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Sesc | Serviço Social do Comércio PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL
Antonio Oliveira Santos DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL
Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO EDITORIAL Gerência de Estudos e Pesquisas Gerente
Mauro Lopez Rego CONSELHO EDITORIAL
Álvaro de Melo Salmito Eduardo R. Gomes Mauricio Blanco Nivaldo da Costa Pereira SECRETÁRIO EXECUTIVO
Mauro Lopez Rego ASSESSORIA EDITORIAL
Andréa Reza EDIÇÃO Assessoria de Divulgação e Promoção Gerente
Christiane Caetano PROJETO GRÁFICO
Ana Cristina Pereira (Hannah23) SUPERVISÃO EDITORIAL
Jane Muniz PREPARAÇÃO E PRODUÇÃO EDITORIAL
Duas Águas| Ieda Magri REVISÃO
Elaine Bayma REVISÃO DO INGLÊS
Karina Gercke DIAGRAMAÇÃO
Livros
Livros | Susan Johnson
FOTO DA CAPA
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As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br. Caso tenha interesse em receber a revista Sinais Sociais, entre em contato conosco: Assessoria de Divulgação e Promoção Departamento Nacional do Sesc: adpsecretaria@sesc.com.br tel.: (21) 2136-5149 / fax: (21) 2136-5470
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Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2006 - . v.; 23 cm. Quadrimestral. ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Sesc. Departamento Nacional.
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SUMÁRIO
Apresentação
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Editorial
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Faces do trágico e do cômico na moderna prosa rodriguiana Agnes Rissardo
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Saber escolar em perspectiva histórica. O ensino religioso: debates de ontem e hoje na História da Educação Aline de Morais Limeira
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A inocência dos muçulmanos, blasfêmia e liberdade de expressão: problemas de tradução intercultural Daniel Silva
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O confronto entre a jurisdição penal global e a soberania estatal 101 Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Castro Alves: dramaturgo bissexto Walnice Nogueira Galvão
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APRESENTAÇÃO
A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos ao seu progresso. Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a ampliação permanente dessa compreensão. Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir o entendimento acerca desta realidade, dos conceitos e questões fundamentais para o país, e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar coletivo. antonio oliveira santos Presidente do Conselho Nacional
Ler, estudar, pesquisar. Divergir, argumentar, contrapor. Comparar, debater, discutir. Criticar, questionar, propor. Fundamentar, elaborar, testar. Organizar, encadear, remeter. Rever, revisar, publicar. Apresentar, expressar, transmitir. Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam conjugados em favor de uma sociedade que traduza de forma mais fidedigna a expressiva riqueza cultural e o potencial realizador de seus cidadãos. Conhecer para compreender, difundir para mobilizar, agir para transformar: eis as vertentes que definem a linha editorial da Sinais Sociais no ambiente do pensamento e da ação social. maron emile abi-abib Diretor-Geral do Departamento Nacional
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EDITORIAL
A história da humanidade reúne diversas sociedades que se viram tentadas a pensar nelas próprias como o estágio mais avançado de um percurso de evolução e refinamento. Com frequência essa concepção foi desmentida pela aparição inesperada, em seu seio, de um rasgo de comportamento primitivo e irracional. O contraste entre a autoimagem e as evidências do arcaico que subsiste em cada tecido social, no entanto, tem se mostrado insuficiente para prevenir o encantamento de espelhos demasiado benevolentes. A presente edição da Sinais Sociais tangencia direta ou indiretamente o cíclico entrelaçamento entre o assim chamado “moderno” ou “contemporâneo” e seu mutante contraponto, o “pré-moderno”. Dois artigos abordam a religião e sua presença nas esferas da vida. Daniel Silva utiliza o episódio da violenta reação ao filme A inocência dos
muçulmanos entre populações do Oriente Médio para descrever as possibilidades e impossibilidades da tradução entre culturas distintas. Aline de Morais Limeira relata as tensões no passado e no presente acerca do ensino religioso, sua obrigatoriedade ou rejeição na perspectiva do Estado.
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Dois artigos desta edição abordam obras de escritores brasileiros, em momentos e cenários distintos. Walnice Nogueira Galvão destaca a única produção de Castro Alves para o teatro, Gonzaga e a Revolução
de Minas, situada no ambiente da Inconfidência Mineira. Agnes Rissardo, por sua vez, reflete sobre a presença do trágico e do cômico na obra de Nelson Rodrigues, autor tão contundente em desvelar o que de verdadeiro subjaz ao moralismo convencional. Finalmente, o artigo de Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco descreve a tensão entre os acenos idealistas do direito internacional e da cidadania global contrapostos à soberania estatal, que trouxe ao mundo o big stick em sua versão pós-11 de setembro. Como mensagem que perpassa os demais artigos, fica claro que a aventura humana está distante de cumprir seus melhores anseios, e que devemos nos precaver contra ilusões autoinduzidas. A Sinais Sociais adota a partir deste número um novo projeto gráfico, com o desafio de dar forma a um conteúdo que é aqui reunido para questionar, mobilizar e transmitir conhecimentos em favor do desenvolvimento social. Os leitores poderão decidir se fomos bem-sucedidos.
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Agnes Rissardo Mestre e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde defendeu a tese Nelson Rodrigues e a hipérbole do banal (2011). Atualmente desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado na Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3 (2012-2013) sobre a recepção da literatura brasileira contemporânea na França, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Exerce a função de editora adjunta do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea do Departamento de Literatura Brasileira da UFRJ. É jornalista há mais de 15 anos, atuando sobretudo como editora de jornais e revistas.
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Agnes Rissardo
Resumo O presente artigo apresenta uma reflexão acerca da relação intrínseca entre elementos trágicos e cômicos na obra em prosa do autor brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980). A partir do estudo de seus contos e sobretudo do romance O casamento, de 1966, vão se revelando temas e recursos utilizados pelo escritor também em suas peças teatrais, como o diálogo estabelecido com a poética ática, ao mesmo tempo em que procura subvertê-la e atualizá-la por meio de uma abordagem trágica moderna. Apesar das declarações de desprezo de Nelson Rodrigues ao “teatro para rir”, seus textos deixam à mostra ainda o farto uso de expedientes cômicos, tais como a paródia, a caricatura e a ironia, caracterizando um discurso construído a partir de uma linguagem sustentada em máximas, cujos paradoxos têm por finalidade o desmantelamento do senso comum. Como duas faces de uma mesma moeda, na prosa rodriguiana, tanto o trágico quanto o cômico são empregados no sentido de corroer a hipócrita moral burguesa, deixando à mostra o que a banalidade do cotidiano familiar esconde de mais sórdido e deteriorado em seu íntimo. Palavras-chave: Tragédia Moderna. Cômico. Social x individual. Nelson Rodrigues.
Abstract This article presents a reflection about the intrinsic relationship between tragic and comic elements in the works in prose of the Brazilian writer Nelson Rodrigues (1912-1980). From the study of his short stories and especially his novel O casamento (1966), themes and resources also used by the author in his theatrical plays are revealed, such as the dialogue created with Attic poetics while seeking to subvert it and to update it through a modern tragedy approach. Despite the contemptuous statements by Nelson Rodrigues on the “theatre for laughing”, his texts also reveal the abundant use of comical expedients, such as the parody, caricature and irony, thereby characterizing as a speech constructed from an artistic style sustained by maxims, whereas its paradoxes aim at dismantling the common sense. As two sides of a coin, in Rodriguean prose both tragedy and comedy are used to corrode the hypocritical bourgeois morality, revealing the hidden side of what is most sordid and decadent within the banality of the everyday family affairs. Keywords: Modern Tragedy. Comedy. Social versus individual. Nelson Rodrigues.
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Faces do trágico e do cômico na moderna prosa rodriguiana
Introdução Reconhecido por público e crítica como um dos maiores escritores de língua portuguesa, Nelson Rodrigues foi bastante lembrado e festejado ao longo de 2012 por seu centenário de nascimento. As homenagens se prolongam em 2013, já que em dezembro completam-se setenta anos da primeira montagem da peça fundadora do moderno teatro brasileiro, Vestido de noiva (1943). Nesse sentido, nada mais oportuno do que a revisão crítica de toda a sua extensa obra, que paulatinamente se presta a diferentes olhares, questionamentos e perspectivas, tamanha é a sua diversidade, capaz de mover-se com a mesma desenvoltura por teatro, jornalismo, crônica, contos, romances e até mesmo telenovelas. E uma das chaves mestras para se adentrar o denso universo rodriguiano é, sem dúvida, a relação intrínseca e, por vezes, conflituosa, de elementos trágicos e cômicos em seus textos. Legítimo herdeiro da tradição de excessos na literatura, Nelson Rodrigues a todo instante parece querer nos mostrar que o trágico é inerente à vida e, portanto, faz dele sua marca mais expressiva, o elemento que perpassará toda a sua obra, desde as suas primeiras reportagens até as peças teatrais, romances, contos e crônicas. Os excessos de todo tipo encontram nas páginas do drama e da prosa do autor um meio natural de emergência: paixões avassaladoras, desejos irrefreáveis, loucura, embriaguez e mortes violentas habitam permanentemente o imaginário rodriguiano e convidam o leitor a um desconfortável e ao mesmo tempo instigante passeio pelo lado selvagem e hediondo da vida. “Não resta dúvida: é de fato um mundo em crise o mundo que ele nos apresenta”, alerta Ronaldo Lima Lins (1979, p. 131). É curioso observar, porém, que a versatilidade de Nelson Rodrigues, cuja escrita transita ora por um discurso pensado para a publicação em jornais ou mesmo para a televisão, ora pelo texto a ser encenado em um teatro, leva-nos a constatar que, apesar das evidentes diferenças formais de adaptação aos meios em questão, tais narrativas encontram-se no ponto de interseção antes mencionado: a constante tensão entre o trágico e o cômico. Até o início da década de 1990, a abordagem crítica dos estudos literários privilegiava claramente as peças teatrais de Nelson Rodrigues. O trágico era então ressaltado, sobretudo por sua presença mais evidente naquelas 12
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que são consideradas as “peças míticas” do autor. Os aspectos populares e a comicidade presentes em seus textos eram apenas mencionados e sua análise pouco aprofundada. A partir dessa constatação, é com renovado interesse que este artigo volta-se, sobretudo, para a prosa rodriguiana, isto é, para o estudo de suas obras não teatrais. Dessa maneira, por intermédio da leitura criteriosa do romance O casamento, demonstraremos a filiação da obra rodriguiana à dimensão dionisíaca, conforme a acepção de Nietzsche, e à Tragédia Moderna, recorrendo-se à argumentação de Raymond Williams. Em seguida, investigaremos de que maneira o autor maneja elementos do cômico para formar uma narrativa que tem como pano de fundo a ironia. Tal recurso é empregado na obra de Nelson Rodrigues quase como um trunfo do narrador, que parece sempre querer surpreender o leitor e desestabilizar as suas crenças nas posições fixas.
1 Tragicidade moderna Ao conceder entrevistas e elaborar reflexões a respeito de seus escritos de um modo geral, Nelson Rodrigues recorria a termos e classificações que fornecem pistas e iluminam as vias que pesquisadores e estudiosos percorrem ao tentar decifrar o enigma proposto em sua obra. E na prateleira de palavras diletas do escritor é inegável que o termo “tragédia” ocupe um lugar de destaque. É evidente o fascínio que tal palavra e seus desdobramentos sempre inspiraram em Nelson, que a empregava indiscriminadamente ao falar sobre a arte ou a vida cotidiana. Em suas Memórias, refere-se às notícias redigidas ainda na adolescência para a seção de polícia do jornal no qual trabalhava como suas “primeiras tragédias”: casos verídicos de amor e morte que ganhavam ares de ficção pela pena do jovem repórter: “A rigor, eu, menino de treze anos, não discriminava o reles atropelamento e a grande, hierática, tragédia passional. [...] E era como se, naqueles dias, eu estivesse descobrindo o ser humano” (RODRIGUES, 1993a, p. 199, grifo nosso). A experiência como jornalista daria margem, futuramente, à criação de textos assumidamente ficcionais publicados na seção A vida como ela é..., do jornal Última Hora. Uma vinheta permanente no alto da coluna abria diariamente os contos e indicava aquilo que o leitor encontraria ao ler tais histórias: “Tragédia, drama, farsa e comédia”. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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Quanto às suas peças teatrais, Nelson outorgou à maioria delas uma designação e muitas receberam a qualificação de “tragédias”: Vestido de noiva, Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados. E mais tarde viriam a público aquelas que ele designou de “tragédias cariocas”, isto é, A falecida, O beijo no asfalto e Boca de ouro. Já Perdoa-me por me traíres será chamada de “tragédia de costumes”. Angela Leite Lopes vê nesta classificação um tanto original um movimento de autorreflexão, característico da arte contemporânea que, se por um lado permite que o autor não se prenda a gêneros fixos e desgastados, por outro, não o leva a negar a importância da tradição: “Ao primeiro contato com a obra de Nelson Rodrigues [...] surge uma questão — ou um questionamento — sobre a vigência dos gêneros, do teatro, da arte. É este movimento que vai, mais que qualquer outro, caracterizar a arte moderna e seu caráter reflexivo” (LOPES, 2007, p. 165-166). Há, portanto, em sua obra um constante diálogo entre o moderno e o arcaico, mas, acima de tudo, o que transparece é uma flagrante intenção do autor em ser reconhecido como trágico. Não apenas pelo fato de aludir a um gênero como a tragédia, mas, sobretudo, por querer filiar sua obra a uma determinada origem, como nota Antonio Guedes: [...] quando Nelson Rodrigues diz que sua peça é uma tragédia, ele está propondo um diálogo com uma certa dimensão temporal. Ele está disposto a procurar uma relação do seu trabalho com um lugar que, mesmo distante no tempo, ainda é determinante na sua maneira de construir peças. Nelson está, enfim, apontando para um lugar originário (GUEDES, 2004, p. 13).
Sabe-se que a palavra “tragédia” teve seu campo semântico bastante ampliado ao longo do tempo, ganhando nos dias de hoje a conotação de evento catastrófico. No entanto, em suas origens, a tragicidade em nada se relaciona com esses acontecimentos. A rigor, o que está em jogo em uma tragédia clássica são as noções de destino e de justiça. A primeira refere-se a uma força sobre a qual o personagem não tem qualquer controle, já que é determinada pelos deuses. A segunda seria o equilíbrio entre a vontade divina e a decisão humana: é a partir do momento em que o herói comete uma falha que o destino se torna visível, porque “antes do erro, a trajetória do personagem vem sendo desenhada num ritmo progressivo. Mas, na falha, [...] a cadência do personagem é abalada” (GUEDES, 2004, p.13).
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Tal falha ou erro (hamartia), mostrada por intermédio de um ato de desmesura (hybris), é concebida na teoria aristotélica não como uma anomalia de caráter, mas como um erro de cálculo, um desvio na trajetória do herói, que antes caminhava para o acerto. Na narrativa rodriguiana, porém, os personagens são levados ao erro por sua própria incapacidade de resistir às tentações mundanas, sejam elas de caráter sexual ou material. Não há integridade nos indivíduos, que se veem dominados por seus desejos. Trata-se, portanto, de uma falha de natureza moral. É fundamental notar que os heróis da tragédia grega pertencem sempre às classes sociais mais elevadas (reis, príncipes e assemelhados), vítimas de um destino implacável e imutável (moîra) arquitetado pelos deuses. No universo ficcional de Nelson Rodrigues, em contrapartida, sobretudo em seus contos e romances e em suas “tragédias cariocas”, o surgimento do acontecimento inesperado e devastador da normalidade é notadamente localizado na vida cotidiana dos núcleos familiares do Rio de Janeiro, atingindo geralmente o indivíduo de classe média. É, pois, esta cidade e não a sociedade ateniense o palco de seu universo trágico. Seus personagens transitam pelas ruas, bares e bairros cariocas. A emergência do trágico se insere nesse contexto e, precisamente, na ruptura do indivíduo com uma estrutura conservadora que não permite brechas em sua moralidade. A família é mostrada como uma construção em ruínas e basta uma fratura na suposta normalidade do cotidiano para que se revele o nervo exposto da hipocrisia de uma sociedade corrompida e pervertida. No entanto, mesmo com tantos pontos dissonantes, Nelson não se distancia completamente das origens do trágico, seja em sua prosa ou em seu teatro. Como repara Angela Leite Lopes, o autor faz amplo uso dos clichês da tragédia clássica em sua obra: as noções de destino, fatalidade, maldição e vingança, assim como a retomada de temas tais como o incesto e o infanticídio (LOPES, 2007, p. 221). Porém, cumpre notar que, ao mesmo tempo em que se rende a esses “lugares-comuns”, Nelson subverte-os ao pô-los em jogo em um cenário contemporâneo e na esfera da vida particular dos personagens: “Esses clichês são apresentados de certo modo em estado bruto — e é certamente por isso que sempre causaram mal-estar na crítica e no público de maneira geral” (LOPES, 2007, p. 224). Nesse sentido, pode-se afirmar que a dimensão trágica presente no universo rodriguiano aponta suas origens para a tragédia clássica, mas alimenta-se Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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substancialmente da teoria nietzscheana baseada no antagonismo dos princípios apolíneo e dionisíaco, tão bem formulada pelo filósofo alemão para pensar a arte moderna em seu A origem da tragédia ou Helenismo e Pessimismo (1872). O primeiro, representado pelo deus Apolo, é caracterizado pela harmonia e pela ordem, de aspecto solar e brilho da aparência. Já o princípio dionisíaco, em oposição, representa a desintegração da individualidade, carregando consigo os atributos do deus Dioniso: desordem, descontinuidade, êxtase e desmedida. Os dois princípios, segundo Nietzsche, buscam incessantemente a reconciliação para realizarem a união entre as duas pulsões estéticas. O trágico nasceria justamente no momento em que surge uma fenda no véu apolíneo de ocultação das aparências, deixando escapar uma força criativa dionisíaca que viria à tona para modificar e destruir as molduras do eu (FRANÇA, 2006, p. 36). Diversos estudiosos creem que o trágico morreu com a tragédia grega. Porém, nas últimas décadas a existência de uma tragédia moderna passou a ser defendida por uma nova geração de críticos e pensadores, como é o caso de Raymond Williams, que aponta a vivência cotidiana do homem comum não como um entrave para o surgimento da dimensão trágica, mas como um cenário natural e propício para a emergência dessa experiência. Logo, ao descaracterizar o herói como homem de posição superior à coletividade e lançar luz sobre o homem comum, Williams contradiz a concepção clássica de tragédia, mas, em contrapartida, afirma ser justamente essa a condição fundamental para se conceber o trágico na modernidade. “Ironicamente, a nossa própria cultura burguesa começou por, aparentemente, rejeitar essa visão: a tragédia de um cidadão poderia ser tão real quanto a tragédia de um príncipe” (WILLIAMS, 2002, p. 74). Um dos principais pontos que distinguem a tragédia clássica da moderna é o fato de que o trágico na modernidade desperta muito mais a curiosidade e o questionamento do que a piedade. A ênfase no indivíduo é indício de uma sociedade que revela na banalidade a sua força. É nesse cotidiano, marcado pelo acidental, inesperado ou inusitado, de homens e mulheres comuns que não representam reinos ou cidades, mas a si próprios e ao seu universo íntimo, que se desenrola a trágica ordem caótica da vida. Na contemporaneidade, o trágico poderá irromper, assim, não somente no teatro, mas igualmente em outras manifestações artísticas tais como a música, a prosa, o cinema e a dança. 16
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O trágico é de suma importância no discurso rodriguiano, pois, sem ele, o cotidiano banal de seus personagens jamais alcançaria a dimensão grandiosa e hiperbólica aqui referida. Um traço, em particular, explorado pelo autor é justamente a noção de “desmesura”, por intermédio da qual sua narrativa transcende o comum e exibe com singularidade a miséria humana. Porém, não almejava ele fechar-se na origem clássica: produto de sua época, o século XX, a obra rodriguiana já nasceu vocacionada a se inscrever na nova ordem do mundo contemporâneo. A prosa rodriguiana deve ser encarada como tal em uma abordagem que leve em consideração o ponto de vista contemporâneo do momento em que se insere, sem excluir, entretanto, a relevância do diálogo estabelecido com a tradição ática. Cumpre notar que tal diálogo na obra de Nelson Rodrigues não se limita à narrativa de suas peças teatrais. Como mais um traço evidente de sua contemporaneidade, a dimensão trágica aqui perscrutada inunda a prosa rodriguiana por todas as suas vias, o que nos incentiva a empreender uma leitura aprofundada de um de seus romances pelo viés de uma tragédia moderna.
2 O casamento: do crime ao castigo Elegemos O casamento como exemplar para nosso estudo sobre o trágico e o cômico na obra do autor. Lançado em 1966, o romance carrega um histórico bastante curioso e determinante para a nossa escolha: apesar da copiosa produção ficcional desenvolvida por Nelson ao longo de quatro décadas, foi essa a única obra não teatral de sua autoria a ser publicada diretamente em livro. Todos os seus contos, crônicas e demais romances chegaram ao leitor primeiramente em jornais ou revistas. Na época, Nelson já era célebre por suas peças e também pelo enorme sucesso dos contos publicados na seção A vida como ela é... do jornal carioca Última Hora. Mas nem sempre fora assim: até 1960, o escritor se dividia entre duas facetas: sustentava a imagem de dramaturgo sério perante o público, mas pagava as contas com o trabalho diário nas redações como autor de romances-folhetins sob o pseudônimo de Suzana Flag. Os enredos de Meu destino é pecar, Escravas do amor e Núpcias de fogo, entre outros, tão rasgadamente melodramáticos, apelavam para os mais banais chavões da literatura comercial, fazendo uso desbragado dos recursos folhetinesSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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cos, porém seriam futuramente reconhecidos pelo próprio Nelson como fundamentais para a sua formação como escritor. Não me arrependo. Por isso mesmo é que existe em toda a minha obra uma coisa que me deu plasticidade, me deu uma segurança técnica que eu não teria se não tivesse feito Meu destino é pecar, Núpcias de fogo [...]. [O folhetim] pode ser bonito, pode ser poético, como a obra mais hierática, ouviu? (RODRIGUES apud NUNES, 1994, p. 50, grifo do autor).
Assim, quando, em 1965, Carlos Lacerda funda a Nova Fronteira e, no ano seguinte, convida Nelson a publicar aquele que seria o primeiro livro de sua editora, o escritor releva todas as antigas desavenças com o jornalista e político e imediatamente aceita a empreitada. O romance deveria constar como sendo de autoria do próprio Nelson, sem pseudônimos, e, para tanto, Lacerda concede ao autor total liberdade para criar (CASTRO, 1992, p. 349). Quando Nelson entrega os originais de O casamento à editora, Lacerda assusta-se com o que lê: a narrativa trazia os mesmos ingredientes de incesto, perversões e degradação característicos das peças teatrais rodriguianas. O romance foi considerado pelo político ousado demais para ser vinculado ao seu nome. No entanto, não desejando ser indelicado com Nelson, Lacerda ofereceu-o à editora Eldorado, que prontamente aceitou publicá-lo sem restrições. O casamento pode ser considerada, portanto, a obra em prosa mais independente de Nelson Rodrigues, no sentido de que o autor, ao escrevê-la, não teria em mente um público leitor determinado. Pela primeira vez em sua carreira, a narrativa desenvolvida pelo escritor estava livre do vínculo com o jornal, fato que a libertava da obrigação em promover o entretenimento do leitor diário. Em tempos turbulentos para a atividade artística no Brasil, entretanto, tamanha liberdade de expressão teve o seu preço: a interdição do romance pela Censura Federal. Nossa escolha também se pauta nas semelhanças entre O casamento e a estrutura da tragédia, como observa Victor Hugo Adler Pereira. A primeira delas estaria na duração da ação em apenas um dia, como ocorre nas tragédias áticas, em que verdades essenciais, até então ocultas na vida cotidiana da família protagonista, são reveladas. O ensaísta ressalta ainda que a narrativa “constrói-se através da sucessão de cenas, em grande parte dialogadas, que demonstram o percurso do protagonista, de uma situação de equilíbrio e felicidade aparente para o sofrimento e a destruição” (PEREIRA, 1999, p. 136). 18
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O romance narra as 24 horas que antecedem o casamento de Glorinha, jovem de classe média alta do Rio de Janeiro e filha caçula do protagonista Sabino. Dono de uma imobiliária, envergonhado de sua própria magreza e defensor de uma moral cristã, o pai da noiva sofre uma ruptura em seu cotidiano sem sobressaltos quando, na véspera do casamento da filha, o ginecologista e amigo da família revela a Sabino que flagrara Teófilo, o noivo, beijando seu assistente Zé Honório na boca. A revelação da notícia inesperada é introduzida na narrativa não sem uma apresentação prévia do caráter do protagonista. Uma frase banal proferida na rua por um desconhecido detonará no personagem a cólera e a imediata reação, no sentido de contrariar a máxima ouvida: “Todo canalha é magro!” (RODRIGUES, 2006b, p. 5). A afirmativa cala fundo em Sabino, descrito pelo narrador como dono de “canelas finas, diáfanas, o peito cavado, as costelas de Cristo” (RODRIGUES, 2006b, p. 6). Imediatamente ele pensa, como que para se justificar ou se absolver: “Eu não sou canalha.” Era a véspera do casamento de sua filha caçula e a suposição de que fosse um canalha leva-o a relembrar sua trajetória. Somos então apresentados à adolescência do personagem. Tomamos conhecimento da vergonha e do sentimento de inferioridade que Sabino carregava desde jovem. Era humilhado pelos colegas na escola por sua magreza e desde então o acanhamento, a contenção de emoções e o excesso de pudor não o haviam abandonado mais. O narrador prossegue desvendando o passado de Sabino e informa que ele se casara (sem amor ou desejo pela mulher) porque era impotente com a prostituta da casa de mulheres. Tal informação é encadeada com a revelação de mais um acontecimento crucial na formação da personalidade do personagem: ao morrer, o pai de Sabino suplica que ele seja um “homem de bem”. O último desejo do moribundo o acompanhará como uma sentença pelo resto da vida. Mas não é só: a imagem do pai esvaindo-se nas próprias fezes enquanto morria torna-se uma obsessão. As reminiscências de Sabino saltam então de sua adolescência para a mais recente festa de aniversário de Glorinha, quando o ginecologista da filha, embriagado, excede-se na conversa sobre o receio de ter filhos homossexuais, empregando palavrões, gestos obscenos e afirmações polêmicas. O comportamento de Dr. Camarinha assusta sobremaneira Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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Sabino, cuja opinião era de que qualquer profissional poderia ser obsceno menos o ginecologista: “O ginecologista é que devia andar de batina, sandalinhas e coroinha, aqui, na cabeça” (RODRIGUES, 2006b, p. 11). Em suma, as primeiras páginas do romance traçam um perfil preliminar de Sabino, em que o protagonista é apresentado como um homem marcado pelos pudores trazidos de sua juventude e pela promessa feita ao pai no leito de morte de que se tornaria um “homem de bem”. Trabalhador, nomeia sua imobiliária catolicamente de Santa Teresinha e mora em Copacabana, indicativo de que se trata de uma família de classe média alta. Assusta-se com a conduta do médico de suas filhas porque se acredita casto, íntegro e religioso. A moldura de Sabino e de sua família é bonita: obedecendo ao pedido de seu pai, tornara-se um verdadeiro homem de bem aos olhos da sociedade e seu cotidiano segue dentro da normalidade esperada até a véspera do casamento de Glorinha. É quando a sentença ouvida na rua de que “todo canalha é magro” mostra-se como o primeiro indício da reviravolta que sofreria a vida do protagonista a partir de então. Pois que, no mesmo dia, ele recebe a visita de Dr. Camarinha e ouve do médico a revelação sobre a possível homossexualidade de seu futuro genro. Note-se que, nesse ponto da narrativa, mais uma vez o narrador estabelece relações entre o corpo e o caráter do personagem: pela primeira vez, Sabino se dá conta de que o ginecologista era gordo, o que, de acordo com a máxima ouvida na rua, comprovaria a sua decência de caráter. A notícia inesperada surge como uma ruptura na normalidade, acionando o gatilho do desenrolar trágico da narrativa. Tem início o conflito de Sabino, em dúvida se deve ou não expor a verdade para a filha: seria honesto com ela se contasse, mas a ignorância da moça sobre a real condição do noivo garantiria a realização do casamento e, consequentemente, a manutenção da aparência de felicidade da família. A cerimônia, cercada de luxo, não poderia ser desmarcada na véspera, sob risco de graves prejuízos sociais. Além do mais, Glorinha era a filha por quem Sabino nutria verdadeira adoração: “Esse casamento é tudo pra mim. É a minha vida. Não pense que Glorinha é uma filha qualquer. Não. Glória é outra coisa. [...] Só gosto de Glorinha” (RODRIGUES, 2006b, p. 26). Diante da dúvida de Sabino, Camarinha não hesita e lança um desafio moral ao amigo: “Sabino! [...] Durante esses trinta anos você já me disse umas 20
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quinhentas vezes que é um ‘homem de bem’. [...] O homem de bem sabe como age, como reage. A decisão é sua” (RODRIGUES, 2006b, p. 27). Estamos, assim, diante de uma narrativa que, logo de início, apresentase como trágica: o acontecimento inesperado chega para desestabilizar uma situação de aparente normalidade. Ao saber da suposta homossexualidade do futuro genro e diante da possibilidade de cancelamento da cerimônia de casamento da filha, Sabino entra num estado de desordem, em que valores, comportamentos e palavras antes mantidos ocultos sob o véu das aparências cotidianas começam a vir à tona. Nos termos de Nietzsche, podemos afirmar que é a partir de tal evento inesperado que as forças dionisíacas entrarão em ação para aniquilarem a aparência apolínea da vida trivial de Sabino, por intermédio da desmedida, representada aqui pelos estados de inconsciência, embriaguez e loucura dos personagens, elementos marcadamente presentes na narrativa, como veremos. Abalado com a notícia e em dúvida quanto à decisão a ser tomada, Sabino acaba detonando uma série de eventos ainda mais perturbadores ao resgatar velhos traumas e complexos infanto-juvenis e liberar impulsos reprimidos, caindo num forte conflito entre a contenção de emoções e a entrega a fantasias sexuais e desejos avassaladores. O movimento de desmascaramento das aparências já está irremediavelmente instalado na narrativa. Dr. Camarinha representa, de fato, uma espécie de contraponto a Sabino. É apresentado como um médico que se excede na bebida, fala palavrões e tem uma postura homofóbica, ao contrário do comportamento contido de Sabino. A partir dessas características, seu caráter é subliminarmente posto em dúvida. O desenrolar da narrativa, entretanto, mostrará que Camarinha talvez seja o personagem mais íntegro da trama. É curioso notar que Nelson utiliza um recurso similar em relação ao personagem do Monsenhor Bernardo, conselheiro de Sabino. Em sua conduta pouco usual, o religioso quebra vários paradigmas daquilo que se espera de uma figura de sua posição na Igreja: fuma cigarros, usa um palavreado vulgar, fala abertamente sobre sexo e, fisicamente, é descrito como um “homem viril”. No entanto, a narrativa parece querer mostrar que é justamente essa postura franca e espontânea do Monsenhor que, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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em vez de depor contra a sua integridade religiosa, certificará a confiabilidade de seus conselhos. Nesse ponto, vale a pena lembrar a observação de Adriana Facina a respeito do caráter dos personagens rodriguianos. Segundo a antropóloga, para Nelson Rodrigues, todos os homens têm em si duas metades, “uma ‘face linda’ e outra ‘face hedionda’, centauros parcialmente Deus e parcialmente Satã. As imagens que apareciam frequentemente nos textos de Nelson representando essas duas metades dos seres humanos eram os santos e os canalhas” (FACINA, 2004, p. 15). Por trás da moldura de integridade, a família de Sabino é flagrada em um processo de apodrecimento interno da moral. Bastante significativa desse esforço em resistir aos impulsos é a passagem em que o narrador descreve os conselhos de Sabino a Glorinha: “Em cada família, há trevas que convém não provocar. Quantas casas, quantos lares são varridos de adúlteras, pederastas, incestuosos, epiléticos?” (RODRIGUES, 2006b, p. 208). O perfil de homem casto, religioso e íntegro do protagonista começa a cair por terra quando Sabino se lança em um romance extraconjugal com sua secretária Noêmia. A moça, por sua vez, mantinha um relacionamento com Xavier, homem casado que não conseguia se separar da mulher. Durante os encontros que mantém com Noêmia, Sabino dá vazão a seus desejos reprimidos, pondo à mostra suas fantasias sexuais com outros homens e com a própria filha, Glorinha. Com o desenrolar da narrativa, porém, os impulsos transgressores de Sabino deixam de se limitar ao campo da imaginação erótica. E sucessivas ações do protagonista, consideradas reprováveis pelos valores morais que ele próprio defendia, vão sendo expostas ao leitor. Seu desejo velado pela filha eclode na concretização de um beijo quando os dois visitam, a pedido de Glorinha, uma praia deserta. De uma beleza e graça extremas, a moça, que é cobiçada por todos os personagens da trama, com exceção talvez do próprio noivo, parece incitar o desejo de Sabino, mas revolta-se quando o pai cede aos seus impulsos. Nos textos de Nelson Rodrigues há frequentemente personagens, como tias solteiras e beatas, que funcionam como uma espécie de mantenedoras da moral cristã a balizar as atitudes sociais (GUEDES, 2004, p. 15). Essas personagens, entretanto, revelam-se geralmente falsas moralistas.
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Em O casamento, tais figuras são representadas pelas três irmãs mais velhas de Glorinha: Dirce, Marília e Arlete. Ao contrário da caçula, as moças não possuem nenhum atrativo e se ressentem da nítida preferência de Sabino por Glorinha. É então que um antigo ato de desmesura de Sabino se torna conhecido. Dirce, a filha mais velha, teria visto quando o pai, em uma festa, violenta Silene, sobrinha e afilhada dele, enquanto a menina tinha um ataque epilético: Sim, da varanda, o senhor viu Silene cair. Desceu, sem dizer nada. Carregou a menina para a parte mais escura. Eu apareci na janela e vi. O senhor é que não me viu. Tudo aconteceu debaixo da janela. Deflorador, sim, deflorador. E de uma menina com ataque e durante o ataque. Silene tinha 13 anos e o senhor parecia louco (RODRIGUES, 2006b, p. 251).
A narrativa trágica de O casamento coloca desse modo o homem em conflito com as leis morais e cristãs da sociedade em que vive: seu desejo (força interna) vai de encontro às suas crenças (força externa). O discurso professado pelo personagem entra em choque com os seus sentimentos e Sabino é levado por suas paixões à perdição. Ele se recusa a acreditar que cometeu falhas e a tensão o impele a tentar se justificar continuamente de que é inocente. Mesmo assim, acaba cedendo à chantagem das filhas. Dirce repara que, ao violentar Silene, Sabino “parecia louco”. O estado de loucura é recorrente na narrativa de O casamento e pode ser associado ao transe dionisíaco. De uma maneira ou de outra, todos os personagens do romance apresentam uma ambiguidade sanidade/loucura. O narrador afirma, em determinada passagem, que Glorinha dava “gargalhadas como uma louca” (RODRIGUES, 2006b, p. 105). Já o filho de Camarinha, Antônio Carlos, revela um comportamento tão transgressor e excêntrico que ameaça enlouquecer. O narrador chega a dizer que o rapaz “tinha, por vezes, um ar de louco” (RODRIGUES, 2006b, p. 104). Ao saber da morte do filho, a mãe de Antônio Carlos de fato enlouquece e chega a ser internada em um hospício. Precisa permanecer nua no quarto, pois, numa fúria avassaladora e irracional, estraçalha repetidamente suas roupas. Entretanto, o momento que talvez mais exponha a marca da tragédia no romance é aquele em que Xavier mata Noêmia, sua ex-amante e
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secretária de Sabino, com mais de trinta punhaladas. É importante notar que, até esse ponto da narrativa, o rapaz mostra-se submisso e apaixonado pela amante e, ao mesmo tempo, marido devotado à mulher cega e leprosa, de quem cuida amorosamente. Noêmia, porém, apaixona-se pelo patrão, com quem inicia um relacionamento turbulento, e passa a rejeitar e a humilhar Xavier que, inconformado e num impulso irrefreável, apunhala a secretária nas costas. O narrador é claro ao referir-se ao estado de extrema confusão do personagem durante o ato de desmesura: “Xavier jamais entenderia o próprio crime. Fez tudo sem nenhuma premeditação, nenhuma, nenhuma. O crime começou de repente” (RODRIGUES, 2006b, p. 235). Mais adiante, o narrador prossegue: Era como se fosse outro, e não ele, ou como se ele fosse apenas um espectador de si mesmo. O “outro” não parava. Noêmia estava morta e o “outro” a retalhava ainda. (E tudo tão sem grito.) Depois, sempre de joelhos, ele levantou o vestido, desceu a calça. O punhal gravou no sexo uma cruz. Xavier ergueu-se. Como o sangue vivo é de um vermelho tão lindo! (RODRIGUES, 2006b, p. 236).
