Revista Sinais Sociais

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v.7 nº20 ISSN 1809-9815 setembro > dezembro | 2012 Sesc | Serviço Social do Comércio Administração Nacional

Questionário de avaliação da distribuição

xxxxxxxxxx/XXXX-XX/XX

CARTÃO-RESPOSTA NÃO É NECESSÁRIO SELAR O SELO SERÁ PAGO PELO SESC-DN

AC BARRASHOPPING

22640-970 Rio de Janeiro - RJ


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Avaliação da distribuição Prezado leitor ou bibliotecário: Estamos avaliando a distribuição da revista Sinais Sociais. Solicitamos a gentileza em responder as questões abaixo, para remessa sem custos pelo correio, ou pelo endereço www.sesc.com.br/sinaissociais. Sua opinião é importante para nós. Você recebe a revista Sinais Sociais regularmente? ( ) Sim ( ) Não Seu acesso à revista Sinais Sociais se dá por qual forma? ( ) Biblioteca institucional ( ) Assinatura pessoal ( ) Outra forma. Qual: ____________________________________________ Em sua opinião seria adequado alterar o endereço de remessa? ( ) Não ( ) Sim. Qual?

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O que é necessário modificar na distribuição da revista? ____________________________________________________________ Tem alguma sugestão de Biblioteca ou Instituição para receber regularmente a Sinais Sociais? Nome

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v.7 nº 20 setembro > dezembro | 2012 Sesc | Serviço Social do Comércio Administração Nacional

iSSN 1809-9815 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

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Sesc | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL Antonio oliveira Santos DiREtoR-GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL maron Emile Abi-Abib CooRDENAÇÃo EDitoRiAL Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento mauro Lopez Rego CoNSELHo EDitoRiAL Álvaro de melo Salmito mauricio blanco Nivaldo da Costa Pereira SECREtÁRio ExECutivo

mauro Lopez Rego ASSESSoRiA EDitoRiAL

Andréa Reza EDiÇÃo Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral Christiane Caetano PRoJEto GRÁfiCo

vinicius borges SuPERviSÃo EDitoRiAL

Jane muniz PREPARAÇÃo E PRoDuÇÃo EDitoRiAL

Duas Águas| ieda magri REviSÃo

Elaine bayma REviSÃo Do iNGLêS

idiomas & cia DiAGRAmAÇÃo

Livros & Livros | Susan Johnson PRoDuÇÃo GRÁfiCA

Celso Clapp

Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2006 - . v.; 30 cm. Quadrimestral. iSSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil. i. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - . As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.

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SumÁRio APRESENtAÇÃo5 EDitoRiAL7 SobRE oS AutoRES8 iNtERPREtAÇÕES Do bRASiL E CiêNCiAS SoCiAiS, um fio DE ARiADNE10 André botelho

CotAS AumENtAm A DivERSiDADE DoS EStuDANtES SEm ComPRomEtER o DESEmPENHo?36 fábio D. Waltenberg márcia de Carvalho

tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio CANDiDo, PAuLo EmÍLio E mÁRio PEDRoSA78 francisco Alambert

GoNÇALo m. tAvARES: o ENSAio, A DANÇA, o ESPÍRito LivRE114 Júlia Studart

CAio PRADo JR. E o iNtELECtuAL mARxiStA HoJE148 marco Aurélio Nogueira

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APRESENtAÇÃo A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar. Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do Sesc, como princípio essencial da entidade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.” Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos. Importa para a revista Sinais Sociais artigos cujas fundamentação teórica, consistência, lógica da argumentação e organização das ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes apresentem um novo olhar sobre os objetos em estudo. O que move o Sesc é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país. Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse debate é a intenção do Sesc com a revista Sinais Sociais. Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do Sesc

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EDitoRiAL O entusiasmo não pode ser induzido de forma determinista; será transmitido por meio de suas manifestações? A hipótese afirmativa nutre as expectativas acerca do presente número da revista Sinais Sociais, que traz fios vívidos de entusiasmo, na primeira, segunda e terceira pessoas. Os personagens presentes nos trabalhos desta publicação − essas “pessoas”− diferem em origens, temas e percursos, mas têm aqui ressaltadas suas conexões às realidades em que se inseriram, para com elas interagir, de forma a contribuir para sua compreensão e alteração, segundo suas particulares perspectivas. Nestes textos está presente também o elogio ao ensaio, como forma, como recurso, como reiterada possibilidade de acesso subjetivo e direto aos contextos físicos e práticos, abstratos e teóricos. São muitos os sujeitos referidos direta ou indiretamente pelos autores. Antonio Candido, Paulo Emilio e Mário Pedrosa são os críticos cujas visões da arte e cultura do Brasil são cotejadas por Francisco Alambert. Gonçalo M. Tavares é o autor do Livro da dança, obra da qual Júlia Studart faz detida análise. Caio Prado Jr. é tomado como exemplo por Marco Aurélio Nogueira para a discussão do papel do intelectual marxista no mundo contemporâneo. Oliveira Vianna é o historiador que tem obra evocada por André Botelho, que reafirma a validade das interpretações autorais para o entendimento do passado e a percepção do presente. Compõe ainda esta Sinais Sociais o artigo de Fabio D. Waltenberg e Márcia de Carvalho. Da análise sobre os resultados das ações afirmativas no Brasil, um pormenor não deve escapar à atenção: foi o protagonismo das universidades que trouxe o tema para a esfera pública, lidando frontalmente com uma questão até então relegada ao escaninho das imutáveis perversidades nacionais. De diversos sujeitos, portanto, e de seus entusiasmos ao lidar com linhas iluminadoras de nossos labirintos sociais, tratam os artigos aqui apresentados. Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc

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SobRE oS AutoRES André Botelho Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPq e da Faperj e coordenador do Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil, da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Autor de diversas publicações, livros e artigos na área de pensamento social brasileiro, destacando-se entre os mais recentes: Um enigma chamado Brasil, organizado com Lília M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2009), Revisão do pensamento conservador, organizado com Gabriela Nunes Ferreira (Hucitec, 2010) e Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança, também organizado com Lília M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2011). Fábio D. Waltenberg Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE) da mesma universidade. Francisco Alambert Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde leciona História Social da Arte e História Contemporânea na graduação e na pós-graduação. Também é crítico de arte, colabora em diversos jornais e revistas, no Brasil e no exterior. Publicou, entre outros livros, Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Polyana Canhête, que recebeu o prêmio Jabuti na categoria Artes. Na USP, participa da coordenação do grupo de pesquisa Desformas – Formação e Desmanche de Sistemas Simbólicos.

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Júlia Studart Poeta e doutora em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – bolsista integral CNPq, Brasil / Universidade Nova de Lisboa (UNL) – bolsista CAPES, 2011. Trabalha com literatura contemporânea brasileira e portuguesa; artes visuais e teoria da dança. Publicou Wittgenstein & Will Eisner – se numa cidade suas formas de vida (Lumme Editor, 2006), Marcoaurélio!, com a artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, 2006) e Livro segredo e infâmia (Editora da Casa, 2007). É autora de “O impacto da impressão”, caderno de apresentação do livro Breves notas, de Gonçalo M. Tavares (Editora da Casa/Edufsc, 2010). Organizou o livro Conversas, diferença n.1 – ensaios de literatura etc. (Editora da Casa, 2009). É colaboradora do jornal O Globo com resenhas sobre literatura contemporânea. Márcia de Carvalho Professora do Departamento de Estatística e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE) da mesma universidade. Marco Aurélio Nogueira Professor titular de Teoria Política e coordenador do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado na Universidade de Roma (1984-1985), foi diretor da Editora Unesp (1987-1991) e da Escola de Governo e Administração Pública da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) (1991-1995). É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e autor, entre outros, dos livros Em defesa da política (Senac, 2001), Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e políticos da gestão democrática (Cortez, 2004), Potência, limites e seduções do poder (Editora Unesp, 2008) e O encontro de Joaquim Nabuco com a política. As desventuras do liberalismo (Paz e Terra, 2010).

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O artigo procura problematizar a visão cristalizada pelas Ciências Sociais sobre o ensaísmo brasileiro dos anos de 1920-1940. Com base em um estudo de caso, a partir de resultados de pesquisa sobre Francisco José de Oliveira Vianna e sua sociologia política, discute a atualidade das chamadas interpretações do Brasil. Tal procedimento analítico é entendido como condição para repensar o estatuto dos ensaios e sua capacidade de interpelação contemporânea às Ciências Sociais e à sociedade brasileira. Palavras-chave: interpretações do Brasil; Ciências Sociais; sociologia do conhecimento; Oliveira Vianna This article aims to problematize the views of Brazilian essayism crystallized by the Social Sciences from the 1920s to the 1940s. Based on a case study from research findings on Francisco José de Oliveira Vianna and his political sociology, it discusses the relevance of the so-called interpretations of Brazil. This analytical procedure is understood as a prerequisite for rethinking the status of the essay and its contemporary interpellation capacity towards the Brazilian Social Sciences and society. Keywords: interpretations of Brazil; the Social Sciences; sociology of knowledge; Oliveira Vianna

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iNtRoDuÇÃo Entre as décadas de 1920 e 1940 foram publicados alguns dos mais instigantes estudos sobre a formação da sociedade brasileira, comumente chamados ensaios de interpretação do Brasil. Publicado em 1920, Populações meridionais do Brasil, de Francisco José Oliveira Vianna, abre a produção do período, seguido, na mesma década, por Retrato do Brasil, de Paulo Prado, em 1928. Em 1933 foram publicados Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior, três anos depois apareceram Sobrados e mucambos, também de Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Na década seguinte, voltaram aos prelos Caio Prado e Oliveira Vianna, o primeiro com Formação do Brasil contemporâneo, em 1942, o segundo com Instituições políticas brasileiras, em 1949, para citar apenas alguns dos mais emblemáticos ensaios do período. Essas interpretações do Brasil continuam nos interpelando contemporaneamente, a despeito da relação ambígua que as Ciências Sociais têm mantido com eles desde o início da sua institucionalização como carreira universitária e profissional na década de 1930. Como se tratava então de demarcar um “campo científico”, compreende-se que o desenvolvimento das Ciências Sociais tenha sido pensado a partir de uma polarização mais disjuntiva entre o seu caráter “científico” e o “pré-científico” dos ensaios de interpretação do Brasil. Em que “científico”, naturalmente, foi quase sempre tomado estritamente como sinônimo de conhecimento válido. Diferente da monografia científica que veio a se impor como forma narrativa própria à moderna ciência ocidental, também nas ciências sociais brasileiras, o ensaio não expõe na sua narrativa fragmentada um conteúdo pronto de antemão. Mas, em uma constante tensão entre a exposição e o exposto, repõe uma ideia fundamental, como um fragmento que busca vislumbrar o todo de que é parte. Nesse movimento, esboça-se o traço distintivo do ensaio como forma: a tentativa de recomposição da relação sujeito/objeto do conhecimento fraturada pela tradição cartesiana. Por isso sua inteligibilidade parece, em parte, condicionada à própria relação de contraposição que mantém perenemente com o padrão científico positivista. Daí Theodor Adorno ter discutido o ensaio como forma de “protesto contra as quatro regras que o Discours de la méthode de

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Descartes erige no início da moderna ciência ocidental” (ADORNO, 1986, p. 177); ainda que, se considerada da perspectiva do ensaio, por sua vez, a objetividade pretendida na monografia decorra necessariamente de um arranjo subjetivo: o que em Descartes era consciência intelectual quanto à necessidade de conhecimento, se transforma na arbitrariedade de um ‘frame of reference’, de uma axiomática que precisa ser colocada no início para satisfazer a necessidade metodológica e a plausibilidade do todo [...] [que] apenas escamoteia as suas condições subjetivas (ADORNO, 1986, p. 179).

Enfim, estamos diante de regimes distintos de “subjetividade” e “objetividade” do conhecimento social que validam seus próprios instrumentos linguísticos, narrativos e outros e que por isso não podem ser subsumidos uns nos outros. Ao mesmo tempo, porém, são também autorreferidos, no sentido que mobilizam frequentemente categorias de contrastes, cujos significados são extraídos tanto do que se nega, quanto do que se afirma. No caso brasileiro, aquele tipo de recomposição entre sujeito/objeto divisado no ensaio em geral parece ter sido, em grande medida, interpretado mais como um “desvio” em relação ao rigor científico do que propriamente como um “contraponto” possível a ele. O que sugere, entre outras coisas, o sentido hegemônico e duradouro assumido pelo positivismo entre nós. É razoável, de todo modo, considerar que o ensaio parecia ameaçar alguns dos seus princípios. Afinal, a adoção do padrão cognitivo-narrativo científico positivista que regeu a institucionalização das ciências sociais, e seus correspondentes princípios de isenção e neutralidade, parecia assegurar uma representação da relação externa do cientista com os fenômenos que investigava. Também nos ensaios de interpretação do Brasil, “o decifrar da realidade não está na somatória de dados objetivos, mas muito mais na sua multiplicação com elementos da subjetividade“ dos seus autores (WEGNER, 2006, p. 339). Mais do que entre os pioneiros sociólogos profissionais, porém, foi em um momento posterior, já nas décadas de 1970 e 1980, que os ensaios e suas interpretações do Brasil acabaram por ser desqualificados como meras “ideologias”. Procedimento especialmente marcante na análise de determinadas tradições intelectuais, como o chamado “pensamento conservador” dos anos 1920-30 e o “nacional-desen-

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volvimentismo” dos anos 1950-60, para lembrar dois casos emblemáticos. Em vários momentos da nossa história intelectual o pensamento conservador, por exemplo, foi menosprezado levando, contudo, a que se negligenciasse a vigência dessas formas de pensar no âmbito da cultura política. Essa dimensão deveria interessar àqueles que estão voltados para o estudo dos efeitos sociais das ideias, porque ela é decisiva para se compreender, entre outras coisas, como se constitui no Brasil uma cultura política que menospreza a monumental desigualdade que marca a nossa sociedade. E, também, porque avessa à democracia, não acredita na ação coletiva e favorece a que o homem comum não leve a sério os seus iguais (FERREIRA; BOTELHO, 2010). Malgrado seu expressivo crescimento nas últimas décadas ou, talvez por isso mesmo, persistem algumas visões simplificadoras, e mesmo ingênuas sobre o pensamento social (BASTOS; BOTELHO, 2010). Como aquelas que supõem ser suficiente identificar a sua pesquisa como um tipo de conhecimento antiquário sem maior significação para a sociedade e para as ciências sociais contemporâneas. E não são incomuns ainda hoje visões segundo as quais as ciências sociais, quando concebidas em acepção positivista e orientadas para o mundo empírico e para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele, já deveriam ter solucionado as questões colocadas pelas interpretações mais antigas. Por outro lado, e isso é fundamental para manter a controvérsia viva, não faltam pesquisas, realizadas inclusive entre os próprios cientistas sociais contemporâneos, indicando a persistência da importância das interpretações do Brasil no conjunto da produção das Ciências Sociais brasileiras (BRANDÃO, 2007, p. 24)1. Mas longe de constituir um traço idiossincrático da sua prática no Brasil, a controvérsia sobre a importância do pensamento social, como aquela sobre a importância dos clássicos, expressa uma característica crucial das 1 É significativo, assim, que já no próprio âmbito de sua institucionalização no Brasil tenham surgido tantos trabalhos sobre a história das Ciências Sociais, como indica o fato de que 46 de 121 obras de sociologia publicadas, no Brasil, entre 1945 e 1966 tratem da própria disciplina (VILLAS BÔAS, 1992, p. 135). Isso para não falar dos balanços sobre a tradição intelectual brasileira anterior à institucionalização, realizados, por exemplo, por Florestan Fernandes em “Desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil”, originalmente publicado na revista Anhembi em 1957 (FERNANDES, 1980) ou por Alberto Guerreiro Ramos em Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, de 1954 (RAMOS, 1995).

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Ciências Sociais em geral que, como toda disciplina de natureza intelectual, traz em si uma “história construída” (LEVINE, 1995; GIDDENS, 1998; ALEXANDER, 1999). Assim, a reflexão contínua sobre as Ciências Sociais remete a um aspecto crucial da própria identidade cognitiva das disciplinas que a compõem. Afinal, em contraste com o que ocorre nas ciências naturais, a lógica das Ciências Sociais exige que, para que ela atinja seus fins, refaça o seu próprio caminho, se assemelhando, neste aspecto, ao trabalho de Penélope (BRANDÃO, 2007, p. 24). Todavia, como no caso mais amplo das Ciências Sociais em relação aos seus clássicos, o significado das interpretações do Brasil, objeto por excelência da área de pesquisa do pensamento social, para a busca contemporânea de conhecimento continua em aberto. Isso expressa, igualmente, a ausência de consensos cognitivos estáveis no interior das Ciências Sociais praticadas no Brasil e, no limite, um campo de possibilidades e conflitos a respeito da sua própria identidade. Minha hipótese quanto ao seu significado heurístico para as Ciências Sociais, é que o pensamento social pode representar uma espécie de repertório interpretativo a que os pesquisadores podemos recorrer para buscar motivação e perspectiva nas diferentes áreas que as compõem. Isso porque, em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea, e do decorrente fracionamento do conhecimento, as interpretações do Brasil não representam apenas uma modalidade de imaginação sociológica encerrada no passado. Elas também constituem um espaço cognitivo de comunicação entre presente, passado e futuro que pode nos dar uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo que o nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne, por assim dizer. É esta hipótese que apresento para discussão, embora não me pareçam simples os desafios nela envolvidos. Para torná-la menos abstrata recorrerei a um dos exemplos mais emblemáticos do pensamento social brasileiro, Oliveira Vianna e os possíveis significados heurísticos da sua sociologia política, mobilizando, para isso, alguns resultados recentes de pesquisa (BOTELHO, 2007; 2008; 2010; BOTELHO; LAHUERTA, 2010). Antes, contudo, alguns problemas mais gerais de ordem teóricometodológica da sociologia do conhecimento devem ser enfrentados. Deter-me-ei em dois deles ligados especificamente à pesquisa do pensamento social. Em primeiro lugar, em um plano mais amplo, a questão da relação entre “textos” e “contextos” na pesquisa sociológica contemporânea; em segundo, as diferentes possibilidades de recuperação dos textos clássicos para as atividades cotidianas da disciplina atualmente.

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1 tExtoS ou CoNtExtoS: A CRiSE DA SoCioLoGiA Do CoNHECimENto Começo por observar que para que o significado heurístico das interpretações do Brasil para as Ciências Sociais em suas diferentes especialidades contemporâneas possa ser avaliado é preciso encontrar, antes de tudo, formas consistentes de aproximação entre questões do presente e interpretações do passado. O que, por sua vez, exige pesquisas que possam qualificar justamente o perfil propriamente cognitivo das interpretações de que a sociedade brasileira vem sendo objeto ao longo do tempo. Assim, não será toda perspectiva metodológica empregada na reconstituição da história das Ciências Sociais no Brasil que, por seus próprios objetivos, estará apta a levar a tarefa a cabo, embora suas contribuições para o esclarecimento daquela história sejam inegáveis e não possam ser minimizados. Sem pretender ser exaustivo, observo que um passo crucial na direção da pesquisa do perfil propriamente cognitivo da tradição intelectual brasileira foi dado pelo recente trabalho de Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro (2007). Nele, Brandão persegue o fio que nos tem ligado, na prática das Ciências Sociais – e nas suas formas correspondentes de pensar o Brasil e nele atuar –, ao nosso passado intelectual, para além dos marcos institucionais. Trata-se de um programa de pesquisa consistente que, explorando a fundo as consequências do fato de que nenhuma inovação intelectual se realiza em um vazio cognitivo, propõe nova inteligibilidade para o pensamento político-social brasileiro. Mais do que mera testemunha do passado, este constituiria o índice da existência de um corpo de problemas e soluções intelectuais – “um estoque teórico e metodológico”. Autores de diferentes épocas são levados a se referir a esse “estoque”, ainda que indiretamente e, guardadas as especificidades cognitivas e políticas de cada um, no enfrentamento de velhas questões postas pelo desenvolvimento social. Não se trata de minimizar o influxo cognitivo externo a que também as Ciências Sociais brasileiras estão sujeitas em sua prática cotidiana; e sim de reconhecer que, ainda assim, o pensamento político-social brasileiro tem representado “um afiado instrumento de regulação de nosso ‘mercado interno das ideias’ em suas trocas com o mercado mundial” (BRANDÃO, 2007, p. 23-24). Todavia, uma questão metodológica importante suscitada pelo livro de Brandão é saber se o pertencimento a uma “família” intelectual

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constitui um ponto de partida estrutural da análise, ou antes, um problema mais contingente. Problema cujo sentido, sendo variável em relação à combinação com outros fatores internos e externos de composição das obras, somente a pesquisa comparativa poderia então apontar caso a caso. Afinal, apesar de algumas linhagens terem se tornado mais cristalizadas, como em qualquer família, também no caso da tradição intelectual brasileira, como bem lembra o autor, por vezes “os mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que um Montecchio se apaixone por uma Capuleto” (p. 39). Nesse sentido, penso que um dos aspectos mais produtivos derivados da proposta seria justamente o de, cruzando diferentes linhagens, surpreender afinidades eletivas e escolhas pragmáticas onde elas não são evidentes, esperadas, intencionais – seja em termos cognitivos ou normativos2. Pensando em termos teóricos mais gerais, diria, com algum exagero, que a constituição do pensamento social como um repertório ou espaço de comunicação cognitivo implica, em certo sentido, completar o movimento analítico característico da sociologia do conhecimento. Esta, como se sabe, tem estado voltada, desde a síntese teórica formulada por 2 Foi justamente nessa direção que procurei reconstituir analiticamente a formação de uma agenda de pesquisas, de Populações meridionais do Brasil até Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Maria Sylvia de Carvalho Franco, passando por Coronelismo, enxada e voto (1949), de Victor Nunes Leal, e diferentes pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz desenvolvidas desde a década de 1950, procurando destacar suas continuidades e descontinuidades (BOTELHO, 2007). No plano das continuidades, argumentei que estas pesquisas mantêm, em primeiro lugar, a tese central do ensaio de Vianna sobre a configuração histórica particular das relações de dominação política no Brasil fundada no conflito entre as ordens privada e pública e não diretamente assimilável ao conflito de classes enraizado no mundo da produção; bem como, em segundo lugar, sua tendência teórico-metodológica a relacionar a aquisição, distribuição, organização e exercício de poder político à estrutura social com o objetivo de identificar as bases e a dinâmica da política na própria vida social. Com relação, por sua vez, às descontinuidades cognitivas internas entre os diferentes trabalhos que compõem a vertente da sociologia política brasileira destacada, argumentei que são distintas, sobretudo, as concepções de sociedade e, nelas, o relacionamento entre ação e estrutura social, que assume e que procura conferir verossimilhança com os próprios resultados obtidos no estudo da constituição, organização e reprodução das relações de dominação política.

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Mannheim (1976), para o esclarecimento da constituição social das ideias e das relações mais ou menos condicionadas que mantêm com os grupos sociais e as sociedades que as engendram (apesar de Mannheim também levar em conta as gerações). Sua premissa paradigmática é a de que existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais. [...] A abordagem da Sociologia do Conhecimento não parte do indivíduo isolado e de seu pensar a fim de, à maneira do filósofo, prosseguir então diretamente até às alturas abstratas do “pensamento em si”. Ao contrário, a Sociologia do Conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social, de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente diferenciado (MANNHEIM, 1976, p. 30-1).

Certamente esse postulado da sociologia do conhecimento não permaneceu incólume desde o seu surgimento como empreendimento organizado no início do século XX; além de ter sofrido progressivamente a concorrência, de um lado, de perspectivas estruturalistas (Saussure) e pós-estruturalistas (Foucault) e, de outro, do chamado marxismo ocidental (Adorno, Benjamin, Gramsci e outros), que convergia com a ênfase de Mannheim na questão dos condicionantes sociais da cultura, ainda que operasse uma realocação desta para a esfera da dominação ideológica. Um dos principais estímulos para sua revitalização veio de Pierre Bourdieu que “trouxe o conhecimento de volta para o mapa da sociologia em uma série de estudos sobre ‘prática teórica’, ‘capital cultural’ e o poder de instituições como as universidades para definir o que conta e o que não conta como conhecimento legítimo” (BURKE, 2003, p. 16). O caso da teoria sociológica de Pierre Bourdieu (1974), que tem sido muito empregada, embora com sentidos distintos e resultados muito diferentes, parece, com efeito, exemplar para discutir os limites da sociologia do conhecimento para a pesquisa da dimensão cognitiva das interpretações do Brasil. Pois, por se concentrar no “contexto” em detrimento do “texto”, essa perspectiva pouco favorece, em função dos seus próprios objetivos, uma abordagem mais consistente da dimensão cognitiva das interpretações do Brasil, não obstante possa trazer subsídios

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decisivos para a discussão sobre a mediação social do conhecimento. Para Bourdieu, “textos” representam no máximo pretextos para a análise sociológica da cultura, uma vez que a questão analítica valorizada passa a ser a das posições ocupadas e das estruturas de legitimação mobilizadas pelos produtores na configuração de um dado campo. Nesse sentido, questões como origens sociais e posições nas estruturas de poder, sociabilidade e dinâmica interna de classes ou grupos sociais, estratégias cotidianas de inserção e de viabilização das carreiras nos marcos institucionais dominantes ou, ao contrário, por meio dos circuitos mais ou menos informais e alternativos a eles, entre outras, ganham preponderância nas análises (BASTOS BOTELHO, 2010a). A importância dos “textos” para a sociologia também tem sido, por outro lado, afirmada. É o caso da recente defesa de Jeffrey Alexander de um “programa forte” para a sociologia, claramente influenciado pela sociologia da religião de Émile Durkheim. Em As formas elementares da vida religiosa (1912), Durkheim procurou relacionar crenças religiosas e cognitivas no interior de uma teoria geral das representações coletivas, valorizando o simbolismo coletivo como princípio constituinte da realidade social. Tirando consequências desse postulado em seu programa, Alexander argumenta que a sociologia não deveria se ater apenas ao estudo de “contextos”, devendo compreender também o estudo de “textos” – entendidos não apenas como textos formais ou escritos, mas também “manuscritos não escritos”, “códigos” e “narrativas” (ALEXANDER, 2000, p. 32, tradução minha). Essa reorientação constituiria a principal condição para que se pudesse identificar a dimensão semântica das instituições e das ações sociais, ou a “textualidade das instituições e a natureza discursiva da ação social” (p. 34). A premissa fundamental dessa “sociologia cultural” está na afirmação de que tanto a ação, independente do seu caráter instrumental, reflexivo ou coercitivo com relação ao seu contexto externo, “se materializa em um horizonte emotivo e significativo” quanto as instituições, independentemente do seu caráter impessoal e tecnocrático, possuem fundamentos ideais que “conformam sua organização, objetivos e legitimação” (p. 38-39). Da perspectiva de Alexander, o programa “forte” para a sociologia consiste precisamente em afirmar que a “cultura opera como uma ‘variável independente’ na conformação de ações e instituições” (p. 39).

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Assim, ao contrário do que deve ocorrer na “sociologia cultural”, na “sociologia da cultura” a cultura é uma variável apenas “branda” submetida a diferentes variáveis “fortes” e mais tangíveis da estrutura social. Nessa acepção, argumenta Alexander, o poder explicativo da cultura consiste apenas “no melhor dos casos, em participar na reprodução das relações sociais” (p. 39). Nessa sugestão radical de desacoplamento entre cultura e estrutura social, ou por outra, de afirmação da ideia de autonomia cultural, Alexander vê a única possibilidade de definir-se um “programa forte” para a sociologia da cultura capaz de identificar e qualificar sociologicamente o poder da cultura na conformação da vida social3. A esse respeito, penso que continua válida Exemplo crucial da sua proposição analítica encontra-se em “A preparação cultural para a guerra: código, narrativa e ação social” que fecha o volume Sociologia cultural. Formas de classificação nas sociedades complexas. Nele, Alexander aborda da perspectiva da sociologia cultural, isto é, considerando a cultura como variável independente, problemas de “simbolismo político” (e não de motivos racionais) em nações democráticas, uma vez que as guerras não se fariam sem a mobilização dos sentimentos e crenças dos cidadãos. Substantivamente, analisa as “dinâmicas culturais internas” presentes nos preparativos dos Estados Unidos para a Guerra do Golfo Pérsico em 1991, descartando as ideias de “manipulação exercidas pelos governos” e de “contestação dos movimentos contrários à guerra” como suficientes para compreender os processos de legitimação da guerra (p. 256). Daí que destaque literatura de ficção, filmes e informações objetivas sobre a guerra como elementos mobilizados por diferentes grupos sociais de interesse na definição da estrutura semântica do conflito. O “sentido” cultural da guerra pode ser apreendido a partir da articulação de três elementos fundamentais: código, que separa dicotomicamente – mas não de modo contingente, e sim estrutural – certas qualidades simplificadas como “bem e mal”, “puro e impuro”, “amigos e inimigos” e “sagrado e profano” (p. 256); narrativa, que permite que aqueles códigos dicotômicos adquiram sentido em relação a uma experiência histórico-universal, fazendo a guerra corresponder a um processo de “imaginação coletiva” (p. 258); e gênero, que confere a capacidade dessa narrativa histórico-universal sublimar os processos sociais aumentando a importância simbólica da guerra entre os cidadãos. Em suma, a complexidade da guerra só ganharia inteligibilidade sociológica, recuando-se até a sua preparação cultural, a partir da qual tornar-se-ia possível discriminar o caráter semanticamente orientado das ações e instituições desde a estrutura interna das formações discursivas que lhe conferem sentido e legitimidade coletivas.

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a advertência de Max Weber (2004, p. 167), feita ao final de A Ética protestante e o espírito do capitalismo, sobre a insensatez das tentativas de substituir uma concepção de primazia causal materialista por outra idealista – ou vice-versa – na explicação das condutas humanas mantendo intacto, contudo, o verdadeiro problema de método envolvido que é justamente o princípio de monocausalidade. A advertência de Max Weber, aliás, é fundamental para o problema específico que estamos tratando e se desdobra em duas considerações principais. Em primeiro lugar, considero que a reorientação analítica necessária à pesquisa da dimensão cognitiva do pensamento social brasileiro não possa se limitar ao estudo de contextos, devendo compreender também o estudo de textos. Não se trata, é preciso deixar claro, de supor a autonomia dos textos; porém, recusar essa tese não implica necessariamente aceitar a oposta, do condicionamento da sociedade sobre as ideias como algo já dado de antemão – não importando aqui se os condicionantes são entendidos em termos econômicos, políticos, institucionais ou biográficos. Por isso, também a visão disjuntiva entre as abordagens chamadas textualistas e contextualistas que se apresentam, em grande medida, como concorrentes no debate contemporâneo do pensamento social brasileiro (PONTES, 1997), pode ser, em parte, problematizada. Tomadas de modo disjuntivo, ambas as posturas podem acarretar ordenações que, ao lado de inegáveis méritos, não deixam também de apresentar certos limites simplistas. Assim, mesmo reconhecendo as diferenças entre aquelas perspectivas, é possível sugerir, no lugar da escolha exclusiva entre texto ou contexto, que se reconheça e se qualifique a tensão existente entre estes termos, na medida em que ela é constitutiva da própria matéria que cumpre à análise ordenar. Em segundo lugar, se não há consenso sobre a importância dos clássicos nas Ciências Sociais em geral, o mesmo se pode dizer quanto às vertentes sensíveis à orientação semântica da vida social, isto é, entre aquelas que reconhecem a importância dos textos clássicos nas atividades cotidianas da disciplina. No que se refere às vertentes contemporâneas da sociologia voltadas para a pesquisa dos significados dos textos clássicos da disciplina, pode-se demarcar o debate em duas posições contrastantes cujo ponto crucial de discordância diz respeito à questão da intencionalidade dos autores. Questão cuja polêmica perene nas Ciências Sociais foi recolocada contemporaneamente, de

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um lado, pelas provocações críticas da chamada “teoria da recepção” (JAUSS, 1978) e, de outro, pelo chamado “contextualismo linguístico” de Quentin Skinner (TULLY, 1988; SKINNER, 1999). Assim, uma vertente que se poderia denominar “contextualista” afirma, via contextualismo linguístico, ser necessário recuperar a intencionalidade dos autores clássicos a partir da reconstituição minuciosa do contexto original em que eles e seus textos estavam inscritos (GIDDENS, 1998). Outra que se poderia denominar “analítica” afirma, por sua vez, a validade em retomar aqueles textos a partir das questões próprias do nosso presente (ALEXANDER, 1999). Uma visão disjuntiva entre essas perspectivas “analítica” e “contextualista”, no entanto, não é nem inevitável, nem desejável. Pois se supor que a intenção de um autor possa ser plenamente recuperável implica mesmo um tipo de “confiança empírica de transparência do mundo social” difícil de sustentar no contexto da sociologia pós-positivista (ALEXANDER, 1999, p. 77); de outro lado, não deixa de ser pertinente lembrar que a importância de procurar entender as intenções de um autor em um contexto específico está justamente no fato de isso fornecer uma “sólida proteção contra as excentricidades do relativismo” (GIDDENS, 1998, p. 18). Assim, penso ser justamente na tensão entre a intencionalidade do autor, isto é, levando em conta o que tencionava fazer ao escrever no contexto das questões da sua época, e os significados heurísticos daquilo que realizou para a sociologia contemporânea que se deve buscar um entendimento contemporâneo dos clássicos. É dessa perspectiva que retomo resultados de pesquisa mais ampla sobre a recepção e o significado teórico heurístico da sociologia política de Oliveira Vianna (BOTELHO, 2007). 2 A AtuALiDADE DE umA iNtERPREtAÇÃo Do bRASiL Na década de 1920, em contraste com o que viria a predominar na seguinte, a preocupação com a questão da formação da sociedade brasileira partia da constatação da diversidade e das especificidades de cada uma das suas regiões e da impossibilidade de pensar a sociedade em termos homogêneos. Não é por outro motivo que o ensaio de estreia de Oliveira Vianna já traz em seu título, como um dado, a heterogeneidade brasileira. Populações meridionais do Brasil era parte de

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um projeto maior, e apenas parcialmente realizado, voltado justamente para o esclarecimento das diferenças entre as “instituições” e a “cultura política” das populações rurais do país. O primeiro volume, de 1920, é dedicado às populações rurais do centro-sul – paulistas, fluminenses e mineiros – que para o autor teriam sido as mais influentes na evolução política nacional. A ele se seguiu o volume publicado apenas em 1952, um ano após a morte do autor, dedicado ao extremo-sul do Brasil. O terceiro volume, que não chegou a ser escrito, teria como objeto as populações setentrionais do Brasil, o sertanejo e sua expansão pela hileia amazônica. Assim, Oliveira Vianna identifica ao menos três histórias distintas na formação brasileira, fazendo corresponder a cada uma delas diferentes tipos de organização social e política e de cultura política: a do norte, do centro-sul e do extremo-sul, que geram, respectivamente, três tipos sociais específicos, o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Três grupos que demonstram, segundo o autor, “diversidades consideráveis” na “estrutura íntima” dos brasileiros, por assim dizer (VIANNA, F. J. O., 1973, p. 15). Mais importante ainda, a diferenciação da sociedade em diversas regiões inscreve-se no próprio plano metodológico forjado nos seus ensaios. Inspirado ao que tudo indica (CARVALHO, 1993, p. 160) pela leitura de Les Français D’Aujourd’Hui (1898), de Edmond Demolins, Oliveira Vianna defende a ausência de uma unidade fundamental à sociedade brasileira, diretamente relacionada, em termos cognitivos, à sua recusa de uma explicação unilateral da vida social. Assim, são os diversos fatores de ordem racial, climática, geográfica e também social por ele mobilizados que concorreriam para a sua visão do Brasil como uma sociedade profundamente diferenciada entre regiões e tipos sociopolíticos. Em Evolução do povo brasileiro, publicado originalmente em 1923, por exemplo, explicita sua convicção e afirma: qualquer grupo humano é sempre consequência da colaboração de todos eles [aqueles diferentes fatores]; nenhum há que não seja a resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra, do Homem, da Sociedade e da História. Todas as teorias, que faziam depender a evolução das sociedades da ação de uma causa única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há atualmente monocausalistas em Ciências Sociais (VIANNA, F. J. O., 1956, p. 30, grifos do autor).

