hidrelétrica, gás e petróleo) na Habtec Engenharia Ambiental. Andréa Fernandes Costa Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade de Formação de Professores (Uerj/FFP) e mestranda da Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Chefiou o Serviço de Programas Educacionais da Coordenação de Educação em Ciências do Museu e Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCT), onde atua realizando ações educativas e atividades de pesquisa na área da Educação em Museus, bem como sobre o uso de objetos históricos nos museus de temática científica. Atualmente é pesquisadorabolsista do Programa de Capacitação Institucional (PCI-MCT) no Mast, tendo sido uma das premiadas no Prêmio Bolsista Destaque do Programa de Capacitação Institucional (PCI/MCT – 2009), organizado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Graziela Ansiliero Bacharel em Ciências Econômicas e Especialista em Matemática Aplicada à Economia, ambos pela Universidade de Brasília. Desde 2001, é membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Foi assessora técnica da Secretaria de Políticas Públicas de Emprego, do Ministério do Trabalho e Emprego, por dois anos (20022003). Desde 2004, ocupa o cargo de Coordenadora de Pesquisas Previdenciárias do Departamento do Regime Geral de Previdência Social, vinculado à Secretaria de Políticas de Previdência Social do Ministério da Previdência Social. Possui cerca de duas dezenas de artigos acadêmicos voltados para políticas públicas de emprego e políticas previdenciárias.
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Maria das Mercês Navarro Vasconcellos Graduada em Biologia, Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É servidora pública, exercendo a função como educadora no Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora de Ciências no Programa de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Rafael Parente Educador, pesquisador e consultor, mestre em Gestão da Educação pela Universidade Pace, de Nova York, e candidato a PhD em Educação Internacional e Desenvolvimento pela Universidade de Nova York (NYU). Seus interesses principais são: sistemas educacionais na América do Sul, utilização de novas tecnologias na educação e parcerias público-privadas na educação. Regina Bodstein Socióloga, doutora em Saúde Pública, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), participa como docente credenciada do programa de pós-graduação stricto sensu na instituição, coordenando disciplinas e orientando teses e dissertações voltadas para a mudança de modelo assistencial em saúde e promoção da saúde. Membro fundadora da área de Ciências Sociais em Saúde na Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Pública (Abrasco), integra o grupo de Promoção da Saúde nesta mesma Associação. É líder de grupo de pesquisa intitulado Promoção da Saúde, Gestão e Avaliação de Programas na Ensp e possui dezenas de trabalhos científicos publicados na área. Rogério Nagamine Costanzi Mestre em Economia pelo Instituto de Pesquisas Econômicas/Universidade de São Paulo (IPE/USP); especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo Federal; Coordenador-Geral de Emprego e Renda do Ministério do Trabalho (2000-2003); Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (2003-2005); assessor especial do Ministro do Trabalho e Emprego (2005-2007); Oficial de Políticas de Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2007-2008); desde outubro de 2008 é Coordenador-Geral de Estudos Previdenciários da Secretaria de Políticas de Previdência Social do Ministério da Previdência. Com experiência na área de pesquisa em políticas sociais, atualmente desenvolve estudos sobre Previdência Social. Contatos: rogerio.costanzi@previdencia.gov.br
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OSIGNIFICADOAMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICOINSTITUCIONAL BRASILEIRO DIANTE DA PRESENÇA DE ESPÉCIES EXÓTICAS NO BRASIL Anderson Eduardo Silva de Oliveira
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O presente estudo analisa os reflexos ambientais do atual quadro jurídicoinstitucional brasileiro relacionado ao enfrentamento das invasões biológicas no território nacional. Baseado em dados secundários, conclui-se que há um crescente risco ambiental decorrente da inexistência de uma política pública consolidada de combate ao problema. Apesar dos avanços científicos, jurídicos e institucionais que trazem avanços, há notável desarticulação entre estes componentes, o que traz a necessidade de estruturação de uma agência coordenadora, capaz de assegurar a consistência das ações e a eficiência prática dessa política. Palavras-chave: arcabouço institucional; espécies exóticas invasoras; legislação; política pública; sociedade de risco
The present study analyzes the environmental consequences of the current Brazilian legal-institutional status of the biological invasions confrontation in the national territory. Based on secondary data, the study concluded that there is an increasing environmental risk due to inexistence of a consolidated public policy of confrontation of this problem. Although the scientific, legal and institutional advances, there is a notable disarticulation between these components, what calls for the needing of a coordinate office, capable to assure the consistency of the actions and the practical efficiency of this politics. Keywords: institutional framework; invasive exotic species, legislation; public policy; risk society
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1. INTRODUÇÃO Os processos de deslocamento humano e transporte de cargas trouxeram uma nova perspectiva para a distribuição espaço-temporal das espécies no mundo. Esses processos, intensificados com a globalização, vêm contribuindo sobremaneira para a quebra de barreiras biogeográficas e, consequentemente, para introdução acidental ou intencional de novas espécies nas comunidades biológicas (ELTON, 1958; MACK, 1996; READER; BRICKER, 1994). Algumas das espécies exóticas, após serem introduzidas em um novo ambiente, são capazes de causar impactos negativos, sendo reconhecidas como espécies exóticas invasoras (RUIZ; CARLTON, 2003). Em muitos casos, a ausência de fatores naturais de controle do crescimento das populações1 das espécies exóticas permite que se reproduzam descontroladamente, demandando cada vez mais recursos para seus sustento e manutenção. Por isso, os impactos causados por espécies exóticas invasoras podem ser associados ao crescimento exponencial da população e sua relação com o consumo exacerbado de recursos disponíveis na comunidade (OCCHIPINTI-AMBROGI; GALIL, 2004). Um número crescente de estudos vem documentando os impactos negativos de espécies exóticas invasoras sobre a biodiversidade (DAVIS, 2003; SALA et al., 2000), sobre sistemas produtivos (RAUT; BARKER, 2002; THIENGO et al., 2007); além disso, essas espécies podem causar enormes prejuízos à economia (PIMENTEL et al., 2001) e trazer riscos à saúde humana (CHAME, 2009). A severidade dos impactos causados por espécies exóticas invasoras, o registro de espécies exóticas invasoras em quase todas as partes do planeta e o reconhecimento mundial de que existem espécies exóticas de quase todos os grupos de organismos tornaram-se temas dos mais pesquisados na atualidade (MEYERSON; MOONEY, 2007). Concomitantemente, mundialmente, reconhece-se que a complexidade e a abrangência do problema são dos maiores desafios socioambientais da atualidade, demandando ações integradas. 1
Em geral, as espécies exóticas que conseguem estabelecer populações em novos ambientes são favorecidas pela ausência de predadores e competidores naturais, por isso, em muitos casos, suas populações podem crescer sem controle.
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Considerando o exposto, o presente estudo analisa os reflexos ambientais do atual quadro jurídico-institucional brasileiro relacionado ao enfrentamento das invasões biológicas no território nacional. Para alcançar os objetivos expostos, realizou-se uma análise baseada na leitura de documentos diversos, dos principais instrumentos legais aplicáveis e de artigos científicos correlatos ao tema. As análises das instituições e da legislação foram focadas na esfera federal. Complementarmente, buscaram-se informações sobre o modus operandi dessas instituições através de entrevistas diretas e correio eletrônico. 2. TERMOS E CONCEITOS BÁSICOS Existem grandes controvérsias na temática de bioinvasão (COLAUTTI; MACISAAC, 2004; VALÉRY et al., 2008). Em grande parte, a situação resulta do entendimento equivocado da comunidade científica sobre a estrutura conceitual da Teoria de Bioinvasões (SHRADER-FRACHETTE, 2001). Termos como exótica, não nativa e alienígena são alguns dos empregados para designar espécies fora de sua área de distribuição natural (REJMANEK et al., 2002; RICHARDSON et al., 2000). Deliberadamente adotou-se o termo exótica por ser o mais usado na literatura científica e na legislação brasileira. Todos esses termos encontravam limitações no estabelecimento dos limites geográficos de distribuição das espécies. O principal reflexo dessa limitação surgia na implantação de ações que vinculavam a distribuição das espécies aos limites geopolíticos. Somente em 2008, a partir de uma ampla revisão, Valery et al. (2008) estabeleceram conceitos baseados em critérios geográficos ou biogeográficos para distinção entre espécies exóticas e nativas. Apesar de caminharmos cientificamente em direção ao estabelecimento de um conceito de espécie exótica relacionado com um ecossistema ou bioma, e não a um limite geopolítico, ainda é muito incipiente a incorporação dessa ótica nos diplomas legais e, por consequência, na postura institucional. Moura (2004) apresentou um dos poucos estudos que analisou os aspectos legais dessa problemática no âmbito brasileiro, mas restringiu-se à fauna. Este estudo ressalta ainda a dificuldade de definição do que seria uma espécie exótica e destaca a necessidade do aprimoramento da legislação, baseado nos avanços científicos supracitados.
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Tal como no caso do emprego do termo exótica, existem diversos sinônimos que indicam espécies que causam algum dano socioambiental. Os estudos focados nos efeitos negativos dessas espécies sobre sistemas produtivos e/ou sobre a saúde humana desenvolveramse com absoluta independência dos ecológicos. Consequentemente, houve divergência na linguagem especializada, o que permanece até os dias atuais, sendo designadas de “pragas quarentenárias” as espécies que afetam sistemas produtivos, de “espécies exóticas invasoras” as que afetam ecossistemas e demais componentes ecológicos naturais e de “patógenos exóticos” as que afetam a saúde humana (OLIVEIRA; MACHADO, 2009). Objetivando aprimorar a operacionalidade do emprego dos termos para fins científicos, técnicos e gerenciais, Occhipinti-Ambrogi e Galil (2004) propuseram o emprego do termo invasora para a espécie cuja população passou a apresentar um estágio de crescimento exponencial e rapidamente ampliou sua área de ocorrência, enquanto que nociva seria aquela que coloca em risco bens humanos. Mas observou-se que esses termos são usualmente empregados para indicar somente interferências sobre a saúde humana e seus bens materiais, negligenciando as interferências sobre os componentes biológicos e físicos do ambiente. Mostra-se então mais adequada a definição apresentada por Ruiz e Carlton (2003), segundo a qual “espécies exóticas invasoras” seriam aquelas cuja introdução e/ ou dispersão ameaçam a diversidade biológica (populações, comunidades, habitats e ecossistemas), podendo causar danos à saúde humana, bens materiais e prejuízos econômicos. Dessa maneira, a diferença entre espécie exótica e espécie exótica invasora é estabelecida pelos efeitos adversos ou negativos que esta última pode causar a um ou mais componentes socioambientais. Tal estabelecimento faz-se necessário porque, conforme notado por alguns autores, muitas espécies exóticas introduzidas não se tornam invasoras, apresentando em muitos casos benefícios, especialmente para as demandas humanas (exemplos: alimentação, insumo industrial). Em se tratando de ações de enfrentamento do problema, é importante notar que a sistematização das informações sobre a dinâmica dos impactos socioambientais causados pelas espécies exóticas invasoras é um dos campos que permaneceram com significativas lacunas de conhecimento, especialmente no Brasil (OLIVEIRA; CREED, 2007;
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PETENON; PIVELLO, 2008), o que por vezes limita a atuação das instituições. Objetivando a superação das dificuldades decorrentes dos conflitos terminológicos e conceituais, a câmara técnica do Conselho Nacional de Biodiversidade (Conabio) estabeleceu como uma das prioridades a uniformização dos termos a serem empregados no tratamento das espécies exóticas invasoras, por meio da elaboração de um glossário oficial (CONABIO, 2008). 3. DO RECONHECIMENTO AO ENFRENTAMENTO DO PROBLEMA O enfrentamento dos problemas decorrentes de invasões biológicas está intimamente relacionado com a geração e difusão do conhecimento sobre a diversidade biológica nacional. Não é possível definir ações de enfretamento da invasão de espécies exóticas sem saber quais são as espécies nativas brasileiras e qual a distribuição natural dessas espécies. Nesse contexto, torna-se especialmente relevante destacar o fato de que o Brasil é um dos países de megadiversidade e os investimentos no mapeamento desse componente só tiveram início nas últimas décadas, principalmente com a realização do 1º Workshop de Biodiversidade do Brasil (Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal – MMA, 1998), seguida da identificação de ações prioritárias para conservação da biodiversidade brasileira (ver MMA, 2002). Já a mobilização nacional para o enfrentamento dos problemas decorrentes das introduções biológicas teve como marco inicial o lançamento de um edital do Ministério do Meio Ambiente, que propunha o levantamento da situação brasileira e sua capacidade de resposta. O edital tinha como objetivo central selecionar subprojetos para a produção de informes sobre espécies exóticas invasoras (MMA, 2003). 4. ENFRENTANDO O PROBLEMA Diante do reconhecimento mundial dos impactos socioambientais causados por espécies exóticas invasoras, diversas instituições vêm compilando e publicando manuais que objetivam a divulgação e a orientação de implementação de medidas de combate a esse pro-
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blema, e que, geralmente, apresentam linha de ação semelhante, nos quais figura uma sequência de formas de prevenção, detecção precoce e resposta rápida, erradicação, controle e monitoramento (NATIONAL INVASIVE SPECIES COUNCIL - NISC, 2003; ZILLER et al. 2007). Essa também foi a linha de ação proposta pela Câmara Técnica sobre Espécies Exóticas Invasoras da Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio) e que será a adotada para apresentação deste estudo. 4.1 GERAÇÃO E DIVULGAÇÃO DE CONHECIMENTO: O PRIMEIRO PASSO O Brasil possui diversos instrumentos legais e normativos correlatos ao tema, assim como instituições federais cuja missão seria a de enfrentar de alguma maneira a introdução de espécies exóticas invasoras. Mas inexiste uma estrutura consolidada como uma política pública ou um planejamento estratégico de âmbito nacional (OLIVEIRA; MACHADO, 2009). Em parte, o fato pode estar relacionado com a incipiência do conhecimento público do problema, assim como a fase em que se encontra o conhecimento acadêmico do tema no Brasil. A geração e a divulgação de conhecimento científico e tecnológico, assim como a capacitação técnica de profissionais para enfrentar o problema, têm lugar de destaque nas instituições de pesquisa e ensino superior. A relevância dessas instituições pode ser averiguada nos relatórios do Informe Nacional Sobre Espécies Exóticas2. As etapas de geração e divulgação de conhecimento concentram-se nas universidades públicas, mas têm sido objeto também da atenção de alguns importantes centros de produção de conhecimento do país, cujo perfil é correlato, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Tais centros têm se destacado no esforço para mudar o panorama e consolidar o conhecimento científico e tecnológico, que efetivamente viabilizaria intervenções antes e/ou depois de invasão. 2
O Informe Nacional Sobre Espécies Exóticas é um conjunto de cinco relatórios que tornou-se o primeiro diagnóstico nacional sobre a distribuição destas espécies e a capacidade instalada no país para tratar o problema, de forma a subsidiar a definição de medidas concretas para o enfrentamento do problema no país.
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A geração do conhecimento tem sido amparada pelas principais instituições de fomento do país (por exemplo, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e a Financiadora de Estudos e Projetos – Finep), através do repasse de recursos aos pesquisadores sobre a forma de bolsas de produtividade ou estudos de graduação e pós-graduação. A geração de dados sobre a identificação das espécies, sua descrição, o monitoramento de seus efeitos e a busca por medidas preventivas ou de controle têm sido amparados ainda por editais universais, não havendo até o momento a promoção de um edital específico para o tema, por parte das instituições de fomento anteriormente citadas. Todavia, merece destaque o edital específico para os Informes Sobre Espécies Exóticas Invasoras do Ministério do Meio Ambiente (MMA, 2003). Outras formas de fomento importantes têm sido oriundas da iniciativa privada e de fontes internacionais, que usualmente direcionam esses recursos para estudos de espécies que afetam bens e saúde humana ou a produtividade de alimentos. Apesar da já mencionada representatividade de instituições com perfil acadêmico envolvidas com o equacionamento das bioinvasões, ainda é incipiente a difusão pública dos conhecimentos, algo que é preconizado na Política Nacional da Biodiversidade (Decreto nº 4.339, de 22 de agosto de 2002). Ao considerarmos a necessidade de difusão do conhecimento, torna-se primordial a inserção das instituições das redes de ensino, vinculadas ao Ministério da Educação (MEC). Para efetivação desse processo, sugere-se a inclusão do tema nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a fim de ampliar o alcance da discussão. Além da atuação dessas instituições por meio da inclusão da temática no currículo escolar dos ensinos fundamental e médio, identifica-se o potencial de veiculação de informações através de campanhas educativas. Consequentemente, tal processo formaliza a mobilização pública e institui núcleos de atuação em escala local. A participação pública não estatal vai de encontro ao exposto por Stein (2004), que considera um dos grandes obstáculos ao controle de espécies exóticas o desconhecimento público da magnitude do problema, assim como dos mecanismos operacionais de introdução. Simultaneamente, deve-se considerar a colocação de Buarque (2002),
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que aponta para a importância da educação e da capacitação de recursos humanos para a implantação de propostas contemporâneas de desenvolvimento, que busquem compatibilidade e sustentabilidade. 4.2 PREVENÇÃO A prevenção é parte das técnicas de melhor custo-benefício para a redução dos impactos negativos das espécies exóticas invasoras (ZILLER et al., 2007). Mas, nesse contexto, torna-se fundamental observar a adequada distinção entre espécies exóticas e espécies exóticas invasoras. O Brasil, assim como muitos outros países colonizados por europeus, recebeu uma intensa carga de espécies exóticas, que ajudaram a sustentar o modo de vida durante o período de colonização. Outra pedra fundamental para a implantação das ações de prevenção é a distinção operacional entre as introduções intencionais e as acidentais, cujas consequências serão discutidas adiante. Dados os riscos resultantes da introdução intencional de organismos, o governo federal brasileiro estabeleceu os regulamentos dos serviços de defesa sanitária vegetal e animal através dos Decretos no 24.114, de 12 de abril de 1934, e no 24.548, de 3 de julho de 1934, respectivamente. Esses decretos apresentam proibições expressas de introduções de espécies que tragam riscos aos sistemas produtivos nacionais. É importante observar que esses decretos não fazem menção expressa aos riscos à saúde humana ou aos ecossistemas naturais e seus componentes. Objetivando garantir a adequada fiscalização, os Decretos no 24.114/1934 e no 24.548/1934 estabeleceram ainda que a importação de vegetais e animais, previstos nesses instrumentos, somente seria permitida nas estações de fronteiras em que tivesse sido instalado o Serviço de Defesa Sanitária. Mas, até hoje, reconhece-se as limitações operacionais da fiscalização. Nem todos os passageiros declaram introduções intencionais, principalmente por desconhecerem os riscos. Por outro lado, a Vigilância Agropecuária (Vigiagro), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que, atualmente, tem como missão implantar as ações de vigilância agropecuária no Brasil, não possui capacidade de inspecionar 100% dos passageiros e cargas que entram no país.
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Os decretos citados previram ainda que as espécies exóticas invasoras, reconhecidas nesses instrumentos como pragas ou doenças passíveis de fácil alastramento, deveriam sofrer apreensão e destruição. Contudo, os decretos encontravam limitações operacionais relacionadas com as dimensões do país, suas fronteiras e a capacidade operacional das instituições de resposta ao problema. Destacam-se ainda as limitações impostas pela barreira de língua e a restrita circulação de informações técnicas e científicas até o advento da internet, assim como a capacitação técnica das instituições, resultando na inoperância plena das instituições de vigilância sanitária animal e vegetal. Tais limitações podem ser ilustradas pelo caso do molusco Achatina fulica, originário das regiões tropicais e subtropicais do leste da África (RAUT; BARKER, 2002). Apesar do potencial invasor da espécie ser documentado desde a primeira metade do século XX por Charles Elton (1958), no Brasil, ocorreram pelo menos três introduções expressivas da espécie, destacando-se a introdução ocorrida em 1988, em Curitiba (PR) com a comercialização, em uma feira agrícola, de indivíduos provenientes da Indonésia, para o início de criadouros comerciais dos caramujos (TELES; FONTES, 2002) e as introduções voluntárias no Porto de Santos (SP) entre os anos de 1996 e 1998, com a distribuição de espécimes pelo litoral e pelo interior desse estado em cursos de formação de criadores comerciais (ZILLER; ZALBA, 2007). Todas essas introduções foram intensamente fomentadas pelo poder público local, levando à implantação de um expressivo número de criadouros nesses estados. Mas, alguns meses após a constatação de que os retornos econômicos prometidos não se concretizariam, alguns criadouros foram abandonados, a espécie começou a se adaptar às condições naturais e, posteriormente, a dispersar-se, dando início à invasão no Brasil. Atualmente, a espécie está presente em 5.561 municípios, distribuídos em 23 dos 26 estados brasileiros (THIENGO et al., 2007), e é reconhecida como causadora de impactos sobre mais de 70 espécies vegetais de valor comercial (RAUT; BARKER, 2002). Sob a ótica dos riscos ecológicos, um dos primeiros instrumentos a contemplar mecanismos de prevenção da introdução de espécies exóticas invasoras foi a Lei no 5.197, de 3 de janeiro de 1967 (Lei de Proteção à Fauna). Em seu artigo 4º, a Lei no 5.197/1967 determinou que nenhuma espécie poderia ser introduzida, sem parecer técnico
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oficial favorável e licença expedida na forma da Lei. No entanto, a normatização técnica dos procedimentos só foi feita em 1994, através da Portaria Ibama no 29, de 24 de março de 1994 e revista pela Portaria Ibama no 93, de 7 julho de 1998, que estabeleceu padrões de importação e exportação de organismos vivos, produtos e subprodutos da fauna nativa e exótica brasileira. No ano seguinte, instituiuse a Instrução Normativa Ibama nº 1, de 15 de abril de 1999, que trouxe como principais novidades a necessidade de licenciamento ambiental da cultura de espécies exóticas e o reconhecimento do alto risco das atividades de introdução e translocação de espécies exóticas. Esses instrumentos são reconhecidos como fontes de grandes conflitos entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (Seap), recentemente alçada ao status de Ministério da Pesca e Aquicultura. Os conflitos são resultantes da reconhecida postura da então Seap de fomentar a introdução e translocação de espécies de pescado de interesse comercial em todo o território, ignorando os riscos constatados. A preocupação com a dispersão de espécies exóticas importadas é evidenciada na Portaria Ibama no 93/1998. De acordo com a mesma, para a solicitação de autorização de introdução de espécies exóticas no Brasil deve-se garantir a segurança da capacidade de suporte do ambiente, da saúde humana e do patrimônio público e privado contra uma fuga acidental da espécie. Em adição, o Artigo 7º dessa Portaria permite ao Ibama consultar especialistas nos taxa3 antes de autorizar uma introdução, assim como instituições ambientais sediadas na região. Contudo, reconhece-se algumas limitações operacionais. Apesar do expressivo aprimoramento técnico-científico nacional, o Brasil não dispõe de profissionais especializados em todos os grupos de organismos passíveis de introdução. Outro fator importante é o conflito entre a expectativa de tempo de processo dos empreendedores, que pretendem introduzir novas espécies no país, o tempo necessário para desenvolver testes científicos, que garantam a segurança ambiental após a introdução, e o tempo que o Ibama, assim como os demais 3
Taxa é o plural de taxon, termo latino que denomina uma unidade taxonômica de qualquer nível de um sistema de classificação dos seres vivos, como família, gênero ou espécie.
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órgãos, necessita para analisar o processo e emitir um parecer. O resultado é o crescente número de casos de introduções intencionais sem as autorizações necessárias. É necessário considerar ainda a existência de incertezas decorrentes das diferentes respostas que uma espécie ou população pode apresentar após a introdução. Mundialmente, registram-se casos de espécies que apresentaram insucesso de estabelecimento depois de repetidas introduções, mas por razões nem sempre óbvias, após diversas tentativas tiveram sucesso e algumas, após o escape, tornaram-se sérios problemas ecológicos e/ou econômicos. Além disso, um dos principais problemas da introdução intencional é que muitas das espécies comercialmente introduzidas são possíveis vetores de outras espécies (vírus, fungos, protozoários etc.), que afetam espécies nativas (TAVARES; MENDONÇA-JR., 2004; GOLLASCH, 2007). Então, espécies não focais (agentes de doenças, parasitas e outras espécies acompanhantes, como as comumente incrustadas em ostras) são acidentalmente importadas. Consequentemente, o cuidado dedicado às espécies principais não necessariamente considera os efeitos da presença de parasitas presentes nas espécies introduzidas. A análise de riscos e a quarentena são as duas principais ferramentas para reduzir as incertezas. A análise de risco aplica-se principalmente aos casos de introduções intencionais para abastecimento, por isso, tem sido implantada e aprimorada pelo Mapa, através do programa preventivo de Análise de Risco de Pragas. Mas, atualmente, buscase também a implementação da análise de risco baseada nas rotas e vetores. Isso porque um dos mais relevantes componentes para o desenvolvimento de modelos preventivos é a pressão de propágulos, que é a quantidade e a frequência de indivíduos (animal, planta, semente, propágulo etc.) que chega a uma comunidade receptora. O aumento do aporte de propágulos na comunidade aumenta a chance de a espécie se estabelecer na comunidade (DUNCAN et al., 2003; FINE, 2002; KOLAR; LODGE, 2001). Já a quarentena é um dos mais antigos mecanismos conhecidos pela humanidade para evitar o estabelecimento e a dispersão de espécies exóticas, reconhecidas como pestes e/ou doenças que ameacem a saúde de homens, plantas e animais (SHINE et al., 2000). Os autores evidenciaram a relação entre a aplicação de medidas quarentenárias
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e o comércio internacional e, por essa razão, na sua implantação precisam ser considerados não somente aspectos dos direitos domésticos, mas também o regime legal que estabelece o desenvolvimento do livre comércio mundial. Diversos acordos quarentenários disciplinam medidas fitossanitárias, com técnicas e protocolos estabelecidos. Tais restrições são estabelecidas pelo International Health Regulations, e referem-se quase que exclusivamente à proteção de bens de consumo, sistemas produtivos e à saúde humana. No Brasil, no caso de introduções intencionais, a quarentena é prevista em instrumentos como a Portaria Ibama nº 93/98 e Portaria Ibama nº 145-N, de 29 de outubro de 1998, cujos critérios haviam sido aprovados previamente pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Medidas quarentenárias são previstas também para docagem em portos nacionais pela Resolução Anvisa – RDC nº 217, de 21 de novembro de 2001. As introduções acidentais podem ocorrer por diversos vetores relacionados aos transportes de carga e de pessoas, por vias aéreas, navais e terrestres. Nos pontos de chegada e fronteiras do país (portos e aeroportos), nota-se a sobreposição espacial da atuação de várias instituições de fiscalização que fomentam conflitos históricos decorrentes de lacunas da legislação que ampara a atuação desses agentes. Nesses locais, destaca-se a atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que tem como finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, agindo em portos, aeroportos e fronteiras e dialogando com o Ministério das Relações Exteriores e com instituições estrangeiras, para tratar de assuntos internacionais na área de vigilância sanitária (ANVISA, 2008). A Anvisa, que é vinculada ao Ministério da Saúde, trabalha com o sistema de alerta de risco epidemiológico em todo o território brasileiro, que usualmente é dado pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). Esta secretaria ainda coordena e executa os planos de divulgação dos riscos epidemiológicos e articula os programas envolvendo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e órgãos brasileiros de vigilância sanitária e de saúde. A Anvisa destaca-se ainda por sua capacidade operacional e gestora de superar o âmbito do Ministério da Saúde e por ter buscado com sucesso parcerias com outros ministérios.
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É importante destacar a eficiência da Anvisa nas ações preventivas de introdução de espécies exóticas invasoras. Mas a agência atua quase exclusivamente a partir do momento em que é informada através dos sistemas internacionais de alerta. Esses alertas orientam a elaboração e divulgação de normas técnicas nacionais sobre formas de prevenção e controle de agentes infecciosos e seus vetores (CHAME, 2009). Entretanto, como vimos anteriormente, os riscos da introdução não se restringem à saúde humana. Além disso, a fiscalização de todas as demais espécies passa a ser passiva. Não havendo objeto de busca direcionada a um patógeno, hospedeiro ou vetor específico, a ação ainda precisa de incrementos e o risco de entrada de espécies exóticas invasoras no país é real, pois depende de uma ação articulada entre os diversos órgãos que atuam na fiscalização. Nesse contexto, torna-se fundamental a parceria e a capacitação técnica dos agentes da Polícia Federal e da Receita Federal, que mantêm o primeiro contato com passageiros e mercadorias e, em casos suspeitos, são os responsáveis por acionar o agente especializado, neste caso, Vigiagro, Anvisa e/ou Ibama. Em um contexto estratégico, a Polícia Federal também deve ser destacada como agente de prevenção da translocação de espécies dentro do território brasileiro, ou seja, das introduções domésticas. Como citado anteriormente, uma espécie exótica não é vinculada aos limites geopolíticos do país, mas sim aos limites biogeográficos de sua distribuição. A introdução de espécies em novos ambientes dentro do país traz riscos tão sérios ou maiores do que as introduções de espécies oriundas de outros países, especialmente porque a similaridade entre os ambientes doador e receptor é um dos facilitadores da naturalização de uma espécie introduzida. Um suporte institucional bem desenhado para a questão das espécies exóticas deveria sempre priorizar a prevenção e a minimização de introduções indesejadas, levando em consideração as melhores práticas, porque é a primeira linha de defesa contra a bioinvasão. Mas, como mencionado anteriormente, há tradição de prevenir somente a introdução de espécies oriundas de outros países, sendo registrados no Brasil diversos casos de introdução doméstica de espécies exóticas que se tornaram invasoras, como, por exemplo, a espécie arbórea Schizolobium parahybae, o mico Callithrix penicillata e o peixe Cichla monoculus (INSTITUTO HÓRUS, 2009). O primeiro
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esforço para mudar essa situação foi a instalação da Câmara Técnica de introdução, reintrodução e translocação de espécies exóticas em ambientes aquáticos, no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), em 2005. Mas, até o momento, não foram incorporados todos os aspectos relevantes à normatização. Apesar de o Brasil ser signatário da Convenção de Diversidade Biológica (CDB), regulamentada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, que prevê o compromisso de prevenir a introdução e disseminação de espécies exóticas invasoras, pelo exposto, nota-se que o país não tem um mecanismo de prevenção de introdução de espécies exóticas consolidado. Ao destacar a necessidade de prevenir a disseminação e não só de introdução, os países signatários da CDB deveriam adotar mecanismos de prevenção não só no ambiente receptor das espécies, mas também nas comunidades doadoras. 4.3 DETECÇÃO PRECOCE E RESPOSTA RÁPIDA Mesmo a adoção das melhores práticas de prevenção não vai interromper a penetração de todas as espécies exóticas invasoras (NISC, 2003). Assim, a detecção precoce e a resposta rápida são fundamentais, permitindo a intervenção sobre essas espécies ainda em condições de serem contidas ou erradicadas. Para tanto, é necessário a integração dos mecanismos de detecção, monitoramento e intervenção, resultando em esforços direcionados para estudos sistematizados de longa duração nas áreas de maior suscetibilidade, assim como nas rotas recorrentes de introdução. Após a entrada em um novo ambiente, as espécies passam por uma fase de adaptação ou naturalização, também conhecida como latência (HOBBS; HUMPHRIES, 1995) (Figura 1). Usualmente, nessa fase, as espécies apresentam baixas taxas reprodutivas, viabilizando ações de contenção, erradicação ou controle. É importante salientar que nem todas as espécies exóticas se tornam invasoras. As espécies naturalizadas podem permanecer em equilíbrio com a comunidade receptora por tempo variável, e algumas delas fazem-no por longo prazo. No entanto, algumas dessas espécies, após ter o equilíbrio interrompido, apresentam taxa de crescimento populacional exponencial, tornandose invasoras.