Xavier comete o assassinato sem ódio, paixão ou fúria. Tomado pela frieza, foge do local do crime e tem consciência de que não pode ser visto. Ao chegar à rua, perde a noção do real, como se estivesse num sonho ou em transe: “E pensava: ‘E se eu não matei ninguém? Quem sabe se Noêmia está viva?’” (RODRIGUES, 2006b, p. 237). O rapaz decide ir para casa e trata a todos que encontra pelo caminho com insuspeita cordialidade. Lá chegando, diz à mulher doente que ela havia sido a única mulher a quem amara na vida, apanha o revólver e mata-a com um tiro na boca. Em seguida, comete suicídio. Em todos os casos, a loucura é passageira: é como se os personagens entrassem em uma espécie de transe e revelassem suas duas faces (ou máscaras) opostas entre si. Esse momentâneo limiar da loucura, presente não apenas em O casamento, mas recorrente em toda a obra de Nelson Rodrigues, remete à tragédia clássica. E Xavier é talvez o melhor exemplo no romance daquilo que se aproxima da concepção do herói trágico. Embora não pertença às classes elevadas, sua trajetória antes de cometer o assassinato caminhava dentro de uma aparente normalidade. Até que um evento inesperado quebra a normalidade de seu cotidiano: a humi-
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lhação e rejeição de Noêmia. Xavier é então acometido pela hybris, ou seja, pelo excesso, descomedimento causado por um desequilíbrio interno e inconsciente, ao assassinar a ex-amante. A falha o faz passar da felicidade para a infelicidade e a única saída encontrada para sua redenção é o próprio aniquilamento, pela via do suicídio. Conforme se aproxima a hora do casamento de Glorinha, todos os excessos cometidos pelos personagens começam a ter fim. Trata-se de uma tomada de consciência dos excessos até ali praticados. Os personagens são arrebatados pelo sentimento de culpa e pelo arrependimento por suas ações moralmente condenáveis pela sociedade em que vivem. “Todo canalha é magro!”: a sentença ouvida na rua, na primeira página do romance, parece retornar à narrativa em seu encerramento, como que a legitimar sua veracidade. O simples arrependimento não basta a Sabino. Tão poderosa é a força interna que eclode no sentido de expiar seus pecados, que o personagem sai em busca de punição. Desse modo, logo após o casamento da filha, ele resolve assumir a autoria do assassinato de Noêmia e entrega-se à polícia: “Eu sou o assassino! Era minha amante. Atirei o punhal no mar” (RODRIGUES, 2006b, p. 262). O narrador encerra o romance sugerindo que o castigo autoimposto devolvera a paz a Sabino: “Era feliz”. Portanto, pode-se afirmar que os personagens rodriguianos apresentam uma filiação à origem clássica do trágico, assim como ao mito de Dioniso. Entregam-se à embriaguez e à luxúria sem reservas, transgridem a ordem e, em estado de transe, são levados a cometerem um erro. Ao voltarem à “normalidade” arrependem-se dos seus atos e passam da felicidade para a infelicidade. Inserem-se, porém, no contexto da modernidade trágica, uma vez que, como apontamos, há também diferenças cruciais na constituição da narrativa rodriguiana em relação ao que se denomina tragédia grega. Com a concretização do casamento de Glorinha e Teófilo e a confissão de Sabino à polícia, a narrativa termina com a ideia de um recomeço após o caos. Como no mito de Dioniso, que morre para eternamente renascer, as molduras da aparente normalidade se reconstroem e dão início a um novo ciclo. E, do mesmo modo como acontece na tragédia clássica, “a catarse não significa a superação do conflito, mas, sim, a transforma-
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ção da oposição antagônica na oposição complementar” (SOUZA, 2001, p. 120). Glorinha, que ama um homem a quem não poderia amar, casa-se e começa uma nova família com Teófilo, que também não a ama, já que provavelmente é homossexual. As máscaras sociais da hipocrisia vestidas por Sabino ao longo da narrativa vencem assim o duelo contra a integridade de caráter encarnada pelo Dr. Camarinha. Em outras palavras, apesar de todas as reviravoltas da trama, o mundo cão do magro canalha sobrevive ao universo ético do gordo íntegro.
3 Riso cáustico Desde a sua primeira peça teatral A mulher sem pecado (1942), Nelson recusava-se a escrever comédias, gênero que considerava inferior à tragédia. O teatro e o riso, na concepção do autor, seriam inconciliáveis, e, as peças para rir, comparáveis a uma “missa cômica”. Referia-se ele evidentemente às chanchadas que dominavam a cena teatral da época e contra as quais se insurgirá o seu teatro. Nesse ponto, destacamos o relato do próprio Nelson a respeito da relação teatro/riso: De repente eu descobri o teatro. Fui ver, com uns outros, um vaudeville. Durante três atos houve ali uma loucura de gargalhadas. Só um espectador não rira: — eu. Depois da morte de meu irmão, aprendera a quase não rir; meu próprio riso me feria e me envergonhava. [...] No segundo ato, eu já achava que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: teatro e martírio, teatro e desespero. No terceiro, eu imaginei uma igreja. De repente o padre começa a engolir espadas, os coroinhas a plantar bananeiras, os santos a equilibrarem laranjas no nariz como focas amestradas. Ao sair do vaudeville eu levava comigo um projeto dramático definitivo. Acabara de tocar no mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobri: a peça para rir, com esta determinação específica, é tão obscena e idiota como seria uma missa cômica (RODRIGUES apud LOPES, 2007, p. 56).
De fato, nas peças rodriguianas, sobretudo naquelas consideradas “míticas” e “psicológicas”, o clima é demasiadamente opressivo. Nelson jamais escreveria uma comédia rasgada como eram as chanchadas (ou vaudevilles) e, como nota Sábato Magaldi, a morte dos personagens raramente surge como natural em suas peças: “A violência comparece à quase totalidade dos desfechos trágicos” (MAGALDI, 1987, p. 22), exatamente como ocorre na maioria das óperas que ele tanto apreciava. 26
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A partir de 1951, Nelson começa a escrever diariamente os contos de A vida como ela é..., pequenos dramas para os quais o autor levava, numa linguagem quase jornalística, concisa e objetiva, os temas mais recorrentes das suas obras teatrais: o ciúme, o adultério, os dilemas morais e a hipocrisia da sociedade carioca, que, não raro, culminam em morte ou loucura. No entanto, é claramente perceptível nos contos escritos especialmente para a coluna as influências do jornal na construção da narrativa ficcional. Misturando, num mesmo caldeirão, memórias de sua infância na Tijuca e os faits divers1 antigos (de sua experiência como repórter de polícia) e atuais, o escritor deu vida às histórias que obtiveram um grande sucesso popular. Tornaram-se leitura obrigatória nos bondes e lotações da cidade durante os dez anos em que foram publicadas. Os contos de A vida como ela é... mesclavam ironia e tristeza, e também eles terminavam, quase sempre, com finais infelizes: em assassinato ou suicídio. Ao ser interrogado, na época, sobre o porquê de tanta morbidez, Nelson reagiu: Senão vejamos: “A vida como ela é...” enterra suas raízes onde? Nos fatos policiais. Muito bem. A matéria-prima, que necessariamente uso, é, e aqui faço dois pontos: punhalada, tiro, atropelamento, adultério. Pergunto: posso fazer, de uma punhalada, de um tiro, de uma morte, enfim, um episódio de alta comicidade? Devo fazer rir com o enterro das vítimas? Posso transformar em chanchadas as tragédias daqui ou alhures? Na minha opinião, “A vida como ela é...” se tornou justamente útil pela sua tristeza ininterrupta e vital (RODRIGUES apud CASTRO, 1992, p. 238-239).
No entanto, há que se relativizar as declarações de Nelson Rodrigues sobre o trágico e o cômico. É preciso levar em consideração que a sua obra havia sido apontada pela crítica, imediatamente após a estreia de Vestido de noiva, como uma alternativa na dramaturgia nacional às comédias que então dominavam os teatros. O discurso virulento do autor contra o cômico deve ser entendido como uma reação ao humor pastelão de tais peças naquele momento. Esse panorama inicial viria a sofrer mudanças com o passar do tempo. Ao se ver na pele de Suzana Flag, Nelson se sente livre para dar vazão a uma escrita feita sob medida para o gosto popular e mergulha não apenas no universo melodramático como faz uso pontual de um humor sutil. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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Na narrativa explicitamente folhetinesca de Meu destino é pecar, uma leitura atenta revelará o deboche do narrador por trás do folhetinista. Logo no primeiro capítulo, a protagonista Leninha salta do carro onde viajava com o marido Paulo e projeta-se na estrada. A preocupação da moça no momento da queda é das mais inesperadas pela futilidade que revela: “Tinha caído, de joelhos, no asfalto. Nem sentiu dor. Pensou: ‘Rasguei minha meia.’ Mais do que certo: devia ter rasgado nos dois joelhos. E quantos fios, meu Deus, teriam corrido?” (RODRIGUES, 2007a, p. 12). No capítulo seguinte, novo deboche. Leninha é induzida por Lídia, a prima esquizofrênica de Paulo, a enxergar no fundo do quarto da falecida Guida um vulto que não parecia humano: “Perto do oratório alguma coisa se mexia, com os movimentos lerdos e pacientes de um monstro submarino” (RODRIGUES, 2007a, p. 20). Mais adiante, com humor politicamente incorreto, a antiga serviçal da fazenda é descrita como “uma preta gorda, quer dizer, mulata (devia ser Nana que, até que enfim, aparecia)” e se encontrava na mesma sala de jantar que “um velho de barbicha bem em ponta, como satanás ou um fidalgo flamengo” (RODRIGUES, 2007a, p. 28). Mesmo com a enfática afirmação de Nelson a respeito da “tristeza ininterrupta e vital” de seus contos em A vida como ela é..., é inegável o teor cômico que tais narrativas apresentam. Ora, se por um lado os faits divers — matéria-prima dos contos rodriguianos — baseiam-se em “tiro, punhalada e adultério”, por outro, fazem saltar aos olhos o inusitado, o inesperado e o patético das situações. Quanto mais esdrúxula e assombrosa a notícia, melhor: maior seria a probabilidade de aumentar as vendas do jornal. Desse modo, o que se pode comprovar ao ler os contos de Nelson Rodrigues muitas vezes é um sarcasmo do narrador por trás da morbidez. Nas suas Confissões, ele admite que histórias tristes podem vir a provocar o riso. Em uma de suas crônicas, o autor narra o caso de uma viúva que, durante o velório do marido, chorava tanto que sequer se lembrava de assuar o nariz. A certa altura, o desespero da mulher a leva a pular, aos gritos, em cima do caixão: “Eis o que me pergunto, com justo pânico: — não estarei fazendo um involuntário deboche? Nem tanto, nem tanto e 28
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pelo contrário. Acaba de me ocorrer uma verdade realmente patética: — a grande dor não só não se assoa, como é humorística” (RODRIGUES, 1993b, p. 31). De fato, a caracterização de personagens e situações nos contos rodriguianos é frequentemente risível. A começar pelos nomes, muitas vezes exóticos, escolhidos pelo autor. Ficando apenas nos contos reunidos em Elas gostam de apanhar (2007), é possível encontrar Odaleia (“Viúva”), Dinaura (“A romântica”), Elesbão (“A grinalda”), Edgardina (“Margarida”) e Asdrúbal (“A idade de Cristo”), entre outros nomes incomuns. Além disso, a descrição de alguns personagens chega a beirar o patético, como em “Banho de noiva”: “A casa estava cheia de gente [...]. Até uma tia do Realengo, que a família supunha morta e enterrada, reapareceu, sensacionalmente. Velha solteirona, meio estrábica, viera farejar, na sobrinha, a felicidade que a vida lhe negara” (RODRIGUES, 2007b, p. 59). Outra característica que imprime um tom risível à narrativa de Nelson Rodrigues é a linguagem empregada pelo autor. Tendendo sempre para o excesso, repleta de gírias comuns nas décadas de 1950 e 1960, afigura-se sobretudo nas falas dos personagens moradores do subúrbio do Rio de Janeiro. Não raro, deparamo-nos com expressões marcadamente retiradas da oralidade (“Papagaio!”, “boa pra chuchu!”, “sossega o periquito!”, “é batata!”). Em outras passagens, os personagens ou o próprio narrador assumirão uma linguagem de paradoxos (“O casto é um obsceno”, “Nu como um santo”); de máximas (“Todo canalha é magro!”, “Só os profetas enxergam o óbvio”), e de frases flagrantemente pautadas pela hipérbole (“Fazia um calor de rachar catedrais”, “Caía um temporal de quinto ato de Rigoletto”), entre numerosas outras que colorem a linguagem coloquial da narrativa rodriguiana. Há, em compensação, o contraste da contenção formal presente no discurso direto, enxuto, construído por meio de períodos curtos e enunciado objetivo. Ora, sabe-se hoje que Nelson Rodrigues ensaiava em seus contos publicados nos jornais o mote e as situações que posteriormente adotaria nas “tragédias cariocas”, quando os temas deixam de ser universais e passam a evidenciar uma veia cômica antes oculta em sua obra dramatúrgica. É interessante lembrar que, nessa ocasião, cerca de vinte anos depois de sua estreia no romance-folhetim, em 1944, e detentor de uma carreira consagrada e consolidada tanto como dramaturgo quanto como cronista, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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contista e romancista, suas personas femininas Suzana Flag e Myrna há muito já haviam deixado a clandestinidade. Pelo contrário, Nelson até orgulhava-se de seu passado de folhetinista e assumia o uso despudorado dos clichês inerentes à técnica folhetinesca e melodramática em todos os seus textos, sem o uso de pseudônimos. Em suas Memórias, ao comentar Crime e castigo, de Dostoiévski, Nelson Rodrigues compara suas impressões sobre a primeira leitura do romance, na adolescência, e depois de adulto. A respeito da cena em que os personagens Raskolnikov e Sônia se encontram a sós, no quarto, sem que um desejasse o outro, confessava ele: “Súbito, há o lance de ópera ou pior, pior — de Rádio Nacional. Raskolnikov ajoelha-se aos pés da prostituta e brada: — ‘Não foi diante de ti que me ajoelhei, mas diante de todo o sofrimento humano.’ Chorei ao ler isso” (RODRIGUES, 1993a, p. 178). Nelson prossegue seu relato, dessa vez revelando seu olhar de leitor adulto, e faz um verdadeiro elogio ao “mau gosto” na obra de arte: “Depois, através dos anos, reli, muitas e muitas vezes, a mesma cena. Adulto, e já com um mínimo de lucidez crítica, pude perceber o mau gosto hediondo. Mas aí é que está: — a grande ficção nada tem a ver com o bom gosto” (RODRIGUES, 1993a, p. 178). O que teria causado essa mudança de mentalidade no autor? Como que intuindo novas rotas para a sua prosa, pela percepção talvez da multiplicidade no perfil de leitores dos romances-folhetins, o fato é que a postura pública de Nelson Rodrigues de autor incorruptível, ávido pelo reconhecimento de seus pares e da crítica especializada, sofreria mudanças ao longo de sua trajetória. Ele prosseguiria fiel ao seu intento de desestabilizar o leitor/espectador com sua obra até o fim de sua vida. No entanto, com o passar do tempo, viria a se abrir cada vez mais ao uso do humor, do deboche e da linguagem oral e à apropriação de características inerentes ao romance-folhetim e ao melodrama em seus textos. Tal alteração na postura de Nelson parece começar a se desenhar com A vida como ela é... e se consolidar definitivamente com as peças intituladas “tragédias cariocas”. Victor Hugo Pereira relata que, em entrevista concedida ao ensaísta, o diretor da primeira montagem de A falecida, José Maria Monteiro, afirma ter sido o primeiro brasileiro a dirigir uma peça de Nelson de uma maneira carioca, o que, segundo ele, teria ressaltado o caráter cômico do texto rodriguiano. Monteiro prossegue afirmando que 30
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o próprio autor teria demorado a aceitar tal comicidade em suas peças: “Dei a forma carioca. Tanto é que houve riso no teatro. Nelson não entendia o riso no teatro. Mas eu dizia a ele: ‘Você é um homem engraçado!’ Ele achava o riso uma coisa pejorativa para o teatro dele” (MONTEIRO apud PEREIRA, 1999, p. 116). Desconfiado do trabalho de direção de Monteiro, o autor recorreu à opinião de amigos respeitáveis: “Levou aquela turma que o acompanhava aos últimos ensaios, para ver se o trabalho estava bom: Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade... E tive o beneplácito dos poetas” (MONTEIRO apud PEREIRA, 1999, p. 116). Evidentemente, a maneira como uma peça é dirigida influenciará sobremaneira o tom geral orquestrado pela encenação. Todavia, no caso das obras em prosa de Nelson Rodrigues a comicidade se encontraria na constituição do próprio texto, livre do acento empregado pela direção das peças teatrais. Portanto, quando José Maria Monteiro afirma que em A falecida optou por enfatizar a cor local da sociedade do Rio de Janeiro, e com isso obteve o riso da plateia, referia-se ele à entonação das palavras, vestimentas e gestual característicos dos cariocas, mas tal direcionamento dos atores só foi possível porque o texto de origem, escrito por Nelson, já empregava um vocabulário repleto de gírias comuns ao linguajar dos habitantes dessa cidade. Em seu ensaio intitulado O riso, Henri Bergson investiga a natureza do risível e destaca a importância de sua contextualização em um meio social: “Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo em seu ambiente natural, que é a sociedade” (BERGSON, 1983, p. 14). A simples localização da ação nesse meio, porém, não é suficiente: “Impõe-se, sobretudo, determinarlhe a função útil, que é a sociedade. O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum, de ter significação social” (BERGSON, 1983, p. 14). No caso das “tragédias cariocas” e dos contos de A vida como ela é... a plateia e o leitor riem, portanto, porque reconhecem no palco ou no texto lido situações, expressões e tipos presentes no cotidiano do próprio meio em que se inserem. O reconhecimento do meio social é uma das razões para o riso nessas obras rodriguianas. Mas não a única. Paralelamente, será também a partir desse recorte no universo carioca que se tornarão mais recorrentes e explícitos na obra do escritor os traços de ironia e sarcasmo sobre a moral burguesa dessa mesma sociedade. Ao lançar mão de recursos, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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tais como a caricatura ou a caracterização grotesca de personagens, o autor provoca um riso incômodo e desconfiado no leitor, que, desestabilizado, não raro se questiona a respeito das reais intenções morais de tal narrativa. De acordo com Vladimir Propp, a caricatura “consiste em tomar-se qualquer particularidade e aumentá-la até que ela se torne visível para todos” (PROPP, 1992, p. 134). Trata-se, dessa maneira, de uma forma de excesso: é uma “arte que exagera”, nos termos de Bergson, para revelar aquilo que está latente no real. Propp adverte que é preciso saber dosar a medida, já que, ao ser ampliada moderadamente, uma mesma propriedade pode se tornar cômica, mas “se, ao contrário, for levada à dimensão do vício, tornar-se-á trágica” (PROPP, 1992, p. 134). No entanto, o limite entre essas duas esferas não é facilmente identificável. Pode-se afirmar que a caricatura é um dos elementos cômicos mais empregados por Nelson Rodrigues em sua obra. Ao desvendar uma sociedade em que os excessos de comportamento, os valores, a moral, os defeitos, a virtude e os vícios são incitados ao extremo (CHABEL, 2005, p. 135), o autor estaria elaborando uma imagem caricatural de seus personagens e do meio em que vivem. Um exemplo evidente do uso da caricatura por Nelson é o personagem Boca de Ouro, da peça homônima, na qual o autor exagera na caracterização do protagonista, um bicheiro do bairro de Madureira. Se na vida real os chefes do jogo do bicho gostavam de ostentar cordões de ouro — uma forma de demonstrar poder e riqueza — na peça, Boca de Ouro, como o próprio apelido já informa, não apenas exibirá toda sorte de joias douradas como também mandará um dentista arrancar-lhe todos os dentes sadios para darem lugar a uma dentadura de ouro. Desse modo, é por intermédio do exagero dos modos e da aparência física dos bicheiros existentes na sociedade carioca que Nelson construirá seu personagem caricato. Ao exagerar nos traços representativos do personagem, pretende o autor chamar a atenção para determinados temas e provocar um questionamento crítico no leitor/espectador. Nesse sentido, o uso da caricatura por Nelson Rodrigues ultrapassa a mera caracterização de personagens e, não raro, é a própria sociedade carioca que se mostra caricata em sua obra.
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Em O casamento, Nelson também recorre à caricatura e à sátira, tendo a Igreja como alvo. É por intermédio do riso que o sagrado se junta ao profano na descrição dos tipos religiosos que transitam pela trama. Na paróquia frequentada por Sabino, há um padre que o recebe com um esparadrapo no pescoço e que, talvez por isso, lembre “uma daquelas caricaturas anticlericais do Eça [de Queirós]” (RODRIGUES, 2006b, p. 170). Logo, o protagonista imagina que o religioso escondia um furúnculo e conclui que ele tinha o “sangue ruim”. Mais adiante na narrativa, Monsenhor Bernardo afirma, de maneira jocosa, que o padre era homossexual: “O padre do esparadrapo, meu secretário. É pederasta. Notou que ele dá umas rabanadas de vez em quando?” (RODRIGUES, 2006b, p. 179). Porém, é na construção do personagem do Monsenhor que o autor melhor realiza a comicidade por intermédio da caricatura. Descrito como forte, potente e sólido, dono de uma voz de barítono, o religioso tem características e modos visivelmente exagerados pelo narrador. Surpreende Sabino com um comportamento transgressor. Diz que se sente mais próximo de Deus quando “esvazia a bexiga ou os intestinos” e pede sucessivamente cigarros ao pai de Glorinha: “Foi uma surpresa para Sabino. Não sabia que o outro fumava e queria acreditar que o padre deve guardar também a castidade do fumo” (RODRIGUES, 2006b, p. 50). O narrador complementa, em outra passagem, que “a voluptuosidade do cigarro dá-lhe uma certa tensão dionisíaca” (RODRIGUES, 2006b, p. 174). O processo de saturação e hiperbolização revelado no romance não difere muito daquele encontrado nas peças de Nelson. Ao comentar sobre Álbum de família, Pereira afirma que tal processo, além de ser um recurso recorrente na dramaturgia rodriguiana, é também “uma estratégia discursiva em outros contextos, quando deseja colocar em dúvida um conjunto de ideias ou a credibilidade de um interlocutor” (PEREIRA, 1999, p. 127). Assim, por intermédio da comicidade de tons paródicos, o autor realiza um processo de desconstrução das ideias preestabelecidas de apreensão da realidade, identificadas por Flora Süssekind como estruturas de “fundo falso” na narrativa. Segundo a ensaísta, o discurso rodriguiano apropria-se frequentemente de frases grandiloquentes no sentido de criar paradoxos que resultam numa posição desconfortável para o leitor/ espectador. Ao utilizar-se de mecanismos, máximas, sentenças e conceitos insólitos ou absurdos, como aquela de O casamento, que afirma ser Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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todo canalha magro, “Nelson Rodrigues permite ao espectador a visão da maneira pela qual são geradas as ideias que norteiam seu comportamento e a dúvida com relação à credibilidade dessas mesmas ideias” (SÜSSEKIND, 1977, p. 33). O recurso da caricatura no discurso rodriguiano, portanto, revela um mecanismo semelhante àquele empregado pelo autor em sua linguagem paradoxal. No caso da hiperbólica caracterização de virilidade do Monsenhor Bernardo, a sátira empregada visa a desconstruir uma forma estabelecida de apreensão da realidade: a de que indivíduos de caráter expansivo e linguajar vulgar não podem ser íntegros. Conforme apontamos, será justamente Sabino, o personagem de caráter contido e linguajar puritano, o indivíduo mais corrupto e imoral da narrativa. A opção pelo grotesco, que beira a escatologia, foi observada por Ronaldo Lima Lins em seu estudo sobre A falecida. O crítico ressalta que é através da palavra que se concentra a principal qualidade da peça, uma vez que o autor levou para os palcos o linguajar carioca sem, no entanto, se fixar no realismo banal de simples imitação do diálogo popular. A mesma conclusão poderia se aplicar ao romance O casamento: “Em seus textos, a palavra possui uma importância chave no desfecho das situações, ora acentuando a amargura de certos comentários, ora, como ocorre mais frequentemente, carregando nas saídas cômicas até torná-las sarcásticas ou grotescas” (LINS, 1979, p. 84). A constante referência a odores (os bons de Glorinha e os maus das suas irmãs e das fezes do pai de Sabino) pode ainda ser ressaltada como excesso naturalista, em grande parte, segundo Lins, responsável pela “atmosfera desagradável que se desprende de suas peças” (LINS, 1979, p. 91). Por um lado, não há nada de cômico na intencionalmente desagradável referência à morte do pai de Sabino esvaindo-se nas próprias fezes: como afirma Propp, “o riso é incompatível com uma grande e autêntica dor” (PROPP, 1992, p. 36). No entanto, a “morrinha” exalada pelas irmãs de Glorinha surge como uma saída cômica pela via da sordidez, no sentido de inferiorizá-las em contraste com a beleza e o perfume da irmã mais nova. Trata-se de um riso cáustico, que procura ridicularizar uma particularidade do outro a fim de subjugá-lo. Afinal, “toda particularidade ou estranheza que distingue uma pessoa do meio que a circunda pode torná-la ridícula” (PROPP, 1992, p. 59). 34
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Portanto, pode-se afirmar que até mesmo o cômico em Nelson Rodrigues é desagradável. Provoca sempre um riso incômodo, desconfiado, no leitor porque as situações hilariantes nascem do absurdo e ocorrem frequentemente por intermédio de um jogo de ironia. É, por assim dizer, um riso que tem por finalidade remexer as feridas. Nesse sentido, Vladimir Propp lembra que “o trágico e o cômico não se dividem mecanicamente” (PROPP, 1992, p. 61), pensamento que encontra paralelo mais uma vez em Aristóteles. No primeiro capítulo de sua Poética, o filósofo assevera que a comédia representa os homens de maneira inferior e é imitação de seus maus costumes, não porque tenham vícios, mas por serem eles ridículos: “O ridículo reside num defeito e numa tara que não apresentam caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento” (ARISTÓTELES, 2007, p. 33, grifo nosso). Distingue-se, portanto, da tragédia, que representaria os homens melhores do que na realidade o são. Porém, tanto a comédia quanto a tragédia se servem dos mesmos meios, ou seja, dos mesmos ritmos, cantos e metros (CARDOSO, 2008, p. 18). Dessa forma, os dois gêneros se assemelham quando apresentados como mímesis, considerada pelo filósofo como congênita à natureza humana, que com ela se compraz e aprende. Ora, sendo o cômico em sua origem o outro lado do trágico, é natural que, como aventa Imaculada Kangussu, manifestações como a ironia e a sátira, com intuito crítico, já possam ser encontradas em algumas passagens de textos filosóficos de Platão e Diógenes: “Cifrar o sério no risível é sempre uma forma de defesa — e de ataque — portadora da astúcia ambígua capaz de evidenciar as simpatias entre comédia e crítica” (KANGUSSU, 2008, p. 62). De fato, não há um riso de alegria pura na narrativa rodriguiana. Nelson segue sempre pela via da morbidez, do sentimento de culpa e do arrependimento, o que caracteriza a sua narrativa como essencialmente trágica. É, portanto, por intermédio da ironia, do sarcasmo e da caricatura, e no âmbito da linguagem, que o autor promove o riso, sempre tenso, sádico e questionador. O discurso irônico rodriguiano é construído por meio de uma linguagem sustentada em máximas, cujos paradoxos têm por finalidade o desmanSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 9-40 | janeiro-abril 2013
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telamento do senso comum. Dessa forma, o inusitado do enunciado será o fio condutor que levará o leitor à descoberta de um sentido não apreendido nas camadas mais superficiais do texto. Estaria, assim, na linguagem e em diversas discussões postas em jogo na trama, e não apenas na questão moral, mais um aspecto da modernidade da obra de Nelson Rodrigues, como observa Angela Leite Lopes: Nelson Rodrigues levanta questões de ordem moral na medida em que focaliza o indivíduo entregue às complexidades da vida moderna — à perda da identidade própria na multidão, à mecanização, à instabilidade, à insatisfação, à afirmação dos direitos da mulher, à angústia. Esses aspectos fazem parte da trama tanto quanto o trabalho com os diálogos. Ideias e linguagem remetem assim a um questionamento fundamental (LOPES, 2007, p. 110-111).
Ressalte-se que não se trata de um discurso tragicômico. Comumente definido como a mistura de elementos do trágico com elementos do cômico, o tragicômico é, na realidade, um gênero específico de drama e engloba uma série de outras características muito particulares que pediriam um estudo à parte. Por isso, o mais correto seria afirmar que a narrativa rodriguiana é essencialmente trágica, o que não impede o autor de lançar mão de uma comicidade de tons paródicos que tem como finalidade o riso cáustico. Verificamos desse modo que, nos textos de Nelson Rodrigues, tanto o trágico quanto o cômico são empregados no sentido de corroer a hipócrita moral burguesa, deixando à mostra o que a banalidade do cotidiano familiar esconde de mais sórdido e deteriorado em seu íntimo.
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Notas 1 Notícias extraordinárias, quase todas envolvendo paixão ou vingança, como suicídios por amor, adúlteras assassinadas, pactos sinistros, entre outros casos escabrosos, que ganhavam ares folhetinescos pelas mãos do jovem redator Nelson Rodrigues. Tal experiência com o fait divers marcaria profundamente a futura produção ficcional do autor, tanto em seu teatro e em seus romances quanto, flagrantemente, em seus contos publicados na seção A vida como ela é..., do jornal Última Hora. Vale a pena detalhar tais aspectos dos faits divers demonstrados por Roland Barthes no ensaio Structure du fait divers. Segundo ele, a estrutura desse gênero de notícias compreende dois tipos. O primeiro está ligado à causalidade, isto é, o motivo que leva à ação conhecida é sempre inesperado, ligeiramente aberrante: “‘Empregada doméstica sequestra o filho de seus patrões’. Para receber o resgate? Não, porque ela adorava a criança” (BARTHES, 1964, p. 192). O segundo tipo apresenta uma coincidência espantosa, que pode incluir a repetição da situação: “Pescadores islandeses pescam uma vaca” (BARTHES, 1964, p. 194) ou “assaltantes são surpreendidos por outros assaltantes” (BARTHES, 1964, p. 195). E há ainda os casos de exagero, que, de acordo com Barthes, podem ser associados à tragédia grega: “É precisamente quando Agamêmnon decide matar a filha, que esta o elogia por sua bondade” (BARTHES, 1964, p. 195). As situações de exagero e coincidências irônicas estão intimamente ligadas à noção de azar, mas também à crença no Destino.
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Aline de Morais Limeira Graduada em Pedagogia, mestre e doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora bolsista da Biblioteca Nacional (2012-2013) e do Núcleo de Ensino e História da Educação da UERJ, desde 2007. Participou da organização da 29ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), em 2006. Além de trabalhos publicados em anais, tem artigos nos periódicos Revista História da Educação (2012) Revista Educação & Realidade (2012), Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (2008), Revista Teias (2011), Revista Brasileira de História da Educação (2011).
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Resumo A partir de um diagnóstico do presente, atinente a aspectos da constituição e funcionamento da máquina escolar, este estudo buscou inquirir acerca de um saber na História da Educação. Trata-se do ensino religioso. Procurou-se esquadrinhar o percurso, a presença, a permanência e as mudanças nas experiências relacionadas ao ensino religioso no âmbito das legislações. Com a intenção de construir uma análise amparada pela historicização do objeto, foi elaborada uma escrita com vistas à percepção da força de uma instituição nesta ambiência: a Igreja Católica. Operando com recortes específicos, foram trazidos ao debate documentos oficiais dos séculos XVIII, XIX e XX (como decretos, relatórios, leis e regulamentos) que estiveram articulados às fontes impressas como o jornal O Apóstolo (1866-1894), o Almanak Laemmert (1844-1914) e o jornal Folha de S. Paulo (1921-atual). Tais fontes permitiram observar a compleição deste saber como matéria escolar a partir dos diversos debates e projetos estabelecidos no Brasil. Palavras-chave: História da Educação. Ensino religioso. Legislações.
Abstract From a diagnosis of the present moment concerning aspects of the constitution and functioning of the educational System, this study sought to inquire about a field of knowledge in the History of Education: the religious education. We sought to delineate the path, presence, permanence and changes in the experiences related to religious education with regard to laws. Intending to build an analysis supported by the historicity of the object, the material was elaborated with the observation of the strength of a particular institution in this ambience: the Catholic Church. With the use of specific selections, official documents from the eighteenth, nineteenth and twentieth centuries were brought to the debate (such as decrees, reports, laws and regulations) that have been connected to printed sources such as the newspapers O Apóstolo (1866-1894), Almanak Laemmert (1844-1914) and Folha de S. Paulo (1921-present day). These sources allowed us to observe the constitution of this field of knowledge as a school subject from the various debates and projects established in Brazil. Keywords: History of education. Religious education. Laws. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 41-66 | janeiro-abril 2013
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Introdução A mãe [...] não admite que as aulas de ensino religioso comecem com uma oração nem que Deus seja tratado como uma entidade real e superior [...] O acordo foi feito no ano passado [...] e permitiu que, nesse horário, os meninos frequentem a biblioteca (VALLE…, 2011). [...] intolerável tirania do ensino leigo obrigatório, evidente perseguição ao ensino religioso, como evidente aferro ao ensino positivista [...] que só agradou à tresloucada grei dos positivistas ateus (O DESASTRE..., 1890)1.
A maneira mais interessante de se posicionar na realidade que nos é imposta e da qual fazemos parte, resistindo a ela, legitimando-a, transformando-a, forjando-a é tomar partido da crítica permanente. É, enfim, estar historicamente na vida. Como Michel Foucault sugere em seus investimentos reflexivos, nós “devemos ter respeito e violar [estranhar, desconfiar, desconstruir?] este presente. Afinal, sua história nos propõe formas de ultrapassagem” (FOUCAULT, 2008, p. 348). Nesse sentido, a partir de um diagnóstico do presente, em relação a alguns aspectos do funcionamento da máquina escolar, podemos nos deparar com certos conflitos presentes nos debates acerca da constituição daquilo que se tornou saber ou disciplina escolares. Entretanto, não obstante sua incontornável atualidade, esta é também uma reflexão para a História. Ambos os fragmentos destacados acima, evidenciam a tensão inscrita naquelas experiências passadas (1890 — O Apóstolo)2 e presentes (2011 — Folha de S. Paulo) em torno da presença do saber religioso nas escolas públicas. Desta feita, consideramos que pensar historicamente nossas experiências nos permite estranhar o que soa naturalizado em nossa sociedade, como a própria instituição escolar, seu corpo profissional, sua grade de saberes, seus sujeitos, sua obrigatoriedade. Nenhum desses dispositivos é natural ou está dado eternamente, muito menos é imóvel. Porque históricos, são construídos. Partindo desse pressuposto, apontar o ensino religioso como um problema hoje, demanda pensá-lo como um debate inscrito no passado, historicizando-o.
