Sesc | Serviço Social do ComÊrcio Departamento Nacional
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ISSN 1809-9815 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p.1-156 | jan.-abr. 2015
Sesc | Serviço Social do Comércio PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL
Antonio Oliveira Santos DEPARTAMENTO NACIONAL Diretor-Geral
Maron Emile Abi-Abib Coordenadoria de Estudos e Desenvolvimento Diretora
Cláudia Márcia Santos Barros COORDENAÇÃO Gerência de Estudos e Pesquisas Gerente
Andréa Maciel de la Reza EDITORIA
Andréa Maciel de la Reza Carlos Lima Júnior Cláudia Márcia Santos Barros Mauro Lopez Rego Nivaldo da Costa Pereira Eduardo R. Gomes (Assessor Editorial)
CONSELHO EDITORIAL
Amélia Cohn (USP) Angela de Castro Gomes (UFF - Unirio) Carlos Guilherme Mota (USP - Universidade Presbiteriana Mackenzie) Elina Pessanha (IFCS/UFRJ) Franciso Alambert (FFLCH/USP) Gabriel Cohn (USP – Unifesp) Gustavo Lins Ribeiro (UnB) João Feres Júnior (IESP/UERJ) José Jairo Vieira (PPGE/UFRJ) Marco Aurélio Nogueira (Unesp) Marcos Costa Lima (UFPE) Marta de Azevedo Irving (EICOS/UFRJ – PPED/UFRJ) Maurício Blanco Cossío (Instituto AFortiori) Myriam Lins de Barros (ESS/UFRJ) Paulo Cesar Duque-Estrada (PUC-Rio) Rita Chaves (PECLLP/USP) Rogério Medeiros (PPGTLC/UFRJ) Sônia Karam Guimarães (PPGS/UFRGS) Tania Bacelar (CFCH/UFPE) Vera Lins (UFRJ)
PRODUÇÃO EDITORIAL Assessoria de Comunicação Diretor
Pedro Hammerschmidt Capeto PROJETO GRÁFICO
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Elaine Bayma e Tathyana Viana REVISÃO DO INGLÊS
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Livros
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© Sesc Departamento Nacional, 2015. Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 Distribuição gratuita. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2006 - . v.; 30 cm.
As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
Quadrimestral. ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Sesc. Departamento Nacional.
SUMÁRIO
Apresentação
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Editorial
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Evolução do trabalho infantil no Brasil Ana Lúcia Kassouf
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K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux
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Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro Beni Trojbicz
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Governo representativo e democratização: revendo o debate Fernando Limongi
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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro Rosana Magalhães
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APRESENTAÇÃO
A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos ao seu progresso. Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a ampliação permanente dessa compreensão. Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar coletivo. antonio oliveira santos
Presidente do Conselho Nacional
Ler, estudar, pesquisar. Divergir, argumentar, contrapor. Comparar, debater, discutir. Criticar, questionar, propor. Fundamentar, elaborar, testar. Organizar, encadear, remeter. Rever, revisar, publicar. Apresentar, expressar, transmitir. Com a revista Sinais Sociais, colaboramos para que esses verbos sejam conjugados em favor de uma sociedade que traduza de forma mais fidedigna a expressiva riqueza cultural e o potencial realizador de seus cidadãos. Conhecer para compreender, difundir para mobilizar, agir para transformar: eis as vertentes que definem a linha editorial da Sinais Sociais no ambiente do pensamento e da ação social. maron emile abi-abib
Diretor-Geral do Departamento Nacional