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Como será discutido mais adiante, o Brasil não possui uma rede de monitoramento biológico estruturado, dificultando a detecção de novas espécies nas comunidades biológicas. A situação agrava-se devido à lacuna jurídico-institucional existente entre a detecção e a adoção de medidas de resposta. A compartimentalização de responsabilidade dos ministérios e seus agentes executivos é evidenciada pelo fato de que as iniciativas e a alocação de recursos refletem as preocupações do gestor do componente socioambiental afetado, desconsiderando o fato de que algumas espécies exóticas invasoras afetam diversos componentes socioambientais simultaneamente. A alocação de recursos para o enfrentamento das espécies exóticas é uma situação conflituosa em muitos dos países em desenvolvimento (ver DI PAOLO; KRAVETZ, 2004; MILLER; GUNDERSON, 2004; STEIN, 2004). Ainda entre os países desenvolvidos são raros os casos de sucesso dessa gestão. Uma alternativa para a redução desse conflito tem sido a alocação de recursos em um comitê gestor, representado por parte expressiva das instituições envolvidas na questão. A questão de recursos é na verdade somente mais um dos elementos conflituosos diante de uma situação complexa e polêmica, que não tem no Brasil arena adequada de discussão devido à ausência de uma instituição integradora. A análise dos relatórios do sistema de emergência de acidentes ambientais do Ibama e de outros documentos correlatos permite a averiguação de que não há previsão de ações relacionadas à introdução de espécies exóticas nesse mecanismo (IBAMA, 2008). Mais uma vez, é importante notar que de nada adiantaria um sistema capaz de detectar essas espécies e incorporá-las ao sistema de acidentes ambientais sem a instituição de um plano de contingência e sua adoção. A situação pode ser ilustrada pelo caso do mexilhão dourado, Limnoperna fortunei, que foi documentado pela primeira vez na América do Sul no final de 1991 (DARRIGRAN; PASTORINO, 1993). Entre os anos de 1994 e 1995 foram feitos alertas sobre o crescimento populacional explosivo e o potencial invasor da espécie. Entretanto, não foram tomadas medidas de controle enquanto as populações ainda estavam confinadas em área relativamente reduzida. Desde 1998, quase anualmente, surgem novos registros da espécie em uma bacia hidrográfica brasileira diferente. Hoje, todo esforço está direcionado na retirada de
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indivíduos de populações que crescem em taxas alarmantes, tornando-se uma das maiores pragas biológicas no Brasil (DARRIGRAN; DRAGO, 2000; MANSUR et al., 2004; OLIVEIRA et al., 2006). Um fato relevante à discussão é que, normalmente, os pesquisadores são os primeiros a detectar a presença dessas espécies, mas alguns priorizam seus interesses científicos em detrimento do apontamento da necessidade de enfrentamento do problema, frente aos riscos socioambientais. Nesse caso, para garantir a manutenção do objeto de pesquisa, alguns pesquisadores não recomendam ou não iniciam ações de controle das espécies exóticas, ainda que reconheçam os impactos provocados pela espécie. 4.4 ERRADICAÇÃO A erradicação é uma ação ou conjunto de ações que visam eliminar uma espécie de uma determinada região. Em se tratando de espécies exóticas invasoras, a erradicação é aplicável principalmente nos casos em que a espécie exótica ainda está confinada a uma região relativamente reduzida. Um dos mais antigos instrumentos legais de erradicação de espécies exóticas no Brasil é o Decreto nº 24.114/1934. Esse decreto regulamentou a defesa sanitária brasileira e instituiu em seu Capítulo IV medidas de erradicação de espécies exóticas que afetavam as lavouras. O decreto reconheceu como de responsabilidade do Serviço de Defesa Sanitária Vegetal a adoção das medidas necessárias, que incluíam desde a aplicação de substâncias até a destruição parcial ou total de lavouras ou formações florestais contaminadas. O então Ministério da Agricultura era responsável por subsidiar tecnicamente as ações de erradicação através do Serviço de Defesa Sanitária Vegetal, mas todos os custos da operacionalização deveriam ser de responsabilidade dos proprietários ou arrendatários da zona de ocorrência da espécie exótica invasora, tratada por esse seguimento econômico como praga. Atualmente, a erradicação de tais espécies, assim como aquelas que afetam a pecuária, está sob a responsabilidade da Secretaria de Defesa Agropecuária, vinculada ao atual Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O Mapa adotou um sistema
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de registro e notificação de espécies exóticas invasoras4, que é atualizado periodicamente, e prevê ações de controle e erradicação dessas espécies. O sistema e a lista mais atualizada foram normatizados pela Instrução Normativa Mapa nº 41, de 2 de julho de 2008. No que diz respeito aos resultados de erradicação de espécies exóticas no Brasil, um dos mais relevantes exemplos é o caso da febre aftosa. A febre aftosa foi introduzida no Brasil em 1895, após um surto da doença em rebanhos da Península Ibérica no final do século XIX (ASTUDILLO, 1992). Ações preventivas que visavam reduzir a disseminação no país começaram a ser implantadas somente nas décadas de 1950 e 1960, mas a política de erradicação só foi implantada na década de 1990 (LYRA; SILVA, 2004). O Mapa, juntamente com os seus parceiros regionais e locais, conseguiu, progressivamente, estabelecer e manter zonas livres em quase todo o país (Figura 2). A meta do ministério é erradicar a doença do país até o final do ano de 2009, de acordo com o Plano Hemisférico de Erradicação da Febre Aftosa (Phefa). A erradicação da febre aftosa, assim como de outras doenças que afetam rebanhos e o homem, dá-se principalmente através da vacinação. A varíola, por exemplo, introduzida nas Américas pelos colonizadores europeus, hoje é considerada erradicada em todo o mundo graças às maciças campanhas de vacinação (CHAME et al., 2005). Mas, em alguns casos, a erradicação se dá através da eliminação do hospedeiro ou dos organismos potencialmente contaminados, como foi o caso dos rebanhos abatidos na Grã-Bretanha, em 2001, o que gera grande questionamento em torno dos métodos a serem empregados, especialmente por parte do público que detém menor conhecimento da problemática e da extensão de seus impactos. Por isso, registrase o desconhecimento público do problema como um dos principais dificultadores da implementação de ações de erradicação dessas espécies, especialmente das carismáticas ou de interesse etnobotânico, como será discutido mais adiante. Devido às experiências adquiridas por meio do convívio com os severos impactos socioambientais e rápidas dispersões, muitos ecó4
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, assim como todos os órgãos vinculados ao mesmo, empregam o termo “praga quarentenária” como sinônimo de espécie exótica invasora.
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logos e produtores rurais são mais facilmente convencidos dos danos e riscos gerados por espécies exóticas invasoras e, consequentemente, apoiam mais facilmente as ações de erradicação que demandam o abate. Nota-se então, a relevância de divulgar essas experiências como parte do processo de sensibilização do público. No Brasil, esse tipo de conflito tornou-se bastante evidente quando o Ibama publicou a Instrução Normativa Ibama no 141, de 19 de dezembro de 2006. A IN 141/2006, que baseia-se no artigo 3o da Lei no 5.197/1967 e no artigo 37 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, regulamentou o controle e o manejo ambiental da fauna nativa ou exótica nociva ao meio ambiente. No artigo 2º dessa instrução normativa, a captura seguida de eliminação, ou eliminação direta de espécimes animais, é apresentada como uma das definições de controle. Porém, deve-se observar que a epígrafe 3ª do artigo 4º dessa instrução normativa especifica que a eliminação direta de indivíduos das espécies em questão, ou seja, a erradicação, só deverá ser efetuada quando tiverem sido esgotadas as medidas de manejo ambiental. A erradicação de espécies exóticas foi tratada também no Decreto o n 4.339, de 22 de agosto de 2002, que instituiu a Política Nacional da Biodiversidade. O item 2.VIII desse decreto preconiza que o poder público deverá determinar medidas para evitar a degradação ambiental, quando existir evidência científica de risco sério e irreversível à diversidade biológica. Nesse caso, considerando os impactos negativos causados por espécies exóticas invasoras, pode-se considerar entre as medidas cabíveis a erradicação, por elas colocarem em risco os demais componentes ambientais. O item 11.1.13 do mesmo decreto cita textualmente a recomendação de erradicação e o controle de espécies exóticas invasoras que possam afetar a biodiversidade. Já a Resolução Conama no 369, de 28 de março de 2006, em seu artigo 2º, reitera as disposições da Lei no 4.771, de 15 de setembro de 1965, ao considerar de interesse social a erradicação de espécies exóticas invasoras, quando se mostrar necessária a sua adoção, para assegurar a proteção da integridade da vegetação nativa. A Convenção de Diversidade Biológica, regulamentada no Brasil pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, recomenda enfrentar o problema de espécies exóticas invasoras com base no Princípio da Precaução. De acordo com a convenção, a falta de certeza cientí-
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fica não deve ser usada como justificativa para prorrogar ou deixar de implementar ações de erradicação, contenção ou controle. De forma análoga, a ação rápida para prevenir a introdução, o estabelecimento ou a expansão de uma espécie exótica invasora potencial é recomendada ainda que haja incerteza sobre seus impactos a longo prazo (UNIÃO INTERNACIONAL PARA A CONSERVAÇÃO DA NATUREZA - IUCN, 2000). Registra-se então um potencial conflito entre o conteúdo do Decreto no 4.339/2002, que recomenda a erradicação somente após a evidência científica de risco sério e irreversível à diversidade biológica, e a Convenção de Diversidade Biológica, que recomenda a adoção da precaução, ainda que haja incerteza científica. Com base no Princípio da Precaução, as decisões de manejo devem ser realizadas antes mesmo da absoluta certeza científica sobre se tal situação configuraria uma ameaça real ao ambiente, bastando a plausibilidade, fundada nos conhecimentos científicos disponíveis na época. O Princípio da Precaução traz, portanto, uma exigência de cálculo precoce dos potenciais perigos para a saúde ou para a atividade de cada um, quando o essencial ainda não surgiu (GODARD, 2004). Contudo, em se tratando de elementos biológicos, a resposta a condições semelhantes não necessariamente é idêntica. As populações de uma mesma espécie apresentam respostas diferenciadas a condições ambientais diferentes, muitas vezes com diferenças muito sutis. No contexto da discussão, torna-se relevante pontuar que programas de erradicação de espécies exóticas invasoras podem incluir uma ampla diversidade de metodologias, por exemplo, técnicas de caça terrestre e/ou aérea, armadilhas com atrativo alimentar ou sexual, envenenamento em iscas ou corte e retirada direta, sem negligenciar o previsto no artigo 32 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que trata dos crimes relacionados aos maus-tratos de animais. Esse tem sido um dos principais pontos de resistência da sociedade às ações de erradicação de espécies de fauna exótica invasora. O aprimoramento da legislação deve ser reflexo do desenvolvimento científico de um tema e não o contrário. Consultas feitas à Plataforma Lattes (CNPq) e ao sistema Web of Science confirmam a insipiência nacional do tema e a raridade de estudos científicos que efetivamente recomendem ações de controle e/ou erradicação de espécies exóticas invasoras no Brasil. A situação agrava-se devido ao distanciamento en-
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tre os diversos atores envolvidos no processo. Nota-se que uma parcela menor ainda dos resultados científicos é convertida em informações adequadamente encaminhadas ao poder público. Consequentemente, as poucas recomendações de erradicação circulam exclusivamente no meio acadêmico ou chegam tardiamente aos envolvidos com a tomada de decisão. Apesar do volume crescente de estudos sobre bioinvasões, ainda existem muitas incertezas científicas (FACON et al., 2005), tornando o tema um dos mais controversos da atualidade. Como saber se uma espécie exótica poderá causar impactos negativos sobre populações nativas ou ecossistemas? Por essa razão, alguns grupos argumentam que a detecção precoce, consorciada com as ações de controle, representa uma postura preventiva, eliminando a espécie exótica antes que ela comece a causar impactos (ZILLER et al., 2007). De acordo com essa linha de pensamento, não se pode esperar por provas concretas dos impactos para somente então iniciar as ações de controle. A demora pode fazer com que seja tarde demais para resolver o problema. O reconhecimento da importância de pequenos embora crescentes focos de espécies exóticas potencialmente invasoras é algo que ainda não foi incorporado à cultura brasileira de enfrentamento desse problema. Com poucas exceções, é dada atenção insuficiente ao desenvolvimento de uma estratégia eficaz para controlar a propagação das espécies exóticas. Em adição, a ausência de um sistema amplo de monitoramento da biodiversidade dificulta a rápida detecção dessas espécies. A discussão sobre o controle e a erradicação de espécies exóticas traz à tona a complexidade dos sistemas ecológicos. Essa complexidade materializa-se pela dificuldade em prever os efeitos de uma intervenção, assim como de estabelecer o limite entre quando iniciar a erradicação é uma medida precoce e quando adiar torna o controle impossível. Zavaletta et al. (2001) ressaltam a importância de ver o processo de erradicação como um todo, com efeitos positivos atrelados ao risco de efeitos negativos. Em um sistema complexo como o ecológico, a retirada de um componente, aqui representado pelas espécies exóticas invasoras, pode representar uma fonte de desequilíbrio tão séria quanto a introdução. O Princípio da Precaução tem sido empregado por ativistas próerradicação, que consideram que, dadas as dificuldades em conter espécies exóticas invasoras já estabelecidas, deve-se priorizar a rápida
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resposta a essas populações. Mas, de acordo com Godard (2004), a adoção do Princípio da Precaução remete ao empenho no aprimoramento científico e tecnológico dos mecanismos de avaliação e gestão dos riscos. Considerando o exposto por Zavaletta et al. (2001), o mesmo princípio deveria ser usado como argumento para a cautela, uma vez que esse princípio afirma que, na ausência da certeza científica formal, a existência de um risco de dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever tal dano. Esse argumento torna-se especialmente legítimo ao lembrarmos que a extinção, ainda que local, é para sempre, e que controlando focos nascentes de espécies exóticas, pode-se também estar fazendo uma leitura extremamente pontual do caso e, com isso, impedindo processos naturais da dinâmica das comunidades, de entrada e saída de espécies. Agir sem observar as respostas do ambiente pode levar a maus investimentos de recursos humanos e financeiros. Ademais, independentemente do sucesso das ações de controle ou erradicação, uma intervenção inadequada pode colocar em risco outros componentes ambientais presentes no mesmo espaço físico. A chave da questão está em organizar a estratégia de manejo de forma a enfrentar o problema e, simultaneamente, aumentar o conhecimento científico sobre o tema (ZALBA; ZILLER, 2007). No contexto do manejo preventivo de espécies exóticas invasoras, uma linha crescente considera que a erradicação só pode acontecer antes do término da fase de estabelecimento e naturalização da espécie, ou seja, antes de a espécie iniciar a sua dispersão e ser efetivamente constatada como espécie exótica invasora (SAKAI et al., 2001; ALLENDORF; LUNDQUIST, 2003). A partir daí, seria aplicável somente um controle do tamanho da população. Simberloff (2003) argumenta que o conhecimento integral da biologia de população das espécies invasoras não é necessário, em algumas circunstâncias, para o manejo e controle. Essa colocação vem sendo entendida como “atire primeiro, faça as perguntas depois”. Essa recomendação está de acordo com algumas experiências com ecologia de população. A melhor maneira de reduzir a probabilidade de que uma espécie exótica se torne invasora é eliminála antes que tenha tempo para se tornar representativa na comunidade invadida e que tenha capacidade de se dispersar ou desenvolver adaptações que lhe permitam substituir as espécies nativas (ALLENDORF;
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LUNDQUIST, 2003). Entretanto, não podemos negligenciar o fato de que a entrada de uma nova espécie é algo inerente à dinâmica das comunidades. Além disso, nem todas as espécies, após a introdução em um novo ambiente, tornam-se igualmente invasoras. O aumento da compreensão da biologia, da genética e dos mecanismos de evolução das populações pode ser muito útil na distinção das espécies introduzidas que são mais propensas a tornarem-se invasoras. Como comentado anteriormente, a opinião pública deve ser considerada como um dos pontos a ser observado e incorporado ao processo de enfrentamento das espécies exóticas invasoras e seus impactos. Grupos de defesa dos direitos dos animais baseiam-se no artigo 32, da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, sob a argumentação de que é crime ambiental maltratar animais para posicionar-se contra as ações de controle e erradicação de espécies exóticas invasoras. No entanto, na maioria dos casos, tais grupos negligenciam os efeitos nocivos dessas espécies sobre as demais, o que é considerado no artigo 37 da mesma lei. Essa situação pode ser ilustrada pelo posicionamento do grupo de defesa dos direitos dos animais no caso dos javalis, no Estado do Paraná (JACOBS; GNIPPER, 2009). O outro extremo pode ocorrer quando a sociedade adota uma espécie como inimiga, mas a sua semelhança com uma nativa coloca em risco esta última. O caso pode ser ilustrado pelo molusco Achatina fulica, que vem sendo combatido em todo o Brasil. Sua semelhança com espécies nativas tem sido considerada uma das razões para a coleta equivocada e consequente agravamento dos impactos sobre as espécies nativas. O paradoxo das situações descritas ilustra o distanciamento entre a geração e a difusão do conhecimento científico no Brasil. Simultaneamente, evidencia-se a necessidade de incorporação da educação ambiental e adequada comunicação à sociedade sobre o que são espécies exóticas invasoras e quais são os seus riscos ao ambiente e à sociedade. A difusão das razões e das técnicas de manejo das espécies exóticas invasoras pode evitar que denúncias de controle destas sejam julgadas pela sociedade como crime ambiental, quando em verdade são ferramentas para a conservação da diversidade biológica. A adequada divulgação do tema envolveria os mais diversos segmentos da sociedade, que poderiam ajudar no estabelecimento de jurisprudência e regulamentação para o tema, tais como listas oficiais de espécies exóticas
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invasoras para referência pública, regulamentação para uso de espécies de valor comercial e análises de risco (ZILLER; ZALBA, 2007). Nesta análise, torna-se relevante observar ainda que a IN Ibama no 141/2006 trata exclusivamente da fauna, evidenciando a inobservância de registros de espécies exóticas invasoras em quase todos os outros grupos biológicos existentes (ver PYSEK et al., 2008). 4.5 CONTROLE O controle é aplicável às espécies exóticas invasoras quando elas estão dispersas em uma área suficientemente grande para que sua erradicação não seja viável, técnica ou economicamente, em uma única etapa. O controle de espécies exóticas invasoras pode ser uma etapa de um plano de erradicação de longo prazo. Tal como nas fases de enfrentamento anteriormente citadas, o controle das espécies exóticas invasoras que afetam a saúde pública recai sobre a Anvisa, enquanto a segurança e o abastecimento agropecuário é objeto de atenção do Vigiagro. Ao Ibama cabe enfrentar o problema quando este afeta os ecossistemas naturais, excetuando-se as Unidades de Conservação, que serão de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio). Ao Ibama, cabe ainda a avaliação e a apuração técnica de impactos ambientais para a aplicação de penalidades cabíveis. Mas, segundo Brandão (2006), a atuação do Instituto, no controle de espécies exóticas invasoras no país, é parcialmente comprometida pela carência de recursos. Mas tal afirmativa é contradita pela avaliação realizada por Dutra et al. (2006), que notou que a capacidade de execução do orçamento do Ministério do Meio Ambiente, ao qual o Ibama está vinculado, foi de apenas 54% do previsto. Apesar do amparo legal já estabelecido, o controle de espécies exóticas invasoras, assim como as ações de erradicação, ainda encontram muitas dificuldades operacionais, especialmente pelas limitações tecnológicas. Tais limitações foram reconhecidas pelo Decreto no 4.339/2002, que em seu item 13.2.7 apontou a necessidade de apoiar e promover o aperfeiçoamento de ações de prevenção, controle e erradicação de espécies exóticas invasoras. As dificuldades operacionais tornam-se maiores em ambientes aquáticos, devido à fluidez do mesmos e às formas de reprodução dos organismos.
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Essas dificuldades operacionais são convertidas também em elevados custos financeiros. E, apesar do item 2.IX do Decreto nº 4.339/2002 considerar que a internalização dos custos deve se dar levando em conta o princípio do poluidor pagador5, registra-se que, até o momento, o poder público e os entes afetados pelos efeitos negativos de espécies exóticas invasoras têm arcado com os custos. Em parte, esse fato está relacionado com a dificuldade de se estabelecer uma relação de nexo causal entre os danos e a presença de espécies exóticas invasoras; além disso, em alguns casos, não é possível identificar os vetores ou responsáveis pela introdução da espécie exótica. Essa dificuldade é uma realidade comum em casos de múltiplos vetores operantes na região. Ademais, o período de latência6 muitas vezes é longo o suficiente para que não seja possível a identificação do vetor de introdução (MATTHEWS; BRAND, 2005), dificultando a aplicação das sanções previstas na legislação. 4.6 MONITORAMENTO No estabelecimento de uma estratégia de enfrentamento, o monitoramento deve ser analisado principalmente sob a ótica dos ambientes receptores, das rotas com maior potencial e das espécies exóticas invasoras já reconhecidas cientificamente, sem negligenciar as diferentes respostas ecológicas de espécies exóticas introduzidas em um novo ambiente. É fato que o país não é capaz de monitorar todas as suas portas de entrada e saída, menos ainda a circulação doméstica, o que reforça a relevância de um sistema de monitoramento baseado em prioridades. A argumentação baseia-se ainda no fato de que o estabelecimento de uma nova espécie na comunidade é fortemente influenciado pela pressão de propágulo, que está relacionada com a utilização de rotas recorrentes. O monitoramento deve ser implantado ainda como uma ferramenta de avaliação das ações implantadas. 5
De acordo com o princípio do poluidor pagador, em princípio, o poluidor deverá suportar o custo da poluição, com o devido respeito pelo interesse público e sem distorcer o comércio e os investimentos internacionais. 6 Período de latência é o período necessário para que uma espécie, sob determinadas condições, se adapte ao novo ambiente, passe a reproduzir-se e a disseminar-se.
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Quando uma espécie com potencial invasor é detectada, é fundamental que haja um plano de contingência montado que viabilize a tomada de decisões e ação imediatas. É igualmente importante que esse plano de contingência inclua atividades de comunicação com o público e a imprensa e uma fase de monitoramento para verificação da eficiência da ação de erradicação, assim como dos impactos causados ao ambiente. Baseado nesses princípios, estabeleceu-se o Programa Global de Gerenciamento de Água de Lastro (GloBallast). No Brasil, o programa é implantado com a colaboração entre instituições nacionais, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Autoridade Marítima, e por instituições internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e do Fundo para o Meio Ambiente Global (GEF) (SILVA et al., 2002). Tal atuação é amparada por acordos internacionais e pela legislação nacional. Entretanto, observase que o esforço é direcionado apenas para um dos vetores operantes de introdução de espécies exóticas. A situação é menos estruturada no contexto de vias terrestres, especialmente porque a malha viária é muito maior e mais complexa, além do fato de o país apresentar uma ampla fronteira terrestre não monitorada. Dessa forma, o aprimoramento desse sistema de detecção e monitoramento passa necessariamente pela consolidação de informações sobre as rotas e vetores operantes, envolvendo não só as instituições de pesquisa, mas também entidades internacionais ligadas ao comércio, a Autoridade Marítima, a Infraero, a Polícia Federal e as agências reguladoras de transporte. No Brasil, são raros os programas ou ações de enfrentamento das bioinvasões com uma estrutura semelhante à do GloBallast. Mesmo nos casos de introdução intencional de espécies exóticas para fins comerciais, a estrutura, quando implantada, é precária. A preocupação com o aprimoramento do monitoramento foi evidenciada na Política Nacional de Biodiversidade. Mas muito pouco do proposto evoluiu desde então na esfera federal, diferentemente da esfera estadual, em que se registram iniciativas importantes de Estados como Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro, que vêm trabalhando para estabelecer listas oficiais de espécies exóticas e exóticas invasoras, que objetivam o estabelecimento de linhas regionais de monitoramento e controle.
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4.7 PLANEJAMENTO E GESTÃO ESTRATÉGICA Como apontado anteriormente, o Brasil possui diversos instrumentos legais correlatos ao tema, assim como instituições da esfera federal cuja missão seria a de enfrentar de alguma maneira a introdução de espécies exóticas invasoras. Inexiste, porém, uma estrutura formal consolidada através de uma Política Pública ou um Planejamento Estratégico (OLIVEIRA; MACHADO, 2009). Existem esforços voltados para pesquisa, capacitação técnica, educação e informação pública, mas existem falhas operacionais, institucionais e legais em todas as etapas de enfrentamento do problema. Há necessidade de implantação de uma gestão da estratégia nacional, capaz de articular os diferentes setores envolvidos, ajustar os arcabouços institucional e legal, bem como aprimorar o emprego de recursos humanos e financeiros. Independentemente do foco de atuação, o principal articulador nacional sobre a temática das espécies exóticas invasoras é o Ministério do Meio Ambiente, que tem buscado com pouco sucesso o estabelecimento de um marco integrador dos seguimentos envolvidos, tendo como principal ação o desenvolvimento de uma estratégia nacional. Todavia, as ações iniciais de condução parecem negligenciar aquilo que é considerado por muitos como um dos componentes de maior importância na sua estruturação: a formação de um conselho articulador e integrador composto por elementos intersetoriais (ZILLER et al., 2007). Tal pressuposto, apesar de ter espaço previsto nas funções institucionais do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), apresenta um envolvimento incipiente e limitado diante da dimensão crítica da questão. Durante algum tempo, especialmente entre 1984 e 1986, o Conama conseguiu desempenhar o papel de articulador das diversas áreas de governo no espaço ambiental estatal, procurando fomentar e implementar a corresponsabilidade das suas políticas ambientais (CAPOBIANCO, 1997). Entretanto, desde que foi subordinado ao Conselho Superior do Meio Ambiente, tornou-se um órgão consultivo com funções concentradas nas discussões em torno de normas e procedimentos ambientais (MACHADO, 2000). Ademais, a formação do Grupo Técnico de discussão polarizou-se na questão de introduções de espécies exóticas da fauna aquática, negligenciando aspectos mais amplos do problema. O insucesso do grupo foi consolidado pelas in-
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cessantes revisões das normas correlatas e por constantes adiamentos nas reuniões do conselho, resultando no esvaziamento do mesmo. Uma nova oportunidade de integração e gestão do problema estabeleceu-se com a implantação de uma Câmara Técnica do tema na Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio), que foi instituída para responder às crescentes preocupações do país com a perda de sua biodiversidade e com o atendimento aos compromissos estabelecidos a partir da assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). A competência dessa Comissão está relacionada à promoção da conservação da biodiversidade brasileira, por meio da implantação da Política Nacional da Biodiversidade e da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Suas ações se dão através do apoio a pesquisa, conservação, uso sustentável, monitoramento, avaliação, prevenção e mitigação de impactos e repartição de benefícios derivados de seu uso. Considerando a abrangência de suas intervenções e da multidisciplinaridade preconizada pelo desenvolvimento sustentável, o Decreto nº 4.703, de 21 de maio de 2003, que instituiu essa Comissão, incluiu também em sua composição representantes de órgãos e de organizações da sociedade civil relacionadas à saúde, ao desenvolvimento econômico e à integração nacional, como o Ministério da Saúde, o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento e o Ministério da Ciência e Tecnologia. O foco da Conabio é a promoção da conservação da biodiversidade brasileira e, apesar de o problema de espécies exóticas invasoras necessariamente possuir uma forte interface biológica, este não se encerra nas questões de biodiversidade, e nem as agrega exclusivamente. Considera-se que, apesar de a Comissão contemplar diversos dos atores envolvidos com o processo, não é prevista nos instrumentos que a instituíram a competência para tratar de mecanismos de enfrentamento dos impactos causados sobre os sistemas produtivos ou sobre bens humanos, ainda que sejam causados por grupos biológicos. Negligenciando a questão da competência acima questionada, a Câmara Técnica da Conabio que trata de espécies exóticas invasoras conseguiu estabelecer importantes passos em direção ao planejamento e ao efetivo enfrentamento do problema, buscando o estabelecimento de uma linguagem consensual e a identificação das prioridades dentro dos diferentes setores afetados por essas espécies.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O arcabouço institucional brasileiro apresenta algumas fragilidades, como a desarticulação interinstitucional, a fragmentação e a dispersão dos esforços empreendidos, a sobreposição de responsabilidades e funções. Tais fragilidades contribuem para os conflitos interinstitucionais, resultantes da carência de amparo legal adequado das instituições e de processos históricos de reordenamento da estrutura organizacional da administração pública, como, por exemplo, a extinção e/ou mudança de nome de órgãos da administração pública direta. Esses conflitos foram documentados também por Drumond e BarrosPlatiau (2006), que fizeram uma ampla análise das políticas ambientais brasileiras. Os autores apontam a multissetorialidade como uma das características das questões ambientais brasileiras, apesar de esta ser uma característica ainda emergente. Há ainda o fato de que algumas das instituições cujas missões preconizam, em parte, atividades relacionadas ao estudo, prevenção e/ ou controle das espécies exóticas no Brasil não apresentam programas ou projetos institucionais atuantes. Sua relação com a problemática em questão se dá exclusivamente por intermédio de interesse pessoal de profissionais dessas instituições. Como resultado, registra-se a contaminação da cultura da parceria pela contracultura da fragmentação, permeada pelo elevado grau de pessoalidade e aleatoriedade das relações institucionais. Consequentemente, comprometem-se a continuidade, a coerência e a integridade da agenda governamental, essenciais à implementação das políticas públicas. Conflitos institucionais e a existência de uma legislação fragmentada fragilizam e colocam em risco o país. A epidemia da gripe suína, causada pelo vírus H1N1, alerta não só o Brasil, mas todo o mundo para o potencial avassalador da dispersão de espécies, não por sua mortalidade, mas pela velocidade de dispersão das espécies devido ao deslocamento humano e de cargas. O aumento da velocidade e da frequência desses deslocamentos podem ser descritos como um caso de exposição da sociedade ao risco, do qual os problemas emergem à medida que há modernização de processos ou agentes. Neste caso, há a modernização dos mecanismos de deslocamento. Na sociedade de risco, os riscos são produzidos por novas condições
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de vida às quais a sociedade é submetida por suas próprias ações individuais ou coletivas. Esse fenômeno coloca aos mais diferentes profissionais o desafio de atender às necessidades da sociedade, atentando para a geração ou potencialização de novos riscos a ela mesma. Assim, claramente percebe-se que não se consegue resolver os problemas associados à introdução de espécies exóticas invasoras de maneira arbitrária e disciplinar, demandando, sim, uma abordagem transdisciplinar. Ao término deste trabalho, constata-se a existência de muitos obstáculos a serem superados para que se possa construir uma política nacional de manejo de espécies exóticas que afetam, simultaneamente, diferentes setores da sociedade, principalmente os da agricultura, saúde pública e meio ambiente. Merece destaque a desarticulação entre as instituições que possuem atribuições para lidar com o tema, cuja repartição de competências, em muitos casos, resulta em papéis inversos àqueles para os quais foram criadas. Temos no país um mix setorial onde as responsabilidades continuam a ser divididas entre diversas instituições e agências relevantes, cujas atuações são, em alguns casos, concorrentes. Para que seja desenvolvida uma política pública eficiente é preciso, antes de mais nada, a adoção de uma perspectiva de gestão integrada do problema a ser traduzida na estruturação de um organismo coordenador intersetorial dos agentes necessários à implementação dessa política, assegurando a consistência das ações e sua eficiência prática. É imperativo que as questões de conservação da biodiversidade recebam a máxima prioridade, em função da falta de ações passadas e presentes para enfrentar os impactos ambientais decorrentes da presença de espécies exóticas invasoras. Não obstante, é fundamental que o setor ambiental trabalhe de forma integrada com as áreas de agricultura e de saúde. Uma visão integrada do problema otimiza processos e facilita a construção de novos conceitos sobre bases de conhecimento científico e de estruturas preventivas já existentes, como as de quarentena, análise de risco e inspeção de fronteiras. Nessa perspectiva, deve-se prever a coordenação de atividades com agências governamentais em outros níveis além do federal para o desenvolvimento de estratégias regionais e locais de manejo, incluindo aquelas já atuantes, mas não abordadas neste estudo, representantes
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dos poderes legislativo, judiciário e da sociedade civil, através de associações e organizações não governamentais. Sem essa orientação administrativa e política, os riscos decorrentes da introdução de espécies invasoras no território nacional continuarão a aumentar, atentando contra a saúde humana e ambiental, resultando em aumento de despesas econômicas por parte do poder público para remediar os danos decorrentes da introdução de espécies exóticas invasoras. AGRADECIMENTOS O autor gostaria de agradecer às contribuições advindas do revisor anônimo. Este estudo foi parcialmente financiado pela linha de apoio financeiro do Banco Real – Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. LISTA DE FIGURAS
Número de indivíduos
Figura 1 Principais etapas do processo de invasão. Modificado de Rahel (2002).