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Fonte: Rio de Janeiro (1872).
O fragmento acima faz parte de ofícios da Instrução do século XIX e figura neste estudo por evidenciar uma conjuntura bastante específica: a visibilidade que o ensino, a escolarização e a instrução iam adquirindo naquele tempo. Os estudos históricos acerca da educação têm permitido aprofundar a percepção que hoje se tem acerca da presença e dos efeitos da escola no Brasil desde o século XIX, época de sua emergência enquanto instituição formal — a primeira Lei Geral do Ensino foi criada no ano de 1827, na data em que se comemora o dia do professor: 15 de outubro. Naquela referida ambiência, a formação do povo adquiriu notoriedade e muitos foram os debates e ações em prol do projeto de escolarização promovido em diversos espaços da sociedade. De uma maneira geral, é sabido que a constituição da forma escolar moderna foi feita por forças distintas (GONDRA; SCHUELER, 2008). Atuando na formalidade ou informalidade, muitos se empenharam na tarefa, tornando-se os principais responsáveis pela emergência dos equipamentos escolares e por uma vasta série de iniciativas de caráter educativo. As ações que promoveram se encontravam articuladas, embora nem sempre na mesma direção, intensidade ou valendo-se de mesmos recursos. Estas forças eram públicas e privadas, como as forjadas pelo Estado Imperial (escolas, cursos noturnos, liceus, aulas gratuitas) e pelo que podemos chamar de Sociedade Civil (agremiações, grupos, associações, sociedades, instituições religiosas, colégios particulares, clubes, seminários). Na reflexão dessas questões, a indagação acerca do papel da Igreja Católica que mantinha íntima relação política, cultural, econômica e social com o poder público, e cujas ações estavam profundamente ligadas às questões educacionais no Brasil, não poderia estar ausente. Ao tratar da instituição religiosa, a historiografia apresenta informações necessárias para discussão. Gondra e Schueler (2008) observam o problema evidenciando que sua organização se deu por dentro do aparelho do Estado, em uma relação biunívoca. Para Carvalho e Gonçalves Neto (2010) tratava-se
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de uma “simbiose” — um termo das ciências biológicas que caracteriza a associação entre dois organismos diferentes que mantêm trocas para garantir a sobrevivência de ambos. Vestígios mais precisos a este respeito podem ser observados no Direito do Padroado, que tem suas origens em 1455 com a bula Inter-Caetera, outorgada pelo papa Calixto III. O regime do Padroado se processou como uma comunhão entre o poder temporal e o poder religioso, sendo consentido pela Igreja Católica, que adquiriu privilégios e, em contrapartida, permitiu aos reis que interferissem na vida interna da Igreja. Durante o período colonial, o Brasil manteve a herança do Padroado vinda de Portugal, o que provocou conflitos entre os dois poderes, haja vista o choque entre os interesses da Coroa com os interesses dos missionários, especialmente os jesuítas durante o período da conquista do território. No processo de independência, apesar do ideário liberal estar difundido no Brasil, a união entre Estado e Igreja se viu consagrada na Constituição de 1824. Esse ajuste interessava a ambos que, desse modo, poderiam obter benefícios específicos: o Estado garantia o apoio de uma instituição com grande prestígio social e a Igreja garantia sua renda e acesso ao poder por conta dos serviços que prestava, como controle de nascimentos, batismos, casamentos, óbitos, enterros, eleições; dentre outros. A união entre ambos, estabelecida pela constituição, definia o catolicismo como religião oficial, concedendo ao imperador, pelo regime de Padroado, o poder de criar e prover o preenchimento dos cargos eclesiásticos mais importantes (sendo confirmada posteriormente pela Santa Sé). O beneplácito submetia ao poder imperial as bulas e determinações do Papa, que só seriam cumpridas aqui com autorização do imperador. Além disso, o governo pagava os salários dos sacerdotes — tratados como funcionários públicos. Até a Constituição Republicana de 1891, a Igreja Católica vivera, portanto, sob a proteção oficial do Estado. Os serviços religiosos eram prestados pelo Estado, e o clero católico, único existente em razão do monopólio da religião, se constituíra em uma espécie privilegiada de funcionalismo público. O governo republicano procurou afastar de seus quadros a hierarquia católica, o que implicou a criação de cartórios para registro de nascimento, casamento e óbito. Da mesma forma, a Igreja Católica passou a nomear seus representantes, como
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bispos, arcebispos, papas, sem precisar do aval do Estado, e a ter direito ao exercício do culto, à personalidade jurídica e ao direito de adquirir e administrar bens (TORRES, 1968). Em termos educacionais, essa relação se legitima e produz determinados efeitos. Numerosas iniciativas formais e não formais desenvolvidas pela Igreja Católica — mas por diversos grupos de religiosos também (protestantes, espíritas, indígenas, orientais, do mundo árabe, afro-brasileiros) — cumpriram papel decisivo na difusão da instrução, e a aproximação com o Estado foi uma estratégia eficiente para o sucesso dessas iniciativas (GONDRA; SCHUELER, 2008). No caso específico da Igreja Católica, sabemos que ela criou, dirigiu e manteve em funcionamento vários colégios particulares, sociedades, aulas gratuitas e associações, além de sacerdotes e religiosos atuarem como professores na Corte Imperial e nas Províncias do Brasil na educação pública e privada (LIMEIRA; NASCIMENTO, 2012). Exemplar, neste caso, é um anúncio publicitário3 do ano de 1889:
Fonte: Almanak Laemmert (1889, p. 2.072).
Apesar de algumas mudanças surgidas no século XIX e aprofundadas no século XX, como o casamento civil, a secularização dos cemitérios, a proibição do clero religioso de participar das eleições e a liberdade de culto, a questão da presença da instituição católica no ensino público e particular configura-se por sua atualidade quando se observa, por exemplo, os intensos debates a respeito da laicidade do ensino em todo país. É importante considerar que as relações estabelecidas entre Estado Imperial e Igreja Católica no século XIX implicaram, além da contratação e do pagamento dos ordenados dos religiosos, a construção de templos e a
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imposição do ensino religioso nas escolas — uma realidade que se constituiu não livre de conflitos de várias ordens. De um modo geral, as funções sociais designadas à instrução primária no século XIX pelos administradores estavam articuladas à disseminação de conhecimentos básicos e ao desenvolvimento da educação moral e religiosa. O currículo primário aparece no Regulamento de 1854 (Reforma Couto Ferraz) e é mantido pela Reforma Leôncio de Carvalho em 1879 (com exceção da questão do ensino religioso): leitura, escrita, aritmética e instrução moral. Entretanto, nesses planos de estudos, outras aulas eram comumente incluídas como instrução complementar e opcional, pagas à parte do valor das mensalidades, no caso dos colégios particulares: línguas estrangeiras, música e aulas exclusivas para meninas, como agulha, bordados e costura. No que se refere a este aspecto, a pesquisadora Gisele Teixeira, ao analisar fontes do Oitocentos, referentes aos livros escolares, percebeu que o ensino da moral e da religião ocupava um lugar central nas discussões atinentes à produção, circulação e adoção de compêndios e livros destinados à instrução (TEIXEIRA, 2008).
1 O saber, a escola e a norma A presença da Igreja Católica como uma força inscrita no processo de escolarização no Brasil é uma constatação indiscutível. Instituições, sujeitos e saberes: é a tríade a partir da qual se pode vislumbrar a Igreja Católica inscrita em experiências educacionais públicas e privadas desde o século XIX. Instituições: diversos colégios particulares ou associações, como as de amparo à infância desvalida, foram criados e se mantêm em funcionamento até hoje. Sujeitos: são muitos os nomes de religiosos figurando em documentos oficiais por ocuparem cargos como inspetor, conselheiro ou delegado da instrução, reitor, professor, diretor de colégio, autor de livro escolar. Saberes: desde a catequização dos índios, os saberes da doutrina católica circulam no país, passando pelas escolas nos livros, nas avaliações, na escrita, nos objetos. O que nos interessa pensar nesse momento é de que modo se institucionaliza, se normatiza, se debate e se define oficialmente essa presença e suas marcas nos saberes escolares. Os registros das Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, escritas em 1707 e publicadas em 1853, organizadas em um conjunto de cinco livros, recomendavam: 48
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Todas as pessoas, assim eclesiásticas, como seculares, ensinem, ou façam ensinar a doutrina cristã à sua família, e especialmente a seus escravos, que são os mais necessitados dessa instrução pela sua rudeza, mandando-os à Igreja, para que o pároco lhes ensine os artigos da fé, para saberem bem crer [...] para que sejam instruídos em tudo o que importa à sua salvação. E encarregamos gravemente as consciências das sobreditas pessoas para que assim o façam, atendendo à conta que de tudo darão à Deus, nosso Senhor (VIDE, 1853).
Todas as pessoas precisavam divulgar os ensinamentos religiosos, caso contrário, estariam destinadas a prestar conta com Deus. No caso dos professores, a conta poderia ser bastante cara e cobrada ainda na terra: E para que os mestres dos meninos e mestras das meninas não faltem à obrigação do ensino da doutrina cristã, mandamos a nossos visitadores que inquiram, com grande cuidado, se eles fazem o que devem, para que, sendo descuidados, sejam admoestados e punidos, e lhes revogamos as licenças que de nós tiverem, sem as quais não poderão ensinar (VIDE, 1853).
A primeira manifestação do Estado Imperial em relação ao ensino religioso é justamente a Primeira Lei Geral do Ensino, após o processo de independência, em 15 de outubro de 1827. A lei, além de mandar criar escolas de “primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império”, ordenava que os professores ensinassem “os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana” (BRASIL, 1827, art. 6º). Em razão dessas normatizações, a Igreja investia de forma sistemática no controle sobre as lições: manuais escolares eram submetidos a um violento processo de censura doutrinária. No caso dos livros destinados ao ensino da religião, para serem aprovados para uso nas escolas, eles deveriam ser previamente aprovados pelos bispos diocesanos (TEIXEIRA, 2008). Posteriormente, com a importante Reforma Couto Ferraz, essa orientação se legitima. Esta reforma — Regulamento da Instrução Primária e Secundária da Província do Rio de Janeiro (1851) e do Município da Corte (1854) — determinava que no ensino primário deveria ser ensinado “instrução moral e religiosa”, ou “leitura explicada nos Evangelhos e notícia da história sagrada” (BRASIL, 1854). O fato de esses assuntos serem objetos dessas legislações não impedia que fossem travados intensos debates. Os protagonistas eram diversos: Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 41-66 | janeiro-abril 2013
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intelectuais, políticos, professores, religiosos. Exemplares nesse caso são os vestígios apontados por Gisele Teixeira em sua pesquisa, ao mencionar assuntos tratados por professores nas Conferências Pedagógicas sobre a Instrução Primária4. No ano de 1872, um dos destaques da pauta era a prática do ensino de “instrução moral e religiosa”: Thereza Leopoldina de Araújo e Augusto Candido Xavier Cony foram sucintos em suas respostas. A primeira, lamentando a falta de compêndios de moral, e o segundo, recomendando os livros que considerava apropriados para o ensino, sendo estes, o ‘Pequeno Catecismo do Dr. Toscano’ e o ‘Catecismo do Dr. Fernandes Pinheiro’. Já outros, como Carlos Augusto Soares Brazil e Francisco Alves da Silva Castilho, estenderam-se um pouco mais nas respostas, opinando também acerca de como este ensino deveria se dar (TEIXEIRA, 2008, p. 38).
Observando o lugar particular de onde falava o último mestre, Castilho, Gisele ressalta que ele escrevera o livro O princípio da sabedoria é o temor de Deus (1872), entre outras obras. O que, neste caso, poderia comprometer suas críticas ao catecismo adotado nas escolas, visto que tal desmerecimento poderia ser uma propaganda ou divulgação da obra de sua autoria. A respeito do ensino religioso, uma edição de dezembro de 1886 do jornal O Apóstolo — impresso mantido pela Igreja Católica — publica artigo em defesa dessa prática nas instituições educacionais e que anunciava como “inimigos” aqueles que se manifestavam contrários e criticavam o movimento levantado por alguns representantes da sociedade que advogavam o ensino leigo: Uma guerra contínua se levanta contra o ensino religioso nos nossos dias e os inimigos aproveitam-se da circunstância, lançando mão de todos os meios capazes de deixarem no seio da família a indiferença, senão o ódio contra o ensino religioso e os que o seguem. Por sua vez o governo proíbe-o, e ocultando-se sob o manto da tolerância, manda arrancar das escolas a imagem de Cristo e autoriza compêndios cujas doutrinas são perigosas. Alguns professores e diretores de colégios julgam inútil o ensino religioso, e até para não serem acoimados de jesuítas afastam qualquer sinal de religião dos colégios (SR. MÚCIO, 1886, p. 1).
Na época em que essa edição circulou, já estava em vigor na Corte Imperial a Reforma do Conselheiro Carlos Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879). Com esse decreto, Leôncio de Carvalho rea-
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lizou uma reforma do ensino que permitia “a cada um expor livremente suas ideias e ensinar as doutrinas que acredite verdadeiras, pelos métodos que julgue melhores” (BRASIL, 1879). A liberdade de ensino integrava sua política e foi constituída em um de seus princípios orientadores. De acordo com Alessandra Martinez, a especificidade de seu projeto residia na defesa de um liberalismo clássico, no qual o Estado não detinha o monopólio do saber e do controle da Instrução Pública. A pesquisadora observa que o princípio da liberdade aplicava-se também aos assuntos da religião: De acordo com a reforma, o ensino religioso passou a ser facultativo nas escolas primárias, secundárias e superiores, sendo mesmo dispensado para os indivíduos não católicos. Os professores públicos e particulares foram desobrigados de prestar o juramento católico, embora mantivessem a função de ensinar religião aos alunos que o solicitassem, fora do horário das aulas primárias. Não era preciso dizer o quanto a medida causou polêmicas entre os integrantes da Igreja e os defensores do catolicismo como culto oficial do Estado, entre eles, muitos conservadores e liberais moderados (MARTINEZ, 1999, p. 68).
O final dos anos 1870 assistiu a importantes mudanças no campo da Instrução Pública devido à reforma de ensino decretada por Carlos Leôncio de Carvalho em 19/4/1879. A novidade da proposta também residia no fato de que, pela primeira vez, os ex-escravos eram admitidos como alvo de uma política de educação oficial. Pelo texto da lei, não apenas os livres nacionais ou estrangeiros, mas também os libertos poderiam frequentar as aulas noturnas públicas ou particulares. Para Leôncio de Carvalho, o princípio da liberdade individual era fundamental e, por isso mesmo, deveria ser estendido ao sistema de educação na Corte. Tornando livre o ensino nos níveis primário e secundário na Corte, e no Ensino Superior em todo o Império, o decreto de 1879 foi objeto de profundas críticas de políticos e educadores da época, entre eles, o liberal Ruy Barbosa (MARTINEZ, 1999). Nesse caso, o princípio da liberdade aplicava-se também aos assuntos da religião. De acordo com a reforma, o ensino religioso passou a ser facultativo nas escolas primárias, secundárias e superiores, sendo mesmo dispensado para os indivíduos não católicos. Os professores públicos e
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particulares foram desobrigados de prestar o juramento católico, embora mantivessem a função de ensinar religião aos alunos que o solicitassem, fora do horário das aulas primárias. Liberdade de ensino, de religião, de opiniões e discussões. Entretanto, o ensino da doutrina cristã não desaparece completamente do currículo, ou plano de estudos daqueles colégios do Oitocentos (religiosos ou não). Mesmo que com menor recorrência, anúncios do Almanak Laemmert a partir de 1880 evidenciam que ainda era possível localizar estabelecimentos laicos oferecendo “Doutrina Cristã” ao lado do ensino de línguas, aritmética etc. É o caso, por exemplo, do Colégio de Educação de Meninas, cujo anúncio data de 1882:
Fonte: Almanak Laemmert (1882, p. 2.236).
As disputas e os conflitos caracterizaram os debates na sociedade e entre os homens públicos que atuaram na direção do Ministério dos Negócios do Império (pasta à qual estavam submetidos os assuntos da Instrução Pública) e do ensino na Corte. Como observa Alessandra Schueler, a liberdade religiosa — não obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas e particulares, primárias e secundárias — foi um aspecto de grandes discordâncias. A reforma de Leôncio de Carvalho, estabelecendo que as aulas de religião seriam dadas pelos mestres nos horários extra escolares e, apenas para os alunos e famílias que o solicitassem, não seria bem aceita pelos defensores dos princípios mais tradicionais da ordem Imperial. Um dos personagens inscritos naqueles debates é objeto do estudo da pesquisadora Alessandra Schueler: o Dr. Costa Ferraz, médico da Associação Municipal Protetora da Infância Desvalida. Se o discurso de Costa Ferraz agia em defesa da liberdade de ensino, por outro lado, condenava a tão falada “liberdade religiosa”. Fez referência às “odiosas barreiras”
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levantadas contra as irmandades e ordens religiosas que “em todos os tempos cobriam a humanidade de benefícios e glória” (FERRAZ, 1872), deixando clara a posição da Associação que, afinal, era composta por muitos católicos e pelos membros das irmandades e dos conventos da Corte. Assim, o Dr. Costa Ferraz, aliando instrução primária à instrução religiosa, propagava a ação conjunta de professores primários e padres — a escola e a igreja — no trabalho de “moralização” e formação dos cidadãos. Membros e defensores das ordens religiosas reagiam aos ataques anticlericais dos discursos liberais que há muito propunham o laicismo no ensino público. Nesse contexto, a Associação Municipal Protetora da Infância Desvalida não pretendia “obrigar” os pais de família a matricularem seus filhos nas escolas municipais, mas apenas auxiliá-los, oferecendo os meios e materiais necessários para que as crianças ingressassem nas escolas do município. Sua proposta, de acordo com seus estatutos, consistia em educar as crianças livres pobres, incluindo os libertos, por meio do ensino moral e religioso, aliado à instrução primária elementar (MARTINEZ, 1999). Outro importante protagonista dos debates daquele tempo era Antônio Almeida de Oliveira — advogado, promotor público, presidente da Província de Santa Catarina, proprietário de colégio particular noturno para adultos. Em sua obra O ensino público, publicada em 1874 (reeditada pelo Senado Federal em 2002), ele tece numerosas considerações a respeito do ensino religioso: Se o Estado deve deixar aos padres o que é dos padres, qual a regra a estabelecer-se quanto ao ensino religioso? [...] A grande questão da escola secular é a liberdade religiosa e a influência do professor civil para ensinar religião [...] Uma coisa é mandar o Estado que em todas as escolas se ensine a mesma religião, queiram ou não os pais dos meninos, e outra é abrir escolas de diversas religiões para cada um procurar o que quiser. No primeiro caso o Estado excede o seu poder, visto que a ninguém se pode impor esta ou aquela religião (OLIVEIRA, 2002, p. 110-111).
Com a proclamação da República, as tendências secularizantes existentes no Império adquirem mais força. A secularização da sociedade era uma proposta de vários partidos ou movimentos. De acordo com Davi Gueiros Vieira, houve de fato certa cooperação entre elementos liberais, maçônicos, republicanos, protestantes e de outros grupos contra o poder político da Igreja Católica Romana no Brasil. Essa cooperação às vezes era local, às vezes de âmbito nacional (VIEIRA, 1978, p. 13). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 41-66 | janeiro-abril 2013
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Em janeiro de 1890 foi proclamado o Decreto n° 119-A, aquele que instituiu a separação da Igreja Católica e do Estado. O que não significa dizer que houve imediatamente grande mudança na sociedade, até porque o Artigo 6° dessa norma permitia medidas de negociação da instituição com os Estados brasileiros. Em relação ao ensino, o § 6° do Artigo 72 determinava que “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (BRASIL, 1890). Insatisfeita com os efeitos das políticas liberais e do fortalecimento dos demais grupos religiosos no país, a Igreja Católica reagiu. Sempre e de todas as formas possíveis. O jornal O Apóstolo, em julho de 1890 anunciava em sua primeira página “O desastre” causado por tal resolução e os efeitos de tal medida na Instrução Pública: [...] Ora estabeleçamos apenas alguns confrontos. Tratando da constituição do Estado em geral, escreveu a ilustre comissão: Art. 72. O Estado [...] organizará a instrução primária gratuita pela forma que julgar melhor, e confiará ao seu poder legislativo ou executivo o direito de perdoar e comutar as penas como crimes comuns. Que faz o governo provisório? Não pode resistir ao ódio de seita que o domina, e em vez dessa faculdade indisputável aos Estados de organizarem a instrução pela forma que julgarem melhor disposição liberalíssima, que honra a ilustre comissão redatora da constituição, introduziu a intolerável tirania do ensino leigo obrigatório, evidente perseguição ao ensino religioso, como evidente aferro ao ensino positivista, que ultimamente foi plantado na própria escola normal do Rio de Janeiro, e que só agradou à tresloucada grei dos positivistas ateus (O DESASTRE, 1890, p. 1-2).
O questionamento desse dispositivo ocorreu em vários estados da União. Jamil Cury observa que houve certa flexibilização: Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Sergipe, Pernambuco e Santa Catarina reintroduziram o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. De acordo com suas considerações, uma determinada brecha na legislação tornou possível esse movimento. Parece que houve na dinâmica da flexibilização uma tolerância em relação ao ensino religioso na “casa escolar” e “fora do horário normal” do currículo (CURY, 2010, p. 21). O redator de alguns dispositivos dessa lei, Rui Barbosa, tece algumas considerações a respeito dos novos rumos da educação no Brasil no ano de 1910. Para ele, tais dispositivos demandavam “cautelas necessárias à sua praticabilidade”:
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O mais entusiástico adepto da instrução religiosa nas escolas não poderia querer mais. Três lições por semana, de três quartos de hora cada uma, satisfariam amplamente às exigências razoáveis da família e do clero. Quase trinta anos há, pois, que ocupando-me com a organização geral do ensino, planeava eu, em termos rigorosos, a associação do ensino religioso à escola leiga, mediante o ingresso franqueado, nos edifícios escolares, aos ministros do culto, para o magistério da palavra divina (BARBOSA, 1947, p. 269).
Segue, inquirindo acerca do magistério no interior desta ambiência: Secularizando a função do mestre público, aliava-lhe eu, à escola dos alunos, o concurso do ministério sagrado, mantendo aos programas escolares o seu caráter neutro, mas respeitando na religião dos pais, os seus invioláveis direitos [...] O Estado [...] mantém-se estranho ao ensino religioso. As horas de aula combinar-se-ão de modo que os alunos possam receber dos ministros do culto esse ensino. Os meus intuitos eram declaradamente opostos. A própria função do mestre, extremada assim do ministério sacerdotal, na primeira instrução da mocidade, se mantinha vinculada à cultura paralela do sentimento religioso pela obrigação de o não melhorar (BARBOSA, 1947, p. 270).
Nos anos posteriores a essa legislação, seguiram-se muitos debates e propostas de emendas à Constituição. Na década de 1927 uma emenda ao § 6° do Artigo 72 da Constituição Federal de 1891 propunha defender a oferta do ensino religioso: “Conquanto leigo, o ensino obrigatório, ministrado nas escolas oficiais, não exclui das mesmas o ensino religioso facultativo” (CUNHA, 1997). Na década seguinte, mudanças começam a surgir. O Decreto n° 19.941 de 1931 regulamenta o caráter facultativo da frequência e da oferta do ensino religioso nas escolas públicas ou “oficiais”: Art. 1° — Fica facultativo, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária e normal, o ensino da religião. Art. 2° — Da assistência às aulas de ensino religioso haverá dispensa para os alunos, cujos pais ou tutores, no ato da matrícula, a requererem. Art. 3° — Para que o ensino religioso seja ministrado nos estabelecimentos oficiais de ensino é necessário que um grupo de, pelo menos, vinte alunos se proponha a recebê-lo (BRASIL, 1931).
Da mesma forma, a lei procura instaurar dispositivos que regulem os materiais de ensino, a fiscalização das aulas, a seleção e o recrutamento dos mestres, os horários:
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Art. 4° — A organização dos programas de ensino religioso e a escolha dos livros de texto ficam a cargo dos ministros do respectivo culto, cujas comunicações, a este respeito, serão transmitidas às autoridades escolares interessadas. Art. 5° — A inspeção e vigilância do ensino religioso pertencem ao Estado, no que respeita à disciplina escolar, e às autoridades religiosas, no que se refere à doutrina e à moral dos professores. Art. 6° — Os professores de instrução religiosa serão designados pelas autoridades do culto a que se referir o ensino ministrado. Art. 7° — Os horários escolares deverão ser organizados de modo que permitam aos alunos o cumprimento exato dos seus deveres religiosos. Art. 8° — A instrução religiosa deverá ser ministrada de maneira a não prejudicar o horário das aulas das demais matérias do curso (BRASIL, 1931).
É interessante observar os elementos que autorizam/desautorizam os personagens responsáveis pelo trabalho com esses saberes: Art. 9° — Não permitindo aos professores de outras disciplinas impugnar os ensinamentos religiosos ou, de qualquer outro modo, ofender os direitos de consciência dos alunos que lhes são confiados (BRASIL, 1931).
No caso de possíveis esclarecimentos a respeito dessa lei, tanto o Estado quanto a Igreja estariam ocupando o mesmo lugar de legitimidade: Art. 10° — Qualquer dúvida que possa surgir a respeito da interpretação deste decreto deverá ser resolvida de comum acordo entre as autoridades civis e religiosas, afim de dar à consciência das famílias todas as garantias de autenticidade e segurança do ensino religioso ministrado nas escolas oficiais (BRASIL, 1931).
O último artigo ainda foi alvo de muitas disputas. Religiosos lutaram por excluí-lo dos termos da lei, sem sucesso. Lendo-o fica fácil entender as razões: Art. 11° — O Governo poderá, por simples aviso do Ministério da Educação e Saúde Pública, suspender o ensino religioso nos estabelecimentos oficiais de instrução quando assim o exigirem os interesses da ordem pública e a disciplina escolar (BRASIL, 1931).
Poucos anos depois, na conjuntura política e social da Constituição Federal do ano de 1934 também surgiram novos (velhos) debates acerca da presença/ausência, do ensino religioso obrigatório/facultativo nas escolas públicas. Seu Artigo 153 esclarece que:
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O ensino religioso será de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais (BRASIL, 1934, art. 153).
Nos estados da Federação, nem todas as Constituições mantiveram a regulamentação do fragmento supracitado. Alguns estados propuseram mudanças (Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Amazonas, Pará, Rio de Janeiro) ou sequer mencionaram a oferta dessa matéria nos currículos escolares (São Paulo e Bahia). Em 1937, a partir do processo de outorgação da Constituição Federal o ensino religioso permanece sem o caráter de obrigatoriedade, no que tange à frequência e oferta. A ele a ordem é a de “possibilidade”. No Artigo 133 fica estabelecido que: O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria de curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos (BRASIL, 1934, art. 133).
No mesmo ritmo da Lei Maior, os demais decretos e regulamentações que dispuseram acerca da educação nesse período, incluem como “possibilidade” algum tipo de ensinamento religioso (Decreto-lei n° 4.244/42 — ensino secundário; Decreto-lei n° 4.073/43 — ensino industrial; Decreto-lei n° 6.141/43 — ensino comercial; Decreto-lei n° 8.529/46 — ensino primário; Decreto-lei n° 8.530/46 — ensino normal; Decreto n° 9.613/46 — ensino agrícola). Por ocasião da Assembleia Constituinte de 1946, o debate acerca do tema educação pública, mais uma vez, coloca em destaque perspectivas relativas ao ensino de religião, mantido sob ordem de frequência facultativa, mas oferta obrigatória. E naquele mesmo ano, como consequência das determinações constitucionais, foi proposta a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — que também repete as ordens constitucionais referentes à matéria. Muitas proposições são elaboradas e debatidas nos anos posteriores — aliás, certamente é uma noção que caracteriza com propriedade tal assunto na História da Educação no Brasil. Aspectos mais relevantes são a oferta, a frequência, a contratação e remuneração de mestres (Lei
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nº 4.024 de 1961; Lei n° 7.044 de 1982), os conteúdos ministrados, os materiais didáticos utilizados, o público — séries ou anos da escolarização (Lei n° 5.692 de 1971). Nos anos de 1980, a questão do ensino religioso é mais uma vez trazida à cena. Tanto nos debates da Federação quanto dos estados, o objeto foi inquirido mantendo-se como disciplina de matrícula facultativa no Ensino Fundamental público. Nos termos da Lei (Constituição Federal de 1988) ficou estabelecido que “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (BRASIL, 1988, art. 210). E em alguns estados, como Amapá, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Tocantins e Distrito Federal, regulamenta-se a oferta dessa disciplina no Ensino Médio. Com formulações variadas, no entanto. Sobretudo com preocupações ecumênicas e interconfessionais (OLIVEIRA; CATANI, 1993). Em termos de Educação, a década de 1990 é marcada pela formulação das novas Leis de Diretrizes e Bases (Lei n° 9.394, de 1996). Aspectos mais específicos do ensino de religião constam no seu Artigo 33: O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis (BRASIL, 1996).
Aqui pode ser observado maior detalhamento quanto à oferta religiosa, visto que são muitas as manifestações nesse sentido. Fica expresso seu caráter: I — confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II — interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa (BRASIL, 1996).
A evidência de que esse assunto é caracterizado por muitas polêmicas e desacordos é a revisão do Artigo 33 no ano seguinte. A Lei n° 9.475 procura arrefecer tais polêmicas ao reforçar a garantia de seu caráter diversificado em face do conjunto cultural das religiões no Brasil:
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O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1°: Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2°: Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso (BRASIL, 1997).
Essas considerações apresentam uma diferença pouco nítida. O respeito à diversidade é apontado de uma forma bastante generalizada. Nenhum credo, culto, instituição ou manifestação religiosa é apresentado como componente desse conjunto cultural diversificado. O que se vê na verdade, é um movimento lento e histórico de saída do nome próprio “Igreja Católica” ou “Doutrina Cristã” e a incorporação de noções como diversidade, religiões, interconfessional ou ecumenismo nos termos das diversas legislações do país. Como observa Jamil Cury, a partir da década de 1970 pouca coisa se modifica consideravelmente: o ensino religioso tem oferta obrigatória com matrícula facultativa, seus professores têm um estatuto profissional oscilante, ora sendo pagos pelo Estado, ora voluntários ou subsidiados pelo respectivo credo religioso (CURY, 2010). De uma maneira geral, essas reflexões e fragmentos de fontes oficiais da História do Brasil permitem problematizar termos naturalizados nas experiências educacionais no país. Laicidade, por exemplo, significa “doutrina ou sistema que preconiza a exclusão das igrejas do exercício do poder político e/ou administrativo” (HOUAISS, 2011). Desta feita, considerar a escola pública, a de ontem e a de hoje, uma instituição laica é forçoso. Os limites da propagada laicidade são evidentes. Sessões, debates, decretos, regulamentações e leis continuam figurando nos cenários políticos de todo o país. Recentemente, no ano 2000, a Assembleia Legislativa aprovou a Lei nº 3.459, que estabelece normas para o ensino religioso em escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro — escolas de Ensino Médio. Assim, ficou ampliado o público para essa oferta — na Constituição Federal era considerado somente o Ensino Fundamental. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 41-66 | janeiro-abril 2013
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A Lei Estadual que ampliou essa incidência para toda a educação básica, assim considera: Art. 1º. — O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e, constitui disciplina extra classe das escolas públicas estaduais de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo ou estabelecimento de qualquer primazia entre as diferentes doutrinas religiosas. Art. 2º. — O Sistema Estadual de Ensino regulamentará os procedimentos para a definição dos conteúdos de cada ciclo de conhecimento, ouvida a entidade civil constituída pelas diferentes denominações religiosas. Art. 3º. — O Sistema Estadual de Ensino tomará as medidas necessárias para a capacitação docente, e regulamentará as normas para que os professores de Ensino Religioso se habilitem a ministrarem as referidas aulas, porém, sem ônus para o erário público, os quais serão arcados pelas diferentes denominações Religiosas interessadas na formação Religiosa de que trata a presente Lei (RIO DE JANEIRO, 2000).
Pouco tempo depois, em 2003, um projeto de lei chegou a ser aprovado suprimindo o caráter confessional e devolvendo à Secretaria da Educação o controle da disciplina e de seus conteúdos, mas foi vetada pelo Governo do Estado que, em seguida, realizou concurso público para seleção de professores de religião. Recentemente, em julho de 2012, a prefeitura do Rio de Janeiro seguiu a mesma orientação, selecionando por concurso público alguns professores dos credos “catolicismo”, “evangélicos e protestante” e “religiões afro”. A ausência da doutrina espírita nessa seleção pública foi justificada pela própria instituição. O Conselho Espírita do Estado do Rio deliberou por não aderir ao projeto da prefeitura de implementação da modalidade confessional nas salas de aula: Há um movimento espírita organizado, que foi procurado pela prefeitura. No conselho, reforçamos a posição de que todo o nosso trabalho é gratuito. Dentro dessa visão, não há sentido pagar para que professores deem aula da religião nas escolas municipais. Temos mais de 700 casas espíritas no Rio. Qualquer pessoa que se interessar, pode visitar uma delas, e aprender os conhecimentos gratuitamente — destacou Cristina Brito, diretora de relações externas do Conselho Espírita do Rio (ESPIRITAS..., 2012).
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Como se pode observar, apenas uma constatação é unânime na reflexão acerca do ensino religioso e pode ser exposta a partir de uma palavra: debate. Muitas forças, interesses, ideias, propostas e projetos estiveram e estão inscritos nesse jogo de disputas que se inscreve e constitui o campo da Educação. E inesgotável é a análise dessa temática na História da Educação, visto que ainda estão por ser desvendados muitos fragmentos do passado e do presente que dão conta de fortalecer a reflexão e a crítica.
Para não concluir Uma primeira consideração a ser exposta ao leitor é sobre o lugar que ocupa a lei e a norma na História. O fato de neste estudo terem sido trabalhados os termos das leis em nada afirma uma relação imediata entre os dispositivos da norma e as experiências. Afinal, o que os sujeitos fazem com os discursos que lhes são dirigidos é um outro interesse (FOUCAULT, 1996). Foram operados determinados recortes para que fosse possível desenvolver uma reflexão apoiada em vestígios e documentos — fragmentos do passado que não revelam verdade, mas jogo de forças, relações de poder, poeiras das histórias dos sujeitos, das instituições, das coisas. Optou-se, desse modo, por fazer notar como os conhecimentos doutrinários, a partir do século XIX, estiveram em debate, na luta por legitimidade para ocupar espaço no interior de uma instituição que estava passando a existir naquele momento: a escola. Acompanhando fragmentos da lei e do tempo, este estudo buscou fazer compreender essa reflexão em sua incontornável atualidade. E, menos que respostas, o investimento pretendeu dar visibilidade a perguntas: como, porque, para que, para quem, de que forma deve ser oferecido esse tipo de saber na escola — uma instituição cuja frequência é compulsória desde 1854? No período do Império brasileiro, a centralidade do ensino religioso pode ser entendida como parte do movimento de construção do Estado Imperial e de sua associação com a Igreja Católica, quando era preciso garantir a unidade e a integridade da nação. Por que este saber hoje se sustenta como algo necessário, figurando no cenário educacional como um assunto de muitos debates? Para não concluir, é preciso ter em mente que a compreensão da história nos propõe formas de ultrapassagem (FOUCAULT, 2008, p. 348). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 41-66 | janeiro-abril 2013
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Notas 1 Esta e as demais citações de textos com grafia antiga foram atualizadas pela
grafia corrente com vistas a uma leitura mais fluida. 2 Acerca do jornal O Apóstolo, conferir Limeira (2012). 3 Acerca dos anúncios publicitários e do Almanak Laemmert, conferir Limeira
(2010). 4 As reuniões eram realizadas por ocasião das festas da Páscoa e nas de dezembro. Duravam três dias consecutivos, com três horas de palestras. Os professores públicos e particulares eram convocados, mas apenas os primeiros recebiam uma gratificação pela participação. Delegados de Instrução, Conselho Diretor, Inspetor Geral e o Ministro do Império deveriam participar das mesas de debates. As conferencias públicas se tornaram famosas pela presença constante do Imperador e pessoas notáveis da “boa sociedade”. Em geral, realizavam-se na Escola Pública da Glória (atual E. E. Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado), inaugurada pelo governo em 1874. É interessante a localização das Conferências na Glória, bairro de morada de políticos e intelectuais proeminentes do período (MARTINEZ, 1999).