Pensar o Brasil e seus grandes desafios é objeto de constante reflexão do Sesc. As múltiplas atividades desenvolvidas pela Instituição, como pesquisas, estudos especializados, programas de educação permanente e orientações técnicas, praticadas em consonância com as ações programáticas nas áreas de Educação, Saúde, Cultura, Lazer e Assistência, reafirmam o compromisso do Sesc em contribuir para uma sociedade melhor para todos. Para tanto, entende ser fundamental promover o debate qualificado sobre a agenda pública, seus programas e políticas, referendado pelos seus maiores expoentes no campo das Ciências Sociais e Humanas, alicerçado no aprofundamento teórico, com a intenção de trabalhar em sintonia com os pesquisadores que exploram e iluminam as várias facetas da questão social no país. Nesse sentido, apresentamos nesta edição temas que revelam a preocupação dos autores em interpelar alguns pontos que envolvem problemas em relação à segurança alimentar, à evolução do trabalho infantil no Brasil, aos investimentos sociais procedentes de recursos minerais do país, às questões políticas relacionadas à participação direta e à natureza do sistema representativo, além do resgate, por meio de uma análise literária, de períodos traumáticos oriundos dos regimes autoritários. Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux, em interessante análise do livro de Bernardo Kucinski, refletem sobre o que a narrativa ficcional pode fazer, tratando a autoficção como gênero, a partir do relato abordado no livro sobre a época da ditadura militar. Pretendem trazer para o debate a questão da autoficção e seus efeitos políticos, relacionados com a memória traumática do período analisado. Com a preocupação em mostrar para o leitor a trajetória de redução do trabalho infantil no Brasil, Ana Kassouf apresenta sua evolução a partir dos dados disponíveis na PNAD-IBGE, em estudos anteriores no país e em outras sociedades, contribuindo para um entendimento mais meticuloso sobre as causas e consequências do trabalho na infância. 8
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O artigo de Beni Trojbicz traz a discussão sobre o gerenciamento gover namental dos recursos do pré-sal no financiamento de programas que visam à melhoria dos serviços públicos, à redução da pobreza e à conservação do meio ambiente. Apresenta o caso brasileiro em uma perspectiva internacional, por meio de temas atuais e relevantes: a política econômica, o investimento social e o impacto do marco regulatório de recursos minerais que os envolve. Fernando Limongi, por sua vez, trata da distinção entre o sistema representativo, com características próprias e a participação direta ou a “democracia”. Propõe uma releitura do debate sobre a evolução política no país, a partir de estudos recentes sobre a evolução política europeia e a norteamericana que recomendam uma revisão da forma usual de se entender a evolução política brasileira. Por fim, a autora Rosana Magalhães discute o tema da segurança alimentar, a partir de um convite à leitura de Josué de Castro, cuja obra é de suma importância para a renovação do pensamento social brasileiro, e à visão crítica de uma realidade dramática ainda presente no país e em várias regiões do mundo no campo do combate à fome. Reafirmando as intenções da instituição, de pesquisadores e gestores no combate à “insegurança alimentar”, ressalta em seu estudo junto ao grande médico, sociólogo e geógrafo, o compromisso público sobre padrões alimentares sustentáveis e orientados pela equidade. Apresentamos nesta edição da Sinais Sociais, novos e velhos problemas, aprofundando as questões que os enlaçam, refletindo sobre as alternativas possíveis e desejáveis, em um horizonte que requer trabalho árduo e obrigação ética em busca de um padrão civilizatório. Na utopia que se acredita no fazer de muitas mãos, na transformação de conceitos e atitudes. No nosso compromisso institucional com a mudança na perspectiva de uma melhor qualidade de vida para todos os cidadãos. Boa leitura e mãos à obra, sempre! VOLTAR
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Evolução do trabalho infantil no Brasil Ana Lúcia Kassouf
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Ana Lúcia Kassouf Possui mestrado em Economia Aplicada pela Esalq, Universidade de São Paulo, doutorado em Applied Economics pela University of Minnesota e pós-doutorado pela London School of Economics e University of Minnesota. Trabalhou como consultora de projetos da OIT, Banco Mundial, Unicef e Unesco. Atualmente é professora titular do Departamento de Economia da Esalq, Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia do Bem-Estar Social, atuando principalmente nos temas: trabalho infantil, educação, saúde, rendimento e programas sociais.