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Em Populações meridionais do Brasil, Oliveira Vianna evidenciou problemas cruciais da vida política brasileira, decorrentes, segundo sua tese, do papel da estrutura fundiária na configuração da vida social formada desde a colonização. Propriedades imensas, autossuficientes e ainda por cima centros de gravitação das decisões políticas locais, ligando uma massa de homens livres pobres aos latifundiários, teriam dificultado o desenvolvimento do comércio, da indústria, das cidades e de seus atores sociais característicos. Isso é válido, especialmente, para uma classe média independente, base social crucial para o vigor associativo das sociedades anglo-saxônicas tomadas como contraponto à formação brasileira. No entanto, essa volta ao passado, no momento em que a modernização/urbanização começava a se impor significava, sobretudo, buscar perspectiva para pensar os dilemas do presente e as possibilidades de futuro da sociedade. Que Brasil moderno seria possível construir? A sociedade forjada no molde rural desapareceria? Para Oliveira Vianna, apesar das mudanças em curso em sua época, algumas estruturas e atitudes sociais do nosso passado rural continuavam desempenhando papéis cruciais, em especial na vida política. Um exemplo seria a problemática relação entre as esferas pública e privada na sociedade brasileira. Não apenas a fragilidade do público contrastava com a pujança do privado, mas tais esferas também se baralhavam, criando toda sorte de dilemas. Esse baralhamento trazia enormes dificuldades para a identificação e a associação, visando interesses comuns, para além dos círculos domésticos originalmente ligados aos latifúndios. Também tornava as instituições públicas extremamente suscetíveis a programas voltados para a promoção de interesses particulares. Além disso, distorcia a vida política em uma trama de relações de fidelidades pessoais e contraprestação de favores envolvendo toda sorte de bens materiais, prestígio, controle de cargos públicos, votos etc. Em face dessa situação, para Vianna, seria urgente reorganizar, fortalecer e centralizar o Estado, único ator que, dotado dessas características, seria capaz de enfraquecer as oligarquias agrárias e sua ação corruptora das liberdades públicas e individuais e, desse modo, corrigir os defeitos da nossa formação nacional. Justamente essa dimensão normativa da interpretação de Oliveira Vianna despertou maior interesse em seus analistas. Permanecem abertas, no entanto, as controvérsias quanto ao “sentido” de sua defesa

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do princípio autoritário de ordenamento político da vida coletiva – autoritário pelo privilégio que concede à unidade e à ordem em detrimento do conflito e da transformação da própria estrutura social –, como a reforma agrária, por exemplo. Assim, discute-se se aquela defesa é “substantiva” (LAMOUNIER, 1977) ou apenas “instrumental”, ou seja, se o formato político proposto seria transitório para a realização de uma sociedade liberal fundada na noção de direitos universais (SANTOS, 1978). O mesmo debate foi reposto mais recentemente em relação a sua visão “iberista” da modernidade como uma alternativa ao liberalismo “anglo-saxão”: novamente a questão é se esta seria “instrumental” (VIANNA, L. W., 1993) ou não (CARVALHO, 1993). Contribuiu para essa polêmica, sem dúvida, a identificação pessoal de Oliveira Vianna ao Estado Novo (a ditadura instaurada por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945), no qual atuou decisivamente, sobretudo como consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, tendo sido antes um dos responsáveis pela elaboração do anteprojeto para a Constituição de 1934 (considerada autoritária e centralista). Embora as relações entre obra e trajetória de um autor não possam ser menosprezadas, é preciso cuidado para não assimilar uma pela outra, como se existisse uma predeterminação ou continuidade linear entre elas. Tal cuidado aplica-se no caso de Oliveira Vianna, a começar pelo fato de que suas ideias não permaneceram as mesmas, nem foram sempre vencedoras nos embates intelectuais e institucionais que travou. Mesmo sua convicção “autoritária” da ação transformadora do Estado, presente no primeiro volume de Populações meridionais do Brasil (1920), seu ensaio de estreia, foi contingente, tensa e descontínua ao longo do desenvolvimento da sua obra e da sua trajetória. Por exemplo, a afirmação feita em Instituições políticas brasileiras (1949) de que os “complexos culturais” tenderiam à estabilidade revela não apenas uma maturação de ideias, mas uma nova percepção sobre os próprios limites da ação do Estado. Pois, ao mobilizar a cultura para enfatizar a inutilidade de reformas políticas e jurídicas feitas em desacordo com os valores assentados na sociedade pela tradição (o que chama de “direito costumeiro”), Oliveira Vianna problematiza sua própria posição inicial sobre a capacidade de o Estado recriar a velha sociedade corrompida por práticas privatistas. Essa questão é aprofundada no livro póstumo Introdução à história social da econo-

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mia capitalista no Brasil (1958), no qual propõe justamente uma volta aos valores “patriarcais” e “pré-capitalistas” presentes nas origens da formação social brasileira como possibilidade de reordenação não conflituosa da vida social. Quando passamos, porém, dos aspectos mais salientes – e mais datados – da obra e da trajetória de Oliveira Vianna e da recepção de suas ideias, entrando nos aspectos teóricos mais gerais, é possível identificar um conjunto de proposições que confere a sua sociologia política um interesse mais amplo que o sentido normativo ao qual geralmente é associada. Tomo para tanto uma questão central da sociologia política de Oliveira Vianna, questão que expressa de modo emblemático como uma interpretação fortemente interessada da realidade social pode produzir conhecimento sociológico relevante. Como se sabe, era lugar-comum da crítica conservadora da Primeira República (1889-1930), e não só dela, conferir às instituições republicanas uma legalidade sem correspondência na sociedade – como se existissem, desencontrados, um país “legal” (o da Constituição liberal de 1891) e outro “real” (o do dia a dia da sociedade). Esse lugar comum é confirmado por evidências cotidianas de que os direitos, como princípios normativos universais associados à tradição liberal, não se efetivavam naquele contexto corrompido por toda sorte de práticas oligárquicas. Como a maioria dos seus contemporâneos, embora com diferenças entre eles, Oliveira Vianna descartou qualquer encaminhamento tipicamente liberal para a efetivação dos direitos e da cidadania. Formulou, antes, outra concepção de cidadania, que suprimia a noção de indivíduo como portador de direitos e subordinava-o, como membro de um grupo profissional, de modo vertical e tutelar ao Estado. E se a controvérsia quanto ao sentido do seu autoritarismo permanece aberta, como já assinalado, não se pode negligenciar que, naquele momento, o liberalismo conferia força às pressões pela democratização política e social. Em todo caso, a diferença de Oliveira Vianna em relação aos seus contemporâneos que importa assinalar aqui é que ele soube traduzir a crítica comum à Primeira República liberal-oligárquica em termos teórico-metodológicos relativamente consistentes; além de têla formalizado na tese segundo a qual os fundamentos e a dinâmica das instituições políticas se encontrariam nas relações sociais.

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Exemplar é a discussão de Populações meridionais sobre a parcialidade da Justiça como um efeito contrário ao pretendido pela adoção de instituições liberais – no caso, as eleições para juízes – em uma sociedade oligárquica como a brasileira. Tal parcialidade ocorreria, de um lado, porque os “caudilhos rurais”, que dominavam as câmaras municipais e o aparelho eleitoral, só escolheriam para os juizados homens da sua confiança, de outro, porque a necessidade do sufrágio local forçaria o próprio juiz a se fazer “criatura da facção” que o elege. Assim, o juiz tornar-se-ia instrumento da “impunidade” ou da “vingança” conforme tivesse diante de si um “amigo” ou um “adversário” – estamos aqui diante da familiar máxima “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Nesse, como em outros exemplos que poderiam ser tomados quase ao acaso em sua obra, Oliveira Vianna expressa sua preocupação quanto aos impasses sociais produzidos pela desarticulação entre as instituições liberais “transplantadas” e a realidade singular brasileira. Mas o que o exemplo sugere, em termos teóricos, é também que as instituições não são virtuosas em si mesmas, não são exatamente locais de ação autônoma em relação aos valores e às práticas vigentes na sociedade como um todo. E por isso mesmo, não podem ser tomadas como variáveis independentes de outras forças sociais. Ao contrário, as instituições políticas seriam inevitavelmente forçadas a interagir com estruturas, relações e recursos sócio-históricos – e de poder legal e extralegal – mais amplos. Dessa interação resultaria a dinâmica possível que as instituições políticas assumiriam na sociedade. Essa proposição teórico-metodológica foi crucial na definição de uma agenda de pesquisas da sociologia política brasileira posterior (BOTELHO, 2007). Abrangendo continuidades e descontinuidades, integram essa agenda Coronelismo, enxada e voto (1949), do jurista e cientista político Victor Nunes Leal (1914-1985), diferentes pesquisas sobre política, messianismo e cultura rural da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz e ainda Homens livres na ordem escravocrata (1964), da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, por exemplo. Muito resumidamente pode-se dizer que tais trabalhos levaram às últimas consequências a tese dos fundamentos sociais das instituições políticas de Oliveira Vianna, tomando para si justamente a tarefa de investigar, com os recursos próprios da sociologia, os processos de

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aquisição, distribuição, organização e exercício de poder político e suas complexas relações com a estrutura social brasileira. Por isso eles voltaram ao passado da sociedade brasileira para tratar de fenômenos já assinalados por Oliveira Vianna, como “mandonismo”, “coronelismo”, “relações de favor”, “parentela”, “voto de cabresto” e “exercício personalizado do poder”. As relações de dominação política não se sustentam sem uma base social de legitimação, e por essa razão esses fenômenos foram vistos – tal como por Oliveira Vianna – integrando um “sistema de reciprocidades” assimétricas que envolveria relações diretas, pessoalizadas e violentas engendradas entre os diferentes grupos sociais. Estas seriam as bases sociais da vida política brasileira. Como as inovações institucionais não se realizariam em um vazio de relações sociais, essas bases não poderiam ser menosprezadas, mesmo consumada a passagem da sociedade rural à urbana. Ao problematizar a interação entre instituições políticas e vida social, de um lado, e a capacidade de ação de indivíduos e grupos e o condicionamento dessas ações pelas estruturas sociais, de outro, também essa vertente da sociologia política apresenta ganhos cognitivos importantes para a compreensão de certos desafios ainda abertos à cidadania democrática no Brasil como, por exemplo, o do associativismo, condição da democracia quando a consideramos também do ponto de vista societário (e não exclusivamente institucional). Fenômeno social que, apesar do seu crescimento em nossa história recente, continua não apenas frágil como ainda muito marcado por princípios de identidade e de conduta pouco universalistas, o que acaba por fortalecer uma atitude cética em relação às próprias instituições políticas. Esse reconhecimento é mais importante quando observamos que a reflexão feita no Brasil nos últimos vinte anos levou, significativamente, a que se privilegiasse o funcionamento das instituições e seu papel na vida social de modo quase independente, como se os processos políticos existissem exclusivamente no âmbito sistêmico e não mantivessem nenhuma espécie de vínculo com o “mundo da vida”. Essa abordagem que, em larga medida, tem um débito com a economia neoclássica (Habermas chega a falar em “colonização” das ciências sociais pela economia para explicar essa operação intelectual), tem por fundamento as escolhas e preferências de eleitores e políticos, concebidos essencialmente como calculadores, maximizadores, utili-

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taristas, em suma, rational choice. Esse ângulo de análise, ainda que tenha contribuído para a elaboração de pesquisas preocupadas com a demonstração empírica e com a descrição dos fenômenos analisados, teve também o inconveniente de abdicar excessivamente de outras dimensões do fenômeno político que vão além do homus economicus e da lógica estritamente institucional (BOTELHO; LAHUERTA, 2005). Afinal, será mesmo que, apesar das mudanças sociais e institucionais dos últimos tempos, aquilo que Oliveira Vianna identificou – o baralhamento entre público e privado e suas consequências no modo como lidamos cotidianamente com as instituições e a vida política – simplesmente desapareceu? Creio que não faltarão elementos no horizonte pessoal do próprio leitor para que possa responder à pergunta. CoNSiDERAÇÕES fiNAiS: iNtÉRPREtES Do bRASiL, NoSSoS ANtEPASSADoS? No prefácio que escreveu para seu livro Os nossos antepassados, Ítalo Calvino confessa seu desejo pessoal de liberdade ao escrever ao longo da década de 1950 as três histórias “inverossímeis” reunidas no livro, com relação à classificação de “neorrealista” a que seus escritos anteriores o haviam levado. Mas com sua trilogia procurou, sobretudo, sugerir três níveis diferentes de aproximação da liberdade na experiência humana que “pudessem ser vistas como uma árvore genealógica dos antepassados do homem contemporâneo, em que cada rosto oculta algum traço das pessoas que estão a nossa volta, de vocês, de mim mesmo” (CALVINO, 1999, p. 20)4. Mais do que o caráter imaginário da “genealogia” (certamente importante, mas não surpreendente, já que toda pretensão genealógica traz sempre boa dose de bovarismo), a confissão de Calvino esclarece, quando se leva em conta o contexto desses seus escritos – “Estávamos no auge da guerra fria, havia uma tensão no ar, um dilaceramento surdo, que não se manifestavam em imagens visíveis mas dominavam os nossos ânimos” (CALVINO, 1990, p. 9) – o quanto, sobretudo em momentos particularmente dramáticos em termos sociais, a busca de uma perspectiva que permita ligar a ex4 A trilogia é composta por O visconde partido ao meio, O barão nas árvores e O cavaleiro inexistente.

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periência presente ao passado pode representar “um impulso para sair dele (do presente) e, então, divisar melhor as possibilidades de futuro. Essa estranha reflexão de Calvino sobre a utopia, na qual a reconstrução do passado tem papel crucial na construção do futuro, é boa para pensar o tipo de trabalho intelectual envolvido na área de pesquisa do pensamento social brasileiro. Isso não apenas porque os ensaios de interpretação do Brasil que formam a matéria-prima da área inovaram nessa mesma direção ao ensinarem a pensar a dimensão de processo social inscrita no presente vivido, como Antonio Candido (2006, p. 235) se refere ao legado da geração de ensaístas da década de 1930 para a sua própria geração. Mas, sobretudo, porque, as interpretações do Brasil são elementos importantes para a compreensão da articulação das forças sociais que operam no desenho da sociedade e que contribuem para movê-la em determinadas direções. Ou seja, não se pode negligenciar a vigência dessas formas de pensar o Brasil na esfera da “cultura política”, como foi comum ao nosso ambiente acadêmico entre as décadas de 1970 e 1990, porque muitas delas deram vida a projetos, foram assumidas por determinados grupos sociais e se institucionalizaram, informando ainda hoje valores, condutas e práticas sociais. Como espero ter sugerido com a discussão sobre Oliveira Vianna, a aproximação das interpretações do passado às questões e perguntas do presente é suscitada porque os desafios atuais de qualquer sociedade também estão associados à sequência do seu desenvolvimento histórico. Assim, como ocorre em relação aos antepassados inverossímeis de Calvino, são as relações sociais e políticas em curso na sociedade brasileira que nos interpelam constantemente a voltar às interpretações de que foi objeto no passado, e não o contrário. Porque, afinal, podemos identificar nas interpretações do Brasil proposições cognitivas e ideológicas que ainda nos dizem respeito, já que o processo social por elas narrado – de modo realista ou não, mas em face das questões e com os recursos intelectuais que o seu tempo tornou disponíveis – permanece, ele mesmo, em vários sentidos em aberto. Se do ponto de vista substantivo, esse processo encontra inteligibilidade sociológica na modernização conservadora em que, feitas as contas dos últimos anos, prosseguimos, e a partir da qual a mudança social tem se efetivado

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a despeito de deixar praticamente intactos ou redefinidos noutros patamares problemas seculares; também do ponto de vista teóricometodológico, embora sejam inegáveis os ganhos epistemológicos das Ciências Sociais institucionalizadas como disciplina acadêmica, não existem razões suficientes para superestimá-los como se tivessem permitido resolver de modo permanente os problemas que os ensaístas ou os cientistas sociais das gerações anteriores levantaram. Considero, assim, que a conexão entre pensamento social e teoria sociológica, aproximando questões do presente a interpretações do passado, permite fazer uma crítica consistente à abstração da constituição diacrônica e dinâmica da sociedade e, desse modo, questionar a tendência de parte importante da sociologia contemporânea a se refugiar no presente. É essa, aliás, uma das conquistas heurísticas da sociologia historicamente orientada em geral, ao permitir, na investigação das interrelações de ações significativas e contextos estruturais, a compreensão das consequências inesperadas e também das pretendidas nas vidas individuais e nas transformações sociais (SKOCPOL, 1984). A abordagem analítica proposta justifica-se, então, fundamentalmente, tendo em vista o próprio perfil cognitivo das Ciências Sociais, em geral, e da sociologia, em particular. Em primeiro lugar, sendo o sentido da construção do conhecimento sociológico cumulativo, ainda que cronicamente não consensual (GIDDENS, 1998; ALEXANDER, 1999), o reexame constante de suas realizações passadas inclusive pela exegese de textos assume papel muito mais do que tangencial na prática corrente da disciplina. Em segundo, porque, se “é verdade que há impasses reais no presente, também é verdade que as controvérsias sobre o seu objeto e método são mais ou menos permanentes” em função da própria singularidade da sociologia “que sempre se pensa, ao mesmo tempo em que se realiza, desenvolve, enfrenta impasses, reorienta” (IANNI, 1990, p. 92). Assim, confrontada às sínteses sociológicas do passado, a realização de pesquisas “concretas” sobre as diferentes dimensões da vida social no presente imediato talvez possa nos dar uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo social que o nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne, por assim dizer. Essa tarefa se torna mais necessária na medida em que percebemos que as interpretações do Brasil operam não apenas em termos

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cognitivos, mas também normativos. Elas são forças sociais que direta ou indiretamente contribuem para delimitar posições, conferindo-lhes inteligibilidade, em diferentes disputas de poder travadas na sociedade. Os ensaios, como outras formas de conhecimento social, não são meras descrições externas da sociedade. Eles também operam reflexivamente, desde dentro, como um tipo de metalinguagem da própria sociedade brasileira, como uma semântica histórica que participa da configuração de processos sociais mais amplos, como o da construção do Estado-nação (BOTELHO, 2005). Com efeito, resultados recentes de surveys sobre cultura política, por exemplo, indicam que categorias centrais daquelas interpretações continuam informando a opinião dos brasileiros e parecem em parte dar coesão ao próprio senso comum (ALMEIDA, 2007, por exemplo). O legado intelectual e político que Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Caio Prado e outros intérpretes nos deixaram ainda nos diz respeito, quer seja para aceitá-lo ou rejeitá-lo, e tenhamos nós consciência disso ou não. E quando lembramos que um traço marcante da dinâmica social brasileira tem sido a impressão (quase sempre interessada) de que a nossa vida intelectual está sempre recomeçando do zero a cada nova geração (SCHWARZ, 1987, p. 30), maior a importância desse tipo de pesquisa. Enfim, porque as interpretações do Brasil não são apenas descrições externas, mas também operam como um tipo de metalinguagem reflexiva da sociedade, elas representam, em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea, um espaço social de comunicação entre presente, passado e futuro que, adaptando Calvino, poderá nos dar uma visão mais integrada e consistente do processo histórico que o nosso presente ainda oculta – e que está “a nossa volta, de vocês, de mim mesmo”.

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CotAS AumENtAm A DivERSiDADE DoS EStuDANtES SEm ComPRomEtER o DESEmPENHo?1 Fábio D. Waltenberg Márcia de Carvalho

Os autores agradecem a um parecerista anônimo e à editoria da revista pelas sugestões, comentários e críticas. Também foram importantes os comentários recebidos na apresentação deste estudo no XVII Encontro da Sociedade de Economia Política, bem como, previamente, em seminários internos do Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede).

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Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus; “raciais” ou “sociais”) têm sido implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo de reduzir a desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da probabilidade de acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior. Neste estudo, a partir dos dados mais recentes do Enade disponíveis, traça-se um perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos beneficiados por ações afirmativas com os demais alunos, inclusive no que se refere ao desempenho na prova de conhecimentos específicos. Nossos resultados sugerem que as diversas políticas de ações afirmativas foram bem-sucedidas no objetivo de proporcionar maior diversidade – entendida como maior representação de grupos desfavorecidos – nas universidades. Nas Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, não se registram fortes hiatos de desempenho entre alunos beneficiários das ações afirmativas e não beneficiários, a não ser em cursos com alto prestígio social. Nas IES públicas o desempenho dos beneficiários é inferior ao dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpreta-se esse hiato como um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da equalização das oportunidades. Palavras-chave: ações afirmativas; ensino superior; desempenho; igualdade de oportunidades Different kinds of affirmative action policies have been implemented in Brazil along the last decade, aiming at reducing the inequality of opportunities, through an increase in the probability of access to higher education of disfavored groups. In this study, employing the most recent available Enade datasets, we portray the profile of the higher education graduates evaluated in 2008, comparing beneficiaries of affirmative action policies and non-beneficiaries in terms of their performance in a (course-specific) standardized test administered to all graduates. Our results suggest that the diversified affirmative action policies have achieved the goal of increasing socioeconomic diversity in Brazil’s campuses. In private institutions of higher education the performance of beneficiaries and non-beneficiaries is similar, except for high status courses, where beneficiaries achieve a lower performance. In the public institutions, however, whatever the social status of the course, the performance of beneficiaries is systematically lower than that of non-beneficiaries. We interpret this finding as the price society pays in order to increase diversity and equalize opportunities. Keywords: affirmative action policies; higher education; performance; equality of opportunities

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iNtRoDuÇÃo A educação afeta diversas dimensões da vida social e econômica de um país. Quanto mais se investe em educação, além dos efeitos diretos positivos na economia do país, maior é o retorno à sociedade em termos de bem-estar, redução das taxas de fecundidade e mortalidade, e possivelmente redução dos índices de violência. A educação superior, em particular, tem impacto no mercado de trabalho e na capacidade de absorção de inovação tecnológica e produtividade. Em termos de benefícios privadamente apropriados pelos indivíduos, no Brasil, a conclusão de um curso de graduação é acompanhada por uma menor taxa de desemprego e por um retorno financeiro 2,6 vezes maior, em média, comparado com os que pararam os estudos no ensino médio (CARVALHO, 2011). Apesar deste prêmio à educação superior, que no Brasil ainda é alto comparado com o observado em países desenvolvidos, dados da Pnad de 2009 indicam que apenas 11% da população adulta brasileira tinham curso de graduação e que havia um estoque de 29 milhões de pessoas de 16 a 40 anos com ensino médio completo que poderiam estar cursando o ensino superior. Ainda mais preocupante do que a (baixa) proporção de diplomados na população seria constatar pouca diversidade socioeconômica entre os estudantes. E de fato, embora entre 2006 e 2008 85% dos concluintes do ensino médio fossem oriundos do sistema público de ensino, dos indivíduos que ingressaram nos cursos de graduação no Brasil nesse período, apenas 57% provinham do ensino médio público. Na mesma linha, em 2009, enquanto 45% das pessoas com ensino médio completo provinham de famílias relativamente pobres (com renda familiar de até 3 salários mínimos), entre os ingressantes do ensino superior essa proporção caía para 39%. Considerando apenas as pessoas com ensino médio completo, 50,3% se declararam não brancas enquanto entre os ingressantes dos cursos de graduação a incidência desse grupo era de 36,4%. De acordo com a teoria de igualdade de oportunidades do economista John Roemer (1998), muito em voga atualmente (FLEURBAEY, 2008; FERREIRA; GIGNOUX, 2011), quando existe sub-representação por parte de um grupo socioeconômico, definido pela sociedade como relevante e legítimo, no acesso a um serviço ou vantagem –

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como ocorre com o acesso de certos grupos ao ensino superior no Brasil – estamos diante de um problema de desigualdade de oportunidades, uma vez que, em tal caso, a dificuldade de obter acesso ao serviço ou vantagem deve ter sido causada sobretudo por circunstâncias desfavoráveis. No caso do ensino superior, uma tentativa de mitigar o problema de acesso limitado de certos grupos consiste na aplicação de políticas de ação afirmativa. As ações afirmativas podem ser compreendidas como programas que buscam prover oportunidades ou outros benefícios para pessoas pertencentes a grupos específicos, alvo de discriminação ou com pouco acesso a recursos (IPEA, 2008) e têm sido aplicadas em vários países e em diferentes etapas da educação, bem como no mercado de trabalho. No Brasil, as ações afirmativas têm se concentrado no acesso aos cursos de graduação, por meio de diferentes instrumentos: cotas e bônus, ditos “raciais” ou “sociais”. As cotas “raciais” utilizam como critério a cor da pele do aluno, de acordo com autodeclaração. Os critérios “sociais” baseiam-se numa baixa renda familiar ou no fato de o aluno ser oriundo do ensino médio público (escolas municipais, estaduais ou federais ou de cursos supletivos presenciais de educação de jovens e adultos). Há casos em que ambos os critérios são considerados simultaneamente, quando vagas são reservadas, por exemplo, a alunos negros pobres. Em sociedades democráticas, políticas de ação afirmativa são (e sempre serão) controvertidas, principalmente porque: a) envolvem redistribuição de um bem escasso – como são as vagas nas universidades de melhor qualidade no Brasil –, gerando “ganhadores e perdedores”; b) representam uma mudança das regras vigentes e, portanto, um desafio ao status quo prevalecente anteriormente, suscitando reação dos grupos que, sem tais políticas, tinham ou teriam acesso à vantagem em questão e veem-se agora ameaçados; c) proporcionam oportunidades a grupos desfavorecidos, usualmente com menos voz no debate público do que grupos favorecidos. Não é por acaso, portanto, que há (e sempre haverá) disputa política em torno dos critérios definidores dos potenciais beneficiários das ações afirmativas, bem como em torno de sua própria legitimidade. Em razão dessa disputa política, variadas críticas são levantadas contra as ações afirmativas. Duas das mais comuns são: a) políticas de

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ação afirmativa beneficiariam somente os membros mais favorecidos dos grupos desfavorecidos, sendo, portanto, injustas2; b) por garantirem vagas a alunos que, em sua ausência, não entrariam na universidade, tais políticas teriam como consequência uma queda na “qualidade” dos ingressantes e, provavelmente, dos concluintes. As políticas de ação afirmativa têm sido implementadas no Brasil desde 2001 – já há mais de uma década, portanto – iniciando-se com ações pioneiras nos estados do Rio de Janeiro e Bahia e no Distrito Federal. O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) avalia o rendimento dos alunos ingressantes e concluintes dos cursos de graduação, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos em que estão matriculados, desde 2004. Contudo, perguntas sobre ações afirmativas apareceram no questionário socioeconômico do Enade somente a partir de 2008 – justamente os dados mais recentes disponibilizados pelo Inep. De posse desses dados, é possível traçar um perfil socioeconômico dos concluintes dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos beneficiados por ações afirmativas com demais alunos, inclusive no que se refere a seu desempenho na prova de conhecimentos específicos. Assim, buscamos contribuir com o debate sobre as ações afirmativas, trazendo elementos relacionados às duas críticas já mencionadas. Somos capazes de investigar, de um lado, o quão desfavorecidos são os beneficiários das ações afirmativas, e, de outro lado, se o seu desempenho no Enade é significativamente inferior ao dos demais concluintes. Com relação à questão normativa que permeia a primeira crítica, ressalte-se que, segundo a definição de igualdade de oportunidades de Roemer, não há nenhuma injustiça no fato de os beneficiados de uma política serem os mais favorecidos dentro do seu grupo (ou “tipo” no jargão roemeriano). Contanto que tenham sido corretamente definidos os tipos (isto é, devidamente consideradas as circunstâncias limitantes do acesso à vantagem em questão), os mais favorecidos dentro de cada tipo seriam justamente aqueles que, dadas as suas circunstâncias, teriam se dedicado mais, feito mais esforços. Uma crítica mais pertinente consistiria em se afirmar que critérios unidimensionais – com base exclusivamente na cor da pele, por exemplo – inescapavelmente constituem definições incompletas de tipos. Para mais detalhes, veja-se Roemer (1998), ou Waltenberg (2007) para uma interpretação da teoria daquele autor aplicada ao caso das universidades brasileiras.

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Entendendo-se como “diversidade” uma maior representação de grupos desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objetivo de proporcionar maior diversidade nas universidades. Nas Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, não se registram fortes hiatos de desempenho entre alunos beneficiários das ações afirmativas e não beneficiários, a não ser em cursos com alto prestígio social. Nas IES públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior ao dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpretamos esse hiato como um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da equalização das oportunidades. Este trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução. A seção 1 contém um breve histórico das ações afirmativas. A seção 2 é metodológica e descreve a base de dados do Enade de 2008 e as variáveis utilizadas no trabalho. A seção 3 traça o perfil dos alunos que ingressaram por ações afirmativas nas instituições públicas e que conseguiram concluir o curso de graduação, bem como o dos demais concluintes. Na seção 4, apresentam-se resultados de uma tentativa de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno (por ação afirmativa ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos específicos aplicado no ano da conclusão da graduação. A seção final traz as conclusões do trabalho. 1 bREvE HiStÓRiCo DAS PoLÍtiCAS DE AÇÃo AfiRmAtivA No bRASiL Ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas cujo objetivo é implantar certa diversidade e maior representatividade de grupos minoritários nos diversos domínios de atividade pública e privada, além de combater a discriminação (GOMES, 2001). Ações afirmativas surgiram em caráter compulsório, facultativo ou voluntário para combater a discriminação racial, de gênero, de origem nacional e por deficiência física, visando a atingir o ideal de igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Os programas de ações afirmativas surgiram nos EUA após a Segunda Guerra Mundial na contratação de empregados negros pelas empreiteiras, mas ganharam força na década de 1960 com o movi-

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mento dos direitos civis. Aos poucos as políticas foram estendidas às mulheres, aos indígenas e aos deficientes físicos e sua aplicação chegou também a instituições de ensino. A Universidade da Califórnia foi pioneira no estabelecimento de programas em prol de minorias. Segundo Oliven (2007), em julho de 1995 o programa de ação afirmativa com base na cor da pele foi suspenso, tendo como resultado uma redução do percentual de alunos negros rumo aos níveis dos anos 1960. Esse percentual voltou a aumentar nos campi e cursos menos seletivos a partir de 2001 com a admissão automática dos melhores alunos das escolas públicas. Atualmente, várias universidades públicas em estados como Califórnia, Washington e Flórida, que proibiram a ação afirmativa com base na cor da pele, usam a situação econômica como fator de decisão nas admissões. A implementação de políticas de ação afirmativa no âmbito da educação superior no Brasil se iniciou em 2000 no estado do Rio de Janeiro, com a Lei Estadual n° 3.524 que reservava 50% das vagas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Univeridade Estadual do Norte Fluminense (UENF) para alunos oriundos da rede pública estadual de ensino. Em 2001 foi promulgada a Lei Estadual n° 3.708 que reservava 40% das vagas da Uerj e UENF para negros e pardos. Com essas duas leis, 90% das vagas das universidades estaduais do Rio de Janeiro estariam reservadas, o que gerou muita polêmica e discussão, segundo Matta (2010). Em 2003 as duas leis foram revogadas e determinou-se que 45% das vagas deveriam ser reservadas: 20% para negros, 20% para concluintes do ensino médio público e 5% para deficientes físicos e minorias étnicas. Além das reservas de vagas (cotas), as ações afirmativas no ingresso ao ensino superior têm utilizado o instrumento de bonificação. Nesse sistema, os alunos recebem uma quantidade de pontos que são somados ao resultado de seu exame de seleção. A seguir, comentamos as experiências pioneiras tanto de cotas como de bonificações. 1.1 A ExPERiêNCiA DAS CotAS NA uERJ, uENf, uNb, ufPR E ufbA As universidades pioneiras na adoção de políticas de ação afirmativa no ingresso de seus cursos foram, então, a Uerj e a UENF por

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meio de cotas em 2001. Estima-se que atualmente a Uerj tenha nove mil alunos cotistas e até agora não há estudo publicado sobre seu desempenho; entretanto, Matta (2010) fez um estudo do perfil socioeconômico dos cotistas da UENF, aplicando um questionário a uma amostra de 40% dos ingressantes de 2003 distribuídos entre cotistas negros ou pardos, cotistas de rede pública e não cotistas. Os resultados indicam perfis socioeconômicos semelhantes de cotistas e não cotistas. Em 2004 a Universidade de Brasília (UNB) implementou o sistema de cotas, reservando 20% das vagas de cada curso para alunos que se autodeclararam negros e pardos. Com esse sistema, o percentual de negros e pardos na universidade subiu de 2,0% em 2004 para 12,5% em 2006. Diferentemente do observado por Matta (2010), o perfil socioeconômico dos cotistas revelou-se muito diverso do de não cotistas: enquanto 15% dos cotistas negros tinham pais analfabetos ou com ensino fundamental incompleto, entre os não cotistas esse percentual era de apenas 6% (IPEA, 2008). Com relação ao desempenho, não foram observadas diferenças significativas entre cotistas e não cotistas: 89% dos alunos cotistas negros foram aprovados nas disciplinas cursadas enquanto 93% dos não cotistas foram aprovados; na média geral do curso, que varia até 5, os cotistas ficaram com 3,75 e os não cotistas com 3,79 (IPEA, 2008). Também em 2004 a Universidade Federal do Paraná (UFPR) adotou o sistema de cotas com o Programa de Inclusão Social e Racial que reserva 20% das vagas dos cursos de graduação para alunos egressos do ensino médio público e 20% para alunos afrodescendentes. Com essa política, o percentual de afrodescendentes aprovados na universidade aumentou de 7% em 2003 para 21% em 2005. Segundo Souza (2007), o problema encontrado pela universidade é o preenchimento das vagas reservadas aos afrodescendentes: em 2005 foram disponibilizadas 800 vagas nas cotas raciais mas apenas 489 fizeram matrícula por esse sistema (61%) e em 2006 apenas 278 alunos foram matriculados (35%). Em 2005 foi a vez da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que implementou o sistema de cotas raciais e sociais sobrepostas da seguinte forma: 45% das vagas do vestibular são reservadas sendo que 38% são para negros egressos do sistema público de ensino, 5% para

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egressos do sistema público e 2% para estudantes indígenas. Com essa política, a participação dos negros na universidade passou de 43% em 1997 para 75% em 2005. Com relação ao perfil socioeconômico dos cotistas, Reis (2007) observou que eles são mais velhos (23-33 anos de idade) do que os não cotistas (17-19 anos). Os alunos cotistas apresentam desempenho igual ou superior aos não cotistas. O principal problema seria a permanência dos alunos cotistas na universidade, mesmo com as bolsas de manutenção oferecidas aos alunos (de R$ 200,00 a R$ 280,00). 1.2 A ExPERiêNCiA DE boNifiCAÇÃo NA uNiCAmP E NA uff Em 2004 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) instituiu, no acesso a seus cursos de graduação, um sistema de bonificação que consiste na adição de 30 pontos à nota da segunda fase do vestibular para os candidatos que cursaram integralmente o ensino médio na rede pública de ensino ou que sejam egressos dos cursos supletivos presenciais de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além dos 30 pontos, os candidatos que se autodeclaram negros, pardos ou indígenas recebem mais 10 pontos. Com relação ao desempenho, em 31 cursos de graduação da Unicamp (do total de 55, ou seja, em 56% deles), os alunos que receberam bônus obtiveram média de desempenho superior aos demais estudantes do curso. Em 2009 a Universidade Federal Fluminense (UFF) começou a adotar ações afirmativas para os alunos egressos do ensino médio das redes municipal e estadual. Foi a primeira universidade federal do Estado do Rio de Janeiro a adotar o sistema de bonificação. Esse sistema é aplicado somente na segunda fase do concurso – o aluno precisa fazer a primeira fase, acertar ao menos 50% das questões e não zerar nenhuma prova – e consiste na adição de 10% à nota total (que soma o desempenho da primeira e da segunda fases). Segundo Ventura (2011), dez alunos provenientes de escolas públicas foram aprovados para Medicina em 2011, algo raro nos anos anteriores. O mesmo aconteceu com os cursos de Odontologia e Direito. Em 2012 o percentual da bonificação aumentou de 10% para 20%.

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1.3 o ComPoNENtE DE AÇÃo AfiRmAtivA PRESENtE No PRouNi Apesar dos exemplos da seção anterior, apenas 9% dos ingressantes de instituições públicas em 2009, totalizando 36.294 alunos, são oriundos de reserva de vagas (cotas) segundo o Inep (2010). É bom lembrar também que 80% das matrículas dos cursos de graduação no Brasil são oferecidos por Instituições de Ensino Superior (IES) privadas. Em 2004, o governo federal criou o Programa Universidade para Todos – ProUni que foi instituído pela Lei n° 11.096 em 13 de janeiro de 2005. O ProUni é dirigido aos estudantes com melhores desempenhos no Enem que concluíram o ensino médio na rede pública ou bolsistas integrais da rede particular que possuem renda familiar per capita de até 3 salários mínimos. São três tipos de bolsa: integral, parcial com 50% de desconto e parcial com 25% de desconto. A bolsa integral é oferecida a ingressantes com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo. A bolsa parcial de 50% beneficia estudantes com uma renda familiar per capita de até 3 salários mínimos. A bolsa parcial de 25% é aplicada somente em cursos cuja mensalidade seja de até R$ 200,00. O ProuUni determina também que as IES privadas reservem parte das bolsas aos alunos com deficiência e aos autodeclarados indígenas, negros ou pardos segundo o percentual da população de negros ou pardos na unidade da federação da IES conforme o censo do IBGE. Segundo o Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de 2009, três em cada dez matriculados nas instituições privadas possuem bolsa de estudo, sendo que 82,5% (1.019.532 alunos) são do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), da própria IES ou do governo estadual/municipal e apenas 17,5% delas (215.777 alunos) são do ProUni. O relatório disponível na página do ProUni com dados gerados pelo Sisprouni em 17/6/2011 afirma que nesse ano foram oferecidas 254.598 bolsas, sendo que 51% integrais e 49% parciais. Esse relatório também oferece a informação que 47,6% dos bolsistas se declararam brancos, 47,9% pardos ou negros e 12,5% se declararam amarelos. O restante não informou a raça/cor ou se declarou indígena.

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2 A bASE DE DADoS E A mEtoDoLoGiA 2.1 A bASE DE DADoS Do ENADE O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) avalia o rendimento dos alunos dos cursos de graduação, ingressantes e concluintes, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos em que estão matriculados. O exame é obrigatório para os alunos selecionados e é condição indispensável para a emissão do histórico escolar. Apesar de obrigatório, ter um resultado ruim no exame não traz nenhuma consequência ao aluno – por exemplo, ele não é prejudicado no mercado de trabalho – o que levanta dúvidas quanto à confiabilidade dos resultados como indicativo da “qualidade” dos concluintes e nos conduz a ter muito cuidado ao tirar nossas conclusões. Não há razões para crer que o comportamento de beneficiados por ações afirmativas difira do de não beneficiados neste aspecto. A primeira aplicação do Enade ocorreu em 2004 e a periodicidade máxima com que cada área do conhecimento é avaliada é trienal. A aplicação é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), que o faz periodicamente, sendo-lhe permitida a utilização de amostragem, levando em conta para esse fim estudantes em final do primeiro ano (ingressantes) e do último ano (concluintes) dos cursos de graduação, selecionados por área, a cada ano, para participarem do exame. A participação no Enade é obrigatória, cabendo à instituição de educação superior a inscrição de todos os estudantes habilitados. Contudo são admitidos estudantes não selecionados na amostra, desde que por opção pessoal feita junto à instituição de ensino à qual está vinculado o aluno. O registro de participação é condição indispensável para a emissão do histórico escolar, independentemente de o estudante ter sido selecionado ou não na amostragem. Neste caso, constará do seu histórico escolar a dispensa do Enade pelo MEC. O exame abrange a aprendizagem durante o curso (exame de conhecimentos específicos, CE) além de competências profissionais e formação geral (exame de formação geral, FG). Os alunos também respondem questionário socioeconômico-educacional e outro de

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percepção sobre o teste. Coordenadores de curso também respondem questionário que busca coletar informações sobre o projeto pedagógico e as condições gerais de ensino oferecidas. Este artigo utiliza como desempenho do aluno a nota do concluinte no exame de conhecimentos específicos do curso de graduação. Seria interessante utilizar como contribuição do curso o conhecimento acumulado e não a nota do concluinte, porém o Enade não disponibiliza a nota do exame do concluinte quando este era ingressante. Como dito na introdução, apesar de o Enade ser realizado desde 2004 e o Brasil incluir ações afirmativas no acesso ao ensino de graduação desde 2001, perguntas sobre ações afirmativas apareceram no questionário socioeconômico do Enade somente a partir de 20083. Como os dados mais recentes disponíveis no site do Inep são os de 2008, são estes os que utilizamos em nosso estudo. Em 2008, a pergunta feita no questionário era: “Seu ingresso no curso de graduação se deu por meio de políticas de ação afirmativa da IES?” As respostas possíveis do questionário eram: a) “Sim, por meio de reserva de vagas étnico-raciais”, isto é, por meio das chamadas “cotas raciais”; b) “Sim, por meio de reserva de vagas com recorte social”, isto é, por meio de cotas que utilizam a renda familiar ou egressos de escolas públicas; c) “Sim, por meio de sistema distinto dos anteriores”, isto é, bonificação na nota ou, no caso das instituições privadas, pelo ProUni. d) “Não”. O Enade de 2008 avaliou uma amostra de 167.704 concluintes dos seguintes cursos: arquitetura, ciências da computação, biologia, ciências sociais, engenharia, filosofia, física, geografia, história, letras, matemática, pedagogia e química. Considerando o peso amostral, os dados são representativos de 269.046 concluintes, ou seja, 33,6% dos concluintes do ano. Por fim, cabe ressaltar que em alguns momentos apresentaremos resultados separados segundo o prestígio social dos cursos – baixo, médio ou alto –, categorias definidas de acordo com o cruzamento As respostas foram alteradas em 2009 e 2010, o que dificultará a composição de uma série histórica sobre esse assunto.