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Daniel Silva Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua como professor de Linguística na graduação em Letras e na pós-graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Seus interesses acadêmicos são: estudos da violência, significação, pragmática, tradução, filosofia da linguagem e crítica da cultura. Dentre suas publicações recentes, destacam-se o livro Pragmática da violência (7 Letras/Faperj, 2012), o artigo “O passado e o presente da ofensa contra os nordestinos” (Insight Inteligência, 2012) e a resenha de Heller-Roazen “D. Ecolalias: sobre o esquecimento das línguas” (Trabalhos em Linguística Aplicada, 2012).
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Resumo Este trabalho é um exercício de crítica à posição simplista que tem emergido na mídia internacional em torno da circulação do “filme” A inocência dos muçulmanos e de seus efeitos violentos. Essa posição simplista enxerga que a violência que tem circundado a recepção do filme em países muçulmanos é fruto de uma “irracionalidade”, ou melhor, de uma razão menor, baseada em noções pré-modernas como “blasfêmia” ou limitação religiosa. As práticas de leitura dos cidadãos islâmicos ofendidos com o filme estariam informadas por uma redução do signo (a representação de Maomé) ao objeto (Maomé como figura de imanência), uma fusão que seria estranha ao discurso secular-liberal. Estaríamos, assim, diante de um conflito de civilizações, ou de um problema de tradução intercultural, uma vez que as sociedades ocidentais, além de não confundirem signo com objeto, seguiriam outros princípios de racionalidade e de regimentação do discurso. Aponto, no artigo, que a forma como o problema se coloca é falaciosa e abro espaço para a complicação das ideologias em que os discursos seculares e ocidentais se assentam. Palavras-chave: Liberdade de expressão. Blasfêmia. Circulação de discursos. Tradução.
Abstract This paper exercises the criticism of the simplistic position that has emerged in the international media about the “movie” Innocence of Muslims and its violent effects. Such simplistic position conveys that the violence that has arisen from the film’s reception in Muslim countries is due to some sort of “irrationality,” or rather, some sort of minor reason, based on pre-modern notions such as “blasphemy” or religious restrictions. The reading practices of the Islamic citizens offended by the movie would be based in a reduction of the sign (the representation of Muhammad) to the object (figure of Muhammad as immanence), a strange merger to secular-liberal discourse. Therefore, we would have a clash of civilizations; or a problem of intercultural translation, since Western societies, would not mix sign with object, and would follow other principles of rationality and discourse rules. I point out in the article that the way in which the issue was created arises from fallacy, and I allow for the discussion of the ideologies in which the Western and secular discourses are based. Keywords: Freedom of speech. Blasphemy. Propagation of speech. Translation. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 67-100 | janeiro-abril 2013
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1 Inocência de quem? No dia 11 de setembro de 2012, como reação ao vídeo norte-americano The Innocence of Muslims [A inocência dos muçulmanos] –– postado no Youtube como trailer de 13 minutos de um “filme” mais longo ––, uma produção de baixa qualidade que satiriza o profeta Maomé e o Islã, manifestantes egípcios enfurecidos subiram nos muros da embaixada dos Estados Unidos da América no Cairo e queimaram a bandeira americana. Poucos momentos depois, naquele mesmo dia, manifestantes invadiram o consulado americano de Bengazi, a segunda maior cidade da Líbia, e mataram o embaixador J. Christopher Stevens e três outros funcionários do consulado. Stevens havia ajudado o país a se libertar do regime opressor do ditador Muammar Kadafi. Conforme relata Steven Erlanger para o The New York Times, o diplomata evitava a segurança usual dispensada aos embaixadores americanos, gostava do contato com as pessoas nas ruas e amava a Líbia, um país que o “amava em retorno, como aliado e como amigo” (ERLANGER, 2012)1. Milicianos líbios aproveitaram-se de um “filme” feito para ferir sensibilidades islâmicas –– há indícios de que se trata de uma produção de quem conhece as narrativas anti-islâmicas de cristãos coptas de origem egípcia (SHENODA, 2012) –– e mataram covardemente o embaixador e outros três cidadãos norte-americanos2. Aquele seria o primeiro dia de uma onda de violência que se espalhou pelo Norte da África, Oriente Médio e Sudeste Asiático. Ao longo dos meses de setembro e outubro de 2012, embaixadas americanas foram alvo de protestos, os quais se expandiram também para as ruas desses países. Dezenas de pessoas foram mortas nas manifestações. Por alguns dias, embaixadas, consulados e escolas francesas foram fechadas nos países de maioria muçulmana, além de outras representações consulares do Brasil e de outros países ocidentais, como medida protetiva a possíveis protestos violentos em reação a uma série de charges publicadas pelo periódico humorístico francês Charlie Hebdo. Com o propósito sobretudo de vender, o jornal, de modo infeliz, aproveitou-se da tensão provocada no mundo muçulmano e, logo após os protestos na Líbia, exibiu o profeta Maomé, dentre outros modos, nu, em posições provocativas. Ondas de violência como essa que acompanharam os meses de setembro e outubro de 2012 não são novas: o mundo já havia sido abalado
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por protestos violentos em 2005, quando o jornal dinamarquês de direita Jyllands-Posten publicou uma série de 12 charges sobre o profeta Maomé. Agrupadas em um artigo gráfico intitulado “Muhammeds ansigt” [A face de Maomé], as charges satirizam o profeta de vários modos, inclusive caracterizando-o como terrorista suicida. De imediato, algumas instituições muçulmanas na Dinamarca objetaram à publicação das charges com manifestações públicas de protesto. Mais de 50 países republicaram as charges, aumentando ainda mais a controvérsia. O mundo muçulmano se enfureceu. Algumas manifestações foram bastante violentas –– há relatos de cerca de 100 mortes, incluindo o bombardeio da embaixada dinamarquesa no Paquistão e a queima da bandeira dinamarquesa em várias embaixadas ao redor do mundo. No contexto das análises e da crítica a esse fenômeno, que literalmente atacaram o ano de 2012 mas que não é nada novo, o conflito entre as noções de blasfêmia e liberdade de expressão é frequentemente evocado. A equação simplista que se vê na mídia e alhures é a de que o povo muçulmano baseia seus afetos e sua moral na religião, sendo a “blasfêmia” o modo mais comum de interpretar a ofensa aos símbolos religiosos em que se crê. As sociedades ocidentais pautar-se-iam na noção de “liberdade de expressão”, um princípio irrestrito que asseguraria aos cidadãos o direito de falar do modo que lhes conviesse sobre o que bem entendessem. No cerne da questão, como apontam muitos críticos seculares, estaria uma impossibilidade de compreensão mútua, uma incapacidade de traduzir signos de um universo para o outro. Como afirma Roger Cohen, para o The New York Times, em artigo que foi republicado em O Estado de S. Paulo, “Ninguém espera que essas sociedades adotem um padrão americano de liberdade de expressão –– ou mesmo que o compreendam inteiramente” (COHEN, 2012, p. A26, grifo do autor). Estaríamos, assim, diante de um problema de tradução. O editorial do jornal Folha de S. Paulo de 21 de setembro de 2012, centrado nessa questão, defende a oposição que citei acima. Para o jornal paulista, “ninguém é obrigado a gostar das charges nem do filme produzido que deflagrou a onda de protestos, mas é essencial que se preserve o direito das pessoas de exprimir o que bem entendam”. Segundo o jornal, a liberdade de expressão deve ser “robusta”, isto é, ela “deve abarcar até aquilo que a maioria considera errado, ou mesmo repugnante”. Pautado
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numa noção de liberdade de expressão fundamental, irrestrita e infinita, o periódico afirma ainda que “o direito de dizer o que se pensa está na origem das principais conquistas da civilização ocidental” (SUBDESENVOLVIMENTO..., grifo nosso). As sociedades islâmicas, ao recorrerem à noção de blasfêmia, um impeditivo à “livre” e “irrestrita” circulação das ideias, acabariam assim por atravancar o seu próprio desenvolvimento. É curioso notar que o título do editorial, “Subdesenvolvimento puro”, recorre a um vocabulário do campo econômico e jurídico para discutir a suposta oposição intercultural entre blasfêmia e liberdade de expressão. A partir do vocabulário da geopolítica econômica, o jornal está tratando, na verdade, de uma oposição entre dois princípios, ou leis, do discurso: uma lei antidemocrática, que impediria a fala a partir dos limites do dogma, contra outra, democrática, que asseguraria a livre circulação da fala na sociedade. A posição que defende o conflito entre valores seculares e religiosos –– os primeiros como “intrínsecos” à civilização ocidental e os segundos como “intrínsecos” às sociedades islâmicas –– é bem sumarizada pelo crítico liberal Stanley Fish. Em sua coluna de opinião para o The New York Times, ele escreve, logo após os protestos na Líbia e no mundo islâmico, defendendo o conjunto de princípios que definem o liberalismo, particularmente o norte-americano, e que, grosso modo, proclama a separação entre Estado e religião e a consequente distinção entre público e privado3 (FISH, 2012). O crítico recorre ao filósofo protestante John Locke, um dos precursores da defesa da separação entre Estado e religião. Escreve Fish: Em sua Carta sobre a tolerância, Locke é eloquente ao explicar que essa divisão do mundo em duas esferas distintas –– uma esfera privada e uma esfera pública –– irá colocar um fim à violência que pode acontecer quando imperativos religiosos se desviam do seu lar próprio no coração e na capela (ou mesquita ou sinagoga) e insistem em ordenar cada aspecto da vida (FISH, 2012).
Fish defende que “aqueles que compram” essa divisão de esferas serão como que “indivíduos bifurcados”: em casa ou em seus templos, viverão sua religião de modo mais profundo –– isto é, a religião seria da esfera privada, algo pertencente ao “foro íntimo”, como se diz em português; na esfera pública, esses indivíduos bifurcados relaxariam suas crenças privadas e viveriam a tolerância à diferença de credo. A lei americana, de
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fato, defende esse princípio, que é regido pela 1a Emenda à Constituição, segundo a qual toda fala é protegida, tudo pode ser dito, à exceção do convite ao crime. O lema básico da 1a Emenda, no vocabulário de Fish (2012), é: “Eu odeio e rejeito tudo o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.” A posição liberal de Fish, em sintonia com o editorial da Folha, evoca o argumento simplista que, neste artigo, pretendo desconstruir: a saber, de que há um conflito de civilizações, uma impossibilidade de tradução intercultural entre a fala livre e irrestrita defendida pela 1a Emenda (ou por outras constituições democráticas) e a fala impedida defendida pelo Islã. Fish é bastante enfático quanto às incomensurabilidades culturais –– ou, dito de outro modo, quanto à forma como uma sociedade e outra traduz os acontecimentos que se sucederam à exibição de A inocência dos muçulmanos: Não é necessário apontar que os manifestantes na Líbia e no Egito não dirão isso –– não porque eles não compreendam a 1a Emenda ou o muro que deveria separar a religião da vida civil ou a distinção entre a identidade de alguém como cidadão e como crente ou a diferença entre palavras e pancadas, mas porque eles rejeitam todos os quatro e, de fato, os consideram como o mal. Aos seus olhos, uma religião que se confine ao coração e à capela, e que seja assim exercida intermitentemente ao fim do dia, não é, na verdade, uma religião (FISH, 2012)
O problema com as reações violentas ao “filme”, para Fish e para a crítica liberal que ele encabeça, é de ordem filosófico-antropológica: não aceitar a divisão entre público e privado –– uma distinção básica da filosofia liberal –– é a principal causa da violência, como Locke já havia apontado no século XVII. A noção secular de agente humano estaria agraciada, como condição de possibilidade, pela liberdade e pela não violência, ao contrário da noção religiosa de agente humano da tradição islâmica, que prenderia a liberdade humana nos confins da religião e, consequentemente, da violência. Na base do atual conflito, estaria uma incomensurabilidade entre duas noções distintas de agente humano, suas aspirações e possibilidades. Meu argumento principal neste artigo é o de que a equação que aponta as noções de liberdade de expressão e blasfêmia (ou secularismo e religiosidade) como variáveis distintas, independentes e incomensuráveis é
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por demais simplista para qualquer atividade de crítica sobre a circulação da fala na sociedade e, em especial, para compreender os contornos da produção, divulgação e recepção do filme A inocência dos muçulmanos e a violência que o circunda no mundo. No que se segue, tentarei demonstrar que a lógica secular ou liberal não é incompatível nem incomensurável com a lógica religiosa ou islâmica. Argumentarei que a liberdade de expressão não é um princípio tão livre e irrestrito como colocam os críticos liberais, muito menos isento de violência, tal como primeiramente formula Locke. O fluxo da fala supostamente livre das sociedades seculares segue um mapa imaginado, regimentado por projeções sobre a circulação da fala. Aqui, questões relevantes da antropologia e da linguística –– como o debate ético/êmico (PIKE, 1954; AGAR, 2011), a noção de ideologias linguísticas (SILVERSTEIN, 1979; BLOMMAERT, 2006) e de campos de comunicabilidade (BRIGGS, 2007, 2011) –– serão importantes para compreender e complicar o problema.
2 A comunicabilidade da ofensa (e da fala livre) Quero defender neste artigo que não devemos comprar acriticamente o vocabulário liberal da liberdade de expressão. Curiosamente, é em torno do léxico econômico que se situa a defesa irrestrita da liberdade de expressão na Folha de S. Paulo e na coluna de Stanley Fish. Enquanto a Folha chama a estrutura moral-afetiva dos islâmicos de “subdesenvolvimento puro”, Fish evoca um “mercado de ideias” no qual a liberdade da fala tem sua melhor expressão. Ele acrescenta: [...] nós americanos não suprimimos ou penalizamos ideias que consideramos erradas ou mesmo perigosas; de acordo com a 1a Emenda, nós as toleramos e permitimos que elas se apresentem para possível compra no mercado de ideias (FISH, 2012, grifo nosso).
Uggo Mattei e Laura Nader (2008) realizam um amplo estudo do modo como os Estados Unidos da América e outras nações democráticas ao redor do mundo vêm utilizando o Estado de Direito para expropriar direitos e riquezas em outros países. Plunder, ou pilhagem/expropriação, é o termo que os autores dão ao conceito, algo que funciona nos interstícios da lei, ou no “lado negro da lei”, em oposição ao seu “lado brilhante”, como apontam os autores. Esse “lado negro” da lei utiliza-se do mesmo vocabulário econômico que estou criticando. Aliás, ele está a serviço
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do imperialismo e do capitalismo dominado pelas grandes corporações. Mattei e Nader (2008, p. 6) alertam que é necessário elaborar, de modo crítico, “uma narrativa sobre a aventura imperial realizada em termos legais históricos e contemporâneos, o que mostrará uma possibilidade para um repensar radical do modelo de desenvolvimento definido por ideias ocidentais de progresso, desenvolvimento e eficiência”. Em uma interessante visada antropológica, Mattei e Nader nos lembram de que uma tal possibilidade de reconfiguração –– em que a lei não coincidiria com a violência, mas sim com a democracia ––, significaria, primeiramente, “uma clara rejeição de uma ideologia da inerente superioridade da cultura ocidental” (MATTEI; NADER, p. 7), ao contrário do que pensa a crítica secular que venho tentando desconstruir aqui. O Ocidente, lembram-nos Mattei e Nader (2008), é parte de algo muito maior. “Afinal, a descoberta da agricultura e as três grandes religiões mundiais –– cristianismo, islamismo e judaísmo –– tiveram suas origens no Oriente Médio”. Eu diria que é necessário rebater também as ideologias de linguagem, tal como apresentadas nos textos da Folha e de Stanley Fish, que clamam por uma inerente liberdade abstrata para a circulação da fala no Ocidente. Escrevendo na sociedade francesa e ocidental dos anos 1970, Foucault, em sua aula inaugural do Collège de France, alerta que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1970, p. 8-9, grifo nosso).
Foucault, diferentemente de Fish, nos lembra de que o discurso segue leis –– uma Ordem do discurso, o título de sua própria aula –– que controlam o que (e como) se pode dizer. Tentarei demonstrar que essas leis da circulação da fala coincidem, em grande medida, com aquilo que Charles Briggs, desde 2005, vem chamando de comunicabilidade e que captura os modos em que “construções culturais da produção, circulação e recepção de formas culturais entram na forma em que habitamos mundos culturais particulares” (BRIGGS, 2011, p. 224). Os discursos –– e aí incluo a liberdade de expressão –– projetam uma pragmática (i.e., um modo de uso) e uma metapragmática (i.e., uma representação do modo de uso)
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de forma a legitimar certos caminhos para a circulação do discurso e a apagar outros. Esse processo –– “temivelmente material”, para parafrasear Foucault –– depende, assim, das próprias leis de circulação da fala na sociedade e de ideologias sobre a linguagem, sejam elas “nativas” ou “científicas”. Ao contrário do que de forma simplista pregam os críticos liberais ou seculares, as sociedades modernas estabelecem parâmetros e restrições para a comunicação. Desde a legislação sobre que línguas (ou língua) são oficiais/legítimas para o funcionamento do Estado até regulamentações de copyright, patente e leis sobre segredo comercial/ diplomático indicam que as sociedades ocidentais, a norte-americana inclusive, “proíbem de diferentes modos a livre circulação de expressões e ideias” (ASAD, 2009, p. 28). Na supracitada aula de Foucault, o intelectual francês assevera que, “em uma sociedade como a nossa” [i.e., a francesa], “conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. [...] Sabese bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1970, p. 9). Lembra-nos Foucault que, desde a alta Idade Média, o discurso do louco é aquele que “não pode circular como o dos outros” (FOUCAULT, 1970, p. 10, grifos nossos). Entre as restrições à fala do louco, encontram-se a de que sua palavra não é tida como verdadeira, sendo portanto impedida de testemunhar na justiça, de autenticar um contrato, ou de, liturgicamente, fazer “do pão um corpo” (FOUCAULT, 1970, p. 11). Nos Estados Unidos, foi apenas com a presidência de Barack Obama que o país repeliu a lei de regulação da fala (homossexual) Don’t Ask, Don’t Tell. De dezembro de 1993 a setembro de 2011, o Departamento de Defesa estadunidense proibia a autodeclaração “sou gay” ou “sou lésbica” por parte dos membros das forças armadas. A expressão do desejo homossexual era, assim, considerada um “ato” (em vez de “fala”) e implicava a demissão do militar que declarasse sua orientação. As restrições à circulação da fala atualmente em curso são incontáveis. O jovem militar Bradley Manning, que repassou informação confidencial sobre tortura praticada pelas forças armadas americanas no Iraque e sobre outros temas para Julian Assange e o website Wikileaks, passou mais de 800 dias preso, em confinamento solitário, até o seu julgamen-
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to, previsto para fevereiro de 2013. O total máximo de dias de prisão sem julgamento previsto na justiça militar americana é de 120 dias. O cenário que se pode vislumbrar até a conclusão do presente artigo é o de que Manning seria julgado com base em 22 acusações e poderia ter prisão perpétua em custódia militar, “sem nenhuma chance de fala” (WILLIAMS, 2013). O próprio Julian Assange, fundador do website Wikileaks, por conta da divulgação de informações no mínimo embaraçosas da política internacional norte-americana, está preso na Inglaterra, sofrendo um processo contra pretenso abuso sexual praticado na Suécia. A maioria dos críticos da situação –– e eu citaria aqui Craig Murray, exembaixador do Reino Unido no Uzbequistão e o escritor britânico Tariq Ali (MURRAY; ALI, 2012) –– apontam que a acusação é forjada, consistindo em um disfarce à real intenção norte-americana de deportá-lo aos Estados Unidos. Como relata a jornalista independente Amy Goodman, nos Estados Unidos Assange corre o risco de ser processado pelo crime de “‘comunicação com o inimigo’, um crime militar que carrega como sentença máxima a morte. A designação está na mesma categoria legal da Al Qaeda e do Taliban” (GOODMAN, 2012). A lei que impede a “comunicação com o inimigo” sinaliza, ao lado dos outros exemplos de regulamentações passadas e presentes que apresentei anteriormente, para alguns dos modos em que as sociedades ocidentais do presente regulam a circulação da fala. Poder-se-ia argumentar que exemplos que trazem a figura do “louco”, do “homossexual” (que não mais é impedido de se autodeclarar) ou do “denunciante” [whistleblower] são casos extremos, quase exceções ao princípio de livre circulação da fala previsto pela 1a Emenda americana e por outras legislações ocidentais. Porém, de forma a rebater essa hipótese, convém evocar autores como Giorgio Agamben (1998), Talal Asad (2009) e Ugo Mattei e Laura Nader (2008), cujos trabalhos, no campo do direito e da antropologia, têm demonstrado como as instituições ocidentais, em nome do Estado de Direito, manobram a lei de forma a expropriar, pela via militar e econômica, riquezas e liberdades tanto em seus próprios territórios como bem além deles. Nosso exercício de crítica no presente trabalho requer que nos perguntemos pelas condições de inteligibilidade que legitimam certas regulações da fala como “livres” ou “democráticas” e outras como “dogmáticas”
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ou “antidemocráticas”. Minha hipótese é a de que ambas as formas de regulação –– isto é, a noção islâmica de blasfêmia e a noção ocidental de liberdade de expressão –– estão ancoradas em ideologias específicas sobre a linguagem, as quais, apesar de distintas, convergem e se interrelacionam em vários pontos.
3 Ideologias sobre a linguagem Em 1979, Michael Silverstein, um antropólogo com larga formação linguística, escreve um artigo programático em que propõe o termo “ideologia linguística”. O argumento central de seu texto é que qualquer uso da língua é inextrincavelmente associado a uma ideologia sobre o que seja a língua (ou sobre sua(s) função(ões) ou sobre seus modos de funcionamento). Assim, os usos da língua, ou sua pragmática, associam-se a representações ideológicas sobre o funcionamento da língua, ou sua metapragmática. Por exemplo, em francês, o sistema pronominal associa-se a matrizes ideológicas que afetam a própria estrutura da língua: o uso de tu e vous indica diferentes graus de relacionamento entre os falantes e o uso da segunda pessoa do plural, vous, direcionado a um falante que não se conhece, que é mais velho ou que ocupa uma posição socialmente superior, é automaticamente avaliado como “polido”, “correto”, “adequado”. Fenômenos semelhantes acontecem em todas as línguas: em português, essa distinção pronominal hierárquica acontece com as formas você/tu e o senhor/a senhora; em alemão, ocorre com du e Sie; em inglês, com you e Sir/Madam etc. Silverstein não emprega o termo “ideologia” conforme a tradição marxista de “falsa consciência” ou, ainda, conforme a tradição de Gramsci que associa ideologia a “consciência hegemônica”. Silverstein escreve a partir de uma tradição linguísticoantropológica que se vincula a Franz Boas e Benjamin Lee Worf, a qual percebe a ideologia em um nível mais básico e fundamental da cultura. A ideologia corresponde, para essa tradição, “aos níveis mais profundos da cultura e da sociedade, às pressuposições não ditas que, como algum tipo de ‘cimento social’, transformam grupos de pessoas em comunidades, sociedades e culturas” (BLOMMAERT, 2006, p. 510). Nos termos do debate ético/êmico, na fonologia e na antropologia, as ideologias linguísticas estão no nível ético, i.e., elas estão em um nível mais básico e universal do uso da língua.
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Para nos atermos à definição de Silverstein: “ideologias sobre a linguagem, ou ideologias linguísticas, são quaisquer conjuntos de crenças sobre a língua (ou linguagem) articuladas pelos usuários como uma racionalização ou justificação de estruturas e uso da língua percebidas” (SILVERSTEIN, 1979, p. 193). Defender que o uso da língua é indissociável de alguma representação sobre esse uso coloca linguistas e leigos no interior da mesma atividade ideológica ou metapragmática de submeter certos modos de falar a regimes ideológicos específicos. Silverstein é enfático ao nos alertar que, apesar de as ideologias nativas e científicas sobre a linguagem fazerem parte de empreendimentos distintos, não se deve levar adiante um orgulho “que automaticamente privilegia a assim chamada descrição ‘científica’, ou automaticamente condena a racionalização ideológica nativa” (SILVERSTEIN, 1979, p. 193). Assim, nós, leigos ou especialistas, ao falarmos em uma língua, falamos também sobre essa língua, suas funções ou sua forma (BLOMMAERT, 2011, p. 3). A meu ver, é nesse nível ideológico-metapragmático que repousa o dito problema de tradução intercultural entre a noção de blasfêmia e liberdade de expressão no contexto atual da onda de violência no mundo islâmico. De fato, duas economias de significação parecem estar em conflito: as ideologias de linguagem subjacentes ao discurso secular e liberal privilegiam uma visão de linguagem abstrata, atrelada a um modelo de comunicação que se encaixa perfeitamente nas ideias de Locke e Saussure, ao passo que as ideologias de linguagem sobre a ofensa e a injúria (linguística) do lado islâmico ancoram-se em uma visão de linguagem como habitação corpórea, em linha com a noção aristotélica de schesis (MAHMOOD, 2009). Tentarei desdobrar, na seção seguinte, as duas ideologias, mas não farei isso sem trazer também para discussão o caloroso debate entre categorias “éticas” e “êmicas” na fonologia e na antropologia, de forma a problematizar e complicar a visão que aposta em uma incomensurabilidade entre as ideologias linguísticas dos dois lados. De partida, aposto na hipótese de que a possibilidade de comunicação e compreensão entre os dois lados faz parte da nossa própria condição humana. Walter Benjamin e sua visão (ou ideologia) de linguagem como tradução será bastante útil para trabalhar essa hipótese.
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4 Incomensurabilidade na tradução intercultural? A visão secular sobre a liberdade de expressão nas sociedades ocidentais é pautada em uma ideologia de linguagem segundo a qual nossa relação com os signos é abstrata e incorpórea. A tradição linguístico-filosófica do mundo ocidental decalcou, ao longo de vários séculos, os signos do mundo material (KEANE, 2005; IRVINE, 1987). Antoine Arnauld e Claude Nicole, os autores da célebre Gramática lógica e racional de Port-Royal, perguntam-se, no ano 1662, o que distingue a fala humana dos sons produzidos por outros animais e como os humanos se tornaram capazes de comunicar aos outros aquilo que se passa em seus espíritos: Até aqui consideramos na fala apenas aquilo que ela tem de material, e que é comum, pelo menos quanto ao som, aos homens e aos papagaios. Resta-nos examinar o que ela tem de espiritual, que faz uma das maiores vantagens do homem sobre todos os outros animais, e que é uma das maiores provas da razão: é o uso que dela fazemos para significar nossos pensamentos, e essa invenção maravilhosa de compor a partir de 25 ou 30 sons essa variedade infinita de palavras, as quais não têm nada nelas mesmas de semelhante àquilo que se passa em nosso espírito, mas que nem por isso deixam de revelar aos outros todos os segredos desse último e de transmitir àqueles que nele não podem penetrar tudo o que concebemos, e todos os diversos movimentos de nossa alma (ARNAULD; LANCELOT apud LAHUD, 1977, p. 28-29).
Nessa citação dos lógicos de Port-Royal, encontram-se princípios caros ao durável legado dessa ideologia linguística e que, nas palavras dos autores, correspondem ao fato de que: (1) a linguagem, apesar de ter um lado material, só pode ser compreendida a partir de seu aspecto espiritual, ideacional, imaterial, incorpóreo; (2) as palavras são um veículo para que comuniquemos o que se “passa em nosso espírito” (mas são, ao mesmo tempo, distintas dele). Essa ideologia de linguagem encontrará sustentação teórica nas formulações de Ferdinand de Saussure, o célebre fundador da linguística como empreendimento científico. Em seu Curso de linguística geral, livro postumamente publicado, em 1916, Saussure, ao definir o objeto da linguística, apresenta-nos o “circuito da fala” a partir da figura que reproduzo:
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Figura 1- Circuito da fala
Fonte: Saussure (1998, p. 19).
Saussure nos apresenta “duas pessoas, A e B, que conversam”. Perceba-se, de partida, que o fluxo da conversa não envolve duas pessoas quaisquer, mas dois homens brancos (ou melhor, duas cabeças de homens brancos). O circuito da fala parte do cérebro do homem A, “onde os fatos de consciência, a que chamaremos conceitos, se acham associados às representações dos signos linguísticos ou imagens acústicas que servem para exprimi-los” (SAUSSURE, 1998, p.19). O homem A então emprega seus mecanismos de fonação para, intencionalmente, transmitir os conceitos (ou significados) por meio de imagens acústicas (ou significantes) para o homem B, que, a partir da audição, associará essas imagens acústicas aos conceitos correspondentes. O fluxo comunicativo imaginado por Saussure segue então o caminho inverso e assim sucessivamente. Nos termos de Saussure, tanto o homem A quanto o homem B compartilham uma língua, “uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (SAUSSURE, 1998, p. 22). Saussure dá, assim, uma formulação linguística à relação secular do indivíduo com a sociedade. Assim como a sociedade não é função de um indivíduo apenas, mas da coletividade dos indivíduos, organizados por meio do contrato social, “a língua não constitui, pois, uma função do falante; é o produto que o indivíduo registra passivamente” (SAUSSURE, 1998, p. 22). A língua seria, para Saussure, um fato social e a fala, um fato individual. Em uma franca atitude liberal, Saussure define a fala “como um ato individual de vontade e inteligência” (SAUSSURE, 1998, p. 22). Ou ainda: a fala “é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor” (SAUSSURE, 1998, p. 21). A ideologia linguística secular-liberal assume, assim, que o indivíduo tem soberania sobre sua própria fala, não cabendo ao Estado regular o Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 67-100 | janeiro-abril 2013
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curso que a fala venha seguir. Nos termos da Suprema Corte Americana, a liberdade de expressão deve circular em um “livre mercado de ideias” (BUTLER, 1997, p. 53), em consonância com a correlação entre liberalismo e economia, já apontada anteriormente. O papel do Estado, por meio de seu poder jurídico, seria assegurar a “livre” circulação dessas ideias. O livre mercado linguístico determinaria suas próprias regras; não caberia ao Estado de Direito interferir no fluxo da fala. Na mesma direção, defende Saussure que “a língua é um sistema que conhece somente sua ordem própria” (SAUSSURE, 1998, p. 31). Ou ainda: “A língua se transforma sem que os indivíduos possam transformá-la” (SAUSSURE, 1998, p. 89). Dentro do esquema conceitual dessa ideologia linguística, a relação do falante com a língua é abstrata. Em sua coluna de opinião no The New York Times, Stanley Fish já havia escrito sobre a controvérsia em torno das charges de Maomé. Na coluna de 12 de fevereiro de 2006, ele endossa os termos dessa ideologia linguística e diz que os editores do jornal dinamarquês Jyllands-Posten “não publicaram as charges em um esforço de endossar qualquer visão religiosa ou política; eles o fizeram gratuitamente, quase acidentalmente” (FISH, 2006) Isto é, os sujeitos secularesliberais não se vinculariam materialmente aos signos –– quando muito, o vínculo seria gratuito, quase acidental. Fish complementa: “[i]nteressados apenas em seguir um princípio abstrato –– a liberdade de expressão –– [os editores] exploram qualquer conteúdo que lhes apareça pela frente e o utilizam como exemplo do que o princípio deveria abarcar” (FISH, 2006, grifo nosso). Os fiéis muçulmanos que se ultrajaram com o filme A inocência dos muçulmanos e viram nele um ataque material às suas crenças estariam, nos termos dessa ideologia, incorrendo em erro conceitual, ao tratarem um “signo” como uma “coisa”, ao entenderem um “filme” como uma “pancada”. Como apontei anteriormente, um argumento comum na crítica secular foi o de que os fiéis muçulmanos fazem parte de um sistema de crenças incomensurável com a economia de significação ocidental. Qual seria, então, a economia de significação islâmica, ou melhor, sua ideologia linguística? A antropóloga Saba Mahmood, que tem feito um longo trabalho de campo no Cairo, procura delinear o modelo de significação predominante na tradição islâmica. É interessante que, ao descrever esse modelo, Mahmood prefere o termo “ícone”, em vez de “signo”. No vocabulário
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saussuriano, o signo está arbitrariamente (e não “necessariamente” ou “motivadamente”) ligado ao conceito que ele representa. O signo nessa tradição corresponderia à definição de “símbolo” para Peirce, a saber, um signo que se liga por meio de uma lei ou convenção ao seu objeto, à coisa que ele representa. A palavra “livro” não tem nenhum vínculo “material” com o objeto que representa –– tanto é assim que as línguas nomeiam diferentemente esse mesmo objeto. O “ícone”, nos termos de Peirce, se relaciona com o seu objeto pela via da semelhança formal. Uma fotografia compartilha alguns traços com o objeto fotografado –– ela é semelhante ao objeto e, portanto, motivada por ele. Mahmood (2009, p. 74) entende que “o poder do ícone repousa em sua capacidade de permitir que um indivíduo (ou uma comunidade) adentre uma estrutura que influencia o modo como alguém conduz sua ação no mundo”. Indo além da noção de signo como “imagem”, Mahmood aplica o termo ícone “a uma forma de relacionalidade que liga o sujeito a um objeto ou imaginário”. Mahmood busca na noção de schesis, proposta por Aristóteles, o modelo de relacionamento que os fiéis muçulmanos estabelecem com o Profeta, tido por eles não como um “signo referencial que é distinto da essência que denota” (MAHMOOD, 2009, p. 76), mas como um ícone de exemplaridade. Schesis significa relação. Os teóricos do pensamento aristotélico entendem que schesis “captura um sentido de habitação corpórea e da proximidade íntima que imbui tal relação”. Os termos mais próximos em grego seriam hexis e habitus, “ambos sugerindo uma condição corpórea ou temperamento que embasa uma modalidade de relação particular”. Quando visitou o Egito em 2008, Mahmood buscou entender em seu trabalho de campo os sentidos da injúria e da dor moral sentidas por fiéis muçulmanos quando da publicação da caricatura do Profeta pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. A maioria dos devotos por ela entrevistados condenou a então onda de violência, mas expressou um agudo pesar causado pelo modo satírico como Maomé foi representado. Transcrevo o excerto de um depoimento colhido por ela, de um jovem muçulmano britânico: Eu não gostei do que aqueles grupos enfurecidos fizeram ao queimar prédios e carros em lugares como a Nigéria e Gaza. Mas eu fiquei realmente machucado com a absoluta falta de compreensão da parte dos meus amigos seculares (que por sinal não são todos brancos; muitos são do Paquistão
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e Bangladesh) com relação à tristeza que pessoas como eu sentiram ao ver o Profeta insultado desse modo. Senti como se fosse um insulto pessoal! A ideia de que nós devíamos apenas passar por cima disso me deixou louco: se eles não se sentem ofendidos pelo modo como Jesus é apresentado (e, claro, alguns se sentem), por que esperam que todos nós deveríamos sentir o mesmo? Afinal, o Profeta não é o Mel Gibson ou o Brad Pitt, ele é o Profeta! (MAHMOOD, 2009, p. 74-75).