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Resumo O objetivo desse estudo é apresentar a trajetória de redução do trabalho infantil no Brasil e analisar os fatores que levaram a essa redução desde o início da década de 1990. Criação de leis e comissões de combate ao trabalho infantil, maior fiscalização no trabalho, implementação de programas sociais, políticas de fortalecimento da educação de crianças e jovens e atuação de organismos internacionais direta ou indiretamente impactaram na redução do trabalho infantil. Apesar dessa redução, quase dois milhões de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos ainda trabalham. Muitos desses trabalhadores não são remunerados ou recebem baixos rendimentos e trabalham um número elevado de horas por semana, o que os impedem de estudar. É importante ampliar e melhorar o acesso à educação de qualidade, adotando estratégias que garantam no mínimo a conclusão do ensino básico (Fundamental e Médio). Finalmente, para eliminar as piores formas de trabalho infantil é preciso fortalecer os sistemas públicos de inspeção do trabalho. Palavras-chave: Trabalho infantil. Educação. Trajetória temporal.
Abstract The aim of this study is to present the trajectory of reducing child labor in Brazil and analyze the factors that led to this reduction from early 1990. The creation of laws and commissions to combat child labor, greater surveillance at work, implementation of social programs, strengthening policies to support children and youth education, and international organization activities directly or indirectly impacted on the reduction of child labor. However, there are still 2 million children and youths, aged 5 to 15, who are still working. Many are not paid or are on low income and work a high number of hours per week, which prevent them from studying. It is important to expand and improve the access to quality education, adopting strategies that ensure at least the completion of basic education (primary and secondary). Finally, to eliminate the worst forms of child labor, the public labor inspection systems need to be strengthened. Keywords: Child labor. Education. Chronological trajectory.
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
1. Introdução De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no mundo, aproximadamente 150 milhões de crianças entre 5 e 14 anos trabalhavam em 2008 enquanto 215 milhões de trabalhadores tinham idade inferior a 18 anos (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2010). Nas últimas décadas, as análises empíricas visando obter as causas, consequências e soluções para o trabalho infantil estão sendo facilitadas pelo aumento da disponibilidade de “microdados”, isto é, dados indivi duais ou desagregados com informações mais detalhadas dos indivíduos da amostra. No Brasil, a principal pesquisa utilizada para analisar o trabalho infantil é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), coletada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anualmente em todo o território nacional. Desde 1992 incorporam-se à Pnad questões sobre o trabalho de crianças a partir dos cinco anos de idade e em 2001 e 2006 incluiu-se um suplemento com perguntas específicas e detalhadas sobre trabalho infantil. O Brasil é hoje reconhecido internacionalmente por sua capacidade de combater o trabalho infantil utilizando politicas sociais inovadoras e bases de dados de qualidade. A utilização dessas bases de dados resulta em análises e pesquisas que geram um maior entendimento dos mecanismos de alocação de tempo dentro e fora do domicílio, suas interações com as forças de mercado e o efeito dessas interações no trabalho infantil. A pobreza, escolaridade dos pais, tamanho e estrutura da família, sexo do chefe, idade em que os pais começaram a trabalhar, local de residência, entre outros são os determinantes mais analisados e dos mais importantes para explicar a alocação do tempo da criança para o trabalho. Nesse sentido é importante destacar que para atividades ilícitas que envolvem crianças e adolescentes – como a exploração sexual, tráfico de pessoas e de drogas –, ainda há muito que avançar para a construção de registros administrativos e informações que apoiem o aperfeiçoamento das políticas de proteção social, edu cação e assistência social às crianças e adolescentes e às suas famílias. Em geral, a população dos estratos mais elevados de renda não trabalha na infância. Estudos mostram que o aumento da renda familiar reduz a probabilidade de a criança trabalhar e aumenta a de ela estudar (RAMALHO; MESQUITA, 2013; NAGARAJ, 2002; KASSOUF, 2002). Observa-se que as nações 14