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de informações acerca das proporções de não brancos, egressos de ensino médio público e baixa escolaridade dos pais nos diferentes cursos. 2.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo Do CoNCLuiNtE E vARiÁvEiS SoCioECoNômiCAS Para comparar o desempenho dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa com os outros concluintes, cotejamos algumas estatísticas descritivas (média, mediana e desvio padrão) da nota da prova de conhecimentos específicos dos dois tipos de concluintes das instituições federais, estaduais e privadas. Como as estatísticas descritivas são números que descrevem e resumem toda uma distribuição, também nos pareceu relevante comparar visualmente distribuições de notas dos concluintes por meio de gráficos, alguns dos quais contendo controles para o nível educacional dos pais dos concluintes. Para aprofundar essa relação com a inclusão de novas variáveis de controle, estima-se um modelo econométrico log-linear (ou semilogarítmico), no qual a variável dependente é o logaritmo da nota bruta do concluinte na prova de conhecimentos específicos (Yi). As variáveis independentes utilizadas no modelo final são: a) Gênero (x1): variável binária assumindo 1 se o concluinte for do gênero feminino e 0 se masculino; b) Cor (x2): variável binária assumindo 1 se o concluinte se autodeclarar não branco (preto, pardo ou mulato) e 0 se branco; c) Ensino médio (x3): variável binária assumindo 1 se todo (ou a maior parte) do ensino médio do concluinte tiver sido cursado em escola pública e 0 se todo (ou a maior parte) tiver sido cursado em escola privada; d) Educação dos pais como proxy de perfil socioeconômico do aluno (x4): variável contínua, que varia de 0 a 30, calculada pela soma dos anos de estudos de pai e mãe do concluinte; e) Ação afirmativa (x5): variável binária assumindo 1 se o concluinte ingressou por intermédio de alguma política de ação afirmativa e 0 se o ingresso foi pelo método tradicional.

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O modelo especificado será então dado pela seguinte equação na qual ε representa o termo aleatório que, por hipótese, segue a distribuição normal, com média zero e variância constante: ln Yi = b 0 + b1 X 1 + b 2 X 2i + ... + b 5 X 5i + e i

O modelo acima é estimado pelo método dos Mínimos Quadrados Ordinários (MQO) pelo software SPSS. Como as Instituições de Ensino Superior (IES) possuem características diferentes quanto a infraestrutura, qualificação e regime de trabalho do docente, que afetam o desempenho do aluno ao longo do curso, são estimadas regressões para cada categoria administrativa separadamente: federais, estaduais e privadas. As municipais são excluídas, em função do pequeno número de concluintes. 3 ComPARAÇÃo ENtRE o PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES Do ENSiNo SuPERioR PÚbLiCo bENEfiCiADoS PELAS AÇÕES AfiRmAtivAS E o DoS DEmAiS CoNCLuiNtES 3.1 PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES bENEfiCiÁRioS E NÃo bENEfiCiÁRioS DE AÇÕES AfiRmAtivAS Dentre os cursos avaliados no Enade 2008, os mais populares eram Pedagogia (corresponde a 26,7% da amostra), letras (14%) e Engenharia (13%), conforme indicado na Tabela 1. Com relação à categoria administrativa da Instituição de Ensino Superior (IES), mais de 80% dos concluintes de Ciências Sociais e Física são de IES públicas. O curso com menor incidência de concluintes em IES pública é Ciência da Computação – somente cerca de 20% de seus concluintes cursaram instituições federais, estaduais ou municipais. Entre os cursos avaliados pelo Enade em 2008, aqueles com maior frequência relativa de concluintes cujo ingresso se deu por meio de ações afirmativas são Pedagogia (25,4%) e Letras (21,3%), cursos pouco concorridos, como indica a baixa relação candidato/vaga na Tabela 1. No outro extremo, encontram-se Arquitetura (8,0%), Engenharias (8,2%) e Ciências Sociais (8,4%).

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Tabela 1 Dados gerais dos cursos avaliados pelo Enade 2008, brasil Categoria

Concluintes Relação

avaliados

administrativa

candidato/

Curso de graduação N°

%

% de concluintes que ingressaram por

vaga

Pública

Privada

ação afirmativa

Pedagogia

69.983

26,7%

1,17

32%

68%

25,4%

Letras

36.973

14,1%

1,58

36%

64%

21,3%

Geografia

13.684

5,2%

3,52

62%

38%

20,5%

História

17.311

6,6%

4,09

45%

55%

20,3%

matemática

16.272

6,2%

2,48

44%

56%

19,6%

biologia

25.428

9,7%

2,05

33%

67%

18,0%

filosofia

4.217

1,6%

2,16

43%

57%

16,3%

Química

6.908

2,6%

2,96

57%

43%

13,3%

23.235

8,9%

1,78

20%

80%

12,1%

Ciência da Computação física

2.842

1,1%

3,24

83%

17%

9,2%

Ciências Sociais

3.394

1,3%

4,17

83%

17%

8,4%

Engenharias

34.029

13%

2,54

47%

53%

8,2%

Arquitetura

8.110

3,1%

2,18

29%

71%

8,0%

262.386

100%

-

39%

61%

18,5%

total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008 e Sinopse Estatística dos Cursos de Graduação 2008. Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna da direita (proporção dos concluintes que ingressaram por meio de políticas de ação afirmativa).

Com o auxílio da Tabela 2, observa-se que o ingresso de alunos por meio de políticas de ação afirmativa declinou-se em: reserva de vagas étnico-raciais, reserva de vagas com recorte social, ou outros sistemas como ProUni ou bonificação, com variações curso a curso. Pedagogia, que representa 26,7% dos concluintes avaliados em 2008 pelo Enade, é também o curso com maior número absoluto (17.776 concluintes) e relativo (25,4%) de concluintes que ingressaram por meio de ações afirmativas.

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Tabela 2 Distribuição dos concluintes segundo o ingresso por meio de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008 Seu ingresso se deu por meio de políticas de ação afirmativa da IES? N° de

Sim Área avaliada Total

Reserva

Reserva de

de vagas

vagas com

étnico-

recorte

raciais

social

Total Sistema distinto dos

Não

concluintes que ingressaram por ação afirmativa

anteriores

Pedagogia

25,4%

2,3%

7,4%

15,8%

74,6% 100,0%

17.776

Letras

21,3%

3,0%

5,5%

12,8%

78,7% 100,0%

7.875

Geografia

20,5%

2,1%

6,6%

11,8%

79,5% 100,0%

2.805

História

20,3%

1,9%

6,0%

12,3%

79,7% 100,0%

3.514

matemática

19,6%

1,3%

5,6%

12,7%

80,4% 100,0%

3.189

biologia

18,0%

1,5%

4,7%

11,8%

82,0% 100,0%

4.577

filosofia

16,3%

1,1%

4,0%

11,2%

83,7% 100,0%

687

Química

13,3%

0,9%

3,5%

8,9%

86,7% 100,0%

919

Ciência da Computação

12,1%

1,6%

3,2%

7,3%

87,9% 100,0%

2.811

física

9,2%

1,1%

2,2%

5,9%

90,8% 100,0%

261

Ciências Sociais

8,4%

1,2%

2,9%

4,3%

91,6% 100,0%

285

Engenharias

8,2%

0,7%

1,3%

6,2%

91,8% 100,0%

2.790

Arquitetura

8,0%

0,5%

1,0%

6,5%

92,0% 100,0%

649

18,5%

1,8%

5,0%

11,7%

81,5% 100,0%

48.138

total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008. Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna esquerda (proporção dos concluintes que ingressaram por meio de políticas de ação afirmativa).

Para melhor avaliar o perfil do concluinte, agrupamos os cursos de graduação avaliados em 2008 segundo seu prestígio social, conforme explicado anteriormente, resultando na seguinte divisão: Pedagogia como baixo prestígio social (26,7% concluintes); Arquitetura, Enge-

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nharias e Ciência da Computação como alto prestígio social (24,6% dos concluintes) e os cursos restantes como médio prestígio social (49,1% dos concluintes). Na Tabela 3, podemos observar o perfil dos concluintes agrupados segundo o prestígio social do curso e sua categoria administrativa. Note-se que a proporção de alunos cujo ingresso se deu por ações afirmativas diminui sensivelmente conforme aumenta o prestígio social dos cursos, até mesmo nas instituições privadas. Será um problema de oferta, isto é, poucas vagas são reservadas para os alunos não brancos ou egressos de ensino médio público nestes cursos de alto prestígio (Arquitetura, Engenharia, Ciências da Computação) nas instituições públicas? Ou será que a oferta é a mesma e o nível de evasão ou repetência desses cursos é maior, conduzindo a uma menor incidência de concluintes que ingressaram neles por ação afirmativa? Com os dados disponíveis não temos como explicar o porquê dessa situação. Tabela 3 Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008 segundo o prestígio social do curso Perfil dos concluintes Categoria Prestígio administrativa social do IES curso

Sexo Homem Mulher

federal

Estadual

Privado

Egressos do ensino médio

Cor Branco

Não branco

Privado Público

Escolaridade do pai Ensino básico

Ensino

Tipo de ingresso Não ação

Ação

superior afirmativa afirmativa

baixo

12%

88%

46%

54%

25%

75%

91%

9%

80%

20%

médio

45%

55%

54%

46%

38%

62%

81%

19%

91%

9%

Alto

71%

29%

72%

28%

66%

34%

55%

45%

95%

5%

baixo

10%

90%

42%

58%

13%

87%

96%

4%

66%

34%

médio

35%

65%

48%

52%

25%

75%

92%

8%

75%

25%

Alto

73%

27%

75%

25%

57%

43%

62%

38%

92%

8%

baixo

5%

95%

66%

34%

15%

85%

93%

7%

76%

24%

médio

30%

70%

64%

36%

20%

80%

91%

9%

79%

21%

Alto

76%

24%

78%

22%

48%

52%

68%

32%

89%

11%

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

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Se entendemos “mais diversidade” por maior representação de grupos desfavorecidos, as ações afirmativas aumentaram-na. Observe-se na Tabela 4 o perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa segundo o prestígio social do curso e a categoria administrativa da IES. O percentual de concluintes negros/pardos/mulatos nas federais que ingressaram por ação afirmativa era de 41% nos cursos avaliados em 2008 pelo Enade, comparado aos 28% do total de concluintes (Tabela 3). Tabela 4 Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008 que ingressaram por ação afirmativa, segundo o prestígio social do curso Perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa Categoria administrativa IES

federal

Estadual

Privada

Prestígio social do curso

Sexo Homem

Cor

Mulher

Branco

Ensino médio Não branco

Privado

Público

Escolaridade do pai Ensino básico

Ensino superior

baixo

11%

89%

33%

67%

16%

84%

96%

4%

médio

39%

61%

45%

55%

27%

73%

90%

10%

Alto

69%

31%

59%

41%

61%

39%

66%

34%

baixo

10%

90%

32%

68%

9%

91%

99%

1%

médio

28%

72%

32%

68%

15%

85%

97%

3%

Alto

61%

39%

58%

42%

37%

63%

80%

20%

baixo

5%

95%

62%

38%

10%

90%

95%

5%

médio

28%

72%

56%

44%

11%

89%

95%

5%

Alto

74%

26%

73%

27%

34%

66%

77%

23%

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Entre os concluintes de 2008, a categoria administrativa que mais concedeu diplomas às pessoas que se autodeclararam negros, pardos ou mulatos (não brancos) foram as IES estaduais (51%), possivelmente como reflexo de políticas de ação afirmativa, conforme se vê no Gráfico 1. É grande também a presença de não brancos nas IES federais (42%), mais do que nas IES privadas (32%). No total, puxado pelas privadas (predominantes), 1/3 dos concluintes avaliados em 2008 pelo Enade são negros, pardos ou mulatos.

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Gráfico 1 Distribuição dos concluintes por cor da pele autodeclarada segundo dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008 Branco

70% 60%

Não branco 68%

64%

58% 49%

50%

51%

42%

40%

36%

32%

30% 20% 10% 0% Federal

Estadual

Privada

Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Dentre os concluintes negros/pardos/mulatos das IES federais, apenas 13% ingressaram por meio de ações afirmativas (Gráfico 2), de modo que 87% ingressaram sem o auxílio dessas políticas. Supondo que, na ausência de políticas de ação afirmativa, os alunos que ingressaram beneficiados por elas não tivessem sido admitidos na universidade, a proporção de negros/pardos/mulatos nas federais seria cerca de 5 pontos percentuais mais baixa. Nas IES estaduais, nas quais mais de metade dos concluintes eram negros/pardos/mulatos, cerca de 1/3 ingressou com o auxílio das ações afirmativas, número expressivo em comparação com as federais e privadas. Com as mesmas hipóteses, a ausência de ações afirmativas teria significado redução de 17 pontos percentuais na proporção de não brancos nas IES estaduais. Nas privadas, a redução seria de 8 pontos percentuais. No total, teríamos em 2008 uma proporção de negros/pardos/mulatos nas universidades

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brasileiras 9 pontos percentuais inferior à efetivamente observada (27% contra 36%).4 Gráfico 24 Distribuição dos concluintes negros/pardos/mulatos por ingresso por meio de ações afirmativas segundo a dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008 Demais alunos

100%

Ação afirmativa

87%

80%

76%

66%

76%

60% 40% 20%

34% 13%

24%

24%

0% Federal

Estadual

Privada

Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008. 4 A proporção de negros, pardos e mulatos nas IES federais seria de 37%, número obtido ao se multiplicar 42% (proporção de negros, pardos e mulatos nas IES federais) por 87% (proporção de negros, pardos e mulatos não beneficiários de políticas de ação afirmativa). A proporção de negros, pardos e mulatos nas IES estaduais seria de 34%, número obtido ao se multiplicar 51% (proporção de negros, pardos e mulatos nas IES federais) por 66% (proporção de negros, pardos e mulatos não beneficiários de políticas de ação afirmativa). Nas privadas, a proporção seria de 24% (32% x 76%), contra os 32% efetivamente observados. No total, teríamos 27% (36% x 76%), contra os 36% observados. A ressalva feita a esses cálculos é que se desconsidera a possibilidade de que negros, pardos e mulatos admitidos por políticas de ação afirmativa pudessem ter ingressado em IES da mesma categoria em que ingressaram, mesmo na ausência de tais políticas. Também são desconsiderados movimentos entre categorias de IES. Em suma, e usando o jargão microeconômico, poderíamos dizer que nossa análise é de “equilíbrio parcial” e não de “equilíbrio geral”.

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As IES estaduais também se destacam pela maior incidência de concluintes do ensino superior com ensino médio público (76%), o mesmo patamar de incidência relativa das IES privadas (75%) – possivelmente, naquelas em razão de cotas e bônus, enquanto nestas, em razão do perfil socioeconômico mais desfavorecido dos que nelas costumam se matricular (Gráfico 3). Entre as IES federais, 55% dos concluintes são oriundos do ensino médio público, incidência que não reflete o perfil dos concluintes do ensino médio, uma vez que 85% dos concluintes do ensino médio são de instituições públicas. Gráfico 3 Distribuição dos concluintes por tipo de ensino médio cursado segundo a dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008 Ensino médio privado

Ensino médio público

100% 76%

80% 60%

45%

75%

71%

55%

40% 24%

25%

29%

Estadual

Privada

Total

20% 0% Federal

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Dos concluintes das federais egressos de escolas públicas, apenas 12% ingressaram por meio de políticas de ação afirmativa nos cursos avaliados em 2008 (Gráfico 4). Com relação às estaduais, dos concluintes egressos do ensino médio público, pouco menos de 1/3 (29%) ingressou por meio de ações afirmativas. Nas privadas, o número gira em torno de 1/5.

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Gráfico 4 Distribuição dos concluintes com ensino médio público por ingresso por meio de ações afirmativas segundo a dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008 Demais alunos

100%

Ação afirmativa

88%

80%

78%

71%

78%

60% 40% 20%

29%

22%

22%

12%

0% Federal

Estadual

Privada

Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

A mobilidade social5 via escolaridade é maior entre os concluintes das instituições estaduais, uma vez que apenas 10% dos pais e 14% das mães dos concluintes têm ensino superior. Entre os concluintes das federais, esses percentuais são, respectivamente, 26% e 28% (Gráfico 5).

5 Utilizamos o termo mobilidade social para indicar melhora ou piora da situação educacional dos alunos com relação à situação educacional de seus pais.

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Gráfico 5 Distribuição dos concluintes por escolaridade dos pais segundo a dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Escolaridade do pai do concluinte Fundamental

80%

Médio

71%

70%

63%

60% 50%

Superior

61%

44%

40%

30%

30%

26%

15%

14%

10%

10%

23%

22%

20%

20% 0% Federal

Estadual

Privada

Total

Escolaridade da mãe do concluinte Fundamental

Médio

Superior

80% 70%

63%

60%

60% 50% 40% 30%

57%

40% 32%

20%

28%

18%

15%

14%

10%

26%

25%

24%

0% Federal

Estadual

Privada

Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008. Nota: Nível fundamental ou menos.

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O fato de as instituições estaduais se destacarem com relação à incidência relativa de concluintes não brancos e de ensino médio, bem como no que tange à mobilidade social, parece efetivamente se dever à reserva de vagas das ações afirmativas. Entre os concluintes dos cursos de graduação estaduais avaliados em 2008, 26% ingressaram por meio de ações afirmativas, contra apenas 10% dos concluintes das IES federais (Gráfico 6). As IES privadas, com 19%, encontram-se em patamar intermediário. Dentre os concluintes das IES privadas dos cursos avaliados pelo Inep em 2008 que ingressaram por intermédio de ações afirmativas, 34,2% ingressaram por intermédio do ProUni, 31% por bolsa própria da IES, 27,33% por bolsa de entidades externas e 7,5% ingressaram com o auxílio do Fies. Gráfico 6 Distribuição dos concluintes por tipo de ingresso segundo a dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008 Demais alunos

100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%

Ação afirmativa

90%

26%

19%

10%

Federal

81%

81%

74%

Estadual

Privada

19%

Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

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Diferentemente do observado para a UENF por Matta (2010), o perfil socioeconômico dos concluintes que ingressaram por meio de ações afirmativas é diferente do perfil daqueles que não ingressaram por meio dessa política. A faixa de renda familiar entre os que ingressaram por meio de políticas de ação afirmativa se concentra em até 3 salários mínimos enquanto os ingressantes sem as políticas se concentram na faixa de mais de 3 até 5 salários mínimos (Tabela 5). Uma crítica à política de ação afirmativa racial é que muitos beneficiários dessa política seriam estudantes das minorias de classe média, que não passaram pelas dificuldades que afligem os jovens das áreas mais pobres das cidades. Os dados do Inep nos levam a matizar essa afirmativa, uma vez que, entre os concluintes que ingressaram por meio de reserva étnico-racial de vagas, a grande maioria cursou escola pública (88,3%), tem renda familiar de até 3 salários mínimos (65,3%) e pai com ensino fundamental ou menos (55%). Uma minoria cursou o ensino médio todo ou a maior parte em escola privada (11,7%) e tinha renda familiar de mais de 10 salários mínimos (6,2%). Nos cursos avaliados pelo Inep em 2008, 71% dos concluintes cursaram o ensino médio todo ou a maior parte em escola pública. Esse percentual aumenta para 85% entre os ingressantes por meio de ação afirmativa. Outra questão a destacar é a mobilidade social promovida pelas políticas de ação afirmativa uma vez que, entre os concluintes que ingressaram por essa política, apenas 7% tinham pai com ensino superior. Entre os concluintes que ingressaram pelo método tradicional, esse percentual é de 18% (Tabela 5).

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Tabela 5 Perfil socioeconômico dos concluintes segundo o ingresso por meio de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008 Seu ingresso se deu por meio de políticas de ação afirmativa da IES? Sim Variáveis

Respostas Total

Raça/cor

Sistema distinto dos anteriores

Total Não

53,2%

30,2%

51,6%

57,4%

65,9%

63,6%

Negro/pardo/ mulato

46,8%

69,8%

48,4%

42,6%

34,1%

36,4%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

Escola privada

15,3%

11,7%

6,8%

19,6%

32,0%

29,0%

Escola pública

84,7%

88,3%

93,2%

80,4%

68,0%

71,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

60,3%

65,3%

70,1%

55,4%

39,2%

43,1%

33,5%

29,1%

27,1%

36,9%

44,1%

42,2%

4,6%

4,5%

2,2%

5,6%

11,7%

10,4%

1,6%

1,2%

0,5%

2,1%

5,0%

4,4%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

15,3%

21,4%

16,8%

13,7%

7,6%

9,0%

Ensino fundamental

61,5%

55,0%

64,4%

61,3%

49,5%

51,8%

Ensino médio

16,1%

16,6%

14,7%

16,7%

25,3%

23,6%

7,0%

7,0%

4,0%

8,3%

17,6%

15,6%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

total Renda familiar

Reserva de vagas com recorte social

branco

total Ensino médio

Reserva de vagas étnicoraciais

Até 3 salários mínimos (S.m.) mais de 3 até 10 S.m. mais de 10 até 20 S.m. mais de 20 S.m. total

Escolaridade Nenhuma do pai

Ensino superior total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

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Precisamos reconhecer que não é possível tirar conclusões definitivas a respeito do impacto das políticas de ações afirmativas sobre o grau de diversidade socioeconômica dos concluintes das universidades brasileiras, sobretudo por duas razões. Primeiro, porque temos informações apenas a respeito de características dos concluintes, mas não sobre as de ingressantes que eventualmente tenham abandonado o curso ou ainda o estejam cursando. Não temos como saber se o atraso ou a evasão atingem uniformemente beneficiários e não beneficiários das políticas de ações afirmativas, e, portanto, quais seriam as proporções de concluintes negros ou oriundos de escola pública na ausência de cotas. Em segundo lugar, não temos como afirmar qual teria sido o comportamento de beneficiários se não houvesse tais políticas. Teríamos, por exemplo, menos negros nas IES públicas, porém, mais negros nas IES privadas? De que forma isto afetaria a proporção total de negros? Feitas essas ressalvas, como as proporções de concluintes que efetivamente se beneficiaram de políticas de ações afirmativas são expressivas, sobretudo nas IES estaduais, acreditamos haver indícios de que as ações afirmativas contribuíram para aumentar a diversidade socioeconômica nos campi brasileiros. Em sendo verdade, um objetivo fundamental das ações afirmativas teria sido alcançado. A questão seguinte é: o preço pago para isso foi alto em termos de redução de desempenho? 4 umA ANÁLiSE Do DESEmPENHo DoS CoNCLuiNtES 4.1 EStAtÍStiCAS DESCRitivAS Conforme indicado na Tabela 6, a nota média dos concluintes das estaduais e federais que ingressaram por meio de ações afirmativas no teste de conhecimentos gerais é aproximadamente 4 pontos menor que a de concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da prova varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude, essa diferença é significativa segundo o teste de diferença de médias. Esse resultado é importante, pois difere daqueles apontados por pesquisadores citados na seção 2 deste artigo. Entre as instituições privadas a diferença, de 0,28 a favor dos beneficiários das ações afirmativas, não é significativa.6 As estatísticas Z dos testes citados nesse parágrafo são, respectivamente: 11,13; 14,71 e 1,73.

6

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Tabela 6 Estatísticas descritivas da nota segundo tipo de ingresso, brasil, 2008 Dependência administrativa federal

Estadual

Privada

total

Estatísticas da nota Tipo de ingresso

Média

Mediana

Concluintes

Desvio padrão

%

método tradicional

47,2

47,2

17,4

30.991

90,5%

Ações afirmativas

42,8

41,7

16,8

3.261

9,5%

total

46,8

46,6

17,4

34.252

100,0%

método tradicional

42,9

42,0

17,0

23.656

74,1%

Ações afirmativas

38,6

36,7

16,3

8.266

25,9%

total

41,8

40,5

16,9

31.922

100,0%

método tradicional

40,0

38,3

15,9

92.055

80,7%

Ações afirmativas

40,3

38,5

16,2

21.993

19,3%

total

40,0

38,3

15,9

114.048

100,0%

método tradicional

41,8

40,3

16,6

151.490

81,5%

Ações afirmativas

40,0

38,2

16,3

34.416

18,5%

total

41,4

39,9

16,6

185.906

100,0%

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Com relação ao tipo de escola cursada no ensino médio, não há muita diferença entre a distribuição das notas dos concluintes das federais e estaduais que cursaram o ensino médio em escolas privadas daqueles que cursaram o ensino médio em escolas públicas e que não ingressaram por meio de ação afirmativa. Observe-se que, embora pequena, a diferença de 1,1 é significativa entre as notas médias desses dois grupos nas federais (estatística do teste z=5,61). Nas instituições estaduais não há diferença significativa entre as notas médias (Tabela 7).

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Tabela 7 Estatísticas descritivas da nota segundo tipo de ingresso, cor da pele autodeclarada e tipo de ensino médio, brasil, 2008 Estatísticas descritivas Categoria

Cor e ação

administrativa

afirmativa

Estadual

federal

branco

Média

Desvio padrão

Estatísticas descritivas

médio e ação

Média

Mediana

afirmativa

Desvio padrão

47,6

17,1 Privado

47,7

47,5

17,2

45,9

45,7

Público_não 17,7 ação

46,6

46,2

17,5

Não branco_ ação

42,4

41,0

16,9

43,4

42,3

16,8

total

46,8

46,5

17,3 total

46,8

46,6

17,3

branco

43,3

42,5

17,0 Privado

42,7

41,8

17,4

42,7

41,8

16,8

39,4

37,5

16,3

41,9

40,6

16,9

Não branco_ não ação

47,8

Mediana

Ensino

Público_ ação

Não branco_ não ação

41,3

40,2

Público_não 16,7 ação

Não branco_ ação

38,9

37,0

16,4

total

41,8

40,5

16,9 total

Público_ ação

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

As estatísticas descritivas apresentadas na tabela anterior são números que sintetizam toda a distribuição das notas dos concluintes. O Gráfico 7 mostra que a distribuição das notas dos concluintes das instituições federais e estaduais que ingressaram por ação afirmativa se deslocam para a esquerda comparados com os alunos não beneficiados por essa política. Já para os concluintes das instituições privadas, não há diferença significativa na distribuição das notas entre os ingressantes por ação afirmativa e não ingressantes.

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Gráfico 7 Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo de ingresso, brasil, 2008 IES Federal % de concluintes

12% 10% 8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Demais alunos

Ação afirmativa

IES Estadual % de concluintes

12% 10% 8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Demais alunos

Ação afirmativa

IES Privada % de concluintes

12% 10% 8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Demais alunos

Ação afirmativa

Combinando a distribuição das notas dos concluintes com o tipo de ingresso e a cor da pele (Gráfico 8), observa-se que a curva que representa as notas dos concluintes não brancos e que ingressaram por ação afirmativa é a mais deslocada para a esquerda, refletindo desempenho pior do que os concluintes não brancos que não ingressaram por ação afirmativa nas instituições federais e estaduais. Nas instituições privadas esse deslocamento também ocorre, porém com intensidade menor.

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IES Federal Gráfi co 8 Distribuição das notas dos concluintes segundo a cor da pele 10% autodeclarada e o tipo de ingresso, brasil, 2008 % de concluintes % de concluintes

12%

8%

IES Federal

6% 12% 4% 10% 2% 6%

0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

8% 0% Nota na prova de conhecimentos específicos

4% 2%

Brancos

Não brancos - ação afirmativa

Não brancos - demais alunos

0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Brancos

Não brancos - ação afirmativa

Não brancos - demais alunos

IES Estadual 12% 8%

IES Estadual

6% 4% 12% 2% 10% 0% 8% 6%

0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

% de concluintes % de concluintes

10%

Nota na prova de conhecimentos específicos

4% 2%

Brancos

0%

Não brancos - ação afirmativa

Não brancos - demais alunos

0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

IES Privada

Nota na prova de conhecimentos específicos

% de concluintes

12% 10%

Brancos

Não brancos - ação afirmativa

Não brancos - demais alunos

8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Brancos

Não brancos - ação afirmativa

Não brancos - demais alunos

Combinando o tipo de ingresso no ensino superior com o tipo de escola cursada no ensino médio (Gráfico 9), observamos que as curvas que representam a distribuição das notas dos concluintes dos egressos do ensino médio público que não ingressaram no ensino superior por

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meio de ações afirmativas são muito semelhantes àquelas de egressos do ensino médio privado. Gráfico 9 Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo de ensino médio e o de ingresso, brasil, 2008 IES Federal 12% % de concluintes

10% 8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Ensino médio privado Ensino médio público - demais alunos Ensino médio público - ação afirmativa

IES Estadual

% de concluintes

12% 10% 8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Ensino médio privado Ensino médio público - demais alunos Ensino médio público - ação afirmativa

IES Privada 12% % de concluintes

10% 8% 6% 4% 2% 0 2 6 10 14 18 22 26 30 34 38 42 46 50 54 58 62 66 70 74 78 82 86 90 94 98

0% Nota na prova de conhecimentos específicos Ensino médio privado Ensino médio público - demais alunos Ensino médio público - ação afirmativa

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4.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL SoCioECoNômiCo: umA ANÁLiSE GRÁfiCA PRELimiNAR Nesta seção compara-se o desempenho dos concluintes que ingressaram por meio de ações afirmativas com os demais, controlando-se pelo perfil socioeconômico. Poderíamos utilizar a renda familiar como proxy do perfil socioeconômico. Mas a variável renda tem vários problemas de mensuração. Por exemplo, os filhos podem não conhecer ao certo a renda dos pais, a renda informada pode estar sub ou sobre-estimada, a renda familiar pode incluir a do concluinte, que muitas vezes já está fazendo estágio ou trabalhando no final do curso etc. Por esse motivo, a variável escolhida é a escolaridade dos pais7, escolha de resto rotineira na literatura de economia da educação (FERREIRA; GIGNOUX, 2011). Para captar a escolaridade dos pais, criamos uma variável que consiste na soma dos anos de estudos do pai e da mãe. Esse indicador varia de zero (ambos os pais sem instrução) até 30 (ambos com ensino superior). Quando pelo menos um dos pais tem o ensino superior, esse indicador é maior ou igual a 15. Uma primeira ideia da relação entre o desempenho do concluinte e o perfil socioeconômico do aluno é apresentada nos gráficos a seguir. Observe-se que, mesmo controlando pelo background familiar, o desempenho dos concluintes que ingressaram por meio de ações afirmativas é inferior ao desempenho dos concluintes que ingressaram sem elas nas instituições federais e estaduais (Gráfico 10). Nas instituições privadas, não há diferença significativa entre a nota média dos concluintes que ingressaram ou não por ação afirmativa, mesmo controlando pelo background familiar do aluno. Ressalte-se que, por serem fortemente correlacionadas, não podemos incluir educação dos pais e renda familiar juntas em uma mesma regressão. O coeficiente de correlação de Spearman para variáveis ordinais de renda familiar com instrução dos pais é 0,411, com p-valor de 0,000. O coeficiente de renda familiar com instrução da mãe é 0,364 com p-valor de 0,000. O p-valor próximo de zero indica que o coeficiente de correlação é significativo até ao nível de significância 1%, isto é, rejeitamos a hipótese nula de que não existe relação entre essas variáveis.

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Gráfico 10 Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico por tipo de ingresso brasil, 2008

Nota média

IES Federal 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10 15 20 Indicador do perfil socioeconômico Demais alunos Ação afirmativa

25

30

25

30

25

30

Nota média

IES Estadual 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10 15 20 Indicador do perfil socioeconômico

Nota média

Demais alunos

Ação afirmativa

IES Privada

50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10 15 20 Indicador do perfil socioeconômico Demais alunos Ação afirmativa

O desempenho médio dos concluintes brancos na prova de conhecimentos específicos é superior ao dos negros/pardos/mulatos que ingressaram pelo método tradicional, que por sua vez é superior ao desempenho dos negros/pardos/mulatos que ingressaram por ação afirmativa nas instituições federais e estaduais (Gráfico 11).

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Gráfico 11 Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico por cor da pele autodeclarada e tipo de ingresso, brasil, 2008

Nota média

IES Federal 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10

15

20

25

30

Indicador do perfil socioeconômico Branco

Não branco - demais alunos

Não branco - ação afirmativa

Nota média

IES Estadual 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10

15

20

25

30

Indicador do perfil socioeconômico Branco

Não branco - demais alunos

Não branco - ação afirmativa

Nota média

IES Privada 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10

15

20

25

30

Indicador do perfil socioeconômico Branco

Negro/pardo/mulato

Quando combinados ingresso por ação afirmativa e tipo de ensino médio, controlando-se por nível socioeconômico, observa-se que a partir do indicador socioeconômico 15, que indica que pelo menos um dos pais possui ensino superior completo, o desempenho médio

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dos concluintes egressos do ensino médio privado é superior ao dos egressos do ensino médio público sem ação afirmativa (Gráfico 12). Gráfico 12 Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico por tipo de ensino médio e tipo de ingresso, brasil, 2008

Nota média

IES Federal 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30 0

5 10 15 20 25 Indicador do perfil socioeconômico Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado Ensino médio público - ação afirmativa

30

IES Estadual 50 48 46 Nota média

44 42 40 38 36 34 32 30 0

5

10 15 20 Indicador do perfil socioeconômico Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado Ensino médio público - ação afirmativa

25

30

10 15 20 25 Indicador do perfil socioeconômico Ensino médio público Ensino médio privado

30

Nota média

IES Privada 50 48 46 44 42 40 38 36 34 32 30

0

5

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4.3 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL SoCioECoNômiCo PELo mÉtoDo DA REGRESSÃo Até aqui analisamos o desempenho do concluinte controlado apenas pelo background familiar do aluno, agora, incluem-se novas variáveis explicativas8 e também análises segundo o prestígio social do curso. Com relação à significância do modelo estimado para os concluintes das federais (Tabela 8), o fato de o aluno ter cursado todo ou parte do ensino médio em escolas públicas não é importante para o desempenho do aluno ao final do curso. Mulheres têm notas em média 10% superiores às dos homens. Negros têm desempenho 5% inferior aos concluintes brancos. Ingressantes por ação afirmativa têm nota em média 8,2% inferior, mantendo todas as outras variáveis constantes. Com relação aos concluintes das estaduais, ter cursado parte ou todo o ensino médio em escolas públicas afeta o desempenho, porém não da forma esperada, uma vez que seu desempenho é em média 2,7% superior ao dos concluintes que cursaram a maior parte ou todo o ensino médio privado. Assim como nas federais, mulheres têm desempenho cerca de 10% superior ao dos homens e os negros têm desempenho, em média, 5% inferior ao dos brancos. Nas instituições estaduais, os concluintes que ingressaram por meio de políticas afirmativas têm desempenho, em média, 8,8% inferior aos que ingressaram pelo método tradicional. Mais uma vez, as regressões das subamostras de prestígio social do curso não revelam diferenças qualitativas importantes na principal variável (ação afirmativa), que é sistematicamente negativa e significativa, com variação somente de magnitude. Nos cursos de médio prestígio social nas instituições federais (Letras, Física, Química, Biologia, História, Geografia, Filosofia e Ciências Sociais), o desempenho dos que ingressaram por ação afirmativa é em média 13,7% inferior ao dos demais concluintes. Com relação aos concluintes das instituições privadas de ensino superior, o coeficiente da variável ação afirmativa é muito próximo de Seguindo a sugestão do parecerista, procuramos incorporar dummies regionais ou estaduais, porém não há informação sobre a região ou a unidade da federação onde está localizada a IES no banco de dados disponibilizado pelo Inep, possivelmente para dificultar a identificação da IES.

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zero, e não significativo, indicando não haver diferença de desempenho entre beneficiários e não beneficiários. Nas subamostras de cursos de prestígio social médio e alto, porém, há diferenças significativas. Tabela 8 Coeficientes estimados (b) e significância (p-valor) Tipo de curso

Federais B

Privadas

p-valor Correção¹

B

p-valor Correção¹

B

p-valor

Correção¹

(Constant)

3,696

0,000

-

3,569

0,000

-

3,444

0,000

-

Não branco

-0,051

0,000

-5,0%

-0,051

0,000

-5,0%

-0,03

0,000

-3,0%

mulher todos

Estaduais

Variáveis

0,098

Ensino médio -0,007 público Perfil 0,003 socioeconômico Ação afirmativa -0,086

0,000

10,3%

0,094

0,000

9,9%

0,219

0,000

24,5%

0,202

-

0,027

0,000

2,7% -0,007

0,034

-0,7%

0,000

-

0,004

0,000

0,003

0,000

-

-8,8% -0,006

0,065

-

-

0,000

-8,2%

-0,092

0,000

(Constant)

3,908

,000

-

3,825

,000

-

3,824

Não branco

,009

,363

-

-,025

,002

-2,4%

-,018

,000

-1,7%

,093

,000

9,8%

,008

,507

,013

,149

-

-,025

,030

-2,5%

-,006

,623

-,028

,000

-2,7%

,004

,000

-

,011

,000

,004

,000

-

Ação afirmativa

-,116

,000

-10,9%

-,099

,000

-9,4%

-,009

,047

-0,8%

(Constant)

3,671

,000

-

3,545

,000

-

3,429

,000

-

Não branco

-,070

,000

-6,8%

-,074

,000

-7,1%

-,019

,000

-1,9%

,030

,000

3,1%

-,015

,057

,031

,000

3,1%

-,038

,000

-3,7%

,001

,896

-,038

,000

-3,7%

,005

,000

-

,006

,000

,008

,000

0,8%

Ação afirmativa

-,148

,000

-13,7%

-,120

,000

-2,0%

(Constant)

3,631

,000

-

3,568

,000

Não branco

-,089

,000

-8,5%

-,090

,000

mulher Alto prestígio Ensino médio social público Perfil socioeconômico

-,005

,548

-

-,027

,116

,008

,350

-

-,035

,034

,006

,000

-

,005

,000

Ação afirmativa

-,106

,000

-10,1%

-,099

,001

mulher baixo prestígio Ensino médio social público Perfil socioeconômico

mulher médio prestígio Ensino médio social público Perfil socioeconômico

-11,3% -8,6%

-3,5%

-9,4%

-,020

,000

3,406

,000

-,077

,000

-7,4%

,058

,000

6,0%

-,048

,000

-4,7%

,005

,000

0,5%

-,057

,000

-5,6%

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,000

-

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Continuação da tabela 8 Tipo de curso

Federais

Estaduais

Privadas

Variáveis B

p-valor Correção¹

B

p-valor Correção¹

B

p-valor

Correção¹

informações básicas sobre as regressões completas (“todos”)2 N° de observações R² ajustado Estatística f

32.119

29.662

105.862

0,421

0,423

0,452

142,113

142,664

1.155,786

Nota: ¹A correção é exp (B)-1 para as variáveis binárias significativas, isto é, com p-valor menor que 0,05. A correção é utilizada na interpretação dos parâmetros estimados B. Os valores em negrito são maiores que 0,05, logo essas variáveis não são significativas ao nível 5%. Isto quer dizer que essas variáveis não são importantes para explicar a nota do concluinte. A estatística F dos modelos ajustados é alta, com p-valor próximo de zero em todas as regressões, indicando que até ao nível 1% rejeitamos a hipótese nula de que não há relação linear entre as variáveis X e Y. Logo o modelo foi bem especificado. O R² ajustado é médio em todos os modelos. Resultado esperado: a) dado que se usam dados em corte transversal e b) o modelo estimado é parcimonioso. Informações de qualidade de ajuste das regressões segundo prestígio social não são relatadas aqui, mas podem ser obtidas dos autores.