O comentário desse fiel muçulmano alinha-se, assim, a essa ideologia linguística segundo a qual assumimos uma relação corpórea de coabitação com os signos –– vistos não como símbolos ou meras representações convencionais de seus referentes, mas como ícones de uma exemplaridade mantida com o Profeta. Os devotos muçulmanos estabelecem uma relação de exemplaridade com Maomé: as palavras e ações do Profeta não são vistas necessariamente “como ordens, mas como modos de habitar o mundo, de um modo corpóreo e ético” (MAHMOOD, 2009, p. 75). Na medida em que Maomé é para o sistema de crenças islâmico uma “figura de imanência” (MAHMOOD, 2009, p. 76), a relação que os fiéis estabelecem com o ícone exemplar do Profeta não é abstrata nem mental. O modelo de circulação dos signos icônicos da fé muçulmana se assenta em uma ordem de habitação afetiva e corpórea, de tal modo que o sujeito se liga com o objeto de veneração a partir da relação de schesis. Trata-se de uma lei de significação que não é da ordem da mera representação ou comunicação, mas dos afetos e da vida. A composição e a circulação de vários gêneros devocionais no mundo islâmico atestam essa relação de coabitação. Por exemplo, nas ilhas Maurício e em outras partes do mundo islâmico, os poemas na’t (em árabe, “descrição, caracterização”) são cantados em situações rituais, como casamentos, em homenagem ao Profeta Maomé e a Medina, considerada sua cidade favorita. Patrick Eisenlohr (2006) analisa a disseminação atual desse gênero nas ilhas Maurício e observa a feição performativa dos poemas, “considerada um ato de piedade que transforma os sujeitos” (EISENLOHR, 2006, p. 231). O modo como o corpo deve ser usado na performance das canções baseia-se na própria “lógica de autoridade islâmica” (EISENLOHR, 2006, p. 232): a transmissão fiel do discurso religioso deve seguir “cadeias longas de interlocutores confiáveis”, as quais culmi-
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nam na própria figura material do Profeta. No Iêmen tribal, Steven Caton (1990) argumenta que as práticas discursivas devocionais, sobretudo as que se realizam de forma poética, são eminentemente materiais. Em sua etnografia, o autor demonstra que os poetas do Iêmen, ao reverenciarem Maomé, tornam real aquilo mesmo a que se referem: Um poeta na balah exclama, “Eu menciono Maomé (tantas vezes quanto) as estrelas no céu se movam”, e assim constitui a si mesmo como um tipo de muçulmano fiel. Em outro momento ele pode declarar, “É prazeroso para mim cantar a balah entre leões e homens”, e assim constitui a audiência que ele endereçou como pessoas honoráveis (CATON, 1990, p. 263).
No Egito, Hirschkind (2006) descreve como a circulação e recepção de fitas cassete contendo sermões sobre o Corão pressupõem modos corpóreos específicos de engajar o corpo na prática linguística (ou semiótica). Na escuta do sermão, o fiel, ao posicionar o corpo de formas socialmente estabelecidas, instala uma relação material com o Profeta. Ao falarem sobre sua atividade de escuta, os devotos “mimeticamente representam as narrativas” que escutam “mais ou menos do mesmo modo, incluindo as expressões faciais e posturais de medo, prazer ou tranquilidade” (HIRSCHKIND, 2006, p. 88). De acordo com o autor, as tradições éticas islâmicas atribuem um papel fundamental a esses modos de aprendizagem somática. No caso do Egito em particular, argumenta Hirschkind (2006, p. 81-82), “esse tipo de corpo sintonizado com o Corão, com os seus repertórios de afetos e expressões, tornou possível a forma de sociabilidade religiosa que o Renascimento Islâmico tem tentado desenvolver e estender”. Não quero aqui defender que a ideologia linguística que concebe a relação entre ícone e intérprete como coabitação opere do mesmo modo em todas as sociedades islâmicas, muito menos que as complexas formas de significação de cada sociedade sejam tomadas como um conjunto monolítico4. Utilizo-me aqui do insight de Judith Butler sobre a universalidade de uma dada lei. Em seu conhecido Problemas de gênero, Butler (2003, p. 113) defende que conceber uma lei como universal (ou como uma categoria ética, nos termos do vocabulário que discutiremos a seguir) não é o mesmo “que afirmar que ela opera da mesma maneira em diferentes culturas, ou que determina a vida social de modo unilateral”. A autora acrescenta:
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Afirmar a presença universal de uma lei na vida social não significa, de modo algum, afirmar que ela existe em todos os aspectos da forma social considerada; mais modestamente, isso significa que a lei existe e que opera em algum lugar em cada formação social (BUTLER, 2003, p. 113).
Assim, entendo nos termos de Butler o funcionamento da ideologia de linguagem como coabitação nas culturas islâmicas. Voltando, então, a uma das perguntas que animam este artigo: seriam as ideologias linguísticas seculares e muçulmanas incomunicáveis? Haveria uma incomensurabilidade tal entre os dois modelos que impediria a intercompreensão ou a tradução intercultural?
5 O debate ético/êmico na linguagem e na cultura Fonética e fonologia não são dois nomes diferentes para descrever a mesma atividade. A fonética é o campo do conhecimento que estuda os sons que o corpo humano é capaz de produzir, dadas as características fisiológicas do aparelho fonador humano. A fonologia estuda o modo como as línguas selecionam um quadro específico desses sons para produzir significado. Se você colocar a língua entre os dentes da frente e aspirar um “s”, produzirá um som que os falantes do inglês empregam, por exemplo, no início da palavra “think”. Em inglês, esse som se distingue daquele que produzimos ao aspirar um “s” levando o dorso da língua até os alvéolos dos dentes superiores, como em “sink”. Em certa medida, os falantes do português simplesmente “não escutam” o primeiro som de “s”, uma vez que em português ele não é usado como unidade distintiva. Tanto faz alguém pronunciar “santo” do primeiro ou do segundo modo –– não haverá mudança de significado; o ouvinte certamente perceberá que o falante produziu o som de um modo não usual, que tem algum “problema” de dicção etc., mas isso não é significativo do ponto de vista da língua. A fonética descreverá o primeiro som como um fonema fricativo interdental, /θ/, e o segundo como um fonema fricativo alveolar, /s/. Ambos os sons fazem parte de nossa habilidade fonética e universal de produzir sons. A fonologia descreverá como línguas específicas selecionarão (ou excluirão) esses e outros sons para produzir significado. Perceba que em português o fonema [θ] simplesmente não existe. Em fonologia, diz-se que a distinção entre [θ] e [s] é fonêmica para o inglês, mas não para o português. Dito de outro modo, o fonema [θ] em inglês estabelece com
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outros sons uma relação distintiva, produzindo significado, enquanto em português ele simplesmente não ocorre, salvo em algumas ocasiões, porém sem produzir distinção significativa para a língua. Partindo dessa distinção entre os pontos de vista fonético e fonêmico na descrição dos sons, o linguista (e também antropólogo) Keneth Pike, em 1954, abreviou os pontos de vista como ético/êmico e os aplicou à compreensão da atividade cultural humana de um modo geral. Segundo Pike, em uma abordagem ética, o analista se atém ao caráter generalizável e universal do fenômeno observado, ao passo que, em uma abordagem êmica, o analista se preocupa com a feição local e particular de um determinado fenômeno. O autor define que, em uma análise ética, os critérios, classificações e tipos para análise são “criados” pelo analista, ao passo que os padrões êmicos são “descobertos” na própria investigação (PIKE, 1954, p. 8). A partir dos anos 1960, a antropologia incorporou os termos ético e êmico à sua agenda investigativa. Nos termos de Michael Agar, os dois pontos de vista não podem ser entendidos como meros “níveis” ou como “empreendimentos distintos”: Ético e êmico, o universal e o particular histórico, não são dois tipos de entendimento separados quando uma pessoa tenta entender outra. Ético e êmico são ambos partes de qualquer compreensão (AGAR, 2011, p. 39, grifos do autor).
O autor nos lembra que a etnografia, afinal, vem nos ensinando há anos como entender as diferenças humanas a partir das similaridades humanas. Apesar de, fonologicamente falando, um falante de português ser surdo à realização do som [θ] e mesmo não ser capaz de produzi-lo antes de uma instrução formal, ele ou ela pode, mesmo assim, aprender como realizar esse som e como utilizá-lo significativamente no contexto de outra língua que estabeleça esse fato fonêmico. A capacidade fonética de produzir o som [θ] é ética, universal, humana e pode, em princípio, servir de ponte para que um humano adentre o espaço êmico de outra língua. É próprio do trabalho de linguistas e antropólogos lidar com categorias éticas e êmicas. Quero chamar atenção aqui para o fato de que partilhamos, como humanos, capacidades éticas comuns. As teorias linguísticas lidam com a inter-relação entre fatos éticos e êmicos de modo diferente. A mais forte posição ética em linguística é a hipótese que Chomsky lançou sobre a Gramática Universal, um conjunto de princípios sintáticos Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 67-100 | janeiro-abril 2013
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próprios da genética humana que, segundo o paradigma gerativista, estaria na base de todas as línguas e da própria mente humana (CHOMSKY, 1986). Jakobson, nos anos 1940, já havia percebido que crianças em estágio pré-linguístico, quando apenas balbuciam sons, são capazes de realizar todo e qualquer som presente nas línguas do mundo. Nos termos de Jakobson, a aquisição de uma língua pode ser pensada como um esquecimento do que, em certa medida, a criança já era capaz de produzir. Para entrar numa língua, a criança precisa esquecer aqueles sons próprios da sua capacidade ética mas que não pertencem às distinções êmicas da língua onde ela adentra (JAKOBSON, 1968).
6 Da antropologia linguística à política O que o debate ético/êmico em linguística e antropologia pode nos ensinar sobre o problema intercultural entre blasfêmia e liberdade de expressão? Haveria uma impossibilidade de tradução própria aos fiéis muçulmanos feridos com a caricatura do Profeta e do Islã no filme A inocência dos muçulmanos, uma incapacidade cognitiva que os impediria de enxergar o filme como uma mera caricatura ou representação? Ou seriam os críticos liberais incapazes de perceber o sentido material e corpóreo dos signos da fé islâmica? Aliás, dado o que vimos até aqui, as coisas podem ser postas assim de modo dicotômico? Acredito que os termos do debate ético/êmico, associados à visão de circulação de discursos nas sociedades ocidentais e islâmicas que apresentei aqui, apontam para o fato de que limite, regulação e imaginação são termos éticos de ambos os modelos de circulação de signos, o ocidental e o islâmico. Tanto o discurso regimentado pela 1a Emenda quanto o discurso islâmico imaginam o modo como a fala e a escrita devem circular, como devem ser recebidas, a que formas de agência os sujeitos devem aderir. As ideologias de linguagem das duas civilizações, pelo modo como descrevi, parecem ser categorias êmicas: o discurso secular-liberal basear-se-ia em uma ideologia abstrata e desencarnada de linguagem como transmissão de informação e o discurso religiosoislâmico basear-se-ia na ideologia corpórea e afetiva de relacionalidade entre signo e intérprete, de acordo com o conceito aristotélico de schesis.
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Tenho dúvidas, no entanto, sobre a própria pureza êmica dessas ideologias linguísticas. Por exemplo, encontramos nos escritos sobre linguagem de Walter Benjamin –– um escritor ocidental –– um modelo de significação (ou uma ideologia de linguagem) que entende o signo não como sinal a ser transmitido, mas como ícone de coabitação e tradução. Explicarei alguns termos dessa ideologia, de forma a sugerir que as possibilidades de tradução entre os termos da blasfêmia e da liberdade de expressão estão inscritas nas próprias formas êmicas em que o problema da impossibilidade de tradução foi formulado. O jovem Benjamin escreve em 1916 o ensaio “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens”, que antecipa o célebre ensaio sobre a tarefa do tradutor. Naquele ensaio primeiro, Benjamin apresenta uma reflexão sobre uma mística da linguagem. “Os termos místicos que formam parte de seu léxico”, aponta Beatrice Hanssen (2004, p. 56), “são ‘magia da linguagem’, ‘linguagem pura’, ‘palavra’, ‘nome’, ‘símbolo’ e sistema –– um termo que Benjamin usa sem conotações racionalistas”. Tanto nesse ensaio seminal como em “A Tarefa do tradutor”, escrito em 1921, a linguagem comparece como um fenômeno cuja função primordial é a de nomear. Benjamin anuncia, já no ensaio de 1916, uma formulação que ganharia um enorme peso em sua teoria da tradução: a ideia de que a linguagem não é comunicação, ela não serve ao transporte mecânico de sentidos de um lugar para o outro. Defender que a linguagem é transmissão de sentidos seria, para Benjamin, uma concepção burguesa de língua. Segundo Benjamin, a visão burguesa “afirma que o meio [Mittel] da comunicação é a palavra; seu objeto, a coisa; seu destinatário, um ser humano” (BENJAMIN, 2011, p. 55). Benjamin critica ainda o caráter arbitrário e imaterial atribuído à linguagem pela concepção burguesa: A palavra humana é o nome das coisas. Com isso, não vigora mais a concepção burguesa da língua segundo a qual a palavra estaria relacionada à coisa de modo casual e que ela seria um signo das coisas (ou de seu conhecimento), estabelecido por uma convenção qualquer (BENJAMIN, 2011, p. 63).
Como vimos na caracterização da ideologia linguística secular-liberal, a noção de arbitrariedade e imaterialidade é central ao modo como essa ideologia posiciona o signo. Os fiéis muçulmanos que tomaram a caricatura de Maomé e do Islã como signos materiais ou como pancadas
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estariam, nos termos da ideologia secular-liberal, incorrendo em erro conceitual. Em outras palavras, como propõe Mahmood (2009, p. 73), a agitação dos muçulmanos seria “o produto de uma confusão fundamental sobre a materialidade de uma forma semiótica particular que é apenas arbitrariamente, não necessariamente, ligada ao caráter abstrato de suas crenças religiosas”. Benjamin, contrariamente à ideologia secular-liberal, investe em um modelo de significação segundo o qual as formas simbólicas são ícones. Elas guardariam, com aquilo que representam, uma relacionalidade e uma coabitação fundamentais. “A linguagem não fornece jamais meros signos”, acrescenta Benjamin à passagem anterior. Ela é, ao contrário, um meio essencialmente material. Nesse sentido, Benjamin declara: “Aqui é preciso pensar naquilo que as coisas têm em comum, em termos de material, em sua comunicação” (BENJAMIN, 2011, p. 71). O ano em que Benjamin escreve esse artigo, 1916, é bastante significativo. No mesmo ano, anotações das aulas ministradas por Saussure em Genebra, entre 1910 e 1912, foram publicadas postumamente, por alguns de seus alunos, na forma do Curso de linguística geral –– texto fundamental da linguística e central na construção da modernidade e dos modernos. O Curso irá selar essa concepção burguesa de linguagem da qual Benjamin quer se afastar. O circuito da fala proposto por Saussure, conforme a Figura 1, é central para o modo como os discursos seculares e liberais imaginam a circulação dos signos na sociedade (BAUMAN; BRIGGS, 2003). Como vimos, Benjamin critica a função de comunicação da linguagem e, em lugar dela, propõe que a função fundamental da linguagem é nomear. Cito Benjamin: No âmbito da linguagem, o nome possui somente esse sentido e essa significação, de um nível incomparavelmente alto: ser a essência mais íntima da própria língua. O nome é aquilo através do qual nada mais se comunica, e em que a própria língua se comunica a si mesma, e de modo absoluto. No nome, a essência espiritual que se comunica é a língua (BENJAMIN, 2011, p. 56, grifos do autor).
Não sendo um instrumento de comunicação, a linguagem, a partir de sua função nomeadora, nada comunica, nada transmite; nos termos do filósofo da linguagem John L. Austin (1962), a linguagem, em vez de comunicar, age, realiza, opera; nos termos desse artigo de Benjamin, 90
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nada se comunica através da linguagem, mas dentro da linguagem. Pensemos por exemplo no nome próprio –– o nome próprio é aquilo que, de acordo com qualquer teoria ou prática de tradução, não se traduz. De uma língua a outra, o nome não tem nada a comunicar. No entanto, apesar de não se traduzir como mera transmissão de sentido, o nome, de uma língua a outra, opera. Fico pensando em meu estranhamento a cada vez que meu nome próprio é pronunciado em outra língua –– ele é o mesmo nome, tem a mesma escrita, mas, quando submetido à dispersão e ao exílio em outra língua, é dito de outro modo por corpos submetidos a outros regimentos corporais, a outras regras, em outros territórios. Não há nada sendo comunicado, mas há algo se realizando. Esse algo remete àquilo que Benjamin chama de “pura língua” –– um domínio de traduzibilidade que marca a afinidade de todas as línguas (porque ali elas coincidiriam no que visam, no que querem dizer) –– e que o tradutor precisa libertar, na sua língua, na língua que tem nome próprio. Entramos aqui, nos termos de Pike, na criação de um domínio ético, universal, transcultural. Esse domínio transcultural da “pura língua” marcaria, segundo Benjamin, a traduzibilidade de todas as línguas. A pura língua seria uma região ética e universal, por trás de todas as outras línguas, nascidas depois do mito de Babel, o domínio de dispersão e confusão criado por Deus contra o entendimento em uma língua única. Benjamin posiciona a tradução no centro da teoria linguística –– eu arriscaria propor que é a tradução o próprio do linguístico ou do semiótico, aquilo que os define como tais. Diz Benjamin: É necessário fundamentar o conceito de tradução no nível mais profundo da teoria linguística, pois ele possui um alcance e um poder demasiado amplos para ser tratado de uma maneira qualquer num momento posterior, como algumas vezes se pensa. Tal conceito adquire sua plena significação quando se percebe que toda língua superior (com exceção da palavra de Deus) pode ser considerada como tradução de todas as outras. Graças à relação acima mencionada entre as línguas como uma relação entre meios de diferente densidade, dá-se a traduzibilidade das línguas entre si. A tradução é a transposição de uma língua para outra por meio de uma série contínua de metamorfoses. Séries contínuas de metamorfoses, e não regiões abstratas de igualdade e similitude, é isso que a tradução percorre (BENJAMIN, 2011, p. 64, grifo do autor).
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Nenhuma língua pode ser pensada como um objeto completo em si mesmo. Lê-se no princípio benjaminiano que a traduzibilidade das línguas é precisamente sua condição de possibilidade. A relação entre as línguas (“meios de diferente densidade”) é o que permite que essas línguas sobrevivam. As línguas, assim como os textos originais, trazem inscritas em si a lei da tradução –– uma dívida impagável que garante a própria sobrevida do idioma ou do original. E essas línguas, apesar de nunca virem a se comunicar, carregam, por sua traduzibilidade comum, um ponto de contato. Na leitura que Derrida faz do ensaio “A tarefa do tradutor”, escrito por Benjamin em 1921, Deus, ao impedir uma língua única e racional, “interrompe também a violência colonial ou o imperialismo linguístico” (DERRIDA, 2002, p. 25). Os humanos são banidos ao território do êmico, e precisarão recorrer ao trânsito ético, à tradução, de forma a se entenderem. Eis a inevitabilidade da tradução. Em Babel, anuncia-se a tradução como lei, como resultado da Queda dos homens por terem tentado construir uma torre que chegasse até o céu. Diz Derrida: Ele os destina à tradução, ele os sujeita à lei de uma tradução necessária e impossível; por conseguinte, do seu nome próprio traduzível-intraduzível, ele libera uma razão universal (esta não será mais submetida ao império de uma nação particular), mas ele limita por isso a universalidade mesma: transparência proibida, univocidade impossível (DERRIDA, 2002, p. 25).
Tal como Benjamin (2011, p. 102) anunciara, a tradução torna-se a lei. E Derrida acrescenta... “a lei, o dever e a dívida, mas a dívida que não se pode mais quitar” (DERRIDA, 2002, p. 25). A intercompreensão e a tradução intercultural são possíveis porque os humanos partilham um nível ético de traduzibilidade comum. Como afirma Agar (2011, p. 46), “nós não poderíamos traduzir de alguém para outro alguém se não houvesse conexões humanas a partir das quais podemos traduzir as diferenças”. A impossibilidade do discurso secular-liberal de enxergar o outro em si mesmo, ou o território ético comum partilhado por mim e pelo outro, é o que motiva as afirmações de que o liberalismo é “anêmico” em suas crenças religiosas e reivindicações morais, ao contrário da fé islâmica5. Ou seja, os sujeitos liberais encarariam, por definição, as formas semióticas como abstratas e imateriais, enquanto a prática de
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leitura de muçulmanos devotos, e apenas ela, seria carregada de uma estrutura moral e confundiria o signo (a representação de Maomé) com o objeto (Maomé como imanência). No entanto, a outra ideologia linguística ocidental que trago como contraponto ao liberalismo pressupõe que um intérprete lida com um ícone de um modo ao mesmo tempo nãoarbitrário (ou místico) e material. A dor moral sentida por muitos fiéis e os desdobramentos violentos da divulgação da caricatura de Maomé e do filme A inocência dos muçulmanos apontam para o fato de que precisamos examinar mais criticamente as categorias êmicas por meio das quais o problema envolvendo a liberdade de expressão e a blasfêmia foi colocado de modo simplista. No discurso êmico liberal-secular, o funcionamento da injúria foi simplesmente ignorado; a identificação da “causa” da violência bastaria –– como fez um dos autores das charges da revista Charlie Hebdo ao afirmar que “a responsabilidade pelas mortes é do assassino” ––, e não de quem a incitou6.
Considerações finais O termo “responsabilidade” foi frequentemente evocado na discussão sobre os episódios violentos circundando as caricaturas de Maomé. O argumento básico daqueles que defendem o modelo liberal e irrestrito da liberdade de expressão é o de que “com a liberdade de expressão vem a responsabilidade”. A meu ver, o recurso à noção de responsabilidade desvinculado de uma crítica ou do próprio desmantelamento da ideologia secular-liberal que compreende a ação como estando fora das palavras ou das imagens é inócuo. Como ficou evidente na resposta do cartunista francês, ao se defender ele preserva toda a estrutura da ação injuriosa: não há nada no modo como representei que torne violento o que representei; a falha foi dele, do outro, que foi incapaz de enxergar a minha representação como uma expressão gratuita de ideias imateriais e desencarnadas. Uma resposta semelhante à do cartunista francês foi oferecida pelo jornal Jyllands-Posten em 2006, após a onda de violência que cercou a publicação das imagens do Profeta. O jornal afirmou que as imagens “não tinham a intenção de ser ofensivas, nem estavam em desacordo com a lei dinamarquesa, mas elas indisputavelmente ofenderam muitos muçulmanos, razão pela qual nos desculpamos” (FALLOUT..., 2006). Percebase que o caráter performativo das imagens é simplesmente apagado. São Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 67-100 | janeiro-abril 2013
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eles, os muçulmanos devotos, que erraram na leitura; é a ideologia de linguagem deles que é equivocada. A publicação das imagens, afinal, estaria de acordo com a lei. Note-se ainda que o jornal recorre à noção de intenção. De acordo com a ideia de intenção, tal como formulada pelo discurso filosófico e moral do Ocidente (SEARLE, 1983), a origem da ação estaria no indivíduo, plenamente circunscrito e senhor de si. As práticas sociais que esse indivíduo partilha com outros, e que em última medida determinam a recepção e o modelamento da intenção, são irrelevantes para esse discurso. Ao longo deste artigo, tentei demonstrar que compreender o modo como a ação das palavras e das imagens tem sido pensada no Ocidente é um elemento central na crítica aos modos de posicionar violentamente o Outro –– especialmente aquele que ocupa a fé, a região e a raça que não se quer habitar. Como bem formula o antropólogo Webb Keane (2009, p. 59), “o modo como alguém entende palavras e imagens tanto expressa quanto reforça a sua compreensão da ação social, a importância moral dessa ação e, portanto, suas consequências políticas”. Gostaria de encerrar reiterando que entender a injúria e a dor moral daqueles afetados por imagens ofensivas é uma tarefa ética por natureza. E aqui brinco com as possibilidades êmicas do termo “ético” em português: ético transborda, na fronteira do idioma português, o limite da escolha moral; ele é, ao mesmo tempo, moral e fon-ético –– língua pura, elemento de uma traduzibilidade partilhada por todos os idiomas. É aquilo que, em última instância, torna tanto chargistas seculares como devotos ofendidos, ambos, humanos. Esse problema de tradução intercultural, em que o original cresce como uma onda de violência, sugere que a visada benjaminiana da linguagem como tradução e a desconstrução da visão burguesa de linguagem que ela acarreta é mais que atual –– ela é urgente e premente.
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Notas 1 As citações dos textos escritos em língua estrangeira, cuja versão em
português não existe ou às quais não tive acesso, foram traduzidas por mim. 2 As motivações para o ataque à embaixada dos Estados Unidos parecem ultrapassar a divulgação do filme em si. Há evidências de que a morte do embaixador já estava sendo planejada, provavelmente pelo grupo Jihad, braço da Al Qaeda na Líbia. Sobre a questão ver Amanpour (2012a). 3 Escrevendo sobre a tradição liberal, o antropólogo Talal Asad (2009, p. 25) define os termos básicos da linguagem do liberalismo, quais sejam: “autonomia individual, liberdade de troca (econômica, política e social), limitação do poder do Estado, Estado de direito [rule of law], autodeterminação nacional e tolerância religiosa.” Essa linguagem não é livre de contradições. Terei (muito) mais a dizer sobre isso adiante. 4 Para outras abordagens das ideologias linguísticas ou semióticas de comunidades islâmicas, ver Leezenberg (2006), Messick (1993), Shryock (1997) e Starrett (1995). 5 Ao discutir o caso dos cartoons dinamarqueses, Stanley Fish defendeu que o liberalismo se recusa a adotar qualquer posição moral: a moralidade do liberalismo é a “moralidade de se retirar de qualquer moralidade em qualquer modo forte e insistente” (FISH, 2006). Zizek comenta o caso de A inocência dos muçulmanos e problematiza a posição de ambos “liberais anêmicos” do Ocidente e “fundamentalistas passionais” do Islã (ZIZEK, 2012). 6 Christiane Amanpour, da CNN, entrevistou em 19/9/2012 o cartunista francês,
que se chama Luz (AMANPOUR, 2012b). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 67-100 | janeiro-abril 2013
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O confronto entre a jurisdição penal global e a soberania estatal
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Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Professor adjunto e pesquisador da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho (UGF). Áreas de interesse: Teoria Política, Teoria do Estado, Relações Internacionais e Teoria do Direito. Publicou o livro Secularização inacabada (2011), diversos artigos em periódicos científicos e capítulos de livros como “O Estado na filosofia política de Carl Schmitt”, na revista O que nos faz pensar, do Departamento de Filosofia da PUC-Rio; “A despolitização da democracia liberal no pensamento de Carl Schmitt” na Revista Brasileira de Ciências Sociais; “Carl Schmitt und der Autoritarismus des Estado Novo in Brasilien” [Carl Schmitt e o autoritarismo no Estado Novo brasileiro] e “Die Sichtbarkeit des Politischen: Eine Studie über Schmitts Interpretation der Staatslehre von Hobbes” [A visibilidade do político: um estudo sobre a interpretação de Schmitt sobre a Teoria do Estado de Hobbes].
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Resumo O 11 de setembro provocou profundas mudanças na política internacional. Desde então, elevou-se ainda mais a intensidade da inexorável tensão entre o universalismo da jurisdição de instituições supranacionais e o particularismo da soberania estatal. De um lado, se intensifica o movimento de proteção dos direitos humanos mediante a proliferação de instituições supranacionais, que concebem o direito a partir de um imperativo universalista e o alçam acima da jurisdição territorial dos Estados. De outro, associações políticas dotadas da forma estatal reivindicam sua independência e autodeterminação. O confronto entre ambas as perspectivas se torna inequívoco à luz da investigação da pretensão de jurisdição global do Tribunal Penal Internacional e da razão de Estado da instituição estatal. O propósito deste artigo é examinar a tensão entre a perspectiva universalista do direito de punir do Tribunal e a postura particularista da razão de Estado da soberania estatal. Palavras-chave: Jurisdição global. Soberania estatal. Tribunal Penal Internacional. Razão de Estado. Direitos humanos. Estado-nação.
Abstract The September 11 attacks caused deep changes in international politics. Since then, the intensity of the inexorable tension between the universalism of the jurisdiction of supranational institutions and the particularism of state sovereignty has further increased. On the one hand, the movement to protect human rights intensifies by means of the multiplication of supranational institutions that conceive the Law from a universalist imperative and set it up above the territorial jurisdiction of states. On the other hand, statebased political associations claim their independence and self-determination. The clash between both perspectives becomes unequivocal in light of the investigation of the International Criminal Court’s intention to create a global jurisdiction, and the raison d’État of the state-based institutions. The purpose of this paper is to examine the tension between the universalist perspective of the Court’s right to punish and the particularistic posture of state sovereignity’s raison d’État. Keywords: Global jurisdiction. State sovereignty. International Criminal Court. Raison d’État. Human rights. Nation-State. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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Introdução: imagens de mundo em conflito na política internacional Ao direito internacional, em particular ao direito penal internacional1, subjaz uma tensão entre universalismo e particularismo, soberania estatal e jurisdição universal, Estado-nação e organismo supranacional, entre razão de Estado e a pretensão global de proteção dos direitos humanos. A incursão nas tensões imanentes ao direito das gentes (jus gentium) revela, antes de tudo, um conjunto de visões de mundo em permanente conflito2. A investigação de algumas teorias dedicadas à compreensão do direito internacional contemporâneo descortina crenças que projetam cenários antagônicos no âmbito das relações exteriores. De um lado, o conhecido diagnóstico de crise3 do modelo de direito internacional westfaliano, desencadeada por um acelerado processo de globalização, fortalece a crença na dissolução da soberania dos Estados-nação. A proliferação de organismos supranacionais, a internacionalização dos mercados de trabalho e financeiro, a maior interdependência entre as economias estatais provocariam a redução do raio de ação dos governantes. A dissolução de um mundo bipolar, o aparecimento do ordenamento de grandes espaços, a criação de novas formações políticas e econômicas, a exemplo da União Europeia, seriam indicadores do fim do prazo de validade da soberania estatal. Na própria União Europeia, porém, há Estados membros cujo propósito é preservar seu espaço nacional. Estariam “mais interessados no modo de resolução predominantemente intergovernamental, que já existe, do que na consolidação de instituições supranacionais, cujas decisões abrangessem um número cada vez maior de áreas da política” (HABERMAS, 2006, p. 93). A despeito disso, ainda sob o ponto de vista de uma perspectiva cuja convicção reside no fim da soberania estatal, encontra-se a descrição de uma sociedade na qual o fundamento principal se alicerça na contingência ou imprevisibilidade. Tal tipo de sociedade se caracteriza por um acelerado desenvolvimento científico, tecnológico, industrial e econômico provocado à custa de riscos muito acima de sua capacidade de prevê-los. A globalização do risco4 provocada, entre outras razões, pela intervenção desmedida no meio ambiente, pelas sucessivas crises financeiras, pela expansão descontrolada dos mercados, atrofia as categorias de espaço e tempo e reduz a capacidade de ação e decisão. A fim de enfrentar os prejuízos das mudanças provocadas pelo desenvolvimento em diferentes âmbitos, a exemplo do industrial, 104
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a teoria da sociedade dos riscos compartilhados exigiria decisões, cuja responsabilidade deveria ser transferida de instituições nacionais para organismos supranacionais. Em todas as teorias do risco, apoiadas na concepção hegemônica do liberalismo, o surgimento de outros centros de poder, cuja emergência resultaria da globalização, como corporações multinacionais, instituições internacionais, organizações não governamentais, redes terroristas, seriam evidências da falência da soberania estatal. Essas ideias “aparecem como questões do Estado e seu pretenso ou previsto desaparecimento como instituição política soberana” (JENNY; PIN-FAT, 2004, p. 1)5. De outro lado, afirma-se que o Estado-nação, a despeito das transformações na ordem internacional, ainda está de pé e que o declínio de sua soberania provocaria a perda de proteção de seus cidadãos. Sob esse ponto de vista, a soberania estatal seria uma manifestação da independência, autodeterminação e do status de igualdade entre distintos povos. Inseridos em sua respectiva forma política do Estado, os agrupamentos humanos encontrar-se-iam no estado de natureza hobbesiano6 interestatal. A despeito de mudanças nessa forma clássica da interestatalidade, é possível perceber que a concentração de poder conquistada pelo Estado moderno na disputa com outras instituições, sobretudo com a Igreja Romana, não só se mantém como aumentou no caso de certos países. O monopólio da força coercitiva — uma das manifestações mais evidentes da soberania — pelas instituições estatais pode ter sofrido atrofia em muitas unidades políticas. Todavia, também é verdade que alguns governantes de Estados conduzem uma política soberana, não só em virtude da força de sua economia, mas também em razão de se constituírem em potências bélicas. Detêm o monopólio de uma tecnologia cujo desenvolvimento resultou no aumento da extensão da letalidade de suas armas a ponto de alcançarem a capacidade de varrer todo planeta pelos ares. É inegável que instituições estatais alçadas ao status de potências atômicas exercem seu poder soberano na arena da política internacional e, ainda que promovam políticas de desarmamento, jamais abrem mão de seu arsenal nuclear. O aumento do desequilíbrio do sistema interestatal acentuou-se pela notável assimetria do arsenal bélico associado, com frequência, ao acelerado desenvolvimento econômico. A erosão do sistema mundial fundado no equilíbrio entre unidades estatais reconfigurou a política internacional, mas não solapou a soberania de alguns Estados. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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Muito pelo contrário, o contínuo investimento na ciência e tecnologia da indústria bélica eleva a letalidade das armas ao nível cósmico. O brilho da soberania irradiado por alguns Estados, como Estados Unidos, China, Rússia e França se manifesta por meio de conquistas realizadas em uma velada corrida armamentista, cuja tecnologia se orienta pelo horizonte da guerra planetária que, para a indústria bélica, deixou de ser uma ficção há muito tempo. Na esteira das análises de Michel Foucault e Giorgio Agamben, alguns estudiosos sustentam que “a forma predominante de poder no mundo contemporâneo continua a ser o poder soberano” (JENNY; PIN-FAT, 2004, p. 4). O maciço investimento em armas de alcance global indica ser muito apressado proferir a sentença cujo teor decreta o fim da soberania estatal. Por essa razão, é imprescindível proceder a uma investigação sobre a relação entre a razão de Estado e a jurisdição global do Tribunal Penal Internacional. Há, ainda muito em voga, um conjunto de ideias fundado na compatibilidade entre democracia e globalização. Segundo essa vertente, a globalização, ao promover a extensão dos direitos humanos, não se restringiria à internacionalização do mercado, mas possibilitaria uma sociedade civil global, organizada sob a forma de um governo cosmopolita. No âmbito do direito internacional penal, a formação de instituições supranacionais, em que um dos maiores exemplos é o Tribunal Penal Internacional, representaria a pavimentação de um caminho rumo à construção de um Estado transnacional. Ao contrário dessa tendência, poder-se-ia mencionar a posição de Chantal Mouffe, segundo a qual “o governo democrático requer a existência de unidades onde a soberania popular pode ser exercida e isto implica fronteiras. É uma perigosa ilusão imaginar a possibilidade de uma cidadania cosmopolita, que seria baseada numa ideia exclusivamente abstrata de humanidade” (MOUFFE, 2001, p. 24). Além disso, ao seguir essa concepção de pensamento, cuja substância reside na continuidade e necessidade de manutenção da soberania estatal, observa-se que a globalização econômica, acompanhada de suas crises financeiras, exige um Estado cada vez mais forte e, portanto, soberano, em condições de fornecer uma orientação ao estado de natureza econômica. A defesa da soberania estatal representaria, nessa linha interpretativa, um limite à ilusão do autogoverno das relações econômicas e se caracterizaria pela primazia do político frente ao econômico.