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Ana Lúcia Kassouf
que se tornaram mais ricas apresentaram uma redução no trabalho infantil. Tanto na China, como na Tailândia e na Índia, o crescimento do produto interno bruto foi acompanhado pelo declínio do trabalho infantil. Por outro lado, maior oferta de trabalho e desejo de consumo dos jovens também os atraem para o mercado de trabalho. Observa-se que crianças de pais com maior escolaridade são menos propensas a trabalhar, o que pode ser interpretado como valorização da educação dos filhos pelos pais, aspirando para eles um futuro melhor. Muitos estudos mostram que a escolaridade da mãe tem um maior efeito sobre o trabalho das crianças com relação ao observado para a escolaridade do pai. Bhalotra e Heady (2003) encontram efeito negativo somente para a escolaridade da mãe sobre o trabalho de crianças da área rural de Gana, assim como Rosati e Tzannatos (2000) no Vietnam e Cigno, Rosati e Guarcello (2000) na Índia. Entretanto, Kassouf (2002) obtém efeito negativo e altamente significativo para mãe e pai no Brasil. A composição familiar também afeta o trabalho infantil. Muitas crianças trabalham mais quanto maior é o número de irmãos, principalmente mais novos. Em pesquisa incluindo a ordem de nascimento, constatou-se que o último a nascer teve menor probabilidade de trabalhar do que seu irmão mais velho, isto é, algumas crianças trabalham para permitir que outras estudem (EMERSON; SOUZA, 2008). Praticamente todos os estudos que incluíram como determinante do trabalho infantil o sexo do responsável pela família concluíram que crianças de famílias chefiadas por mulheres têm maior probabilidade de trabalhar. Suportam essa hipótese os estudos de Patrinos e Psacharapoulos (1994) para o Paraguai, Grootaert (1998) para a Costa do Marfim e Bhalotra e Heady (2003) para o Paquistão. O resultado das pesquisas pode estar mostrando um grau de vulnerabilidade da família que não está sendo captado pela renda, podendo estar relacionado ao acesso a crédito, a lidar com crises e à percepção quanto à disponibilidade de diferentes alternativas de trabalho, entre outros fatores. No Brasil, em 2011, observa-se que 38% das famílias são chefiadas por mulheres. A área rural, em suas múltiplas atividades produtivas, abriga uma grande porcentagem de crianças e adolescentes trabalhando, não só por ter um nível maior de pobreza, mas também pela infraestrutura escolar mais Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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fraca e menor taxa de inovação tecnológica que podem desencorajar a frequência escolar. Ademais, há maior facilidade de a criança ser absorvida em atividades informais e a prevalência de trabalhos agrícolas familiares e que exigem menor qualificação facilita o emprego de crianças. Há estudos mostrando também que crianças de pais que foram trabalhadores na infância têm maior probabilidade de trabalhar, isto é, pais que trabalharam quando crianças enxergam com mais naturalidade o trabalho infantil e são mais propensos a colocar os filhos para trabalhar, principalmente como alternativa à exclusão escolar (EMERSON; SOUZA, 2003). Aquino et al. (2010) concluem em pesquisa realizada com dados de 1992 a 2004 no Brasil que há maior chance de os filhos trabalharem quando os pais foram trabalhadores infantis, principalmente na zona rural. Podemos citar outros determinantes do trabalho infantil, também importantes, mas não tão utilizados na literatura existente, como salário, idade e ocupação dos pais, tamanho da propriedade agrícola onde as crianças trabalham, custos relacionados à escola, medidas de qualidade do estabelecimento de ensino onde a criança está inserida, além de medidas que reflitam a infraestrutura da comunidade, como disponibilidade de transporte público, rodovias, eletrificação etc. A grande maioria dos estudos quantitativos parece concordar com a visão de que o trabalho exercido durante a infância dificulta a aquisição de educação e capital humano. Os estudos mostram que quanto mais jovem o indivíduo começa a trabalhar, menor é o seu salário na fase adulta da vida e esta redução é atribuída, em grande parte, à perda dos anos de escolaridade devido ao trabalho na infância. Como em muitos países há um número expressivo de crianças e adolescentes que trabalham e estudam, torna-se primordial que se analise não só se o trabalho é responsável pela baixa frequência das crianças na escola, mas também se o trabalho infantil reduz o desempenho escolar. Pesquisa com crianças no Ensino Fundamental em escolas públicas e privadas do Brasil mostrou que o trabalho infantil, principalmente fora do domicílio e durante longas horas, reduz o desempenho escolar (BEZERRA; KASSOUF; ARENDS-KUENNING, 2009). Gunnarsson, Orazem e Sánchez (2004) realizaram uma pesquisa em 11 países da América Latina e concluíram que os estudantes que trabalhavam obtinham 7,5% menos pontos nos testes de matemática e 7% menos nos testes de idioma do que os alunos que somente estudavam. 16