Invasão
Introdução
Crescimento exponencial da população
Naturalização
Tempo Representatividade da espécie exótica na comunidade
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Figura 2 Evolução da erradicação da febre aftosa no Brasil. Modificado de Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
1998
2000
2001
2002
2003
2005
Zona livre sem vacinação Zona livre com reconhecimento suspenso Zona livre com vacinação Zona infectada
2007
2008
Zona tampão
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MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO DE UMA EDUCAÇÃOEMANCIPATÓRIA Andréa F. Costa Maria das Mercês Navarro Vasconcellos
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No presente artigo apresentamos o museu enquanto instituição social e, portanto, histórica. Discutimos a função social dos museus na contemporaneidade, sua dimensão pública, assim como a sua relação com a sociedade. Especialmente no que se refere aos museus de temática científica, refletimos sobre o caráter educativo dessas instituições e sobre o papel destes enquanto instituições importantes para motivar a educação científica que se faz necessária hoje, diante do atual contexto de crise socioambiental. Essa discussão é feita a partir de uma breve análise dos limites e possibilidades da concretização, por parte dos museus, de um trabalho educativo comprometido com um projeto político pedagógico emancipatório. Palavras-chave: museus de ciências; público visitante; educação emancipatória
This article presents Museums as social institutions, being, in this way, historical institutions. We discuss the social function of Museums in contemporary world, their public dimension as well as their relation with society. Concerning Museums that approach scientific themes, we reflect upon their educational mission. We also discuss their role as important institutions to motivate the scientific education that is necessary for the context of the present socioenvironmental crisis. This discussion is sustained by brief analysis of limits and possibilities of Museums for developing concrete educational work in compromise with an emancipator pedagogic political project. Key words: science museums; public; visitors; emancipator education.
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Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com os outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada (FREIRE, 2005: 80).
1. INTRODUÇÃO Entende-se que qualquer ação educativa pressupõe um posicionamento político, podendo inserir-se em um projeto político de modelo de sociedade, seja ele o vigente – aquele comprometido com a perpetuação e a reprodução do Sistema Capital (MÉSZÁROS: 2005, 2002) – ou um que se coloque como alternativa a este, a partir do compromisso com a emancipação humana. Muitas vezes essa intencionalidade política do projeto pedagógico não é explicitada, mas apesar disso interfere nos rumos do trabalho educativo. Como estratégia de superação do modelo de sociedade vigente, Frigotto (apud MÉSZÁROS, 2005) aponta para a necessidade de se construir um pensamento educacional contra-hegemônico, antagônico, que, por sua vez, combata a internalização e a consciência de subordinação dos valores mercantis, isso tendo em perspectiva uma teoria e uma práxis educativa emancipadora. No que se refere à reestruturação radical da sociedade, o papel da educação é soberano, tanto na elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, bem como na automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente (MÉSZÁROS, 2005). Dentro dessa perspectiva e de um referencial no campo da educação crítica em relação à atual dinâmica hegemônica da sociedade, o presente texto se propõe a refletir sobre alguns dos limites e possibilidades de os museus contribuírem para a promoção de uma educação emancipatória. Em um primeiro momento, caracterizamos o museu como instituição social, fazemos algumas considerações sobre sua trajetória a partir do século XVII e sobre o papel de destaque assumido pelos museus, especialmente no século XIX, dentro de uma sociedade capitalista em seu momento de expansão imperialista. Abordamos os cami-
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nhos percorridos pelos museus no sentido de uma ampliação de seu caráter público e tratamos, também, dos limites que a atual estrutura da sociedade impõe aos processos de democratização dos museus. Na segunda parte, a partir de dados sobre o perfil dos visitantes dos museus localizados no Estado do Rio de Janeiro, fazemos algumas considerações acerca do caráter público desse tipo de instituição social, diante de seu grande distanciamento em relação às classes populares. Por fim, abordamos a dimensão educativa dos museus e suas particularidades; assim como apresentamos algumas considerações que vislumbramos em relação às possibilidades de os museus, especialmente os de ciências, realizarem um trabalho educativo comprometido com os processos de emancipação da sociedade. 2. MUSEU: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE SUA TRAJETÓRIA E SUA RELAÇÃO COM O PÚBLICO A concepção de museu que temos hoje é resultado de uma configuração que se deu ao longo de um largo período de tempo. A ideia principal de museu é atribuída ao Museu de Alexandria, fundado no século III antes da era comum. No entanto, o termo museu passa a ser usado com maior frequência a partir do século XV, após ter sofrido importantes transformações que o vinculam mais fortemente à formação de coleções. Segundo Pogorny (2008), o surgimento da prática de dispor coisas em um lugar de uma maneira deliberada, com o intuito de criar a possibilidade de compreender um todo maior e construir um caminho em que se mostram diferenças entre o antigo e o moderno, é um fenômeno peculiar da história europeia. Os primeiros espaços com essa finalidade, as câmaras de estudo – os studiollos – e os gabinetes de raridades dos príncipes remontam ao período do Renascimento. No entanto, o acesso do público aos mais diversos objetos que foram colecionados ao longo do tempo foi, durante alguns séculos, muito restrito. Em uma importante análise sobre a conquista do caráter público do museu, Maria Esther Valente (2003) nos ajuda a reconstruir os obstáculos superados e os caminhos percorridos no sentido de se abrirem as coleções ao público geral. Nesse trabalho, a autora ressalta que a conquista do caráter público dos museus não se refere somente à possibilidade de os cidadãos terem contato com os objetos, mas está
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também relacionada à possibilidade de os visitantes compreenderem e interpretarem os objetos apresentados. Aquele que é considerado o primeiro museu moderno, o Ashmole Museum, é fundado na Inglaterra em 1675, a partir da coleção de Elias Ashmole deixada à Universidade de Oxford para uso dos estudantes, tendo se tornado público em 1683. De acordo com Barbuy (2008), esse museu estaria vinculado a uma vertente experimentalista do Iluminismo e suas coleções seriam entendidas como a base essencial para a pesquisa, tendo em vista a compreensão acerca da necessidade de coletar, reunir e organizar coisas materiais para observá-las e, a partir dessa observação, produzir conhecimento novo. No século XVIII, sob influência do espírito enciclopedista, identifica-se uma ampliação do caráter público dessa instituição e uma preocupação com o aspecto educativo do museu. Nesse momento enfatiza-se a importância do uso do objeto na aprendizagem, a partir do entendimento de que o desenvolvimento do conhecimento podia se processar mais facilmente pela observação dos objetos. Contudo, devemos estar atentos (...) ao tipo de público que se formava a época (...) A investida em uma abertura do museu (...) não correspondia ao que se reconhece agora como público. A valorização de grupos sociais, como o dos cientistas, naturalistas e filósofos, entre outros, alicerçada no interesse pela instrução, teve na burguesia seu maior público (VALENTE; 2003, p.30).
O caráter público dessa instituição só começa a se ampliar em fins do século XVIII, inserido em um contexto de projeto de nação voltado para a modernização da sociedade e em que se difunde a ideia de instrução como condição para a solidificação e o desenvolvimento de uma nação (BARBUY, 1999). O museu é entendido como espaço do saber e da invenção artística, do progresso do conhecimento e das artes, no qual o público poderia formar seu gosto a partir da admiração das exposições. O século XIX se caracteriza pela vertiginosa criação de museus, especialmente na Europa e na América, adquirindo esse século o título de “a idade de ouro dos museus”. O século XIX via nascer uma sedução da memória, uma explosão do espírito comemorativo, que se
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caracteriza pela exaltação de glórias nacionais e pela formação progressiva de lugares de memória (SCHWARCZ, 1993). Diante da ideia de instrução como condição para a solidificação e desenvolvimento de uma nação, ganha ênfase o caráter educativo dos museus e a necessidade de se ampliar o acesso da população às coleções. O museu torna-se símbolo da formação nacional, assumindo como compromisso a construção da identidade e da memória. Pomian (1985) afirma que os museus substituem as igrejas enquanto locais onde todos os membros de uma sociedade podem se comunicar na celebração de um mesmo culto e situa a ampliação no número de museus ao longo dos séculos XIX e XX em um contexto de desafeição das populações, especialmente urbanas, pela religião tradicional. O museu passa a ser espaço de um “novo culto” que ocupa o lugar do antigo (religião), já que este não é mais capaz de integrar a sociedade no seu conjunto, fazendo do museu o local onde de fato a “nação se faz ao mesmo tempo sujeito e objeto”. O autor afirma o museu como espaço de guarda daquilo que está ligado a história nacional, e por isso os objetos que nele se encontram devem ser acessíveis a todos e, pela mesma razão, devem ser preservados. No entanto, Valente (2003) ressalta que as coleções propulsoras do nacionalismo e da instrução não perderam seu aspecto de símbolos de poder e, contraditoriamente, reforçavam o prestígio da aristocracia, preservando o status quo. Diante disso, a autora chama atenção para o fato de que, em virtude dos controles de acesso instalados pela tradição, a mudança da relação do público com a instituição museu se deu lentamente. A partir da segunda metade do século XIX, começam a se configurar novos museus, que, ao contrário daqueles comprometidos com a difusão da alta cultura clássica, passam a propor ações de divulgação com propósitos mais populares. Valente (2003) relaciona essa nova postura assumida pelos museus ao grande interesse despertado pelas exposições universais junto ao público desse período, já que a continuidade desses eventos foi assumida pelos museus. Estes, segundo a autora, ao preservar as peças expostas nas Exposições Universais, estariam dando mostras da utilidade social do museu público. Heizer (2005) assinala que essas exposições foram denominadas de diferentes formas por seus analistas, ficando conhecidas como Lição
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das Coisas, Festas do Progresso, Arenas Pacíficas, Lugares de Peregrinação ao Fetiche Mercadoria, Vitrines do Progresso, Festas do Trabalho. Segundo essa autora, a realização desses eventos teve como ponto de partida interesses de fomento à indústria, ao comércio e à conquista de novos mercados, mas as mesmas serviram, também, para abrigar congressos científicos e demonstrações públicas das novidades técnicas. O marco inicial das Grandes Exposições da segunda metade do século XIX é a Grande Exposição de Trabalhos Industriais, realizada em Londres, em 1851. Segundo Heizer (2005), a Exposição Universal de Londres inaugurou “uma série de exposições que tinham como fio condutor apresentar, de forma lúdica, contemplativa e interativa, o triunfo da sociedade burguesa/liberal/capitalista”. A esta, seguiu-se Paris (1855); Londres (1862); Paris (1867); Viena (1873); Filadélfia (1876); Amsterdam (1883); Antuérpia (1885); Paris (1889). Essas exposições atraíram milhares de expositores e milhões de visitantes. No entanto, apesar de atrair um grande público, as mesmas não eram para todos os cidadãos, nem para todas as nações. O processo de criação de novos museus se estende até o século XX, período que se caracteriza por uma ampliação e diversificação do público dessas instituições e pela “utilização educacional de seus acervos” (MARANDINO, 2008), na medida em que os museus buscam extrapolar a exposição de objetos, com o intuito de possibilitar aos visitantes a apreciação e o entendimento dos mesmos. No entanto, Valente (2003) afirma que, apesar de os museus chegarem às primeiras décadas do século XX renovados por coleções e propostas mais adequadas ao público, muitas instituições não acompanharam os movimentos de modernização. Progressivamente os cânones e métodos usados no museu foram substituídos, na medida em que as antigas ideias em que se baseavam não encontravam mais aceitação. As tentativas de mudança têm por base a preocupação com o acesso do público à informação daquilo que o museu veicula (VALENTE, 2003).
Apesar desses movimentos de modernização, o museu, de acordo com Valente (2003), encontra dificuldades para consolidar de maneira adequada a relação das coleções com o interesse do público. São
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muitos e diversos os fatores que interferem na história dessa instituição, assim como na de todas as outras que compõem a sociedade. Destacaremos a seguir alguns elementos que ajudam a compreender o atual contexto social e suas influências sobre a relação entre o museu e o público. O contexto social de “capitalismo mundializado” (CHESNAIS, 1999) avança concentrando recursos e poder na mão de grupos cada vez menores. Essa concentração é que garante ao capitalismo, no transcurso do tempo, a possibilidade de fazer prevalecer interesses particulares de alguns grupos em detrimento dos interesses coletivos. O menosprezo pelos interesses coletivos é algo que pode ser observado em vários campos de atuação, inclusive no dos museus. Em 1969, foi criado em São Francisco (Califórnia, EUA) o museu Exploratorium, que dispõe hoje de muitas franquias espalhadas pelo planeta. São cópias melhores ou piores de um projeto considerado revolucionário pelo seu foco na criatividade (MARSHALL, 2006). Entretanto, a venda de pacotes prontos iguais para museus de todo o mundo, independentemente da cultura ou dos problemas de cada país ou região, é algo que pode se contrapor não só ao estímulo à criatividade, mas também aos interesses econômicos, políticos e culturais dos locais onde se instalam essas cópias do Exploratorium. Porém, é importante ressaltar que esse processo de “mundialização” do Capital não se dá no sentido de uma ampliação do grupo que detém o poder de controlar a economia mundial. Esse grupo torna-se cada vez mais reduzido, mas ele cria mecanismos que viabilizam um sistema de dominação cujas raízes se lançam por todo o mundo. Entre outras coisas, esses mecanismos espalham-se pelo planeta a partir de “políticas de liberalização e de desregulamentação das trocas, do trabalho e das finanças, adotadas pelos governos dos países industriais, encabeçados pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha” (CHESNAIS, 1999, p. 77). As políticas neoliberais fazem parte de um processo de desenvolvimento do capitalismo, como forma de superação de suas crises estruturais e conjunturais e meio de garantia da acumulação. Nessa linha de raciocínio, vale destacar a contribuição de Ellen Wood em seu texto “Democracia contra o capitalismo”. A autora analisa as relações registradas hoje entre Estado e Sociedade Civil dentro do capitalismo
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mundializado que atualmente dita as regras das relações sociais. Relações essas que se caracterizam pela coerção exercida pelo mercado. O capitalismo representa a culminação de um longo desenvolvimento, mas também constitui um rompimento qualitativo [...]. Ele não se caracteriza apenas por uma transformação de poder social, uma nova divisão de trabalho entre o Estado e a propriedade privada ou classe, mas também marca a criação de uma forma nova de coerção, o mercado – o mercado não apenas como uma esfera de oportunidade, liberdade e escolha, mas como compulsão, necessidade, disciplina social capaz de submeter todas as atividades e ações humanas às suas exigências (WOOD, 2003, p.216).
A coerção que o mercado exerce sobre a vida das pessoas gera um processo de dominação significativamente maior do que o exercido por muitos Estados tirânicos no passado. Pois hoje o mercado controla não só as relações sociais, mas também a vida dos indivíduos. É um tipo extremado de coerção porque ela não é simplesmente um produto de um modelo de sociedade e sim um princípio a partir do qual se organiza a estrutura social (WOOD, 2003). E o mercado criou novos instrumentos de poder a serem manipulados não apenas pelo capital multinacional, mas também pelos Estados capitalistas avançados, que têm capacidade de impor “disciplinas de mercado” draconianas sobre outras economias enquanto protegem capital doméstico próprio. Em outras palavras, coerção não é apenas um defeito da “sociedade civil”, mas um de seus mais importantes princípios constitutivos. As funções coercitivas do Estado foram em grande parte ocupadas na imposição da dominação na sociedade civil (WOOD, 2003, p.218).
Sendo assim, a sociedade civil não é sinônimo de espaço da liberdade e da ação voluntária em oposição ao Estado, entendido como espaço de coerção. Wood mostra como essas duas esferas estão imbricadas em função dos interesses do capital. É verdade que na sociedade capitalista, com a separação entre as esferas ”política” e “econômica”, ou seja, o Estado e a sociedade civil, o poder coercitivo público está mais centralizado e concentrado do que
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nunca, mas isso apenas quer dizer que uma das principais funções de coerção “pública” por parte do Estado é apoiar o poder “privado” na sociedade civil (WOOD, 2003, p.218).
Nessa realidade, quando falamos de democracia é preciso levar em consideração o processo de mercantilização da vida (CARDOSO, 2006) que cada vez mais tem privatizado instituições e espaços públicos. Nesse contexto é um grande desafio para os museus avançarem na ampliação do seu caráter público. Para o enfrentamento desse desafio é fundamental considerar as condições materiais da vida das pessoas. Usando como referência Karl Marx, Semeraro afirma que a democracia só se torna “o enigma decifrado de todas as constituições” quando atinge o tecido das necessidades reais da vida em comum e forma plenamente o homem socializado (SEMERARO, 2006, p.181). Essas considerações sobre a democracia trazem à tona a influência que as relações sociais do sistema de produção e de propriedade, especificamente capitalista, impõem às forças produtivas e sociais. As palavras a seguir sobre classes sociais contribuem para a reflexão sobre esse tema. (...) clases son grandes grupos de personas que se diferencian entre sí por el lugar que ocupan en un sistema de produccíon social históricamente determinado, por sus relaciones con los medios de producción, por su función en la organización social del trabajo y, por lo tanto, por el modo de vida y magnitud de la parte de riqueza social que poseen (BARTRA, 1973, p.42).
Então, quando nos referimos à democracia e ao caráter público dos museus, é preciso levar em consideração os limites impostos por uma estrutura social marcada pelas desigualdades nas condições de vida dos diferentes grupos da sociedade. Porém, é igualmente necessário que sejam consideradas as possibilidades que se abrem para a democratização dos museus quando são explicitadas as contradições que existem entre o caráter público dessas instituições e a pouca presença dos grupos economicamente desfavorecidos nesses espaços. No próximo item são apresentados alguns dados sobre essa questão.
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3. ‘QUEM VISITA?’: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PÚBLICO DOS MUSEUS DO RIO DE JANEIRO Por meio de um levantamento feito a partir de um questionário autoadministrado aplicado a visitantes de 11 museus localizados no Estado do Rio de Janeiro, no contexto da Pesquisa Perfil-Opinião 2005, organizada pelo Observatório de Museus e Centros Culturais – OMCC1 (KÖPTCKE, 2008), pôde-se traçar o perfil do público que visita os museus fluminenses, conhecendo, além de seu perfil sociodemográfico, cultural e econômico, também as circunstâncias da visita aos museus, assim como levantar suas opiniões sobre essas instituições e também os seus hábitos de visita a museus e centros culturais. A pesquisa contou com uma amostra composta por 3.407 visitantes maiores de 15 anos, visitantes de 11 museus de diferentes tipologias – museus de arte, de ciências, etnográficos e de história natural; e históricos – nove destes localizados na capital fluminense e dois no município de Niterói. A coleta dos dados foi realizada entre junho e setembro de 2005 fora do contexto de visitas escolares. No caso dos 11 museus estudados, percebemos que 36,6% dos seus visitantes são jovens2, enquanto 63,4% são adultos e estão na faixa 1
Essa pesquisa é resultado de uma parceria entre o Museu da Vida (COC/ Fiocruz), o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MGT), a Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence/IBGE) e o Departamento de Museus (Iphan/ MinC). Os dados levantados pelo Observatório de Museus e Centros Culturais (OMCC) são referentes às instituições participantes da Pesquisa Perfil-Opinião 2005 (Museu Aeroespacial, Museu Antonio Parreiras, Museu de Arte Contemporânea, Museu de Astronomia e Ciências Afins, Museu Casa de Rui Barbosa, Museu Histórico Nacional, Museu do Índio, Museu Nacional de História Natural, Museu do Primeiro Reinado, Museu do Universo Planetário da Cidade do Rio de Janeiro) e estão publicados em KÖPTCKE, Luciana Sepúlveda; CAZELLI, Sibele; LIMA, José Matias de. Museus e seus visitantes: relatório de Pesquisa Perfil-Opinião 2005. Brasília: Gráfica e Editora Brasil, 2009. 2 Sob a perspectiva demográfica, os jovens correspondem a um grupo populacional de determinada faixa etária. A maioria dos organismos internacionais, de acordo com Cazelli (2005), considera como jovem a faixa que compreende as idades de 15 a 24 anos. Todavia, a autora nos relata que algumas abordagens compreendem que, em se tratando de estratos sociais médios e altos urbanizados, o limite da faixa etária que caracteriza o jovem se amplia para cima, incluindo assim, o grupo de 25 a 29 anos.
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que compreende dos 30 a mais de 60 anos. Considerando o grupo de adultos, observamos que 26,4% estão na faixa etária de 30 a 39 anos; 31,6% estão na de 40 e 59 anos e 5,4% têm mais de 60 anos. Esse resultado está expresso na tabela subsequente. Tabela 1 Distribuição percentual dos visitantes dos museus estudados pelo OMCC, segundo a faixa etária Faixa etária
Percentual
15-29 anos
36,6
30-39 anos
26,4
40-59 anos
31,6
60 anos ou mais
5,4
TOTAL
100
Fonte: Museus e seus visitantes: relatório de Pesquisa Perfil-Opinião 2005 (KÖPTCKE, 2008)
Desse modo, podemos inferir, a partir desses dados, que uma parte significativa dos visitantes dessas instituições já não está mais em idade escolar, mas a eles é disponibilizado o espaço do museu, que passa a ser utilizado por esse grupo como espaço de lazer, cultura, mas também de aprendizagem, fazendo assim valer a ideia de Paracelso, citado por Mészáros, em sua afirmação de que aprendemos “[...] desde a juventude até a velhice, de fato, quase até a morte [...]”. Nesse caso, podemos entender que, ao incluir pessoas, no lugar de excluir, o museu atende à necessidade de uma educação transformadora, que “não pode ser confinada a um limitado número de anos na vida dos indivíduos, mas, devido a suas funções radicalmente mudadas, abarca-os a todos” (MÉSZÁROS, 2005, p. 74). Os museus têm sob sua guarda uma parte significativa do patrimônio cultural da humanidade. No sentido de contribuir para a concretização de processos emancipatórios, eles devem promover, além do estudo desses bens patrimoniais, a socialização desse patrimônio e dos conhecimentos produzidos acerca destes junto a todos os cidadãos. Para isso, no entanto, essa instituição tem de buscar democratizar-se e, desse modo, faz-se necessária uma maior aproximação do museu com
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os diversos públicos, especialmente com os grupos sociais economicamente desfavorecidos, que representam a maior parte da população e se encontram distante dos museus. Por meio da análise dos dados levantados pelo Observatório de Museus e Centros de Ciência (OMCC) no contexto da Pesquisa Perfil-Opinião 2005 sobre os visitantes dos museus do Rio de Janeiro, podemos perceber que o caráter público dessas instituições fica comprometido diante da dificuldade de acesso das classes economicamente desfavorecidas a essas instituições. A discussão que faremos a seguir contribui para fundamentar a reflexão sobre esse caráter excludente dos museus. A exclusão se dá muitas vezes de forma sobreposta e combinada, e no caso dos museus estudados atinge as pessoas não brancas, que não possuem os mais altos níveis de escolaridade e que pertencem às classes populares. Ao comparar o perfil dos visitantes de museus com as informações referentes à população residente na região metropolitana do Rio de Janeiro, conforme resultados apresentados em 2004 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios3 para esta região (Pnad 2004 – RM/RJ), poderemos perceber “o uso do museu por grupos majoritariamente educados e com renda acima da média de sua população de referência” (KÖPTCKE, 2008). No que se refere à cor/raça dos visitantes entrevistados, pode-se afirmar que os museus são visitados por uma maioria branca, que corresponde a 68,9% do total de entrevistados, enquanto a parcela dos que se autodeclararam não brancos corresponde a 31,1% dos entrevistados. Esse resultado está expresso na tabela subsequente.
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Pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em uma amostra de domicílios brasileiros. Reúne indicadores sobre a realidade social brasileira, abrangendo informações sobre aspectos demográficos, educação, trabalho e rendimento, domicílios, famílias e grupos populacionais específicos – crianças, adolescentes e jovens, mulheres e idosos.
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Tabela 2 Distribuição percentual dos visitantes, por cor/raça, segundo agregação dos museus considerados no estudo
Cor/Raça Museus agregados
Brancos
Não brancos
Pnad 2004 – RMRJ
58,1
41, 9
Museus de Ciência
65,7
34,3
Museus de Arte
76,8
23,2
Museus Etnográficos e de História Natural
65,9
34,1
Museus Históricos
70,6
29,4
TOTAL
68,9
31,1
Fonte: Museus e seus visitantes: relatório de Pesquisa Perfil-Opinião 2005 (KÖPTCKE, 2008)
De acordo com os dados apresentados, podemos identificar, ainda, que a exclusão da população não branca varia de acordo com a tipologia de museu. Tendo em vista o aspecto cor/raça dos visitantes, podemos perceber o maior caráter excludente dos museus de arte, uma vez que estes têm entre seus visitantes um percentual de visitantes brancos que corresponde a 76,8%, enquanto visitantes não brancos correspondem a apenas 29,4% do total de visitantes desses museus. Outro aspecto que foi ressaltado pela pesquisa se refere à renda elevada dos visitantes dos museus em comparação com a renda domiciliar mensal4 da maior parte dos habitantes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A maior parte dos visitantes dos museus, 35,1%, possui renda domiciliar mensal que varia de R$ 500 a R$ 2 mil, enquanto 24,8% possuem renda equivalente a mais de R$ 4 mil, 24% dos visitantes possuem uma renda familiar que varia de R$ 2001 a R$ 4 mil e somente 9,8% afirmaram possuir renda familiar mensal de até 500 reais, sendo que 6,3% do total de entrevistados não soube informar. Desse modo, podemos perceber que cerca da metade dos visitantes 4
A renda domiciliar mensal corresponde a salário, pensão e outros rendimentos referentes a todos que moram na residência (KÖPTCKE, 2008).
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dos museus fluminenses, 48,8%, possui renda familiar mensal que varia de R$ 2 mil a mais de R$ 4 mil, enquanto segundo dados da Pnad 2004, somente 25,4% da população residente na Região Metropolitana do Rio de Janeiro possuem renda equivalente a essa. No entanto, 65,9% desta população possuem renda mensal que vai de R$ 500 a R$ 2 mil por mês, enquanto somente 44,9% dos visitantes dos museus se enquadram nesta classe de renda domiciliar mensal. Esse resultado está expresso na tabela subsequente. Tabela 3 Distribuição percentual dos visitantes, por classe de renda domiciliar mensal, segundo agregação dos museus considerados no estudo Classes de renda domiciliar mensal Museus agregados
Até R$ 500
De R$ 501 a R$ 2 mil
De R$ 2001 a R$ 4 mil
Mais de R$ 4 mil
Não soube informar
Pnad 2004 – RMRJ
14,1%
51,8%
16,0%
9,4%
8,6%
Museus de Ciência
12,4%
35,9%
22,4%
23,0%
6,3%
Museus de Arte
5,2%
29,7%
26,5%
30,5%
8,2%
Museus Etnográficos e de História Natural
6,4%
38,5%
29,1%
21,2%
4,8%
Museus Históricos
10,1%
35,3%
22,7%
26,0%
5,9%
TOTAL
9,8%
35,1%
24,0%
24,8%
6,3%
Fonte: Museus e seus visitantes: relatório de Pesquisa Perfil-Opinião 2005 (KÖPTCKE, 2008)
Os visitantes dos museus também apresentam um nível de escolaridade bem mais elevado do que a média da população. Enquanto, segundo dados da Pnad 2004, somente 17,4% da população que reside na Região Metropolitana do Rio de Janeiro possuem formação equivalente ou superior à graduação universitária, 47,5% dos visitantes dos museus têm esse tipo de formação. Dentre os visitantes entrevistados, 23,7% possuem ensino superior incompleto, 24% revelam ter formação em ensino médio e apenas 4,8% dos visitantes têm até o ensino fundamental completo. Ao passo que 76,9% da população que reside na Região Metropolitana do Rio de Janeiro possuem formação equivalente ao ensino fundamental e médio, somente 28% dos visitantes de
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museus possuem esse nível de escolaridade, revelando o uso do museu por grupos majoritariamente com um nível de escolaridade acima da média local. Este resultado está expresso na tabela subsequente. Tabela 4 Distribuição percentual dos visitantes, por nível de escolaridade, segundo agregação dos museus considerados no estudo Nível de escolaridade Até Fundamental completo
Ensino Médio
Superior completo
Superior em diante
Pnad 2004 – RMRJ
31,2%
45,7%
5,7%
17,4%
Museus de Ciência
5,5%
26,5%
Museus de Arte
2,0%
16,3%
Museus Etnográficos e de História Natural
4,3%
28,5%
22,3%
44,9%
Museus Históricos
5,6%
22,7%
21,8%
49,9%
TOTAL
4,8%
24,0%
23,7%
47,5%
Museus agregados
24,9% 25,2%
43,1% 56,5%
Fonte: Museus e seus visitantes: relatório de Pesquisa Perfil-Opinião 2005 (KÖPTCKE, 2008)
Os resultados obtidos pela Pesquisa Perfil-Opinião 2005 do Observatório de Museus e Centros de Ciência indicam que a distância entre o local de residência dos visitantes e os museus, assim como os custos anexos de uma visita, podem ser fatores de inibição da prática de visita a essas instituições. Em todos os museus que participaram desse estudo, a maioria de seus visitantes reside em bairros próximos, e o custo de uma visita (transporte, alimentação etc.) consta como fator inibidor para cerca de 40% dos entrevistados. Tendo em vista que a maior parte dos museus integrantes do referido estudo não cobra ingresso e que não foram encontradas diferenças significativas entre o perfil dos visitantes desses espaços em relação àqueles em que a entrada é gratuita, não se pode considerar a gratuidade como elemento determinante do acesso aos museus (KÖPTCKE, 2008). Sendo assim, passa a ser de suma importância não só a instalação desse tipo de equipamento cultural em áreas carentes desses recursos, que são também as áreas onde reside a maior parte da popula-
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ção menos favorecida economicamente, mas também a promoção de políticas que favoreçam o acesso da população que atualmente não visita os museus e centros culturais já existentes. Essas políticas de acesso devem ir além da gratuidade da entrada nos museus e centros culturais, devendo se orientar no sentido de viabilizar o deslocamento do público das classes populares residentes em áreas distantes de onde está localizada a maior parte dos museus até a estas instituições. Desse modo, podemos entender a importância dos museus localizados em regiões de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)5, como é o caso do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e do Museu da Vida (Fiocruz). O primeiro se encontra localizado no bairro de São Cristóvão e o segundo na região de Manguinhos, áreas com enormes problemas socioambientais causados pelas desigualdades sociais e que são, respectivamente, o 64° e o 122° posicionados dentre 126 bairros do município do Rio de Janeiro na classificação por IDH (2000)6. O fato de estarem localizados nessas regiões faz com que os mesmos tenham maiores índices de visitantes não brancos, 48% (Museu da Vida), 46% (Mast) e de pessoas das classes economicamente menos favorecidas, se comparados a outros museus estudados. Por exemplo, enquanto o Museu da Vida e o Mast têm como a maior parte dos seus visitantes pessoas cuja renda domiciliar é de R$ 501 a R$ 2 mil, 44,7% e 40,5%, respectivamente, um outro museu de ciência analisado nesse estudo, o Museu do Universo, tem entre a maior parte de seus visitantes, 43,5%, pessoas com a renda domiciliar maior do que a 5
O IDH surge em 1990 como um contraponto à utilização do Produto Interno Bruto (PIB) per capita como único parâmetro para mensurar o desenvolvimento dos países. Para a elaboração desse índice são considerados atualmente três dimensões: a renda, medida pelo PIB per capita (corrigido pelo poder de compra de cada país), a longevidade, para a qual é utilizada a expectativa de vida ao nascer, e a educação, em que se consideram a taxa de analfabetismo e a de matrículas. 6 Estas informações estão apresentadas na publicação IDH dos bairros do Rio de Janeiro. Classificação dos bairros ou grupos de bairros cariocas pelo IDH (2000). Retirado de: http://www.pnud.org.br/publicacoes/. Último acesso em: julho de 2009.