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Há, com certeza, uma miríade de teorias jurídicas e políticas das relações internacionais cujo teor projeta distintas imagens de mundo, mas todas elas, de uma forma ou de outra, apresentam um modo distinto de compreender o político. A Carta das Nações Unidas, criada em 1945 com a finalidade de assegurar a paz e manter a segurança nas relações internacionais, ao acolher o repúdio à guerra de agressão, buscou retirar dos Estados o meio mais importante de sua soberania: o monopólio da decisão última do direito de fazer a guerra (jus bellum) (VOIGT, 2008, p. 170). A Carta, elevada por alguns à posição de Constituição Mundial, seria capaz de converter o estado de natureza hobbesiano das relações internacionais em estado de direito kantiano por intermédio da substituição jus ad bellum pelo jus in bellum7. A condenação da guerra de agressão pela Carta das Nações Unidas, cujo teor estabelece a superioridade do direito internacional sobre o ordenamento jurídico nacional, é mais uma expressão por meio da qual se busca negar o político e legitimar a intervenção “humanitária”: A organização mundial que, nesse meio-tempo conta com 193 Estados membros, tem uma constituição, no verdadeiro sentido da palavra, que estabelece procedimentos segundo os quais violações de regras podem ser apuradas e punidas. Desde então não há mais guerras justas ou injustas, mas apenas guerras legais ou ilegais, ou seja, guerras justificadas pelo direito internacional (HABERMAS, 2006, p. 104).
Habermas tenta desconectar a substância moral de guerras conduzidas pelas Nações Unidas a fim de convertê-las em guerras lícitas. Trata-se, em outras palavras, de uma tentativa de negar o político pela sua redução ao direito. Na realidade, o critério quantitativo da aprovação da maioria da Comissão da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Conselho de Segurança para condução de uma guerra não elimina seu caráter moral. O critério quantitativo da aprovação do Conselho não converte uma guerra justa ou injusta em lícita ou ilícita. Há aí, em verdade, um caráter retórico da legitimidade pelo procedimento, típico das democracias liberais. A justificação da guerra pelo procedimento jurídico não dissolve seu fundamento moral ou ideológico e tampouco suprime o excesso de violência de guerras conduzidas em nome de uma verdade universal e, portanto, irrefutável. O aspecto procedimental do direito é, com frequência, usado para justificar um argumento ideológico ou moral. No que concerne à guerra, tanto o fundamento moral quanto a forma jurídica logram ape-
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nas escamotear o inescapável caráter antagônico do político. Importante é observar que a negação do político está associada à fé na possibilidade de eliminar a guerra, mesmo que seja conduzindo uma guerra contra a guerra. Um exemplo disso é a própria criminalização do termo “guerra” pelos tratados e convenções internacionais, como é o caso do Tratado ou Estatuto de Roma. Nele se nota a substituição da palavra “guerra” pela expressão “conflito armado”. A criminalização da guerra se evidencia no fato de seu emprego somente ocorrer nos artigos nos quais se alude aos delitos de “guerra de agressão” e “crimes de guerra”. A onda pacifista e moralizante leva Edward Schramm a sentenciar que “o conceito ‘guerra’ é, entretanto, equívoco e ultrapassado do ponto de vista do direito das gentes (völkerrechtlich)” (SCHRAMM, 2011, p. 53). Em sentido contrário, porém, Ulrich Preuss, ao comentar que o estado de guerra hobbesiano no âmbito das relações interestatais não deixa de ser jurídico, afirma que hoje em dia, entretanto, se designa este estado nos documentos jurídicos não mais de guerra, mas de algo eufemístico como “conflitos armados”. Esta proscrição semântica da guerra corresponde a sua discriminação jurídica. A guerra, precisamente a guerra de agressão, foi nesse meio-tempo declarada crime pelo direito internacional (PREUSS, 2003, p. 11).
A despeito da crença na erradicação dos antagonismos — por meio de sua criminalização — ter após o fim da Guerra Fria sofrido um duro golpe com a Guerra de Kosovo, o atentado do 11 de setembro e a Guerra do Iraque8, o ideal de um mundo livre dos conflitos despertou de um breve sono. O choque de realismo provocado pelo atentado ao World Trade Center no idealismo das teorias políticas não impediu que, mais uma vez, se desentranhasse o processo de instauração da paz perpétua. A fé na realização do ideal cosmopolita de Kant encontra seu alicerce teórico na reconciliação entre política, moral e direito. O efeito dessa harmonização postulada, entre outros, por construções mais jurídicas do que políticas, como seria o caso de John Rawls e Jürgen Habermas, é, no fundo, uma tentativa de negar o político, precisamente de recalcar a irredutibilidade dos conflitos9. Uma das formas de negação dos antagonismos ocorre por meio da criminalização da guerra e a negação da inimizade. Tais posturas “humanistas” terminam por legitimar a guerra justa cujo pressuposto não é outro senão a luta “do bem” contra “o mal”. O problema da negação do caráter irredutível do político, precisamente 108
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de sua dimensão antagônica, é que ela não o elimina e tampouco diminui seus níveis de violência. Muito pelo contrário, as teorias do consenso, a exemplo daquelas de Habermas10 e Rawls, ainda que de modo despropositado, tendem a intensificar os antagonismos, sobretudo ao justificarem a antiga instituição fundada no juízo moral dos conflitos: a da guerra justa. Seu fundamento moral de cunho universal constitui-se num fermento absolutizante que eleva a guerra a uma forma totalizante e a inimizade a uma intensidade ilimitada. A ideia de uma polícia mundial com a pretensa autoridade para caçar seus inimigos em qualquer região11, sem respeitar as fronteiras territoriais e muito menos o jus puniendi dos Estados, não remete apenas à perseguição dos hereges pela Igreja Romana. A recente execução de Osama Bin Laden, em território paquistanês, revela que a política norteamericana conserva um resíduo teológico que a autoriza decidir sobre a eliminação de seus opositores em qualquer espaço territorial, pois são tratados como inimigos da humanidade. Ao defenderem a inviolabilidade da pessoa humana encontram-se numa posição superior a qualquer um que questione sua noção de humanidade. Nessa linha argumentativa, qualquer oposição à universalidade desse conceito de humanidade é uma afronta inumana e em virtude disso deve ser punida por meio de uma jurisdição global. A intervenção humanitária que resulta do fundamentalismo dos direitos humanos12 conduz a uma guerra justa contra seres inumanos. Aqui é possível lançar mão do topos schmittiano-hobbesiano e indagar quem interpreta, quem decide (quis interpretabitur e quis judicabit?) o significado de humano ou inumano, amigo ou inimigo. O que é guerra justa ou injusta, qual intervenção é humanitária ou inumana? A ausência desses questionamentos reside na crença na superioridade da forma hegemônica de uma democracia-liberal supranacional capaz de se impor em virtude da sua compreensão verdadeira da noção de humanidade. A construção de teorias democráticas universalistas mediante expedientes contrafáticos, a exemplo da “posição original” (original position) rawlsiana (RAWLS, 2000, p. 13) ou da situação ideal de fala (Sprechakt) habermasiana, somente são alcançadas à custa da negação da dimensão antagônica do político. O preço de tais teorias normativas, cujo escopo é transcender a soberania estatal por meio da desestatização do monopólio da força — como se verifica na Carta da ONU (NAÇÕES Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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UNIDAS, 1945) —, é perder de vista que o mundo internacional é palco de uma constante luta entre distintas formações políticas com maior ou menor grau de assimetria. O empenho em reduzir o político à moral e ao direito estimulou o reflorescimento da doutrina da guerra justa, da intervenção humanitária e da instituição de uma jurisdição penal supranacional. É importante ressaltar que a razão de Estado dialoga diretamente com a noção de soberania. A razão de Estado é uma forma de manifestação da soberania que é posta em questão pelo Tribunal Penal Internacional, cujo objetivo é alcançar uma jurisdição global e, portanto, remover a autodeterminação do Estado territorial. Ambos os conceitos, o de razão de Estado e o de soberania, designam um poder capaz de se sobrepor aos limites impostos pelo direito. Convém, porém, saber se tal sobreposição se faz para restituir a ordem ou instaurar uma ditadura permanente. Conforme a linha de raciocínio dos defensores da estatalidade, o poder se sobrepõe ao direito a fim de restaurar a ordem jurídica interna que fora ameaçada ou abalada por fatores endógenos ou exógenos (MAQUIAVEL, 1979, p. 77-78). Pretendo neste trabalho deter-me em alguns princípios que servem de embasamento teórico à criação do Tribunal Penal Internacional. Seus princípios revelam a adoção de uma visão cosmopolita das relações humanas, cuja efetivação busca dar cabo ao direito internacional clássico fundado na interestatalidade. Busco, portanto, analisar a tensão entre uma jurisdição penal supranacional e a jurisdição nacional com o propósito de refletir sobre o conceito de razão de Estado. Interessa-me aqui analisar a tensão existente no direito penal internacional entre a noção de razão de Estado e a pretensão de jurisdição universal do direito penal internacional. Para tanto, na primeira parte analiso alguns princípios jurídicos do Estatuto de Roma. Na segunda parte, discuto a responsabilidade do governante do Estado na perspectiva de jurisdição penal supraestatal.
1 Princípios jurídicos do Tribunal Penal Internacional O Estatuto de Roma, tratado que dá origem ao Tribunal Penal Internacional Permanente, foi aprovado em julho de 1998, com 120 votos a favor, 7 votos contra — Estados Unidos da América, China, Israel, Iraque, Iêmen, Catar e Líbia — e 21 abstenções, dentre as quais Índia, Turquia, Irã, Sudão,
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Síria e Egito. No dia 11 de abril de 2002, o Tratado alcançou 66 ratificações, mais do que o mínimo necessário de 60 Estados, e entrou em vigor no dia 1º de julho do mesmo ano. Desde então a Corte, sediada em Haia, teria adquirido a competência para julgar crimes contra a humanidade, como os crimes de genocídio, de guerra e de agressão. À promessa do Estatuto de pôr termo à impunidade daqueles que perpetram crimes contra a humanidade subjaz a convicção em uma filosofia da história progressista. A opinião de Lewandowski, atual ministro do Supremo Tribunal Federal da República Federativa brasileira, parece acreditar em uma orientação teleológica da história que vê na erosão da soberania estatal o progresso da humanidade. Segundo o ministro, a criação do Tribunal constitui um avanço importante, pois esta é a primeira vez na história das relações entre Estados que se consegue obter o necessário consenso para levar a julgamento, por corte penal permanente, políticos, chefes militares, e mesmo pessoas comuns pela prática de delitos da mais alta gravidade, que até agora têm ficado impunes, especialmente em razão do princípio da soberania (LEWANDOWSKI, 2002, p. 187).
Eis uma declaração cujo conteúdo reduz o princípio da soberania à condição de grande vilão dos direitos humanos. Sob esse ponto de vista, o aludido princípio equivaleria à impunidade, sobretudo no caso de indivíduos protegidos pelo caráter oficial do cargo, a exemplo de chefes de Estado, de governo ou então presidentes. Em virtude disso, o Estatuto consagrou o princípio da irrelevância da qualidade oficial com o propósito de relativizar o caráter intangível da personalidade jurídica. A efetivação de tal princípio permitiria penetrar a armadura até então insondável dos Estados e suprimir a imunidade de seus governantes e de toda sorte de indivíduos com cargos oficiais. A posição do Estado de principal ator ou sujeito de direitos na ordem internacional seria esmorecida e seus governantes e funcionários não lograriam mais utilizá-lo como blindagem contra a sujeição à jurisdição nacional. Nessa linha de raciocínio, o artigo 27 do Estatuto de Roma, com propósito de suprimir a imunidade intrínseca a cargos oficiais, determina serem seus dispositivos aplicáveis “de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro do Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou funcionário público” (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998). O pertencimento ao alto escalão hierárquico de qualquer um dos Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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poderes do Estado não exime da responsabilidade criminal prevista pelo Estatuto e tampouco se constitui em atenuante capaz de reduzir a pena. Na realidade, porém, ocorre que o Tribunal se sujeita à soberania nacional ao lidar com potências estatais, cujos governos têm força decisória para atuar de modo independente no âmbito da política internacional. À exceção de poucos países como França e, sobretudo a Alemanha, que ocupam posição de liderança na condução da política da União Europeia, países dotados de uma soberania de fato, e não apenas de direito, recusam submeter sua jurisdição nacional à global do Tribunal. A pretensão punitiva do Tribunal se limita aos Estados “pobres” ou sem força suficiente para atuar de modo soberano no palco da política mundial. O Tribunal é um indicador paradigmático cujo exame permite aferir, de fato, o grau de intensidade pelo qual a soberania de alguns países se manifesta no palco da política internacional. Ao acentuar a primazia dos princípios da jurisdição penal global sobre a soberania estatal, Lewandowski perde de vista a assimetria das relações políticas presentes na própria criação do Tribunal. Omite que os Estados Unidos, um dos maiores “defensores dos direitos humanos”13, não só boicotou a elaboração do Estatuto de Roma desde suas primeiras negociações, como alça sua soberania muito acima da jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Os EUA, membro do Conselho permanente de Segurança das Nações Unidas, são um dos maiores recordistas em crimes de guerra e contra a humanidade. Ainda assim, o Tribunal — “independente” conforme o Estatuto — concede, por meio de resoluções, imunidade aos soldados norte-americanos que praticam crimes de guerra14. Urge, porém, não ignorar sua condescendência com relação aos crimes de guerra e contra a humanidade perpetrados por políticos, presidentes e generais norte-americanos. É inequívoco como, nesses casos, o princípio da irrelevância da qualidade oficial é abandonado, relegado, sem nenhum pudor, ao recôndito plano do secreto. Não há como pensar a utopia cosmopolita da jurisdição penal supranacional a partir da convicção segundo a qual “o direito universal” é capaz de suprimir o político, isto é, o irremediável dissenso que marca de modo indelével a existência humana. Ora, é justamente o caráter inescapável do dissenso, do elevado nível de contingência, do risco permanente do antagonismo que justifica a necessidade de existência de instituições nacionais ou internacionais. 112
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A convicção de Habermas na constitucionalização da política internacional, cujos veículos principais seriam a Carta da ONU e a Declaração de Direitos Humanos, conduz ao risco de supor que a realidade complexa pode ser subsumida a um conjunto de normas universais e abstratas. Isso significaria incidir no mesmo equívoco do positivismo jurídico que o autor tanto critica. A redução do mundo do ser da política internacional ao dever do direito universal revela a confusão do deontológico com o ontológico. Tal postura normativa, por exemplo, leva a crer que o Tribunal Penal Internacional atua conforme os princípios enunciados no preâmbulo Tratado de Roma, como seria o caso do princípio da independência, da imparcialidade e da permanência. A realidade, contudo, revela que a política de segurança mundial da ONU transfere o monopólio da força ao seu Conselho de Segurança que, entre os seus cinco membros permanentes, não por acaso, conta com a maior potência bélica do planeta: os EUA. Convém, em virtude disso, mencionar a questão central indagada por Herfried Münkler (2005, p. 7) sobre as mutações das formas de manifestação do poder político: “A comunidade internacional é dependente para sua segurança própria de um Império?” As ações dos Estados Unidos configuram uma forma política distinta daquela dos Estados, pois impérios são mais do que grandes Estados; eles movem-se em um mundo que lhes é próprio. Estados estão inseridos numa ordem que criaram junto com outros Estados e sobre a qual não dispõem de modo isolado. Impérios, ao contrário, compreendem-se como criadores e garantes de uma ordem que, em última instância, depende deles e que precisam defender contra a eclosão do caos, que representa para eles uma constante ameaça (MÜNKLER, 2005, p. 8).
É necessário perceber como a capacidade de ação da ONU é esvaziada pela sua dependência da segurança mundial realizada pelos Estados Unidos. É notável como a ONU se sujeita à política imperial norte-americana, cujo unilateralismo é um dos fatores que mais ameaça o fundamento principal da Carta (NAÇÕES UNIDAS, 1945): a “manutenção da paz e segurança internacionais”. De acordo com Lewandowski (2002), o princípio da soberania das unidades estatais aparece como um mal em si, como a causa principal da impunidade dos delitos praticados contra a humanidade. Todavia, é o próprio Tribunal Penal Internacional e a ONU que se submetem ao protagonismo do poder soberano norte-americano, cuja superioridade o leva a decidir pela suspensão de suas resoluções e Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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se arrogar o direito de se sobrepor a qualquer regulamentação das relações internacionais capaz de atingir seus interesses. Soberania estatal, assim como a razão de Estado, não são postulados políticos propulsores da prática de crueldades. Muito pelo contrário, a ausência da soberania e, por conseguinte, da razão de Estado, como se verifica em inúmeros exemplos fornecidos pelo Príncipe de Maquiavel, provocava o colapso contínuo dos governos das cidades-Estado da península itálica. Seus governantes e populações eram reiteradamente expostos à crueldade das invasões estrangeiras. O princípio da soberania ligava-se à necessidade de formação de um exército próprio, precisamente formado pelos membros das cidades, de modo a proteger não só os florentinos, mas toda a península itálica contra as invasões que, entre outros fatores, impediam a sua unificação. O sonho maquiaveliano de fabricar uma consciência nacional capaz de unificar as cidades-Estado da península itálica não visava apenas ao esmorecimento das razões egocêntricas de governantes, mas à construção de uma razão de Estado orientada para a ontologia do corpo político, bem como para o prolongamento da existência concreta dos membros da associação política.
1.1 Princípio da personalidade jurídica O conteúdo do Estatuto de Roma contém os aspectos concernentes à competência e ao funcionamento de um Tribunal Penal Internacional Permanente (1998). Trata-se, conforme seu Artigo 4.1, de uma instituição dotada de personalidade jurídica internacional e capacidade jurídica para o exercício de suas atribuições. A estrutura do Tribunal Penal Internacional Permanente é formada por uma presidência, três seções judiciais, precisamente apelação, primeira instância e questões preliminares. Além disso, contém uma promotoria independente e uma secretaria. De modo distinto da Organização das Nações Unidas, cujo maior financiador são os Estados Unidos, de acordo com o artigo 115 a e b, as atividades do Tribunal são financiadas pelos Estados-parte e mediante fundos procedentes da ONU, em particular com respeito aos gastos efetuados em relação a questões remetidas pelo Conselho de Segurança. O princípio da personalidade jurídica suscita controvérsia. A disputa sobre a sua interpretação mais adequada se relaciona, entre outros aspectos, com a tensão entre as concepções monista e a dualista do direito 114
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internacional. Enquanto a primeira postula a primazia do direito interno, a segunda defende a superioridade do direito internacional. Conforme o monismo, o Estado não está sujeito a nenhuma ordem jurídica senão aquela proveniente de sua vontade. Em contrapartida, o dualismo contempla dois sistemas jurídicos ordenados dentro de uma escala hierárquica na qual o direito internacional figura acima do direito interno. Há, portanto, duas ordens jurídicas, mas o direito interno, ao contrário da perspectiva monista, se sujeita ao direito internacional. Em virtude disso, a personalidade jurídica não é um atributo exclusivo do Estado soberano, cuja vontade prevalece na formação do direito internacional, mas também do indivíduo, cuja posição é elevada a de um sujeito internacional, ao qual a ordem internacional concede direitos e deveres. A perspectiva dualista teria superado a monista na virada do século XX para o XXI e ao reconhecer “os indivíduos como sujeitos tanto do direito interno como do Direito Internacional” representaria “uma verdadeira revolução jurídica” (TRINDADE, 2006, p. 122-123). Conforme essa orientação, três séculos de um ordenamento internacional marcado pelo predomínio das soberanias estatais e pela exclusão dos indivíduos foram incapazes de evitar violações massivas dos direitos humanos, perpetradas em todas as regiões do mundo, e as sucessivas atrocidades de nosso século, inclusive as contemporâneas (TRINDADE, 2006, p. 122).
A virada do direito internacional clássico para o direito internacional dos direitos humanos no século XXI seria uma “revolução jurídica” cujo ponto primordial reside em capacitar cada ser humano para estar plenamente consciente de seus direitos, para — quando necessário — enfrentar por si mesmo a opressão e as injustiças da ordem estabelecida, e para construir um mundo melhor para seus descendentes e gerações futuras (TRINDADE, 2006, p. 122).
Não devemos nos furtar de salientar que, ainda que alguns documentos jurídicos elevem o indivíduo à condição de sujeito internacional, nenhum ser humano, compreendido como indivíduo, portanto como ser particular, tem a capacidade de “por si mesmo” enfrentar “a opressão e as injustiças da ordem estabelecida”. Muito pelo contrário, impor tal tarefa “a cada ser humano” inserido numa realidade marcada pela disputa pelo poder, é abandoná-lo à própria sorte. O indivíduo, precisamente um sujeito singular, é impotente para subsistir de modo isolado em meio à luta que grupos e coletividades travam na realidade concreta. Dissociado Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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de qualquer grupo, ele pode ser esmagado pelas forças que disputam o poder. O indivíduo não é portador de uma ética autônoma capaz de elevar-se a uma instância universal com poder de lhe conferir proteção. Há que se levar em consideração o princípio da diferença, para o qual chamava atenção Montesquieu, ao destacar não só diferenças climáticas, geológicas, mas religiosas, de costumes, hábitos, línguas, histórias etc. O princípio da diferença, ressaltado por autores como Johann Gottfried Herder, considera a condição humana a partir de seu enraizamento em um determinado contexto linguístico, histórico e cultural cujo teor nega a hipótese de um sujeito transcendental dotado de moralidade universal. Nessa acepção seria impossível a construção de um indivíduo alçado à condição de sujeito transcendental descarnado, desenraizado do espaço de experiência no qual compartilha uma história, uma língua, uma religião comum. Ora, a diversidade cultural, elemento indissociável dos seres humanos, não dá origem a um ser individual dotado de uma ética universal, pois, mesmo se todos consentissem com a imprescindibilidade dos valores da liberdade e da igualdade, deparar-se-iam com a impossibilidade de defini-los de modo consensual. Deve-se perceber que ao princípio da soberania estatal não subjaz um mal imanente. Afinal, a força soberana do Estado pode tanto atuar a favor como contra o indivíduo. Da mesma forma a violência também pode ser perpetrada pelos defensores dos direito humanos. O que os humanistas não querem ver é que são sempre seres humanos, sejam eles sujeitos internacionais ou nacionais, sejam coletivos ou individuais, que perpetram a violência contra seres humanos. A mencionada “revolução jurídica” não teve ressonância no relatório anual da Anistia Internacional de 2003, pois os seus dados indicam que “cada vez mais governos violam direitos humanos em nome do combate ao terrorismo”15.
1.2 Princípio da independência e permanência Conforme o preâmbulo do Estatuto, o Tribunal Penal Internacional é uma instituição “com caráter permanente e independente, no âmbito do sistema das Nações Unidas, com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade que afetem a comunidade internacional no seu conjunto” (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998). Apesar de o Estatuto autorizá-lo a exercer jurisdição no caso dos delitos de maior transcendência para a 116
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comunidade internacional (totus orbis), o Tribunal ainda não revelou independência o suficiente para fazê-lo. A independência do Tribunal não é mera questão jurídica, resolvida por meio da normatividade, mas sim política e dependente do reconhecimento de sua legitimidade pelos Estados, de fato, soberanos. Ao Tribunal compete o julgamento dos seguintes delitos: genocídios, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão. Embora o tratado tenha elencado os delitos e, à exceção do crime de guerra, tentado defini-los, jamais exerceu seu poder jurisdicional contra uma autoridade de elevada escala hierárquica de um país que figure entre os “grandes”. De todas as espécies de delitos arroladas no Estatuto, o crime de agressão é, sem dúvida, o mais polêmico. Sua fronteira com o princípio da intervenção humanitária é muito tênue, sobretudo em virtude de esta ser, com frequência, utilizada como pretexto para o interesse egoísta de Estados que exercem um protagonismo no cenário internacional. Devido a essa controvérsia e outras, a exemplo da suspensão da jurisdição do Tribunal sobre os crimes de guerra cometidos nos sete primeiros anos ocorridos após um Estado ratificar o tratado, o Estatuto previu, em seus artigos 121 e 123, uma “Conferência de Revisão” de seu conteúdo. Prevista para sete anos após o Estatuto entrar em vigor, a Conferência ocorreu entre os dias 31 de maio e 11 de junho de 2010 sem, no entanto, dirimir as questões mais polêmicas que gravitam ao redor do Tratado de Roma. Entre elas, a relativa ao crime de agressão foi o ponto capaz de suscitar as discussões mais acaloradas. Desde a criação do Estatuto, não há uma definição do delito de agressão. Apesar de ter sido incluído no artigo 5º, 1, d, o crime de agressão jamais foi objeto de punição. Já em 1928, o pacto de Briand-Kellog e, posteriormente, a Carta das Nações Unidas, de 1945, haviam tentado, por intermédio do caminho normativo do direito, proscrever a guerra de agressão. De acordo com a intenção daqueles que elaboraram o Estatuto, quem determinar agressão armada de um país contra outro, sem justificativa ou legítima defesa ou sem prévia autorização do Conselho de Segurança da ONU, poderá ser condenado pelo Tribunal. Segundo o artigo 11 do Estatuto, o Tribunal Penal Internacional (1945) poderá exercer sua competência sobre os crimes “cometidos após a entrada em vigor do Estatuto”, mediante a provocação de um Estado-parte, conforme explicitam os artigos 13a e 14. Os artigos 13c e 15 permitem ao promotor de acusação iniciar a investigação. As diligências investigativas Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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podem ser iniciadas mediante a solicitação do Conselho de Segurança da ONU em conformidade com o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, cujo teor se refere à ameaça da paz e segurança internacionais. Curioso é que três dos integrantes do Conselho Permanente de Segurança, China, Estados Unidos e Rússia, podem provocar o Tribunal mesmo sem tê-lo ratificado. Aqui se torna inequívoca a possibilidade que têm esses países de monopolizar o Tribunal para punir os crimes praticados por autoridades de outros Estados e, ao mesmo tempo, a garantia da impunidade de seus eventuais delitos contra a humanidade. É importante perceber que os três países em questão são Estados cujas ações no âmbito das relações internacionais apresentam uma estrutura imperial. O preâmbulo do Estatuto de Roma apresenta os propósitos do Tribunal e justifica a necessidade de sua efetivação ao salientar que os crimes sob sua competência constituem “uma ameaça à paz, à segurança e ao bemestar da humanidade”. Neste caso, seria importante, como postula Rüdiger Voigt, definir o que se entende por paz (VOIGT, 2008, p. 170). Embora se percebam inúmeras limitações na jurisdição “global” do Tribunal, há quem o celebre como a vitória da primazia do direito internacional sobre a força, ou seja, sobre a razão de Estado16: É, no entanto, em momentos históricos difíceis de crise como o atual, de consequências mundiais imprevisíveis, que se impõe preservar os princípios fundamentais e os verdadeiros valores, assim como o primado do Direito Internacional sobre a força, e que efetivamente se tem logrado dar saltos qualitativos. Neste sentido, a par de tanta violência, não obstante vem hoje avançando o velho ideal da justiça internacional. Floresce a jurisprudência protetora dos tribunais internacionais (Corte Interamericana e Europeia) de direitos humanos. Vem de ser criada uma jurisdição penal internacional permanente (o Tribunal Penal Internacional), para combater a impunidade dos atentados contra a humanidade, somada à jurisprudência florescente, neste propósito, dos Tribunais Penais Internacionais ad hoc para ex-Iugoslávia e Ruanda. O ser humano passa, enfim, a ter acesso direto à justiça internacional (TRINDADE, 2006, p. viii).
Cabe esclarecer o fato de ser um equívoco declarar que o Tribunal confere ao ser humano acesso direto à justiça internacional. Vimos que aos indivíduos não é reconhecido o direito de denunciar a violação de direitos humanos ao Tribunal, já que somente os Estados-parte, o Conselho de Segurança e o procurador podem fazê-lo. Percebe-se, assim, como é 118
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restrito o acesso à justiça internacional do Tribunal, cuja pretensão de uma jurisdição penal global termina por preterir o indivíduo e favorecer as instituições, o que expõe uma contradição em relação às próprias intenções do Estatuto de Roma. Nota-se como o tema da personalidade internacional de indivíduos, considerado por Cançado Trindade o maior legado da ciência jurídica do século XX, é superestimado, pois, na realidade, os principais atores internacionais ainda são seres humanos concretos representados por instituições nacionais e supranacionais.
1.3 Responsabilidade do governante sob a ótica da jurisdição penal global do Tribunal Penal e da soberania estatal O Tribunal Penal Internacional constitui-se numa das manifestações mais controvertidas do direito penal internacional. Sua instituição evidencia a colisão entre a concepção de razão de Estado e a pretensão global de punição da violação de direitos humanos. A crença na necessidade autoevidente de uma jurisdição global voltada à proteção dos direitos humanos, por um lado, e a concepção da irredutibilidade do poder político do sujeito da soberania estatal, por outro, apresentam modos distintos de conceber os antagonismos travados entre seres humanos. A corrente de pensamento partidária da razão de Estado, que conta, entre seus principais representantes, com Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes e Carl Schmitt17, observa um antagonismo insuperável na vida política. A irredutibilidade do conflito, porém, não significa para esses autores que sua intensidade não possa ser diminuída. Tal vertente de pensamento sustenta que a redução do grau de intensidade do conflito se dá pelo seu reconhecimento e descriminalização. Para tanto, é necessário se despir de juízos morais no âmbito do político e efetuar a desconexão do conceito de inimigo público de um fundamento teológico-moral. Observa-se, portanto, que os conflitos devem ser dessacralizados por meio da dissolução de seu alicerce moral. A necessidade de promover a secularização do político ocorre em virtude da moralização dos antagonismos cujo resultado é a desumanização dos inimigos. À luz dessa linha de raciocínio é necessário compreender que o antagonismo recíproco entre seres humanos apresenta um caráter existencial. A negação dos antagonismos existenciais, além de criminalizar a inimizade e absolutizar os conflitos, pressupõe a pretensão de verdade absoluta ou de uma noção universal Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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de justiça como é possível observar em Francisco de Vitoria (1985) e Santo Agostinho (2003, p. 177). Na visão dos autores favoráveis à razão de Estado, o cenário internacional é um pluriversum — e não um universum — no qual cada unidade política tem o status de autodeterminação da existência coletiva de seus membros. Qualquer forma de organização supranacional residiria num princípio universalista. Ao contrário, no pluriversum da interestatalidade não há um império ou corpo político qualquer cuja superioridade bélica determine um desequilíbrio nas relações estatais. Em contrapartida, os adeptos de uma jurisdição universal, representados, entre outros, por Immanuel Kant, John Rawls18 e Jürgen Habermas acreditam na existência de um caminho jurídico e moral capaz de conduzir à superação dos conflitos entre agrupamentos humanos. Isso seria possível a partir de certa concepção antropológica que concebe os atores políticos como racionais e livres. Essa matriz de pensamento, cujas ideias são representativas do imperativo universalista dos direitos humanos, argumenta que se num Estado de direito todos se sujeitam à lei, logo se dissolve a soberania como legibus solutus e, por conseguinte, a razão de Estado, como poder capaz de sobrepor-se às leis. O denominador comum que une as ideias desses autores é que buscam subordinar à força ao direito, de modo a eliminar a razão de Estado maquiaveliana. O problema é que tais autores fundam sua filosofia da política internacional em situações contrafáticas que excluem as contingências das relações assimétricas de poder. Em situações ideais, desenraizadas da realidade complexa das contendas, traço indissociável da vida política, os seres humanos livres e racionais de Rawls e Habermas fazem valer de modo intersubjetivo, respectivamente, as pretensões de justiça e de verdade a partir de princípios ou procedimentos em condições de alcançar democracias globais. O fundamento no qual se alicerça a doutrina do Tribunal reside na crença em uma determinada concepção de humanidade. Seu ponto de partida deriva da autonomia moral de um sujeito individual (KANT, 1998, p. 25, 95), livre e racional, que é elevada à condição universal, o que lhe confere o status de dignidade de pessoa humana. O modelo de sujeito particular elevado à condição universal de humanidade — uma invenção do pensamento iluminista europeu dos séculos XVII e XVII — cuja violação deve ser objeto de punição. Não se trata do exercício de um jus puniendi limi120
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tado à jurisdição nacional dos Estados, mas de uma jurisdição penal universal exercida por um organismo supranacional. A ambição do Tribunal de “pôr fim à impunidade” de qualquer pessoa que perpetre delito contra a humanidade reacendeu em muitos — mesmo após o atentado de 11 de setembro — a convicção no reencontro do caminho rumo à paz perpétua de Kant. A crença na eficácia erga omnes do direito de punir é portadora de fundamentos antropológicos e teológicos, cujo conteúdo não pode escapar à reflexão política do direito das gentes. Tal forma de fé pressupõe um otimismo antropológico fundado na racionalidade e liberdade, cujo teor é identificado à bondade natural dos homens19, e a uma moral absoluta, cuja veracidade não pode ser posta em questão. Convém indagar qual seria o fundamento da jurisdição universal de punir. Para Pasculli, o exame de suas origens remonta ao Velho Testamento, o que revelaria o seu caráter teológico. Ao proceder à genealogia da jurisdição universal do direito penal, observa que em alguns livros do Velho Testamento está escrito que Deus não apenas acusa e pune o povo judeu, os habitantes de um lugar chamado Israel, mas também povos e Estado estrangeiros como Damasco, Gaza e Edon, uma vez que tenham cometido delitos contra a humanidade (PASCULLI, 2011, p. 35).