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Semelhantemente, Ponczek, Portela e Emerson (2013) utilizam dados da cidade de São Paulo para concluir que o trabalho realizado por crianças afeta negativamente o aprendizado de Matemática e Português. A baixa escolaridade e o pior desempenho escolar, causados pelo trabalho infantil, têm o efeito de limitar as oportunidades de emprego a postos que não exigem qualificação e que dão baixa remuneração, mantendo o jovem dentro de um ciclo repetitivo de pobreza já experimentado pelos pais. Outra consequência do trabalho realizado na infância é a de piorar o estado de saúde física e mental da pessoa, tanto na fase inicial da vida, quanto na fase adulta. Kassouf, McKee e Mossialos (2001), utilizando dados do Brasil, mostram que quanto mais cedo o indivíduo começa a trabalhar pior é o seu estado de saúde em uma fase adulta da vida, mesmo controlando a renda, escolaridade e outros fatores. Os efeitos negativos do trabalho infantil sobre a saúde foram constatados em alguns estudos, apesar de a literatura abrangendo esse tópico ser bastante escassa pela falta de dados. Forastieri (1997) coloca que os locais de trabalho, equipamentos, móveis, utensílios e métodos não são projetados para utilização por crianças, mas, sim, por adultos, o que pode acarretar problemas ergonômicos, fadiga e maior risco de acidentes.
2. Evolução do trabalho infantil no Brasil O Gráfico 1 apresenta a evolução do percentual de crianças e adolescentes que trabalharam no Brasil no período de 1992 a 2011, separando os dados por faixas de idade.1 Considerou-se trabalhador aquele que havia trabalhado na semana anterior à entrevista, produzido alimento para consumo próprio, trabalhado na construção para uso próprio ou que não havia trabalhado na semana anterior por estar de férias ou ter tido algum problema de saúde. Assim, inclui-se o trabalho remunerado ou não por uma hora ou mais na semana anterior à pesquisa, não incluindo as crianças e adolescentes procurando emprego ou realizando afazeres domésticos no próprio domicílio. No Gráfico 1, foram excluídos os adolescentes de 16 e 17 anos com posição na ocupação “empregado com carteira de trabalho assinada”, mas incluídos os trabalhadores domésticos com carteira assinada. Também foram excluídos os de 14 e 15 anos que são aprendizes, identificados por possuírem carteira assinada. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
Para as crianças de 5 a 15 anos de idade (série não apresentada no Gráfico 1), a redução na incidência de trabalho foi de mais de 10 pontos percentuais. O número de crianças trabalhando nessa faixa etária se reduz progressivamente durante todo o período considerado, passando de pouco mais de 5,5 milhões ou 14,6% nessa faixa etária em 1992 para cerca de 1,5 milhão ou 4,3% em 2011. Para as crianças na faixa de 5 a 9 anos verifica-se que, no período em análise, houve redução de três pontos percentuais na incidência de trabalho. Observe que para essa faixa etária a ocorrência de trabalho infantil já é baixa – não ultrapassando 4% em todos os anos. Em 2011 0,4% das crianças nessa faixa etária estavam trabalhando. Considerando-se anos consecutivos, o maior decréscimo na porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando ocorre de 1995 para 1996, com quatro pontos percentuais de queda. Em 1992, cerca de 23% das crianças trabalhavam, percentual que se reduz em quase 16 pontos percentuais em 2011, atingindo 7%. Já na faixa etária de 16 e 17 anos, as porcentagens passam de um pouco mais de 45%, ou 2,5 milhões de adolescentes sem carteira assinada trabalhando em 1992, para 23%, ou 1,5 milhão em 2011, ou seja, um decréscimo de 22 pontos percentuais no período. Observa-se pela Figura 1 que a presença do trabalho infantil se acentua com a idade.
GRÁFICO 1 –
Evolução do trabalho de crianças e adolescentes (1992 a 2011).
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011), exceto a área rural da região Norte. Nota: dados não incluem adolescentes de 13 a 17 anos com carteira assinada nem a área rural da região Norte.