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de R$ 4 mil por mês, assim como também a taxa de maior frequência de visitantes brancos de todos os museus estudados, que corresponde a 79,5%. Há de se ressaltar a localização deste último, no bairro da Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, região habitada por pessoas com alto poder aquisitivo. Esses dados são importantes para a reflexão sobre as contradições que existem entre a teoria e a prática no que diz respeito ao caráter público e educativo do museu, explicitado na própria definição oficial desta instituição. Segundo o Comitê Internacional de Museus (Icom), o museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, e aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe, por questões de estudo, educação e apreciação, evidência material das pessoas e de seu meio (ICOM, 2004) (destaques nossos).
Contradições fazem parte da estrutura do “Sistema Capital” (MÉSZÁROS, 2002) e a explicitação delas é um passo importante para que se possa enfrentá-las na realização de um trabalho educativo que pretenda efetivamente contribuir para a realização de projetos político-pedagógicos emancipatórios. Mas, além de explicitá-las, é preciso compreender as possibilidades de atuação que se abrem a partir dessas contradições. Fazemos nos próximos itens algumas considerações que buscam contribuir para o enfrentamento do desafio de se trabalhar pela ampliação da efetividade do caráter público dos museus na sociedade atual. 4. POSSIBILIDADES DO TRABALHO EDUCATIVO DOS MUSEUS O museu é uma instituição que ocupa um espaço, possui uma coleção e está aberto ao público. Ele pode pertencer ao setor público ou ao privado (VALENTE, 2003). Mas, como vimos anteriormente, a definição do que vem a ser o museu passou por muitas alterações na história. Em relação a esse tema citamos a seguir uma concepção sobre museu que contribui para a reflexão sobre seu papel educativo.
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Os museus, a meu ver, e não só os museus, mas as ciências humanas, a filosofia também, nós todos no dia-a-dia somos seres fundamentalmente argumentativos, persuasivos, o que é uma maneira de dizer que somos seres sedutores. Pretendemos cativar para nossas ideias, nosso ponto de vista, nossa causa, nosso programa, nosso partido, nossa religião, nossa mercadoria, nosso produto, nossa empresa, nossa pátria [...], enfim, o tempo todo estamos não simplesmente nominando coisas – água, copo, caneta, não importa – nós não estamos dizendo às crianças “pedra”, “lago”, “árvore”, mas, “não suba na pedra”, “não meta o pé no lago” [...] (PESSANHA, apud RAMOS, 2004, p.20).
Essa discussão sobre os objetivos que se pretende alcançar com o trabalho educativo realizado no museu também tem variado muito no decorrer da história. No campo da educação em museus a tendência atual é a de buscar substituir o objetivo de celebrar os personagens e o de fazer uma classificação enciclopédica da natureza pelo de buscar promover uma reflexão crítica sobre a realidade. Então, para persuadir o seu público, o museu utiliza a exposição de objetos compondo um argumento crítico. Sendo assim, no museu, o objeto perde o seu valor de uso e suas funções originais, e passa a ser utilizado a partir de interesses variados para a construção de outros valores (RAMOS, 2004). Portanto, apesar de todos os fatores que limitam as ações dos museus, existem possibilidades de eles serem ambientes propícios para se viver experiências diferenciadas e significativas de construção de conhecimentos, opiniões, visões de mundo e de pensamentos. Trata-se de um lugar onde “a sensibilidade estética é aflorada, num processo aberto de comunicação que permite a cada pessoa explorar, sentir, pensar, tocar de modo singular e autônomo” (SCHALL, 2003, p.17). Essa condição favorece o desejo de aprender de forma espontânea. Em outras palavras, os museus podem ser espaços que provocam a motivação intrínseca (TAPIA, 2001) para a aprendizagem, tendo como fio condutor a curiosidade, o lúdico, o cotidiano e o contexto histórico. Tapia (2001), que pesquisa o tema da motivação para os estudos, descreve a motivação intrínseca com as seguintes palavras
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Em alguns casos, o mais importante é aprender algo que faça sentido: descobrir, por trás das palavras que se constroem, significados conhecidos e experimentar o domínio de uma nova habilidade, encontrar explicação para um problema relativo a um tema que se deseja compreender etc. A atenção [...] nestes casos se concentra no domínio da tarefa e na satisfação que sua realização supõe (TAPIA, 2001, p.19).
O outro tipo de motivação, oposto a este, é a motivação extrínseca. Nesta última o aluno se esforça para aprender a fim de evitar sair-se mal perante os outros [...] o que conta é preservar a própria imagem diante de si mesmo e dos demais. Em outros casos, o que é prioritário é [...] alguma utilidade prática, como conseguir a aprovação ou determinada nota, [...] ou entrar na universidade [...] Aprender, nesse caso, não tem valor em si mesmo. Serve para conseguir algo externo: é tão-somente um meio para atingir um fim (TAPIA, 2001, p.19).
Desse modo, pode-se afirmar que uma pessoa está intrinsecamente motivada quando ela inicia uma atividade unicamente porque sabe que terá prazer na própria atividade (COIMBRA; CAZELLI, 2007), sendo que a motivação extrínseca se refere ao envolvimento em atividades por razões instrumentais. O incentivo para se realizar uma atividade está fora da própria atividade (COIMBRA; CAZELLI, 2007). As características do museu, que em suas ações educativas estimulam a motivação intrínseca por parte do público, podem contribuir para que este trabalhe a partir do princípio de que a prioridade da educação não deve ser a conquista de uma meta que está fora da atividade de estudo. Este tipo de motivação, pautada em metas extrínsecas à tarefa, se faz bastante presente na educação voltada para qualificar os indivíduos para inserirem-se no mercado. Portanto, ao provocar a motivação intrínseca no envolvimento do público nas atividades educacionais, o museu pode contribuir para projetos educativos emancipatórios que não têm como sua principal finali-
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dade “qualificar para o mercado, mas para a vida” (JINKINGS, apud MÉSZÁROS, 2007). Uma das mais cruciais críticas que Mészáros faz à educação nos dias atuais diz respeito a seu tratamento como mercadoria, tendo em vista que nesse tipo de sociedade “tudo se vende, tudo se compra” (SADER, apud MÉSZÁROS, 2005, p.16), inclusive um determinado tipo de educação. A função da atividade educativa nessa sociedade é a de formação de mão de obra e de consumidores, ou, como nos lembra Sader, “a função educativa na sociedade capitalista vem sendo a de fornecer os conhecimentos e pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista” (SADER, apud MÉSZÁROS, 2005, p.15), além de, é claro, “gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, ou seja, a educação vem atuando hoje como mecanismo de perpetuação e reprodução desse sistema” (SADER, apud MÉSZÁROS, 2005, p.15). Portanto, as ações educativas que pretendam contribuir para a emancipação humana devem utilizar estratégias educativas que favorecem a motivação intrínseca do público. Elas contribuem para um engajamento mais efetivo das pessoas, tendo em vista que esse tipo de motivação acontece quando a proposta de trabalho vai ao encontro da satisfação de necessidades do sujeito. Entendendo os sujeitos em sua dimensão histórica, vemos que são muitas e diversas essas necessidades, mas para explorar esse tema precisaríamos de um texto específico sobre isso. Então, nos limitaremos aqui a apontar apenas um dos aspectos que devem fazer parte dessa reflexão. A motivação intrínseca atende à necessidade de a pessoa se sentir agindo de forma autônoma, competente e consciente das razões que justificam a realização da atividade. Essa é uma das condições que favorecem um engajamento efetivo do público na ação educativa. Este é um tipo de envolvimento que ocorre quando a pessoa se afirma enquanto ser humano na realização da atividade. Assim, no que se refere à promoção da dignidade humana, vamos ao encontro de Mészáros, que aponta para a importância de uma educação que vá além do capital, não só no sentido de garantir a todos a sua dignidade enquanto seres humanos, mas uma educação que seja construída no sentido, inclusive, de ajudar na manutenção da própria
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existência humana. Mészáros afirma então que a educação para além do capital é aquela que vise a uma ordem social qualitativamente diferente. [...] Pois as incorrigíveis determinações destrutivas da ordem existente tornam imperativo contrapor aos irreconciliáveis antagonismos estruturais do sistema do capital como uma alternativa concreta e sustentável para a regulação de reprodução metabólica social, se quisermos garantir as condições elementares da sobrevivência humana (MÉSZÁROS, 2005).
Em relação a essa questão da sobrevivência da humanidade, é importante lembrar que a maior parte dela já não conta com as condições mínimas que são necessárias para a manutenção de uma vida saudável. Portanto, a discussão dessa questão deve ser feita tendo em vista essa gravidade da atual crise socioambiental. Uma reflexão sobre esse tema está presente na tese de doutorado de Vasconcelos (2008). Neste trabalho vemos que uma educação emancipatória exige uma ação e construção dialógica com o outro e não pelo outro, para o outro ou sem o outro; em que este outro se coloca e, de fato, está em condições igualitárias de conhecer, falar, se posicionar, decidir e ter o justo acesso ao patrimônio cultural que a humanidade gerou até aqui (LOUREIRO, 2007, p.161).
Na pesquisa a que nos referimos foi possível observar que para o museu contribuir no processo de emancipação da sociedade é preciso que esses espaços sejam utilizados de uma forma muito particular. Ele deve atuar respeitando rigorosamente as suas especificidades e funções sociais voltadas para provocar o interesse do público pela ampliação da cultura, ao mesmo tempo em que contribui para a construção de valores comprometidos com a emancipação humana (VASCONCELLOS, 2008). No contexto de um projeto político-pedagógico emancipatório, é fundamental que o museu contribua para a ampliação do empode-
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ramento7 que a população precisa ter para exercer de forma plena a sua cidadania. Para avançar em relação à conquista desse objetivo é necessário que o museu trabalhe para desmistificar a ciência e motivar o pensamento problematizador-crítico e investigador (FREIRE, 1996) na compreensão-ação dos problemas socioambientais. Outra peculiaridade importante do museu é o fato de ele se constituir em um espaço privilegiado para a aprendizagem da leitura dos objetos. E essa leitura é muito importante porque permite “observar a história que há na materialidade das coisas” (RAMOS, 2004, p.21). E a história é essencial porque permite compreender que o presente é algo produzido por mudanças. Logo, por ser o presente uma realidade diferente da que existiu antes dele, ajuda a pensar o futuro como algo diferente do que existe hoje. Por consequência, essa compreensão histórica que a leitura dos objetos permite é uma grande contribuição que o museu pode oferecer para promover a aventura de conhecer fazendo perguntas sobre o objeto (RAMOS, 2004). O mesmo Ramos (2004) propõe que sejam feitas perguntas inclusive sobre a “[...] ‘História nos objetos’: o objeto é tratado como indício de traços culturais que serão interpretados no contexto da exposição do museu [...]” (RAMOS, 2004, p.21). O museu, então, como espaço de investigação sobre a cultura material8, pode contribuir para alargar o juízo crítico sobre a realidade. Esse alargamento induz a questionamentos que nos levam a problematizar as relações entre o presente, o passado e o futuro. É o que acontece, por exemplo, quando uma exposição relaciona um relógio com um 7
Utilizamos aqui o termo empoderamento com o sentido que CARVALHO (2004) atribui ao conceito de “empowerment comunitário”, sobre o qual o autor afirma que “um aspecto central do empowerment comunitário seja a possibilidade de que indivíduos e coletivos venham a desenvolver competências para participar da vida em sociedade, o que inclui habilidades, mas também um pensamento reflexivo que qualifique a ação política” (CARVALHO, 2004, p.9). 8 “A cultura material, que nasce originalmente no século XIX como um ramo da arqueologia, consiste no estudo interdisciplinar da construção, permanência e transformação das circunstâncias concretas que compõem os – e influenciam-nos – modos de vida das coletividades humanas ao longo do tempo” (RAMOS, 2004, p.16).
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copo descartável, provocando uma reflexão crítica sobre o contexto de uso desses objetos: O copo descartável pode ser tomado como fragmento do tempo monetário, no qual tudo deve durar pouco, pois o ideal é sempre acelerar os índices de consumo. Mais coisas consumidas em menor quantidade de tempo: tempo marcado pelo relógio. É através dos ponteiros que a produtividade se torna quantificada: produzir mais em menos tempo, desde o século XIX, a contagem das horas, minutos e segundos assume a condição de guia para o mundo capitalista e passou a ser um referencial básico para as orientações cotidianas (RAMOS, 2004, p.23).
Uma exposição como essa pode ajudar a promover uma reflexão crítica sobre a cultura do consumismo que sustenta e é sustentada pelo capitalismo, produtor da atual crise socioambiental. Assim, os objetos expostos, enquanto “patrimônio”9, mais especificamente, “patrimônio cultural”10, contribuem para formar o cidadão. Até porque uma exposição como esta pode ajudar o cidadão a perceber que a humanidade possui um patrimônio cultural que pertence também a ele. Dessa forma, ampliam-se as possibilidades de esse cidadão perceber o seu pertencimento à humanidade.
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“(...) o patrimônio deve ser abordado no sentido coletivo do qual resulta a herança cultural. Por isso, patrimônio é um bem que pertence a todos, indistintamente, e que merece a nossa atenção, pois nessa herança estão todas as manifestações [...] da cultura de uma sociedade” (D’AQUINO; CAMPOS, 2004, p.7). 10 “O patrimônio está dividido em: a) Patrimônio natural – são os que arrolam os elementos pertencentes à natureza, ao meio ambiente, aos recursos naturais, como os rios, as águas desses rios, os peixes, as cachoeiras, as árvores etc. b) Patrimônio cultural: Material – os artefatos, os monumentos etc., tudo aquilo que de alguma forma sofreu interferência humana, considerando desde sua criação, suas técnicas, elaboração, entre outros. É também denominado patrimônio tangível. Imaterial – as crenças, as lendas, os mitos, tudo aquilo que se prende ao imaginário, e que possui um valor cultural imensurável. Também chamado de patrimônio intangível.”
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Ou seja: o museu pode promover a “educação patrimonial”11 da sociedade de forma a afirmar a cidadania (D’AQUINO; CAMPOS, 2004). Uma afirmação que se realiza a partir do momento em que o indivíduo entende que recebeu de herança o patrimônio cultural construído pela humanidade e que ele próprio participa do processo permanente de construção e reconstrução desse patrimônio. Isso favorece que ele sinta-se também responsável pelo patrimônio cultural que será deixado de herança para as próximas gerações. Ao contribuir para a construção da memória, a educação patrimonial exerce importante função no universo social já que “a sociedade é antes de tudo ‘ um conjunto de ideias que ligam os homens entre si e as crenças coletivas são o nó vital de qualquer sociedade’” (SILVA; SANTANA, 2004, p.7). Portanto, com apoio no patrimônio cultural, podemos tecer os elos que unem as sociedades, bem como o presente ao passado e ao futuro delas. Portanto, os museus são instituições que podem desempenhar um importante papel para a educação da sociedade. A educação é um processo inerente à vida dos seres humanos, intrínseco à condição da espécie, uma vez que a reprodução dos seus integrantes não envolve apenas memória genética, mas, com igual intensidade, pressupõe uma memória cultural, em decorrência do que cada novo membro do grupo precisa recuperá-la, inserindo-se no fluxo de sua cultura (SEVERINO, 2006, p.289).
Hoje, para inserir-se no fluxo da cultura da espécie humana, é essencial apropriar-se do patrimônio cultural que a ciência repre-
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Educação patrimonial “é um processo permanente e sistemático centrado no Patrimônio Cultural, que serve como instrumento de afirmação de cidadania” (NUNES; FARIA, 2002:2, apud D’AQUINO; CAMPOS, 2004, p.11). Mas, para causar esse efeito, “na educação patrimonial os bens culturais não devem ser vistos somente como algo estático, científico ou técnico, mas baseados numa visão mais humanística [...] com sua abordagem centrada no significado, função ou representação” (D’AQUINO; CAMPOS, 2004, p.11).
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senta. Portanto, a popularização da ciência12 se faz necessária a todos os cidadãos porque esse conhecimento não serve apenas para possibilitar a conquista de uma maior condição de barganha na venda de sua força de trabalho, ele também ajuda a ampliar, “em um plano mais abstrato, a possibilidade real de sua emancipação enquanto homem moderno, livre da alienação imposta pela forma capitalista de produção e reprodução social” (NEVES, 2002, p. 27). Porque essa inserção no mundo pela ciência contribui para que ele se realize enquanto cidadão e sujeito histórico na contemporaneidade. Portanto, hoje é preciso admitir que C&T são importantes para a emancipação do indivíduo, mas a efetividade disso depende de que esse conhecimento não seja fetichizado. Faz-se então necessária uma educação científica capaz de ampliar a visão crítica da população no que diz respeito, inclusive, à relação entre a ciência e a sociedade. 5. OS MUSEUS DE CIÊNCIAS: CAMINHOS PERCORRIDOS Ao longo da História, percebemos que em vários momentos a criação de museus, ou até mesmo sua remodelação, se dá inserida no contexto de políticas públicas promovidas pelo Estado e relacionadas a interesses de formação e instrução dos cidadãos. No caso específico dos museus de ciências, a ideia de ampliação da cultura científica da sociedade esteve presente na grande maioria da criação dessas instituições, em lugares e épocas diferentes, entretanto a partir de perspectivas que guardam características de seu tempo e de seu contexto (VALENTE; 2004).
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Utilizamos aqui o termo “popularização da ciência”, e não “divulgação da ciência”, por uma opção teórica feita a partir da análise dos significados atribuídos historicamente a esses termos. Uma explicitação dessa discussão pode ser acessada no seguinte artigo: GERMANO, Marcelo Gomes; KULESZA, Wojciech Andrzej. “Popularização da ciência: uma revisão conceitual”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física. Florianópolis: Departamento de Física – UFSC. vol. 24, n. 1, p. 7-25, abr. 2007.
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No entanto, é no século XX, segundo Valente (2004), que se assiste à conformação de um museu de ciência entendido como recurso primordialmente educativo, intenção apontada na medida em que se passa a fazer uso essencialmente de recursos didáticos. Esses museus estariam comprometidos, dentre outras coisas, com a celebração e promoção da utilização da tecnologia no mundo moderno. A partir da década de 1950, com o grande impacto causado na sociedade americana pelo lançamento do satélite russo, o Sputnik (1957), assiste-se à elaboração de novas abordagens para a educação em ciências, na tentativa de minimizar o analfabetismo científico e tecnológico constatado na época. Esse episódio foi acompanhado pela realização de pesquisas de opinião pública, que por sua vez revelariam que uma pequena parcela da sociedade estava firmemente interessada em assuntos científicos e que o conhecimento do público sobre ciência era relativamente baixo (CAZELLI, 2003). Surge, inserida nesse contexto, uma nova geração de museus de ciências que incorporou as preocupações com a melhoria da educação em ciências da população. Segundo alguns autores, nesse momento ocorre uma importante transformação do papel social dos museus, à medida que esses espaços foram eleitos para proporcionar à sociedade a formação científica necessária para compreender e atuar no mundo em mudança (CAZELLI, 1999). Na década de 1980 ocorre, no plano internacional, um episódio significativo no que diz respeito especificamente à educação em ciências e que deve ser considerado em nossa reflexão. Referimo-nos ao compromisso internacional firmado por um número considerável de países e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), do qual nasceu uma nova meta sintetizada sob o slogan “ciência para todos” (CAZELLI, 2003). No documento gerado pela reunião regional realizada em Bangkok no ano de 1983, intitulado Science for All (Ciência para Todos), pode-se constatar uma grande preocupação com a promoção de uma educação científica para populações que se encontram fora da escola. O relatório afirma que a principal meta é possibilitar a todos competências científicas, conhecimentos e habilidades apropriadas as suas necessidades imediatas, com vistas a erradicar a pobreza, a provisão de condições dignas de moradia e trabalho, e a conquista de justiça social. Dentre
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as ações necessárias para o alcance dos objetivos da proposta, o documento aponta não só para ações no âmbito da educação formal, mas ressalta a necessidade de compromisso político, administrativo e financeiro com o desenvolvimento apropriado de ações no setor da educação não formal, bem como o desenvolvimento e fortalecimento dessas ações por meio de museus, clubes de ciência, feiras de ciência, olimpíadas13 etc. (Unesco, 1983). Diante do acelerado avanço de novas tecnologias e da ciência propriamente dita, em especial nas últimas décadas do século XX, Cazelli e Franco (2001) afirmam que os espaços de educação não formal são impulsionados a ganhar destaque na elaboração das políticas nacionais de ensino e de divulgação, tendo em vista a crescente compreensão de que a educação em geral, e principalmente a educação em ciências, em particular, deve ser promovida ao longo da vida das pessoas. Nesse contexto, os museus de ciências procuram atender às demandas sociais, tendo sido as duas últimas décadas do século XX, em especial a década de 1980, marcada por um grande boom na criação de museus e centros de ciência pelo mundo, com a instalação, dentre outros, do La Villete (França), do Museo de los Niños (Venezuela) e do Eureka (Inglaterra). Esse fenômeno, também pode ser identificado no Brasil e se dá inserido em um contexto no qual a construção de uma sociedade democrática tornou-se objetivo central das atividades na área de educação; e a educação em ciências, por sua vez, continuava por fazer parte das preocupações dos órgãos decisórios do campo da educação no país (VALENTE, 2005). Sendo assim, assiste-se nos anos de 1980 a um significativo movi13
Em relação a essas modalidades de ações educativas, destacamos as Olimpíadas (de Matemática, Astronomia...) como um bom exemplo de contradição entre o objetivo de popularizar a ciência e a estratégia utilizada na realização do trabalho educativo. Não será possível tratar desse tema aqui, mas alertamos para a importância dele e sugerimos como aprofundamento de uma reflexão sobre esse problema a leitura de VASCONCELLOS, Maria das Mercês Navarro. Educação ambiental na colaboração entre museus e escolas: limites, tensionamentos e possibilidades para a realização de um projeto político emancipatório. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Federal Fluminense, RJ, 2008.
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mento de criação de museus de ciências, fazendo deste um período marcante no que se refere à história dessas instituições no Brasil14. Para dar mostras da relevância desse período histórico, podemos dizer que foi nele que se assistiu à fundação de importantes museus e centros de ciência, dentre eles o Espaço Ciência Viva (independente) e o Museu de Astronomia e Ciências Afins (CNPq, hoje MCT), ambos situados no Rio de Janeiro. Já no Estado de São Paulo, assistiu-se nos anos 1980 à criação do Centro de Divulgação Científica e Cultural (IFQS/USP – São Carlos), do Estação Ciência (CNPq, hoje USP) e do Museu Dinâmico de Ciências de Campinas (Unicamp/Prefeitura). Cria-se no Nordeste o Estação Ciência da Paraíba, e, pelo Brasil, outros espaços de menor porte (GASPAR, 1993). O movimento que se forjou na década de 1980 ecoou na década seguinte. Os anos de 1990 reforçaram a ampliação dos museus e centros de ciência e produziram um acúmulo de experiências e reflexões teóricas sobre o tema (CAZELLI, 2003). Estes foram anos de afirmação da importância das ações em divulgação científica no país e de ampliação das experiências de educação não formal, por meio da criação de novos museus de ciências. Segundo Cazelli (2003), esses novos museus foram possíveis em decorrência, muitas vezes, de financiamentos governamentais, sejam no âmbito municipal, estadual ou federal. Entre 1998 e 1999, por exemplo, foram criados o Museu de Ciência e Tecnologia (PUC-RS) e na região Nordeste, o Espaço Ciência (Recife – PE). Já o Rio de Janeiro, nesse mesmo período, ganhou dois novos museus, sendo estes o Museu da Vida (Fiocruz) e o Museu do Universo (Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro). Dando mostras do peso que essas instituições adquiriram no cenário brasileiro nas duas últimas décadas do século XX, foi criada, em 2000, 14
Valente (2009) afirma ser pouco consistente explicar a proliferação de museus de ciência no Brasil exclusivamente como mero processo de imitação e/ ou de criação voluntarista. Segundo a autora, este teria se dado em função de um momento propício para que esse fenômeno ocorresse e estaria ligado a questões de ciência e tecnologia no país. Para entender melhor o processo de criação de museus de ciência no Brasil ver VALENTE, Maria Esther Alvarez. Museus de ciências e tecnologia no Brasil: uma história da museologia entre as décadas de 1950-1970. Tese de doutorado – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. Campinas, SP, 2009.
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a Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciências (ABCMC), com o intuito de “unir ideias, compartilhar experiências, consolidar projetos e possibilitar um intercâmbio maior entre centros e museus de ciência de todo o Brasil”15. Em catálogo publicado no ano de 2005, a ABCMC apresenta 119 instituições sob a designação de centros e museus de ciências situadas em território brasileiro. Segundo Valente (2004), o movimento de criação de museus e centros de ciência se estende até os dias de hoje. Nesse sentido, torna-se relevante refletir sobre a função social dessas instituições, suas características específicas, seus objetivos, limites, possibilidades de elas realizarem uma educação emancipatória (VASCONCELLOS, 2008). Quando nos referimos a uma ação educativa pautada numa perspectiva emancipatória é fundamental definir o que concretamente isso significa. Para explicitar o sentido que damos a esse trabalho utilizamos as seguintes palavras, que definem de forma sintética e profunda o que entendemos por emancipação. há emancipação quando agimos para superar e superamos: (1) relações paternalistas e assistencialistas que reproduzem a miséria (intelectual e econômica); (2) uma educação que impede a capacidade crítica de pensar e intervir de educadores-educandos; (3) a apropriação privada do conhecimento científico; (4) práticas políticas que viciam a democracia e sufocam o desejo da participação, garantindo o privilégio de oligarquias que se constituíram com a lógica colonial que instaurou o Brasil; (5) relações de classe que condenam milhões a uma condição indigna, de precariedade na luta pela sobrevivência, por força dos interesses do mercado e seus agentes, “coisificando” a vida (LOUREIRO, 2007, p. 161) (destaque nosso).
A partir desse conceito de emancipação consideramos fundamental trazer aqui uma reflexão feita por Mészáros (2005). Esse autor propõe que a educação seja entendida como fenômeno social que não se restringe ao campo da educação formal. Em outras palavras, ele enxerga a 15
Centros e Museus de Ciências do Brasil. Rio de Janeiro: ABCMC: UFRJ, Casa da Ciência: Fiocruz, Museu da Vida, 2005.
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educação que ocorre na sociedade para além dos muros das escolas e universidades. E, desse ponto de vista, o filósofo enxerga a necessidade da educação ao longo da vida e não apenas nos períodos que se frequenta as escolas. E, partindo do princípio de que “a educação deve ser sempre continuada e permanente, ou não é educação” (MÉSZÁROS, 2005, p.12), vemos que o museu pode exercer uma importante função educativa na sociedade. Fundamentamo-nos na aposta que fazemos nas possibilidades de trabalho sobre as quais já discutimos e também no fato de o museu ser uma instituição que pode receber os grupos que frequentam os bancos escolares e os que já não fazem mais parte da escola e ainda os que nem mesmo tiveram essa oportunidade. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluímos este texto conscientes de seus limites, mas com esperanças de que ele possa oferecer uma pequena contribuição para a construção de políticas públicas que favoreçam uma maior efetividade do caráter público dos museus. Nesse sentido, finalizamos o artigo destacando uma informação particularmente significativa para a definição de rumos nas políticas públicas para o campo dos museus. Cazelli (2005) realizou uma pesquisa quantitativa que estudou a relação entre cultura, museus, jovens e escolas no Rio de Janeiro. Uma conclusão importante dessa tese de doutorado é o fato de ela ter constatado que as escolas públicas têm sido as grandes responsáveis pelo acesso de jovens da classe popular aos museus. Esse resultado da pesquisa sugere que para ampliar o caráter público dos museus é fundamental que sejam construídas políticas públicas que possam ampliar o acesso das escolas públicas aos museus. Esse tipo de política pode contribuir para que os museus cumpram a sua função social de forma mais efetiva. A definição desse papel social dos museus é explicitada pelo Departamento de Museus do Ministério da Cultura (Demu – Iphan/MinC)16, que afirma que os museus são instituições que possuem as seguintes características: 16
Este foi substituído pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), criado em 2008, ligado ao Ministério da Cultura (MinC). O Ibram se desvincula do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan/MinC) e tem como objetivo formular uma política cultural para todos os museus brasileiros.
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II - a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer e V - a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais para a promoção da dignidade da pessoa humana (DEMU-IPHAN/MINC, 2005)17.
Vemos, assim, que dentre as funções atribuídas aos museus, aspectos importantes para a promoção de uma educação emancipatória estão colocados; dentre eles, os objetivos de contribuir para a construção de uma percepção crítica da realidade (artigo II) e de promover a dignidade da pessoa humana (artigo V) (grifo nosso). Na breve análise que fizemos neste texto, constatamos que são grandes os desafios que precisam ser enfrentados pelos museus para que eles de fato possam causar um impacto social significativo em relação à promoção da dignidade da pessoa humana numa sociedade excludente e predatória. Isso porque “vivemos numa ordem social na qual mesmo os requisitos mínimos para a satisfação humana são insensivelmente negados à esmagadora maioria da humanidade” (MÉSZÁROS, 2005, p.73). Partindo dessas constatações e aceitando a orientação de Paulo Freire sobre a necessidade de fazermos anúncios ao lado das denúncias, recusamo-nos a quietude dos que não problematizam a realidade e que não lutam pelas transformações desta. Por esse motivo, nosso texto buscou valorizar as possibilidades de os museus contribuírem para uma educação emancipatória, mas ressaltamos que, assim como todas as outras instituições sociais, ele também exerce uma função reprodutora do metabolismo excludente, opressor e predatório da sociedade atual. Portanto, diante da materialidade das relações sociais existentes, a potencialidade que os museus possuem para a promoção de uma educação emancipatória pode ou não se tornar uma realidade. Para que essa possibilidade emancipatória dos museus se concretize é necessário que sua ação seja orientada por projetos de forma coerente com essa finalidade. Mas, mesmo agindo a partir de um projeto político pedagógico emancipatório, existirão limites e tensionamentos (tensões provocadas 17
Definições de museu. Departamento de Museus e Centros Culturais – Iphan/MinC – outubro/2005. Retirado de: http://www.museus.gov.br/oqueemuseu_museusdemu.htm. Último acesso em julho de 2009.