A título de exemplo poder-se-ia citar a passagem de Isaías: “Punirei o mundo por seus crimes e os pecadores por suas maldades. Abaterei o orgulho dos arrogantes e humilharei a pretensão dos tiranos” (ISAÍAS, 13:11). A partir daí é possível supor a origem da jurisdição universal nas lutas travadas entre homens com a pretensão de impor uma verdade absoluta no mundo. É indispensável levar em consideração que distintas formas de universalismos, sobretudo provenientes de concepções monoteístas da religião, sempre estiveram em conflito e tiveram ressonância na forma de organização social política dos povos. A genealogia da jurisdição universal nos conduziria ao jusnaturalismo. Sua forma universalizante encontraria suas raízes no monoteísmo de uma longínqua tradição cristã fundada na crença em uma divindade onipresente, onisciente, enfim no Deus todo-poderoso. O princípio da universalidade de raiz teológica teria chegado até nós por autores como Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e os teólogos-juristas do limiar da modernidade, a exemplo de Francisco Vitória e Francisco Suárez. O jusnaturalismo moderno, cujo ponto mais alto seria alcançado pelo IluSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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minismo do século XVIII, encontraria sua marca indelével na substituição da vontade universal divina, corporificada pela Igreja, por uma razão humana completamente abstrata. Assim a secularização iluminista não fora uma eliminação do caráter absolutizante que provinha de um Deus todo-poderoso, mas sua substituição por uma razão universalizante proveniente da autonomia da vontade de um sujeito individual. Vê-se, assim, que a verdade universalizante da autonomia da vontade não foi dessacralizada pelo humanismo iluminista. A passagem de Weber (1992, p. 75) segundo a qual “a experiência da irracionalidade do mundo foi a força propulsora de todo desenvolvimento religioso”, vale também para o fundamentalismo dos direitos humanos que não consegue lidar com a realidade irracional da dimensão antagônica do político. As ideias fundamentais do Tribunal Penal Internacional constituem uma doutrina contrária à soberania estatal. A pretensão de uma jurisdição global e o empenho em elevar o direito acima do poder soberano apresenta a finalidade de dar cabo à irresponsabilidade penal de qualquer indivíduo, sobretudo de governantes que praticam crimes contra direitos humanos. A doutrina do Tribunal se opõe à noção de razão de Estado em virtude de negar a precedência do direito de defesa do Estado em relação aos direitos provenientes da razão individual. O Estatuto de Roma confere primazia aos direitos do indivíduo e os eleva acima dos direitos do Estado. Na linguagem dos direitos humanos, a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana deveria vedar o sacrifício de qualquer indivíduo em favor da manutenção existencial dos membros integrantes de uma unidade política. Da perspectiva dos defensores da universalização da jurisdição penal, a razão de Estado não teria outra função senão servir como arma política capaz de justificar a prática de crueldades por parte de governantes e garantir a sua inimputabilidade. De acordo com Ricardo Lewandowski, “a ideia da inimputabilidade, embora profundamente arraigada na cultura política dos governantes, desde a mais remota antiguidade, somente tomou forma doutrinária com Maquiavel, em 1513” (LEWANDOWSKI, 2002, p. 188). A fim de justificar a tese segundo a qual a soberania ou a razão de Estado serve como forma de justificativa à violação de direitos humanos, Lewandowski cita passagem do florentino: “Um príncipe novo não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens bons, sendo fre-
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quentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião” (MAQUIAVEL, 1979, p. 74). Lewandowski não compreende o conceito maquiaveliano de razão de Estado. Ao reduzi-lo a uma mera técnica dirigida à manutenção do governante no poder, não compreende sua acepção relacionada à adequação de meios aos fins com o propósito de garantir a estabilidade e a previsibilidade de um corpo político. A razão de Estado, cujo traço existencial é a defesa pelo governante do status de uma associação política compreendida a partir da preservação da vida de seus membros não deixa de estar associada a uma ética da responsabilidade. Todavia, não se trata de uma responsabilidade atada a princípios morais, sejam eles provenientes do moralismo romano ou cristão, mas ao resultado, à finalidade da arte de fundar, manter e ampliar um corpo político. A razão de Estado de Maquiavel, em termos weberianos, se norteia pela ética da responsabilidade (Verantwortungsethik), e não pela ética da convicção (Gesinnungsethik). O empenho em estabelecer a distinção entre política e moral não revela apenas o caráter secularizante das ideias do autor florentino, mas também mostra como a política é dotada de uma ética própria, cujo teor não é conduzido por princípios morais, mas pelo resultado da preservação do Estado. Se, por um lado, a orientação da conduta pelos princípios da moral cristã ou da virtude do moralismo romano é cega, pois não enxerga a estabilidade e garantia da existência de uma associação política, por outro, a veritá effetuale (MAQUIAVEL, 1979, p. 63) traduz a contemporização entre as circunstâncias e os fins, de modo a possibilitar que a ação política dinâmica — a virtú — triunfe sobre a fortuna (contingência). Não de modo a eliminá-la, pois o conhecimento revolucionário das ideias secularizantes de Maquiavel pode ser visto na célebre passagem do Príncipe na qual o florentino postula que a “fortuna seja árbitra de metade de nossas ações, mas que, ainda assim, ela nos deixe governar quase a outra metade” (MAQUIAVEL, 1979, p. 103). Desse modo, seria possível reduzir o grau de contingência no plano interno e externo da vida estatal. A razão de Estado se orienta pela contemporização das circunstâncias do fluxo de eventos da dinâmica da realidade concreta, com a finalidade da previsibilidade da vida política, compreendida como “o bem do Estado e da comunidade nacional nele inserida” (MEINECKE, 1983, p. 4).
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2 Princípio da universalidade ou princípio da complementaridade? O princípio da universalidade que orienta o poder jurisdicional do Tribunal pode ser observado no artigo 4º, nº 2, do Estatuto de Roma (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998). Seu teor revela que o Tribunal Penal Internacional exerce seus poderes e funções “no território de qualquer Estado-parte e, por acordo especial no território de qualquer outro Estado”20. Eis uma flagrante violação do princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados soberanos. Além do mais, constitui uma afronta ao princípio espacial da territorialidade. Aqui, percebe-se o empenho do Tribunal para se sobrepor à jurisdição nacional dos Estados soberanos. A tensão entre o princípio universalista de julgar e o princípio de autodeterminação das unidades estatais revela a oposição entre uma noção concreta de espaço e um princípio global: O contrário de uma doutrina pensada a partir de uma noção concreta de espaço é a ideia de um princípio global que abrange toda a Terra e toda a humanidade. A decorrência disso é, naturalmente, a intromissão de todos em tudo. Enquanto a teoria do espaço concreto contém uma perspectiva de delimitação e distribuição e, dessa maneira, estabelece um princípio jurídico de ordenamento, a pretensão universalista de intervenção global destrói qualquer delimitação e diferenciação racional (SCHMITT, 1994, p. 335).
A passagem acima mostra como o universalismo elimina distinções, fronteiras, delimitações, enfim orientações em condições de respeitar as diferenças existentes entre seres humanos. O tipo de universalismo iluminista e eurocêntrico dos direitos humanos solapa o princípio da diferença cujo conteúdo leva em conta a particularidade cultural, histórica, étnica, religiosa. Com respeito à crença religiosa, basta pensar na islamofobia que arrebatou diversos países de cultura ocidental que se baseiam na universalidade de seus valores historicamente constituídos. O princípio universal de cunho iluminista impõe a noção de intervenção humanitária, ao passo que o princípio da não intervenção é um corolário dos direitos fundamentais dos Estados, especialmente do direito à soberania e do direito à igualdade jurídica no âmbito das relações interestatais. Desse modo, de maneira indireta, o princípio da não intervenção foi consagrado na Carta da ONU ao se afirmar a igualdade dos Estados, bem como, nos assuntos da jurisdição doméstica dos Estados, nem a própria
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ONU poderá intervir, a não ser que haja a compreensão de que determinado assunto da situação doméstica representa uma ameaça à paz e à segurança mundial. Mas o que ameaçaria a paz e a segurança mundial? (NAÇÕES UNIDAS, 1945, art. 2, alínea 1ª, 7ª) A despeito de a intervenção ser encarada com ação de polícia internacional de manutenção da paz e da segurança internacionais, na realidade, sua ação se orienta em conformidade com interesses das superpotências bélicas. O exemplo mais recente é a aprovação da intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no caso da Líbia e sua reprovação pelo Conselho de Segurança no caso da Síria, país no qual todos os dias os noticiários denunciam crimes contra a humanidade, praticados pelo regime de Assad. Segundo a Carta, a intervenção deveria ser realizada de acordo com o interesse da sociedade internacional e não do interesse egoísta de um ou vários Estados (NAÇÕES UNIDAS, 1945). A questão da legalidade ou ilegalidade da intervenção é, no fundo, uma disputa entre os grandes e pequenos Estados. Os primeiros defendem sua legalidade em determinados casos, a exemplo da defesa nacional etc. e os últimos fazem do princípio da não intervenção um princípio absoluto (MELLO, 1982, p. 343). O princípio da não intervenção é um corolário dos direitos fundamentais dos Estados, especialmente do direito à soberania e do direito à igualdade jurídica. Desse modo, de maneira indireta, o princípio da não intervenção foi consagrado na Carta da ONU ao se consignar a igualdade dos Estados, bem como tampouco a própria ONU poderá intervir nos assuntos da jurisdição doméstica dos Estados (NAÇÕES UNIDAS, 1945, art. 2º, alínea 1ª, 7ª). É imprescindível levar em consideração que a intervenção empreendida sob os auspícios da ONU é encarada como ação de polícia internacional dirigida à manutenção da paz e da segurança internacionais. Seu fundamento, pretensamente, reside na proteção da sociedade internacional. Todavia, a própria Carta da ONU assinala que a intervenção será vedada aos assuntos da jurisdição doméstica dos Estados. Seu argumento central é seu caráter humanitário cujo teor se expressa na defesa incondicional dos direitos humanos. Na realidade, porém, com frequência, a intervenção humanitária serve mais ao interesse de grupos minoritários em condições de decidir sobre o uso da força do que à comunidade internacional. A ONU somente pode intervir se houver ameaça à paz e à
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segurança internacionais, de modo que é possível observar que a natureza da intervenção legitimada pela Carta da ONU não alude à violação dos direitos humanos, como se pode interpretar a partir do Estatuto de Roma, mas à ameaça da paz e da segurança internacionais. Sob a ótica da afirmação do direito de independência dos Estados, a intervenção humanitária equipara-se ao conceito de guerra justa, cujo teor moralizante tende a totalizar a guerra em virtude de seu fermento moral universalizante. Por isso, o direito de independência dos Estados exclui qualquer intervenção humanitária ou não humanitária, moral ou imoral, cuja finalidade seja se imiscuir em seus assuntos internos, pois desse direito decorre um direito de autodeterminação. A intervenção seria, nesse caso, uma violação ao direito de autodeterminação dos povos, uma vez que o auxílio prestado a qualquer das partes faria com que esse direito não se manifestasse. Por outro lado, a intervenção tende a resultar em uma resposta ou resistência, o que eleva, de modo significativo, os níveis de violência do conflito: “A intervenção é na verdade uma prática política e não desapareceu por completo da vida internacional. A sua utilização demonstra o predomínio do político sobre o jurídico” (MELLO, 1982, p. 350). A despeito de concordar com a primazia do político sobre o jurídico, não vislumbro em um horizonte de expectativa mais próximo, o desaparecimento da intervenção em assuntos domésticos, pois os conflitos humanos passam por um intenso processo de moralização cujo resultado é a globalização da violência, da guerra civil que deixa de ser endógena, limitada às fronteiras de um Estado, e alcança uma dimensão ilimitada e, portanto, global. Desse modo, o direito internacional, ao seguir o ideal de orientação do ideal kantiano de uma federação mundial composta de repúblicas, elimina a política para ceder lugar à polícia mundial. No fundo, a utopia kantiana deságua no universo imperial no qual há uma única polícia capaz de se imiscuir em toda sorte assuntos, pois todos eles passam a ter conteúdo doméstico. A paz que se alcança não é perpétua e tampouco oriunda de consenso entre as nações, mas precária e realizada a custa da maximização da violência. A jurisdição do Tribunal Penal Internacional é complementar à jurisdição dos tribunais penais nacionais. Conforme essa noção de complementaridade, se porventura houver um procedimento cujo trâmite se desenvolva sob os cuidados da jurisdição nacional, o processo perante o Tribunal 126
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Penal Internacional somente será possível se essa jurisdição não se apresentar, conforme a apreciação do Tribunal, disposta a levá-lo adiante no Artigo 17,1a, b, c. A ausência de disposição para atuar pode ser determinada pelo Tribunal Penal Internacional caso entenda que o processo em âmbito nacional se realiza com o propósito de subtrair a pessoa de sua jurisdição ou, ainda, se o processo não tiver sido ou estiver sendo conduzido “de maneira independente e imparcial” (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998, art. 17, 2, b, c). Quanto ao princípio da imparcialidade, nota-se que a prática do Tribunal é orientada por julgamentos seletivos, casuísticos. O distanciamento excessivo de uma orientação mais próxima ao ideal da imparcialidade fere o princípio do juiz natural, segundo o qual ninguém pode ser privado de julgamento por um magistrado independente e imparcial. É claro que tais atributos são ideais, assintóticos, mas é possível aproximar-se deles. O princípio da jurisdição complementar do Estatuto de Roma apresenta uma aparente colisão com o princípio da universalidade jurisdicional, pois o Tribunal tem poder de invalidar os julgamentos de crimes contra a humanidade em curso nos Estados nacionais caso os considerem irregulares. Em virtude dessa prerrogativa, não resta dúvida de que continua a deter o monopólio da decisão, pelo menos em tese, sobre a intervenção na jurisdição territorial dos Estados-parte do tratado. Do ponto de vista teórico, a jurisdição doméstica é precedida pela universal e não o contrário.
2.1 Princípio da permanência e da independência A investigação, porém, de princípios e negociações cujo teor constitui alguns fundamentos do Tribunal Penal Internacional revela paradoxos, contradições e relações de poder assimétricas. A assimetria da construção do Tribunal põe em xeque dois de seus fundamentos: sua permanência e independência. Em primeiro lugar, seu caráter permanente busca evitar que atue como um Tribunal ad hoc ou de exceção, como foi o de Nuremberg, Tóquio e, posteriormente, o da Ex-Iugoslávia e de Ruanda. O caráter excepcional dos Tribunais Penais Internacionais que o precederam atropelava o princípio sagrado da legalidade compreendido à luz do brocardo nullum crime, nulla poena singe lege, como pode ser observado no Artigo 23 do Estatuto de Roma (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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Fundar a permanência e a independência do Tribunal em uma base normativa do governo da lei (rule of the law), cujo teor é abstrato e genérico, é na realidade uma fé cega no direito que ignora o caráter contingente21 da estrutura da realidade concreta. O governo da lei, como já ensinava Aristóteles22, não é forte o suficiente para prever todos os casos da realidade concreta, sobretudo frente a uma situação-limite, cuja eclosão é capaz de mudar o curso dos acontecimentos calculados pela estrutura normativa do direito. O princípio da independência do Tribunal é uma tentativa normativa de, no futuro, evitar sua sujeição à política dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. China, Rússia e os Estados Unidos, três dos cinco integrantes do referido Conselho com direito de veto, que não reconhecem a legitimidade do Estatuto de Roma. As relações internacionais penais não podem ser analisadas apenas da perspectiva do direito sob pena de se relegar a dimensão do político ao ostracismo e, assim, ignorar os antagonismos subjacentes à própria formação de instituições supranacionais, a exemplo do Tribunal Penal Internacional. A análise política da edificação e do papel que desempenha o Tribunal Penal Internacional mostra que a referida corte é uma instituição dependente dos interesses políticos do unilateralismo hegemônico norte-americano e que sua permanência, como, aliás, a de qualquer outra instituição, não depende do mundo do dever ser da estrutura normativa do direito, mas do mundo do ser, das contendas e das decisões políticas soberanas.
Considerações finais A jurisdição penal universal é uma doutrina contrária ao conceito de razão de Estado, cuja principal acepção maquiaveliana se compreende à luz da centralização do poder político pelo governante responsável pela garantia da ordem e segurança dos membros da instituição estatal. O direito penal internacional, junto a sua principal instituição supranacional, o Tribunal, é uma tentativa de judicializar a política, a fim de evitar a violação de direitos humanos. A realidade, porém, revela que o Estatuto de Roma, que consagra o princípio do governo da lei e, por conseguinte, a sujeição do político ao direito e à moral universalizante do conceito de humanidade, é um Tribunal político. A previsão normativa do Estatuto de Roma, cujo teor contempla a permanência e independência do Tribunal Penal Internacional, é insuficiente para aproximá-lo do ideal de impar-
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cialidade. Suas sentenças condenatórias são apenas proferidas contra países pobres e sem força decisória nas disputas que se desenrolam no palco da política mundial. Um dos princípios mais relevantes do Estatuto, o princípio da responsabilidade penal, cuja finalidade é dar cabo à impunidade de governantes, chefes de Estado, oficiais do exército ou qualquer indivíduo que perpetre delito contra a humanidade, funciona de modo seletivo e casuístico: punição para os “pequenos” e impunidade para “os grandes”. Nesse sentido, conserva o resíduo do qual tentara se livrar, pois herdou dos Tribunais de exceção de Nuremberg, Tóquio, da exIugoslávia e de Ruanda o traço assimétrico e excepcional cuja expressão se revela na conduta na qual vencedores julgam vencidos. O Estatuto do Tribunal, apesar de vedar a pena de morte, mantém-se inerte frente aos assassinatos seletivos e aos crimes de guerra, de agressão e contra a humanidade, praticados pelas grandes potências. O Tribunal depende do monopólio da força do Conselho de Segurança, ainda que um dos membros permanentes, os EUA, dite, de modo imperialista, as regras da arquitetura do sistema de segurança mundial. O ideal da paz perpétua kantiana, tão em voga, e tão importante para a fundamentação teórica da criação da jurisdição universal do Tribunal, não revogou a razão de Estado. Além disso, ainda é possível perceber no palco da política mundial reminiscências do cenário hobbesiano da interestatalidade. Ainda há uma aura do direito internacional clássico com alguns Estados soberanos, combinada com a formação de grandes espaços, como a União Europeia, se movendo no tabuleiro complexo do xadrez das relações exteriores. Isso ocorre parcialmente, pois, concomitantemente, o que está em jogo é uma nova estrutura imperial de poder encenada pela grande potência sobrevivente do mundo bipolar: os Estados Unidos. Não se trata mais de anexar domínios, colonizar ou exercer somente uma dominação econômica. O império norte-americano também exerce o seu poder de forma sutil: domina o vocabulário pacifista dos direitos humanos, decide o que é humanidade, guerra justa ou injusta, intervenção humanitária, crime de guerra ou de agressão. A dominação política da linguagem humanitário-pacifista serve de justificativa para o seu unilateralismo hegemônico. Junto à manipulação da retórica dos direitos humanos, o poder imperial norte-americano exerce uma hegemonia bélica em todos os âmbitos espaciais: terra, mar, ar e no espaço cósmico. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 101-138 | janeiro-abril 2013
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O universalismo da jurisdição penal internacional é distinto do universalismo imperial. Enquanto o primeiro se baseia no multilateralismo aparente e no princípio hegemônico democrático-liberal do critério da maioria, o segundo determina seus inimigos e evoca uma teologia política salvacionista para libertar o planeta daqueles que contrariam seus interesses. Não há uma razão de Estado na performance imperial dos Estados Unidos. A razão de Estado pressupõe uma igualdade estatal no cenário internacional onde cada unidade política busca manter sua autopreservação em meio ao equilíbrio interestatal. A razão de Estado se orienta pela máxima: par in parem non habet imperium (não há poder entre pares). Já no caso da prática dos governantes norte-americanos há, na realidade, uma razão de Império cuja força não somente permite criar a ordem internacional, mas também suspendê-la para atingir seus fins estratégicos. Trata-se de uma única razão, cujo traço imperial, e portanto global, suprime a existência de outras razões estatais. No palco da política internacional somente um dono do poder detém o monopólio da criação, manutenção e suspensão da ordem global. A noção de humanidade, na qual o Tribunal Penal Internacional alicerça o núcleo central de suas ideias, é antinômica ao conceito de razão de Estado. Enquanto esta última está ancorada na ética da responsabilidade do governante perante a segurança e a estabilidade da vida de seus governados, a noção de humanidade se define pela crença num valor moral absoluto orientado pela ética da convicção. Seu resultado muitas vezes conduz à postura orientada pela máxima fiat justitia pereat mundus (faça-se a justiça mesmo que o mundo pereça). A instituição do Tribunal parte de uma visão de mundo marcada pelo conceito de humanidade, cuja origem encontra-se num sujeito transcendental dotado de racionalidade e liberdade. Subjacente à noção de humanidade verifica-se uma moralidade universal fundada nos ditames da razão. Tal concepção, alheia à diversidade étnica, cultural, valorativa, rejeita a ideia segundo a qual o sujeito portador da noção universalista de humanidade é sempre historicamente constituído e não escapa a uma determinada concepção surgida no tempo e no espaço a partir de uma crença. Da perspectiva política, em nome de uma determinada compreensão do conceito de humanidade, fundada em uma moral absoluta, jamais as diferenças culturais, a diversidade de modos de vida, de agir, pensar e sentir de coletividades, foram rejeitadas com tamanha pujança. 130
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Notas 1 Essa tensão é ainda mais evidente no âmbito do direito penal internacional em virtude de se constituir numa área que lida com as sanções penais cujo escopo é proteger os bens jurídicos mais valiosos para os seres humanos. 2 Max Weber designaria tais imagens de mundo de um dissenso irremediável entre agrupamentos humanos, precisamente como expressão de um politeísmo de valores (WEBER, 1992, p. 33). 3 Antônio Negri, para quem a soberania dos Estados nacionais está em crise, entende que “‘crise’, significa que a soberania se transfere do Estadonação e vai para algum lugar” (NEGRI, 2003, p. 12). É verdade que há uma crise da soberania estatal, mas não creio ser possível generalizar a sua transferência para “algum outro lugar” que o autor define, de forma vaga, como império. Em minha opinião, há hoje no palco da política mundial uma relação entre diferentes corpos políticos com distintas estruturas observadas a partir da coexistência de Estados-nação, formações imperiais e instituições supranacionais como a União Europeia. 4 Anthony Giddens e Ulrich Beck estão entre os representantes dessa teoria da sociedade calcada na expansão global do risco (GIDDENS, 2003, p. 14-23; BECK, 1999; LUHMANN, 2003). É importante observar que além de Niklas Luhmann ter uma posição diferente daquela dos autores mencionados, desenvolve, ao abordar a questão da contingência no Soziale Systeme de 1981, a noção de risco nas sociedades modernas muito antes de Giddens e Beck. 5 Todas as traduções de citações em língua estrangeira são minhas. 6 A quem se indague se “os europeus realmente ingressaram no paraíso pós-moderno da paz eterna de Kant, ao passo que os americanos persistem no mundo hobbesiano, de uma política de poder para vigiar as muralhas de suas fortificações, que não são defendidas pelos seus beneficiários europeus” (MENDIETA, 2006, p. 94-95). A sedutora imagem de dois mundos concomitantes, o hobbesiano e o kantiano, não convence, pois os países europeus, assim como outros, subordinam o direito universal a seus objetivos políticos quando seus interesses são afetados.
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7 Essa substituição significaria escapar de um cenário interestatal no qual a potencialidade de eclosão de uma guerra jamais pode ser suprimida, pois as unidades estatais detêm o direito de guerra (jus bellum), que é um corolário de sua soberania. A substituição do jus bellum pelo jus in bellum implica, portanto, uma regulamentação jurídica da guerra que busca eliminá-la por meio de sua criminalização. Segundo Celso Lafer, “O jus in bello, cuja codificação se dá no início do século XIX, tem como objeto a regulamentação jurídica e, portanto, do uso da força armada” (LAFER, 1991, p. 168). 8 A Terceira Guerra do Iraque (2003-2011), que devastou o país e aumentou sua insegurança, foi designada pelo governo norte-americano de Operation Iraqi Freedom. Neste caso, a experiência revela como em nome da retórica dos direitos humanos se pratica inúmeros delitos contra a humanidade (CASTELO BRANCO, 2011, p. 289). 9 Habermas, por vezes, se contradiz. Sobretudo ao sentir-se obrigado a mudar
seu diagnóstico de negação do político. Segundo o autor, o 11 de setembro teria trazido de volta o Estado hobbesiano e “a globalização dos mercados não teria conseguido empurrar o político para as margens das relações internacionais” (HABERMAS, 2006, p. 98). 10 Tanto em Bestialität und Humanität [Bestialidade e Humanidade], artigo
publicado no jornal Die Zeit, em 1999, quanto em Ocidente dividido, publicado em 2006, Habermas defende a guerra de Kosovo como intervenção humanitária, precisamente como um “militarismo humanista”. Busca, contudo, escamotear seu fundamento moral da guerra justa em virtude da violação de direitos humanos. De modo retórico, troca o termo moralizante “justo” por “lícito”, a fim de justificar juridicamente sua posição favorável à guerra. Esta deveria ser compreendida a partir do eufemismo de uma “intervenção como a ‘antecipação’ de um direito do cidadão do mundo efetivo — como passo em direção ao caminho do direito internacional clássico para o estado cosmopolita esboçado por Kant, que dará proteção jurídica aos cidadãos mesmo contra o seu próprio governo” (HABERMAS, 2006, p. 89). 11 Essa ideia se opõe ao princípio secularizante cujos regio, ejus religo
(CASTELO BRANCO, 2011, p. 221). 12 A expressão “fundamentalismo dos direitos humanos” é de Luhmann. Ao
criticar o culto aos direitos humanos, o autor equipara “fundamentalismo dos direitos humanos” (Menschenrechtfundamentalismus) com o fundamentalismo religioso (LUHMANN, 2002, p. 291-292). Interessante é também a afirmação segundo a qual “a religião dos ‘Direitos do Homem’ e o culto da ‘identidade nacional’ parecem ser as duas formas de expressão mais marcantes destes últimos anos” (DUFOUR, 1991, p. 5 apud MELLO, 1997, p. 2). 13 Vale a pena chamar atenção para a tese de Hobsbawn segundo a qual a
defesa dos direitos humanos, no novo século, determinará o uso da força militar (HOBSBAWN, 2000, p. 55). 14 Cf. com a resolução 1.422, I, do Conselho de Segurança da ONU (NAÇÕES
UNIDAS, 2002).
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15 Passagem retirada do jornal alemão Frankfurt Allgemeiner Zeitung,
publicado em 2003 (REGIERUNGEN..., 2003). 16 A razão de Estado não é a mera centralização da força pelo Estado, mas
sua concentração pela instituição estatal tem o sentido fundamental da manutenção existencial de seus membros. 17 Poder-se-ia incluir diversos autores no rol de representantes da razão de
Estado, como Botero, Treitschke, Ranke, Hegel, Meinecke. Maquiavel não foi o primeiro a tratar do tema da razão de Estado, mas foi quem mais cedo teria lhe concedido contornos mais nítidos (BOBBIO, 2002). 18 De acordo com Rawls, “Se não for possível uma Sociedade dos Povos
razoavelmente justa, cujos membros subordinam o seu poder a objetivos razoáveis, e se os seres humanos forem, em boa parte, amorais, quando não incuravelmente descrentes e egoístas, poderemos perguntar, com Kant, se vale a pena os seres humanos viverem na terra” (RAWLS, 2001, p. 169). A meu ver, o caráter utópico das ideias de Rawls não contribui para diminuir a intensidade dos níveis de conflitos mas, pelo contrário, ao defender a noção de guerra justa, os eleva. 19 Crer na racionalidade e liberdade humanas e confundi-las com a bondade
natural do ser humano leva à ingênua convicção segundo a qual a liberdade e racionalidade, imanente à condição humana, é destituída da violência e, em certa medida, de aspectos insondáveis nos seres humanos cujo teor escapa a qualquer forma de conhecimento racional ou científico. 20 Do dispositivo, infere-se a impossibilidade do Tribunal reivindicar o
julgamento do filho de Kadafi. Todavia, o porta-voz do Tribunal afirmou que a corte teria legitimidade para fazê-lo. 21 Segundo Niklas Luhmann, “o conceito é alcançado por meio da exclusão da
necessidade e da impossibilidade. Contingente é algo que nem é necessário, tampouco é impossível; algo que, portanto, é como é (foi, será), pode ser, mas também é possível que seja de outro modo. O conceito descreve, por conseguinte, algo dado (Gegebenes) (algo experimentado, o esperado, imaginado, fantasiado) em relação à possibilidade de ser de outro modo; ele designa objetos no horizonte de possíveis variações. Ele pressupõe o mundo dado, não descreve, porém, o possível no geral (überhaupt), mas o que é possível de outro modo do ponto de vista da realidade. [...] A realidade deste mundo é pressuposta pelo conceito de contingência como sua primeira e insubstituível condição de possibilidade” (LUHMANN, 1984, p. 152). A definição conceitual da contingência torna-se necessária na medida em que teorias alicerçadas no postulado do domínio impessoal da lei sobre a razão de Estado abstraem o caráter assimétrico e contingente das relações de poder nas quais homens de carne e osso exercem o poder sobre outros homens. 22 Permito-me remeter o leitor à discussão do governo da lei em Castelo Branco
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Walnice Nogueira Galvão Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e docente do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Tem 35 livros publicados sobre Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e de crítica literária e cultural. Últimos livros: Sombras & Sons (2011), Euclidiana — Ensaios sobre Euclides da Cunha (2009) (Prêmio Academia Brasileira de Letras), Mínima mímica — Ensaios sobre Guimarães Rosa (2008) (Prêmio Biblioteca Nacional) e O tapete afegão (2008). Faz parte do conselho editorial de várias revistas, entre elas Teoria e Debate, Revista IEB, Poesia Sempre e da editora Expressão Popular, do Movimento dos Sem-Terra (MST). Foi professora visitante em universidades na França, em Oxford, na Alemanha e nos Estados Unidos.
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Resumo Gonzaga ou a Revolução de Minas, a única peça de teatro que tem por autor o Poeta dos Escravos, apresenta particular interesse por vários motivos. Entre estes, pela raridade da atribuição de papéis de relevo em nossa literatura dramática a escravos. Em seguida, porque se dirige a um dos mais importantes episódios de nossa história, a Inconfidência Mineira, inextricavelmente associada aos ideais de independência e de formação de uma identidade nacional. Depois, porque, com maestria, apesar de atada a um episódio histórico, sabe operar uma elegante fusão entre fatos documentados e invenção poética, a serviço da estrutura da obra de arte. Ainda mais, figura com destaque na grande missão patriótica a que os românticos, fossem eles poetas ou prosadores, se devotaram: edificar uma dramaturgia nacional. E, finalmente, porque, apesar de pouco reconhecida, nada fica a dever como realização estética. Palavras-chave: Drama. Teatro. Barroco. Arcádia. Romântico. Poeta.
Abstract Gonzaga ou a Revolução de Minas, the only play written by Castro Alves, the “Poeta dos Escravos” (the Poet of the Slaves), is of particular interest for many reasons. First, the play brings slave characters to the foreground, a quality rarely present in Brazilian drama. Second, because Gonzaga ou a Revolução de Minas is about one of the most important historical episodes in Brazil, the Inconfidência Mineira (Minas Gerais Conspiracy), inextricably associated with the ideals of independence and formation of a national identity. Third, although referring to a historical episode, the Poet of the Slaves skillfully creates an elegant fusion of documented facts and poetic creation for the benefit of the work of art’s structure. Furthermore, Gonzaga distinctly represents the great patriotic goal sought by romantic writers, both poets and prose writers: to create a national dramaturgy. Finally, although not well known, Gonzaga does not fall short on expectations as an aesthetic performance. Keywords: Drama. Theater. Baroque. Arcadia. Romantic. Poet.
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Quem fosse um poeta romântico ali pelos meados de 1800 no Brasil, fatalmente gravitaria para o teatro, que era a atividade lítero-social de maior prestígio à época. Só na então minúscula Rio de Janeiro, capital do país, havia 11 teatros, todos fervilhando de atividade. Castro Alves (18471871), da última geração romântica, não fugiu à regra e, embora fosse um extraordinário poeta inteiramente dedicado à sua lira, cometeu, como um pecadilho de juventude, apenas esta peça: Gonzaga ou a Revolução de Minas. Há que se ter em mente ser essa a melhor maneira de atingir o público de então, pois leitores de livros de poesia eram praticamente inexistentes. Sobre o teatro romântico pairava a sombra descomunal de Victor Hugo. Este grande escritor dominou a cena décadas afora, compondo uma peça atrás da outra, umas em verso e outras em prosa; mas sempre com grande sucesso de público. Seu papel seminal devia-se à liderança na revolução que operou na convenção dramática, tornando obsoleto o neoclassicismo, derrubando-o e instaurando o drama romântico. A nova convenção pregava e praticava a mescla de gêneros, apagando os limites antes intransponíveis entre tragédia e comédia. É só pensar no neoclassicismo francês, onde temos de um lado Corneille e Racine compondo tragédias, enquanto a Molière cabia a comédia. Sistematizada por Victor Hugo no prefácio de Cromwell, marcaria a violenta transição a célebre “Batalha de Hernani”, estreia em que partidários de ambas as estéticas vieram às vias de fato, entre pancadaria, apupos e vaias. Para se ver como a frequentação do teatro era então algo vital, à falta da concorrência de outros entretenimentos de massa que hoje imperam, como o cinema, os esportes de estádio e os megashows de rock. Só assim se entende na sua integralidade o processo que levaria Castro Alves a escrever o Gonzaga. Tudo isso se passava na província, bem entendido, mas numa das mais importantes, Pernambuco. Castro Alves tinha deixado sua Bahia natal para matricular-se na Faculdade de Direito do Recife, onde se entregaria à intensa sociabilidade estudantil. Festas, bailes, partidas, caçadas (morreria prematuramente das sequelas de um acidente numa delas), tertúlias, serenatas, debates, participação em espetáculos, principalmente os teatrais, aonde todos acorriam mais para ver e para serem vistos do que para prestar atenção ao palco. Em meio a uma cultura predominantemente oral, gozavam de prestígio os poe-
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tas, que aproveitavam todas as ocasiões coletivas para recitar suas obras, mesmo que em meio à plateia. E, entre estes, tinham mais prestígio ainda os repentistas, aqueles que eram capazes de improvisar versos num átimo. Assim, Castro Alves, aos 19 anos, viu-se alçado à fama, embora apenas local por enquanto, por ter um talento único de versejador, tal qual seu ídolo e mestre Victor Hugo. Filho de família abastada, brilhante e belo como... como um poeta romântico — cabeleira ao vento, olhos negros coruscando, voz vibrante afeita a arrebatar os corações quando declamava —, estava fadado ao sucesso. Pouco faltava para tornar-se líder de uma facção juvenil, ao pôr-se aos pés da famosa atriz portuguesa Eugênia Câmara, que se apresentava com sua trupe em Recife, numa casa de alta reputação como é até hoje o Teatro Santa Isabel. Logo se manifestaria outra facção, comandada pelo colega Tobias Barreto, que tinha por musa a atriz Adelaide Amaral. Sucederam-se as ocasiões em que os dois poetas apresentavam, no mesmo teatro, versos em que exaltavam o talento e a beleza das respectivas egérias. Era a sério e podia levar a duelos. Entretanto, quase tudo desses lances efêmeros infelizmente se perdeu, ficando para a posteridade uma invectiva de Castro Alves, ao ser acusado de adulação, no perfeito verso típico luso-brasileiro da redondilha maior: Sou hebreu! Não beijo as plantas Da mulher de Putifar! (ALVES, 1960).
As claques tomavam partido, ovacionavam e vaiavam, em meio ao tumulto. Hoje é difícil avaliar a extensão da influência que exerciam essas celebridades de então, numa sociedade praticamente ágrafa, em que o poder do verbal predominava e onde se reservavam as maiores admirações àqueles que detinham o dom da oratória. Tudo isso se passava, evidentemente, bem antes do advento da “sociedade do espetáculo”. As grandes causas humanitárias da época dependiam desses tribunos (termo então usado) para sua divulgação e para converter adeptos. Quanto ao mais, tratava-se de um teatro de poetas: era usual que os bardos românticos experimentassem a mão na dramaturgia. Foi no turbilhão de eventos como esses que o jovem poeta e a atriz madura se tornaram amantes. O tórrido romance passou por altos e baixos,
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tendo inclusive uma segunda parte na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. E foi para ela que nosso autor escreveu o drama Gonzaga e a Revolução de Minas.