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Com relação aos indicadores educacionais (analfabetismo, anos de escolaridade, desempenho escolar etc.), o Brasil ainda apresenta índices inferiores a muitos países da América Latina, como Chile, Uruguai, Peru, Cuba, México e outros (UNESCO, 2011). Entretanto, a partir da década de 1990 ocorre um aumento da frequência escolar, principalmente no Ensino Fundamental ou entre estudantes de 7 a 15 anos, como pode ser observado no Gráfico 2. Em 1992, 85% da população com idade entre 7 e 15 anos frequentavam a escola, atingindo em 2011 quase 98%. Vale lembrar que, com a aprovação da Lei nº 11.274/06, o Ensino Fundamental no Brasil teve a sua duração alterada de 8 para 9 anos em 2009, assegurando o ingresso de crianças de 6 anos no ensino obrigatório. As porcentagens são bem inferiores para os jovens de 16 e 17 anos. Somente 57% deles estavam na escola em 1992, aumentando para 80% em 2011. Ainda assim, cerca de 1,4 milhão de adolescentes de 16 e 17 anos estão fora da escola atualmente.
GRÁFICO 2
– Porcentagem de crianças e adolescentes na escola (1992 a 2011).
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011), exceto a área rural da região Norte.
A redução do trabalho infantil assim como o aumento da frequência escolar observados nas últimas décadas no Brasil estão associados tanto às mudanças nas condições socioeconômicas das crianças e adolescentes como às diversas ações direcionadas ao combate do trabalho infantil, por parte de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil, de sindicatos, do setor produtivo e de organismos internacionais, como o Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Algumas ações serão descritas a seguir, lembrando que algumas delas não foram acompanhadas de uma avaliação mais detalhada acerca do seu impacto sobre o fenômeno estudado e, portanto, pode haver um gap importante entre o desenho de tais ações e sua concretização. Em 1990 é instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com ele implementa-se um Sistema de Garantia de Direitos e um Sistema de Proteção. É então detalhado como se pode implementar os direitos das crianças e adolescentes, a quem cabe garantir esses direitos e é estabelecido um sistema de denúncias. Os Conselhos de Direitos, de âmbito nacional, estadual e municipal, e os Conselhos Tutelares, criados no ECA, são corresponsáveis na ação de combate ao trabalho infantil, cabendo a eles cuidar dos direitos das crianças e adolescentes em geral, em parceria com o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. A legislação brasileira sobre o trabalho infantil está harmonizada com as atuais disposições da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) e das Convenções números 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A OIT tem papel importante na luta contra o trabalho infantil. Sua visão é a de que o trabalho infantil prejudica a saúde, a educação e a qualidade de vida em geral das crianças. Preocupada com a situação de exploração do trabalho infantil, a OIT lançou em 1992 o Programa Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC). Trata-se de um programa mundial de cooperação técnica, que visa à erradicação progressiva do trabalho infantil mediante o fortalecimento das capacidades nacionais e do incentivo à mobilização mundial para o enfrentamento da questão. Promove o desenvolvimento e a aplicação de legislação protetora e apoia organizações parceiras na implementação de medidas destinadas a prevenir o trabalho infantil, a retirar crianças de trabalhos perigosos e a oferecer alternativas imediatas, como medida transitória para a erradicação do trabalho infantil. O trabalho da OIT e do IPEC foi fundamental para promover uma conscientização e mudar os pré-conceitos culturais com relação ao trabalho infantil no Brasil. Assim, o trabalho infantil começou a ser visto como algo negativo e que pode causar danos às crianças.