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pelas contradições entre o que é proposto e o que efetivamente consegue-se realizar) por esse trabalho estar sendo realizado dentro de determinadas condições sociais (VASCONCELLOS, 2008). Desse modo, reafirmamos que uma perspectiva crítica da educação só existe a partir do entendimento de que uma mudança significativa da sociedade só se dará por meio de uma mudança na estrutura do metabolismo social que atualmente se constitui a partir de relações de exploração. E essa mudança é algo bem complexo já que exige uma difícil luta política marcada pelo altíssimo e crescente nível de desigualdade social que caracteriza a sociedade atual. Além disso, essa questão da necessidade de transformação da estrutura da sociedade se coloca apenas para aqueles que acreditam no futuro, um futuro diferente pelo qual lutar, ou seja, aqueles que se pautam na esperança de que um outro mundo é possível e trabalham coletivamente para construí-lo. No trabalho coletivo que desenvolvemos na colaboração entre museus e escolas, acreditamos que a liberdade individual “só é possível como produto de esforço coletivo” (FREITAS, 2005, p.115), só se torna viável por meio da cooperação (MARX, 2006) em projetos coletivos de co-labor-ação (VASCONCELLOS, 2008). Tendo em vista que a fragmentação gera a desmobilização, o que favorece a manutenção do sistema hegemônico (FREITAS, 2005, p.115), propomos trabalhar junto com o outro e não para o outro ou pelo outro, pois “na teoria dialógica de ação, os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em CO-LABORAÇÃO” (FREIRE, 1987, in VASCONCELLOS, 2008). A partir dessa breve reflexão, pudemos levantar alguns aspectos importantes no que se refere às características específicas desse espaço de educação não formal que é o museu; e assim considerar as suas possíveis contribuições para ações educativas significativamente diferentes, comprometidas com a “transformação social, ampla e emancipadora” (MÉSZÁROS, 2005). Entendemos que o museu cumpre sua função emancipadora, quando, no lugar de fornecer respostas, provoca uma mudança no visitante, fazendo de sua experiência algo motivante e transformador. Portanto, o museu pode exercer um importante papel para a ampliação da cultura da população, no sentido de contribuir para a superação da alienação vigente, uma educação que vise, como afirmado por Sader, mais do que explicar o mundo, mas, sim, entendê-lo, decifrá-lo, compreendê-lo (SADER, apud MÉSZÁROS, 2005, p.18) e transformá-lo.
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PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA Graziela Ansiliero Rogério Nagamine Costanzi
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A existência de um sistema de proteção social aos idosos, com ampla cobertura, é extremamente importante para prevenir o aumento da pobreza e da desigualdade. Na ausência de tal sistema, e perante transformações demográficas e da estrutura familiar presentes em grande parte dos países da América Latina, haverá riscos crescentes de que tanto o Brasil como outros países da região sofram com problemas de insuficiência de renda entre as pessoas com idade mais avançada. Dado esse contexto, este artigo avalia a situação atual e as perspectivas de proteção dos idosos na América Latina, com foco no caso brasileiro. De modo geral, o aumento do nível de proteção social na região parece depender de formas de financiamento que não sejam baseadas exclusivamente em contribuições monetárias individuais, de modo que seja possível incorporar aqueles grupos incapazes de manter contribuições regulares para os regimes de Previdência. Palavras-chave: seguridade social; previdência social; transição demográfica
The existence of a social protection system for the elderly, with broad coverage, is extremely important to prevent the increase of poverty and inequality. In the absence of such a system, and considering the changes on demography and family structure faced by most Latin American countries, there will be an increasing risk that Brazil, as well as other countries in the region, might suffer from income insufficiency among old age individuals. Given this context, this article addresses the current situation and the prospects regarding the protection of the elderly in Latin America, particularly in the Brazilian case. In general, the level of social protection in the region seems to depend on funding strategies not based solely on individual monetary contributions, so that it may be possible to incorporate those groups unable to maintain regular contributions to social insurance schemes. Keywords: social security; social insurance; demographic transition
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1. INTRODUÇÃO A existência de um sistema que ofereça seguridade social ou proteção social aos idosos, com ampla cobertura, é de fundamental importância para prevenir o incremento da pobreza. Na ausência do referido sistema, e diante das transformações demográficas (envelhecimento populacional) e da estrutura familiar (aumento expressivo de famílias cada vez menores), há riscos crescentes de que tanto o Brasil como a América Latina sofram com problemas de insuficiência de renda entre as pessoas com idade mais avançada. A América Latina atualmente já possui profundas deficiências em termos de proteção social dos idosos e, dado as tendências demográficas e de estrutura familiar, esse quadro pode agravar-se ainda mais. Esse cenário se torna demasiadamente preocupante, tendo em vista que a globalização financeira, caracterizada por capitais especulativos em busca de ganhos rápidos e elevados, associada a uma inadequada regulamentação, acabou por gerar uma crise financeira internacional que criou riscos à Seguridade Social em países da América Latina, os quais realizaram reformas liberais que transformaram regimes de repartição pública em regimes de capitalização de contas individuais, ou mixaram ambos os regimes, como o Chile, a Colômbia e a Argentina – embora este último tenha recentemente voltado à repartição pública. Dado esse contexto, o presente artigo busca avaliar a situação atual e as perspectivas da proteção dos idosos no Brasil e na América Latina, mas com foco principalmente na situação do Brasil, em função de uma maior disponibilidade de dados e estudos para o caso brasileiro. O artigo encontra-se organizado da seguinte forma: a) na segunda seção é feito um breve relato da evolução recente da população idosa no Brasil e na América Latina, chamando atenção para o acelerado processo de envelhecimento populacional; b) na terceira seção será apresentado um retrato da proteção social entre os idosos, de forma mais detalhada no Brasil, buscando avaliar seus determinantes, mas também na América Latina; c) na quarta seção será feita uma análise dos efeitos ou impactos sociais da proteção, focando sobre a participação dos idosos no mercado de trabalho e o nível de pobre-
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za, dando ênfase ao caso brasileiro; d) na quinta seção são feitas as considerações finais, levando em conta as perspectivas da proteção social dos idosos no Brasil e na América Latina diante do processo de envelhecimento populacional e de reformas liberais, que implantaram regimes de capitalização de contas individuais em um cenário de crise financeira internacional. 2. POPULAÇÃO IDOSA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA – ENVELHECIMENTO POPULACIONAL De acordo com o Estatuto do Idoso, em vigor no Brasil desde janeiro de 20041, são consideradas idosas todas as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Existem no país cerca de 19,95 milhões de pessoas nessa faixa etária, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007. Do total de idosos brasileiros, aproximadamente 44,3% (8,84 milhões) são homens e 55,7% (11,1 milhões) são mulheres (Tabela 1). Os idosos, segundo os dados da Pnad 2007, compõem um grupo que representa 10,5% da população residente no país em 20072, percentual que apresenta tendência de crescimento. Há três fatores combinados que têm determinado a expansão da participação dos idosos na população total: a) os progressos na medicina e a melhoria nas condições de vida da população brasileira favoreceram a elevação da esperança de vida ao nascer, que aumentou de 42,7 anos em 1940, para 61,7 anos em 1980 e para 72,6 anos em 20073, sendo que há expectativa de que tal indicador alcance as cifras de 76,1 e 81,3 anos em, respectivamente, 2020 e 2050 (deve atingir 80 anos em 2040); b) redução da taxa de fe1
Para maiores esclarecimentos, consultar a Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto. 2 Inclusive os habitantes das áreas rurais da Região Norte, que passaram a ser abrangidas pela Pnad em 2004. 3 Informações obtidas no site http://www.ibge.gov.br/series_estatisticas nas séries estatísticas e séries históricas sobre população e demografia para o ano de 1940, da projeção da população 1980-2050 revisada em 2008, para 1980, e também http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/2007/ambossexos.pdf para o dado de 2007. Os dados de 2020 e 2050 foram extraídos da projeção da população 1980-2050 revisada em 2008.
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cundidade, que caiu de seis filhos por mulher, na década de 1960, para cerca de quatro na década de 1980 e foi estimada em 1,95 na Pnad 2007 e 1,86 em 2008 pela projeção de população do IBGE, havendo a projeção que a mesma caia para 1,5 em 2050 (como resultado, o número de nascimentos caiu de 3,8 milhões por ano em 1980, para uma estimativa de 3,1 milhões em 2008 e deve cair para 1,7 milhão em 20504); c) embora a taxa de mortalidade tenha sido reduzida significativamente nas últimas décadas, passando de 100 óbitos para cada mil nascimentos em 1970 e de 24,32 para cada mil em 2007, esse patamar não pode ser considerado baixo para os padrões internacionais5. Tabela 1 Brasil: População idosa e população – 2007 Grupo
Homens
Mulheres
Total
População Idosa (60 anos ou mais)
8.838.779
11.115.732
19.954.511
População Residente Total
92.625.387
97.194.943
189.820.330
9,54%
11,44%
10,51%
Participação dos Idosos no total em % Fonte: Pnad/IBGE 2007.
A combinação de queda na taxa de fecundidade com redução ainda insuficiente na taxa de mortalidade infantil, somada à elevação da expectativa de vida ao nascer, tem provocado um processo de envelhecimento da população brasileira, com a diminuição relativa da população jovem e, consequentemente, o aumento da participação dos idosos na população total. Essa situação fica visível no Gráfico 1, que apresenta a evolução da participação relativa dos idosos na população brasileira. Segundo os dados da Pnad, apenas entre 1992 e 2007, a taxa de participação dos idosos na população aumentou sensivelmente, tendo passado de 7,9% para 10,6%. 4
Informações disponíveis no site www.ibge.gov.br e na Projeção da População 1980-2050, revisada em 2008 pelo IBGE. 5 A taxa de mortalidade infantil de 2007 foi obtida na publicação Síntese de indicadores sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira 2008, disponível no site www.ibge.gov.br.
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Segundo os dados da projeção da população de 1980-2050, considerando a revisão de 2008, a participação dos idosos (60 anos ou mais) teria crescido de 6,1% em 1980 para 9,5% em 2008, e passaria para 13,7% e 29,8% em, respectivamente, 2020 e 2050. O número de pessoas com 60 anos ou mais passaria de cerca de 18 milhões em 2008 para 64 milhões em 2050. Também projeta-se um aumento da importância relativa das pessoas com 80 anos ou mais, que têm maior probabilidade de sofrerem de problemas de dependência funcional (BATISTA; JACCOUD; AQUINO; EL-MOOR, 2008), que deverá passar de 1,27% da população, em 2008, para 1,93% e 6,39%, respectivamente, em 2020 e 2050. Em termos absolutos, segundo os dados de projeção da população, aqueles com 80 anos ou mais passariam dos atuais 2,4 milhões (dado para 2008) para 13,7 milhões em 2050. Essa alteração da estrutura etária da população, com um aumento da participação relativa dos idosos, obviamente implica na necessidade de alteração das políticas públicas e do planejamento, bem como torna, a longo prazo, o desafio da proteção social dos idosos ainda mais importante para a sociedade como um todo, mas também um desafio mais difícil e mais custoso. Implica, também, na necessidade de realocação ou reestruturação do gasto público ao longo do tempo. Vale mencionar, também, que não apenas a expectativa de vida entre homens e mulheres é distinta, mas que o incremento da esperança de vida tem sido ligeiramente mais pronunciado entre as mulheres. Como resultado, a expectativa de vida é superior para as mulheres em todas as faixas etárias, ainda que os diferenciais por sexo diminuam com a idade. Esses fenômenos têm levado a uma “feminilização” do envelhecimento populacional. Os homens, em especial quando jovens, também são vítimas mais comuns da violência.
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Gráfico 1 Brasil: Participação dos idosos na população total do país – 1980 a 20506 – em % do total
35,0 29,8
Em % da população total
30,0
25,0 18,7
20,0 13,7
15,0
10,0
8,0
7,9 6,1
8,6
8,3
9,0
8,8
8,6
9,3
9,0
8,1
9,6
9,8
10,6
10,3
9,9
10,0 9,5
6,8
5,0
50
30
20
20
20
10
20
08
20
07
20
06
20
20
04
05 20
03
20
02
20
01
20
00
20
99
20
98
19
97
19
96
19
95
93
19
19
92
19
90
19
19
19
80
0,0
Ano Pnad
Projeção População IBGE 2008
Fonte: Pnad/IBGE 1992 e 2007 (exclusive área rural do Norte, exceto Tocantins) e Projeção da População 1980-2050 – Revisão 2008.
O processo de envelhecimento populacional que se observa no Brasil é, na realidade, um processo mundial, que também está ocorrendo na América Latina e no Caribe como um todo e na maioria dos países da referida região (BATISTA; JACCOUD; AQUINO; EL-MOOR, 2008). Segundo o referido estudo, a projeção seria que a participação das pessoas com 60 anos ou mais na população total, depois de aumentar 5,9% em 1950 para 8,0% em 2000, chegue à cifra de 22,5% em 2050 na América Latina e Caribe. Segundo dados e projeções do Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia (Celade)7, a participação das pessoas de 60 anos ou mais na população total, depois de subir de 5,5% em 1950 para 8,1% em 2000, iria crescer para 23,6% em 2050. Em termos absolutos, a população de 60 anos ou mais, na referida região, que era de 6
Exclusive 1994 e 2000, anos em que a Pnad não foi a campo. Não inclui os dados da área rural do Norte, exceto do Estado do Tocantins, nos anos de 2004 a 2007, para garantir a mesma cobertura geográfica do período de 1992 a 2003. Há discrepância entre os dados da Pnad e aqueles da Projeção da População. 7 Informações obtidas na página www.eclac.cl/celade.
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41,6 milhões em 2000, alcançaria o patamar de 180,3 milhões em 2050. Já o percentual de pessoas com 80 anos ou mais, que cresceu de 0,4% para 1% no período de 1950 a 2000, atingiria o patamar de 4,6% em 2050. Em termos absolutos, a população com 80 anos ou mais, que cresceu de 679 mil em 1950 para 4,9 milhões em 2000, chegaria a 35,1 milhões em 2050. Em 2010, segundo projeções da Celade, haverá na América Latina, cerca de 56,8 milhões de idosos com 60 anos ou mais, para uma população total de 582,6 milhões, correspondendo, portanto, a 9,7% do total. Desse total, 25,7 milhões serão homens (45,3% do total) e 31 milhões (54,7% do total) serão mulheres. Enquanto a participação de idosos entre a população masculina como um todo será de 8,9%, entre as mulheres esse percentual será de 10,5%. Gráfico 2 Participação dos idosos na população total América Latina e Caribe – 1950 a 2050 – em % população total 25.0 21,9
23,6
20,0 20,0
18,2 16,3
Em % da população total
14,5 15,0
12,7 11,1 9,7
10,0
8,1
8,8
5,5 5,0 0,4
1,0
1,1
1,3
1,5
1,7
2000
2005
2010
2015
2020
1,9
2,3
2025
2030
2,8
3,3
4,0
4,6
2045
2050
0,0 1950
2035
2040
Ano 60 ou mais
80 ou mais
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Celade/Cepal.
O comportamento demográfico descrito – que combina aumento do contingente de idosos, bem como o incremento de sua participação na população total, e a redução da taxa de fecundidade – provoca efeitos importantes na Previdência Social. Por um lado, esses fatores tendem a gerar elevação da despesa previdenciária em função do crescimento absoluto da população idosa e, por outro, tendem a resultar em uma redução das taxas de crescimento da
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população potencialmente ativa, e, consequentemente, da principal fonte de arrecadação da Previdência Social – a contribuição dos trabalhadores ativos (pelo menos em regimes de repartição). Em outras palavras, caminha-se para um agravamento da razão de dependência da população idosa tanto no Brasil quanto na América Latina (ver Tabela 2). No Brasil, enquanto em 2008 há 10,26 pessoas de 15 a 64 anos para cada indivíduo com 65 anos ou mais, em 2050 haverá apenas 2,82 indivíduos na idade economicamente ativa para cada idoso. Na América Latina, de forma similar, em 2005 havia cerca de 10,49 pessoas de 15 a 64 anos para cada idoso de 65 anos ou mais. Essa relação, em 2050, deve cair para 3,58. Contudo, em parte, o aumento das responsabilidades, em termos de dependência, que as pessoas de 15 a 64 anos sofrerão em função do aumento de idosos, será compensado, até 2020, com a diminuição da população de 0 a 14 anos, tanto para o Brasil quanto para a América Latina (ver Tabela 2). No período de 2020 a 2050, no entanto, essa relação também irá deteriorar. Também há uma profunda mudança de composição na dependência, que passa a ser cada vez menos crianças e adolescentes e cada vez mais idosos. Em 2008, por exemplo, no Brasil, cada pessoa de 15 a 64 anos teria que cuidar de 0,49 dependente, sendo 0,1 idoso e 0,39 criança/adolescente. De um total de 62,6 milhões de dependentes, 50,2 milhões (80,2% do total) eram de 0 a 14 anos e 12,4 milhões de pessoas com 65 anos ou mais (19,8% do total). Em 2050, cada pessoa de 15 a 64 anos teria que cuidar de 0,56 dependente, sendo 0,35 idoso e 0,21 criança/adolescente. De um total de 77,2 milhões de dependentes, cerca de 48,9 milhões seriam idosos de 65 anos ou mais (63,3% do total) e 28,3 milhões de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos (36,7% do total). Na América Latina também se observa uma alteração semelhante, tendo em vista que do total de 197 milhões de dependentes em 2005, 16,9% do total eram idosos e 83,1% crianças/adolescentes e, em 2050, de um total de 274,3 milhões de dependentes, 49,7% do total serão pessoas de 65 anos ou mais e 50,3%, indivíduos de 0 a 14 anos. Certamente essa profunda alteração da estrutura etária dos dependentes precisa ser levada em consideração na definição das áreas
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prioritárias para os gastos públicos, para o planejamento e para o desenho das Políticas de proteção social. Mais que isso, nesse contexto de envelhecimento populacional e piora da relação de dependência, é fundamental que as políticas de seguridade social sejam reforçadas sob pena de comprometer a proteção social de uma parcela crescente da população. Tabela 2 Relação de dependência Brasil e América Latina 1980-2050 ANO
População 15/64 anos (a)
População 65 ou mais anos (b)
Brasil População 0 a 14 anos (c)
1980 2000 2008 2020 2050
68.464.223 110.951.338 127.048.354 146.447.173 138.081.864
4.758.476 9.325.607 12.377.850 19.124.736 48.898.647
45.339.850 51.002.937 50.186.610 41.571.334 28.306.952
ANO
População 15/64 anos (a)
América Latina População 65 População 0 ou mais anos a 14 anos (b) (c)
1980 2000 2005 2020 2050
198.544.360 319.772.564 349.651.078 431.772.405 488.359.687
15.601.418 28.683.464 33.346.368 56.217.272 136.425.589
140.554.303 163.278.614 163.666.236 160.090.341 137.893.055
b+c
(a)/(b)
(a)/(c) (a)/(b+c)
50.098.326 60.328.544 62.564.460 60.696.070 77.205.599
14,39 11,90 10,26 7,66 2,82
1,51 2,18 2,53 3,52 4,88
b+c
(a)/(b)
(a)/(c) (a)/(b+c)
156.155.721 191.962.078 197.012.604 216.307.613 274.318.644
12,73 11,15 10,49 7,68 3,58
1,41 1,96 2,14 2,70 3,54
1,37 1,84 2,03 2,41 1,79
1,27 1,67 1,77 2,00 1,78
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e da Celade.
3. EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO SOCIAL ENTRE OS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA No Brasil, apesar da expansão expressiva da população idosa descrita brevemente no tópico anterior, a Previdência Social tem logrado aumentar a taxa de cobertura social das pessoas com 60 anos ou mais, muito embora persista um desequilíbrio na proteção de homens e mulheres nessa faixa etária. Grosso modo, é considerado idoso com
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proteção social aquele que, segundo os dados da Pnad, recebe benefício de pensão ou aposentadoria, ou continua trabalhando com contribuição para a previdência, conforme metodologia empregada pelo Ministério da Previdência Social e aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) (ver SCHWARZER; PAIVA; SANTANA, 2004; e COSTANZI; ANSILIERO, 2008). Na série harmonizada da Pnad, que desconsidera a área rural da região Norte (salvo Tocantins), a parcela da população idosa protegida socialmente – que recebe aposentadoria e/ou pensão de qualquer regime previdenciário ou da assistência social e/ou contribui para a Previdência Social – passou de aproximadamente 74,0% em 1992 para 80,7% em 2007. O recorte de gênero evidencia que tais melhoras, especialmente aquelas ocorridas entre 1992 e 2002 (Gráfico 3), resultam em grande medida do aumento da proteção de idosos do sexo feminino (+11,77 pontos percentuais entre 1992-2002), uma vez que a série referente aos homens idosos permaneceu relativamente estável nesse mesmo período (+2,41 pontos percentuais). O aumento da cobertura entre as idosas pode ser resultado do incremento da participação das mulheres na população ocupada, fenômeno intensificado nas últimas décadas. A longo prazo, com tudo mais constante, a confirmação dessa tendência pode reduzir as disparidades na proteção de homens e mulheres idosos. Dentre os idosos em geral, o aumento na proteção também pode estar relacionado com o aumento do número de beneficiários da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas): as recentes alterações promovidas pelo Estatuto do Idoso ampliaram ainda mais o público beneficiário dos chamados Benefícios de Prestação Continuada (BPC), afetando positivamente a cobertura dos idosos com 65 anos ou mais8. Além disso, a evolução positiva observada desde 1992-2005 está indubitavelmente associada à instituição da categoria de Segurado Especial, regulamentada em 1991, que possibilitou a expansão significativa 8
O Estatuto, vigente desde janeiro de 2004, reduziu – de 67 para 65 anos – a idade mínima para acesso ao benefício assistencial, além de ter flexibilizado o cálculo do limite máximo de ¼ de salário mínimo de renda familiar per capita também necessário para a concessão do benefício. De todo modo, os resultados recentes merecem uma análise mais aprofundada, especialmente no que se refere aos efeitos da expansão da população idosa.
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da cobertura previdenciária no meio rural – notadamente entre as mulheres9. Nos dois últimos anos, a Pnad aponta para uma ligeira redução na taxa de proteção dos idosos, queda esta mais acentuada entre as mulheres idosas. Entre 2005 e 2007, muito embora o contingente de protegidos tenha crescido sensivelmente (2007/2006: 3,8%; 2006/2005: 2,9%), a taxa de crescimento deste grupo foi inferior ao crescimento observado na população idosa total (2007/2006: 4,5%; 2006/2005: 4,5%). Nesses dois anos, houve uma inversão no ritmo de expansão dos dois grupos, resultado que pode ser explicado, em parte, pelo aumento da expectativa de vida da população em geral. Esse fenômeno tem possibilitado a inclusão na população idosa de camadas mais vulneráveis da sociedade, para as quais a contribuição previdenciária tende a ter sido mais limitada durante a vida ativa10. 9
O segurado especial, segundo o inciso VII dos artigos 12 e 11 das Leis nº 8.212 e 8.213, ambas de 1991, respectivamente, é a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros a título de mútua colaboração, na condição de: (i) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que explore atividade agropecuária (em área de até 4 módulos fiscais) ou de seringueiro ou extrativista vegetal (desde que exerça suas atividades nos termos do inciso XII do caput do artigo 2º da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida); (ii) de pescador artesanal ou a este assemelhado, que faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida; e de cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 anos de idade ou a este equiparado, que comprovadamente trabalhem com o grupo familiar respectivo. A contribuição do segurado especial, segundo o disposto no artigo 25 da Lei nº 8.212, de 1991, é de 2,1% sobre a receita bruta decorrente da comercialização da produção rural. 10 Dado o caráter amostral da pesquisa, oscilações dessa natureza, observadas em períodos imediatamente anteriores, devem ser tomadas com precaução. É precoce reconhecer nos dados uma reversão da tendência, até então consistente, de elevação da cobertura. Na série harmonizada da Pnad, houve, por exemplo, uma aparente redução na taxa de cobertura masculina nos anos de 1996 e 1997 – não confirmada nas edições seguintes da pesquisa. Ademais, nos anos de 2004, 2005 e 2006 houve mudanças na forma de registro do recebimento de BPC na Pnad, mudança metodológica que pode ter determinado a piora do indicador de cobertura dos idosos.
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Gráfico 3 Brasil: Idosos de 60 anos ou mais que recebem aposentadoria e/ou pensão ou que continuam contribuindo para algum regime previdenciário – 1992 a 2007 – em %
80
.7
4%
8%
1%
.6
.8
6%
80
76
1%
.9
.0
76
.0
9%
82
85
85
.8
.7
8%
3%
5%
%
78
2003
.0 87
.2 86
2002
17 7% 8 1 .
1%
77
.9
6%
8
9 1.
.2
%
77
50
0%
. 81
.1
6%
8
% 27 1.
78
%
4%
5% .9 86
.8 85
86 88
.1
86 6%
. 80
1%
4% .4
8% .3
4% 7%
0%
77
1997
8
3 0.
.3
1996
7%
.1
75
.7
2%
8
0 0.
76
7%
75
.3
2%
7
9 9,
76
85
.3 85
85 7%
74
.3
8%
8
0 0.
.4
5%
5% .7
.0
2%
87
.3 0%
7
.2
.3
3%
3%
66
70,00%
7
0 4.
8.
% 62
72
80,00% 75,00%
86
83
.4
0%
90,00% 85,00%
8%
95,00%
65,00% 60,00% 55,00% 1992
1993 1995
Homens
1998
1999
2001
Mulheres
2004 2005
2006
2007
Total
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da Pnad/IBGE – 1992 a 2007.
Tomando-se apenas 2007, quando a taxa de cobertura nacional (incluindo a área rural da Região Norte) chegou a 80,6%, os idosos socialmente protegidos totalizam 16,1 milhões de pessoas, sendo 7,6 milhões homens e 8,5 milhões, mulheres. A proteção social entre os homens chega a 85,6%, resultado consideravelmente superior ao observado entre as mulheres (76,6%). Os dados apontam para a existência de concentração relativa e absoluta de idosas socialmente desprotegidas. Aproximadamente 67,1% dos desprotegidos são do sexo feminino, ao passo que as mulheres representam 55,7% do total de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Em outras palavras, as mulheres idosas possuem a maior participação absoluta e estão sobrerrepresentadas dentre o total de idosos socialmente desprotegidos – em 2007, a proporção de idosas desprotegidas é 1,2 vez a participação de mulheres na população idosa total (Tabela 3).
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Tabela 3 Brasil: Proporção de idosos* residentes no país (A) e idosos desprotegidos (B), segundo sexo – 2007 Sexo Homens Mulheres Total
% Total de Idosos (a) 44,3% 55,7% 100,0%
% Idosos Desprotegidos (b) 32,9% 67,1% 100,0%
(b)/(a) 0,7 1,2 -
Total de Desprotegidos 1.272.740 2.601.053 3.873.793
Fonte: Pnad/IBGE – 2007 - Elaboração: SPS/MPS.* Pessoas com 60 anos ou mais de idade.
Esses números podem estar associados ao fato de que a participação das mulheres no mercado de trabalho – embora venha apresentando evolução positiva contínua nas últimas décadas – ainda tende a ser sistematicamente inferior à dos homens, sendo que a geração das idosas que atualmente possuem 60 anos ou mais possivelmente experimentou taxas de participação ainda mais baixas. Além disso, a ocupação em condições precárias e a taxa de desemprego tendem a ser mais elevadas entre as mulheres. Consequentemente, em face da elevada correlação existente entre ocupação e contribuição previdenciária, é provável que esse indicador esteja apenas refletindo a dinâmica do mercado de trabalho vivenciada pelas mulheres atualmente idosas durante a idade ativa. Em 2007, as mulheres são maioria absoluta dentre os pensionistas – 93,2% do total de pessoas que recebem apenas pensão –, enquanto os homens são maioria, embora com diferencial menos expressivo, dentre aqueles que recebem aposentadoria – 58,5% do total de pessoas que recebem apenas este benefício. Dentre aqueles que acumulam os dois benefícios, mais uma vez a participação das mulheres é significativamente superior (86,2%) (Tabela 4).
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Tabela 4 Brasil: Cobertura previdenciária entre os idosos com 60 anos ou mais de idade, segundo sexo e tipo de benefício – 2007 Categorias Aposentados
Homens (a)
% (a / c)
Mulheres (b)
% (b / c)
Total (c)
6.558.689
58,5%
4.657.134
41.5%
11.215.823
Pensionistas
176.409
6,8% 2.417.931
93.2%539420.
Aposentados e pensionistas
190.761
13,8%
1.187.887
86.2%
1.378.648
Contribuintes não beneficiários
640.180
71,8%
251.727
28.2%
891.907
Total protegidos (a)
7.566.039
47,1%
8.514.679
-
16.080.718
Residentes (b)
8.838.779
-
11.115.732
-
19.954.511
85,6%
-
76,6%
-
80,6%
Taxa de Proteção (a)/(b) - Em %
Fonte: Pnad/IBGE – 2007. Elaboração: SPS/MPS.
A elevada proporção de mulheres dentre os pensionistas deve estar ligada à maior expectativa de vida desse grupo populacional. Como em média vivem mais, é natural que enviúvem mais frequentemente que os homens, tornando-se beneficiárias de pensão e, muitas vezes, chefes da unidade familiar. A menor participação das mulheres dentre os aposentados, por sua vez, pode estar atrelada a questões culturais e econômicas – a população feminina atualmente em idade de aposentadoria provavelmente participou do mercado de trabalho com menos frequência que os homens e em condições bastante distintas, conforme mencionado anteriormente. De um modo geral, na América Latina, prevalece um baixo grau de proteção social entre os idosos, sendo que o Brasil possui um dos níveis mais elevados da região (ver Tabela 5). Como mostrado por Rofman e Luccheti (2007), a cobertura dos idosos, entendida como o percentual que recebe algum tipo de benefício contributivo ou não contributivo, indica que a proteção social dos idosos na América Latina é extremamente baixa em muitos países da referida região e, somente na Costa Rica (60,09%, sendo 39,42% contributivo e 20,12% não contributivo, em 2004), Argentina (68,8% em 2006), Bolívia (14,7% contributivo e 69,46% não contributivo, resultando em um total de 72,34% em 2002), Chile (62,99% contributivo e 14,42% não contributivo, resultando em 77,26% em 2003), Uruguai (85,97% em 2004) e Brasil (86,66% em 2002) essa cobertura seria igual ou superior a 60% da população idosa.
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Para outros nove países da América Latina, mais especificamente Colômbia (18,61% em 2000), Equador (33,27%, sendo 16,08% contributivo e 18,47% não contributivo em 2004), Guatemala (11,17% em 2000), México (18,70% em 2002), Panamá (41,86% em 2003), Paraguai (14,91% em 2004), Peru (26,19% em 2003), El Salvador (13,88% em 2003) e Venezuela (26,82% em 2004), essa cobertura era inferior a 60%, sendo que em seis desses países estava em um patamar igual ou inferior a 20% e, em outros quatro países, estava na faixa de 20% a 40%. Tais dados consideram tanto os benefícios contributivos como os não contributivos, até porque, para muitos países, as pesquisas domiciliares não permitem separar o recebimento desses tipos de benefícios, sendo possível para Bolívia, Equador, Chile e Costa Rica, onde o percentual de idosos que recebe benefícios desse tipo é de, respectivamente, 58%, 17%, 14% e 21% dos idosos. Portanto, a cobertura seria ainda mais baixa sem considerar os benefícios não contributivos11. Essa baixa cobertura dos idosos reflete, entre outros fatores, precariedade do mercado de trabalho da região, caracterizado por elevada informalidade, bem como a incapacidade do modelo de desenvolvimento dos países da América Latina de construir um sistema de proteção social abrangente e adequado. Ademais, a baixa proteção social dos idosos afeta de forma muito desigual os diferentes grupos da sociedade, sendo mais um reflexo de um modelo de desenvolvimento que criou uma elevada desigualdade. São afetados de forma mais severa aqueles que vivem nas áreas rurais, os mais pobres, aqueles com menor escolaridade e, em geral, há uma menor proteção para as mulheres vis-à-vis os homens e para determinados grupos raciais/étnicos que historicamente foram alvo de discriminação, como indígenas e negros. No tocante à tendência da proteção social, Rofman e Luccheti (2007) apontam que a mesma seria um mix de melhora em alguns países, com piora em outros, havendo dificuldade de definir uma tendência geral. As mudanças seriam lentas e pequenas, prevale11
Por outro lado, quando se adiciona ao grupo de protegidos os idosos que vivem em domicílios onde no mínimo um membro recebe benefício, as taxas crescem para acima de 70% no Chile e Argentina e acima de 90% no Uruguai e no Brasil, segundo Rofman e Luccheti (2007).