2

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus “raciais” ou “sociais”) têm sido implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo de reduzir a desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da probabilidade de acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior. Neste estudo, a partir dos dados mais recentes do Enade disponíveis, traça-se um perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos beneficiados por ações afirmativas com os demais alunos, inclusive no que se refere ao desempenho na prova de conhecimentos específicos. Participam do exame os alunos ingressantes e concluintes em 2008, portanto uma ressalva aos dados utilizados no trabalho é a falta de informação sobre os que ingressaram em 2004 e evadiram ao longo do curso ou ainda não se formaram. Entendendo-se como diversidade uma maior representação de grupos desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objetivo de proporcionar maior diversidade nas universidades, embora tal tendência seja menos clara em cursos mais prestigiosos.

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Com relação ao desempenho dos alunos, a nota média dos concluintes das estaduais e federais que ingressaram por meio de ações afirmativas é aproximadamente 4 pontos menor com relação aos concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da prova varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude, essa diferença é significativa segundo o teste de diferença de médias. Entre as instituições privadas, a diferença a favor dos beneficiários das ações afirmativas, não é significativa. Na tentativa de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno (por ação afirmativa ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos específicos aplicado no ano da conclusão do curso de graduação, controlando por características do aluno e do ambiente familiar, foram estimados modelos do tipo log-linear. Os resultados mostraram que nas IES privadas não se registram fortes hiatos de desempenho entre alunos beneficiários das ações afirmativas, a não ser em cursos com alto prestígio social, como engenharia e arquitetura. Nas IES públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior ao dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Nas IES federais, ter ingressado por ação afirmativa reduz, em média em 8,2% a nota na prova de conhecimentos específicos, comparada à dos concluintes que ingressaram sem intermédio das políticas de ação afirmativa, mantendo todas as outras variáveis constantes. Nos cursos de baixo prestígio social, o desempenho é 10,9% menor e entre os cursos de médio prestígio social, a queda no desempenho é de 13,7%. Esse resultado pode estar subestimado, uma vez que estamos considerando somente aqueles que ingressaram por ação afirmativa e conseguiram concluir o curso, ou seja, não estamos avaliando o desempenho dos que evadiram ou ainda não se formaram. Em suma, nossa análise sugere que as diversas políticas de ações afirmativas têm sido bem-sucedidas no objetivo de proporcionar maior diversidade nas universidades, isto é, uma maior presença de grupos desfavorecidos no ensino superior brasileiro. Com base na teoria de igualdade de oportunidade de John Roemer (1988), conforme delineado em Waltenberg (2007), interpretamos o hiato de desempenho entre concluintes beneficiados por ação afirmativa e não beneficiados como um preço relativamente modesto pago pela sociedade em prol da diversidade e da equalização das oportunidades.

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REfERêNCiAS CARVALHO, M. M. de. A educação superior no Brasil: o retorno privado e as restrições ao ingresso. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 5, n. 15, p. 82-109, jan./abr. 2011. CÉSAR, C. C.; SOARES, J. F. Desigualdades acadêmicas induzidas pelo contexto escolar. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 18, n. 1/2, p. 97-110, 2001. FERES JUNIOR, J. Aspectos normativos e legais das políticas de ação afirmativa. In: FERES JUNIOR, J. ; ZONINSEIN, J. (Org.). Ação afirmativa e universidade: projetos nacionais em perspectiva comparada. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 2006. FERREIRA, F. H. G.; GIGNOUX, J. The measurement of inequality of opportunity: theory and an application to Latin America. Review of Income and Wealth, Hoboken, v. 57, n. 4, p. 622-657, 2011. FLEURBAEY, M. Fairness, responsibility and welfare. Oxford: Oxford University Press, 2008. FRANCO, A. M. P.; MENEZES-FILHO, N. A. Os determinantes do aprendizado com dados de um painel de escolas no Saeb. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA DA ANPEC, 32., 2010. Anais... São Paulo: Anpec, 2011. GOMES, J. B. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. INEP. Resumo técnico do censo da educação superior de 2009. Brasília, 2010. MATTA, L. G. Sistema de cotas: uma perspectiva da análise a partir do caso da UENF. Vértices, Campos dos Goytacazes, v. 13, n. 3, p. 107-124, set./dez. 2010. MUNANGA, K. Políticas de ações afirmativas em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas. In: SILVÉRIO, V. R.; SILVA, P. B. da (Org.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: INEP, 2003.

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OLIVEN, A. C. Ações afirmativas, relações raciais e política de cotas nas universidades: uma comparação entre os EUA e o Brasil. Educação, Porto Alegre, ano 30, n. 1, p. 29-51, jan./abr. 2007. POLÍTICAS SOCIAIS: acompanhamento e análise. Brasília: Ipea, v. 15, mar. 2008. REIS, D. B. Acesso e permanência de negros no ensino superior: o caso da UFBA. In: LOPES, M. A.; BRAGA, M. L. de S. (Org.). Acesso e permanência da população negra no ensino superior. Brasília: Unesco: Mec/Secad, 2007. ROEMER, J. Equality of opportunity. [S.l.]: Harvard University Press, 1998. SANDEL, M. J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. SILVA, C. da. Ações afirmativas em educação: um debate para além das cotas. In: SILVA, C. da (Org.). Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras. 2. ed. São Paulo: Negro Edições, 2003. SOUZA, M. L. G de. Permanência de negros(as) na Universidade Federal do Paraná: um estudo entre 2004 e 2006. In: LOPES, M. A.; BRAGA, M. L. de S. (Org.). Acesso e permanência da população negra no ensino superior. Brasília: Unesco: Mec/Secad, 2007. VENTURA, N. Cotas raciais na educação superior. Conexão aluno, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <http://www.conexaoaluno.rj.gov.br/especial. asp?EditeCodigoDaPagina=2826>. Acesso em: setembro de 2012. WALTENBERG, F. D. Cotas nas universidades brasileiras: a contribuição das teorias de justiça distributiva ao debate. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 8-51, 2007.

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tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio CANDiDo, PAuLo EmÍLio E mÁRio PEDRoSA Francisco Alambert

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O ensaio a seguir busca estabelecer aproximações para uma história da crítica de arte e da cultura no Brasil diante dos temas “formação”, “crise”, “cultura nacional e internacional”, “ruptura” e “vanguarda”. Nessa perspectiva, serão analisadas as obras do crítico literário Antonio Candido, do crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes e do crítico de artes plásticas Mário Pedrosa. Em comum, a busca de uma especificidade da produção cultural no Brasil do século XX por meio de conceitos que instrumentalizassem uma visão histórica do legado colonial e de sua transformação como meio criativo e de conhecimento do país. Em confronto e, acredito, em tensa complementaridade, veremos a elaboração de três conceitos de análise crítica construídos diante da condição brasileira pelo três críticos (cada qual por sua vez também diante de uma tradição crítica que a bem da verdade eles reinventam): o princípio da formação (em Antonio Candido), do deslocamento e cópia (em Paulo Emílio) e do exercício experimental da liberdade (em Mário Pedrosa). O quanto esses conceitos nos ajudam ainda a entender o mundo contemporâneo e sua cultura, no que ele carrega de histórico e de contingente, é a questão que este ensaio pretende pôr em jogo. Palavras-chave: formação; deslocamento e cópia; experimentalismo; crítica The following essay seeks to establish a history of approaches to art criticism and culture in Brazil on the themes of “training”, “crisis”, “national and international culture”, “rupture” and “avant garde”. In this perspective, we will be analyzing works of literary critic Antonio Candido, the film critic Paulo Emilio Salles Gomes and art critic Mario Pedrosa. In common, the search for a specific cultural production in Brazil of the twentieth century through concepts that enable a historical view of the colonial legacy and its transformation as a creative tool and knowledge of the country. In confrontation and, I believe, in tense complementarity, we will see the development of three concepts built on critical analysis of the condition by three Brazilian critics: the principle of formation (Antonio Candido), displacement and copy (Paul Emilio) and the experimental exercise of freedom (in Mario Pedrosa). How much these concepts help us further understand the contemporary world and its culture, as far as the historical and contingent components that it carries, is the question this essay attempts to suggest. Keywords: formation; displacement and copy; experimentalism; criticism

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O ensaio tem que conseguir que a totalidade brilhe por um momento em um traço escolhido ou encontrado, sem que se afirme que ela esteja presente. Ele corrige o que há de casual e isolado de suas intuições à medida que, no seu próprio percurso ou em seu relacionamento de mosaico com outros ensaios, elas se multiplicam, conformam, limitam; não por uma abstração que delas retira os marcos diferenciais (ADORNO, in COHN, 1986, p. 180).

1 ANtoNio CANDiDo: foRmAÇÃo E HiStÓRiA Para se compreender o contexto das ideias de nossos três críticos é necessário visitar vários aspectos ligados à produção intelectual paulistana por volta da metade do século XX. Entre os anos 1940 e meados de 1950 formava-se em São Paulo um momento importante da história das consequências do movimento modernista. Se o ímpeto iconoclástico de 22 já há muito havia arrefecido, seus desdobramentos foram tremendamente criativos. Antes disso, porém, esses desdobramentos foram precedidos por um sentimento doloroso de derrota e crise: “Fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivam de uma ilusão vasta [...] faltou humanidade em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me enganaram.” Ou ainda mais trágico (e não menos lúcido): “Meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado” (ANDRADE, 1974, p. 252). Era assim que se sentia Mário de Andrade perto do final de sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo, às incertezas da Segunda Guerra Mundial, do futuro do nazifascismo e diante da desconfortável posição de “líder” do vitorioso movimento de modernização cultural e política que parecia chafurdar, impotente diante desse quadro de regressão. Dedo em riste, falando de outros tanto quanto de si mesmo, Mário de Andrade lamentava que com poucas exceções (nas quais ele mesmo não se enquadrava) ele e os modernistas vitoriosos tivessem sido “vítimas do nosso prazer da vida e da festança em que nos desvirilizamos”. Já pouco viris, os modernistas teriam virado as costas à revolta “contra a vida como está” em nome de estéreis discussões sobre “valores eternos”. Incapazes de ler de fato a história e a política, deixaram de lutar pelo “amilhoramento políticosocial do homem”.

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Talvez nunca um intelectual brasileiro tenha lutado tão violentamente contra si mesmo. Mas a lamentação era uma autocrítica e também uma ação programática. Pois uma “traição”, já cometida antes, era agora sorrateiramente indicada como uma estratégia de superação da derrota: “Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a beleza divina” (p. 254). Mas nem tudo estava morto, e os vivos ainda poderiam caminhar adiante. Como se sabe, nesse mesmo depoimento, Mário de Andrade sintetizou os três princípios vivos saídos da aventura modernista dos anos 1920: a) o direito permanente à pesquisa estética; b) a atualização da inteligência artística brasileira; c) a estabilização de uma consciência criadora nacional (p. 242). Esse foi o resultado positivo de um “individualismo que arriscou”, mas cuja continuidade agora, nas novas condições em que se clama por uma nova politização da inteligência (“Marchem com as multidões”), deve ser preferencialmente pensado em sentido “coletivo”. Eis o conselho, verdadeiro programa para os ventos democráticos que talvez viessem: para se manter o “direito à pesquisa estética” (que eu entendo como “o direito à cultura moderna”), para se prosseguir à “atualização da inteligência artística” local e para se estabilizar uma “consciência criadora nacional”, era preciso pensar a cultura e a arte para além do ímpeto estético (e “aristocrático”) do primeiro modernismo. E tudo isso com a política – e com a política para as “multidões”. Um peculiar chamado à passagem da ficção à prática, uma prática que seria entendida, por alguns, como uma nova prática intelectual. Quando Mário de Andrade proferiu seu célebre discurso de ruptura com seu passado, indicando um novo período de necessários ajustes para que o movimento de superação modernista tomasse novo fôlego, já se encontravam em evolução os estudos da geração de escritores especuladores do caráter nacional brasileiro (Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e o jovem Caio Prado Jr.), que marcaram os anos 1930 como as primeiras consequências ensaísticas do Movimento de 22. Uma nova geração de estudiosos e acadêmicos que o gênio desabusado de Oswald de Andrade não hesitou em apelidar de “chato boys”.

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Para o surgimento desse novo momento nos estudos sobre a cultura brasileira foi de crucial importância a fundação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), projeto acalentado por modernistas, modernizadores e descendentes progressistas de oligarcas. Sua principal consequência foi a formação de um certo radicalismo intelectual, ou mais especificamente, como disse Antonio Candido (1980, p. 103), um “modesto radicalismo que ficou sendo uma tradição e tem produzido efeitos positivos”. Sem entrar nos detalhes desse processo, lembremos apenas que é desse debate de superação de determinados pressupostos (ou (pré) conceitos) herdados dos anos heroicos do modernismo, das inquietações trazidas por algumas brilhantes generalizações historiográficas (que não deixam de ser devedoras daquele ímpeto revolucionário do primeiro modernismo) e das transformações trazidas pela implantação de um modelo europeu de universidade (com professores devidamente importados da matriz) que a geração de Antonio Candido e Paulo Emílio Salles Gomes se formou. Na história do pensamento brasileiro, esses intelectuais formaram (podendo-se acrescentar a eles os críticos Lourival Gomes Machado e Décio de Almeida Prado, o sociólogo Ruy Coelho e um mestre francês de todos eles, o filósofo Jean Maugüé1) o conjunto que ficou conhecido como “Grupo Clima”, em referência ao periódico de mesmo nome por eles editado. Os intelectuais ligados ao Clima, não apenas faziam parte da primeira geração uspiana (tendo basicamente estudado com professores europeus), mas, situados à esquerda e (cada um a seu modo) inspirados pelo marxismo (que entre nós até então só havia dado frutos promissores na obra isolada de Caio Prado Jr.) Sobre Maugüé e sua influência entre os novos, diz Candido: “Provém dele muito de nossa atitude intelectual e, portanto, uma parte da tonalidade de Clima. Para ele a filosofia interessava sobretudo como reflexão sobre o quotidiano, os sentimentos, a política, a arte, a literatura. O nosso grupo incorporou profundamente este ponto de vista...” (CANDIDO, 1980, p. 162). Reflexões importantes sobre o Grupo Clima e a presença formadora e pedagógica de Maugüé para o pensamento uspiano (especialmente filosófico) e para o modelo crítico a que nos referimos, podem ser vistas em Arantes (1994), especialmente no Capítulo 2, e também no ótimo estudo de Heloísa Pontes Destinos mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1999).

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e pelas ciências sociais mais progressistas, iam introduzindo a crítica cultural dialética – aquela crítica que busca explicar o funcionamento mesmo da sociedade em que as artes são produzidas e não apenas a esfera específica em que cada forma artística se encontra – entre nós. Tomado por influxos criativos vindos indistintamente do abalo de 1930, da modernização europeizante da metrópole paulistana, dos ventos socialistas, do debate crítico com os veteranos do Modernismo e com o aprendizado criterioso dos professores europeus na nova Universidade, esse “grupo-geração” acabou por fazer da crítica de cultura um espaço fundamental para o engajamento intelectual a partir da Universidade. Antonio Candido, em um dos seus mais interessantes escritos crítico-biográficos, definiu o poeta e crítico modernista Sérgio Milliet como “homem-ponte” entre a geração de 22 e aquela que ele mesmo representava. Mais do que isso, Milliet seria sua maior afinidade e o ponto inicial em que se baseou para definir seu próprio ideário crítico. Candido salientava as qualidades do tipo de ensaísmo que Milliet introduzira entre nós: sua capacidade de circundar problemas, evitando dogmatismos, aguçando a reflexão, engajando sua personalidade em uma forma crítica que tateia “com liberdade os fatos e as ideias por meio do pensamento ‘que se ensaia’” (CANDIDO, 1987, p. 131). Uma atitude que ensaiava ela mesma a possibilidade da crítica dialética que os anos posteriores viabilizariam entre nós2. Uma lição que os participantes de Clima seguirão, especialmente o próprio Antonio Candido. Na “Maria Antônia”, dentro do contexto intelectual uspiano, com as aulas e leituras de Candido, começa a se definir a possibilidade de se refletir sobre as mediações extraliterárias e sua continuidade artística. O autor da Formação da literatura brasileira se tornava o interlocutor nacional privilegiado para debater o problema teórico da relação dialética entre obra/história no contexto dependente ou “pós-colonial”. O momento era favorável e em tudo parecia contraposto ao contexto Paulo Arantes, em seu fundamental estudo sobre Antonio Candido e Roberto Schwarz (no qual me baseio amplamente), reconhece essas afinidades mas discorda da “honra” que o crítico oferta a seu antecessor, estranhamente desautorizando a homenagem (ARANTES, 1992, p. 11).

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em que Mário de Andrade clamou pelas mudanças dos que haviam mudado (quase) tudo. Eram anos de formação e não de desmanche, tempos de otimismo. O Brasil parecia, mesmo aos olhos dos desconfiados, ter se tornado mais inteligente por volta desses anos de redemocratização. A esquerda estava acertando passos e marcava posição em setores diversos da cultura e da ação política, do Cinema Novo à Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. O golpe militar ainda teria de esperar uns anos para dar o ar de sua terrível graça3. Roberto Schwarz costuma exaltar em Candido sua capacidade de visão “estereoscópica”, criando uma analogia com o procedimento semelhante utilizado por Walter Benjamin em seus estudos sobre Baudelaire. Nestes são privilegiadas as correspondências sociais entre a lírica e as figuras do submundo urbano ou os dramas do funcionamento do mercado (em personagens como o colecionador ou o putschista), percebendo aí não apenas similitude de origem mas sobretudo o fato de que tais figuras e formas literárias estão marcadas por formas sociais que se correspondem (não que se “espelhem”). Não se trata, entretanto, de reduzir uma dimensão a outra mas de entendê-las, em linguagem benjaminiana, dentro de uma constelação, que exige do ensaísta a capacidade de “sair” do texto para perceber e recolher as correspondências soltas e fragmentadas no tecido social (SCHWARZ, 1992, p. 33-34). A comparação não é gratuita nem aleatória, como veremos, e tem razão de ser. Antes de tudo porque, naqueles autores, forma social e forma literária se ligam na medida em que a realidade é ela mesma “forma”. Entender essa “formação” já é então o maior dos problemas enfrentados por nossa nova tradição crítica. Na virada da década de 1950 para 1960 o desenvolvimento do conceito de formação era central para o novo pensamento crítico. Em setores diversos, nos estudos de intelectuais como Caio Prado Jr. (Formação do Brasil contemporâneo), Celso Furtado (Formação econômica do Brasil) e o próprio Candido (Formação da literatura brasileira), o conceito anunciava uma radical mudança na maneira de conceber o país e a história. Para nossos fins, anotemos que, na esfera da cultura, O período, com seu otimismo e suas ilusões, foi analisado por Roberto Schwarz em um de seus mais notáveis ensaios, escrito e publicado originalmente em Paris durante seu exílio: “Cultura e Política, 1964-69” (1978).

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a ideia de formação baseava-se no princípio de que as formas culturais nacionais são, por um lado, fundadas sob uma herança colonial que se repõe a par com o progresso e com a modernização capitalista e, por outro, sob o desejo histórico dos brasileiros de ter uma cultura – com todas as contradições que esse princípio desejante possa provocar. A síntese precisa de Paulo Emílio, cujos trabalhos sobre cinema localizam-se no núcleo dessa tradição teórica, daria o tom da discussão: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro” (GOMES, 1980, p. 77). Um dilema “hamletiano” define a origem e os princípios do intelectual (o teórico ou o artista) do mundo da economia dependente: “Um certo sentimento íntimo de inadequação, esse o drama do intelectual brasileiro, situado entre duas realidades, condenado a oscilar entre dois níveis de cultura” (ARANTES, 1992, p. 16). A superação do “desconforto intelectual” procede (ou não) no correr de um trabalho de mão dupla, em que a trama civilizatória concorre no sentido da incorporação do meio acanhado para a norma culta metropolitana, do mesmo modo que assegura o arranjo e a adaptação dessa norma à realidade local. “Dialética do local e do cosmopolita”, “dupla fidelidade”, “incapacidade criativa em copiar” (como veremos adiante) são algumas das definições que Candido e Paulo Emílio usariam, em diferentes momentos, para figurar essa oscilação definidora da trama das ideias e do drama dos intelectuais no contexto periférico. Uma proposição dialética é a base do conceito de formação, descrevendo o processo em que as ideologias se moldam entre nós, como uma escultura se molda, adaptando-se, chocando-se e (por vezes) superando-se diante do novo contexto. As linhas evolutivas dessa formação, tão penosa quanto a melancólica definição de Paulo Emílio sugere, constituem os diversos processos formativos de nosso sistema de entendimento cultural, em que a dialética joga as cartas decisivas, “porque se pode falar em dialética onde há uma integração progressiva por meio de uma tensão renovada a cada etapa cumprida” (ARANTES, 1992, p. 17). A noção de formação dá a medida dessas integrações e ilumina o caminho das etapas cumpridas (ou não).

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Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que, notadamente a partir do processo da Independência, os intelectuais se dividiram, esquematicamente, entre os defensores da originalidade e do “gênio” nacional e os campeões da universalidade cosmopolita, que no caso significava uma defesa dos valores da civilização liberal. A definição “dialética do local e do cosmopolita”, que Candido formulou em mais de uma ocasião, era a chave para compreender esse processo de formação cultural: “A dialética do local e do universal dá o balanço desta oposição, situando os termos inimigos no interior de um mesmo movimento de afirmação da identidade nacional, em que eles se complementam harmoniosamente” (SCHWARZ, 1987, p. 169). É esse o caráter da descrição de Antonio Candido em Formação da literatura brasileira. A compreensão dialética da formação dá um passo à frente no ensaio talvez decisivo da maturidade de Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, publicado originalmente na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 8, um estudo sobre Memórias de um sargento de milícias (1852), de Manuel Antonio de Almeida. Por aqui podemos acompanhar como, em Antonio Candido, romance e sociedade se encontram por meio da análise criteriosa da forma entendida como condição prática mediadora. A forma, entretanto, não se define exclusivamente na esfera literária. A própria realidade histórica é também formada, na medida em que é compreendida como formação social objetiva definida no jogo das forças produtivas e não na esfera ideal das consciências individuais. O fundamental nas Memórias, segundo a análise de Candido, é que em seu entrecho formal vibra uma intuição, uma verdadeira figuração, do movimento da sociedade brasileira (a tensão constante entre ordem e desordem em uma sociedade de base escravista, mas ao mesmo tempo desejando se urbanizar e modernizar). Para o crítico, tal intuição define-se como uma espécie de redução estrutural do movimento histórico que o romance apanha in locu. Não propriamente na qualidade de “documento”, mas sim como uma formalização estética do movimento formativo da sociedade brasileira (ou de suas condições de existência: no caso, a dialética entre ordem e desordem, que o crítico percebe na organização formal do romance, tanto quanto na própria forma social do Brasil do século XIX).

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O princípio é dialético e nele podemos encontrar uma verdadeira afinidade com os pressupostos da assim chamada escola frankfurtiana (daí a comparação com os procedimentos de Benjamin não ser fortuita). A separação das esferas é legada pela história, mas não constitui meramente “ideologia” (no sentido de má consciência): é também real, na medida em que representa a própria estrutura do “processo real”. Também se formalizava uma proposição para a tarefa do novo tipo de crítico moderno: transcender a análise especializada (sem dela prescindir) visando a respeitar a relativa independência do objeto, colhendo os saberes dispersos e fraturados nas esferas das humanidades, na “cena contemporânea”. Uma análise que, dirá um crítico norte-americano, “pressupõe um movimento do intrínseco para o extrínseco na sua própria estrutura, do fato ou obra individual para alguma realidade socioeconômica mais ampla por detrás dele” (JAMESON, 1985, p. 12). Nada a ver, portanto, com as regras do universalismo estruturalista (e suas estruturas sem referência) ou com a ideia de que forma estética e situação social corram em vias diferentes ou paralelas. Como veremos adiante, esses princípios não seriam estranhos aos outros dois críticos que, entretanto, iriam desdobrar e indicar outros caminhos e possibilidades dentro dessa mesma trilha. 2 PAuLo EmÍLio: DESLoCAmENto E CÓPiA As ideias de Paulo Emílio foram decisivas na formação intelectual de sua geração. Marxista militante, exilado político, frequentador dos círculos intelectuais radicais franceses, fundador dos cursos de cinema da USP e da Universidade de Brasília (UNB), teórico dialético das vicissitudes da cinematografia nacional e seus impasses, o antigo redator de Clima tinha tudo para conquistar a atenção dos jovens intelectuais. Mais do que isso, ele lhes deu quase um plano de trabalho, bem como uma orientação política precisa, como se fora ele o responsável por repensar o modernismo depois da despedida de Mário de Andrade. Em 1943, o jornalista Mário Neme, provavelmente influenciado pela conferência de Mário de Andrade sobre a crise do Modernismo e as tarefas da nova geração, realizou um inquérito publicado nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, que depois seria reunido em livro

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intitulado Plataforma da nova geração. Nele, jovens críticos e escritores surgidos nos anos 1940 eram questionados sobre a herança recebida das gerações anteriores e sobre seus novos valores, modelos, insatisfações, bem como sobre seus princípios em estética, ciência e ideologia (além das relações disso tudo com a guerra mundial em pleno andamento)4. Sinal de tempos de mudança, percebida aliás por Sérgio Milliet, o “homem-ponte” entre a geração do primeiro Modernismo e aquela que então (ele anota em seu Diário crítico, em 4 de julho de 1943) estaria “às vésperas da eclosão de uma nova estética” e, acrescento, de um novo pensamento sobre a estética nas novas condições brasileiras5. Uma nova geração pronta para o engajamento e para unir pesquisa cultural e atuação social: “A geração de 22 falou francês e leu os poetas. A de 44 lê inglês e faz sociologia” (MILLIET, 1981, p. 109). Dentre os depoimentos da plataforma dos jovens intelectuais, o de Paulo Emílio se destacava pela admirável lucidez e pela capacidade de organizar as questões decisivas do período e do que viria adiante. Desde o início, ele deixa claro que fala do ponto de vista de um jovem intelectual paulistano de esquerda (da “elite intelectual” da cidade), mas que pertence a uma “nova geração” para a qual “não há unidade ideológica”. Entretanto, lhe parece certo que naquele momento a direita está derrotada e sobrevivendo em um clima de delírio, refugiando-se em elogios tresloucados a “militares argentinos” e se vendo “nos romances de Clarice Lispector”. Tudo sinal de um desvio da geração antecedente que, como Mário de Andrade disse em sua conferência, e Paulo Emílio repete em outros termos, perdeu o rumo da história: “A estrada do oportunismo é uma estrada real, e já foi trilhada por representantes ilustres da facção” (GOMES in CALIL MACHADO, 1986, p. 82). Paulo Emílio é cauteloso em relação ao futuro. O fascismo poderia retornar por conta da “confusão” da época, inclusive entre a esquerda. Ele vê que os católicos, perdendo suas referências, vão cada vez mais para a direita, ao passo que o catolicismo da geração de 45 lhe parece A esse inquérito seguiu-se outro, com os representantes da geração mais velha (fundamentalmente os modernistas e antimodernistas), que foi também publicado com o título tumular de Testamento de uma geração. 5 Sobre o mesmo assunto, mas sob outro ponto de vista, ver o ensaio de Silviano Santiago: “Sobre Plataformas e Testamentos” (2006). 4

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um sucedâneo da desilusão política e atinge desde a direita até os comunistas. O certo é que o liberalismo é o grande derrotado da época. Sobre isso, faz um prognóstico surpreendente que os anos recentes realizaram de maneira efetiva: “Não há na nova geração nenhum setor intelectual propriamente liberal, no velho sentido da palavra. Ligados às atividades intelectuais da Fiesp, alguns jovens economistas são talvez o núcleo para uma futura corrente neoliberalista” (idem, p. 85). Mas o que de fato lhe interessa é a confusão na esquerda, ou, mais precisamente, entre “jovens intelectuais de classes médias e da burguesia, que se exprimem ideologicamente pela esquerda”. Trata-se daqueles jovens intelectuais que têm “pouco menos ou pouco mais de 30 anos” e se politizaram por volta de 1935 (época da Intentona Comunista e antes do Estado Novo), influenciados pelo marxismo, pela psicanálise, pelo “pós-modernismo artístico” no contexto da extensão da “superficial” revolução de 1930. Para muitos deles, a “Rússia” se tornara uma “religião”. Isso era apenas o resultado do nível teórico “muito baixo” dos comunistas. Apenas “meia dúzia” teria um nível teórico avançado, porém alguns estavam “afastados”, enquanto que os outros se refugiavam na oposição de esquerda (creio que ele se refere a Caio Prado e Mário Pedrosa). Porém, essa nova esquerda capengava em dois aspectos básicos: “Ninguém nunca leu O capital. Do Brasil não se sabia nada.” Stalinistas e trotskistas, por motivos diversos, “amavam a Rússia”, mas ninguém “sabia pensar dialeticamente” (p. 85-87). Esse era o contexto em que a sua geração, a geração de Clima, surgiu e no qual atuaria. Depois da crise do Estado Novo e dos comunistas, inclusive de sua “religião”, a nova esquerda poderia surgir, gozando “a gratuidade e a disponibilidade” que lhe permitia “sua condição de classe”. Isso tudo propiciou um novo processo de crescimento e formação: “Adquiriam uma seriedade e eficácia de pensamento que os diferenciava logo em relação ao tom boêmio de Vinte-e-Dois” (p. 85). Na medida em que viam a Rússia dos “processos de Moscou” como um pesadelo, tomaram a França como paradigma. A geração se une na ideia de acalentar a originalidade e a alternativa do modelo soviético, mas também se interessa pela crítica desse modelo feita pelo trotskismo. Nesse processo, o marxismo pode ser revisitado sob um prisma especulativo, não dogmático (ou seja, sem a “religião” russa), e repensado diante de uma nova situação (o Brasil e sua história). Além de começar

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a ler Marx e os marxistas clássicos, a geração se aproxima da reinterpretação do marxismo feita via pensadores (sobretudo sociólogos) norte-americanos (por isso, como brincou Milliet, era preciso agora “ler inglês”). Abre-se uma nova “época de estudos”, para a qual a América (seja a sociedade norte-americana marcada pelas consequências da Depressão dos anos 1930, seja a sociedade periférica latinoamericana) e seus problemas específicos serão o foco central6. Nesse verdadeiro programa de revisão do pensamento modernista, e do próprio pensamento marxista diante de uma história que ele desconheceu (a história dos países periféricos e dependentes), o conceito chave para ser posto sob o crivo da dialética seria a velha questão, modernista aliás, do nacionalismo. E para explicar isso, Paulo Emílio saca um exemplo inusitado: o da “velha” Rússia. Antes da Revolução, ele diz, a Rússia semifeudal não conhecia o nacionalismo. O internacionalismo era importado do Ocidente. Mas no centro da Europa o clima era de revolução, sobretudo nos países derrotados na I Guerra Mundial. Paradoxalmente, com o fracasso da revolução na Europa, surge o nacionalismo russo. E aqui ele apresenta sua peculiar dialética da questão nacional: Sem saber nada dos países capitalistas mais adiantados, o termo de comparação para o presente era o passado da própria Rússia. Daí o moral altíssimo que se notava em certos setores russos, sobretudo na mocidade. O exemplo russo mostra como as ideias sobre nação e nacionalismo não foram abordadas com inteira correção pelo marxismo. Nação e nacionalismo não estão necessariamente ligados à direção burguesa da sociedade. Foi uma revolução operária de espírito internacionalista que permitiu o nascimento do nacionalismo russo. Agora que o nacionalismo existe é que é possível contradizê-lo e superá-lo pelo internacionalismo (p. 92).

Nesse ponto, ele está pronto para expressar a ideologia de sua geração: o nacionalismo precisa ser construído para ser superado não pelo Paulo Emílio diz que nasceu aí uma abertura para se pensar a América Latina. Ele cita as ideias de Raul Victor Haya de la Torre, pensador peruano que fundou o aprismo, seu interesse pelo México na época de Cárdenas e seu desejo de recuperar o caráter inicial da revolução zapatista.

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simples internacionalismo, mas por um “pan-nacionalismo” (p. 93). Depois de especular sobre a possibilidade de surgimento dessa peculiar dialética entre nacionalismo e internacionalismo em vários países, sobretudo naqueles que foram derrotados na I Guerra e também na França, termina seu depoimento-plataforma pedindo abertura para esse debate. Clama para que os novos intelectuais deixem a “torre de marfim” e assumam as “questões de cultura” como sua responsabilidade. Sua tarefa maior deveria ser “participar do desaparecimento de um Brasil formal e do nascimento de uma nação” (p. 95). Saltemos algumas décadas e vejamos como Paulo Emílio, já então o mais importante pensador do cinema no Brasil, aplicou e desenvolveu muitas dessas ideias em sua prática crítica. Em seu ensaio já clássico “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, Paulo Emílio consagrou, para certa tradição crítica, os princípios de análise que não apenas estruturavam uma história do cinema brasileiro (e suas “mortes” e “ressurreições”), a partir de seu contexto periférico, dependente e “subdesenvolvido”, culminando no auge (e na crise) do Cinema Novo mas, ao mesmo tempo, compilou as questões decisivas sobre a discussão promovida desde a teoria da dependência sobre os princípios da crítica histórica e materialista nas condições brasileiras. O tal princípio era resumido assim: “Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado” (GOMES, 1980, p. 85). Porém, e nisso reside o mais importante, nesse “estado” as coisas não funcionavam sempre da mesma maneira. Com impressionante fôlego sintético, o crítico passeia por diversos cinemas, e nações, “subdesenvolvidos” (em uma palavra: dependentes não apenas economicamente do centro capitalista hegemônico, mas sobretudo dependentes de uma dialética constante entre “ocupado”, o local, e “ocupante”, a força externa ou cosmopolita e também a classe dominante local que a representa) mostrando sobretudo suas diferenças. No caso do cinema indiano, ele nota que mesmo tendo sido formada uma indústria francamente popular, seu resultado foi fazer com que o filme indiano permanecesse fiel às “ideias, imagens e estilo já fabricados pelos ocupantes para consumo dos ocupados” (idem). No caso do Japão ocorreria o contrário: mesmo com a entrada massiva do cinema estrangeiro, sobretudo norte-americano, desde o início do século XX e principalmente a partir do pós-guerra, as imagens do ocupante teriam

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sido “devoradas” pela cultura local, permitindo inclusive que o cinema japonês se fizesse com seus próprios capitais. A questão brasileira era distinta. Aqui, nem a cópia (ou imitação) prevaleceu sempre, nem a “devoração” (antropofágica?) vingou efetivamente. Como já citado, estávamos em uma espécie de entre-lugar, presos àquela “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Nossa síntese era precária, mas existia, mesmo que sob o signo do paradoxo. Por exemplo, as imagens criadas pelo ocupante moderno, os Estados Unidos e sua indústria das imagens para ocupação, curiosamente viravam “coisa nossa”: não é que tenhamos nacionalizado o espetáculo importado como os japoneses o fizeram, mas acontece que a impregnação do filme americano foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva de ocupantes e ocupados, excluídos apenas os últimos estratos da pirâmide social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que nada nos é estrangeiro pois tudo o é (p. 79).

A partir da década de 1940 – justamente a época em que surge a geração crítica que estamos comentando, representada aqui por Antonio Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa – o sucesso das chanchadas (os filmes de “baixa cultura”, voltados à “plebe”) cativa o “ocupado” antepondo-se ao gosto do “ocupante” (tanto externo, o “imperialismo”, quanto interno, a “classe dominante” europeizada ou americanizada). Uma identificação cultural de outra ordem passa a ser uma realidade e uma potencialidade criativa: a identificação provocada pelo cinema americano modelava formas superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante (p. 80).

Como na canção de Noel Rosa de 1933, Não tem tradução (“O cinema falado/ é o grande culpado/ da transformação”), os modos da plebe se antepõem aos modos “americanos” impostos mas, sem negá-los propriamente, os coloca em situação de rearranjo.