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Muitos ministérios têm ações que contribuem para a redução do trabalho infantil, como o Ministério da Educação, da Saúde, da Cultura, dos Esportes e da Previdência e Assistência Social. O Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Desenvolvimento Social, por outro lado, agem de forma mais direta no combate ao trabalho infantil. O Ministério do Trabalho e Emprego, na década de 1990, cria comissões de combate ao trabalho infantil nas Delegacias Regionais do Trabalho, evoluindo posteriormente para núcleos e depois para grupos. A criação desses grupos propiciou a consolidação de uma ação minuciosa de fiscalização, que resultou na elaboração do primeiro diagnóstico do trabalho infantil, editado em 1995, contendo informações detalhadas que forneceram a base operacional para as ações neste campo, estimulando a criação dos Fóruns Estaduais. Os grupos especiais de combate ao trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente (Gectipas) investigam as condições de saúde das crianças e adolescentes e os prováveis proble mas decorrentes do trabalho, encaminham essas crianças ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e/ou às instâncias do sistema de garantia de direitos. Procuram, ainda, coordenar sua atuação de fiscalização com outras ações educativas e de proteção ao adolescente e de apoio à família, desenvolvidas por outras instâncias governamentais e não governamentais. O Ministério Público do Trabalho (MPT) defende o ordenamento jurídico e os direitos sociais dos trabalhadores e tem atuado na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes que se encontram em situação de trabalho. O MPT tem promovido a articulação entre os diversos setores envolvidos com a problemática, com participação ativa na constituição e manutenção de Fóruns Estaduais. A meta é a erradicação do trabalho infantil e proteção do trabalhador adolescente. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) foi criado no final de 1994 com o objetivo de propiciar instância aglutinadora e articuladora de agentes sociais institucionais envolvidos com políticas e programas destinados a prevenir e erradicar o trabalho infantil no país. Em seu momento inicial, as principais propostas de atuação do Fórum Nacional incluíam elaborar e socializar estratégias de atuação na prevenção e erradicação do trabalho infantil, mobilizar empregadores, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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empregados e suas respectivas organizações, para estabelecer, via negociação coletiva, normas específicas que visassem à erradicação do trabalho infantil, integrar esforços das diversas áreas na defesa dos direitos da criança e do adolescente, sensibilizar a sociedade por meio de influência junto aos meios de comunicação de massa, dentre outros. As ações do Fórum são complementárias às do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), criado em 1992 para formular políticas públicas e destinar recursos para obter o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, o Fórum fomenta discussão mais específica, subsidiando o Conanda com informações mais precisas sobre o trabalho infantil. Em 1996 é sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e é instituído o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Em 1998 passa então a vigorar a nova sistemática de redistribuição dos recursos destinados ao Ensino Fundamental com base no número de alunos atendidos em cada rede de ensino, levando a um aumento das matrículas. Uma ampla mobilização social de organizações governamentais e não governamentais ocorreu no processo de elaboração da Constituição de 1988 para se estabelecer princípios constitucionais que priorizassem a criança e o adolescente e as ações de políticas sociais voltadas a eles. Assim, a idade de 14 anos foi estabelecida na Constituição de 1998 como idade mínima para o trabalho e proibiu-se qualquer forma de trabalho noturno e perigoso à saúde para crianças menores de 18 anos. Em dezembro de 1998 foi aprovada uma Emenda Constitucional que elevou a idade mínima para 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos. O Brasil é signatário das convenções números 138 e 182 da OIT, e assim assumiu o compromisso de cumprir suas determinações. Desde a adoção da convenção da OIT número 182 para a eliminação das piores formas de trabalho infantil em 2000, governo, sociedade civil e organizações internacionais têm implementado muitas ações visando à redução das piores formas de trabalho infantil e vêm, assim, obtendo resultados significativos. Sabe-se que a erradicação do trabalho infantil, juntamente com a disponibilidade de educação de qualidade e capacitação dos jovens, é fundamental para a obtenção de melhores postos de trabalho