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cendo um quadro geral de proteção social muito baixa aos idosos da América Latina. Na maioria dos países, como constata Mesa Lago (2007), não é possível mensurar de forma precisa o impacto de reformas previdenciárias recentes na cobertura dos idosos, seja por terem ocorrido há muito pouco tempo ou por insuficiência de registros estatísticos. De todo modo, em alguns países da região pode-se sugerir alguma relação entre a evolução da cobertura e a adoção de novos modelos previdenciários. Tabela 5 Proteção social dos idosos na América Latina
PAÍS
Cobertura da Proteção Social dos Idosos e Evolução
Desigualdade de Proteção e Outras Observações
Argentina
68,8% em 2006. Queda se comparado com 1992 (78,1%). 65 anos ou mais para área urbana.
Em 2006, era de 73,9% para homens e 65,4% para mulheres, ambos com tendência de queda. Variava de 39,9% para 20% mais pobres a 77,8% entre 20% mais ricos. Tendência de queda para todos os quintis, em especial os 40% mais pobres.
Bolívia
72,34% em 2002, quando considerados os benefícios contributivos (14,71%) e não contributivos (69,46%). Alta, se comparado com 1996, quando havia apenas 17,63% atendidos pelos benefícios não contributivos.
59,96% para os 20% mais pobres e 79,85% para os 20% mais ricos, mas, considerando apenas os contributivos, seria de 0,16% para os 20% mais pobres em 1996; em 2004, e, para os contributivos, seria de 16,93% para homens, 12,87% para mulheres, 5,07% rural e 24,40% urbano.
Chile
77,26% em 2003, sendo 62,99% contributivo e 14,42% não contributivo. Estabilidade, se comparado com 1990 (77,19%), mas com queda do contributivo (era 73,04%) e alta do não contributivo (era 6,78%) – 65 anos ou mais.
Considerando apenas os contributivos, seria de 43,20% para os 20% mais pobres e 68,97% para os 20% mais ricos, 71,76% para os homens e 56,42% para as mulheres, 45,39% rural e 66,52% urbano.
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Colômbia
18,61% em 2000. Queda se comparado com 1992 (20,03%) e alta em relação a 1995 (13,66%) – 65 anos ou mais.
24,51% para homens e 13,55% para mulheres, 6,23% rural e 27,24% urbano, 5,89% para os 20% mais pobres e 44,88% para os 20% mais ricos no ano de 2000.
Costa Rica
60,09%, sendo 39,42% contributivo e 20,12% não contributivo em 2004. Alta em relação a 1991 (25,56%, havendo apenas contributivos).
Considerando apenas os contributivos, seria de 10,79% para os 20% mais pobres e 62,05% para os 20% mais ricos, 51,13% homens e 29,25% mulheres, 24,45% rural e 47,59% urbano.
El Salvador
Equador
13,88% em 2003. Alta, se
19,81% para homens e 9,38%
comparado a 1997 (12,35%).
para mulheres, 3,89% rural e 20,0% urbano, 1,13% para os 20% mais pobres e 32,61% para os 20% mais ricos.
16,08% em 2004. Queda, se compa-
Considerando apenas os contri-
rado com 1990 (18,60%) e alta se comparado com 2000 (13,68%).
butivos, seria de 19,38% para homens e 12,95% para mulheres, 5,45% rural e 23,17% urbano, 2,03% para os 20% mais pobres e 36,97% para os 20% mais ricos.
Guatemala
11,17% em 2000. Queda, se comparado a 1998 (13,73%).
19,10% para homens e 3,59% para mulheres, 6,89% rural e 16,46% urbano, 0,67% para os 20% mais pobres e 26,08% para os 20% mais ricos em 2000.
México
18,70% em 2002. Alta, se comparado com 1992 (16,66%).
26,18% para homens e 12,14% para mulheres, 7,97% para rural e 23,40% para urbano, 2,97% para os 20% mais pobres e 30,13% para os 20% mais ricos.
Panamá
41,86% em 2003. Alta, se comparado com 1991 (35,55%).
48,72% para homens e 35,04% para mulheres, 17,69% para rural e 57,62% para urbano, 5,16% para os 20% mais pobres e 73,96% para os 20% mais ricos em 2003.
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Paraguai
14,91% em 2004. Queda, se comparado com 1999 (17,39%).
15,23% para homens e 14,64% para mulheres, 6,64% rural e 21,39% urbano, 1,03% para os 20% mais pobres e 37,85% para os 20% mais ricos em 2004.
Peru
26,19% em 2003. Queda, se comparado a 1998 (29,85%).
34,49% para homens e 18,62% para mulheres, 5,72% para rural e 38,80% para urbano, 0,95% para os 20% mais pobres e 58,46% para os 20% mais ricos.
República Dominicana
13,17% em 2004. Alta, se comparado com 2000 (10,99%) – 65 anos ou mais.
18,77% para homens e 7,42% para mulheres, 6,02% para rural e 18,26% para urbano, 4,44% para os 20% mais pobres e 21,64% para os 20% mais ricos em 2004.
Uruguai
85,97% em 2004. Queda, se comparado a 1995 (87,62%).
87,44% para homens e 85,03% para mulheres, 78,05% para os 20% mais pobres e 87,10% para os 20% mais ricos.
Venezuela
26,82% em 2004. Alta, se comparado com 1995 (18,79%).
33% para homens e 21,73% para mulheres, 11,84% para os 20% mais pobres e 47,37% para os 20% mais ricos.
Fonte: Elaboração a partir de dados Rofman e Luccheti (2007).
No Chile, por exemplo, a cobertura permaneceu relativamente constante entre 1990 e 2003. No entanto, separando-se os benefícios contributivos dos assistenciais observa-se que a cobertura dos primeiros baixou, enquanto a dos assistenciais aumentou. Esses resultados sugerem que a reforma estrutural implantada em 1981, substituindo completamente o modelo público por um modelo privado, pode ter contribuído para dificultar o acesso a benefícios contributivos. Na Bolívia, onde reforma similar foi realizada em 1997, a proteção aos idosos aumentou basicamente em função da expansão da cobertura assistencial, mediante a instituição do denominado Bônus Solidário, benefício anual e vitalício de caráter pessoal e destinado a idosos com idade
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igual ou superior a 65 anos12. Na Colômbia, que em 1994 também optou por uma reforma estrutural, migrando para um modelo paralelo de Previdência Social – onde há competição entre um sistema público e um privado –, os registros restritos aos benefícios contributivos mostram retração da cobertura entre 1992 e 2000. No caso colombiano, cabe destacar o chamado Fundo de Solidariedade Pensional, que é uma conta especial do Governo Federal daquele país, vinculado ao Ministério da Proteção Social, que tem como objetivo ou finalidade ampliar a cobertura mediante um subsídio às contribuições de grupos da população que por suas características e condições socioeconômicas não têm acesso aos sistemas de seguridade social, bem como a oferta de benefícios para proteção social de idosos em situação de indigência ou pobreza. O referido Fundo financia dois programas muito importantes para a proteção social dos idosos na Colômbia: o Programa de Subsídio de Aporte à Pensão (Programa de Subsídio de Aporte a Pensión) e o Programa de Proteção Social aos Idosos (Programa de Protección Social al Adulto Mayor – PPSAM). Exatamente porque o Fundo financia dois programas distintos, ele é dividido em duas subcontas: a) Subconta de solidariedade, destinada a subsidiar as contribuições ao Sistema Geral de Aposentadorias e Pensões dos trabalhadores assalariados ou do setor rural e urbano que careçam de recursos suficientes para efetuar a totalidade da contribuição de 16%, tratando-se, portanto, de um programa de subsídio à contribuição previdenciária. Serve para financiar o Programa de Subsídio de Aporte à Pensão; b) Subconta de subsistência é destinada à proteção social das pessoas em estado de indigência ou pobreza extrema, mediante a concessão de benefício para garantir o combate à pobreza. Serve para financiar o Programa de Proteção Social aos Idosos, que tem semelhanças com o chamado Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social (BPC-Loas), que tem um desenho e uma função muito similares. A fonte de recursos do Fundo de Solidariedade Pensional é uma contribuição adicional de 1% (além dos 16% citados anteriormente) para 12
As informações sobre o Bônus Solidário foram obtidas em: www.spvs.gov.bo.
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aqueles com renda superior a 4 salários mínimos. Portanto, como os recursos do Fundo são advindos de impostos cobrados sobre aqueles de maior remuneração ou mais ricos, as ações financiadas pelo referido Fundo não apenas têm a importante função de ampliar a proteção social, como também acabar por contribuir para uma melhor distribuição de renda na Colômbia. Essa contribuição adicional de 1% sobre aqueles que ganham mais de 4 salários mínimos é dividida igualmente (50%) entre as subcontas de solidariedade e subsistência. Costa Rica e Argentina instituíram reformas estruturais que deram origem a modelos mistos de Previdência Social – caracterizados pela integração de um sistema público, que outorga um benefício básico, com um sistema privado, que oferece um benefício complementar. No primeiro país, a cobertura aumentou também em função dos benefícios contributivos, mas principalmente em razão da concessão de benefícios não contributivos. Na Argentina, por outro lado, a cobertura dos idosos de 65 anos ou mais caiu de 76,7% em 1994 para 71,8% em 1999 (BERTRANOU, 2001), quase um ponto percentual por ano de decréscimo desde a mudança de modelo13. Dentre outros fatores, uma possível explicação para a diferença nos resultados reside no fato de que, no caso argentino, o peso dos benefícios não contributivos sobre o total de benefícios da Seguridade Social é menor – 10,1% em dezembro de 2000, segundo Schwarzer e Quirino (2002). Os dados deixam claro que, de um modo geral, a proteção social dos idosos na América Latina é bastante precária e heterogênea entre os países, variando de países com cobertura de 80% a países com proteção abaixo de 20%. O mais importante é salientar que em vários países a melhora da proteção social esteve relacionada com a introdução de benefícios de caráter não ou semicontributivo, como a previdência rural, ou mesmo de caráter assistencial ou não contributivo, como os Benefícios de Prestação Continuada – Lei Orgânica de Assistência Social (BPC-Loas) no caso brasileiro, mas que também foi uma realidade para outros países como Bolívia, Chile, Colômbia e Costa Rica. Com os dados apresentados na Tabela 5 é possível fazer, com limitações, uma estimativa da proteção social dos idosos na América Latina. 13
Os dados de Bertranou (2001) e Rofman e Luccheti (2007) não contemplam os efeitos das novas reformas aprovadas em 2007, no sentido de fortalecer o pilar público do modelo previdenciário argentino.
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Utilizando os dados de população com 65 anos ou mais da Celade/Cepal em 2005 e os dados de cobertura apresentados na Tabela 5, podese estimar que na dos cerca de 30,7 milhões de pessoas com 65 anos ou mais na América Latina (inferior ao dado da Tabela 2, pois não considera todos os países, apenas aqueles para os quais há informação sobre cobertura), cerca de 16,9 milhões contavam com proteção (54,9% do total) e 13,8 milhões (45,1% do total) eram desprotegidos (Tabela 6). Tabela 6 Proteção social dos idosos na América Latina REGIÃO América Latina* (não inclui todos os países, apenas aqueles com dados de cobertura)
População 65 anos ou mais
Com Proteção Social
Desprotegidos
30.701.326
16.855.391
13.845.935
Fonte: Estimativa elaborada pelos autores a partir de dados da Celade/Cepal e Rofman e Luccheti (2007) *não inclui todos os países, apenas aqueles com dados de cobertura: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
A médio e longo prazos, a melhora da proteção social dos idosos na América Latina passa necessariamente por uma melhor estruturação dos mercados de trabalho da região, com redução da informalidade e ampliação da proteção social, bem como diminuição dos chamados working poor (trabalhadores ocupados com baixo nível de renda e incapacidade de contribuição). Contudo, a curto prazo, a análise da evolução recente da proteção social dos países da América Latina indica que a ampliação da cobertura passa necessariamente pela criação de mecanismos semi ou não contributivos, que geram distribuição de renda e ampliação da seguridade social. A focalização em esquemas de proteção social dos idosos unicamente ou quase exclusivamente em esquemas contributivos resulta em uma mera reprodução das desigualdades profundas que existem no mercado de trabalho e em precariedade na proteção, tendo em vista o alto grau de informalidade.
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Ademais, a transformação de regimes de repartição pública em esquemas de capitalização de contas individuais tende, ceteris paribus, a reforçar o componente contributivo dos esquemas de proteção social, sem maiores ganhos em termos de ampliação da proteção social dos idosos. 4. BRASIL: EFEITOS OU IMPACTOS DA PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS Como o objetivo principal da Previdência Social é garantir renda ao trabalhador em situação de idade avançada, a taxa de participação dos idosos no mercado de trabalho consiste em um indicador fundamental para avaliar o impacto da política previdenciária na vida dos beneficiários. Como mostra o Gráfico 4, os resultados encontrados, de modo geral, são coerentes com a tese de que os benefícios previdenciários14 provocam impactos positivos e não desprezíveis na decisão de seus beneficiários quanto à participação ou não no mercado de trabalho. Dentre os idosos do sexo masculino, fica evidente a diferença na taxa de participação entre beneficiários e não beneficiários da previdência social, muito embora para os dois grupos esta tenda a decrescer com a idade. A participação média do total de homens beneficiários com idade igual ou superior a 60 anos é de 34,9%, menos da metade da participação dos homens não beneficiários situados na mesma faixa etária (76,7%). No caso das mulheres, o impacto da previdência não está tão evidente – a diferença de participação dos dois grupos é menor, ficando em 18% entre as beneficiárias e em 25,1% entre as não beneficiárias, mas não deve ser subestimado.
14
Como a Pnad não permite que os benefícios assistenciais sejam dissociados dos benefícios previdenciários, ao longo desse estudo trataremos do impacto dos benefícios pagos pela Seguridade Social – exceto Saúde. De todo modo, como forma de simplificar a análise e considerando que os benefícios assistenciais representam cerca de 12,1% do estoque de benefícios emitidos – em setembro de 2007, aqui tratados como pagos – pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), denominaremos os montantes pagos como transferências previdenciárias e os benefícios como benefícios previdenciários.
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Gráfico 4 Brasil: Taxa de participação no mercado de trabalho por sexo e segundo situação perante a Previdência Social (Beneficiários ou não) – 2007
100.0% 90.0% 80.0% 70.0% 60.0% 50.0% 40.0% 30.0% 20.0% 10.0% 0.0% 60
61
62
63
64
65
66
67
68
69
70
71
Homens beneficiários
Homens não beneficiários
Mulheres beneficiárias
Mulheres não beneficiárias
72
73
74
75 anos ou +
Fonte: Pnad/IBGE – 2007. Elaboração: SPS/MPS.
De acordo com Schwarzer e Paiva (2003)15, a proximidade verificada nas taxas de participação por idade de mulheres beneficiárias e não beneficiárias pode estar relacionada à existência de padrões distintos de inserção no ambiente familiar, não observados entre os homens, para os dois grupos. Entre as beneficiárias, pouco mais da metade (54,1%) ocupa a posição de pessoa de referência –, categoria que tradicionalmente tende a participar mais do mercado de trabalho porque dela costuma depender a maior parte do núcleo familiar. Entre as não beneficiárias, no entanto, apenas 29% são chefes de família. Entre os homens, como pode ser visto na Tabela 7, as diferenças no perfil de beneficiários e não beneficiários são quase inexistentes.
15
Ver SCHWARZER, Helmut; PAIVA, Luis Henrique da Silva. Participação de beneficiários e não beneficiários da Previdência Social no mercado de trabalho. Informe de Previdência Social, vol. 15, nº 11, nov. de 2003.
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Tabela 7 Brasil: Distribuição de beneficiários e não beneficiários segundo condição na unidade familiar e sexo – 2007 Condição na família
Homens beneficiários
Homens não beneficiários
Mulheres beneficiárias
Mulheres não beneficiárias
87,2%
82,3%
54,1%
29,0%
Cônjuge
6,4%
10,2%
27,9%
59,6%
Filho
0,2%
0,8%
0,5%
0,9%
Outros parentes
5,8%
5,9%
17,0%
9,7%
Outras situações
0,4%
0,7%
0,6%
0,9%
100,0%
100,0%
100,0%
100,0%
Pessoa de referência
Total
No caso das mulheres beneficiárias, portanto, ocorrem dois movimentos em sentidos contrários, que aparentemente tendem a se anular. Por um lado, o rendimento recebido por meio do benefício previdenciário tende a atuar no sentido de favorecer a queda na taxa de participação no mercado de trabalho. Por outro lado, o elevado percentual de mulheres beneficiárias na condição de pessoa de referência tende a pressionar a taxa de participação para cima. Dentre as não beneficiárias, no entanto, apesar da inexistência de rendimentos previdenciários, a pouco expressiva parcela de chefes de família tende a manter a taxa de participação em nível mais baixo. O resultado dessa combinação de forças é a já mencionada semelhança na participação dos dois grupos no mercado de trabalho, situação que tenderia a não ocorrer caso o perfil de condição na unidade familiar fosse o mesmo para beneficiárias e não beneficiárias – a taxa de participação das primeiras, possivelmente, seria significativamente inferior à das segundas. Ressalte-se que, ao longo do período 1992-2007, os dados relativos à participação confirmam a tendência de menor participação de beneficiários da Previdência Social no mercado de trabalho como meio de complementação de renda. No período analisado, a taxa de participação caiu ou ao menos permaneceu relativamente estável em quase todos os grupos, exceto para as mulheres não beneficiárias. Em todos os casos, o diferencial entre beneficiários e não beneficiários de ambos os sexos manteve-se evidente (Gráfico 5).
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Gráfico 5 Brasil: Taxa de participação no mercado de trabalho de residentes idosos, segundo sexo e situação previdenciária – 1992-2007 100,0% 90,0% 80,0% 70,0% 60,0% 50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 10,0% 0.0% 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Homens não beneficiários
Mulheres não beneficiárias
Homens beneficiários
Mulheres beneficiárias
Total
Fonte: Pnad/IBGE – 1992 a 2007. Elaboração: SPS/MPS.
Uma forma de avaliar o impacto da proteção e da posição no domicílio sobre a probabilidade de participar ou não no mercado de trabalho é fazer uma análise por meio de uma regressão logística binária. Tomando a variável participação ou não no mercado de trabalho como a variável dependente (sendo 1 para inativo e 0 para ativo) e as variáveis dependentes sendo proteção social (1 para protegido e 0 para não protegido), dummy de sexo (sendo 0 para mulher e 1 para homem) e dummy de posição no domicílio (sendo 1 para pessoa de referência e 0 para as demais). Como mostrado pela Tabela 8, o fato de um idoso ter proteção social aumenta a probabilidade que o mesmo se encontre fora da PEA, ou seja, esteja inativo, denotando o impacto positivo da proteção social. Esse efeito foi obtido isolando o impacto da posição no domicílio, que como discutido anteriormente, tornava mais obscuro o impacto positivo da proteção social sobre a não participação na PEA no caso das mulheres. Os dados da Tabela 7 mostram que ser pessoa de referência, isolados efeitos de sexo e proteção social, implicam em uma redução da probabilidade de estar fora da PEA, ou de forma inversa, aumenta a probabilidade de estar ativo, mesmo sendo idoso. A dummy de sexo
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indicou que, isolados os efeitos de pessoa de referência e proteção, ser homem reduzia a probabilidade de estar fora da PEA em relação a ser mulher, provavelmente, decorrência do fato de que entre os idosos atuais havia uma diferença de participação na PEA muito grande entre homens e mulheres, ainda maior do que a que prevalece atualmente. Tabela 8 Brasil: Regressão logística binária sobre a probabilidade de participação de idosos na PEA segundo determinadas características – 2007 (microdados Pnad/IBGE) Variável Dependente
B
Significância
Exp (B)
Proteção social
+ 0,425
0,000
1,530
Dummy de sexo
- 1,105
0,000
0,331
Dummy de pessoa de referência
- 0,262
0,000
0,769
Constante
+ 1,186
0,000
3,274
Fonte: Pnad/IBGE 2007.
Um importante aspecto adicional do impacto da Previdência Social diz respeito à relevância das transferências previdenciárias para a redução da pobreza. A estimativa desse impacto foi elaborada tomando-se em conta a quantidade de pessoas com renda domiciliar per capita abaixo de meio salário mínimo – valor definido para a “linha de pobreza”, conforme se inclui ou exclui a renda previdenciária. Seguindo esse critério, chegamos a 2007 com 56,87 milhões de pessoas em situação de pobreza, considerando rendas de todas as fontes, número que chegou a 79,10 milhões quando excluídos todos os rendimentos oriundos da Previdência Social. Isso significa que as transferências previdenciárias foram responsáveis pela retirada de aproximadamente 22,23 milhões de pessoas, de todas as faixas etárias, da condição de pobreza16. Esse impacto dos benefícios da Previdência sobre a pobreza concentra-se, naturalmente, na popula16
Supondo que tudo mais permaneça constante, ou seja, considerando que todas as demais variáveis que interferem no nível de pobreza não sofram alterações e descartando possíveis impactos das transferências previdenciárias nas decisões dos indivíduos beneficiados direta ou indiretamente.
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ção idosa, tendo em vista que a função básica de benefícios desse tipo é substituir a renda do trabalhador contribuinte quando este perde a capacidade de trabalho. Embora a redução da pobreza decorrente da expansão da Previdência Social atinja todas as faixas etárias, a renda previdenciária privilegia, sobretudo, aqueles com idade superior aos 55 anos. Como destacam Passos et al (2005)17, a partir dos 55 anos de idade nota-se uma forte redução no percentual daqueles que seriam pobres, caso não fossem beneficiários da Previdência. Pode-se perceber, portanto, que Previdência Social é determinante para que a pobreza diminua com o aumento da idade (Gráfico 6), chegando ao limite inferior de 10% para a população com 70 anos de idade ou mais. Caso não existissem transferências previdenciárias, haveria um ponto (que, para o ano de 2007, é de aproximadamente 50 anos) a partir do qual a pobreza aumentaria significativamente, chegando a cerca de 70% para a população com idade acima de 70 anos. Gráfico 6 Brasil: Percentual de pessoas com menos de ½ salário mínimo de renda domiciliar per capita por idade, considerando e não considerando a renda previdenciária – 2007 100.0% Linha de pobreza observada
% de pobres
80.0%
Linha de pobreza simulada
60.0%
40.0%
20.0%
0.0% 0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
55
60
65
70
75
80 ou +
Idade (em anos) Com transferências previdenciárias
Sem transferências previdenciárias
Fonte: Pnad/IBGE – 2007. Elaboração: SPS/MPS.
17
Ver PASSOS, Alessandro Ferreira et al. “Previdência Social e Pobreza”. Informe de Previdência Social, volume 17, nº 9. Brasília: MPS, set. 2005.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A combinação de elevação da expectativa de vida e redução da taxa de fecundidade tem levado a um processo de envelhecimento populacional não apenas no Brasil como em toda a América Latina, o que implica maior participação dos idosos na população total e o agravamento da razão de dependência. No Brasil, ao longo do período de 1992 a 2007, notou-se uma melhora da proteção social entre os idosos, em especial, entre as mulheres de 60 anos ou mais. Esse aumento da cobertura decorreu, entre outros fatores, do aumento do número de beneficiários da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e das mudanças na Previdência Rural, como a instituição da categoria de Segurado Especial. Portanto, a melhora da proteção social dos idosos no Brasil está relacionada ao fortalecimento de programas de caráter não ou semicontributivo. Em outros países da América Latina a ampliação da proteção social dos idosos esteve associada a instituição ou fortalecimentos de programas de proteção de caráter semi ou não contributivo. Deveria ser óbvio que programas tradicionais de Previdência Social, baseados exclusivamente no princípio contributivo, não são capazes de universalizar a cobertura da Previdência Social na América Latina, apesar de sua importância e mérito. Além da alta incidência de relações informais de trabalho assalariado, esses programas enfrentam dificuldades para incluir os setores da economia familiar rural e urbana e o chamado setor informal. A elevada pobreza, seja estrutural ou resultante da instabilidade econômica e social das últimas décadas, é outro obstáculo ao incremento da proteção social por meio de programas contributivos na América Latina. Por outro lado, além de cobrar a contribuição daqueles que são capazes de fazê-la, uma política que tenha por objetivo aumentar a cobertura da proteção social demandará novas formas de financiamento que não sejam baseadas em contribuições monetárias individuais, para incorporar aqueles grupos que não são capazes de manter contribuições regulares. Obviamente, programas exclusivamente contributivos não servem para distribuir renda e apenas tendem a reproduzir as desigualdades existentes no mercado de trabalho, que,
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no caso da América Latina, significa um setor com alta informalidade, elevada precariedade e má distribuição de renda. Finalmente, vale ressaltar que, apesar da natureza de longo prazo dos regimes previdenciários, o que lhes poderia garantir certa proteção contra as oscilações econômicas, os diferentes tipos de regimes, incluindo os de capitalização e de repartição, podem ser significativamente afetados pela atual crise financeira mundial. Caso a recessão econômica se agrave e o desemprego aumente, para além das perdas em termos de proteção social dos indivíduos economicamente ativos, os governos poderão ter de reavaliar suas estratégias para assegurar algum equilíbrio entre receitas e despesas nos regimes de repartição e a cobertura da população idosa. Mesmo em países nos quais os regimes previdenciários concentramse fundamentalmente no pilar privado de capitalização, a persistência do atual cenário pode exigir esforços estatais para que as obrigações referentes ao pagamento de aposentadorias e pensões aos seus membros sejam cumpridas (Benefício Definido), ou mesmo para garantir que os segurados atinjam um benefício mínimo e/ou suficiente para suas necessidades básicas (Contribuição Definida). Caso contrário, pode-se esperar uma piora na cobertura dos idosos ainda no curto prazo. De todo modo, a fim de que sejam minimizados os efeitos de futuras crises financeiras, deve-se investir na melhoria da regulamentação dos regimes privados, de forma que estes não fiquem tão vulneráveis à volatilidade dos mercados financeiros.
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GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL ANÁLISE COMPARATIVA DAS AÇÕES RECENTES PARA A REFORMA DOS SISTEMAS EDUCACIONAIS NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS Rafael Parente
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Para que servem as escolas? O que é globalização e qual o seu impacto na educação? Há evidências de uma convergência educacional entre os sistemas do Brasil e dos Estados Unidos? O objetivo deste artigo é procurar iniciar uma discussão comparativa das ações recentes para a reforma dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos, com o intuito de investigar a relação dessas ações com a globalização e a convergência de sistemas educacionais e questionar a afirmação de que os dois sistemas têm priorizado os objetivos econômicos da educação pública.
Palavras-chave: educação; globalização; convergência educacional What are schools for? What is globalization and what is its impact in education? Is there any evidence of educational convergence between the Brazilian and American educational systems? This article aims to initiate a comparative discussion over recent actions that target educational reforms in Brazil and the United States, in order to investigate the connection between these actions, globalization, and the convergence of educational systems, as well as question the argument that the two systems have prioritized the economic goals of public education.
Keywords: education; globalization; educacional convergence
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1. INTRODUÇÃO: PARA QUE SERVEM AS ESCOLAS? Como a educação afeta a sociedade? A visão dominante é de que as escolas formam indivíduos. Elas são redes organizadas de experiências de socialização que preparam indivíduos para atuar em sociedade. Efeitos macrossociológicos mais diretos não têm sido muito analisados. Ainda assim, em sociedades modernas, a educação é uma instituição muito desenvolvida. Ela tem uma rede de regras que cria classificações públicas de pessoas e conhecimento. Ela define que indivíduos pertencem a essas categorias e possuem o conhecimento apropriado. Ela também define que pessoas podem ter acesso a posições valiosas na sociedade. A educação é um elemento central na biografia pública dos indivíduos, afetando bastante as suas oportunidades. Além disso, ela é um elemento central na organização da sociedade, construindo competências e auxiliando na criação de profissões e profissionais. É evidente que essa instituição tem grande impacto na sociedade, bem maior do que as experiências imediatas de socialização que ela oferece aos jovens.
Essa é uma visão sociológica da educação, descrita por John W. Meyer em 1977 (p. 55). Atualmente, mesmo em meio a tantas transformações e avanços tecnológicos, científicos e econômicos, o impacto da educação sobre a sociedade continua sendo o descrito por Meyer. Nos Estados Unidos, o professor David Labaree argumenta que os principais problemas do sistema educacional não são pedagógicos, organizacionais, sociais, ou culturais em sua essência, mas fundamentalmente políticos, já que a definição de propósitos é uma questão política que depende de decisões baseadas em interesses e valores (2007). A história da educação americana, diz Labaree, é de objetivos ambivalentes e resultados confusos. A escola promove a igualdade e se adapta à desigualdade. Dentro das escolas, esses propósitos contraditórios são traduzidos em três objetivos educacionais, cada um deles impactando para a eliminação ou diminuição da importância dos outros. Labaree chama esses objetivos de: 1) Igualdade democrática, que expressa a ideia de que uma sociedade democrática não pode prosperar a não ser que prepare todos os jovens com o mesmo cuidado para exercerem bem suas responsabilidades como cidadãos; 2) Eficiência social, que argumenta que o sucesso econômico do país depende da capacidade de preparação dos jovens para exercerem eficientemente uma profissão; e 3) Mobilidade social,
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que vê a educação como uma mercadoria, cujo único objetivo é dar a um grupo de alunos uma vantagem competitiva na luta por posições sociais. Apesar de os três objetivos serem políticos, já que estabelecem os propósitos de uma instituição social, o segundo e o terceiro enxergam a educação como um mecanismo de adaptação dos alunos ao mercado. Enquanto que para o primeiro a educação é um bem estritamente público, para o segundo é um bem público que serve o setor privado e o para o terceiro é um bem privado para consumo pessoal. No Brasil, o propósito da educação pública é descrito no artigo segundo da Lei de Diretrizes e Bases (LDB – Lei nº 9.394/96): “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” No entanto, há um consenso entre diferentes grupos da sociedade brasileira de que a escola pública não cumpre, atualmente, nenhum desses três fins. O cientista político Simon Schwartzman, por exemplo, argumenta que os principais problemas da educação básica no Brasil são a necessidade de melhoria na qualidade da educação pública para crianças e jovens que frequentam as escolas e o fornecimento de educação complementar para adolescentes e jovens que pararam de estudar ou que estão atrasados em relação ao seu grupo etário (2004). Além disso, um grupo de pesquisadores brasileiros, como a professora Vera Peroni, defende a tese de que várias propostas para a reforma do sistema educacional brasileiro têm por objetivo transformar a educação em mercadoria, o que sugere que a educação pública brasileira também tem por objetivo a mobilidade social descrita por Labaree (2003). Esses pesquisadores geralmente incluem, em seus argumentos, críticas à globalização, a ideias neoliberais e a interesses implícitos para a privatização das escolas públicas. Além de motivações específicas das sociedades de cada país, organizações transnacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial também exercem influência na discussão dos objetivos da educação e da escola. Um exemplo disso é o Relatório Jacques Delors, publicado no Brasil com o título Educação – um tesouro a descobrir, resultado de um trabalho desenvolvido de 1993 a 1996 pela Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). De acordo com ele:
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Para dar respostas ao conjunto de suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo, para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; e finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta.
O objetivo deste artigo é analisar ações recentes para a reforma dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos, com o intuito de investigar a relação dessas ações com a globalização e a convergência de sistemas educacionais e questionar a afirmação de que os dois sistemas têm priorizado os objetivos econômicos da educação pública.1 2. GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL A globalização pode ser discutida em termos econômicos, políticos e culturais. Ela pode ser utilizada através de perspectivas econômicas neoliberais, da teoria crítica e do pós-modernismo. Ela tem sido aplicada para cobrir debates sobre convergência/divergência, homogeneização/ heterogeneização e questões globais/locais. Apesar de sua habilidade para capturar em suas mudanças o envolvimento do mundo todo, de uma forma ou de outra a globalização continua sendo um termo impreciso para as mudanças bruscas e talvez irreversíveis na economia, no trabalho, tecnologias, comunicação, padrões culturais e alianças políticas que ela está impondo sobre cada nação (STROMQUIST e MONKMAN, 2000, p. 3).