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O sucesso comercial da chanchada, ou seja, da “avacalhação” programática da cultura do ocupante e sua tradução nos termos da cultura (ou da falta dela) do ocupado foi, e aqui vai mais um paradoxo, o estímulo para o surgimento de um projeto cinematográfico industrial de um ponto de vista exclusivo do ocupante: o projeto da Companhia Vera Cruz que, como Paulo Emílio explica detidamente, faliu rapidamente. Seu fracasso derivou de dois aspectos. O primeiro seria a incapacidade da cópia do sistema industrial. A Vera Cruz queria recriar uma imagem calcada na cultura do ocupante, mas foi tragada pela estrutura por ele criada (no caso, o domínio do sistema de distribuição dos filmes). Por outro lado, o fracasso tinha um motivo “estético” e derivaria também da inutilidade da cópia. Nem os ocupantes locais (os ricos, devidamente europeizados e americanizados) nem os ocupados (a plebe) se identificavam com aquelas tentativas, pautadas no bom-gosto e na imitação dos filmes internacionais. Preferindo o original à cópia, nesse sentido percebida como um rebaixamento do original, eles lhe viravam as costas. Como se sabe, a resolução criativa desse estado, em um nível experimental e engajado, veio pela formação de uma autêntica “vanguarda” cinematográfica brasileira: o Cinema Novo. Sua ética e sua estética rompiam o tradicional jogo entre ocupado e ocupante pela elaboração de uma forma nova, capaz de refletir e criar “uma imagem visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo brasileiro” justamente ao se autonomizar e se “dessolidarizar de sua origem ocupante” para enfim criar, em forma e conteúdo, uma representação criativa “dos interesses do ocupado” (p. 83-84). Como se sabe também, o golpe de 64 colocaria essa imagem em crise, inviabilizando sua expansão e efetivação. Talvez por isso, e é ainda Paulo Emílio quem diz, a vanguarda cinemanovista tenha se fechado em si, experimentando uma forma única que, entretanto, não foi capaz de se radicar como a imagem do ocupado para si mesmo. Ainda assim, não deixa de ser significativo o sucesso internacional, com consequências admiráveis e influentes, do Cinema Novo na história das vanguardas cinematográficas do resto do mundo. Também é bastante sintomático que tenha sido Mário Pedrosa, segundo o depoimento de Glauber Rocha, um dos primeiros a reconhecer a inovação da vanguarda cinemanovista, e o responsável por lançá-la definitivamente

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como um marco da arte contemporânea justamente na única bienal que o crítico organizou, a VI Bienal de 1961 (ROCHA, 2003, p. 130)7. O fracasso da forma copiada e seu destino medíocre, ideia desenvolvida no ensaio dos anos 1970, já havia sido enunciada em um ensaio escrito uma década antes, “Uma situação colonial?”, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, em 19 de novembro de 1960 e depois em Gomes (1981). Nesse primeiro texto, a dialética entre “colonizador e colonizado” (substituída pelo conceito mais complexo e sutil no ensaio dos anos 1970 por “ocupado e ocupante”) teria como resultado a “mediocridade”: “O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o cinema é em nosso país a mediocridade” (p. 286). Mas então, o tom negativo do termo provocaria uma viravolta surpreendente, quase que um programa estético no qual a adversidade (penso aqui também em Hélio Oiticica: “Da adversidade vivemos”) abre caminho para a inovação, tendo por causa “nossa incompetência criativa em copiar”. Um certo primarismo, calcado na ilusão de que em “situação colonial” ou periférica se pode copiar, mimetizar completamente a fonte ideal, é a base da “incompetência”. Esta, entretanto, na medida em que se realiza (e não poderia ser de outro modo), pode ter seu resultado invertido. A chave da ideia está na noção de criatividade. Uma vez que somos incapazes de copiar (ainda que o desejemos), se soubermos ser criativos diante da impossibilidade de efetivar plenamente a fantasia, de fato somos capazes de criar algo novo, e, nesse sentido, “original”. Nossa originalidade, nosso caráter de inovação e vanguardismo, só pode residir em uma falha sistemática, em uma traição bem pensada das fontes das quais nos alimentamos. Creio que aqui, a metáfora oswaldiana da antropofagia, do “primitivo” que faz a revolução não por expulsar o poderoso colonizador, mas por degluti-lo e regurgitá-lo, ganha um sentido conceitual efetivo e dialético. Resumindo: em nossos autores, Antonio Candido e Paulo Emílio, romance, cinema e sociedade se informam por meio da análise criteriosa da forma entendida como condição prática mediadora diante de processos históricos concretos (a dialética entre ordem e desordem dentro do mundo criado pela escravidão e o favor, no caso da litera7

Para uma análise geral da VI Bienal, ver Alambert in Abdala Jr. e Cara (2006).

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tura do século XIX, ou da condição subdesenvolvida do cinema dentro da dialética entre ocupado e ocupante, entre uma modernização sempre dependente e abortada, e em suas consequências medíocres e simultaneamente criativas, segundo Paulo Emílio). A forma artística, portanto, define-se a partir da realidade histórica (a brasileira, entendida não como “origem” e sim como condição histórica particular, mas ainda assim parte de uma condição universal ou internacional), que é também “forma”, na medida em que é compreendida como formação social objetiva, definida no jogo das forças produtivas, do movimento da sociedade global, e não na esfera ideal das consciências individuais. Estamos pois, e uma vez mais, diante de uma noção de forma oposta às regras do formalismo estruturalista, uma noção de forma e de formação na qual o caráter social, o sinal social, é o elemento estruturante. Eis a lição que nos resta dessa tradição de críticos-pensadores mesmo depois que as condições históricas específicas em que foram elaboradas, o otimismo desenvolvimentista e a consequente formação de uma cultura nacional em processo de superação de suas contradições originais, desapareceu do horizonte contemporâneo. 3 mÁRio PEDRoSA: o ExERCÍCio ExPERimENtAL DA LibERDADE (Do iNÍCio Ao fim) Até aqui, vimos uma história “paulista” da formação. Mas de onde vinha Mário Pedrosa? No seu Rio de Janeiro adotivo, essa tradição sequer estava “formada”. A partir daqui, temos que passar a pensar uma relação possível entre pressupostos da tradição paulista e uma outra, que à época nem tradição era: a crítica de arte moderna entre nós, que se formaria a partir também de Sérgio Milliet e chegaria a um ponto avançado e surpreendente justamente com Mário Pedrosa. Creio que tanto a identidade quanto a “passagem” de um crítico ao outro foram sentidas pelo próprio Milliet. Em 1949, ele anotou em seu Diário Crítico um encontro com Mário Pedrosa em Paris. Dizia o seguinte: Mário Pedrosa, que encontro chegando do Brasil e já instalado em St. Germain, afirma que aquele velhinho à frente de um copo de vinho no café da esquina, ali se acha há dez anos. Viu-o em 1937, em 1946

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igualmente e o torna a ver agora. Pela praça passaram os tanques alemães, diante da igreja um obus caiu. Houve frio e fome e metralhadoras varreram as cercanias, mas o homem ali continua naturalmente, sem nenhuma intenção de heroísmo. Só porque acredita na vida. E há vida nesse lugar, nessa praça, nessa cidade. Não compreende sequer que possa existir outra coisa, não pensa em emigrar, em bater à porta da aventura, em correr atrás da estrela matutina. Por entre suas pálpebras enrugadas brilha uma nesga azul de admirável serenidade” (MILLIET, 1881, p. 369).

Como se vê, Milliet tomou o olhar de Pedrosa e, junto, parte de sua sensibilidade também. Na verdade, faz sua a observação do outro. Em comum, vemos uma atenção para a história vista nas ruas. Histórias de pessoas “comuns” diante da História incomum e bárbara do século que ainda nem entrara em sua metade. Mas seria Mário Pedrosa quem desdobraria esse olhar arguto e generoso para o futuro. Anos depois, no “Depoimento sobre o MAM”, originalmente publicado em O Estado de S. Paulo de 24/3/1963, homenageando Milliet, já falando no passado, Pedrosa diria sobre seu contemporâneo: Sérgio Milliet, o verdadeiro fundador da crítica de artes plásticas no Brasil, o primeiro, entre seus pares, a introduzir uma crítica efetivamente revolucionária nos processos de análise, na renovação terminológica, no esforço da apreensão objetiva dos valores [...] (PEDROSA, 1995, p. 300).

Tudo isso é rigorosamente verdadeiro. Mas Mário Pedrosa daria um sentido ainda mais radical à essa fortuna crítica do projeto moderno, em arte e em política. A trajetória das ideias estéticas de Mário Pedrosa – do realismo social no início dos anos 1930, passando pela defesa do abstracionismo e da arte contemporânea, até a pioneira detecção do pós-moderno (diante do qual expressará dúvidas e reparos hoje atualíssimos) – é indissociável de sua trajetória política8. Pedrosa inaugura no Brasil, sucessivamente, a militância política trotskista e a crítica de arte moderna. Entre as idas e Sobre a militância política de Pedrosa ver Marques Neto (1993); Loureiro, (1984).

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vindas do militante, surgiu o crítico. Entre os exílios surgiu o agitador das artes. No caso dele, como no de Paulo Emílio, o militante se fez crítico e o crítico se fez agitador cultural. A radicalidade de uma postura é emprestada à outra, resultando uma personalidade e uma atuação original na história da crítica de arte latino-americana (e não apenas nela). Mário Pedrosa e Paulo Emílio, aliás, têm trajetórias significativamente parecidas. Ambos nasceram em famílias ricas (Pedrosa no decadente mundo dos engenhos nordestinos; Paulo Emílio no ascendente mundo urbano e industrial paulistano), foram comunistas desde jovens (presos, exilados etc.), mas se politizaram mais modernamente no exterior, onde começaram a carreira de críticos (Pedrosa nos EUA, depois de namoros literários na São Paulo do final dos anos 1920; Paulo Emílio na França) com análises de ícones cosmopolitas: Käthe Kolwittz e Alexander Calder para Mário Pedrosa, Jean Vigo para Paulo Emílio. A rigor, o problema brasileiro lhes chega depois dessa experiência cosmopolita, o que nunca ocorreu com Antonio Candido. Mário Pedrosa militou diretamente no trotskismo internacional até os anos 1940 e depois continuou ligado à esquerda independente por toda a vida. Paulo Emílio namorou o trotskismo, como vimos, mas foi mais independente. Ambos se encontraram quando da fundação do Partido Socialista, também nos anos 1940, e em seu projeto de construir uma versão brasileira do socialismo (igualmente afastada do stalinismo e da social-democracia europeia). E aqui, se aproximam de Antonio Candido, um dos mentores intelectuais dessa proposta (que depois seria reativada quando da fundação do PT, partido que ambos, Pedrosa e Candido, cofundariam). Mas as diferenças são tão interessantes quanto as proximidades. Mário Pedrosa foi um militante da esquerda revolucionária que se fez crítico de arte por pensar o lugar da revolução nas condições que o século XX foi criando em suas crises sucessivas. Foi internacionalista, partindo do trotskismo, pensando o Brasil de dentro para fora (e de fora para dentro), continuando o movimento do ponto em que estagnava o nacionalismo do primeiro modernismo brasileiro. O paradoxal em sua trajetória é que ele também foi “desfazendo” a crítica (de seus antecessores, de seus contemporâneos e, no final, a dele mesmo) e a crença no papel revolucionário da arte para retomar, no final da vida, a militância política revolucionária do princípio (inclusive pelo princípio

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da crença no papel transformador da arte “desalienante”, aquela que se opunha à “consciência dilacerada” de nossa época, ideia central em sua crítica). Como explicou Otília Arantes, “sem nunca deixar a militância política, jamais dissociará revolução mundial e arte de vanguarda” (ARANTES, 1991; 1995). O exercício crítico de Mário Pedrosa desenhou de maneira transparente a utopia da arte moderna, seus impasses e suas perspectivas em seu momento mais sólido. Do mesmo modo, sua atividade crítica é um exercício constante de redefinições e proposições. De fato, ao longo de sua vida, Pedrosa propôs várias formas de disciplina crítica, de compreensão e pedagogia da arte revolucionária (desde a proposição da arte proletária quando do seu primeiro ensaio dos anos 1930 sobre Käthe Kolwittz, originalmente uma conferência apresentada no Clube dos Artistas Modernos, o CAM de Flávio de Carvalho, passando pela abstração construtiva e pelo racionalismo arquitetônico), até repensá-la no sentido de definir uma particular noção de “pós-moderno” – que o encaminhou para pensar tanto uma arte “ambiental” quanto uma arte de “retaguarda”, para manter vivo e possível um ideal de arte de “vanguarda” revolucionária. Ao lado da tarefa crítica e pedagógica, foi também um articulador de estruturas partidárias revolucionárias e de estruturas institucionais no campo das artes, no “auge” de sua militância artística. Para Mário Pedrosa (e com Mário Pedrosa) não se pensa arte sem política revolucionária – e vice-versa – ainda que a arte para ele deva ser, por princípio, um terreno autônomo (e aqui surge uma grande novidade em relação à elaboração estética do grupo uspiano). Sua definição de arte mais recorrente ficou célebre (e hoje infinitamente repetida, ao ponto de descaracterizar-se quase completamente): arte emancipadora (e não qualquer forma ou exercício artístico) significa o experimental da liberdade. Justamente por ser assim, a arte moderna (ou suas vertentes construtivas e críticas) foi até certo momento o melhor laboratório da experiência possível de uma utópica situação social emancipada. “Exercício” porque a arte é antes de tudo um fazer atento sobre as coisas; “experimental” porque o exercício artístico, ao organizar o mundo que a sociedade de classes faz confundir e alienar diante do trabalho mecânico e repetitivo, permite aos indivíduos (artistas ou “fruidores”) uma relação mais aberta e livre com a matéria,

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reinventando o mundo para não perdê-lo; “liberdade” pois é justamente essa a utopia que esse fazer promete e configura. Desse modo, fica claro que para Pedrosa o potencial emancipatório da obra de arte não deriva de qualquer “atitude” ou “intenção” declarada, mas sim por exercitar a possibilidade de um fazer diferente que se consubstancia na imagem libertária de um fazer livremente. Um fazer que pode deslocar a reificação dos sujeitos e a subjetividade alienada, fazendo com que esses sujeitos renovados tomem para si seu “destino”. Mas fazer “livremente”, para a liberdade, não significa fazer qualquer coisa, porque fazer qualquer coisa é fazer exatamente aquilo que o mundo reificado ensina a fazer. Por isso nem toda forma de arte “vale” como exercício de liberdade. Daí vem a certeza do autor de que o crítico é aquele que expõe e discute critérios que não possam ser apropriados pela linearidade alienada da cultura. Aqui, creio que Pedrosa se aproxima de um princípio de Walter Benjamin, desenvolvido em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, segundo o qual a tarefa do teórico da arte é criar conceitos que não possam ser “de modo algum apropriáveis pelo fascismo” (1986, p. 166)9. O crítico não é, portanto, nem o organizador do gosto burguês ou agente do “mercado” (o que essa figura de fato foi em sua origem10) nem uma espécie de pedagogo ou juiz que decide caminhos. Ele é politicamente criterioso (tendo o “exercício experimental da liberdade” como horizonte): ao mesmo tempo que antecipa ações e significados, discute o rumo dos movimentos. A concepção geral da arte em Mário Pedrosa partia de uma “sábia dosagem de improvisação e erudição” (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 12), duas coisas que o diferenciam da geração uspiana (que, dentro de uma tradição universitária, jamais ligaria uma coisa à outra). De fato, à formação marxista básica e clássica ele foi adicionando um contato cotidiano com a produção plástica de sua época, ao mesmo tempo em que se apropriava e confrontava com desenvoltura autores vindos da teoria da arte (Riegl, Hildebrand, Worringer, Venturi), da filosofia (Hegel, Nietzsche, Husserl), da psicanálise (Freud, Charcot) ou os teóricos da Gestalt, além de alguns críticos profissionais seus con9 10

Pedrosa foi certamente um dos primeiros leitores de Benjamin no Brasil. Sobre o tema, ver Adorno (1986).

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temporâneos (Herbert Read, Romero Brest, Greenberg, entre muitos outros). Ao lado deles aparecem escritores como Baudelaire (talvez sua principal “inspiração”), Proust, Apollinaire ou os poetas e ensaístas do modernismo brasileiro, especialmente Mário de Andrade (e neste ponto ele se aproxima de seus colegas do Grupo Clima). Como para Antonio Candido e Paulo Emílio, Mário de Andrade é o vértice de um processo. Mas Mário Pedrosa acerta as pontas com o mestre de maneira particular. Em 1952, dez anos depois de Mário de Andrade fazer o seu necrológio do primeiro Modernismo e de si mesmo, Mário Pedrosa foi convidado a fazer também uma conferência para lembrar a Semana de Arte Moderna. O contexto era sumamente distinto, como se o Brasil fosse outro país (e de certa maneira era). No início do surto desenvolvimentista, em pleno gozo da redemocratização, após a fundação dos grandes museus de arte moderna (o MASP, o MAM de São Paulo e do Rio) e da I Bienal de Arte de São Paulo, o futuro parecia aberto. O Mário vivo propõe um diálogo com o Mário morto e docemente reinventa o futuro e o passado modernos. Pessimismo lá, otimismo aqui. Concordando com Mário de Andrade quanto ao “espírito” em transe nos anos 1920, Pedrosa localiza esse “espírito”: fala da experiência psíquica e “mágica” do contato com a pintura moderna propiciado pelas experiências de Anita ou Brecheret: para ele, foi a pintura que antecipou a revolução na literatura (e não o contrário, como nos acostumamos a pensar). Eis a tese: “A iniciação modernista deles começou a se fazer não através da literatura e da poesia mas através das artes especificamente não verbais da pintura e da escultura” (PEDROSA, 1998, p. 127). A representação plástica tradicional estaria mais arraigada na cultura conservadora do que a verbal (por isso ele destaca a história de Mário de Andrade sobre o escândalo causado em sua própria família quando ele apareceu com a escultura representando a cabeça de Cristo, feita por Brecheret). Porém, a linguagem plástica seria mais universal, daí ser mais aberta e própria aos problemas da criação e da expressão. Por isso o modernismo de 1922 não se restringiu a “uma escola literária confinada em um pequeno grupo isolado, como os simbolistas e pós-simbolistas do Rio”. A universalidade da arte propiciou inclusive que o melhor do nacionalismo modernista não ficasse preso às armadilhas do nacionalismo de “formas mais superficiais e estreitas”, sobretudo aquele em sua

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forma “mais imbecil – a forma política” (p. 139). Pedrosa cita como o melhor exemplo do “bom” nacionalismo (quer dizer, de uma preocupação crítica com o local, com sua capacidade heurística genuína) o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, influência decisiva no pensamento nacional crítico de Antonio Candido e Paulo Emílio. Para Mário Pedrosa, os pensadores tocados pelas artes visuais foram os mais abertos. Os “imbecis” nacionalistas eram justamente aqueles que não tinham, e refutavam, a sensibilidade plástica. Os modernistas brasileiros cumpriram rigorosamente o caminho emancipador da arte moderna, que para Pedrosa foi “uma reação ao ideal naturalista tradicional na cultura do ocidente e a proclamação da autonomia do fenômeno artístico”, o caminho do “espírito” contra a servidão “da religião, do Estado, das Igrejas, do rei, dos príncipes, dos nobres e finalmente dos ricos”. Ao caminhar para a abstração, a arte se dirige ao Mediterrâneo e, depois, graças ao imperialismo, às culturas “primitivas” (p. 139-141). Essa foi a verdadeira função do bom nacionalismo, cujo grande representante foi Mário de Andrade, que teria nos apresentado um “Brasil direto – natural, anti-ideológico”. Dessa lição saem Tarsila, Guignard, Pancetti ou Heitor dos Prazeres. Com Mário, mas também com o Pau-Brasil de Oswald de Andrade, abriu-se a porta para o primitivismo, a conquista anticultural do modernismo europeu, agora devidamente adaptada às condições locais: “O primitivismo foi a porta pela qual os modernistas penetraram no Brasil e a sua carta de naturalização brasileira” (p. 144)11. Assim, “pela primeira vez, jovens pintores brasileiros saem do Brasil por conta própria e vão a Paris tomar contato direto com a pintura viva, e não com o academismo morto”. Só depois, diz ele pensando no contexto varguista, é que o modernismo se divide entre esse primitivismo vitalista e universalista e o nacionalismo “de mera expressividade anedótica e pitoresca que degenera em modismos pre11 Notemos de passagem que na Europa o primitivismo funcionou de maneira oposta. Em 1911, Franz Marc, profundamente tocado pelos seus estudos de escultura africana e peruana, escreveu: “Devemos ser corajosos e virar as costas a quase tudo o que até agora consideramos precioso e indispensável do nosso pensamento, se quisermos escapar do esgotamento e do nosso mau gosto europeu” (COLDWATER, 1967, p. 127).

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conceituosos para terminar em estilo de tropos oratórios” (1998, p. 145-148). Então, assumindo de vez o tom engajado da nova época, sob os ventos favoráveis do desenvolvimentismo e do novo tipo de engajamento institucional que o próprio Pedrosa advogará para esse momento, conclui: Pela primeira vez nesse Brasil pachorrento, inerte que no entanto começava a esboroar-se sob a desintegração da velha economia feudal e cafeeira, um punhado de jovens se levanta contra a modorra e clama que não somente nos domínios interessados da política os homens têm motivos de lutar, de brigar. A arte é cada vez mais, em nossos dias, uma atividade digna de por ela os homens, os melhores dentre eles, lutarem e se sacrificarem (p. 152)12.

Em resumo, “por paradoxal que possa parecer, foi pela consciência do seu ‘internacionalismo modernista’, na expressão de Mário (de Andrade), que o movimento chegou – outra expressão de Mário – ao seu ‘nacionalismo embrabecido’” (1998, p. 139). Aqui Pedrosa organizava as coisas ao seu modo (um modo parecido com aquele usado por Paulo Emílio para interpretar o nacionalismo russo). Nenhum nacionalismo é combativo (“embrabecido”) se não souber partir antes de um “internacionalismo” moderno. Ora, foi esse o caminho do nosso crítico, tanto quanto foi de sua geração, como vimos antes com Antonio Candido e Paulo Emílio. Seria também a partir de uma interpretação peculiar, e muito radical, desse “internacionalismo modernista” e de sua consequência como forma de agir dentro da tradição artística e política do país que Mário Pedrosa encontraria seu caminho particular. Sua atividade crítica partiria daí para compreender a História da Arte em um grande processo no qual, pelo menos desde o século XIX, a Cerca de vinte anos depois, em um de seus mais excepcionais textos, “A Bienal de cá para lá”, Pedrosa mudará sensivelmente essa abordagem cinquentista dos feitos da Semana. Ali, em meio aos horrores do Golpe militar e prestes a enfrentar mais um exílio (e mais uma derrota), ele explicará a semana a partir da imagem de um grupo aristocratizante, que ignorou a arte e a cultura populares (ele pensa nos artistas proletários que criaram, nos anos 1930, o Grupo Santa Helena) (PEDROSA, 1995). 12

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arte se encaminharia para a abstração (seu caminho para a liberdade), privilegiando os momentos em que se apresenta o desmantelamento progressivo do naturalismo, do “acabado dos detalhes”, da “ilusão da matéria e do absoluto da cor dos objetos”. Uma crítica, enfim, que se pautava por “uma vocação nitidamente antinaturalista, portanto tectônica e abstrata” (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 13). Em um de seus mais ambiciosos ensaios, “Panorama da pintura moderna”, Pedrosa concluía, em uma criteriosa análise imanente da história da arte desde o Renascimento, que o projeto moderno se realizaria com a arte abstrata: “Um programa de preparação indireta e gigantesca para remodelar, através da visão em movimento, os modos de percepção e de sentir, e para conduzir a novas maneiras de viver.” Com sua liberação das estruturas da representação, no modernismo o tempo deixa de ser a questão decisiva: “O ‘x’ da questão agora é o espaço” (PEDROSA, 2000, p. 161-164). Para o crítico, Mondrian era “o jacobino da revolução modernista”, sua “depuração final”. Ou quase. Isso porque um artista como Max Bill, que apresentou na I Bienal uma escultura que causou entre os defensores do abstracionismo no Brasil o mesmo furor que Guernica trouxe aos expressionistas neofigurativos quando de sua aparição na II Bienal, em sua Unidade tripartida, mostrava uma nova dimensão da abstração capaz de conciliar “a dinâmica e a estática, numa noção de espaço já inseparável do tempo” (p. 173). Nesse ponto, poderíamos aproximar Pedrosa de um outro grande crítico, seu contemporâneo (e o mais importante da época), Clement Greenberg, ao qual foi bastante ligado por vínculos diversos, como a militância trotskista e a formação crítica criada dentro da esquerda norte-americana. Como se sabe, Greenberg também pautou sua crítica por um prisma “abstracionista”, centrado no conceito de planaridade que justamente se realizaria na arte abstrata norte-americana. Em um de seus ensaios mais discutidos (e discutíveis), “Vanguarda e Kitsch”, publicado originalmente em 1939, Greenberg defendeu a arte de vanguarda como uma resistência ao rebaixamento da “cultura” promovida pela lógica decadente da cultura burguesa. Nesse ensaio, ele segue uma explicação histórica aparentemente parecida com a de Pedrosa: “todas as verdades envolvidas pela religião, autoridade, tradição, estilo, são postas em questão, e o escritor ou artista não pode mais prever as respostas do seu público aos símbolos e referências com os quais

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ele trabalha”, diz, provavelmente parodiando o Manifesto Comunista. Logo depois, se torna um pouco mais explícito, referindo-se a um novo tipo de crítica, a “crítica histórica”, que apresentou a “nossa ordem social burguesa não como uma condição ‘natural’, nem eterna, ad vida, mas simplesmente como o último termo em uma sucessão de ordens sociais”. A vanguarda nasceria daí e coincidiria com o mais “arrojado” tipo de “pensamento científico revolucionário na Europa” (GREENBERG, 1996, p. 23-24). A vanguarda política revolucionária deu a “coragem” para que o modernismo agredisse a cultura burguesa. Greenberg agradece. Agradece, mas deixa de lado. Uma vez constituída, a vanguarda abandona o barco da revolução política tanto quanto o da cultura burguesa. Sua função passaria a ser “manter a cultura em movimento”. Surge daí a “arte pela arte”, a “poesia pura”, e o “conteúdo torna-se algo a ser evitado como uma praga”. Essa é a busca do absoluto que leva à formação da arte abstrata. Um “cordão umbilical de ouro” liga vanguarda à classe dominante. Na medida em que esta estaria em via de desaparecer, ou “encolhendo”, a vanguarda também estaria em perigo. E ela precisa ser defendida, na medida em que é o último bastião da elite esclarecida que defende a “Cultura”. Como se pode notar sem muito esforço, as diferenças com Pedrosa são enormes e significativas. Em termos histórico-formais, para o crítico brasileiro a questão da bidimensionalidade modernista nunca chegou a ser a mais decisiva, ao mesmo tempo em que a presença de uma concepção de totalidade social na produção (marca marxista da qual o crítico brasileiro jamais se distanciou) não lhe permitia analisar a história da arte de um ângulo predominantemente “interno” ou “endógeno”, como o crítico norte-americano. Essas posições são suficientes para distanciar significativamente Pedrosa das posições “formalistas” (de que foi tanto e tão injustamente acusado) ou da euforia diante dos arroubos subjetivistas das correntes expressionistas abstratas (que, como se sabe, Greenberg tanto defendeu). Mas não é só isso. No caso de Greenberg, como no de Pedrosa, a origem trotskista de ambos (sobretudo no que tange à discussão da independência da arte diante do contexto específico do engajamento revolucionário) encaminhou duas leituras próximas, porém com resultados completamente diferentes.

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Lembrando seus tempos de engajamento na Nova York dos anos 1930, Greenberg escreveu: “Algum dia será preciso contar como o ‘antistalinismo’, que começou mais ou menos como ‘trotskismo’, tornou-se arte pela arte, e desta forma abriu caminho, heroicamente, para o que viria depois” (1996, p. 235). Ora, para Mário Pedrosa, a questão dessa peculiar regressão à “arte pela arte” jamais foi colocada. Antes o contrário. Para ele o moderno era o resultado da anticultura (quer dizer, da negação da cultura burguesa acomodada, institucionalizada e rigorosamente antirrevolucionária), daí seu “primitivismo”, fundamentalmente antielitista, e da aventura da liberação experimental das formas (a aventura da abstração), promovendo um reinventar da experiência e das consciências. Isso ele chamou de autonomia, nesse sentido desdobrando os princípios fundamentais do famoso manifesto “Por uma arte revolucionária independente”, assinado por Trotski e André Breton13. Na crítica de Mário Pedrosa, a história (compreendida dialeticamente) assumia a dimensão decisiva, na medida em que ele sempre levava em “conta a mediação das relações de produção, de classe, as injunções do mercado, tanto quanto a maior ou menor consciência social de um povo ou de um artista na obra analisada”. Para ele, a arte antes de ser mero produto ideológico, sobredeterminado por condicionantes externos, acenava para um mundo outro, reconciliado, a lembrar uma ‘ordem cósmica’, porém recriada pelo homem. Por isso mesmo, a grande utopia de Mário Pedrosa (como ele mesmo repetiu à exaustão) era o advento de uma grande ‘arte sintética’, cujos delineamentos preliminares buscava permanente e obsessivamente desentranhar das manifestações mais autênticas da arte moderna (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 14). 13 Diz o Manifesto: “A arte verdadeira, a que não se contenta com variações sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade. (in FACIOLI, 1985, p. 37-38). Não deixa de ser sintomático desses caminhos diversos que, nos anos 1970, enquanto Pedrosa amargava seu terceiro exílio político, Greenberg usasse de sua autoridade de ex-marxista para defender a invasão norte-americana no Vietnã.

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Essa busca da síntese, da utopia da arte “sintética” (que ora lhe apareceu nos desdobramentos do concretismo, em sua vertente neoconcreta, ora na síntese da arquitetura funcionalista, escultural e racional brasileira no auge de nosso sonho desenvolvimentista) fundamenta ainda melhor a máxima da arte como “exercício experimental da liberdade”. Sua missão seria “extravasar no mundo vivido aquele conteúdo que precisou de liberdade para decantar-se segundo leis próprias” (ARANTES, 1991, p. XII-XVI ). Nada a ver, uma vez mais, com qualquer exercício formalista, nem greenberguiano, nem pós-moderno. Em 1955, explicando o significado do Grupo Frente e de seu “horror ao ecletismo”, ele definiu perfeitamente a diferença entre a “arte pela arte” e a busca da arte autônoma em seu exercício experimental de liberdade: A arte para eles não é atividade de parasitas nem está a serviço de ociosos ricos, ou de causas políticas ou do Estado paternalista. Atividade autônoma e vital, ela visa a uma altíssima missão social, qual seja a de dar estilo à época e transformar os homens, educando-os a exercer os sentidos com plenitude e a modelar as próprias emoções”( PEDROSA, 1998, p. 248).

No plano brasileiro, essa concepção era bastante original, e tinha consequências. Pois no Brasil, a noção de “vanguarda” foi vulgarmente assimilada como sinônimo de “experimentação” destinada a ofuscar “passadistas” e “atualizar” com as vogas e modas internacionais. E aqui os pontos que ligam o militante marxista que se fez crítico de arte com os jovens universitários paulistas se tornam mais visíveis. Com Mário Pedrosa, o sentido da ideia de vanguarda na condição moderna se torna peculiarmente mais radical: liberar uma sociabilidade reprimida e alienada; ser negativa e antiburguesa, buscando passar do mundo vivido à arte e dessa para o mundo, de volta. É nesse ponto que podemos entender seu interesse pela arte produzida pelos loucos e pelas crianças, bem como sua valorização constante da arte “primitiva”, sobretudo a dos povos pré-colombianos. Isso não apenas porque aí poderíamos encontrar uma arte produzida por consciências ainda não alienadas pela linearidade da concepção burguesa de mundo (e de arte), mas porque militar por essas causas permitia resguardar a arte como necessidade e direito de expressão “que está em todo ser vivo, em todo ser humano, psicótico ou inocente” (PEDROSA, 1995, p. 256).

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Esse direito de expressão “que está em todo ser vivo”, ou seja, é rigorosamente universal, ganha, no contexto de luta do terceiro mundo, da periferia dependente, um sentido nada “abstrato”, mas sim politicamente concreto, localizado e operacional. Comentando a IV Bienal, Pedrosa atacava duramente o elitismo “cosmopolita” incorporado pelo poderoso diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, Alfred Barr Jr., que ridicularizava o esforço dos latino-americanos para incorporar (e transformar) a arte abstrata construtiva: “O intrigara até a irritação o fato de jovens daqui e da Argentina se terem entregado a experiências chamadas concretistas. Irrita-o ainda a influência que Max Bill, por exemplo, chegou a exercer por nossas paragens”. E pergunta: “Que preferia o ilustre ex-diretor do MOMA de Nova York? Que os jovens artistas brasileiros ou argentinos se deixassem influenciar mais uma vez por Picasso, Rouault, Soutine ou mesmo por algumas das glórias descobertas pelo mesmo museu, gênero Peter Blume?” (PEDROSA, 1998, p. 280). Pois nossa pintura estaria na contramão do “gosto eclético hoje dominante em Paris ou em Nova York. E não encontrando nada que afagasse seus hábitos, (Barr Jr.) desviou-se, como todo estrangeiro importante faz ao chegar às nossas plagas, na procura de tabas de índios e de revoada de papagaios”. Os estrangeiros só querem “exotismo”, “não gostam de permitir aos nossos artistas uma pesquisa, uma linguagem moderna e não ao gosto do momento nos grandes centros europeus”. Os ricos, os europeus e norte-americanos, desejam o irracional: “Têm horror, como homens cansados de cultura e de experiências estéticas, a tudo que lembre estrutura, ordem, disciplina, tensões, otimismo, beleza plástica, em suma.” Nossos artistas resistem a isso, apropriamse da cultura “universal” e a reinventam para tomar para si seu destino. Isso era a autonomia, na visão de Mário Pedrosa, “sentimento de independência que vai se generalizando entre os melhores de nossos artistas”. Um “embrião de escola, cujas características fundamentais é cedo para tentar definir e cuja designação ainda, portanto, é difícil de dar” (1998, p. 280). Creio que isso que ele antevê será o neoconcretismo, mas é também, e ao mesmo tempo, um projeto de emancipação nacional, terceiro-mundista e, aí sim, efetivamente internacional. Em um ensaio chamado exatamente “Paradoxo da arte moderna brasileira”, já quase eufórico com as novas possibilidades de união e

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síntese entre o local e o cosmopolita (o projeto de sua geração, como vimos em Antonio Candido e Paulo Emílio também), Pedrosa diz: Não estará saindo desse paradoxo, dessa ‘vontade profunda’ o embrião ainda precário, mas já existente, de uma arte brasileira moderna e autóctone, isto é, autenticamente regional, de saborosos e fortes acentos dialetais, na grande linguagem abstrata universal? Como já é o caso com a nossa arquitetura” (PEDROSA, 1998, p. 319).

Assim, para Mário Pedrosa (esse “socialista singular” como o definiu Antonio Candido” (in MARQUES NETO, 2001, p. 14)) a crítica tinha que ser sempre, como dizia Baudelaire, “parcial, apaixonada e política” para contribuir para a utopia emancipatória da arte e da vida, ideia que não era estranha ao princípio crítico de Paulo Emílio, como vimos. Por isso Mário Pedrosa não pode ser visto apenas como um teórico das vanguardas estéticas no Brasil, mas também (e ao mesmo tempo) como seu crítico. Pois a consciência dilacerada não é hoje apenas a consciência do povo, das massas, das classes: é também das elites e das vanguardas. A arte é um esforço perene de superação da consciência dilacerada. Ela é por isso mesmo vencida sempre, substituída por outro esforço, e assim indefinidamente até o ser da sociedade deixar de ser dilacerado (PEDROSA, 1995, p. 275).

Do mesmo modo, a atuação política socialista tem de ser ela mesma experimental, uma vez que o socialismo não consiste apenas na conquista do poder pelo proletariado e na execução das reformas de estrutura com a socialização dos meios de produção. O socialismo é a ação consciente, quotidiana e constante das massas, mas por elas mesmas e não por meio de uma “procuração” a um partido de vanguarda mais consciente (PEDROSA apud MARQUES NETO, 1993, p. 252).

Trata-se, portanto, de uma concepção da revolução e do partido como uma experiência radical em processo constante de transforma-

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ção e elaboração. Como se vê, o decisivo é defesa da utopia de uma arte autônoma e de uma política de massas, progredindo por rupturas em direção ao exercício da transformação da sociabilidade mais ampla. Essa concepção utópica, aprendida no Manifesto “Por uma arte revolucionária independente”, foi perseguida por Pedrosa, que entretanto soube ver, no percurso da história, a configuração de suas crises e de seus impasses. De fato, no final de sua vida, já diante do naufrágio das utopias construtivas na arte moderna, na vida social brasileira (após o Golpe Militar de 1964 e o fim da etapa desenvolvimentista) e da virada liberal do capitalismo internacional, ele percebeu a relativa falência da forma de intervenção que a arte moderna representou: “A sociedade de consumo de massas não é propícia às artes”, e especialmente “à arte moderna, com suas exigências de qualidade e não ambiguidade”. Por isso era inevitável perceber que uma “arte pós-moderna” tinha início: É que entre aquela e o povo, a sociedade de consumo de massa se interpôs pela comunicação de massa que deu à imagem uma força atributiva maior do que a palavra, e forneceu à indústria, ao poder da publicidade, suas invencíveis armas ofensivas. A chamada cultura de massa e arte de massa já não tem, entretanto, forças para deter a debandada geral (PEDROSA, 1998, p. 282-283).

Esse “esvaziamento” utópico levou Mário de volta ao desejo da intervenção política, ao retorno ao partido socialista de modo a salvar a utopia que a arte não podia mais reter em si e exercitar livre e experimentalmente. No final dos anos 1970 (perto de sua morte), de novo mais crítico socialista da cultura política do que crítico da política das artes, ele avaliava a conjuntura político-cultural atacando tanto o flanco dos velhos vanguardistas da arte quanto das velhas políticas dos comunistas da América Latina. Desde as ditaduras militares na América Latina e a Guerra do Vietnã até o final de sua vida, Pedrosa iria reunir em seu esforço de intervenção política uma série de textos e ações destinados a repensar a atuação política em tempos de transformações da ordem capitalista mundial. Nesse sentido é que elaborou dois alentados volumes e diversas reflexões sobre a nova face do imperialismo norte-americano, sobre o

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significado do fim de qualquer sonho utópico possível em relação ao comunismo soviético e sobre a nova “cultura” da fase pós-industrial do capitalismo (que acompanhava sua leitura da arte “pós-moderna”). É o caso dos livros pioneiros A opção imperialista e A opção brasileira. Como ele mesmo explicou no prefácio de A opção imperialista, sua intenção nesse momento era “indicar a linha de forças que impõe ao Brasil uma distorção que o desnatura, se não o faz definhar ou mesmo perecer”, bem como “definir aos brasileiros a retificação que se impõe para fazê-lo reencontrar seu próprio destino” (PEDROSA, 1966, p. 2). No momento histórico daquilo que ele chamou de “internacionalismo burguês multinacional”, ou de arte pós-moderna, era preciso pensar além da arte e da política. E ele pensou o seguinte: Estou pensando em escrever um livro sobre as multinacionais ou a teoria da contrarrevolução mundial. Eles têm um projeto, fundado em uma tecnologia cada vez mais desumana. Um domínio da civilização do hotel Hilton. O que eles querem fazer é a civilização do hotel Hilton! Baseada no plástico, nessa matéria-prima que nada tem a ver com a organicidade da natureza e da terra, implantando uma civilização falsa. Isso é a teoria da contrarrevolução mundial, internacionalmente. É preciso um rearmamento ideológico fantástico para continuar a luta ideológica, que não se encontra mais em lugar nenhum (PEDROSA in MODERNO, 1984, p. 34).