1 O Barroco e a Arcádia Não é simples precisar porque a Inconfidência Mineira ocupa lugar tão destacado no imaginário brasileiro, já que foi uma revolução gorada, que sequer chegou a eclodir, abortada ainda em botão. E não só no imaginário: também nos currículos escolares, nas comemorações oficiais, na memória estabelecida. A tal ponto que, recentemente, uma pesquisa de opinião pública revelou que o maior herói nacional e o mais amplamente reconhecido é Tiradentes, mártir dessa conjura (CARVALHO, 1990). Familiar para nós desde os bancos escolares, a Inconfidência é conhecida de todos. Recapitulemos os passos principais. Como ponto de partida, temos a considerar o que foi a condição colonial. E não qualquer condição colonial, mas aquela de ascendência ibérica forjada no Novo Mundo. Do lado português, a colônia pobre não forneceu os tesouros de ouro e prata que a porção espanhola conheceu, extorquindo uma incalculável quantidade de metal precioso levado para a Europa, cujo impacto transformaria a economia mundial ao originar o Mercantilismo. Ao mesmo tempo, a Conquista destruía as grandes civilizações asteca, maia e inca para roubar-lhes o ouro que tinham extraído e transformado em obras de arte. Até hoje essas civilizações são pouco conhecidas e reivindicadas. Por carecer de grandes impérios e dispor apenas de sociedades tribais primitivas, sem metais preciosos à vista, as novas terras lusas ficariam relegadas a empreendimentos rudimentares, com escasso povoamento — até que se descobriram as minas. E em tal abundância que a região interior das “minas gerais” viria no futuro a constituir uma província e depois um estado com esse nome. Tendo os portugueses aportado no Brasil em 1500, só passados mais de duzentos anos, ali pelos meados do Setecentos, é que começou a surgir o ouro. E surgiu numa região que se intitularia por isso Capitania das Minas Gerais, dando origem ao que se batizou como Ciclo do Ouro. Este ciclo teve lugar à margem das grandes fazendas dedicadas à atividade agroindustrial exportadora que caracte-
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rizaria o país na esfera da economia colonial, graças à cana-de-açúcar no Nordeste e mais tarde ao café no Sul. Acorreram para a região levas de garimpeiros, tanto do país quanto reinóis advindos de Portugal. Em meio ao caos social que se instaurou, a Coroa portuguesa tratou de impor seus direitos e cobrar um imposto, denominado o Quinto: ou seja, um quinto de todo o ouro achado lhe pertencia. É claro que havia todo tipo de contrabando e de sonegação, de modo que de tempos em tempos era lançada a Derrama, ou cobrança à força dos impostos atrasados. Se o Quinto não bastasse, cobrava-se o que faltasse para completar cem arrobas ou 1.500 quilos. Lá vinha o governador da capitania, nomeado por Portugal, com suas tropas, para arrancar seu peso em ouro e completar de qualquer jeito o que a província devia à Coroa, gerando enorme descontentamento e um estado de ânimo pré-sedicioso. Foi numa dessas ocasiões que começou a grassar a cizânia no seio de um grupo dos mais seletos “homens bons” de Vila Rica (hoje Ouro Preto), sede da capitania interior que constituiria por muito tempo o único estado sem saída para o mar. Capital do barroco brasileiro, mais tarde o súbito esgotamento dos mananciais preservaria as cidades tais quais eram, com seus lindos topônimos, Vila Rica, Sabará, Mariana, Tiradentes, São João Del Rei, Congonhas do Campo, São Bom Jesus de Matosinhos. Toda essa prosperidade era financiada pela mineração. O precoce conjunto urbano em país agrário suscitaria artistas, pintores, músicos — basta lembrar a Escola Sacra Mineira que Curt Lange trouxe à luz ao vasculhar as arcas das sacristias — mestres da talha e da douração, arquitetos, inclusive o grande Aleijadinho (por nome João Francisco Lisboa), considerado o maior escultor até hoje surgido no Brasil. Seu estilo crioulo, dentro do barroco ibérico e do Novo Mundo, guarda afinidades com o barroco centro-e-leste-europeu. Um arquipélago de casario caiado, aninhandose nas sinuosidades do planalto central, estilisticamente harmonioso e preservado: um dos tesouros do país, tombado pela Unesco como patrimônio da humanidade. Maravilhando viajantes de séculos idos, as numerosas igrejas, inteiramente forradas de ouro, na filigrana da ornamentação rivalizam em esplendor e fausto com suas irmãs neoibéricas, do México à Patagônia. Grande arte de traços mestiços, às vezes mais europeia, às vezes mais indígena e negra. Oswald de Andrade dedicoulhes estes versos em seu poema “Ocaso”:
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Bíblia de pedra sabão Banhada no ouro das minas. (ANDRADE, O., 1972).
Ante a ameaça da Derrama imposta pelo governador português da capitania, Luiz Antonio Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, sexto visconde de Barbacena, os cidadãos começaram a falar em resistir e até em declarar a independência da capitania. Reuniram-se bacharéis e juristas, sacerdotes, altos funcionários, fazendeiros, senhores de escravos. Montaram uma conspiração e enviaram ao Rio de Janeiro um emissário, Joaquim José da Silva Xavier, alferes-dentista do exército e por isso conhecido como “o Tiradentes”, para angariar apoio. Devotaram-se a criar uma bandeira, com o dístico em latim: Libertas quae sera tamen (aproximadamente: Liberdade ainda que tardia). Essa bandeira mais tarde seria adotada pelo Estado de Minas Gerais, e até hoje é a mesma; apenas o triângulo central passou do verde inconfidente a vermelho. A data do levante foi escolhida para o dia da decretação da Derrama, que afinal constituiria seu estopim. Tudo isso conforme obrigatoriamente aprendemos na escola. Os cabecilhas eram também poetas e se contam entre os principais bardos da Arcádia de língua portuguesa no Novo Mundo, a chamada Arcádia Ultramarina, conforme a estética predominante à época. Entre eles, dois se destacam: Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. O primeiro é o principal poeta árcade brasileiro e grande sonetista, sob o pseudônimo de Glauceste Satúrnio. O segundo ficou conhecido pelas Liras, em que canta seu romance com Maria Dorotéia de Seixas, de quem estava noivo. Também é o autor anônimo da sátira à clef anticolonialista Cartas chilenas, endereçada ao antecessor de Barbacena, o governador Cunha Menezes, referido como Fanfarrão Minésio. Os noivos passaram para a história pela desgraça que os fulminou, portando suas alcunhas na convenção arcádica tal como aparecem nas Liras: Marília e Dirceu. Até hoje são onomásticos populares, dados no batismo às crianças. Um inconfidente, Joaquim Silvério dos Reis, levou notícia da conspiração às autoridades, que imediatamente passaram a desbaratá-la, sob as ordens de Barbacena. Muitos foram presos e condenados à morte por crime de lesa-majestade. Cláudio Manuel da Costa apareceu morto na cadeia, possivelmente por suicídio devido ao remorso por ter delatado os companheiros (SOUZA, 2011). Gonzaga acabou por ser degredado para
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Moçambique, onde terminaria seus dias. A rainha D. Maria I, a Louca, comutaria a pena de morte em degredo para todos, mas ao poder convinha fazer um exemplo público, honra que coube a Tiradentes. Enquanto os demais eram ilustres e ricos, ele era um homem do povo, sem bens e sem conexões conferidas pelo prestígio e pelas posses. Conforme consta dos Autos da Devassa, que coligem os documentos originais do processo, Tiradentes assumiu com abnegação suas responsabilidades e seus propósitos separatistas, não denunciando ninguém. Foi enforcado e esquartejado, seu corpo desmembrado exposto em vários locais e a cabeça fincada num mastro defronte à sede do governo em Vila Rica, tal como aparece na ousadia sangrenta da gigantesca tela de Pedro Américo1. Sua casa foi arrasada e salgada. Aos poucos adquiriria o estatuto de Mártir da Independência, mesmo que a conspiração apenas visasse ao separatismo local, só da Capitania das Minas Gerais e não de uma nação ainda por existir. Da forca transitaria para incontáveis pinturas, esculturas, romances, peças de teatro, filmes, sinfonias e concertos, poemas, selos postais, notas de dinheiro, escolas, canções, desfiles de escola de samba, nomes de cidades e o Hino da República. No seio de uma tal pletora, quase dois séculos depois ainda viriam à luz duas grandiosas obras-primas a ele dedicadas: um volume de poemas intitulado Romanceiro da Inconfidência, composto por Cecília Meireles, e o mural Tiradentes, pintado por Portinari. A iconografia deixa transparecer sua progressiva assimilação à representação convencional de Jesus Cristo. É possível que se Castro Alves o tivesse escolhido para protagonista, sua peça sobre a Inconfidência Mineira conhecesse melhor sorte. Ainda mal bruxuleava uma consciência do Brasil como pátria, bem como a reivindicação de uma unidade nacional que o separasse inteiro de Portugal; e três décadas se passariam antes que isso ocorresse, em 1822. Eclodindo no mesmo ano que a Revolução Francesa, a inspiração ideológica da conjura vinha inevitavelmente da Ilustração. Por muito tempo o Brasil consideraria essa revolução como sua, festejando com salvas de canhão o 14 de julho, data da tomada da Bastilha. E ainda serviria de modelo para a instauração da República, em 1889, proclamada que foi por oficiais procedentes da Escola Militar do Rio de Janeiro, onde estudavam a Revolução Francesa e aprendiam seus ideais. A Marselhesa era mais cantada nas ocasiões oficiais que o próprio hino nacional brasileiro. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 139-158 | janeiro-abril 2013
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2 Poeta dos escravos O que levaria Castro Alves a se consagrar a uma tal causa e passar à História como o Poeta dos Escravos? Quando o Romantismo adveio como um terremoto estético, transgredindo todas as normas, estourando os limites do verso ao alongá-lo, ultrapassando os ditames do bom-gosto, mesclando os gêneros, exaltando a desmesura das paixões e por isso reabilitando Shakespeare, também trouxe em seu seio o ímpeto messiânico. O poeta, vate inspirado, comprometia-se a lutar pela emancipação da humanidade, livrando-a dos vários grilhões que a sujeitavam. O Romantismo carregava consigo os ideais da Ilustração, de que era fruto, embora rejeitasse os cânones do neoclassicismo, nisso já filho da Revolução Francesa. Poeta romântico que se prezasse colocava-se a serviço dos oprimidos. Byron foi para a Grécia, onde morreria, para lutar ao lado dos gregos contra o invasor turco. Victor Hugo escolheria os pobres, e seu romance até hoje mais popular se intitula Os miseráveis, em que o caudaloso enredo decorre do furto de um pão pelo protagonista, para matar a fome. Pelo mesmo diapasão, Castro Alves escolheria dedicar-se aos escravos. Viria a ser um poeta engajado, ou seja, arauto e profeta, anunciador do futuro e cantor da liberdade. Afora ser grande poeta, seus versos candentes sobre a escravidão acabariam por garantir-lhe um lugar especial na posteridade. “Navio negreiro” é um poema extraordinariamente belo, que encontra ressonância ainda hoje, em versos ressumando indignação: Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... (ALVES, 1960).
Declamado pelo autor num teatro de São Paulo em 1868, “Navio negreiro” seria incluído no livro póstumo Os escravos. Um poema de mesmo título, de autoria do alemão Heinrich Heine, era conhecido no Brasil desde 1854, data de sua composição. Foi traduzido e comentado por vários escritores mas, afora partilharem o título, os dois poemas diferem radicalmente,
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seja pelo estilo, seja pelo escopo (ROSENFELD, 1994). Outro poema importante desse livro é “Vozes d’África”. Castro Alves revela ainda o senso messiânico em sua devoção à causa da leitura e da educação, intentando livrar a humanidade de um de seus grilhões, a ignorância. É bom exemplo “O livro e a América”, integrante de seu livro de poesia Espumas flutuantes (1870), único que veria publicado. Assim declara, entre louvores ao Século das Luzes, às revoluções e ao progresso tecnológico: Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mancheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe — que faz a palma, É chuva — que faz o mar. (ALVES, 1960).
Quanto aos confrades dentro do horizonte a que pertencia, em certo aspecto Castro Alves destoa deles: saudável, inflamável e arrebatado, nada tem da morbidez que caracteriza os demais. É verdade que a tuberculose e a vida breve espreitam a todos, embora, divergindo, ele não figurasse entre os adoradores da morte2. Certos tópicos tornam-se reiterativos na obra deles, sumariando a timidez ante o feminino nesses cantores do amor impossível ou irrealizável. Dados biográficos ajudam a esclarecer a questão: Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu morreram aos 21 anos, Castro Alves aos 24, Junqueira Freire aos 27, Fagundes Varela aos 36, destacando-se entre eles um verdadeiro ancião, Gonçalves Dias, que faleceu na provecta idade de 41 anos. E esses são os principais poetas românticos brasileiros. O mentor da poesia romântica por todo o continente, Victor Hugo, deu o exemplo de uma arte de altos voos e escolheu para emblema pessoal a águia. Por isso os poetas do Novo Mundo assumiram como emblema o condor, a águia sul-americana, e criaram o “condoreirismo”, rótulo dessa poesia oratória, devotada a causas humanitárias. Os hugoanos acolhem do mestre a grandiloquência, as antíteses, as apóstrofes e invectivas. Em Castro Alves vai predominar a imaginação cósmica e o gosto pelo titânico. Suas antíteses exploram os valores simbólicos da oposição entre luz (liberdade, emancipação, idealismo) e trevas (escravidão, opressão, ignorância). Deísta e panteísta, o cristianismo só lhe valendo como fonte Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.8 n o21 | p. 139-158 | janeiro-abril 2013
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de símbolos e metáforas, até nisso está em sintonia com Victor Hugo. Como também em sua concepção da História, bem oitocentista, tomando-a enquanto marcha do progresso rumo à melhoria, firme em sua fé na perfectibilidade humana. Mas este aspecto de sua produção literária não deveria deixar na sombra a vertente lírica, que é poesia intimista da melhor qualidade. Pense-se na sensualidade das sugestões eróticas de sinhazinhas suspirando enquanto cochilam na rede, à hora da sesta imposta pelos ardores tropicais. Nunca é demais assinalar que as observações sobre as dificuldades de nossos poetas românticos em lidar com a sexualidade não se aplicam a Castro Alves, em que ela é exuberante e assumida.
3 Escravidão, República, nacionalismo Reúnem-se com maior evidência em Gonzaga e a Revolução de Minas as três preocupações do autor — três para nós, porque para ele eram uma só: a escravidão, a República e o nacionalismo, entretecidos. Quanto a este último, não custa ter em mente que o Romantismo foi responsável por acender a fogueira do nacionalismo em toda parte, e não só no Brasil. Em regra, as aspirações brasileiras almejavam uma República de homens livres, fundamentada ao mesmo tempo no fim do cativeiro e no fim da monarquia. Mas a realidade seria outra, bem diferente. Exceção no movimento geral que emancipou as colônias hispânicas no início do século XIX, quando o Brasil, a exemplo delas, se tornou independente em 1822, manteve ambas as instituições, tanto o cativeiro (só liquidado em 1888) quanto o trono (só derrubado um ano depois). Muito tempo se passou, portanto, até que essa dupla reivindicação fosse atendida. Embora militante dessas causas, nosso poeta não veria nenhuma delas efetivada, morrendo antes, em 1871. Na peça é incessantemente enfatizada a servidão em paralelo: escravidão dos negros aos brancos, escravidão dos brasileiros aos portugueses — dois índices (etnia, geopolítica), mesmo resultado. Mas é esse o triplo ideário que comanda a feitura deste drama, e que o faz, por exemplo, exagerar o nacionalismo dos inconfidentes, quando ainda não havia propriamente uma noção de pátria e o separatismo era só mineiro. Daí decorre a licença poética de que se vale em certas opções, cuja razão estética procuraremos analisar.
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Entre as várias entorses que Castro Alves infligiria à verdade histórica, talvez a mais saliente seja a atribuição de desígnios antiescravistas aos inconfidentes, senhores de escravos e alguns deles com filhos mulatos bastardos havidos de suas concubinas negras, o que era costume generalizado nas colônias do mundo todo. Eram adeptos da forma republicana de governo, mas, a exemplo dos Founding Fathers nos Estados Unidos, muito reticentes quanto a abrirem mão de seus valiosos cabedais humanos. Tampouco lá a independência da nação, mesmo que, diferentemente do Brasil, trouxesse a República, implicaria a emancipação dos cativos, posteriormente motivo de uma vasta conflagração, a Guerra da Secessão, que dilaceraria o país. Mas com essa entorse maior, o enredo pôde concentrar-se parcialmente em escravos, e não só em seus senhores brancos. Entorses menores são examinadas a seguir. Como drama romântico, o enredo exige um idílio, ou seja, uma história de amor nuclear. E, para se desenvolver, um antagonista ou vilão que tente impedi-lo, criando o conflito dramático. É aqui que Castro Alves encontra à sua disposição na História, e já pronto, o noivado entre Tomás Antonio Gonzaga (maduro, com 45 anos) e a jovem Maria Dorotéia de Seixas, ou entre Marília e Dirceu. Mas, num lance de prestidigitador, toma a liberdade de atribuir a Barbacena desígnios luxuriosos com relação à dama e o uso de truques imorais para realizá-los. O idílio branco tem sua contrapartida num “idílio” negro. Carlota, a escrava, ainda na infância fora separada do pai, escravo alforriado e fiel servidor de Gonzaga, almejando reencontrá-lo. Outro vilão de verdade, o delator Joaquim Silvério dos Reis, faz de tudo para violentá-la, ameaçando seu namorado e seu pai. A violentação é também moral, porque, em troca de prometer encontrar-lhe o pai, obriga-a a servir como espiã infiltrada e a trair sua senhora Maria Dorotéia, apoderando-se dos papéis secretos com os planos da conspiração. A ameaça de Silvério é desvirginá-la e depois lançá-la como presa inerme aos homens da senzala. Por outro lado, Castro Alves avança detalhes que hoje nos parecem inverossímeis, ao mostrar Gonzaga bordando as vestes nupciais. Inverossímeis mas verdadeiros, e que se vão entranhar no imaginário brasileiro desde os Autos da Devassa. Oswald de Andrade e Cecília Meireles repetem
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o para nós bizarro detalhe, que vai reaparecer no filme de Joaquim Pedro de Andrade Os Inconfidentes (1972) (SOUZA, 1980). E, numa curiosa antecipação do ready made louvado e explorado pelas vanguardas, são incrustadas no drama várias estrofes autênticas das Liras de Gonzaga. A avassaladora presença da Revolução Francesa, que enquanto revolução burguesa foi modelo para todas as independências das Américas, incluiu nos preparativos o cuidado de trocar correspondência e mesmo enviar emissários em busca de apoio tanto aos Estados Unidos quanto à França. A referência a ela juntamente com a Inconfidência Mineira até que não seria tão surpreendente, pois ambas deflagram no mesmo ano de 1789. Porém, menos justificáveis são as alusões diretas à Marselhesa e a Napoleão, que não poderiam ser mencionados pelos inconfidentes sem anacronismo. Mas faziam, sim, parte do ideário de Castro Alves. A notar que a alusão a Napoleão só aparece no poema final, a ser declamado como uma apoteose, numa outra postura que a da peça: ou seja, com distanciamento e em registro diverso, enquanto palavra do autor impregnada por seu tempo. Que o leitor evoque Eugênia Câmara saindo de seu papel e proferindo, com arrebatamento e sem personagem interposta, a fervente peroração libertária do autor. A força da retórica afinal combina com o discurso elevado que convém à tragédia, pois o drama romântico, se mescla a comédia à tragédia, neste caso termina por esta, que é por definição excludente.
4 A senzala e o sobrado A peça desenrola-se em dois espaços opostos no confronto entre natureza e civilização, que são simultaneamente icônicos, sociais e simbólicos: o bosque e o sobrado. O primeiro ato (“Os escravos”) tem por cenário o bosque, aqui entendido como uma metonímia, ou mesmo um eufemismo, para senzala, que seria um cenário mais cru. As várias cenas, com entradas e saídas de personagens, mantêm-se no mesmo cenário. Este ato inicial já coloca os nós da intriga. E esta, como vimos, é comandada por dois triângulos que se espelham. Na senzala: Carlota x Silvério x Luís. No sobrado: Maria x Barbacena x Gonzaga.
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São duas situações dramáticas, ou a mesma situação desdobrada, em que um vilão histórico (Silvério, o delator/ Barbacena, o governador verdugo) corrompe ou tenta corromper uma moça (filha/ noiva: Carlota/ Maria) que pertence a outro (Luís/ Gonzaga). Ou, poderíamos dizer, um romance negro e um romance branco. O segundo e o terceiro atos (“Anjo e demônio”, “Os mártires”) passam-se num interior luxuoso e na frente de uma casa. Ambos integram o sobrado, lar do tenente-coronel João Carlos, adversário dos inconfidentes, onde vive Maria Dorotéia, sua sobrinha. O quarto ato (“Agonia e glória”) desloca-se de Vila Rica para outra cidade, o Rio de Janeiro, e para a prisão. O novo espaço conjuga e como que nivela os dois anteriores, pois degrada o sobrado e eleva a senzala. Estão reunidos todos os personagens, menos Carlota que já morreu; e se dá ali a osmose final entre o ex-escravo Luís, que se revelou um aliado, e Gonzaga. A Inconfidência irmana-os, passando por cima da diferença de classe e de cor da pele, importando apenas os ideais redentores de ambos. Dos dois triângulos, somados à conspiração, decorre o suspense da peça, que aos poucos vai-se desenrolando e se encaminhando para o desenlace. As duas moças, afinal, conseguem o que querem, de modo nuançado, no entanto: Maria queima os papéis incriminatórios e não cede ao governador, mas perde o noivo para o exílio; Carlota reencontra o pai, mas paga sua deslealdade com o suicídio. Há muitos lances e peripécias, em torno principalmente desses papéis e dos anseios de Carlota de reencontrar o pai. Há que admirar a sábia opção de evitar que os dois triângulos sejam absolutamente iguais. Sendo o triângulo negro constituído por pai e filha e não por um casal, permite ao mesmo tempo retirar a rigidez mecânica da repetição pouco imaginosa e enfatizar aquilo que à época se considerava o mais grave da escravidão e que era fragmentar a família. Tendo como motor central uma poderosa emoção, justapõem-se o amor nupcial e o amor filial.
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5 O enredo e seus clichês O enredo, como não podia deixar de ser em tal época e em obediência a tal estética, vai explorar a panóplia pop do melodrama que herdamos do Romantismo. A peça utiliza a troca de identidades, ou a identidade secreta, pondo em cena Carlota e Maria mascaradas, ou Carlota vestida de homem. A castidade em perigo vem a seguir e é o caso das duas moças. Não faltam os amores contrariados. As crianças roubadas estão presentes, já que esse é o destino de Carlota, subtraída ao pai ainda na infância. As falsas confidências3 abundam e chegam às cartas falsas, quando Barbacena obriga Maria a escrever uma delas, e mentirosa, dizendo que já se entregou a ele. Os papéis secretos ocupam função central: passam pela mão das duas mulheres; têm cópia sem o mesmo valor do original, mas útil para semear quiproquós; servem para mostrar a força de caráter e a autonomia de Maria, que engana Barbacena e os lança ao fogo. Como se não bastasse um, há dois exemplos de papéis secretos: os planos dos conjurados e a carta falsa de Maria a Barbacena. Ocupa ainda lugar de relevo no enredo o clichê da castidade em perigo, ou o risco que a virgindade corre de se conspurcar. Neste caso, Maria escapa e Carlota, perdendo-se, se suicida, o que é uma boa maneira de mostrar como a escrava é mais vulnerável. E se, em respeito à simetria, seria de esperar que no “romance negro” o vilão também fosse negro, é de ressaltar que, para enfatizar a iniquidade da escravidão, os dois vilões sejam brancos. Poderíamos pôr na conta dos clichês uma velha anagnórise aristotélica. Dos tipos de anagnórise de que fala Aristóteles, um deles, e dos mais toscos, é a revelação “por coisas inanimadas”. E é o que se passa com o reconhecimento mútuo de Carlota, a filha, e Luís, o pai, mediante o rosário de prata de Carlota que pertenceu à mãe — aliás, à época, um truque usual no teatro romântico. Esses clichês melodramáticos têm longa vida, e se já vinham de antes, da literatura e do teatro populares, dali passaram ao folhetim, onde imperaram por largo tempo, migrando depois tanto para o cinema quanto para a novela de rádio e de TV. O manejo que Castro Alves sabe fazer desses
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clichês mostra como entendia de carpintaria teatral, no que geralmente se considera a assessoria que recebeu de Eugênia Câmara. Por outro lado, nada há a censurar a uma possível concepção estática mais “literária” da dramaturgia, tendente à declamação, e posteriormente tão prestigiada no teatro moderno, sobretudo o simbolista. Longe disso. A atenção à dinâmica do entrecho não desfalece. Cada ato é entrecortado por um grande número de cenas, que propiciam a movimentação de entrada e saída de personagens. Enquadrando os dois centrais, temos o Ato I, de apresentação, com onze cenas, e o Ato IV, de desenlace, com treze. Os dois atos centrais não só são mais densos como mais extensos: o Ato II tem catorze cenas (e entre elas a mais longa da peça, a do confronto entre Maria e Barbacena) e o Ato III, vinte.
6 ... E depois Não foi das mais brilhantes a sina deste drama, que hoje em dia está praticamente relegado à poeira dos arquivos. Castro Alves, que o considerava como parte da militância de propaganda antiescravista/republicanista/nacionalista, empunhou suas bandeiras e batalhou para vê-lo levado à cena na Bahia e em São Paulo, para onde viajou com Eugênia Câmara e gozou de extraordinário sucesso pessoal, mas onde sofreria o acidente de caçada que apressaria sua morte. A encenação paulistana, em nível profissional, teve enorme repercussão. No Rio de Janeiro, aproveitou a oportunidade para apresentar o texto a José de Alencar, que o recomendaria a Machado de Assis. Com efeito, tratou-se de excepcional ocasião, pois ambos, cada qual a seu turno, o receberam em casa e ouviram a leitura feita pelo próprio autor. A carta de recomendação de José de Alencar a Machado de Assis é longa, ocupando hoje quatro páginas de livro (ALVES, 1960). Mas a resposta deste, com seis páginas, é ainda maior. Ambos concordam no diagnóstico: obra de um grande poeta ainda em botão, a peça patenteia, segundo Alencar com anuência de Machado, “exuberância de poesia”. Observam que a peça tende ao excesso, o que é perdoável tendo em vista a juventude do poeta e seu incoercível talento. Para Machado, as “demasias do estilo” não empanam as “louçanias da forma”. E a naturalidade do estro poético é louvada por ambos. Com estes, que eram então os maiores ro-
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mancistas do país bem como tarimbados dramaturgos, figurando como numes propiciatórios das primícias do Gonzaga, é de admirar o destino obscuro da peça. Não só o Gonzaga não sobe aos palcos há muito tempo, como ainda, se atentarmos para suas virtudes literárias que certamente não desmentem as qualidades cênicas, tampouco tem despertado o interesse de leitores e de estudiosos. Nisso não difere muito do teatro brasileiro à época, quando as peças, se não ficavam na gaveta, eram encenadas uma vez ou duas e caíam imediatamente no olvido. A essa altura, contavam-se entre esses bravos poetas alguns prosadores hoje clássicos e a seu tempo prestigiadíssimos, que escreveram para o teatro, como os supracitados José de Alencar e Machado de Assis. Todos eles assumiam conscientemente a missão patriótica de criar uma dramaturgia nacional, missão a que se dedicavam com afinco e que os levava a importantes reflexões conceituais, até hoje fonte de muito de nossa teoria dramática. Mas o público preferia a leveza das peças estrangeiras, especialmente as francesas e as ibéricas, não tão sérias, de concepção mais popularesca (PRADO, 1993, 1996, 2008) e deixava vazios os teatros onde se representavam esses autores. No entanto, é lícito pensar que um bom diretor saberia trazê-las, tanto o Gonzaga quanto outras, à vida. Basta pensarmos que durante décadas era fato indiscutível que o teatro de Oswald de Andrade, brilhante poeta e ficcionista do Modernismo, não era encenável, por ser demasiado literário e pouco dramático. Até que apareceu José Celso Martinez Corrêa e seu Teatro Oficina, num momento de apogeu, produzindo a obra-prima da encenação brasileira que é O rei da vela (1967). É de senso comum a opinião de um grande ator, Paulo Autran, marcado pela formação mais convencional no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), e que foi durante toda a sua vida reputado como o melhor do país entre seus confrades. Paulo Autran declarou mais de uma vez que, embora ele próprio não figurasse no elenco, essa foi a encenação mais importante de toda a história do teatro brasileiro. Dramaturgo bissexto, Castro Alves constitui o raro caso de um poeta datado mas que atravessa as gerações. Afora a leitura da peça, Alencar e Machado ouviram a recitação de vários poemas, expressando sua admiração também por estes. Mais tarde, Mário de Andrade, autor de Macunaíma, líder do Modernismo e crítico literário influente, dedicou-lhe ensaio em 156
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que se revela seu fã, apesar de estar vivendo em plena iconoclastia modernista. Ali fala de suas virtudes e defeitos, nos quadros da poesia brasileira, sem deixar de assinalar o “pantagruelismo carnívoro da oratória” (ANDRADE, M., 1972). Completando, Antonio Candido (1959), que posteriormente se tornaria o mais importante crítico literário do país, opera uma avaliação global muito positiva, no bojo de sua obra magna de balanço de toda a literatura brasileira. Mal percebemos o quanto nossa leitura hoje depende dos achados críticos de todos eles. Quanto aos protagonistas históricos, tanto Tiradentes quanto Castro Alves podem ser ressuscitados em épocas negras, quando se necessita deles. Na última ditadura militar brasileira (1964-1985), o Teatro de Arena, trupe de militância na oposição à tirania, encenou os espetáculos Arena conta Tiradentes (1967) e Castro Alves pede passagem (1971). As implicações políticas libertárias são evidentes. Em seguida, a ditadura desbaratou o Teatro de Arena, que deixou de existir. E quanto a Gonzaga e a Revolução de Minas, permanece, com a vênia de Pirandello, uma peça em busca de encenador.
Notas 1 O quadro de Pedro Américo (1843-1905), intitulado Tiradentes, ou Tiradentes Supliciado, integra o acervo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG). 2 Mário de Andrade fala dessa geração no ensaio que vai buscar seu título num poema de outro poeta romântico, Casemiro de Abreu, “Amor e medo” (ANDRADE, 1972). 3 Título de uma peça de Marivaux, Les fausses confidences, de 1737, a sugerir que esse tipo de muleta do entrecho antecede ao Romantismo.
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Referências ALVES, A. Castro. Diálogo epistolar entre José de Alencar e Machado de Assis. In: ALVES, A. Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960.
ANDRADE, Mário. Amor e medo. In: ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1972.
ANDRADE, Oswald de. Ocaso. In: ANDRADE, O. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1972. CANDIDO, Antonio. Poesia e lirismo em Castro Alves. In: CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1959. v. 2. CARVALHO, J. M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MARIVAUX, P. Les fausses confidences. Paris: Prault Père, 1737. MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1953.
PRADO, Decio Almeida. O drama romântico brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996. PRADO, Decio Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo: Edusp, 2008. PRADO, Decio Almeida. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993. ROSENFELD, A. Castro Alves e Heinrich Heine. In: ROSENFELD, A. Letras e leituras. São Paulo: Edusp: Perspectiva, 1994. SOUZA, Gilda de Mello e. Os inconfidentes. In: SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980.
SOUZA, L. Mello e. Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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NÚMEROS ANTERIORES
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EDIÇÃO 16 Repercussões do ICMS ecológico na gestão ambiental em Mato Grosso, Brasil Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel Sueli Ângelo Furlan
A hora de ir para a escola Daniel Santos
Criatividade Marsyl Bulkool Mettrau
Entre o drama e a tragédia: pensando os projetos sociais de dança do Rio de Janeiro Monique Assis Nilda Teves Ginástica escolar como dispositivo biopolítico-pedagógico: uma análise da relação entre educação, saúde e moralidade em Fernando de Azevedo Murilo Mariano Vilaça
EDIÇÃO 17 Cidade Maravilhosa: encontros e desencontros nos Projetos de Remodelação urbana da capital entre 1902 e 1927 José Cláudio Sooma Silva
A captura do gosto como inclusão social negativa: por uma atualização crítica da ética utilitarista Marco Schneider
Inovação, tecnologias sociais e a política de ciência e tecnologia do brasil: desafio contemporâneo Marcos Cavalcanti André Pereira Neto
Recentes dilemas da democracia e do desenvolvimento no Brasil: por que precisamos de mais mulheres na política? Marlise Matos
Trabalho infantil no Brasil: rumo à erradicação Ricardo Paes de Barros e Rosane da Silva Pinto de Mendonça
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EDIÇÃO 18 O debate parlamentar sobre o Programa Bolsa Família no governo Lula Anete B. L. Ivo José Carlos Exaltação
Educação para a sustentabilidade: estratégia para empresas do século XXI Deborah Munhoz
Fagulhas do autoritarismo no futebol: embates sobre o estilo de jogo brasileiro em tempos de ditadura militar (1966-1970) Euclides de Freitas Couto
Juventudes, violência e políticas públicas no Brasil: tensões entre o instituído e o instituinte Glória Diógenes
A máquina moderna de Joaquim Cardozo Manoel Ricardo de Lima
EDIÇÃO 19 Um convite à leitura Gabriel Cohn
Caio Prado Jr. Como intérprete do Brasil Bernardo Ricupero
As raízes do Brasil e a democracia Brasilio Sallum Jr.
Gilberto Freyre e seu tempo: contexto intelectual e questões de época Elide Rugai Bastos
Entre a economia e a política – os conceitos de periferia e democracia no desenvolvimento de Celso Furtado Vera Alves Cepêda
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EDIÇÃO 20 Interpretações do Brasil e ciências sociais, um fio de Ariadne André Botelho
Ações afirmativas em cursos de graduação no Brasil aumentam a diversidade dos concluintes sem comprometer o desempenho? Fábio D. Waltenberg Márcia de Carvalho
Três críticos: Antonio Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa Francisco Alambert
Gonçalo M. Tavares: o ensaio, a dança, o espírito livre Júlia Studart
Caio Prado Jr. e o intelectual marxista hoje Marco Aurélio Nogueira
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1 - A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio – Sesc e tem por objetivo contribuir para a difusão da produção acadêmica, proporcionando diálogo amplo sobre a agenda pública brasileira. A publicação oferece a pesquisadores, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões da realidade social. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos governamentais de interesse, principais bibliotecas no Brasil e em todas as bibliotecas do Sesc e Senac. 2 - A publicação dos artigos e ensaios está condicionada à emissão de parecer de especialistas e dos membros do conselho editorial, garantido o anonimato dos pareceristas no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo, por parte da Editoria, são previamente acordadas com os autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição. 3 - Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD (ao endereço a seguir), digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5. As páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha. Departamento Nacional do Sesc Divisão de Planejamento e Desenvolvimento - Gerência de Estudos e Pesquisas Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004, Rio de Janeiro - RJ
4 - O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail do(s) autor(es), que se responsabilizam pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve informar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica. A mensagem deve incluir ainda endereço, telefone e, em caso de mais de um autor, informar o responsável pelos contatos. 5 - O texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 caracteres (sem contar o resumo e as referências bibliográficas). Os resumos em português e em inglês (Abstract) que acompanham o texto devem ter entre 10 e 15 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.
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6 - O texto deverá conter: a) título do trabalho em português (no máximo uma linha); b) título abreviado; c) nome do(s) autor(es); d) resumo em português e em inglês; e) palavras-chave – máximo seis; f) referências bibliográficas apresentadas conforme as normas da ABNT, NBR 6023/2002 e NBR 14724/2002; g) citações no artigo conforme NBR 10520/2001. 7 - Anexos, tabelas, gráficos, fotos, desenhos com suas respectivas legendas etc. devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível, deverão ser elaborados para sua reprodução direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF). 8 - Um currículo (incluindo dados pessoais: nome completo, endereço, telefone para contato e documentação própria) e um minicurrículo deverão ser entregues com o artigo. O minicurrículo deverá conter os principais dados sobre o autor: titulação acadêmica, cargo ocupado, áreas de interesse, últimas publicações, e-mail (se assim o desejar) etc. As siglas de instituições ou projetos devem vir por extenso. Ex.: Pontifícia Universidade Católica (PUC). O minicurrículo deverá ter entre 5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10. 9 - As referências bibliográficas devem ser dispostas no final do artigo, em ordem alfabética e cronológica, de acordo com o sobrenome do(s) autor(es) que, em caso de repetição, deve(m) ser sempre citado(s).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – EXEMPLOS Livros BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1976. BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990. RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 4v.
Capítulos de livros DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5. p. 14-110. LYOTARD, J.F. Capitalismo energúmeno. In: CARRILHO, Manuel Maria (Org.). Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976. p. 83-134.
Ensaios em revistas DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 817-838, set. 2003.
Documentos e pesquisas IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): 1982 a 2006. Rio de Janeiro. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB): 1995, 1999, 2001, 2005. Brasília, DF.
Internet INEP. Sinopses estatísticas da educação básica: 1994 a 2005. Disponível em: <http:// www.edudatabrasil.inep.gov.br>. Pesquisado em jan. 2012.
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Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std e impressa em papel pólen 90g, na Setprint Gráfica e Editora.
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