A globalização engloba mudanças drásticas e múltiplas em todas as áreas da vida social, mas particularmente na economia e na cultu1
Por conta das limitações de um artigo científico, será possível apenas propor o início restrito de uma análise comparativa, uma vez que há uma produção bibliográfica significativa que trata das precauções metodológicas que precisam ser observadas nos estudos comparados para não se cometer anacronismos.
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ra. Por ser utilizada através de diversas perspectivas e em diferentes áreas, a definição de globalização varia de acordo com o ângulo que se deseja enfatizar. O professor e historiador John Coatsworth define globalização simplesmente como o movimento acelerado de pessoas, produtos e ideias entre países e regiões (2004, p. 38). O professor de educação Marcelo Suárez-Orozco oferece uma definição mais detalhada, caracterizando globalização como os processos de mudança causados por quatro formações inter-relacionadas: 1) Formas pós-nacionais de produção e distribuição de bens e serviços, fomentadas por níveis crescentes de comércio internacional, investimento estrangeiro direto e fluxo de capital; 2) Tecnologias de informação, comunicação e mídias, que facilitam o contato entre as pessoas e, ao mesmo tempo, estimulam a valorização do trabalho que requer conhecimentos mais aprofundados e específicos; 3) Níveis crescentes de migração em todo o mundo; e 4) As consequentes transformações e trocas culturais que têm desafiado valores e normas tradicionais (2004, p. 3)2. 2
É importante salientar que não há consenso sobre o tema da globalização e sua relação com diversas áreas citadas no artigo e outras. Um exemplo é oferecido por um reconhecido sociólogo do século XX, Pierre Bourdieu, juntamente com Loc Vancquant, que explicitam uma sinalização merecedora de reflexão: “Em todos os países avançados, patrões, altos funcionários internacionais, intelectuais de projeção na mídia e jornalistas de primeiro escalão se puseram em acordo em falar uma estranha novlange, cujo vocabulário, aparentemente sem origem, está em todas as bocas: ‘globalização’, ‘flexibilidade’, ‘governabilidade’, ‘empregabilidade’, ‘underclass’ e exclusão; nova economia e ‘tolerância zero’, ‘comunitarismo’, ‘multiculturalismo’ e seus primos pós-modernos, ‘etnicidade’, ‘identidade’, ‘fragmentação’ etc. A difusão dessa nova vulgata planetária – da qual estão notavelmente ausentes capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade, e tantos vocábulos decisivamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência – é produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários da revolução neoliberal que, sob a capa da ‘modernização’, entende reconstruir o mundo fazendo tábula rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas, a partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente, porém também por produtores culturais (pesquisadores, escritores, artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas.” (BOURDIEU e VANCQUANT, 2000, p. 1).
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Vários cientistas têm feito pesquisas importantes sobre o impacto da globalização na educação e nos sistemas educacionais de diversos países. Uma análise do universo de textos nacionais e internacionais sobre o tema pode revelar algumas diferenças principais em argumentos e conclusões. Uma divisão clara está entre os autores que se propõem a explicar o que está diferente na educação e na escola como consequência da globalização, aqueles que falam sobre como as escolas e os sistemas educacionais podem se preparar para a nova realidade global e aqueles que oferecem ambos, diagnósticos e sugestões. Outra divisão perceptível é a que diz respeito ao posicionamento dos autores em relação à globalização e seu impacto na educação: alguns priorizam as oportunidades, outros discorrem mais sobre as ameaças e um terceiro grupo, mais cauteloso, tenta se manter razoavelmente neutro. Uma das teses apresentadas pelos estudos da área é de que as vidas dos jovens de hoje estão associadas a realidades econômicas, processos sociais, inovações tecnológicas e de mídias e correntes culturais que atravessam fronteiras mais rapidamente e com um impacto cada vez maior. Essas transformações exigem dos jovens um tipo de formação que a maioria dos sistemas educacionais não está pronta para oferecer: O desafio da educação será de moldar habilidades cognitivas, sensibilidades interpessoais e sofisticação cultural de crianças e jovens cujas vidas estarão conectadas a contextos locais e processos transnacionais. Nós argumentamos que dois domínios, em particular, apresentarão os maiores desafios para as escolas de todo o mundo: o domínio da diferença (diversidade) e o domínio da complexidade (SUÁREZ-OROZCO, 2004, p. 3).
No que diz respeito a perspectivas econômicas da globalização, as pesquisas apontam para uma intensificação de padrões de desigualdade social e econômica, sustentada por diferenças crescentes de renda per capita e bem-estar social (SUÁREZ-OROZCO, 2004; BLOOM, 2004; DUSSEL, 2000; MITTELMAN, 2000; BAUMAN, 1998; NADER, 1993). Esse crescimento da desigualdade socioeconômica está também associado ao aumento crescente da desigualdade educacional. Em outras palavras, a globalização tem exacerbado diferenças econômicas, sociais e educacionais entre os países de todo o mundo. Nesse contexto de aumento da desigualdade, a educação da população se torna mais importante do que em qualquer outro período da história,
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já que é entendida como catalisadora de espirais de desenvolvimentos positivos, responsável pela formação e preparação dos jovens para uma nova realidade e essencial para a competitividade do país no mercado global (BLOOM, 2004). Um grande número de pesquisadores brasileiros e internacionais foca suas investigações no “pacote ideológico” da globalização (CARNOY, 2000), associando a globalização a medidas neoliberais e argumentando que esse pacote exerce uma influência negativa no discurso e na prática da educação pública (TORRES, 1997; LEHER, 2004; GENTILI, 1998; BUENFIL, 2000; PERONI, 2006; SILVA JUNIOR, 2002). Alguns deles também dizem que medidas de governos locais e nacionais têm por objetivo a privatização do sistema educacional (GENTILI, 1998; JONES and BIRD, 2000). Assim como globalização, o termo neoliberalismo é frequentemente usado com definições imprecisas e variadas. Uma definição mais precisa do termo é: um grupo de crenças políticas com a convicção de que o único objetivo legítimo do estado é proteger as liberdades individuais (especialmente a comercial) e o direito à propriedade privada (THORSEN and LIE, 2006; MALNES, 1998; BLOMGREN, 1997; HAYEK, 1979; NOZICK, 1974; MISES, 1962). O professor de educação Martin Carnoy acredita que, para uma avaliação mais completa sobre a correlação entre a globalização e mudanças educacionais, é necessário entender como esse pacote ideológico afeta o processo educacional dentro das escolas (2000). Segundo ele, a globalização está impactando a educação de três maneiras cruciais: 1) Financeiramente, a maior parte dos governos está sendo pressionada a reduzir o gasto público com educação e encontrar outras formas de financiamento para a expansão do sistema. 2) No mercado de trabalho, o salário para aqueles que têm maiores níveis educacionais está crescendo no mundo todo, como resultado das mudanças de produção econômica para produtos e processos que demandam altos níveis de conhecimento. Os governos estão sob pressão para atrair capital externo e essa captação de recursos depende da disponibilidade de uma força de trabalho capacitada. Essa dependência, por sua vez, aumenta a pressão sobre os governos para expandir as vagas nas universidades e o número de candidatos que terminam o ensino médio e que têm vontade e capacidade para cursar o ensino superior.
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3) Em termos educacionais, a qualidade dos sistemas educacionais é cada vez mais comparada internacionalmente. Isso tem gerado a priorização da aprendizagem de algumas disciplinas, como matemática e ciência, além da padronização de currículos e avaliações que possam medir e levar aos resultados prescritos por lei. Outros cientistas parecem concordar com Carnoy e apresentam argumentos relativamente semelhantes sobre a “globalização neoliberal” e seu impacto na educação. Para Vera Peroni (2006), a globalização e o neoliberalismo têm causado mudanças na esfera do Estado, da produção, do mercado e também na arena ideológica/política/cultural, criando uma racionalização instrumental que subordina direitos sociais, como a educação pública, a eficácia e eficiência do mercado. Rosa Buenfil (2000) diz que, nessa nova agenda, a educação está subordinada a visões e necessidades econômicas do país. Stephen Ball (2004) argumenta que os valores do mercado privado e sua moralidade utilitária estão sendo inseridos nas práticas educacionais, legitimizando e priorizando algumas ações e compromissos (competição, eficiência, excelência) e inibindo outros (justiça social, igualdade e tolerância). Paulo Freire acreditava que, sob o neoliberalismo, o desenvolvimento de um conhecimento tecnocientífico é promovido, o que significa que os alunos são desencorajados a aprender qualquer outra coisa que não seja relacionada a técnicas de produção (ROBERTS, 2003). Para Silva Junior (2002), por conta da política neoliberal, reformas educacionais recentes têm objetivado a criação de um cidadão que deve ser eficiente e competitivo. Gentili (1998) acredita que o neoliberalismo privatiza a escola pública, nega o direito à educação e aumenta os mecanismos históricos de exclusão social pelos quais os setores pobres da sociedade são oprimidos. Apesar de esse grupo de pesquisadores assumir que o neoliberalismo é uma nova agenda ideológica relacionada à globalização e investigações importantes terem sido realizadas na área, ainda há uma falta de evidências locais que comprovem mudanças ideológicas dentro das escolas (CLAYTON, 2004). Há poucas investigações que demonstram claramente esse tipo de ruptura em nível local, mas Chua (2004) é uma das exceções. Ela argumenta que a globalização tem diminuído a igualdade de oportunidades educacionais em Cingapura, onde os alunos que não podem competir pelas melhores posições ou que não
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conseguem atingir os melhores resultados em áreas acadêmicas privilegiadas são forçados a abandonar a escola. O currículo foi reformado para priorizar algumas disciplinas em detrimento de outras, que inclusive são retiradas da grade horária de algumas escolas. Pesquisas sobre tecnologia, tecnologias da informação e ciências são percebidas como “lucrativas”, aumentando o capital econômico do país, enquanto literatura e artes são menos relevantes para o crescimento econômico e perdem importância no contexto escolar. Além do neoliberalismo, a globalização também é frequentemente relacionada à homogeneização cultural e à convergência educacional. A hipótese da homogeneização cultural prevê que os processos globais de mudança causados pelas novas tecnologias de informação e comunicação levarão, inevitavelmente, a uma cultura mundial homogênea (SUÁREZ-OROZCO, 2004). Essa hipótese, aplicada à educação, corresponde à teoria da convergência educacional, que defende que todos os sistemas do mundo estão convergindo para um mesmo padrão, cujas regras e procedimentos seriam copiados dos Estados Unidos. Os pesquisadores Inkeles e Sirowy (1983), por exemplo, defendem que a grande maioria de dados quantitativos e qualitativos indicam uma tendência crescente de convergência dos sistemas educacionais, tanto no que diz respeito a estruturas físicas quanto a processos e práticas. Segundo eles, essa convergência se manifesta em todos os níveis e afeta todos os aspectos mais importantes do sistema. Apesar da aceitação em determinadas vertentes, essas duas ideias são fortemente combatidas por alguns investigadores. O professor de comunicação Henry Jenkins, por exemplo, examinou como as novas tecnologias são utilizadas para a apropriação, descontextualização, recontextualização e transformação de imagens, fatos e artefatos culturais, resultando em um “modo de criatividade e expressões” em lugares diversos (2004). Ele argumenta que os significados de imagens e produtos trocados entre diferentes regiões sofrem metamorfoses imprevisíveis e contraditórias. Esse argumento sugere que qualquer imagem, fato ou artefato transmitido ou trocado entre culturas diferentes certamente sofrerá algum tipo de mutação e ressignificação no lugar que o recebe. Assim, uma festa junina do interior do Ceará nunca poderá ser completamente exportada para uma cidade no interior de São Paulo, já que a cultura local exercerá, sobre a organização e implementação da festa, algum tipo de influência.
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Essa também é a opinião do antropólogo social James Watson (2004). Segundo ele, características locais sempre transformam os produtos globais, fazendo com que eles passem a ter mais significado em termos de sensibilidades locais, práticas sociais e modelos culturais. No contexto educacional, esses argumentos insinuam que mesmo que um governo decida ou seja pressionado para aplicar normas e regulamentações criadas e aplicadas em outra região, fatores locais influirão sobre essas ações e muito provavelmente gerarão procedimentos e resultados diversos e inesperados. Esse argumento corrobora as críticas de alguns cientistas sobre a imposição de condições quando o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional emprestam dinheiro para reformas educacionais de um dado país ou estado (GENTILI, 1998). 3. REFORMAS RECENTES NA EDUCAÇÃO PÚBLICA AMERICANA O grau de importância das pressões de mercado geradas pelos consumidores é um dos principais fatores que fazem da educação americana tão diferente quando comparada com os sistemas educacionais de qualquer outro lugar no mundo. Como Ralph Turner (1960) argumentou, a educação americana é unicamente influenciada pela preocupação em se promover, o que ele chama de mobilidade competitiva, cujo resultado é que o sistema enfatiza vencer ao invés de aprender e oportunidade ao invés de eficiência (LABAREE, 2007).
Apesar de o sistema educacional americano ser extremamente descentralizado, há sempre algum tipo de pressão do governo federal para que certas medidas sejam implementadas em troca de financiamento. Além disso, em cada período há certos tipos de tendências e ações para reforma que acabam sendo disseminadas e aplicadas pela maioria dos estados, quando não todos. Nos últimos anos (a partir dos anos 1990), as ideias mais discutidas e implementadas têm sido: o estabelecimento, por cada estado da federação, de parâmetros curriculares rígidos em conjunto com objetivos mensuráveis a serem avaliados por testes oficiais desde as primeiras séries da educação primária; critérios mais rígidos de responsabilização dos estados, distritos e escolas pelos resultados dos alunos; maior flexibilidade para que as famílias possam escolher a escola onde o aluno vai estudar; e a criação de escolas charter, construídas e geridas por organizações privadas,
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mas financiadas com dinheiro público. O No Child Left Behind Act (Ato Nenhuma Criança Deixada para Trás), proposto pelo Presidente George W. Bush logo depois de assumir seu primeiro mandato, promovia todas essas ideias, com exceção da criação de escolas charter. O recém-eleito Presidente Obama defende a manutenção do No Child Left Behind, mas com maior financiamento e auxiliando as escolas que não têm boa performance, ao invés de lhes punir. Ele também tem defendido o aumento na quantidade de escolas charter, o pagamento meritocrático de professores, o aumento do crédito para a educação superior, o financiamento de programas de educação infantil e a melhoria da educação científica, matemática e tecnológica. Todas essas ações têm gerado reações controversas entre pesquisadores importantes da área de educação. Estudos realizados até agora para avaliar seus impactos demonstram resultados muitas vezes contraditórios. A professora de educação Diane Ravitch, por exemplo, critica com frequência e veemência o No Child Left Behind (2001). Ela argumenta que o ato tem uma abordagem extremamente punitiva para a melhoria das escolas, já que ordena que os resultados dos alunos sejam melhorados ou as escolas sofrerão severas punições, podendo, inclusive, ser fechadas. A cada ano, os objetivos a serem atingidos pelas escolas ficam mais difíceis de serem alcançados e o número de escolas que sofre sanções é maior. Ravitch defende que a responsabilização de escolas, distritos e estados deve observar muitas outras coisas além de resultados de testes. Esses resultados são importantes, mas a motivação, a saúde, o bem-estar e o comportamento cívico dos alunos também são bem importantes, por isso outras formas de avaliar escolas e alunos precisam ser consideradas. Ao invés de reagir com medidas punitivas, Ravitch acredita que os governos deveriam trabalhar de forma construtiva para medir as condições e progressos de alunos e escolas. A avaliação da educação precisa ser redesenhada para que os sistemas de acompanhamento possam certificar que: as escolas estão oferecendo um currículo acadêmico rico e completo; os professores estão fazendo o melhor possível; e as escolas estão dando atenção adequada para as necessidades não acadêmicas dos alunos. Vários pesquisadores apontam para a preocupação crescente com a competitividade econômica e a necessidade de as escolas formarem o capital humano para o aumento da produtividade. Há também uma maior atenção para o valor de troca de credenciais e diplomas. Para
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Labaree, a história do sistema americano demonstra um crescimento estável da influência de um objetivo da educação: o da mobilidade social (2007). A ideia da educação como algo a ser consumido passou a dominar a estrutura do sistema americano e as discussões sobre políticas públicas. A visão predominante é a de que a educação é um bem que deve capacitar os indivíduos para uma vantagem social. Diversas pesquisas ilustram as formas em que as instituições educacionais americanas atuam de forma empreendedora para responder às demandas de seus consumidores. Essa sensibilidade ao mercado é consequência de inúmeros fatores, incluindo: fraca influência estatal e federal; controle radicalmente descentralizado; vulnerabilidade a influências locais da política e das famílias; dependência do financiamento per capita; necessidade de atração do apoio local para fins políticos; ausência de um currículo nacional; a tradição da flexibilidade para que os alunos possam escolher aulas, programas e instituições; acesso demasiadamente aberto à educação superior sem mecanismos padronizados e transparentes de seleção; um mercado extremamente competitivo de consumo da educação pós-secundária (LABAREE, 2007; BROWN, 1995; LABAREE, 1990; TROW, 1988; COLLINS, 1979). O resultado disso tudo é que a educação americana em todos os níveis está comprometida com estruturas e processos de mercado que enfatizam a escolha do consumidor, a competição, o currículo estratificado, a preservação da autonomia local e uma resposta rápida às demandas do consumidor (LABAREE, 2007 e 1995; HOGAN, 1992, 1990 e 1989; COHEN; NEUFELD, 1981). 4. REFORMAS RECENTES NA EDUCAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA Agora que as crianças estão na escola, que os gastos públicos em educação são significativos, e os ministérios e secretarias de educação são geridos, cada vez mais, por intelectuais e educadores, os problemas mudaram de patamar, e as dificuldades são muito maiores. É mais fácil construir um prédio escolar do que administrar uma escola; é mais fácil trazer uma criança para a escola do que ensiná-la a ler e escrever; é mais fácil contratar professores em dedicação exclusiva do que transformá-los em pesquisadores (SCHWARTZMAN, 2004).
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Apesar de municípios e estados desfrutarem de uma certa autonomia na gestão do ensino infantil, fundamental e médio, o sistema educacional brasileiro não é tão descentralizado quanto o americano. Medidas e ações do Ministério da Educação são geralmente bem influentes em todos os níveis educacionais. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), as principais ações relacionadas à reforma educacional foram: a reabilitação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) como agência de pesquisas estatísticas e avaliação; a reorganização das estatísticas da educação e implementação de sistemas de avaliação do ensino básico, médio e exames nacionais para os programas de graduação; criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef ) para reduzir desigualdades regionais e estabelecer um piso para gastos estaduais e municipais com o ensino fundamental; formulação de novas diretrizes curriculares para o ensino fundamental e médio; vários programas para auxiliar as escolas com recursos gerenciais e pedagógicos; medidas para a redução da repetência escolar no nível fundamental; criação do Bolsa Família, programa pelo qual as mães recebiam uma quantia em dinheiro para manter os filhos na escola; estímulo a parcerias público-privadas; e aumento de vagas na educação superior (SCHWARTZMAN, 2004; SOUZA, 2005). Já no governo Lula (até a publicação deste artigo), as principais ações relacionadas à reforma educacional foram: a ampliação do Bolsa Família; a criação do Programa Universidade para Todos (ProUni), com a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda em cursos de graduação e sequenciais de formação específica em instituições privadas de educação superior, oferecendo isenção de tributos àquelas que aderem ao programa; criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), calculado a partir dos dados de aprovação escolar e médias de desempenho nas avaliações do Inep; ampliação do Fundef com a criação do Fundeb, atendendo desde a creche até o ensino médio; programas de alfabetização; políticas de cotas para o acesso ao ensino superior; a criação da Universidade Aberta do Brasil (UAB), um sistema nacional de educação superior a distância com a participação de instituições públicas em parceria com estados e municípios, com o objetivo de oferecer formação inicial a professores em exercício na educação básica públi-
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ca que ainda não tenham graduação; a criação do piso salarial nacional para valorização do magistério e qualidade da educação, lei que beneficia professores da educação básica com o piso nacional de R$ 950; a criação do Plano de Ações Articuladas (PAR), um planejamento multidimensional da política de educação que todos os municípios brasileiros devem fazer para o período entre 2008 e 2011, devendo ser elaborado com a participação de gestores, professores e da comunidade local; o novo Enem e a reforma do ensino médio. Várias dessas medidas fazem parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que também inclui outras ações relativamente menores, como a publicação de técnicas e práticas educacionais que tragam bons resultados em sala de aula ou o programa de transporte escolar para alunos da zona rural (SCHWARTZMAN, 2004; MEC3). As ações dos dois governos foram recebidas positivamente por grupos da sociedade civil, pelo setor empresarial, organizações nacionais e transnacionais e por um grupo de pesquisadores. Simon Schwartzman, por exemplo, argumenta que as políticas têm priorizado a organização e transparência do sistema, a qualificação de professores e pesquisadores, a regulamentação do financiamento, a redução de diferenças regionais, a melhoria do desempenho das escolas e dos alunos, políticas de inclusão social e direcionadas a problemas institucionais e de conteúdos da educação (SCHWARTZMAN, 2004). Como resultado, há a ampliação do acesso à educação em todos os níveis, o aumento gradativo da aprovação e da frequência dos alunos e, em menor escala, a melhoria dos resultados acadêmicos medidos pelas avaliações oficiais e internacionais. Há, ao mesmo tempo, um número considerável de professores e pesquisadores da educação pública brasileira que criticam ardorosamente uma série de ações dos dois governos. Esses acadêmicos relacionam os discursos e políticas recentes ao neoliberalismo, ao crescimento do terceiro setor, à minimização e privatização do Estado, à interpenetração dos espaços públicos e privados, ao capitalismo e ao individualismo (CATANI, HEY e GILIOLI, 2006; LOMBARDI, 2005; PERONI, 2006; DUPAS, 2003; GENTILI, 1998). Com relação ao ProUni, por exemplo, 3
Portal do MEC. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/pde/. Acesso em: 18/6/2009.
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os pesquisadores Catani, Hey e Gilioli argumentam que o programa trabalha para um sistema de ensino privatizante, com uma falsa noção de democratização da universidade, legitimando a distinção dos alunos por camada social e a consequente manutenção da estratificação (2006). Para Gentili (1998), os diagnósticos e políticas da educação pública brasileira têm sido orientados por perspectivas privatistas: “A interpretação meritocrática do neoeconomicismo baseia-se na necessidade de destruir a lógica dos direitos que garantem a conquista da cidadania e a imposição de uma lógica mercantil segundo a qual os indivíduos realizam-se a si mesmos, enquanto proprietários, como consumidores racionais. É preciso esforçar-se, trabalhar e competir para ser um consumidor racional, responsável e empreendedor” (p.114). Como Labaree, esse grupo de acadêmicos parece se preocupar com a priorização da mobilidade social como propósito da educação pública no Brasil. 5. CONCLUSÃO: A ESCOLA NECESSÁRIA A escola protagonista é a escola necessária para que cada jovem possa desenvolver, em sua trajetória biográfica, as promessas que trouxe consigo ao vir a este mundo e, igualmente, a escola que o Brasil necessita e requer para responder pró-ativamente aos imensos desafios que a história nos coloca (GOMES DA COSTA, 2003).
Este artigo procurou iniciar uma discussão comparativa entre medidas recentes adotadas pelos governos dos Estados Unidos e do Brasil para a reforma dos sistemas de educação pública, apresentando também um resumo da discussão sobre os objetivos da escola e do impacto da globalização na educação. Há certamente algumas semelhanças entre as ações recentes dos dois países: a padronização curricular, a criação de sistemas de avaliação da educação e o estabelecimento de objetivos a serem atingidos por escolas e estados; a preocupação com o financiamento da educação superior e com o aumento de vagas; maior abertura para parcerias com organizações privadas em todos os níveis da educação; alguns estados brasileiros começam a discutir a meritocracia no pagamento dos professores, ação defendida pelo novo presidente dos Estados Unidos. Essas semelhanças suportam a hipótese de que as discussões e práticas educacionais estão convergindo, talvez como consequência da globalização.
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Também é evidente que existe uma lacuna no que tange aos outros objetivos da escola pública que não estão conectados ao trabalho, ao mercado ou à economia. Não é aparente, durante uma análise inicial dessas medidas, que os Estados Unidos ou o Brasil estejam preocupados com o que está sendo feito nas escolas para a formação de cidadãos, para a transmissão de valores e princípios, para a valorização da cultura ou do que é característico em cada país, ou para as necessidades não acadêmicas dos alunos, como disse Diane Ravitch. Avaliações nacionais e internacionais buscam medir estritamente a capacidade dos alunos de responder a questões relacionadas às disciplinas. Entretanto, estudos futuros, mais complexos e longos, são necessários para oferecer evidências claras que comprovem os argumentos acadêmicos que criticam essas ações, citando a globalização neoliberal que quer privatizar a educação pública no Brasil. Como esse artigo não resulta de uma pesquisa empírica, é possível apenas sugerir que pesquisadores realizem análises de livros didáticos, observem aulas em diversos cantos do país e entrevistem professores e gestores para averiguar sobre a possível mudança ideológica dentro de sala de aula e traçar um perfil completo sobre o assunto. Além disso, como explicado anteriormente, uma série de medidas para a reforma na educação do Brasil tiveram por objetivo a inclusão social e a diminuição da desigualdade social e educacional (Bolsa Escola, programas de alfabetização e o Fundeb são alguns exemplos). Os governos brasileiros também têm se preocupado com ações básicas e importantes para melhorias na formação dos professores, no transporte escolar e várias outras coisas que não podem ser relacionadas diretamente com o neoliberalismo ou a globalização, já que tentam solucionar problemas específicos do nosso país. Uma outra razão para otimismo com relação à reforma na educação pública brasileira é que se pode notar um movimento relativamente recente de pessoas que pensam e se preocupam com a educação e têm trazido novas questões para a mesa de discussão. Uma delas é o professor Antônio Carlos Gomes da Costa, que defende a visão de uma nova escola pública brasileira, construída a partir de três revoluções, de conteúdo, de método e de gestão: A revolução de conteúdo responderia por profundas mudanças no que se ensina e no que se aprende. A revolução de método reinventaria inteiramente o como aprender e ensinar. E, finalmente, a revolução
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de gestão subverteria o uso do espaço, do tempo, das relações entre as pessoas e do uso dos recursos físicos, técnicos e materiais disponíveis. (GOMES DA COSTA, 2003).
Para uma educação brasileira de fato inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, que possa desenvolver plenamente o educando e prepará-lo para o exercício da cidadania, o professor Antônio Carlos propõe uma educação para valores, que trabalhe as quatro dimensões do ser humano – o logos (razão), o pathos (sentimento), o eros (corporeidade) e o mythos (espiritualidade) – de forma equilibrada e harmônica. Essa nova escola também praticaria, no seu dia a dia, uma nova visão de homem, de mundo e de conhecimento: Uma visão de homem capaz de fazer do educando não um mero receptáculo, mas uma fonte de iniciativa, compromisso e liberdade. Uma visão de mundo que o impulsionasse a relacionar-se com a família, com a comunidade, com a cidade e, virtualmente, com o país e com o mundo. Em termos de conhecimento, teríamos uma escola em que todos estariam voltados a aprender o aprender (autodidatismo), ensinar o ensinar (didatismo) e conhecer o conhecer (construção de conhecimentos) (GOMES DA COSTA, 2003).
Essas novas ideias têm iniciado uma discussão mais ampla e complexa sobre a escola necessária no Brasil. O resultado dessa discussão pode ser uma proposta de educação com alma brasileira, que seja proativa em relação à nova realidade e não reativa em relação às novas questões a serem enfrentadas. Os estudos e comparações com as formas com que outros países lidam com problemas relacionados a questões educacionais e a observação de resultados de avaliações internacionais continuarão sendo importantes, mas mais importante será a apropriação de valores e especificidades tipicamente brasileiras nessa nova escola. Talvez quando a capoeira, o samba, a bossa nova, as novelas, a feijoada, o futebol, a criatividade e a solidariedade estiverem presentes em projetos educacionais de história, português, artes ou biologia e sejam utilizados para a aplicação de fórmulas físicas, químicas ou matemáticas, os resultados tangíveis e intangíveis da nossa educação pública sejam aqueles almejados pela LDB.