Nesse ponto, ele parou e abandonou a crítica de arte. Nesse ponto, a ideia da formação de uma crítica materialista da produção cultural nas condições brasileiras, que também se fundasse na crítica da configuração social do capitalismo contemporâneo, também parou, na medida em que o desmanche trazido pelo fim da etapa desenvolvimentista e do nosso ambíguo projeto de “civilização” estancou a veia crítica e abriu caminho para o ecletismo e a despolitização contemporânea. É desse ponto que nós devemos recomeçar, se de fato quisermos continuar a luta contra “a civilização do Hotel Hilton”, sobretudo aqui dentro do nosso Planeta Favela. Se não me enganei terrivelmente nas páginas anteriores, creio que os três críticos que vimos são uma fonte ainda fresca de possibilidades para se pensar para além do que nos tornamos.

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FACIOLI, V. (Org.). Breton/Trotski: por uma arte revolucionária independente. São Paulo: Paz e Terra: Cemap, 1985. GOMES, P. E. S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Embrafilme, 1980. GOMES, P. E. S. Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. v. 2. GREENBERG, C. Vanguarda e Kitsch. In: GREENBERG, C. Arte e cultura. São Paulo: Ática, 1996. JAMESON, F. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1985. LOUREIRO, I. M. Vanguarda socialista (1945-1948): um episódio de ecletismo na história do marxismo brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1984. MARQUES NETO, J. C. A solidão revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. MILLIET, S. Diário crítico. São Paulo: Martins: EDUSP, 1981. v. 1, v. 4. MODERNO, J. R. Entrevista com Mário Pedrosa. In: MODERNO, J. R. Arte contra política no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 1984. PEDROSA, M. Acadêmicos e modernos. São Paulo: EDUSP, 1998. PEDROSA, M. Modernidade cá e lá. São Paulo: EDUSP, 2000. PEDROSA, M. A opção imperialista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. PEDROSA, M. Política das artes. São Paulo: EDUSP, 1995. PONTES, H. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940 – 1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ROCHA, G. Origens de um cinema novo. In: ROCHA, G. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. SANTIAGO, S. Sobre plataformas e testamentos. In: SANTIAGO, S. Oras (direis) puxar conversa!: ensaios literários. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006.

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GoNÇALo m. tAvARES: o ENSAio, A DANÇA, o ESPÍRito LivRE Júlia Studart

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Este artigo propõe uma leitura crítica do trabalho do escritor contemporâneo Gonçalo M. Tavares – concentrando-se no seu primeiro livro, Livro da Dança, publicado em 2001 – a partir de três questões principais: o ensaio, como experiência intelectual livre, método ou modelo literário e também como ato em si, repetição, treino; a dança, uma saída da condição habitual e um desequilíbrio, a invenção de um corpo-bailarino que toca a experiência do ensaio como palco de uma experiência intelectual aberta e contaminada com questões que são retiradas da filosofia e da dança; e, por fim, o espírito livre, conceito de Nietzsche, que remete a um espírito leve e que ri, aquele que detém o alegre saber. A literatura de Gonçalo M. Tavares como um livro-ensaio aberto que escolhe o texto como um laboratório de sensações; uma situação sempre experimental que se assemelha a um estado de dança, em um procedimento anacrônico, livre e descontínuo. Palavras-chave: ensaio; dança; espírito livre This article proposes a critical reading of the work of Gonçalo M. Tavares – focusing on his first book, Book of Dance, published in 2001 – based on three main issues: the rehearsal, as a free, intellectual experience, method or literary model and as the act itself, repetition, practice; the dance, a leaving of the usual condition and an imbalance, the invention of a body-dancer that uses the rehearsal’s experience as a stage for an open intellectual experience, contaminated with questions drawn from the philosophy and dance; and, finally, the free spirit, Nietzsche’s concept, which refers to a light spirit that laughs, one who holds the joyful knowledge. The literature of Gonçalo M. Tavares as an open book-of-rehearsal, that chooses the text as a laboratory of sensations; an ever experimental situation that resembles a state of dance, a free, anachronistic and discontinuous procedure. Keywords: rehearsal; dance; free spirit

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1 o ENSAio, mÉtoDo É DESvio Gonçalo M. Tavares publica seu primeiro livro em Portugal em 2001 (Assírio & Alvim), intitulado Livro da dança,1 um poema longo dividido e numerado em 114 fragmentos, que também se aproxima muito do ensaio, como uma primeira hipótese. O livro mantém uma relação direta com questões da filosofia e com questões que parecem ter sido retiradas de um pensamento da dança e para a dança, como será demonstrado mais adiante. Ele saiu no Brasil em 2008 (Editora da Casa), com uma versão diferente da edição portuguesa, pois o texto parece indicar para outro desdobramento da linha, do verso, como alguns versos que descem e outros que ficam menores, com trechos inteiros removidos, o que marca ainda mais a imprecisão do gesto da dança, do movimento solto do corpo: a coreografia do corpo leve e do poema como um corpo que pode sempre ser outra coisa. No trabalho de Gonçalo M. Tavares a dança e o corpo vêm como um acidente mútuo, um gesto que pode e deve ser rearticulado de outra maneira e assim sucessivamente, em um sem-número de combinações infinitas, como um ensaio infinito. Na edição brasileira, os poemas, os fragmentos, que parecem vir em menor número, perdem a numeração, ganham títulos e são organizados em um sumário que aparece pela primeira vez. Dessa forma, o ensaio, no trabalho de Gonçalo M. Tavares, pode ser entendido de duas maneiras distintas e complementares. Esse primeiro livro foi definido pelo próprio escritor como “investigação”, termo ou “etiqueta” que constitui uma espécie de “modo de uso” ou de “como ler”, etiqueta que é também um nome de uso para identificar uma série de livros que mantêm entre si uma linha ou uma fronteira de texto comum. Essas etiquetas aparecem, principalmente, nas listagens dos livros que podem ser encontradas, por exemplo, no começo ou ao final de alguns de seus livros, quase sempre acompanhadas da biografia do autor. O termo “etiqueta” aparece no site oficial de Gonçalo M. Tavares (http://goncalomtavares.blogspot.com/). Elas se dividem em “Livros pretos – O Reino”, “Livros pretos – Canções”, “O Bairro”, “Estórias”, “Enciclopédia”, “Bloom Books”, “Poesia”, “Teatro”, “Arquivos”, “Investigações”, “Epopeia” e “Short Movies”. Dessa forma, e até agora, já que todos os projetos estão abertos e em processo, o Livro da dança faz parte de um grupo de três livros que formam as suas investigações, juntamente com o Investigações. Novalis (2002) e o Investigações geométricas (2004). 1

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A primeira, como método ou modelo literário, procedimento de reflexão crítica ou estudo sobre algo, que é o caso, por exemplo, desse livro em que as reflexões acerca do movimento, do corpo e da dança já aparecem para depois se expandir por todo o seu projeto. Theodor Adorno, em seu conhecido texto “O ensaio como forma”, publicado em 1958, no volume intitulado Notas de literatura, diz que o ensaio é uma espécie de entusiasmo infantil, que faz com que alguém, como uma criança, tenha imensa disposição para algo e não tenha “vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (ADORNO, 2003, p. 16), uma sorte de felicidade e de jogo que exige certa liberdade de espírito, um corpo livre e disponível para tal tarefa. Assim, o ensaio seria mais ou menos como um espírito livre, inacabado e aberto que, ainda na proposição de Adorno, “diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer” (ADORNO, 2003, p. 17). Dessa forma, ele ocuparia um lugar entre os despropósitos, entre desatino e disparate, um excesso de desejo e atenção sobre algo, um pensamento fragmentado e relativizado que na maior parte das vezes é um pensamento sobre algo absolutamente efêmero e mutável, que recua diante de dogmas e de interpretações rígidas e universais. Gonçalo M. Tavares, por sua vez, procura transitar nessa “experiência intelectual” livre, o “ensaio”, articulado como um pensamento descontínuo, sempre um conflito em suspenso. Nas palavras de Adorno: “A descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto é sempre um conflito em suspenso” (ADORNO, 2003, p. 35); assim, o Livro da dança de Gonçalo M. Tavares toma o exercício do ensaio como um pensamento para todos os lados, sem sentido único, ou seja, toma o próprio corpo [corpo orgânico e corpo do texto: “De qualquer modo a dança” e “De qualquer modo o corpo contém o dia” (TAVARES, 2001, p. 22)] como “palco da experiência intelectual”. Adorno propõe que o ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como em um tapete. Da densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador, na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da ex-

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periência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o pensamento tradicional também se alimente dos impulsos dessa experiência, ele acaba eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse processo. O ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem entretanto, como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação através de sua própria organização conceitual; o ensaio procede, por assim dizer, metodicamente sem método (ADORNO, 2003, p. 29-30).

O livro-ensaio aberto, que Gonçalo M. Tavares apresenta em seu projeto desde o Livro da dança, também elege essa “experiência intelectual” como modelo, como laboratório de sensações,2 uma situação sempre experimental, como processo, em um trabalho que resulta “metodicamente sem método” em liberdade de espírito, em um procedimento anacrônico, livre e descontínuo, aberto e fechado ao mesmo tempo. E nenhum outro procedimento estaria tão próximo de um estado de dança como o ensaio, na “liberdade que dá ao objeto a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido impiedosamente na ordem das ideias” (ADORNO, 2003, p. 41). A segunda maneira de ler o ensaio no trabalho de Gonçalo M. Tavares é, principalmente, perceber o ensaio como ato em si, como ação, movimento de algo que se repete inúmeras vezes, como uma coreografia, uma dança – o texto inteiro como um corpo que dança, que Essa expressão é um desdobramento do estudo de José Gil sobre Fernando Pessoa, o primeiro capítulo do livro intitulado Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, que se chama “Laboratório Poético”. José Gil (1987, p. 13) comenta que Bernardo Soares tem por característica essencial “o facto de não viver nem escrever senão em situação experimental. O laboratório poético de Pessoa está em plena actividade no Livro do Desassossego”. Não à toa José Gil assinala que Bernardo Soares escreve apontando para um movimento neutro e para um estado larvar de consciência, uma consciência vazada em uma prosa nítida e com penetração; diz ele: “Não há nada para lá ou para cá dos fragmentos, do que estes narram: estados larvares de consciência, e uma consciência dessa consciência vazada nos moldes de uma prosa extremamente nítida, impressionante de penetração e rigor” (1987, p. 15). Pode-se dizer, de alguma maneira, que esse procedimento é um estado de dança, mesmo que ainda embrionário, mas sempre tocado pela repetição do gesto: eis o ensaio do qual Gonçalo M. Tavares parece tomar posse como despossessão.

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treina, que ensaia. O ensaio seria aquilo que tenta “Treinar a nudez” e “Experimentar a roupa nua” (TAVARES, 2001, p. 40), diz ele. Ou seja, uma série de movimentos e de suspensão de movimentos que devem ser incorporados ao corpo do bailarino por meio de um hábito nu, de uma rotina nua de trabalho, de treino (exercitar, acostumar, ensaiar etc.), até que se saiba apenas o próprio corpo-movimento de cor, incorporado, ou seja, com o coração; e até que o corpo seja pensamento e resistência, corpo-pensamento-resistência, uma intensidade. Como sugere Alain Badiou, a partir de Nietzsche, quando fundamenta a dança como uma metáfora do pensamento, um corpo-pensamento. Segundo Badiou, ela é exatamente uma intensificação, um pensamento efetivo no lugar, e não exterior a ele, que se intensifica sobre si mesmo ou que representa o movimento de sua própria intensidade (BADIOU, 2002, p. 81). Porque a primeira maneira de ler-escrever o ensaio e a segunda maneira de ler-escrever o ensaio, ambas, têm a ver com corpo livre, desejo, estrato, afecção, modos de ser da escrita. Gonçalo M. Tavares indica em um poema intitulado “O mapa”– citado a seguir, que pertence ao “livro sete (Autobiografia)”, do livro de poemas 1,3 publicado em 2004 –, a sua perspectiva de erro e impossibilidade de resposta à pergunta “Por que optei por escrever?” como um motor para seu modo de escrita. A resposta convulsa e imediata à pergunta é: “Não sei.” Com isso, no poema, ao advertir que a matemática é uma presença física de método, ele invade a interrogação de O livro de poemas 1 configura quase uma antologia de oito pequenos livros, de oito projetos aparentemente distintos. Foi publicado em Portugal em 2004 (Relógio D’Água) e no Brasil, em 2005 (Bertrand Brasil). Os livros que compõem o projeto 1 estão divididos e nomeados como livro um, livro dois, livro três e assim sucessivamente até o livro oito. Os títulos dos livros, pistas de sua aparente distinção são, respectivamente, Observações, Livro dos ossos, Atenas e a metafísica, Frio no Alaska, Homenagem, Explicações científicas e outros poemas, Autobiografia e Livro das investigações claras. É de se notar que estes títulos de livros, de alguma maneira, acompanham os títulos que Gonçalo M. Tavares atribuiu a alguns poemas do Livro da dança na edição brasileira, porque perseguem a sua ideia de uma poética do movimento que é, ao mesmo tempo, uma poética de releitura da metafísica e uma tentativa de interferir nela: “Exibição”, “Sobre o osso”, “A técnica”, “Definição de função”, “Aprendizagem”, “Indicações quase gerais”, “Biografia e prestígio”, “Coração e cicatriz” etc.

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Bernardo Soares, comezinha e lançada ao chão do moderno, como um “desassossego”, e procura incessantemente constituir uma correspondência entre algumas imagens (pelas quais pede desculpas) e essa pergunta de resposta taxativa e instantânea, mas que não diz nada: Sempre senti a matemática como uma presença Física; em relação a ela vejo-me Como alguém que não consegue Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado Apertada nas mangas. Perdoem-me a imagem: como Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja E provocar com a nossa indiferença o desejo Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um Mundo onde entro para me sentir excluído; Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação Aos números e aos seus cálculos, é um sistema, Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever Não é mais inteligente que resolver uma equação; Por que optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba: Entre a possibilidade de acertar muito, existente Na matemática, e a possibilidade de errar muito, Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar Mais ou menos sem meta) optei instintivamente Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa (TAVARES, 2005, p. 161, grifo do autor).

O poema é uma proliferação deliberada de palavras e faz uso de uma circunstância da matemática como ponto de partida, porque a matemática é uma ciência que estuda objetos abstratos (entre eles os números, as figuras, as funções, as noções de ordem e tantos outros, daí uma ideia em torno das fabulações da astrologia, dos destinos, da imaginação de mundos e de universos, da constituição dos mapas etc.) e as tantas relações existentes entre esses objetos, com um procedimento sempre suspeito, o do método dedutivo. E um método que utiliza a dedução não pode ser senão um método que provoca

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desejo no outro: um mundo onde se entra para a sensação do fora, de exclusão, por isso pode tratar o “infinito”, por exemplo, como um “objecto exacto”. No fragmento 67 do Livro da dança, intitulado na edição brasileira como “Um objecto exacto”, ele inscreve: Entreter o infinito. Tratar o infinito como objecto, atirá-lo ao chão, partir-lhe a FACE, curar-lhe as feridas, chamar pelo pai e pela mãe; dar-lhe pão à boca no dia das doenças, contar-lhe os ossos e, por fim, desprezá-lo. Entreter o infinito. Tratar o infinito como objecto. (TAVARES, 2001, p. 81).

Neste “Um objecto exacto”, note-se, há um convite para deslocar o infinito de sua abstração numérica e jogá-lo ao chão para quebrá-lo ao meio, partir a sua face e, principalmente, dar a ele fome, contar seus ossos e desprezá-lo. Ou seja, dar a ele um corpo, a doença, uma possibilidade de morte, medo e, como paradoxo, alguma exatidão. O poema “O mapa”, então, nos apresenta sensações que tocam, principalmente, algo muito próximo de uma exterioridade, um não sentido da escrita. Assim, a sua tentativa de resposta pelas possibilidades de acertar muito, que vêm da matemática, e das de errar muito, que vêm da literatura. Daí o gesto mais ou menos sem meta nos modos de sua escrita que o poema já sugere: nada para lá, nada para cá do poema. A conclusão, na última linha, é categórica, “Escrevo porque perdi o mapa”, mas também não diz muita coisa, porque um mapa é sempre uma composição ficcional de um lugar imaginário ou imaginado, construído a partir do método dedutivo, como um ensaio, movido por uma errância sem método para atingir uma suposta meta4. E, assim, se meta tem a ver com Não por acaso, Gonçalo M. Tavares desenvolve um projeto intitulado “O Bairro”, que parte de um mapa. Esse mapa é a ficção de um lugar imaginário ou imaginado, também construída a partir do método dedutivo, sempre como um ensaio e movida pela errância sem método. Nesse bairro moram escritores, críticos, filósofos, uma bailarina e coreógrafa (Pina Bausch), que ele chama de “Senhores”. Esse “O Bairro” é também uma recuperação de sua afirmação: “Escrevo porque perdi o mapa.”

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limite, fim, termo, remate ou, quiçá, equação resolvida, o que se pode espaçar depois disso – e a partir do movimento da escrita e seus modos de operação crítica – é uma errância. E toda errância tem vínculo com liberdade, com espírito livre e, principalmente, com erro. Há dois fragmentos do Livro da dança que vêm da anotação do erro, como título e sugestão, e demarcam a interdição de um pressuposto de escrita. Na edição portuguesa são os fragmentos 42 e 43, na edição brasileira se chamam, respectiva e propriamente, “Erro” e “Conselho consequência da definição de erro”, mas não há alterações dentro dos textos entre uma edição e outra. É interessante observar que o procedimento desses fragmentos exemplifica, de algum modo, o princípio de um plano para a escrita que é constituir um gesto circular e repetitivo para movê-la, para fazê-la se mover inteiramente. A repetição está como uma insistência de método e, no primeiro deles, é possível notar o passeio iniciado entre o erro e o método através dela. No segundo, um conselho a modo de Zenão de Cício, o estoico (334-262 a. C., que pregava a remoção das paixões e uma aceitação resignada do destino), ou como Sêneca em suas “Cartas”5, em um movimento circular entre razão e paixão, mas ao mesmo tempo negando certa condição estoica ao colocar um corpo como um perseguidor de outros corpos, um corpo perseguidor de outros sentidos, o que talvez não seja possível; Gonçalo M. Tavares diz em uma entrevista (Entrelivros, n. 29, set. 2007) que se considera “um filho de Sêneca”, que tem “uma parte estoica”, pois “guarda alguma distância em relação ao que vai acontecendo”. Diz também que o livro que mais marcou a sua vida é o das cartas de Sêneca a Lucílio, Cartas a Lucílio, livro em que Sêneca avisa que só tem domínio de si aquele que não faz de seu corpo um peregrinador por outros corpos. Ora, o estoicismo está ligado a uma colocação do ser na razão para sobrepor-se às paixões, mesmo que, depois, se ligue também a uma clivagem entre corpo e alma em uma tentativa de fazer com que o homem suplante a dor e, principalmente, a dor da perda provocada pela morte; dor que é uma inimiga da razão. Sabe-se que Sêneca (Corduba, 4 a.C. — Roma, 65 d.C.), diz Joaquim Brasil Fontes (1992, p. 15) na apresentação a uma pequena edição brasileira de Consolationes (Cartas consolatórias), falava para e contra uma sociedade aristocrática, culta e em perpétuo sobressalto, em que Nero era o imperador e se autointitulava senhor da vida e da morte. Joaquim Fontes chama atenção para o quanto Sêneca tensiona a língua latina e a filosofia estoica, em uma dupla racionalidade, a da ordem das palavras e a da ordem do mundo, com um discurso entre razão e paixão. 5

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sempre para tentar entender esta lacuna entre o erro e a correção do erro, entre voltar atrás e seguir em frente e, ainda, voltar atrás se atrás for seguir em frente: Claro que podemos errar e não voltar atrás para corrigir o erro porque o erro não é o ERRO o erro só começa no corrigir, errar e avançar não é errar: é avançar; errar e corrigir não é corrigir: é errar (TAVARES, 2001, p. 53).

e Só voltar atrás se atrás for à Frente. (TAVARES, 2001, p. 54).

Ensaiar, no exemplo desses fragmentos, está no sentido daquilo que a dança se distingue e, ao mesmo tempo, também se assemelha: erro e correção e voltar atrás como se fosse voltar à frente. Esse movimento que se dá entre uma coisa ou outra é estabelecido por uma espécie de “primeira matemática” (expressão que Gonçalo M. Tavares indica e usa no fragmento citado a seguir, intitulado “A 2ª Matemática”), porque ainda é feita e pensada a partir de ordem e regras, quando toda oposição estabelece uma escolha entre uma coisa OU outra, como a paixão ou a razão no plano estoico ou o erro e sua correção, como está no trecho citado anteriormente. Desfazer isso é armar o paradoxo, arma-se o paradoxo quando propõe-se que o começo de algo, como o erro, está em sua correção, o que normalmente seria o contrário: a correção seria o fim do erro, e não o seu começo. O paradoxo, para Gonçalo Tavares, é o que abre o belo para sobreviver6 – “O paradoxo abre o belo. / A sobrevivência do belo: é urgente tornar PARADOXO o belo: / A sobrevivência do belo” (TAVARES, 2001, p. 46) –, seria, segundo ele, “mudar o corpo para melhor” (TAVARES, 2001, p. 46), ou seja, “Evitar Pitágoras. Evitar Pitágoras dos números. / Evitar Pitágoras dos números no centro do corpo” (TAVARES, 2001, p. 45). Para depois, seguindo o gesto circular e de repetição, refazer Na edição brasileira do Livro da dança esse fragmento, que é o de número 35 na edição portuguesa, aparece intitulado como “Sobreviver” (p. 49). Na sequência, o fragmento que se inicia com “Evitar Pitágoras” (p. 48) é o de número 34 na edição portuguesa e se intitula, na edição brasileira, como “Evitar”.

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o trecho ao dizer: “Entender Pitágoras / Entender Pitágoras para além dos números / Entender Pitágoras para além dos números no centro do coração no coração do corpo. / (...) / Evitar amar entender Pitágoras. / O corpo deve ao mesmo tempo, no mesmo momento, evitar amar e entender” (TAVARES, 2001, p. 45). Sobreviver e evitar passam a ser as ações do ensaio, e se lido aqui também como ato e ação, não teria a ver com método? Assim, é possível pensar que Gonçalo M. Tavares, ao passear entre o erro e o método, e ao tomar o erro como método, dá origem a um modo de uso da escrita “metodicamente sem método”, ou seja, a presença de um e de outro em uma mesma equação onde um não anula o outro porque é importante ter várias hipóteses. Isto, do “é importante ter várias hipóteses” e do “importante é o método”, está na peça de teatro intitulada “A colher de Samuel Beckett”, publicada em Portugal em 2002, no livro A colher de Samuel Beckett e outros textos: Quatro acções. (conta pelos dedos) Beber, olhar, deitar, organizar. Quatro acções possíveis. Podia ser pior. Há quem não tenha quatro acções. Há quem tenha menos. 4. Quatro. Não é mau. (pausa) Aborrecido deve ser quando se tem uma única acção. (pausa) É preciso organizarmo-nos para ter sempre várias acções a fazer. Nunca deixar que fique só uma. Nunca. (pausa) Sempre várias. Hipóteses, é a palavra. É importante ter várias hipóteses. Uma, duas, 3, 4. Uma ou outra ou outra ou outra [...] O importante é o método. Como utilizar o quê. (pausa, sorriso) [...] Não interessam as acções, mas sim como. (pausa) (TAVARES, 2002, p. 22-23).

Não custa, depois desse exemplo, lembrar que proponho pensar, primeiro, o ensaio como ato, e que ele quando é ação e repetição para uma apreensão ou aprendizado é método. Depois, segundo, proponho pensar o ensaio como modo de uso da escrita, e que para a constituição de uma “cultura filosófica” ele é “metodicamente sem método”. Já no livro Breves notas sobre ciência, publicado em Portugal em 2006, o primeiro dos volumes da sua “Enciclopédia”, Gonçalo M. Tavares escreve uma anotação intitulada “A 2ª matemática”, a partir de Wittgenstein, para insistir dessa vez na ideia de uma equação não

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resolvida, quando a meta e o limite são feitos do erro da primeira matemática, que se constitui, também, por sua vez, de proposições incontestáveis da segunda matemática. Este ir e vir da equação, agora, leva a um pensamento constituído de opostos, a uma arquitetura sinuosa de um pensamento construído para o paradoxo: mal e bem, exatidão e falha, alto e baixo etc. Porque há também, aí, uma questão de crença – “Se todos os homens acreditarem” – e não apenas de resultado, há algo aí para além do mundo e completamente tocado pela imaginação, pela fantasia: A 2ª matemática Questão de Wittgenstein: “Se todos os homens acreditarem que 2 x 2 = 5, 2 x 2 será ainda igual a 4?” Existe uma 2ª matemática atrás da primeira. É feita daquilo que é Erro na primeira, e é ainda — como a primeira matemática — feita de ordem e regras. Os erros da 2ª Matemática são também proposições incontestáveis na 1ª Matemática. [Pensar nos opostos. No mal e no bem. Na exactidão e na falha. No alto e no baixo]. (TAVARES, 2006, p. 65).

Assim, a escrita de Gonçalo M. Tavares não vai apenas de uma forma a outra, como transformação, mas sim como metamorfose, como aquilo que se move por dentro da forma ensaio, entre ato em si (treino, repetição, método) e o seu como fazer, modo de operar livremente a escrita para a construção de uma “cultura filosófica”, a construção de um pensamento. Pois são os próprios livros de Gonçalo M. Tavares que sugerem, ao mesmo tempo, tanto uma necessidade de deslocamento da perspectiva meramente literária, quanto uma tentativa de contato mais direto e mais aberto com algumas outras questões que os atravessam de uma maneira sistematicamente circular, coisas que vêm da filosofia e da dança, por exemplo. E isso se faz necessário porque é o próprio Gonçalo quem defende a ideia de que toda arte deve ser feita a partir de uma resistência, e que a grande resistência do ser

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humano no mundo agora ainda é pensar, ainda é o pensamento7; e que unir literatura e pensamento não é um ato de vanguarda, mas, ao contrário, é apenas uma interessante volta às raízes. Ele lembra que na antiguidade clássica, por exemplo, poesia e filosofia andavam juntas, elas eram uma mesma coisa, depois é que se separaram, e uni-las em uma só outra vez é voltar às raízes. Já aqui, de algum modo, estabelece que lhe interessa uma concepção circular da história, anacrônica, como modo de uso, leitura e escrita do ensaio. 2 A DANÇA, o ESPÍRito LivRE Segundo Nietzsche, o que o falso “espírito livre” gostaria de perseguir com todas as forças é a “universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para todos” (NIETZSCHE, 1992, p. 48), bem como todo o seu desejo e projeto para a arte e para a filosofia seria apenas o silêncio, a quietude, o “mar liso” ou ainda o entorpecimento, a embriaguez como vingança sobre a vida, como ausência de resistência, embotamento dos sentidos, em oposição àqueles que “sofrem de superabundância de vida”8, de Em entrevista para o jornal Rascunho (Curitiba, 5 de janeiro de 2010), perguntado acerca do uso notório de um pensamento mais reflexivo em sua literatura, algo muito próximo da filosofia, como uma armadilha contra o senso comum, Gonçalo M. Tavares responde que: “Pensar é ainda um dos atos de resistência do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clássica, a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.” 8 Em Nietzsche contra Wagner, Nietzsche faz uma distinção entre dois tipos de “sofredores”, que resultam do movimento da arte e da filosofia como socorro e remédio da vida em crescimento ou da vida em declínio. Ele diz que existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância de vida, que buscam uma compreensão e perspectiva trágica da vida, tendo no conhecimento trágico e na arte dionisíaca o mais belo luxo da cultura; e os que sofrem de empobrecimento de vida, que necessitariam ao máximo de brandura e paz, que se encerrariam em horizontes otimistas e seguros, pouco instáveis – são os décadents (1999, p. 59-60). Ou ainda, pode-se intuir, este pode ser o falso espírito livre, o corpo cativo, obediente e sem dança, “rapazes bonzinhos e desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes respeitáveis, mas que são cativos e ridiculamente superficiais” (NIETZSCHE, 1992, p. 48). 7

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profundidade no corpo e no pensamento; que sofrem de vontade livre, desejam uma arte dionisíaca, uma compreensão trágica do corpo, um corpo profundo, e uma compreensão trágica da vida. Não por acaso, o ensaio (aqui compreendido sempre nos dois movimentos já indicados) deseja certa “liberdade de espírito”, como sugeriu Adorno, o que se assemelha muito ao espírito livre do qual também nos fala Nietzsche. Em Ecce Homo, publicado em 1908, que por si só já é um livro-reação, Nietzsche comenta acerca de Humano, demasiado humano (1878): Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se proclama um livro para espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa uma vitória – com ele me libertei do que não pertencia à minha natureza. A ela não pertence o idealismo: o título diz “onde vocês veem coisas ideais, eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas demasiado humanas!”... Eu conheço mais o homem... Em nenhum outro sentido a expressão “espírito livre” quer ser entendida: um espírito tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse (NIETZSCHE, 2008, p. 69, grifos do autor).

De alguma forma, esse “espírito tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse”, agora também com a posse da sua vontade plena e contra qualquer idealismo ou saída através de uma verdade espiritual, seja ela qual for, pode ser pensado junto à ideia de um “corpo soberano”, na acepção de Georges Bataille, leitor atento de Nietzsche. Bataille afirma que nada pode ser mais necessário e mais forte em nós do que a revolta, a desobediência do corpo, a suspensão da lei; que sem esse sentimento não podemos amar e nem estimar nada, pois tudo leva a marca da submissão. Dessa forma, Bataille propõe, com Nietzsche, um princípio de rebeldia, um “riso insidioso” no lugar do temor, da submissão, pois é próprio da revolta não se deixar submeter facilmente (BATAILLE, 2008, p. 227-228). Nietzsche define ainda o “espírito livre” – corpo desobediente e soberano que procuro demonstrar também nos textos de Gonçalo M. Tavares, bem como o texto inteiro como um corpo furioso e desobediente, corpo de intensidades –, como um desvencilhar-se de toda crença, de toda convicção profunda ou desejo de certeza, que pode ser representado por uma escolha, pela arrogância do paradigma, pela

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entrada no conflito, ou seja, escolher um e rejeitar outro, fazer a escolha certa e o erro etc. E crença entendida “quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada” (NIETZSCHE, 2001, p. 241), que é um estado de permanente obediência, de corpo dócil e servil. Nietzsche vê no “espírito livre” a liberdade de vontade por excelência e um corpo leve capaz de equilibrar-se sobre delicadas cordas ou de dançar até mesmo à beira de abismos, mesmo que esse “espírito livre” – como declara no prólogo para o volume I de Humano, demasiado humano – Um livro para espíritos livres –, seja uma espécie de invenção, de ficção sua, uma forma de “manter a alma alegre em meio a muitos males” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Esses espíritos seriam como “valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes – uma compensação para os amigos que faltam” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Porém Nietzsche define, em A gaia ciência, o “espírito livre por excelência”: Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência (NIETZSCHE, 2001, p. 241, grifos do autor).

Da mesma forma, para Barthes, uma reflexão sobre o Neutro é um modo de procurar livremente, de buscar (sempre de modo livre) o próprio estilo de atuação ou de presença nas lutas do nosso tempo (BARTHES, 2003, p. 20) – e nessa tarefa estão comprometidos todos aqueles que se despedem de toda crença, porque toda crença pressupõe escolher um e rejeitar outro, pressupõe escolher uma intensidade ou uma “atividade ardente” como um “prazer e força na autodeterminação, uma liberdade de vontade”, como nas palavras de Nietzsche já citadas. Por isso mesmo é que, de certa forma, o Neutro se aproximaria do sentido da dança, um estado quase permanente de dança para tocar o escuro do contemporâneo; de dança como desvio, embaço,

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como um terceiro termo posto em movimento – um acontecimento, uma intensidade. Desta forma, outro fragmento de Gonçalo M. Tavares, extraído do Livro da dança, que parece exemplar para pensar essa questão é o fragmento 59: O Zen. SIM. dançar à beira dos abismos. SIM. A absoluta Qualidade do que não tem qualidades. SIM. Da cabeça utilizar a guilhotina para só arrancar o cérebro. [SIM. a lua? SIM. anda lua andas? SIM. Subir por 1 lado ao cavalo para descer logo a seguir do outro [lado? SIM. INÚTIL. SIM. Muito inútil! Quanto de inútil? Muita quantidade de inútil. Outros FILÓSOFOS? Por exemplo o Zen que conta histórias: uma: ele levantava o braço sempre, para tudo. o que significa isso? O OUTRO, o aprendiz, põe na explicação palavras. Muitas. ele, o mestre, por fim, depois de ouvir, levanta o braço. o outro: mas que significa isso? e o mestre levanta o braço, o mesmo braço, o braço. Como é a tua dança, a tua estética, a tua poética? O braço. É o Braço. Mas como, o quê? O braço, levantar o braço! (TAVARES, 2001, p. 71).

Gonçalo M. Tavares, nesse fragmento, recupera a mesma imagem de Nietzsche com relação à dança e ao espírito livre, ou seja, “dançar à beira dos abismos” seria o ato livre por excelência, mas que também apresenta o desafio, o lance de dados entre a queda, a gravidade e a leveza irrestrita, o corpo micro, ínfimo, corpo treinado a se equi-

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librar sobre tênues cordas e possibilidades, como uma espécie de funâmbulo. Note-se que Nietzsche faz uso do verbo treinar (üben) para descrever essa habilidade do corpo em equilibrar-se sobre o próprio desequilíbrio, corpo treinado, corpo ensaiado para dançar até mesmo sobre abismos, um ato que pode ser simplesmente para nada, com “muita quantidade de inútil” (TAVARES, 2001, p. 71), assim como também pode ser inútil o ato de levantar o braço. Mas esse mesmo ato de levantar o braço, no fragmento 59, também pode ser lido como uma existência, o aceno que diz ‘aqui estou’ e isso é também uma dança, uma estética, uma poética, sem mesmo precisar pôr na explicação palavras, como faz o aprendiz na pequena história narrada por Gonçalo M. Tavares. E que ao mesmo tempo é um gesto para tudo, como aparece no fragmento: “Ele levantava o braço sempre, para tudo” (TAVARES, 2001, p. 71), ou seja, levantava o braço para qualquer coisa, sempre, e levantava o braço como afirmação da vida, da existência – para tudo. Mas esse mesmo gesto repetido e para tudo também comparece como interrupção, confronto, ou seja, novamente o ato de hesitar, nem um nem outro, um e outro ao mesmo tempo, que é muito próximo da proposição ZEN asseverada com um imenso “SIM” que parece sair como exclamação para todos os lados logo no começo do fragmento, como se indicasse qual é o seu projeto estético e político, como resistência, como Neutro. Não se pode perder de vista que o “silêncio” é uma das 30 figuras do Neutro que Barthes analisa e que comparecem em alguns fragmentos de texto ou “no qual, mais vagamente, há Neutro” (BARTHES, 2003, p. 24), sob a forma de pequenas cintilações, para criar um espaço projetivo de leitura. O fragmento de Gonçalo M. Tavares também faz uso dessa mesma figura quando o mestre, apenas depois de ouvir com atenção “O OUTRO”, o aprendiz, levanta o braço. E é bom lembrar que o Neutro, para Barthes, não corresponde a um silêncio permanente (vê-se que o mestre fala), mas por um gasto mínimo de uma operação de fala, nesse caso apenas seguido pelo ato repetido de levantar o braço. Assim, o “silêncio” corresponde a uma postulação do direito de calar-se, sem que com isto se tenha perdido o poder, o ato livre e soberano de não dizer nada. Assim, o ato de levantar o braço como uma dança ou logro, um silêncio que burla, um desvio, um gesto para tudo e para nada ao mesmo tempo, que marca uma

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liberdade da vontade, um despedir-se de toda crença para afirmar uma condição livre, uma espécie de “absoluta Qualidade do que não tem qualidades” (TAVARES, 2001, p. 71). Alain Badiou, por sua vez, no texto “A dança como metáfora do pensamento”, publicado no Pequeno manual de inestética, recupera, a partir de Nietzsche, esta mesma proposição – entre peso, o falso “espírito livre” como negação da vida, e corpo livre, desobediente, como desejo e afirmação da vida –, para pensar a dança como metáfora do pensamento subtraído de qualquer ideia de gravidade. Ele se pergunta: “Por que a dança ocorre a Nietzsche como metáfora obrigatória do pensamento?” E logo em seguida afirma que “a dança é o que se opõe ao grande inimigo de Zaratustra-Nietzsche, inimigo que ele designa como ‘o espírito de peso’. A dança é, antes de tudo, a imagem de um pensamento subtraído de qualquer espírito de peso” (BADIOU, 2002, p. 79). O crítico português José Gil também diz que a finalidade de qualquer bailarino é vencer o peso do corpo, e que a ausência do peso, a facilidade são de tal forma vividos pelo bailarino que ao mesmo tempo em que ele parece ter a propriedade de “um móbil no espaço”, parece também experimentar essa ausência de peso no interior do próprio corpo, “como se a sua textura se tivesse tornado espaço” (GIL, 2004, p. 18). Assim, José Gil faz referência a uma leveza que é própria do movimento dançado e que o bailarino, espécie de móbil, na sua sequência de movimentos, abre no espaço infinitas possibilidades de ausência de peso ou de gravidade, infinitas nuances de leveza. O fato é que o bailarino nunca vive o peso objetivo do seu corpo, do corpo inerte e vulgar, o peso do seu “cadáver”, mas a modulação de intensidades diferentes de leveza, energias de fluxo que deixam o corpo mais ou menos leve e que são vividas pelo bailarino como virtualidades. Desse modo, “vencer o peso, tal é o fim primeiro do bailarino” (GIL, 2004, p. 19). José Gil diz que Há uma leveza própria do movimento dançado; [...] O bailarino não vive nunca o seu peso objetivo, científico, o peso do seu corpo-objeto, o seu cadáver. Avalia a sua leveza atual por comparação com outras levezas que acaba de atravessar no quadro específico de certa sequência de movimentos: cada sequência abre múltiplas possibilidades de ausência de peso, diferentes das oferecidas por outras sequências. São

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a modulação, as transformações da energia de fluxo que tornam o corpo mais ou menos leve no interior de uma leveza adquirida (a da posição de pé e a do movimento dançado). As duas barreiras que limitam de fora a esfera do movimento – o peso real do corpo inerte; a leveza máxima nunca atingida – nunca são vividas pelo bailarino como dados atuais; mas apenas como virtualidades que, se se atualizassem, destruiriam o seu movimento dançado. O peso específico virtual é a resultante da soma destes dois vetores contrários (GIL, 2004, p. 21).

Esse esforço do bailarino para vencer o peso do seu corpo objetivo, corpo-objeto, demonstra ainda uma espécie de saída, um deslocamento da posição comum do corpo, de uma atitude comum, para um desequilíbrio do corpo, a dança como um Neutro, um desvio, uma abertura de sentido (levantar o braço, ato em si, ato incorporado, quando o braço é o próprio inteiro do corpo e, ao mesmo tempo, ato para nada). José Gil diz ainda que o bailarino “sai deliberadamente da postura do homem comum para se deslocar desde o início na dificuldade: desequilibra-se” (GIL, 2004, p. 21). Gonçalo M. Tavares, por sua vez, pergunta no fragmento 74 do Livro da dança, intitulado “Definição de função”, acerca do movimento dançado de sua escrita inserida no espaço contemporâneo da história e, também, ao mesmo tempo, fora da história: “O que é a dança que já não se deve dançar? / [...] / O que é o corpo que dança bem? / O que é o dançarino?” E responde, como se gritasse a si mesmo e de si mesmo, o escritor, que traz a si o milagre para fugir do seu peso de corpo-objeto e do seu cadáver: “É o COVEIRO! É o COVEIRO!” (TAVARES, 2001, p. 90). Outro exemplo, que pode prosseguir acerca dessa inserção, é o poema “Dansa”, com “s”, do livro 19. A inserção agora aparece de maneira formal na língua do poema, é a grafia da palavra que erra e se move, “metodicamente sem método”:

O poema “Dansa” faz parte do conjunto de poemas que formam o livro cinco, intitulado Homenagem, do livro 1 (2004).

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Dansa Tem S a palavra, pois certas curvaturas do mundo exigem alterações de grafia. O traço imprevisto obriga a parar a meio; E à paragem insólita chamarás insólito movimento. E ficarás contente. (TAVARES, 2005, p. 109).

Esse “erro” de grafia, essa célula que salta da origem, levanta a questão acerca de um problema de legitimação do termo: dançar é com “s”, para oscilar na curvatura do mundo, ou é com “ç”, para insistir na repetição do comum? A palavra grafada assim, com “s”, clama a sua revolução, a sua recusa, a sua emancipação. Ela demonstra por fora o que acontece por dentro, a sua animalidade: sair do comum, provocar um desequilíbrio: dançar. Dessa maneira, a partir do primeiro livro de Gonçalo M. Tavares, pode-se pensar a invenção do corpo no seu trabalho e o seu trabalho como um corpo-bailarino, o que sai do comum para provocar o desequilíbrio entre ficção e imaginação. A ideia é propor ler o corpo mais como esse desvio, como desequilíbrio, e menos simplesmente como ausência de peso e de gravidade. Uma tarefa da literatura e para a literatura, um modo de uso político e crítico da literatura construída com um arsenal de corpos misturados e moventes, é o que parece propor Gonçalo M. Tavares. Isso nos leva ainda a José Gil, quando ele diz que “este pequeno deslocamento marca o nascimento da arte ou, pelo menos, da sua possibilidade” (GIL, 2004, p. 22) e que o bailarino não se limita a conservar o equilíbrio comum, mas procura uma espécie de equilíbrio no desequilíbrio, quase que em um estado de desobediência do corpo, uma resistência, uma intensidade. Mas a luta para vencer o próprio peso do corpo, essa leveza que deve ser incorporada ao corpo do bailarino como uma ausência de peso no interior do corpo – o corpo tornado espaço –, não deve ser compreendida apenas como simples ausência de peso. Bem como a dança, o voo e a leveza não são apenas gestos que se opõem ao espírito de peso ou de gravidade, mesmo que possam ser também uma espécie de marco fundador, capaz de deslocar todos os marcos de fronteiras já que, segundo Nietzsche “quem, um dia, ensinar os homens a voar, terá

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deslocado todos os marcos de fronteira; as próprias fronteiras terão ido pelos ares para ele, que batizará de novo a terra – como ‘a leve’” (NIETZSCHE, 2006, p. 230). Para Nietzsche, além da dança apresentar a oposição mais radical ao espírito de gravidade e de ser capaz de dar à terra o seu novo nome, “a leve”, ela apresenta, especialmente, o corpo não forçado, livre e desconfiado, um corpo em estado de desobediência ou ainda, se pensarmos com José Gil, em desequilíbrio (levantar o braço como política, dizer que a literatura existe, apontar para uma resistência, parece propor Gonçalo M. Tavares). Badiou diz que esse corpo não forçado está em um estado de desobediência que se estende até mesmo às suas próprias impulsões, que a dança é “a mostração corporal da desobediência a uma impulsão” (BADIOU, 2002, p. 83, grifo do autor). Ele concebe a dança também como pensamento, um “pensamento como refinamento” e diz que essa reflexão está longe de qualquer princípio da dança como “êxtase primitivo ou agitações repetidas e descuidadas do corpo”, mas que “a dança metaforiza o pensamento leve e sutil, precisamente porque mostra a retenção imanente ao movimento e assim se opõe à vulgaridade espontânea do corpo” (BADIOU, 2002, p. 83). A vulgaridade seria toda impulsão que não é retenção, mas apenas um apelo corporal que é imediatamente obedecido e manifesto, um corpo obediente e incapaz de resistir a uma solicitação. Dessa forma, a dança seria um corpo subtraído não apenas de peso, mas também de qualquer vulgaridade. Esse é o corpo desenhado por Gonçalo M. Tavares em todo o seu projeto de escrita, um corpo de pensamento leve e sutil, corpo desobediente, não forçado e desconfiado, corpo subtraído de toda e qualquer vulgaridade, e que dança. E, seguindo as palavras de Badiou, “na dança concebida dessa maneira, a essência do movimento está no que não teve lugar, no que permaneceu não efetivo ou retido dentro do próprio movimento” (BADIOU, 2002, p. 82, grifo do autor). Assim, a dança apresenta-se como manifestação do que “não teve lugar”, da força do movimento retido no corpo, como um devir permanente – um pensamento como devir, como poder ativo e violento, na sugestão de Nietzsche –, muito mais do que a prontidão e exatidão dos movimentos em seus diversos desenhos exteriores. Nas palavras de Badiou: “Certamente, só se mostrará essa força no pró-

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prio movimento, mas o que conta é a legibilidade poderosa da retenção” (BADIOU, 2002, p. 82). Tanto é que, em uma passagem, Badiou recupera de Nietzsche o sentido de corpo não forçado e desconfiado como atribuição do corpo leve que dança: Podemos pensar então, adequadamente, o que se diz no tema da dança como leveza. Sim, a dança opõe-se ao espírito de peso, sim, é o que dá à terra seu novo nome, “a leve”, mas, definitivamente, o que é a leveza? Dizer que é a ausência de peso não leva longe. Deve-se compreender por leveza a capacidade do corpo de manifestar-se como corpo não forçado, não forçado até mesmo por si próprio, ou seja, em estado de desobediência a suas próprias impulsões. [...] A leveza tem sua essência, daí ser a dança a sua melhor imagem, na capacidade de manifestar a lentidão secreta do que é rápido. [...] Nietzsche proclama que “o que a vontade deve aprender é a ser lenta e desconfiada”. Digamos que a dança pode-se definir como a expansão da lentidão e da desconfiança do corpo-pensamento (BADIOU, 2002, p. 83, grifo do autor).

Badiou recupera ainda algumas imagens que aparecem em Nietzsche como fulguração desse corpo que dança, esse espírito “antes de mais nada”, que é o pensamento subtraído de qualquer espírito de peso e de qualquer vulgaridade como, por exemplo, a ave, que habitaria o interior do corpo, a fonte – porque o corpo dançante seria o corpo que jorra em estado permanente, um “fora do solo” e um “fora de si mesmo” (BADIOU, 2002, p. 80) –, ou ainda a criança, o corpo leve e inocente, “o corpo antes do corpo”. Para Badiou a dança é um estado de inocência porque é um corpo de antes do corpo e que também é esquecimento, porque é um corpo que esquece o seu próprio peso, a sua prisão. O corpo é ainda um novo começo, “porque o gesto da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo” (BADIOU, 2002, p. 79-80), a sua permanente fundação. Dentro dessa mesma ideia do corpo como esquecimento e ao mesmo tempo como eterno começar de si mesmo, como se constantemente inventasse seu próprio começo, Gonçalo M. Tavares, no fragmento 86 do Livro da dança, propõe uma espécie de interdição da memória e de retorno ao corpo sem início nem fim, arremessado no instante:

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86. interditar a memória. Tornar a inteligência bela é voltar à não inteligência. Só é belo o que não é inteligente; porque o inteligente é o não imediato: um passo atrás ou à frente, enquanto o belo é o instante, a superfície tão fina que frente igual a COSTAS, o início é o mesmo que o FIM. interditar a memória a memória é ocupação do espaço a memória é o não imediato, a memória é o inteligente. interditar pois a memória. O Corpo inteligente é inteligente mas não é corpo porque corpo é estar presente, agora, por completo, e o inteligente, repito o inteligente é o não-imediato, um passo atrás ou à Frente. a dança não tem Memória. A criatividade não tem Memória. O Corpo começa agora no momento que acaba. O Corpo começa no mesmo sítio que acaba. O corpo é 1 sítio e 1 tempo e depois 1 outro sítio e 1 outro tempo que não se recordam o sítio e o tempo anteriores. CORPO AMNÉSICO Esqueceu porquê aqui e agora. Aqui e agora e antes nada. Aqui e agora e depois nada. CORPO AMNÉSICO e sem projetos. Cortar-lhe a cadeira dos velhos e o nome donde se vê o FUTURO dos NOVOS. Um CORPO sem cadeira (não há cansaço porque antes não existiu) e UM CORPO sem VISÃO (o FUTURO é 1 espaço onde antes não se chegou). Sem visão não há nenhum lado onde se chegar, e sem cadeira não há sítio onde descansar, portanto só resta ao corpo ser todo aqui e agora e só resta ao corpo dançar. (Corpo a quem cortaram a cadeira e os olhos) (TAVARES, 2001, p. 104-105).

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“Interditar a memória”, diz o fragmento, interditar a memória de um corpo preso e que pesa, para que ele seja apenas superfície fina, instante, nem início nem fim, início e fim ao mesmo tempo, o gesto da dança que deve ser sempre como se inventasse um novo começo a partir do que não teve lugar, da força do movimento retido no próprio corpo. Gonçalo diz ainda que toda memória é ocupação do espaço, começo de espaço, uma memória inteligente que está sempre um passo atrás ou à frente e que, por isso mesmo, é um corpo não imediato. O corpo da dança, para Gonçalo M. Tavares, também é essencialmente sem memória – “a dança não tem Memória”, ele diz –, é um corpo circular e paradoxal – “O corpo começa agora no momento em que acaba” –, um corpo antes do corpo, sem inteligência, sem saber, sem ciência; corpo como acontecimento aqui e agora, no sítio de sua eclosão, um corpo-pensamento livre e que jorra, jamais alguém, mas carne, osso, corpo anterior ao sexo, corpo em sua nudez absoluta, a nudez de antes da exibição de qualquer ornamento, “nudez que não resulta de se despojar dos ornamentos, mas, ao contrário, da nudez tal como se dá ‘antes’ do nome” (BADIOU, 2002, p. 91). É a dança como metáfora do pensamento e como outra inserção da escrita no espaço-tempo contemporâneo, como um pensamento em relação, pensamento leve, que “apresenta-se sem relação com outra coisa senão consigo mesma, na própria nudez de seu surgimento” (BADIOU, 2002, p. 90, grifo do autor), no anonimato dos corpos, no apagamento dos sexos, como aparece no fragmento 29, que na edição brasileira é intitulado “Treinar”: 29. Treinar a nudez. Pintar de céu a nudez. Pintar de sexo a nudez. Desenhar na nudez a inocência. Desenhar a Fornicação na nudez. a nudez clássica igual à nudez actual. experimentar roupas nuas. confirmar que a nudez é mais nua que a roupa nua. Treinar a nudez. Ser melhor NU que ontem se foi nu, ser melhor nu que ontem se foi nu. (TAVARES, 2001, p. 40).

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Mais uma vez Gonçalo M. Tavares faz uso do verbo treinar (exercitar, acostumar, adestrar, versar, educar, ensaiar), agora para propor um ensaio da nudez, a repetição da nudez, bem como “experimentar roupas nuas”, desnudar-se de todo e qualquer ornamento para sentir no corpo profundo a nudez. Interessante também é que no fragmento de Gonçalo pode-se ser melhor ou pior NU, por isso a importância de treinar a nudez, de colocar nudez na dança, até que o corpo saiba-se NU de vez, e uma nudez sem julgamento ou valor, que tanto pode ser “céu”, como pode ser “sexo”, “inocência” ou “fornicação”. É uma nudez expandida, pois ele sugere experimentar roupas nuas; assim, se pode pensar em uma escrita que seja vestir a nudez com a própria nudez, o sentido com o não sentido do sentido. É como se a dança, como afirmou Badiou, fosse sempre uma nova invenção de começo, nem antes e nem depois, antes nada e depois nada, um corpo “amnésico”, subtraído de todo saber, de toda memória. Badiou lembra a conhecida proposição de Mallarmé10 nas suas observações críticas de 1886, intituladas “Ballets”, quando este diz que a bailarina não é uma mulher que dança, visto que não é uma mulher, mas um corpo anônimo; e que não dança, pois não é a realização de um saber, mas um “corpo como eclosão”, um “esquecimento milagroso”. Mallarmé diz ainda que o corpo anônimo que dança é uma espécie de poema liberto de todo aparelho do escriba, ou seja, um poema não inscrito, livre e que dança sem deixar vestígio, uma espécie de corpo desobediente, subtraído de qualquer vulgaridade, em uma relação direta entre ser e desaparecer – um “hieróglifo” que dança, uma “aparição como acontecimento”, uma invenção do corpo de intensidade, do corpo profundo e paradoxal, como parece ser o projeto de Gonçalo M. Tavares com a sua literatura. Sobre essa proposição de Mallarmé, Badiou diz: O que se pronuncia aqui é a dimensão subtrativa do pensamento. Todo pensamento verdadeiro é subtraído ao saber onde se constitui. Mallarmé deixou alguns breves escritos sobre a dança, algumas observações críticas – as prosas de circunstâncias –, que foram destinadas a revistas de pouca circulação na época, mas que mais tarde foram incluídas nos capítulos Crayonné au théâtre e Ballets do livro Divagations, publicado em 1897. 10

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A dança é metáfora do pensamento precisamente porque indica por meio do corpo que um pensamento, na forma de sua aparição como acontecimento, é subtraído a toda preexistência do saber. [...] “A dançarina não dança” quer dizer que o que se vê não é em momento algum a realização de um saber, embora de parte esse saber seja sua matéria, ou seu apoio. A dançarina é esquecimento milagroso de todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a dançarina suprime toda dança que sabe porque dispõe de seu corpo como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão (BADIOU, 2002, p. 90, grifos do autor).

Também Valéry, em Degas Danse Dessin, publicado em 1935, faz referência a essa mesma proposição de Mallarmé. Ele diz que seu encantamento com a dança pode partir de outro lugar, muito além da cena comum, fora do palco e fora do solo como, por exemplo, diante de uma tela onde se encontram grandes Medusas aparentemente fixas e intocáveis. Valéry abre a perspectiva da dança para além do corpo que dança, efetivamente, da mulher que dança e põe em cena todo o seu saber de bailarina, quando diz que uma das mais livres, flexíveis e voluptuosas das danças possíveis apareceu-lhe em uma tela, em que não se encontravam mulheres e não se dançava, mas em que se viam Medusas tão fluidas que pareciam representar todo ideal de mobilidade, em seus “corpos de cristal elástico” que parecem se mover em “espasmos ondulatórios”, como se estivessem no dia da grande exibição – “vira-se ao avesso e se expõe, furiosamente aberta” (VALÉRY, 2003, p. 39). O que pode nos levar ao fragmento 95 do Livro da dança, “SER PROFUNDO no dia da EXIBIÇÃO Profunda” (TAVARES, 2001, p. 115). Diz Valéry: Mallarmé disse que a bailarina não é uma mulher que dança, pois ela não é uma mulher, e não dança. [...] A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes Medusas: não eram mulheres e não dançavam.

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Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, translúcida e sensível, carnes de vidro alucinadamente irritáveis, cúpulas de seda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas percorridas por ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo em que se viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quanto o fluido maciço que as comprime, esposa, sustenta por todos os lados, dá-lhes lugar a menos inflexão e as substitui em sua forma. Lá, na plenitude incompressível da água que não parece opor nenhuma resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se distendem, lá recolhem sua radiante simetria. Não há solo, não há sólidos para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é possível apoiar-se por todos os pontos que cedem na direção em que se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus corpos de cristal elástico, não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos que se possam contar... Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimento, do veneno de suas forças excedidas, da presença ardente de olhares carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo, o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela grande Medusa, que, por espasmos ondulatórios de sua torrente de saias engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente, rejeitando todos seus folhos vibráteis, seus vestidos de lábios recortados, vira-se ao avesso e se expõe, furiosamente aberta. Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga em seu espaço, e sobe como balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e o ar mortal (VALÉRY, 2003, p. 38-39).

Interessante pensar o quanto Gonçalo M. Tavares também compõe a sua imagem da dança para além da ideia de um corpo feminino que dança e expõe todo o seu saber, para além do palco e do solo, seguindo essa sugestão de Valéry. Mas a figura que Gonçalo formula ou o seu corpo inventado no texto, que é também o texto como um corpo, se afasta da descrição feita por Valéry – ainda que se trate, como propõe Valéry, de um corpo leve de “estranha e impudica insistência” (VALÉRY, 2003, p. 39), que é afirmação da vida, e que se

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expõe, furiosamente aberto, talvez no instante da “EXIBIÇÃO Profunda”, porque é nesse momento que entendemos que, para Gonçalo M. Tavares, não há nenhum corpo completo, que ao corpo que faltam movimentos chamamos de corpo “INcompleto” (TAVARES, 2001, p. 91) e ao outro chamamos de deus. Mas que, principalmente, esse deus não se exibe. Gonçalo retoma a ideia de que o corpo que dança – no seu “projeto para uma poética do movimento” – é um corpo de osso e de articulação, um corpo que morre, um corpo sem metafísica, mais perto do chão, um corpo furioso e sólido, mas também gasoso e possível de evaporar, enquanto ensaia uma espécie de “dança desenfreada.” (NIETZSCHE, 2006, p. 268). Logo, o projeto literário de Gonçalo M. Tavares é também osso, carne, articulação, travessia violenta, paradoxo e oposição de termos, mas para desfazê-los por dentro, em contato, em uma armadilha para o sentido. Uma poética do osso imprevisto que sobrevive como movimento. Ele retoma essa questão no fragmento 50: Quando o Movimento acabar o osso sobrevive. O movimento da dança, o poético no oxigênio, deve MOSTRAR que o osso SOBREVIVE, o osso permanece quando acabar o Movimento. (TAVARES, 2001, p. 62).

O fragmento trata da sobrevivência do osso, ele “SOBREVIVE” e permanece quando se retira a pele e o movimento termina. O osso nu agora é pele, o que volta a se exibir é de novo a pele. O osso nu é o que nada tem de flexível, ele é o único sólido que pode se impor às bailarinas absolutas de Valéry. Tanto que no fragmento 21 a carne que aparece como possibilidade para a dança, sobrevive e permanece quando se retira a pele. A carne nua é pele, o que volta a se exibir é de novo a pele. “A pele é cá fora e mostra-se” (TAVARES, 2001, p. 92). Diz ele no fragmento 76, que tem um título que indica evidência: “Isso é claro”. A dança, na escrita de Gonçalo M. Tavares, é a indicação de uma “poética dos ossos e dos Mortos”, porque ela é o osso nu que sobrevive quando o movimento acaba; é a carne nua que sobrevive quando o movimento acaba; osso e carne nus que se exibem como pele, o milagre. Segue o fragmento 21:

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21. Meter na dança carne. a carne é igual no Feminino e no Masculino. Descobrir o corpo anterior ao feminino e descobrir o corpo anterior ao Masculino. A carne é o corpo anterior ao sexo. Meter carne na dança. Deixar a dança ser primeiro que o corpo. Ao corpo anterior ao Feminino e ao corpo anterior ao Masculino é impossível acrescentar algo novo. Não abrir o exterior do corpo para a carne entrar; Não abrir o exterior do corpo para deixar sair a CARNE. Não meter CARNE na Dança. Não tirar CARNE da dança. Deixar a dança ser Naturalmente Carne. CARNE: a poética dos ossos e dos Mortos é igual: CARNE. a Matéria da Poética obedece aos instrumentos de Medida. Exibir as Medidas da Alma. A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as Medidas da alma. A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as Medidas da alma. (TAVARES, 2001, p. 32).

É possível verificar, porém, a partir do fragmento 21 intitulado “Medidas do corpo”, como Gonçalo M. Tavares elabora mais uma medida para sua escrita entre o corpo e a dança. A escrita como um ponto de mesura, de eclosão, de abertura, o seu acontecimento antes do corpo, como aquele estado de inocência ou de jorro permanente do qual nos fala Nietzsche e Badiou: como o gesto do bailarino ao dispor do corpo como se ele fosse inventado, quando a dança é o corpo subtraído de todo saber de um corpo, de toda ciência. É o corpo eclodido a partir do esquecimento de todo o seu saber, eis o milagre. E assim, o corpo como acontecimento paradoxal, ao retirar a pele, termina por “Exibir as medidas da alma” e passa a ser o osso nu e a carne nua, eis de novo o milagre. A escrita vem como a força de um movimento retido e sem lugar, resultado de um “Ser Profundo nos ENSAIOS” (TAVARES, 2001,

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p. 115); a escrita segue a ideia de um corpo não inteligente, AMNÉSICO e sem projetos, porque é aqui e agora, nem antes e nem depois. Não por acaso Gonçalo M. Tavares escreve no breve fragmento de número 82 – que na edição brasileira ganha o significativo título de “Exclamação” 11, ou seja, algo que se diz com ênfase ou em voz alta e que exprime admiração ou alegria –, uma espécie de acontecimento do corpo aqui e agora, como se a força do não ter lugar do movimento retido, em estado de desobediência, eclodisse em movimento violento e espantoso, em dança, em exclamação para todos os lados, como se também perdesse de vista a sua condição de sujeito do enunciado, para montar o paradoxo em direção a um sujeito da enunciação: Alguém me aconteço! Alguém me aconteço. (TAVARES, 2001, p. 99).

O verso-exclamação “Alguém me aconteço!”, tal qual o gesto de levantar o braço (verso e gesto para nada, como talvez seja o lugar da literatura agora: para nada, logo para tudo), também parece conservar o segredo no corpo, a ausência de sexo e de ornamento na indeterminação do pronome “alguém” que produz um acontecimento no corpo; assim como levantar o braço é também um gesto indeterminado. Tudo não passa de uma tentativa de incorporação, um exercício de releitura da imagem do escritor como um corpo que se lança no mundo a partir do que escreve e a partir, principalmente, do que publica daquilo que escreve. Onde o acontecimento da escrita? Badiou diz justamente que o movimento desse corpo em eclosão, em exclamação e que jorra sugere o seguinte: “A dança seria a metáfora de que todo pensamento verdadeiro depende de um acontecimento. Pois um acontecimento é precisamente o que permanece indecidido entre o ter-lugar e o não-lugar, um surgir que é indiscernível de seu 11 Na versão para a edição brasileira de o Livro da Dança (Editora da Casa, 2008) Gonçalo M. Tavares desloca a exclamação para o final do poema: “Alguém me aconteço./ Alguém/ me/ aconteço!” (TAVARES, 2008, p. 99).

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desaparecer” (BADIOU, 2002, p. 84). E é aqui onde parece residir o milagre da escrita pensada como um corpo que dança, entre planejar o milagre e ensaiar, pois o corpo que dança e tão logo desaparece é também o corpo que dura, o corpo infinito. José Gil, por sua vez, diz que “não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia, uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento” (GIL, 2004, p. 13). Por isso o corpo leve, desobediente e soberano, esse corpo de escrita inventado por Gonçalo M. Tavares, “um bailarino subtil”, atravessa furiosamente todos os seus livros, sem repouso, em uma dança desenfreada, por dentro do seu permanente começar, como uma aparição sutil, um fantasma ou um esquecimento milagroso. Ou na sugestão de Valéry, como uma espécie de movimento ondulatório de saias engrinaldadas, que o bailarino levanta repetidas vezes com uma estranha e impudica insistência, em um jogo entre deixar o corpo à mostra e exposto, e esconder o corpo, fazer o corpo desaparecer. Badiou afirma que o corpo dançante tal como ele advém no sítio, tal como se espaça na iminência, “é um corpo-pensamento, jamais é alguém” (BADIOU, 2002, p. 87, grifo do autor). É bom lembrar que para Gonçalo M. Tavares o pensamento, o ato de pensar, é – ainda – o nosso gesto de resistência agora, como se um pensamento fosse – com o que afirma Nietzsche – leve e sutil, mas igualmente desconfiado e desobediente. E vejamos que, acerca desses corpos sugeridos por Badiou, Mallarmé já declarara que eles são sempre símbolo, apenas, não alguém. Por isso Gonçalo escreve tão incisivamente que “Alguém me aconteço!”. CoNSiDERAÇÕES fiNAiS O que parece é que Gonçalo M. Tavares apresenta, a partir desse primeiro livro, o Livro da dança, que ele define como “projeto para uma poética do movimento”, e em todos os livros posteriores a este, um texto que seria, antes, um corpo que cai e que também se eleva, como um corpo-móbil flexível e que dança, um corpo monstruoso, soberano, anônimo, desobediente, impossível, como uma criança travessa, sem gravidade e sem memória, que parece negar toda a ideia

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de corpo orgânico, vulgar, dócil, obediente – o falso espírito livre, espírito cativo e “ridiculamente superficial” do qual fala Nietzsche. De outra maneira, pensando com José Gil, o projeto de Gonçalo M. Tavares aponta para um gesto dançado que abre no espaço a dimensão do infinito, pois “seja qual for o lugar onde se encontra o bailarino, o arabesco que descreve transporta o seu braço para o infinito” (GIL, 2004, p. 14), pois, como já foi visto, o corpo do bailarino é sempre transportado pelo movimento em um gesto que começa antes dele, do próprio movimento, e que se prolonga depois dele. José Gil diz que “tudo se passa no espaço do corpo do bailarino” (GIL, 2004, p. 14) que abre buracos no espaço comum, que faz furos no espaço comum, vulgar, para abrir nele um campo de ventilação, de ar, uma espécie de estado de desobediência, de queda, de desequilíbrio, de quebra do movimento que provocará sempre outros movimentos, pois o gesto da dança inventa sempre novos começos, como um corpo que jorra para fora de si mesmo. Por esses e outros tantos desdobramentos podemos pensar que Gonçalo M. Tavares faz uso de um procedimento singular, como tarefa, da e na sua escrita, que é o de abrir o corpo da palavra, da frase, como um bailarino enraivecido em uma travessia violenta (a expressão é de Nietzsche), até projetá-las para fora, EXIBI-LAS, e armar um espaço em cada uma delas como um corpo que busca alcançar as intensidades mais altas, um corpo que é um círculo de desejos. José Gil chama a esse procedimento, na dança, de “plano de imanência da dança”, que se dá quando as ações do corpo já não se distinguem dos movimentos do pensamento, e isso pode ser tomado como uma consciência do corpo; corpo que passa a ser um corpo-pensamento, que se abre e se fecha, que pode ser atravessado por diferentes fluxos de vida; corpo que é uma pura afirmação da vida. Para José Gil, “dançar é criar a imanência graças aos movimentos” (2004, p. 44).

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REfERêNCiAS ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2003. (Coleção Espírito crítico). BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. BARTHES, Roland. O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: M. Fontes, 2003. BATAILLE, Georges. La felicidad, el erotismo y la literatura: ensayos 19441961. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Ed., 2008. GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa: Relógio D’Água, 1987. GIL, José. Movimento total, o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004. NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. O caso Wagner. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. v. 1. NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SÉNECA. Cartas consolatórias. Trad. Cleonice Furtado de Mendonça. Campinas: Pontes, 1992.

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TAVARES, Gonçalo M. Breves notas sobre ciência. Lisboa: Relógio d’Água, 2006. TAVARES, Gonçalo M. A colher de Samuel Beckett e outros textos. Porto: Campo das Letras, 2002. TAVARES, Gonçalo M. O humor e ironia com rigorosa habilidade e disciplina: entrevista. Jornal Rascunho, Curitiba, 5 jan. 2010. TAVARES, Gonçalo M. Ler para ter lucidez: entrevista. Entrelivros, São Paulo, n. 29, set. 2007. Entrevista concedida a Joca Terron. TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Florianópolis: Ed. da Casa, 2008. TAVARES, Gonçalo M. 1. Lisboa: Relógio D’Água, 2004. TAVARES, Gonçalo M. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. Trad. Christina Murachco, Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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CAio PRADo JR. E o iNtELECtuAL mARxiStA HoJE Marco Aurélio Nogueira

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O presente artigo propõe-se a dialogar com a obra e a trajetória de Caio Prado Júnior, um dos mais importantes intelectuais marxistas do Brasil. A intenção não é proceder a uma avaliação em detalhe de sua produção, nem analisar as relações que essa produção teve com a época e com as opções políticas do historiador, trabalho que já foi realizado por diversos pesquisadores. Pretendese, em vez disso, “usar” seu percurso e seu estilo para refletir livremente sobre alguns traços do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto, tratado aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os intelectuais. Palavras-chave: Caio Prado Jr.; intérpretes do Brasil; Marxismo This article proposes to engage in dialogue with the work and the trajectory of Caio Prado Júnior, one of the most influential historians and Marxist intellectuals of Brazil. The intention is not to evaluate his production in detail, nor follow the relationships she had with the Brazilian society and the historian’s political options, something already conducted by several researchers. Instead, its intention is to “use” his trajectory and style to freely reflect on some traces of Marxism in Brazil and especially on certain dilemmas inherent in the performance of the Marxist intellectuality. Caio Prado Jr. will, therefore, be treated here as a parameter for a broader reflection on the intellectuals. Keywords: Caio Prado Jr.; Brazilian studies; Marxism

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iNtRoDuÇAo Na atual época histórica, a melhoria da capacidade de compreensão do mundo tornou-se uma exigência. Não podemos nos contentar em ser meros consumidores de informações. Também não é suficiente atuar de modo excessivamente especializado, como se o domínio verticalizado de um único campo de saber bastasse para agir sobre o mundo. Devemos nos empenhar para ir além de informações e conhecimentos especializados, organizando-os em um quadro mais abrangente e aberto para a totalidade da experiência social. De certo modo, estamos sendo obrigados a viver como intelectuais, ou seja, como pessoas que fazem da relação com as ideias e os pensamentos uma espécie de pão cotidiano. Dentre os “clássicos” do pensamento social brasileiro, Caio da Silva Prado Júnior (1907-1990) ajusta-se como uma luva nessa consideração inicial. Ele não foi somente um historiador, e certamente não foi um historiador acadêmico, ainda que sua obra tenha sido fundamental para que uma historiografia acadêmica se consolidasse entre nós. Foi seguramente um historiador no melhor sentido da palavra: ajudou-nos a descobrir o Brasil, quer dizer, desvendou-nos o modo como nos tornamos brasileiros, o legado que recebemos da experiência histórica e os problemas que o século XX teria pela frente. Mas não se limitou a isso. Foi também geógrafo, escritor, político e editor, para nos lembrarmos das atividades profissionais a que se dedicou. E em cada uma dessas áreas, atuou de forma singular, sem reproduzir mecanicamente os padrões associados à sua classe social, às suas origens sociais, e acima de tudo sem perder de vista a sociedade como um todo. Foi, em suma, um intelectual na melhor acepção da palavra. No texto que se segue, não se pretende avaliar o teor da obra de Caio Prado Jr., nem acompanhar as relações que ela manteve com a sociedade brasileira ou analisar as opções políticas do intelectual, trabalho já realizado por diversos pesquisadores. Pretende-se, em vez disso, “usar” sua trajetória para refletir livremente sobre alguns traços do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto, tratado aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os intelectuais.

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1 À PRoCuRA DA REvoLuÇÃo buRGuESA Caio Prado não foi um intelectual que se manteve recluso em alguma esfera superior, sem contato vivo com a sociedade ou alheio à agenda da época. Bem ao contrário, foi um intelectual público, que viveu em contato corporal com seu tempo, integrado às lutas sociais e às questões que se debateram ao longo de um importante trecho do século XX. Foi também um intelectual marxista. E como marxista, envolveu-se intelectualmente com a política e com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nessa condição, atuou como um organizador de cultura, seja como homem de partido, escritor e historiador, seja como editor. Tudo isso em uma fase decisiva da vida nacional, entre 1930 e 1980, anos que assistiram à consolidação do capitalismo no Brasil mas que não se caracterizaram pela estabilização de uma relação política e social com a democracia, nem pela sedimentação no país de uma cultura democrática. Foram anos de desenvolvimento econômico, de urbanização, de redefinição das relações entre o campo e a sociedade, de afirmação das modernas classes sociais no Brasil – ou seja, anos em que a vida moderna se disseminou pela sociedade. Mas não foram anos de democratização política: não houve consolidação de um sistema democrático de governo, de práticas democráticas, de modos democráticos de pensar e fazer política, nem mesmo de ampliação categórica do sufrágio. Duas décadas de democracia representativa (1946-1964) terminaram por simbolizar uma espécie de espasmo em uma longa noite de desenvolvimento econômico combinado com autoritarismo político, de capitalismo induzido e sem democracia. Esse contraste entre desenvolvimento econômico-social e desenvolvimento político tingiu toda a história brasileira. Não foi um acaso, portanto, que tenha aparecido em posição de destaque na elaboração teórica de Caio Prado, ainda que nem sempre de forma explícita ou adequada. O historiador fez dele, devidamente adaptado, uma espécie de chave para compreender a história brasileira, que ele via como envolvida por um processo em que o desenvolvimento se fazia sem rupturas radicais, reiterando o passado e com isso travando o futuro. Ao longo do tempo, teriam sido dois os efeitos principais desse “modelo” de desenvolvimento.

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Em primeiro lugar, o processo conservador de desenvolvimento dificultava que o passado terminasse de passar, ou seja, ficasse para trás. Como ele escreveu em um de seus livros, vivemos a “assistir pessoalmente às cenas mais vivas de nosso passado”, frase com que, segundo ele, um professor francês havia definido os brasileiros como um povo a ser invejado pelos historiadores, que podiam trabalhar com o passado como se ele estivesse presente o tempo todo. Caio Prado sempre reiterou sua hipótese de trabalho: entre nós, é enorme a capacidade de resistência e reprodução da velha estrutura colonial, fonte de tantos problemas e de tantos desafios teóricos e práticos. Na “Introdução” redigida para Formação do Brasil contemporâneo, cuja primeira edição é de 1942, ele assim se expressou: Observando-se o Brasil de hoje, o que salta à vista é um organismo em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em linhas definidas; que não “tomou forma”. É verdade que em alguns setores aquela transformação já é profunda e é diante de elementos própria e positivamente novos que nos encontramos. Mas isto, apesar de tudo, é excepcional. Na maior parte dos exemplos, e no conjunto, em todo caso, atrás daquelas transformações que às vezes nos podem iludir, sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até nos admira de aí achar e que não é senão [o nosso] passado colonial (PRADO JR., 1970, p. 11).

Em segundo lugar, o mencionado contraste iria se traduzir em déficit de subjetividade política, problematizando o protagonismo das classes sociais. A sociedade ficava como que sem energia para produzir, tanto entre as classes dominantes quanto entre as camadas subalternas (escravos, brancos marginalizados, agregados, desocupados, trabalhadores subalternos, operários), sujeitos políticos com competência para desenvolver ação consequente e eficaz, defendendo seus interesses mas também contribuindo para plasmar o país. O historiador se voltava para o Brasil do século XIX, mas a frase parecia escrita para toda uma época: na análise dos movimentos insurrecionais da primeira metade do século XIX, e mesmo depois, na luta abolicionista, por exemplo, ele registra “a ineficiência política das camadas inferiores da população brasileira”, ou mesmo sua “atitude revolucionária inconsequente”.

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Nem os negros nem a população livre das camadas médias e inferiores estavam em contato com fatores capazes de lhes dar organicidade e consciência política. Tais setores, sem coesão, sem ideologia claramente definida, mesmo quando alcançam o poder, tornam-se nele completamente estéreis. Em todos os movimentos populares [do período imediatamente posterior à Independência], o que mais choca é sua completa desagregação logo que passa o primeiro ímpeto da refrega (PRADO JR., 1977, p. 60-61).

O mesmo raciocínio poderia ser estendido para as classes dominantes, que nunca souberam elaborar politicamente seus interesses e por isso nunca apresentaram um projeto, uma ideia de país, com que convocar (e subordinar) os demais grupos e setores sociais. Tal modo de pensar foi importante para que se aperfeiçoasse o entendimento da revolução burguesa no Brasil e da trajetória seguida pelo país rumo à modernidade. Tornou-se uma das decisivas influências da historiografia e do modo brasileiro de pensar o Brasil. Caio Prado Jr. tratou em um registro forte, absolutizado, a ideia de que o passado não termina nunca de terminar, o que o levou, por exemplo, a dar pouca atenção às transformações ocorridas na sociedade brasileira a partir de 1930. Foi bastante criticado por ter empreendido análises que insistiram exageradamente no prolongamento do capitalismo mercantil, de base colonial, no país. Não há em seus escritos a consideração da afirmação industrial na economia brasileira, como se o capital tivesse parado no tempo. Sequer trabalharia a hipótese da industrialização retardatária, com a qual teria podido equacionar o tema. O Brasil, para ele, mesmo depois de 1964, permanece ancorado no passado, capitalista com certeza, desde sempre, mas sem pujança industrial e sem capitalização radical do mundo agrário. Com isso, não faltariam críticas e registros ao que se chamou de seu “marxismo estranho” (SANTOS, 2001). Há, de fato, uma limitação em seu modo de conceber o desenvolvimento capitalista no Brasil. Vista em grande angular, porém, sua concepção teve a vantagem de acentuar (de forma unilateral, digamos assim) o peso do passado na história brasileira. Ofereceu um retrato do Brasil que desautorizava qualquer tipo de ilusão ufanista, qualquer

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idealização ou simplificação analítica, funcionando como um alerta para algumas de nossas dificuldades. Não estaria Caio Prado, com ela, querendo enfatizar que, no Brasil, dada a falta de uma subjetividade política consistente, o político não poderia funcionar como fator de estruturação social e desfecho histórico? Que o país integra uma história feita mais por “fatos” que por escolhas e construções políticas deliberadas, mais por “processos” que por “projetos”? Sua ênfase no peso do passado indicaria, assim, que no Brasil moderno a condição periférica, de base colonial, entranhouse em todas as práticas e instituições, condicionando a marcha mesma da modernização e tingindo de incoerência e imperfeição a lógica da acumulação capitalista, ao menos até certo trecho do caminho. O passado pesado entrelaçou-se com ela e deu origem a formas inusitadas de vida moderna, potencializando os efeitos da “desagregação política” dos movimentos populares e da precária subjetividade política das classes sociais. O fato de Caio Prado Jr. ter sido um intelectual marxista certamente facilita o entendimento dessas suas hipóteses de trabalho e de seu estilo como historiador. O estudo do capitalismo como modo de produção, como sistema social e como Estado distingue o marxismo como teoria. Ao adotá-lo como ferramenta de trabalho, o intelectual foi inevitavelmente projetado para esse campo de observação, com o que ficou incentivado a buscar na história brasileira os elos e as contradições que a ativavam e a revelavam como um todo complexo, explicando seus padrões de desenvolvimento, seus atores, suas estruturas de funcionamento. Mas Caio Prado foi um marxista singular, e não somente “estranho”. Antes de tudo porque não se deixou modelar pelo marxismo realmente existente, pelo modo como a época dizia que se devia ser marxista. Especialmente entre os anos 1930 e 1940, e mesmo depois, o marxismo ainda não havia construído para si uma prática intelectual propriamente dita. Os marxistas eram, em sua maioria, revolucionários e políticos profissionais que também produziam teoria. Suas referências estavam na revolução, no partido político, na classe operária, no movimento comunista internacional, tudo o mais deveria ser um desdobramento disso. Faziam ciência, com certeza, mas também seguiam as orientações políticas e partidárias, concedendo algo a elas, ainda que fosse de forma protocolar.