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INICIATIVAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE EM BUSCA DE ABORDAGENS AVALIATIVAS E DE EFETIVIDADE Regina Bodstein
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O artigo apresenta o debate atual sobre o perfil dos programas e práticas de promoção da saúde. Mostra como a consolidação dessa área depende de conhecimentos e aprendizados adquiridos na avaliação de suas iniciativas e práticas. Trata de analisar como as práticas de promoção da saúde são inspiradas em uma visão ampliada dos determinantes sociais do processo saúde e doença, e extrapolam a identificação de fatores de risco e os modelos biomédicos. A especificidade da promoção da saúde aponta para desenhos e abordagens avaliativas inovadoras, já que mecanismos de participação, empoderamento e práticas educativas reflexivas são cruciais. Avaliar programas de promoção da saúde, e projeto sociais com essas características, envolve a construção de modelos teóricos direcionados a explicar mudanças complexas para o enfrentamento das desigualdades sociais e em saúde. Novas abordagens avaliativas no campo da promoção da saúde ajudam a entender os programas como sistemas complexos vis-à-vis contextos socioculturais e ambientais. A avaliação da efetividade, a partir do ponto de vista aqui defendido, coloca em questão a relação entre sujeitos e práticas e/ou entre estratégias e resultados, enfatizando a importância de se desvendar modelos teóricos que direta ou indiretamente orientam as práticas e explicam os resultados. Palavras-chave: promoção da saúde; saúde pública; avaliação em promoção da saúde; pesquisa social em saúde
This article discusses the nature of the initiatives in health promotion vis-à-vis an evaluative approach. The approach is based on health promotion principles and an understanding of the multi-strategic characteristics of health promotion practices to addresses social determinants. Those practices present an ongoing challenge for traditional evaluation frameworks when it redefines its action as empowerment, community participation, local development, health education and intersectorial activities for the purpose of reducing inequalities in social contexts. This challenge also applies to the discussion on effectiveness of health promotion practices. What is on staking is the knowledge about how interventions based on principles of health promotion, works, generates changes and outcomes. This approach brings theory and social methodologies in the center of the debate on evidence and effectiveness. Keywords: health promotion; public health; health promotion evaluation; social health inquiry
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INTRODUÇÃO Questões de saúde e questões sociais são de tal forma inseparáveis que acabam por definir o cerne da reflexão no chamado campo da saúde pública. Processos sociais (econômicos, culturais, políticos, ecológicos e acesso a serviços públicos e de saúde) explicam em grande parte a qualidade de vida de indivíduos e coletividades, bem como os fenômenos relacionados à saúde e à organização da atenção à saúde. Mesmo diante de um sistema social que favorece a medicalização de todos os ciclos e situações de vida, fenômenos da saúde e da doença podem e devem ser recontextualizados, isto é, entendidos como determinados social e culturalmente, exigindo estratégias de enfrentamento enraizadas nesses contextos sociais. Para a compreensão desses processos, as ciências sociais e a pesquisa social contribuem enormemente. A promoção da saúde é frequentemente referida como um campo emergente e multidisciplinar que engloba um conjunto abrangente de pesquisas, programas e intervenções, informados por um quadro conceitual e princípios ideológicos (MCQUEEN, 2001), colocando o nível comunitário como centro para a pesquisa em promoção da saúde (GREEN & KREUTER, 1996). Este artigo visa, portanto, apresentar o que se considera hoje uma importante contribuição da promoção da saúde para o debate da saúde pública (e ou coletiva), problematizando suas práticas e suas propostas avaliativas, bem como a questão da efetividade das suas iniciativas. Trata de mostrar a importância da avaliação da promoção da saúde como estratégia central para sua consolidação e como campo de conhecimento e aprendizados institucionais capazes de influenciar o processo decisório, favorecendo uma política baseada em evidências. A perspectiva construtivista nas ciências sociais é importante para a pesquisa em saúde, e, como veremos, especificamente para o entendimento da teoria e das práticas em promoção da saúde. Exige que o foco da análise seja colocado nos sujeitos sociais e que se leve em conta o conhecimento que os agentes possuem da sua própria experiência e dos processos em que estão envolvidos. Esse conhecimento é crucial, já que os modos como os agentes compreendem as ações fazem parte e direcionam a ação. A pesquisa social e a avaliação em
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promoção da saúde tratam frequentemente de capturar significados e sentidos visados pelos agentes que só podem ser explicados através de um contexto relacional e da dinâmica social. O DEBATE DA PROMOÇÃO DA SAÚDE Inspirada no Relatório Lalonde de 1974, a carta de Ottawa, fruto da I Conferência Internacional de Promoção da Saúde e marco na história desta área, traz a definição clássica da promoção da saúde como “o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação e controle desse processo” (OMS, 1986:13). Define como condições fundamentais e determinantes para a saúde – fatores sociais e econômicos, incluindo renda, educação, alimentação, saneamento, segurança e serviços de saúde. Saúde é conceituada, portanto, de forma ampliada e com vistas a combater as iniquidades sociais e as desigualdades em saúde, revitalizando a agenda da saúde no plano internacional e colocando a saúde de indivíduos e comunidades como um bem público universal. Cinco estratégias-chave para a promoção da saúde decorrem dessa visão: • Políticas públicas orientadas pelos princípios do direito à saúde e à qualidade de vida (tendo por base a intersetorialidade); • Ambientes saudáveis (sustentabilidade e preservação do meio ambiente); • Ações comunitárias (empoderamento e participação); • Atuação sobre estilos de vida (considerando os componentes estruturais desses comportamentos ou hábitos); • Reorientação dos serviços de saúde (ampliando e qualificando programas e práticas tradicionais no campo da saúde pública e da educação em saúde). A partir dessas estratégias, alguns princípios básicos consolidam o campo da promoção da saúde: • Desigualdades sociais são determinantes para a saúde e a qualidade de vida de indivíduos e comunidades;
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• Desigualdades são histórica e socialmente construídas, sendo imperativo o reconhecimento do componente socioestrutural das desigualdades e iniquidades; • Práticas e ações em promoção da saúde devem ser multidisciplinares, multiestratégicas e multissetoriais, tendo por base a mobilização e a participação de atores, setores e comunidades. Esse modelo é visto como botton up, já que considera indivíduos, grupos e comunidades como sujeitos ativos e responsáveis pelo sucesso das ações; • As mudanças pretendidas para enfrentar as desigualdades em saúde extrapolam o âmbito dos sistemas e serviços de saúde; • É crucial que esse modelo gere aprendizado e conhecimento científico e que seja útil ao processo decisório em políticas públicas e saúde (evidence based policy). A promoção da saúde recupera a saúde como uma prática socialmente construída e pressupõe que seja compreendida simultaneamente dentro de um enfoque institucional e estratégico, sempre relacionada a contextos reflexivos em que estão inseridos os agentes sociais. Violência, gravidez na adolescência, alcoolismo, tabagismo, poluição e meio ambiente, transporte público e trânsito, condições de moradia, hábitos alimentares, desnutrição, fome, acesso aos serviços e bens (ao conhecimento, à informação e à educação), por definição, são questões próprias do campo da saúde. Não podem ser compreendidas fora do contexto social, isto é, de uma cadeia de interdependência entre agentes e instituições, configurando o que se pode chamar de novos espaços sociossanitários (MCKIANLAY et al., 2003). Propõe em diversos fóruns internacionais um conjunto de princípios teóricos e práticos, tendo na equidade e no empoderamento o ponto principal para orientar o desenho de programas voltados para os determinantes sociais da saúde e para mudanças sociais abrangentes (ROOTMAN et al., 2001). São propostas que compreendem processos e mecanismos de engajamento e participação ativa dos sujeitos envolvidos nas suas condições de vida e saúde. A partir do enfoque dos determinantes sociais, as ações de promoção da saúde pressupõem um olhar crítico sobre as práticas tradicionais de educação para a saúde e de atenção à saúde que têm como
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fundamento a prevenção de fatores de risco para as doenças. Nesse caso, é bom lembrar que a prevenção de fatores de risco voltados às doenças cardiovasculares tem inspirado diversas intervenções e investimentos de base comunitária voltados para a educação em saúde, mas diversos estudos e avaliações (Canadian Heart Health Initiative; MCQUEEN & JONES, 2007) mostram resultados pouco expressivos. No entanto, sugerem que quanto maiores a participação e o engajamento das lideranças comunitárias e quanto maior a compreensão de suas demandas, tanto maior o sucesso das propostas. O ponto nevrálgico que se tem discutido é que esse engajamento é muito baixo quando o foco das mudanças recai sobre comportamentos de risco e vem acompanhado de estratégias verticais de transmissão de conhecimento (top down), junto com ações normativas e impositivas, que ignoram o contexto de vida, bem como as necessidades e prioridades dos sujeitos. Crucial é entender a sutil diferença entre estratégias e iniciativas que caracterizam atores e comunidades como a “população-alvo” de outras ações que partem do princípio de que o importante é a relação entre sujeitos (ou agentes) e que essas relações dependem dos contextos em que as iniciativas e estratégias de saúde se inserem. Mais do que isso, está em jogo uma concepção das relações sociais que tem como pressuposto a visão de que aquilo que os agentes compreendem de sua própria experiência condiciona suas escolhas, seus hábitos e comportamentos. Assim, o sucesso das iniciativas sociais e de saúde depende de estratégias participativas e que enfatizam a mobilização e engajamento de indivíduos e comunidades. Essas iniciativas não podem tratar sujeitos como objetos, isto é, como “população-alvo”. Tomadores de decisão, técnicos e profissionais não podem assim ser vistos como sujeitos que monopolizam e detêm conhecimento e informação, que repassados para a “população-alvo” provocariam mudanças de comportamento e de estilo de vida. Tal postura acaba por determinar práticas e ações que apesar de bem-intencionadas estão fadadas ao fracasso. O sucesso ou o fracasso das iniciativas está profundamente ligado ao engajamento, à adesão e à participação ativa de indivíduos e comunidades. Estratégias preventivas frequentemente ignoram a necessidade de mobilizar e motivar indivíduos e comunidades antes de iniciar
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qualquer ação. Tais estratégias, tendo como ponto de partida um conhecimento técnico acumulado voltado para a identificação de fatores de risco, trabalham a partir de uma definição da saúde baseada em um viés biomédico específico. A promoção da saúde inova ao propor uma nova definição da saúde, como vimos, e a superação da perspectiva de risco, focalizando mudanças sociais abrangentes e sustentáveis dentro de contextos socialmente definidos (ROOTMAN et al., 2001). Portanto, as práticas de promoção da saúde partem de uma concepção ampliada da saúde, propondo estratégias desenhadas de forma abrangente (multidisciplinar e multissetorial) e participativa, desde o diagnóstico das necessidades e problemas junto com a população afetada até o planejamento das atividades e avaliação dos resultados. A população, por sua vez, é vista como sujeito ativo, agente social e corresponsável pelo sucesso das mudanças e ações pretendidas. Volta-se, portanto, para um modelo que, ultrapassando os fatores de risco atribuídos a comportamentos individuais, inclui em suas práticas preocupações em torno dos determinantes sociais e dos padrões estruturais de comportamentos que definem estilos de vida e hábitos relacionados à saúde. Esses padrões são indissociáveis dos contextos e espaços em que as relações sociais ocorrem, sustentando um modelo de intervenção em que a problematização e a discussão da saúde vêm das demandas e necessidades identificadas junto com a população. A capacitação e o empoderamento comunitário têm por base o reconhecimento da reflexividade dos sujeitos e das ações. A população na concepção das ações de promoção da saúde não é objeto passível, mas sujeito ativo de todo o processo de mudança. Assim, a promoção da saúde é desenvolvida através de um conjunto de iniciativas voltadas não só para problemas de prevenção da doença e da identificação de indivíduos e grupos sujeitos aos fatores de riscos (MACKINLEY, 1996; LOCHNER et al., 1999; KAWASHI, 2002), mas através de estratégias multissetoriais e participativas, em que a capacitação comunitária e o empoderamento desempenham um papelchave. Experiências bem-sucedidas em promoção da saúde são frutos da participação ativa de diversos setores da sociedade, inclusive das organizações não governamentais, serviços de saúde, escolas, entre outros. Decorrem de uma prática reflexiva em torno da construção compartilhada de novos saberes e práticas. Assim, resultados e efeitos
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de iniciativas em promoção e educação em saúde – de ações participativas e/ou intersetoriais e/ou interdisciplinares – estão em grande parte atrelados a estratégias e processos de diálogo e de colaboração que, respeitando a autonomia dos sujeitos (da chamada populaçãoalvo), reconheçam padrões sociais e culturais diversos que definem e moldam hábitos e práticas (BOURDIEU, 2005). APRENDIZADOS E CONHECIMENTOS: OS DESAFIOS DA AVALIAÇÃO Como discutido, a natureza complexa das intervenções em promoção da saúde tem implicado revisões críticas dos modelos avaliativos tradicionais e a ampliação das abordagens (ROOTMAN, et al., 2001; POTVIN, 2001; BARNES et al., 2003). O ponto de partida vem do fato de que as práticas em promoção da saúde exigem novos desenhos avaliativos que possam compreender a natureza das intervenções e como elas funcionam, desenvolvendo estratégias bem-sucedidas de problematização das condições de vida e de saúde e de engajamento de sujeitos, grupos e comunidades. Tendências recentes em avaliação vêm abordando as intervenções a partir de esquemas analíticos mais abrangentes e da compreensão da natureza sociopolítica dos programas. Um bom ponto de partida é a identificação dos elementos estruturantes que condicionam e sustentam as intervenções, incluindo o contexto e os cenários, a população, relações e interesses envolvidos, mecanismos e atividades desencadeadas vis-à-vis conflitos e impasses gerados. De acordo com Pawson & Tilley (1997), precisamos de uma abordagem metodológica capaz de formular as questões pertinentes para a avaliação e que possa compreender como um programa atua para promover mudanças. A especificidade dos contextos que condicionam e explicam em grande parte o processo de implementação dos programas é elementochave para as abordagens avaliativas. A avaliação trata de analisar os programas a partir da compreensão dos principais atores envolvidos nas suas diversas fases (processo decisório, planejamento, implantação e implementação), seus interesses e racionalidades vis-à-vis a um contexto altamente reflexivo em que os programas e as avaliações acontecem. De modo geral, a avaliação serve não só como accountability em relação aos recursos utilizados, mas, sobretudo, para influir no processo
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decisório aperfeiçoando o desenho dos programas, pressupondo uma gestão baseada em resultados. A avaliação é vista hoje em dia, partindo do paradigma proposto por Pawson & Tilley (1997), como uma maneira de aprender sobre o que fazemos em torno dos programas sociais e, portanto, como metodologia capaz de gerar conhecimento útil. Dessa forma, deve ser prevista desde a fase de planejamento das propostas, reforçando entre todos os envolvidos uma cultura de avaliação. Estudos apontam para a importância de uma abordagem que reduza a distância entre quem desenha a avaliação e quem produz os resultados, sugerindo, como melhores opções, o planejamento participativo e a colaboração intersetorial no desenho da avaliação, preferencialmente próximo de quem irá fornecer informações e dados, em uma ética coletiva compartilhada. A avaliação é atravessada pelo mesmo debate que ocorre no campo da pesquisa social, pautado, grosso modo, a partir de duas grandes e distintas abordagens metodológicas. Uma mais consolidada e com lastro na literatura internacional trata de reforçar no processo avaliativo os princípios e o rigor metodológico próprio da pesquisa científica, rigor este associado à neutralidade e ao caráter objetivo da investigação. Nesta vertente, se exige do pesquisador, portanto, não só o domínio dos métodos e das técnicas de investigação, mas também uma posição de neutralidade e distanciamento diante do objeto a ser avaliado. Outra vertente assume o caráter político e social do contexto em que a avaliação e o avaliador estão envolvidos e trata de mostrar que é possível e necessário uma proximidade do avaliador e o diálogo permanente com os atores e principais interessados nos programas e intervenções. Mesmo assim, para as duas vertentes, há o reconhecimento da necessidade de validação do conhecimento, e, portanto, da demonstração dos argumentos, da confrontação de posições e de teses, enfim, os critérios de falseabilidade e de refutação de hipóteses. Isto é, a objetividade continua sendo critério definidor da pesquisa científica e, portanto, das abordagens avaliativas, mesmo considerando o não distanciamento do avaliador dos valores, representações e subjetividades. O avaliador é acima de tudo aquele que problematiza e formula as questões. Parte do entendimento do significado do programa para os diversos atores e propõe uma metodologia científica, isto é, um modelo lógico que delineia
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os pressupostos sobre como as ações podem trazer benefícios e levar aos resultados pretendidos. Desse ponto de vista, a avaliação é considerada como um processo em que se concebe um modelo inteligível sobre a intervenção, modelo este baseado nos elementos fundamentais de qualquer programa: finalidade e princípios, base conceitual, estrutura, atividade, evolução (desenvolvimento) e contexto (POTVIN, 2009). Como sistemas sociais complexos, os programas não são transparentes e de fácil compreensão. Como sistemas abertos, seus desdobramentos, efeitos e impactos são em grande parte impremeditados. A tarefa básica do avaliador é em grande parte modelar as intervenções, tornando-as compreensíveis. Enfim, trata de acompanhar os desdobramentos e a evolução do programa em sua reflexividade, ou seja, na sua interação e resposta diante da diversidade de atores, interesses e dos contextos em que se desenvolvem (POTVIN, 2009). Programas e intervenções em promoção da saúde, vistos como sistemas de ação social, colocam para a avaliação como tarefa de teorizar ou modelar o programa. Isto é, de criar um “construto” através do qual o avaliador busca formular hipóteses e teorias mais acuradas sobre como o programa funciona. Está em jogo um trabalho de verificação, de levantamento de hipóteses, de coleta de dados, enfim, de pesquisa social. Programas e iniciativas são vistos hoje em dia no campo da promoção da saúde a partir de uma dinâmica relacional, ou seja, das conexões que se estabelece entre todos os envolvidos. Distante, portanto, de uma abordagem ou de um modelo chamado de “quase experimental”, em que os programas são representados como um somatório de partes e de componentes, em que a questão principal é verificar o efeito do tratamento a partir da definição do grupo controle. Crucial é perceber que os programas operam a partir das conexões que vão sendo criadas entre os envolvidos, ou seja, das “redes sociotécnicas”, redes estas que vão sendo formadas no desenvolvimento das ações e atividades do programa. A constituição e a operação em rede são mais importantes para o sucesso do programa do que seus componentes estruturais (POTVIN, 2009). Um programa é considerado como efetivamente implantado quando, sob a perspectiva aqui discutida, ele permite a conexão de atores em diversas posições e com diversos graus de conhecimento, incluindo os possíveis interes-
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sados. A implementação do programa implica a expansão da rede social e técnica, em uma articulação virtuosa entre conhecimento técnico e popular, gestão/planejamento e participação social, presença de setores governamentais e não governamentais. A reflexividade, propriedade inerente aos sistemas sociais (GIDDENS, 1989), fornece a base de funcionamento dos programas através da interação de agentes estratégicos. Como vimos, práticas de mobilização, educativas, participativas e reflexivas no plano pessoal, organizacional e/ou profissional e no plano das políticas públicas estão no cerne das propostas que podem ser conceituadas como de promoção da saúde. Partem de uma teoria social que considera os atores como agentes, com capacidade de entender o que fazem enquanto o fazem. Essa capacidade reflexiva inerente aos agentes sociais permite dar relevância ao conhecimento que eles têm do seu próprio contexto, bem como da ação necessária para mudá-lo. Tudo isso constitui parte da ação e das influências que atuam para a mudança (GIDDENS, 1989: XXIII). As iniciativas participativas e de base comunitária, tais como propostas educativas, intervenções para a melhoria da saúde e da qualidade de vida, de mudança de comportamentos e hábitos, constituem modelos complexos, já que dependentes da reflexividade dos agentes. O funcionamento das redes sociais explica em grande parte o sucesso dos programas que articulam simultaneamente vários atores e estratégias diversas, tendo por base o diálogo, a colaboração e a mobilização. A intersetorialidade aparece como pedra de toque das propostas, já que a integração de atividades entre diversos setores institucionais e não institucionais é condição de implantação e desenvolvimento das ações. A convergência entre as propostas, a interdisciplinaridade e a intersetorialidade das ações, a colaboração e o comprometimento da população são elementos-chave (POTVIN et al., 2001; ROOTMAN et al., 2001). Nessa perspectiva, políticas e programas de promoção da saúde trazem uma preocupação com práticas que se desenvolvem em espaços socialmente definidos, em que demandas econômicas, sociais, culturais, ambientais e políticas emergem e são vocalizadas. Iniciativas mais inovadoras e ousadas estão preocupadas com as desigualdades em saúde que se manifestam em situações de vulnerabilidade, pobreza e/ ou exclusão social. Porém, tais iniciativas são bem-sucedidas na me-
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dida em que compreendam o contexto como estruturalmente dado, isto é, dentro de um marco institucional e não institucional complexo. Mesmo assim, dentro de políticas e programas inovadores, a população é sempre compreendida como sujeito ativo e corresponsável pelas estratégias e mudanças propostas. As características das práticas de promoção da saúde pressupõem, assim, o uso de abordagem construtivista, já que a reflexividade e a compreensão de que lidamos com sujeitos de conhecimento é crucial. Esse tem sido um ponto importante na inovação das práticas de educação em saúde, e que se consolidam no debate da promoção da saúde. EFETIVIDADE DAS PRÁTICAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE Como campo de avaliação, a promoção da saúde é relativamente recente (anos 80). Até então o modelo dominante na área da saúde era o chamado quase-experimental, em que o avaliador delimitava uma população exposta e não exposta ao programa e seu “tratamento”. A questão-chave, portanto, era estabelecer uma relação causal entre o programa (a intervenção) e os efeitos (POTVIN & MCQUEEN, 2008). Importante para o modelo era o controle do avaliador sobre os parâmetros da intervenção. É possível perceber que é eticamente questionável excluir um grupo populacional dos benefícios (grupo controle) de uma política ou proposta de melhoria das condições de vida e saúde. As intervenções e os modelos avaliativos, portanto, precisam ser construídos e reconstruídos de forma realista e não mais vistos como pacotes quase fechados e controlados, evitando o que ameaça a validade interna e externa das propostas, a integração de atividades, isto é, as influências contextuais. Importa perceber a discordância quanto à definição do método científico, e, portanto, da base metodológica da avaliação, que preconiza a independência em relação a qualquer situação ou contexto de ação, de tal forma que o mérito do conhecimento resultante é o fato de poder ser aplicado a qualquer contexto. O modelo de avaliação em discussão no campo da promoção da saúde reivindica que são o conhecimento e a teoria construída das experiências práticas passíveis de generalização, e nunca o experimento ou a intervenção por si só.
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Nos anos 90, as avaliações de estratégias preventivas já sinalizavam para os limites explicativos do modelo quase-experimental e novas abordagens avaliativas baseadas em estudos observacionais e narrativas ganham destaque. A compreensão da natureza social e política e da dependência dos programas em relação ao contexto são enfatizadas, introduzindo novas questões que escapavam do modelo quaseexperimental, mas preservando os critérios de objetividade e validade dos achados e do conhecimento produzido. Desde então os modelos avaliativos vêm se adequando para explicar os programas como sistemas abertos, em estreita vinculação (responsiveness) com o contexto no qual estão inseridos. Tudo isso evidentemente interfere e está presente na cadeia lógica explicativa que liga a intervenção a seus efeitos (ROOTMAN et al., 2001, POTVIN, 2009). A complexidade das intervenções em promoção e de educação em saúde tem implicado revisões e a ampliação das abordagens e dos modelos avaliativos tradicionais (ROOTMAN, 2001; POTVIN, 2001; BARNES et al., 2003), desafiando a busca de evidências e de efetividade. Apesar da complexidade do processo e do ambiente político que envolve programas sociais (especialmente aqueles voltados para o enfrentamento das desigualdades e iniquidades em saúde), como pontuam McQueen e Jones, o desafio é ainda explicar “como e por que as ações de promoção da saúde são efetivas”? Ou ainda “como melhorar a qualidade e efetividade da promoção da saúde”? (MCQUEEN e JONES, 2007: xi-xii). O que implica, segundo McQueen (2007), localizar os nexos entre evidência e efetividade, e, portanto, identificar mecanismos que operam e funcionam em determinados contextos e respondem pelas mudanças e efeitos observados (PAWSON, 1987). Portanto, avaliar a efetividade das propostas de promoção da saúde envolve necessariamente analisar, a partir dos princípios e concepções ampliadas de saúde, as mudanças provocadas pelos programas. Trata-se de analisar o porquê e como as intervenções “funcionam” e provocam mudanças e efeitos que podem beneficiar a curto, médio ou longo prazo a saúde e a qualidade de vida das pessoas envolvidas. A demanda crescente por efetividade das propostas e programas de promoção da saúde por parte dos gestores, avaliadores e profissionais envolvidos traz, portanto, o desafio de sistematizar teorias, mecanismos e evidências que sustentam práticas e programas inovadores
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neste campo. A avaliação da efetividade, a partir do ponto de vista aqui defendido, coloca em questão a relação entre sujeitos e práticas e/ou entre concepção e resultados, enfatizando a importância de se desvendar teorias que direta ou indiretamente orientam as práticas e explicam os resultados. Mecanismos cruciais para mudanças sociais efetivas, como vimos, implicam, sobretudo, o envolvimento, a mobilização, a participação e o empoderamento de atores e sujeitos. Desvendar resultados dos mecanismos de adesão e mobilização de comunidades, grupos e indivíduos na discussão sobre a implantação dos programas de saúde e da melhoria da qualidade de vida contribui enormemente para a compreensão da efetividade das propostas (BODSTEIN, 2007; 2008). Abordagens avaliativas no campo da promoção da saúde são cruciais para promover o diálogo e induzir o aprendizado a partir das experiências. Refletindo criticamente sobre as intervenções, ajudam a qualificar as ações e atividades, estimulando o debate conceitual e metodológico sobre a efetividade das práticas. São vistas como fundamentais para melhorar o desenho das estratégias, na medida em que produzem conhecimento sobre a relevância dos objetivos, a coerência entre as atividades programadas e a relação entre os objetivos e os resultados alcançados (ROOTMAN et al., 2001; POTVIN, 2001) (grifo nosso). A natureza dialógica e reflexiva das estratégias e iniciativas de promoção da saúde e a sistematização ou descrição realista da experiência representam um ponto de partida valioso para a avaliação. Como pesquisa social aplicada, a avaliação procura entender como o programa funciona e, portanto, está preocupada em realçar o funcionamento da rede sociotécnica criada, rede que articula interesses diversos e conflitantes. Não obstante, sem uma definição clara e coerente do programa e de sua rede, o avaliador não sabe a que exatamente atribuir os resultados observados, cabendo a ele a tarefa de descobrir a realidade do programa e não aquilo que aparece oficialmente descrito e/ou acordado entre os tomadores de decisão. Em iniciativas de base comunitária e intersetoriais voltadas para objetivos abrangentes, a abordagem avaliativa deve acompanhar o processo de implantação do programa, o que pressupõe analisar suas estratégias de mobilização de atores. Na medida em que amplia o diálogo e problematiza os objetivos vis-à-vis estratégias e atividades,
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a abordagem avaliativa contribui para o processo decisório e para a sustentabilidade das propostas. Preocupadas com a melhoria da qualidade de vida e, portanto, frequentemente voltadas para as questões estruturais e para os chamados determinantes sociais da saúde, as iniciativas operam em contextos de profunda desigualdade social e em cenários de extrema pobreza e vulnerabilidade. De tal forma que as abordagens avaliativas tentam capturar a relação do programa com os contextos sociais e políticos em que as intervenções acontecem e se desenvolvem e as estratégias participativas e de empoderamento adquirem consistência. Uma perspectiva avaliativa inovadora voltada para a questão das evidências das intervenções sociais vem sendo discutida a partir da contribuição de Pawson e da chamada síntese realista (PAWSON e TILLEY, 1997) e das revisões sistemáticas. Essa perspectiva parece bastante promissora para discutir efetividade e evidências no campo da promoção da saúde (CARVALHO et al., 2004), na medida em que procura identificar mecanismos e fatores atuantes nas intervenções, isto é, identificar e analisar os elementos invariantes e estruturantes de qualquer proposta de intervenção. São esses elementos e mecanismos que, dentro de contextos bem definidos, explicam em última instância as mudanças e efeitos observados das intervenções. Práticas educativas, participativas e reflexivas no plano pessoal, organizacional e/ou profissional e no plano das políticas públicas constituem o cerne das propostas de promoção da saúde e é sobre elas que os avaliadores miram ao buscarem impactos e efeitos observados nos programas. Uma concepção importante a respeito da mobilização e engajamento de atores e comunidades vem da contribuição de Paulo Freire (1987; 1999) a respeito das práticas educativas. O autor enfatiza que o mecanismo crucial para o engajamento e a formação de uma consciência crítica ocorre quando os conhecimentos e os saberes construídos através da experiência dos indivíduos são valorizados e incluídos como parte constitutiva e fundamental do processo educativo. Assim, Freire, tal como Giddens, toma como ponto de partida teórico a concepção dos agentes sociais como portadores de saberes, sujeitos ativos dos processos de mudança e de melhoria na qualidade de vida. Um dos mais importantes marcadores de sucesso das intervenções em promoção da saúde vem, portanto, do sucesso e da sustentabi-
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lidade na formação das redes sociotécnicas e do engajamento e da participação qualificada da população beneficiária, entendida como sujeito ativo e crítico dos programas sociais e de promoção da saúde em particular. CONSIDERAÇÕES FINAIS A promoção da saúde inspira, hoje em dia, políticas, ações e compromissos em escala local, nacional e global, voltados para mudanças abrangentes e complexas sobre a qualidade de vida de grupos e comunidades e, portanto, preocupados com os chamados “determinantes sociais em saúde” (WHO). Consideram a saúde como um bem e recurso público fundamental e direito humano inalienável, pautando critérios para as boas práticas governamentais e empresariais, colocando no centro do debate atual o enfrentamento das iniquidades em saúde, entendidas como diferenças que são não só desnecessárias e evitáveis, mas, sobretudo, injustas. Trata-se de uma visão focada nos determinantes da saúde e da qualidade de vida de indivíduos e populações, que reconhece a importância dos processos sociais, comportamentais, econômicos, políticos e culturais sobre as melhorias no processo saúde e doença. De forma coerente, as estratégias da promoção da saúde incluem uma reorientação das políticas e intervenções públicas, visando promover e proteger a saúde. Configuram propostas abrangentes que ultrapassam o âmbito das políticas de saúde e do sistema de saúde. Enquanto campo aplicado de conhecimentos, a promoção da saúde compreende um conjunto diversificado de práticas e intervenções com características específicas, com ênfase na participação e/ou empoderamento e na intersetorialidade (CARVALHO et al., 2004). As políticas e programas de promoção em saúde envolvem para sua compreensão e avaliação abordagens metodológicas construtivistas, já que sua prática e seus resultados giram em torno da sinergia e da cooperação entre setores, instituições e sujeitos ativos e reflexivos. Em intervenções baseadas em princípios da promoção da saúde, sínteses narrativas ou análises do processo de implementação formam um conjunto variado de observações, conjunto este que sustenta uma cadeia dedutiva –, tornando estes procedimentos metodológicos válidos. A importância
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de gerar conhecimento sobre programas intersetoriais e sobre processos e práticas inovadoras é uma demanda crescente de tomadores de decisão, gestores, profissionais e demais setores. As propostas avaliativas precisam então captar as especificidades das práticas promotoras de saúde e de melhoria da qualidade de vida, o que pressupõe a inclusão das questões conceituais que fundamentam estas práticas vis-à-vis à compreensão dos dados, à interpretação das evidências e às recomendações baseadas nestas evidências. A promoção da saúde como campo de conhecimentos e práticas necessita urgentemente de ampliar o debate sobre a evidência da efetividade de suas práticas e aumentar o número das intervenções avaliadas, viabilizando uma base sólida de comparação e de conhecimento.
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NÚMEROS ANTERIORES EDIÇÃO 6 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E AS CONDICIONALIDADES DE SAÚDE EM NÍVEL MUNICIPAL – Um programa populista ou estrutural? Juliana Estrella Leandro Molhano Ribeiro HUMOR NA LITERATURA BRASILEIRA – No início do século XX Leandro Konder A CIDADE-OBRA OU ‘OS OLHOS DA CIDADE SÃO DELES’ Luizan Pinheiro POBREZA E SAÚDE INFANTIL – Uma análise a partir dos dados da POF e da Pnad Maurício Reis Anna Crespo A SOCIEDADE INDUSTRIAL E SUAS VULNERABILIDADES Sergio Elias Couri
EDIÇÃO 7 CUIDADOS DE LONGA DURAÇÃO PARA A POPULAÇÃO IDOSA – Família ou instituição de longa permanência? Ana Amélia Camarano FATORES QUE INFLUENCIAM O AMBIENTE DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE NO BRASIL – Modelo atual e novas perspectivas Flávia Poppe
SIMULACRO, SHOPPING CENTER E EDUCAÇÃO SUPERIOR José Rodrigues POLÍTICAS PASSIVAS DE EMPREGO – Características, despesas, focalização e impacto sobre a pobreza Luís Henrique Paiva PREVIDÊNCIA NO BRASIL – Debates e desafios Paulo Tafner EDIÇÃO 8 FATORES QUE INFLUENCIAM O AMBIENTE DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE NO BRASIL – Modelo atual e novas perspectivas Flávia Poppe AÇÃO AFIRMATIVA: POLÍTICA PÚBLICA E OPINIÃO João Feres Júnior A ARQUITETURA NA ‘ESTÉTICA’ DE LUKÁCS Juarez Duayer PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR PARA O SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL Marcelo Abi-Ramia Caetano TRANSFERÊNCIAS DE RENDA FOCALIZADAS NOS POBRES – O BPC versus o Bolsa Família Sonia Rocha EDIÇÃO 9 INTELECTUAIS E ESTRUTURA SOCIAL: UMA PROPOSTA TEÓRICA Daniel de Pinho Barreiros CULTURAS URBANAS E EDUCAÇÃO – Experimentações da cultura na educação Ecio Salles
RELAÇÕES INTERNACIONAIS – Uma introdução ao seu estudo Franklin Trein A EVOLUÇÃO FAZ SENTIDO. INCLUSIVE NA ATIVIDADE FÍSICA? Hugo Rodolfo Lovisolo ‘DESIGNERS’, SUJEITOS PROJETIVOS OU PROGRAMADOS? Marco Antonio Esquef Maciel
EDIÇÃO 10 CIÊNCIA, SAÚDE E CINEMA: TERRITÓRIOS COMUNS Alexandre Palma CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO SERINGUEIRO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 – Elementos para pensar políticas públicas sustentáveis Cláudia Conceição Cunha IMAGENS OBSESSIVAS EM AUGUSTO DOS ANJOS Ivan Cavalcanti Proença A LONGEVIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O MUNDO DO TRABALHO Lucia França ESCOLAS DE SAMBA: CONFORMAÇÃO E RESISTÊNCIA Máslova Teixeira Valença
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Esta revista foi composta nas fontes Zapf Humanist 601 BT, em corpo 10/9/8,5, e ITC Officina Sans, em corpo 26/16/9/8, e impressa em papel off-set 90g/m2, na Grรกfica DuoPrint.