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Quando Caio Prado publicou seu ensaio de interpretação materialista do Brasil (Evolução política do Brasil, que é de 1933), o ambiente intelectual não sugeria nem referendava a visão que ele começaria a adotar: a do desenvolvimento capitalista conservador e a do déficit de subjetividade política das classes subalternas. Muito ao contrário. Com a exceção do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), todos afirmavam a aproximação inevitável do socialismo como decorrência do desenvolvimento e da crise do capitalismo. Os subalternos, partido revolucionário e classe operária à frente, pareciam prontos para tomar o poder e reformar o mundo. Havia, portanto, no movimento comunista da época, mais confiança e empolgação do que realismo, rigor e distanciamento crítico, mais “otimismo da vontade” que “pessimismo da inteligência”, usando a bela expressão de Romain Rolland insistentemente empregada por Gramsci. É verdade que, com a ascensão triunfante do nazifascismo na Europa e no Japão, o clima de confiança cedeu. No Brasil, a derrota rápida da insurreição de 1935 ajudou a que se percebesse o quanto havia de ingenuidade nos marxistas. Mesmo assim, porém, o distanciamento crítico não chegou propriamente a preponderar, até porque também foi prejudicado por outros dois traços comuns do marxismo da época: o “obreirismo”, que supervalorizava a cultura e os procedimentos intelectuais de uma classe operária vista em abstrato, e o apego ritual e quase religioso às orientações recebidas dos centros oficiais do movimento comunista internacional. Tudo somado, entre as décadas de 1920 e 1940 irá se manifestar aquela característica que Leandro Konder brilhantemente chamou de “derrota da dialética”. Mais preocupado em “preparar os militantes políticos para a aceitação disciplinada das palavras de ordem emanadas da direção” (p. 44), o marxismo predominante perderia sua dimensão dialética e terminaria por ser praticado de modo tosco, sem vigor teórico (KONDER, 1988, p. 44-45). Seguindo à margem desse processo, Caio Prado Jr. adotaria um marxismo muito pessoal, que de algum modo o imunizou contra as tendências gerais. Foi sempre inimigo declarado do uso mecânico e doutrinarista de esquemas revolucionários para “enquadrar” os fatos brasileiros, como se fosse possível transpor para os trópicos, sem mais nem menos, elaborações válidas para outros contextos históricos ou

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como se fosse procedimento metodológico válido construir e manusear conceitos a priori, sem raiz na observação criteriosa dos fatos. Em sua obra, aliás, não há discussão doutrinária ou embates em torno dos textos clássicos do marxismo. A história – a realidade social em seu vir-a-ser – sempre foi para ele mais importante. Uma conhecida passagem de A revolução brasileira (publicado em 1966) é exemplar de seu modo de pensar: No Brasil, talvez mais que em outro lugar, a teoria da revolução, na qual direta ou indiretamente, deliberada ou inadvertidamente, se inspira todo pensamento brasileiro de esquerda, e que forneceu mesmo os lineamentos gerais de todas as reformas econômicas fundamentais propostas no Brasil, a teoria marxista da revolução se elaborou sob o signo de abstrações, isso é, de conceitos formulados a priori e sem consideração adequada dos fatos; procurando-se posteriormente, e somente assim – o que é o mais grave – encaixar nesses conceitos a realidade concreta. Ou melhor, adaptando-se aos conceitos aprioristicamente estabelecidos, e de maneira mais ou menos forçada, os fatos reais (PRADO JR., 1978, p. 33).

Não há confiança e empolgação em suas análises, por mais que ele também tenha sido seduzido pela revolução que ocorria na União Soviética e por mais que tenha estabelecido relações regulares e bastante disciplinadas com o Partido Comunista Brasileiro. Ao contrário, há nele muita prudência prospectiva e muito realismo político. A “teorização às avessas que vai dos conceitos aos fatos e não inversamente” pesaria como uma bola de chumbo sobre as esquerdas do país, impedindo-as de alcançar formulações que estivessem efetivamente sintonizadas com as situações concretas: A política revolucionária ficou exposta ao sabor das circunstâncias imediatas, oscilando continuamente entre os extremos do sectarismo e do oportunismo, e sem uma linha precisa capaz de orientar seguramente, em cada momento ou situação, a ação revolucionária (PRADO JR., 1978, p. 34).

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Também por isso, seu relacionamento com o partido seria quase sempre polêmico, repleto de divergências e discrepâncias teóricas substantivas, como já foi assinalado por diversos estudiosos do tema (SANTOS, 2001; RICUPERO, 2000; REGO, 2000; SECCO, 2008). 2 SER iNtELECtuAL E mARxiStA A postura de Caio Prado Jr. como marxista e como comunista esclarece importantes traços de sua biografia e de sua obra historiográfica. Oferece-nos uma ótima oportunidade para dar destaque a alguns dilemas do intelectual e particularmente do intelectual marxista no Brasil, do homem de ideias que se projeta para o campo da atuação política. Mas o que é o intelectual marxista, que traços o particularizam no universo cultural? 1. Antes de tudo, o intelectual marxista vale-se de um método de investigação, de uma perspectiva metodológica: a totalidade concreta, a historicidade dialética, perspectiva que Marx assimilou da filosofia de Hegel e desenvolveu em sentido materialista. O marxismo é uma teoria que persegue o alcance de “sínteses” por meio de um trabalho de unificação das múltiplas determinações que organizam os processos sociais. O tratamento do real como um todo complexo e articulado faz com que o marxista rejeite a unilateralidade, o esquematismo e a simplificação. Para ele, o ser social é um produto humano, historicamente determinado, complexo e contraditório, que precisa ser interpelado como um todo. Causalidades simples tornam-se assim tão precárias quanto o determinismo mecânico, quer dizer, a tentativa de fazer com que tudo derive de uma única determinação, seja ela a economia, a política, as ideias ou a tecnologia, por exemplo. As causalidades, na verdade, traduzem-se no marxismo como interações dialéticas, que devem ser apreendidas historicamente. O modo de produção (a economia) é um decisivo fator de determinação, mas não é o único fator com potência explicativa. Nem o único, nem necessariamente o mais importante. Forças não econômicas jogam um peso igualmente decisivo na história, a começar da política, seja como ação política seja como superestrutura e institucionalidade política. Para o marxismo, o pensamento se afirma enquanto movimento, sendo, portanto, sempre incompleto: não está vazio de verdade, mas

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não detém toda a verdade. A razão procede por sucessivas aproximações e alcança verdades que são sempre parciais e provisórias. Por isso, o marxista valoriza a dúvida, a incerteza, a necessidade de rever sempre o que se considera descoberto ou conhecido. Ao mesmo tempo, recusa a ideia de que a ciência pode tudo, que é a única forma de saber, tão perfeita que dispensaria até mesmo a arte, a sensibilidade, o conhecimento espontâneo, a criatividade, a imaginação, a religiosidade e especialmente a observação criteriosa dos fatos. 2. Ser um intelectual marxista é portanto, em segundo lugar, empregar a perspectiva da totalidade concreta para investigar a realidade com o máximo rigor e objetividade, valorizando o conhecimento em si. O pensamento crítico dialoga permanentemente com a realidade: busca compreendê-la, alcançá-la por inteiro, reunificá-la. É desafiado por ela. Por isso mesmo, pode ser mais ou menos favorecido pelos arranjos sociais e pela cultura prevalecente em cada época histórica. Isto significa recusar os determinismos sedutores, com suas causalidades rígidas, e dar atenção dedicada ao incessante jogo de determinações recíprocas entre forças desiguais e contraditórias. A realidade somente pode ser compreendida se for pensada como processo, movimento, contradição, unidade do diverso. No fundo, tudo está ligado a tudo o tempo todo, e a astúcia do pensamento é perseguir o movimento que articula, aproxima e afasta as partes: os fluxos, as determinações (NOGUEIRA, 2005). 3. O intelectual marxista persegue o conhecimento e a verdade do real, mas faz isso associado a uma proposta de intervenção e a um ideal de transformação social. Assimila o marxismo como uma teoria política em um duplo sentido: está sempre em busca da tradução política daquilo que é obtido pelo conhecimento crítico e vê a ação política como eixo estruturador da vida em sociedade. Ao longo do século XX, a exacerbação mecanicista do determinismo econômico tendeu, durante décadas, a congelar a política na esfera “determinada” das superestruturas, com o correspondente cancelamento da dimensão do sujeito e da vontade. Houve bastante menosprezo pela teorização sistemática da política e do Estado. O marxismo ficou assim em dificuldades para acompanhar as mudanças imponentes que apareceram na esfera mesma do político (generalização do sufrágio, socialização da política, democracia de massa, novos sujeitos

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políticos). Ao invés de buscarem uma reconstrução teórica que superasse o caráter incompleto do pensamento de Marx, muitos de seus intérpretes procuraram simplesmente usar os fundamentos teóricos de Marx para ativar estratégias políticas. O dogmatismo paralisou a dialética marxista e fez com que o marxismo – bem como todos os seus produtos tópicos (teoria da revolução, teoria do Estado, teoria do partido) – parasse no tempo, deixasse de acompanhar e assimilar as transformações que se foram processando na realidade social do capitalismo. Como escreveu Caio Prado, “a longa fase de acentuado dogmatismo que imperou em todo pensamento marxista, como fruto dos graves erros do estalinismo”, somada às características culturais brasileiras, pesaram negativamente, “embaraçando qualquer tentativa de verdadeiro e fecundo trabalho de elaboração científica”. Os prejuízos consolidaram-se “em concepções rígidas, verdadeiros dogmas que se tornaram altamente respeitáveis” (PRADO JR., 1978, p. 34). 4. O ideal de transformação social projeta o marxismo para o terreno da revolução social. O intelectual marxista, porém, não pensa a revolução como um momento mágico, localizado no tempo, com data certa para começar e ser concluído. Trata-se essencialmente de um processo de lutas, tensões, conflitos e negociações, no decorrer do qual se acumulam forças que projetam reformas estruturais e se empenham para sua implementação. Há uma mola processual e “consciente” nas revoluções imaginadas pelo marxismo. Ainda que possam conhecer momentos de explosão popular ou de aceleração das mudanças, o que conta é o longo prazo, aquilo que pode haver de transformação estrutural e sustentável da vida social. E ainda que o “acaso” e a espontaneidade social possam jogar algum peso na dinâmica reformadora das revoluções, o que conta é a capacidade que os sujeitos sociais têm de produzir organização política e projetos de transformação social. A revolução concebida pelos marxistas, assim, não é a passagem abrupta de um sistema social a outro, mas sim uma sucessão de reformas de variada intensidade e no decorrer das quais se encadeiam rupturas nas estruturas sociais, nas relações econômicas, no Estado e no equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias sociais. Ela se distingue claramente de uma “insurreição”, que se vale do emprego da força para derrubar um governo ou um regime. Seu sentido real e profundo aponta bem mais para a transformação

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abrangente, processo que pode ser estimulado por insurreições mas que necessariamente não o é: “O significado próprio se concentra na transformação, e não no processo imediato através de que se realiza”, na formulação precisa de Caio Prado (1978, p. 2). Precisamente por isso, revolução e reforma são termos que se aproximam e se completam. 5. Isso significa que o intelectual marxista atua com os olhos nos processos de democratização social e na democracia política como princípio de governo e deliberação. Seu foco não é exclusivamente a revelação do que há de autoritarismo, opressão e miséria social nos sistemas capitalistas e o combate ao caráter classista do poder do Estado. Maior relevância é depositada na compreensão do processo por meio do qual se possam atingir a recomposição e o alargamento do sistema político, a incorporação e a integração social, a expansão e a consolidação da democracia em sentido amplo. Sua agenda inclui, por isso, tanto uma reflexão sobre a sociedade em que se vive e sobre seus sujeitos quanto uma reflexão sobre o sistema de regras que devem ser adotadas para que se possa disputar democraticamente o poder. O marxismo assimila o tema da representação política. Faz isso por meio da crítica da ideia liberal de representação, problematizando-a por seu caráter restrito e limitado, mas também pela rejeição de qualquer ideia imperativa ou vinculada de representação, que veja o representante político como uma extensão mecânica e passiva dos interesses de classe. Sua teoria da representação democrática incorpora a participação social e vê nela um decisivo fator de revigoramento e ampliação do sistema representativo. Para o intelectual marxista, a democracia é também democratização, processo de disseminação progressiva de valores, práticas, instituições e espaços de deliberação democrática. Sua ideia de democracia, portanto, aceita a perspectiva do avanço processual por meio de acúmulos e consolidações, que não eliminam lutas e antagonismos e pretendem ser obtidos de forma legal, conforme leis e constituições. Trata-se de uma ideia de democracia como recurso reformador, como critério de convivência e como valor universal, um bem a ser defendido e protegido. Caio Prado Júnior foi um intelectual marxista em todos esses sentidos. Ressalto aqui, para com ela concordar, a principal hipótese da

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pesquisa desenvolvida por Bernardo Ricupero: “Boa parte do interesse da obra de Caio Prado Jr. provém precisamente de sua associação com o marxismo”. Ele “não é qualquer marxista do Brasil, mas verdadeiramente um marxista brasileiro, isto é, alguém que abre caminho para uma aproximação da teoria marxista com a realidade brasileira” (RICUPERO, 2000, p. 24). Sua obra representa a “nacionalização” do marxismo, a elaboração dessa teoria em interação com as condições específicas de nossa experiência histórico-social. Nele, as ideias se transformaram em “sentimento de uma realidade”, sentimento esse revelado “na paixão com que se voltou para dentro de seu país, não se encantando com a prática da imitação, tão comum na reflexão intelectual brasileira” (REGO, 2000, p. 23-24). Caio Prado relacionou-se com o marxismo como método da totalidade concreta, como teoria social e como teoria da ação, buscando atuar em prol de uma revolução que reestruturasse e democratizasse a sociedade brasileira. Travou conhecimento com a literatura marxista quase ao mesmo tempo em que se aproximou e aderiu ao Partido Comunista, em 1931. Ao final da juventude, ainda que sem alarde ou exacerbação verbal, rompeu com os limites políticos e ideológicos de sua classe de origem, interessou-se pelo socialismo e saiu em busca do Brasil e do mundo. Descobriu a pobreza, a miséria, as diferenças regionais, fatores que o impulsionaram para a militância comunista. “Eu era na realidade um burguês rico, de educação e visão europeia, acostumado ao conforto material. Ignorava até então a nossa realidade”, observou certa vez a Maria Cecília Naclério Homem. A partir de então, despertaria para os problemas brasileiros e para as soluções: Começou seu engajamento e o estudo sistemático do Brasil, adotando uma postura receptiva constante. Passou a trabalhar com o presente e o passado, em vista do futuro. Sua dimensão de história será muito mais ampla porque pretende transformá-la tanto pela produção escrita quanto pela própria participação dos acontecimentos políticos e culturais (apud D’INCAO, 1989, p. 47).

Depois de aderir ao Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado foi preso (em 1935, permanecendo na cadeia até 1937), viajou e fez contatos

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com outros partidos, conheceu militantes de vários tipos e foi eleito deputado estadual em São Paulo (1947), cargo que abandonou quando o PCB teve o registro cassado, em 1948. Em 1943, juntamente com Monteiro Lobato e Arthur Neves, fundou a Editora Brasiliense e, nos anos 1950, a Revista Brasiliense, publicação que teria extraordinária importância na história política do Brasil. Nela, Caio publicou numerosos artigos históricos e políticos, muitos dos quais voltados para a estrutura agrária brasileira. A revista contribuiu para a formação de inúmeros intelectuais durante os anos em que circulou (de 1955 a 1964). Caio Prado foi um militante, mas jamais se deixou constranger intelectualmente pelo PCB. Não permitiu que o partido exigisse dele algo mais que lealdade, nem aceitou que o partido postulasse a função de “administrar” o impulso criativo e crítico do intelectual, fosse uma espécie de dono e gestor do conhecimento. Levou a sério a perspectiva de que atitude crítica e autonomia são requisitos essenciais para que o intelectual possa funcionar como usina de ideias, como agente cultural, e possa, desse modo, colaborar para que um partido atue adequadamente, isto é, fazendo escolhas e apostas corretas, desenhando programas factíveis, aprimorando seus cálculos. Terminou por ser, talvez sem plena consciência disso, um fator de contestação no interior do movimento comunista, contestação que só não repercutiu mais intensamente devido ao desinteresse que Caio Prado teve pelas disputas internas e pela luta ideológica que se processava no partido. Em nenhum momento chegou a integrar a direção partidária e nunca chegou a ser propriamente valorizado pelos comunistas. Seu relacionamento com o PCB sempre pressupôs que o partido não conseguia fazer escolhas políticas adequadas porque teorizava a partir de modelos e esquemas preconcebidos (fragilmente universalizados) e não de elaborações que fossem capazes de interagir com o processo real, traduzi-lo corretamente, compreendendo suas determinações e empregando-as para fazer análise política e projetar a revolução. Seu convívio com o PCB foi sempre eminentemente polêmico: vieram dele algumas das mais contundentes críticas à teoria e à prática que prevaleciam no partido. A revolução brasileira (1966) foi o ápice disso. Caio Prado Jr. não rompeu com o partido, nem dele se afastou. Foi uma situação atípica, especialmente se se levar em conta que as direções do PCB não costumavam ser tolerantes com aqueles que

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atuavam com autonomia e espírito crítico aguçado. O fato reforça a tese de que o intelectual e o partido chegaram a uma “solução de acomodação” (RICUPERO, 2000, p. 128). Ao partido certamente interessava o vínculo de Caio Prado e o intelectual optou por aceitar certas restrições e críticas para não ser um “independente diletante”. No fundo, é provável que não tenha vislumbrado a possibilidade de ser um marxista tout-court fora desse ambiente, no qual seria possível pensar e agir como parte de um movimento potencialmente capaz de levar à prática certas soluções cogitadas teoricamente. Tratou o PCB como um partido que “historicamente sempre defendeu certa categoria social, o proletariado, além de ser um partido em que não entra o interesse pessoal” (apud SECCO, 2008, p. 50). Afinal, também o intelectual que não deseje ser diletante necessita de uma referência coletiva para poder ser produtivo. Isso significa encontrar um difícil equilíbrio entre pensamento e ação, autonomia e compartilhamento, conhecimento e pedagogia. O PCB foi essa referência, do mesmo modo que a Revista Brasiliense funcionou como um “segundo” partido, a plataforma a partir da qual Caio Prado operou como intelectual. Ação e pensamento puderam assim conviver. 3 iNtELECtuAiS E mARxiSmo HoJE A época é de crise e perda de prestígio do marxismo. Há quase um consenso a decretar a “morte de Marx”, que flutua paradoxalmente sobre uma realidade, o capitalismo globalizado, que repõe sem cessar a validade de muitas teses de Marx, sua capacidade de permanecer interpelando os termos da dinâmica social. O marxismo que se repõe hoje, porém, não é de modo algum a doutrina onisciente e fechada, autossuficiente e dogmática, que vicejou em outras épocas, mas sim uma teoria carregada de potência explicativa, plural e dialética. O marxismo não está morto, mas há algo morto no marxismo. É equivocada a afirmação de que o marxismo como teoria política foi somente insuficiência e dogma. Em seu interior, entre outras coisas, produziu-se também uma proposição teórica como a do italiano Antonio Gramsci, categoricamente voltada para a reconstrução da abordagem marxista do Estado e da política, para o estabelecimento dos fundamentos de uma “teoria ampliada do Estado”, assentada em

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uma inovadora teoria da hegemonia e da sociedade civil. Gramsci, além disso, caminhou ao largo da versão reducionista de Marx, com a qual se fixara uma quase absoluta dependência da construção social em relação à estrutura econômica. Superou tal versão, insistindo no reconhecimento de que o marxismo se singulariza por ser uma teoria que afirma, ao mesmo tempo, a autonomia relativa dos âmbitos da economia, da política, da ética e da cultura e a recíproca influência entre eles. Seu marxismo é uma teoria política que exclui o voluntarismo e o arbítrio (derivados da desconsideração dos condicionamentos econômicos) assim como o fatalismo e a subalternidade (resultantes da conversão da “determinação econômica” em “economicismo”). É preciso considerar também que as falhas e dificuldades teóricas do marxismo – suas insuficiências enquanto proposta científica – não decorreram de defeitos congênitos, epistemológicos ou ontológicos, inerentes à própria teoria, mas derivaram, ao menos em parte, dos condicionamentos, impactos e desdobramentos do movimento comunista. São problemas políticos que têm a ver com os nexos entre teoria e movimento político e que, portanto, só podem ser resolvidos com a redefinição destes mesmos nexos: ou com sua superação, quer dizer, com sua reposição em bases completamente novas, ou com seu cancelamento em nome da plena autonomização da teoria. Pressionado pela própria história da teoria, pela crise do marxismo e pela desagregação dos partidos comunistas em praticamente todos os países, o intelectual marxista tornou-se um personagem em busca de reinserção e contagiado por uma espécie de crise de confiança. Ele ainda encontra impulso para se reproduzir em nossos dias? Ele ainda faz sentido, ainda é necessário? Que obstáculos encontra para se afirmar e se expandir? O intelectual marxista não tem mais como ser um homem de partido no sentido de estar formalmente integrado a uma organização política concreta. Ele certamente precisa ser partidário: tomar partido e pôr-se em defesa de uma parte da sociedade, a dos subalternos, a dos excluídos, explorados e humilhados. Mas não precisa ser necessariamente um militante partidário em sentido estrito, muito menos um dirigente ou um funcionário de partido. E isso por dois motivos. Primeiro, porque a nossa não parece ser mais uma época de partidos entendidos como veículos de transformação social. Os partidos atuais

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são figuras burocráticas, dedicadas à disputa eleitoral e ao controle do poder. Não são entidades voltadas para a produção de cultura, de valores, de formas de identidade. Deixaram de ser canais de paixões políticas, dedicam-se somente a interesses. Segundo, porque o intelectual que opera nas condições do capitalismo globalizado precisa ser livre de injunções para poder ser intelectual. Dado o empobrecimento cultural dos partidos, o casamento entre eles e os intelectuais parece ser problemático, mais propenso a produzir dor que prazer. Mas os intelectuais, a rigor, só têm como se realizar na política e a partir da perspectiva da política. Afinal, política não é sinônimo de poder, nem de mundo dos profissionais da política, mas um campo em que se disputam ideias a respeito do viver coletivo e em que se aposta nas possibilidades de construir o social, planejar o futuro, tornar mais justa a convivência entre grupos e pessoas. O intelectual que não se coloca nessa perspectiva e se recusa a pensar o todo – que se fecha em sua especialização, em seu corporativismo – mantém-se em função subalterna. Os diferentes tipos de intelectuais críticos e democráticos, e entre eles os marxistas, enfrentam outro problema. É que a vida pública está hoje em crise. O Estado, a ideia de Estado, a dimensão ética e educativa do Estado, tudo isso está envolto em um profundo mal-estar. Assiste-se à intensificação do mercado e à valorização da sociedade civil contra o Estado. É uma época com pouca política, na qual os cidadãos não encontram respostas para seus problemas no sistema político, não confiam nele e preferem não olhar para ele. A própria política é vista com desconfiança, especialmente se for identificada com Estado e vida coletiva. Os ambientes em que vivemos parecem “despolitizados”, vazios de perspectiva cívica, com reduzida noção do que é público. Nada dá muito sentido e expressão às comunidades em que nos inserimos e que nos orientam. Das organizações profissionais à comunidade política “nacional”, o clima é de desconforto e melancolia. Assistimos a uma complicada alteração nas formas mesmas com que cada um pensa a sua relação com o todo: com os demais, com o Estado, com a história, com o futuro. O trabalho intelectual ficou com seu eixo deslocado. Uma constatação pode nos ajudar a entender isso. Presenciamos a radicalização daquele “desencantamento do mundo” de que falava

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Max Weber no início do século XX. Protagonizamos uma era de especialização, racionalização e profissionalização intensas, em que estão sendo roubadas as bases que fomentavam a reprodução do intelectual rebelde, que não se submete a rotinas institucionais, não aceita as divisões rígidas do trabalho e está sempre mergulhado em embates doutrinários. É uma era que reduziu dramaticamente a possibilidade objetiva de que se empreendam esforços teóricos totalizantes. No lugar do romantismo revolucionário, dos conflitos éticos e da paixão cívica, entraram em cena o cálculo criterioso, as carreiras bem planejadas, o pragmatismo institucional, o respeito aos cânones e ritos burocráticos. O saber especializado parece frear o impulso intelectual para alçar-se ao “universal”, à crítica abrangente dos sistemas, à proposição de novos desenhos de vida. A época é individualista e individualizadora. Fragmenta e diferencia sempre mais, exacerba direitos e interesses, faz com que as obrigações, os deveres, sejam vistos como fardo e ônus. Nela, as pessoas lutam por interesses e por identidade, e essas lutas não produzem mais vida coletiva, ainda que sejam justíssimas. São lutas que produzem tensão e efervescência, mas não conseguem se traduzir em formas mais avançadas de convivência. Paradoxalmente, a nossa também se tornou uma era de instituições e organizações, situação que reflete o estágio de complexidade social em que nos encontramos. Em boa medida, as instituições chamam para si as tarefas “pedagógicas” que antes cabiam aos intelectuais. As atividades intelectuais estão cada vez mais condicionadas por orientações políticas que se confundem com iniciativas organizacionais, com seus invólucros administrativos, seus arranjos e suas restrições. A sombra da burocracia agigantou-se. Cresceu o atrito entre a liberdade intelectual e a rotina institucionalizada. É uma época de muita informação e pouco conhecimento. Há muitas ideias no ar, mas não temos certeza se elas são mesmo ideias (formas novas e sistematizadas de reflexão sobre o mundo) ou somente informações um pouco mais articuladas. Mesmo no terreno das informações, travestidas ou não de ideias, a dispersão, o detalhe, o supérfluo e o imediatismo parecem ser a regra. Os efeitos da informatização repercutem aqui de forma intensa. À nossa frente, ergue-se um complexo e fragmentado sistema de comunicação, com suas inúmeras redes

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de contatos, suas imagens e informações que explodem sem cessar, suas sempre novas tecnologias da inteligência, que no mínimo subvertem os modos “normais” de produzir e transmitir conhecimentos. Os intelectuais sempre foram peças-chave dos processos de construção e reprodução de hegemonias. Hoje, nos contextos globalizados, com suas redes sociais conectadas em tempo real por dispositivos comunicacionais que operam como artífices de imaginários, fantasias e “vontades coletivas”, a hegemonia já não flui como antes. Do mesmo modo, o intelectual sempre deteve o monopólio de trabalhar com a palavra, e hoje, nas sociedades da informação, todos trabalham com a palavra e exercem “funções intelectuais”. Estreita-se a especificidade do intelectual e muda seu papel social. Tudo isso faz com que o intelectual passe a encontrar enorme dificuldade de agir publicamente, de se afirmar e com isso de escapar do cerco que suas próprias instituições o submetem. Todos ficam como que magnetizados pela indústria cultural, que é sempre mais indústria do entretenimento. Expandiu-se o campo de atuação dos intelectuais, seja porque cresceram as oportunidades de obter audiência, seja porque se expandiu a produção de conhecimentos, seja porque aumentaram os meios de difusão de ideias. Os intelectuais certamente não ficaram mais poderosos, nem estão mais influentes, mas sem eles os sistemas não funcionam. Quanto mais se expandem os meios de informação e comunicação, aliás, mais necessários e visíveis ficam os intelectuais. Tendo de responder a tantas demandas tópicas e especializadas, os intelectuais já não têm mais como se ocupar daquilo que os tipifica como intelectuais: o esforço de totalização. O intelectual público não morreu. Bem ao contrário, sua existência é uma exigência histórica e não tem como ser sumariamente descartada. O momento hoje é de certo refluxo, de certa dificuldade, mas ainda fornece bastante espaço para que nos dediquemos a pensar com autonomia, a rever nossos procedimentos e nossas apostas. Fazendo isso, abrimos caminho, mais uma vez, para a reiteração da figura do intelectual público.

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CoNSiDERAÇoES fiNAiS O modo marxista de pensar e de proceder intelectualmente continua a ser indispensável. O mundo globalizado é radicalmente diferenciado e fragmentado. Não pode ser explicado e compreendido por abordagens que tenham pretensões esquemáticas, excessivamente categóricas ou dogmáticas. O predomínio unilateral da autoridade dos especialistas empurra o cidadão para os bastidores da decisão política. Corrói e enfraquece a democracia. O pensar em termos complexos e dialéticos, portanto, funciona como uma poderosa alavanca de compreensão: sua capacidade de totalização devolve sentido ao mundo e ao viver coletivo. A assimilação desse modo de pensar está na base tanto de um melhor entendimento da política, do Estado e da ação de governar quanto de uma reflexão a respeito dos recursos e caminhos de que dispomos para que se viabilize algum tipo de recuperação democrática da política. Isto quer dizer que pensaremos melhor a política se conseguirmos entendê-la como uma atividade e um espaço que se inserem em totalidades concretas que precisam ser analisadas e compreendidas. Veremos, assim, que a política não se rende nem se submete ao econômico, ao cálculo ou ao imediato, e só se realiza efetivamente por meio de sujeitos e em contato aberto com a democracia, a história e a vida comunitária. Para falar com os termos de Caio Prado, qualquer teoria da revolução ou qualquer projeto de reforma democrática, “para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos, será simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta” (PRADO JR., 1978, p. 15). Clássicos como Caio Prado Jr., ao serem revisitados, nos ajudam mais uma vez, agora não a iluminar e explicar nosso passado, mas a nos sugerir pistas com que avançar rumo ao futuro.

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NÚmERoS ANtERioRES EDiÇÃo 15 A DESoRDEm Do muNDo André bueno ESCutA, ARtE E SoCiEDADE A PARtiR Do mÚSiCo ENfuRECiDo Daniel belquer EDuCAÇÃo SuPERioR No bRASiL: o REtoRNo PRivADo E AS REStRiÇÕES Ao iNGRESSo márcia marques de Carvalho APRENDizAGEm PoR PRobLEmAtizAÇÃo Pedro Demo A CiDADANiA AtRAvÉS Do ESPELHo: Do EStADo Do bEm-EStAR ÀS PoLÍtiCAS DE ExCEÇÃo Sylvia moretzsohn EDiÇÃo 16 REPERCuSSÕES Do iCmS ECoLÓGiCo NA GEStÃo AmbiENtAL Em mAto GRoSSo, bRASiL Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel Sueli Ângelo furlan A HoRA DE iR PARA A ESCoLA Daniel Santos CRiAtiviDADE marsyl bulkool mettrau ENtRE o DRAmA E A tRAGÉDiA: PENSANDo oS PRoJEtoS SoCiAiS DE DANÇA Do Rio DE JANEiRo monique Assis Nilda teves

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GiNÁStiCA ESCoLAR Como DiSPoSitivo bioPoLÍtiCo-PEDAGÓGiCo: umA ANÁLiSE DA RELAÇÃo ENtRE EDuCAÇÃo, SAÚDE E moRALiDADE Em fERNANDo DE AzEvEDo murilo mariano vilaça EDiÇÃo 17 CiDADE mARAviLHoSA: ENCoNtRoS E DESENCoNtRoS NoS PRoJEtoS DE REmoDELAÇÃo uRbANA DA CAPitAL ENtRE 1902 E 1927 José Cláudio Sooma Silva A CAPtuRA Do GoSto Como iNCLuSÃo SoCiAL NEGAtivA: PoR umA AtuALizAÇÃo CRÍtiCA DA ÉtiCA utiLitARiStA marco Schneider iNovAÇÃo, tECNoLoGiAS SoCiAiS E A PoLÍtiCA DE CiêNCiA E tECNoLoGiA Do bRASiL: DESAfio CoNtEmPoRÂNEo marcos Cavalcanti André Pereira Neto RECENtES DiLEmAS DA DEmoCRACiA E Do DESENvoLvimENto No bRASiL: PoR QuE PRECiSAmoS DE mAiS muLHERES NA PoLÍtiCA? marlise matos tRAbALHo iNfANtiL No bRASiL: Rumo À ERRADiCAÇÃo Ricardo Paes de barros Rosane da Silva Pinto de mendonça EDiÇÃo 18 o DEbAtE PARLAmENtAR SobRE o PRoGRAmA boLSA fAmÍLiA No GovERNo LuLA Anete b. L. ivo José Carlos Exaltação EDuCAÇÃo PARA A SuStENtAbiLiDADE: EStRAtÉGiA PARA EmPRESAS Do SÉCuLo xxi Deborah munhoz

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fAGuLHAS Do AutoRitARiSmo No futEboL: EmbAtES SobRE o EStiLo DE JoGo bRASiLEiRo Em tEmPoS DE DitADuRA miLitAR (1966-1970) Euclides de freitas Couto JuvENtuDES, vioLêNCiA E PoLÍtiCAS PÚbLiCAS No bRASiL: tENSÕES ENtRE o iNStituÍDo E o iNStituiNtE Glória Diógenes A mÁQuiNA moDERNA DE JoAQuim CARDozo manoel Ricardo de Lima EDiÇÃo 19 UM CONVITE À LEITURA Gabriel Cohn CAio PRADo JR. Como iNtÉRPREtE Do bRASiL bernardo Ricupero AS RAÍzES Do bRASiL E A DEmoCRACiA brasilio Sallum Jr. GiLbERto fREYRE E SEu tEmPo: CoNtExto iNtELECtuAL E QuEStÕES DE ÉPoCA Elide Rugai bastos ENtRE A ECoNomiA E A PoLÍtiCA – oS CoNCEitoS DE PERifERiA E DEmoCRACiA No DESENvoLvimENto DE CELSo fuRtADo vera Alves Cepêda

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Caso tenha interesse em receber a revista Sinais Sociais, entre em contato conosco: Assessoria de Divulgação e Promoção Departamento Nacional do Sesc adpsecretaria@sesc.com.br tel.: (21) 2136-5149 fax: (21) 2136-5470

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NoRmAS PARA PubLiCAÇÃo 1 - A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio – Sesc e tem por objetivo contribuir para a difusão da produção acadêmica, proporcionando diálogo amplo sobre a agenda pública brasileira. A publicação oferece a pesquisadores, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões da realidade social. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos governamentais de interesse, principais bibliotecas no Brasil e em todas as bibliotecas do Sesc e Senac. 2 - A publicação dos artigos e ensaios está condicionada à emissão de parecer de especialistas e dos membros do conselho editorial, garantido o anonimato dos pareceristas no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo, por parte da Editoria, são previamente acordadas com os autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição. 3 - Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD (ao endereço a seguir), digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5. As páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha. Departamento Nacional do Sesc Divisão de Planejamento e Desenvolvimento/Gerência de Estudos e Pesquisas Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004, Rio de Janeiro/RJ

4 - O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail do(s) autor(es), que se responsabilizam pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve

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informar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica. A mensagem deve incluir ainda endereço, telefone e, em caso de mais de um autor, informar o responsável pelos contatos. 5 - O texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 caracteres (sem contar o resumo e as referências bibliográficas). Os resumos em português e em inglês (Abstract) que acompanham o texto devem ter entre 10 e 15 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10. 6 - O texto deverá conter: a) título do trabalho em português (no máximo uma linha); b) título abreviado; c) nome do(s) autor(es); d) resumo em português e em inglês; e) palavras-chave – máximo seis; f) referências bibliográficas apresentadas conforme as normas da ABNT, NBR 6023/2002 e NBR 14724/2002; g) citações no artigo conforme NBR 10520/2001. 7 - Anexos, tabelas, gráficos, fotos, desenhos com suas respectivas legendas etc. devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível, deverão ser elaborados para sua reprodução direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF). 8 - Um currículo (incluindo dados pessoais: nome completo, endereço, telefone para contato e documentação própria) e um minicurrículo deverão ser entregues com o artigo. O minicurrículo deverá conter os principais dados sobre o autor: titulação acadêmica, cargo ocupado,

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áreas de interesse, últimas publicações, e-mail (se assim o desejar) etc. As siglas de instituições ou projetos devem vir por extenso. Ex.: Pontifícia Universidade Católica (PUC). O minicurrículo deverá ter entre 5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10. 9 - As referências bibliográficas devem ser dispostas no final do artigo, em ordem alfabética e cronológica, de acordo com o sobrenome do(s) autor(es) que, em caso de repetição, deve(m) ser sempre citado(s). REfERêNCiAS bibLioGRÁfiCAS – ExEmPLoS

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LivRoS BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1976. BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990. RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 4v.

CAPÍtuLoS DE LivRoS DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5. p.14-110. LYOTARD, J.F. Capitalismo energúmeno. In: CARRILHO, Manuel Maria (Org.). Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976. p. 83-134.

ENSAioS Em REviStAS DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 817-838, set. 2003.

DoCumENtoS E PESQuiSAS IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): 1982 a 2006. Rio de Janeiro. Brasil. Ministério da Educação e Cultura. Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB): 1995, 1999, 2001, 2005. Brasília, DF.

iNtERNEt INEP. Sinopses estatísticas da educação básica: 1994 a 2005. Disponível em: <http://www.edudatabrasil.inep.gov.br>. Pesquisado em jan. 2012.

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Esta revista foi composta nas tipologias zapf Humanist 601 bt, em corpo 10/9/8,5, e itC officina Sans, em corpo 26/16/9/8 e impressa em papel off-set 90g/m2

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