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e melhores salários na fase adulta da vida, como forma de se quebrar o ciclo de pobreza vivido pela família e aumentar a qualidade de vida da população. Em 2002 o Brasil ratificou a Convenção 138, que estabelece idade mínima de 15 anos para ingresso no mercado de trabalho e normas para a redução do trabalho infantil. Em 2002 é criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), controlada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A Conaeti foi responsável pela elaboração do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente em 2003 e sua revisão em 2010. Sua principal competência é a coordenação, monitoramento e avaliação do Plano. Além disso, cabe à Conaeti verificar a conformidade entre as Convenções 138 e 182 da OIT e as normas legais vigentes, propor mecanismos para o monitoramento da aplicação da Convenção no 182 e avaliar a definição dos trabalhos penosos para menores de 18 anos. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) implantou em 2005 o Sistema Único de Assistência Social (Suas), com o objetivo de articular meios, esforços e recursos para a execução dos programas, serviços e benefícios socioassistenciais.O Suas organiza a oferta da assistência social em todo o Brasil, promovendo bem-estar e proteção social às famílias, crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e idosos. A gestão da assistência social brasileira é acompanhada e avaliada tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil, igualmente representada nos conselhos nacionais do Distrito Federal, estaduais e municipais de assistência social. Um exemplo de assistência social realizada pelo MDS é a oferta de Equipes Volantes e Serviços Especializados em Abordagem Social. As equipes permitem que os municípios tenham condições de ampliar a busca ativa nos territórios, identificar situações de trabalho infantil e realizar registros/atualizações no Cadastro Único. Essas ações garantem a transferência de renda às famílias com crianças e adolescentes retirados da situação de trabalho, a inclusão das crianças e adolescentes nos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e o acompanhamento familiar por meio dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
Muitos benefícios da Política de Assistência Social, que integra a Proteção Social Básica no âmbito do Suas, são geridos pelo MDS. Entre eles destaca-se o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), o Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O Peti foi criado em 1996 com o objetivo de retirar as crianças e adolescentes do trabalho considerado perigoso, penoso, insalubre ou degradante, ou seja, aquele trabalho que coloca em risco a saúde e segurança das crianças e adolescentes. A família inserida no Peti recebe uma bolsa mensal para cada filho, menor de 16 anos, retirado do trabalho. Para isto, as crianças e adolescentes devem estar frequentando a escola e a jornada ampliada. A jornada ampliada visa fomentar e incentivar a ampliação do universo de conhecimentos da criança e do adolescente, por meio de atividades culturais, esportivas, artísticas e de lazer, no período complementar à escola. O programa também proporciona apoio e orientação às famílias por meio da oferta de ações socioeducativas. Dados de 2012 mostram que cerca de 854 mil crianças e adolescentes são atendidos pelo Peti em 3.597 municípios (65% do total), distribuídos ao longo de todo o território nacional. Estes municípios contam com 16.156 núcleos e 41.968 orientadores sociais. Mensalmente é desembolsado pouco mais de 37 milhões de reais para o pagamento das bolsas e para garantir o funcionamento da jornada ampliada no Peti. Yap, Sedlacek e Orazem (2001), usando dados de municípios da Bahia, Pernambuco e Sergipe que implementaram o Peti, encontraram aumento no tempo de permanência na escola, redução do trabalho infantil e nas atividades perigosas e melhoria na distorção idade-série em crianças beneficiárias do Peti. Barros e Mendonça (2011) destacam o programa de erradicação do trabalho infantil (Peti) como responsável por mais de 80% da queda do trabalho infantil no período analisado de 1992 a 2009, sendo o fator principal para a redução da incidência de crianças trabalhando nos últimos 20 anos, mesmo considerando as significativas melhorias das condições socioeconômicas das famílias. Apesar de o Peti ser uma política específica para atender crianças e adolescentes em situação de trabalho, outros programas sociais sem foco específico no trabalho infantil também têm impacto na sua redução, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e os programas de transferência de renda condicionada, Bolsa Escola (2001 a 2003) e Bolsa Família (que 24
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a partir de 2004 incorpora dezenas de programas dispersos de transferência de recursos para diferentes segmentos da população pobre). Em 2006 o Peti foi incorporado ao Programa Bolsa Família. O BPC é um benefício individual que assegura a transferência mensal de um salário-mínimo ao idoso, com 65 anos ou mais, e à pessoa portadora de deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e começou a ser pago a partir de 1996. Para ser elegível é preciso comprovar renda mensal familiar per capita inferior a um quarto do salário-mínimo vigente. Atualmente há 3,6 milhões de beneficiários do BPC em todo o Brasil, sendo 1,9 milhão de pessoas com deficiência e 1,7 milhão de idosos. Comparado aos outros programas do governo federal, o valor do benefício é bastante alto, e isto se reflete no tamanho do orçamento destinado ao programa. Oliveira e Kassouf (2012) analisaram o impacto do BPC recebido por idosos e observaram uma redução no trabalho de crianças de 10 a 15 anos que residem em domicílios em que há idosos beneficiados pelo programa. O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em 2003 para integrar e unificar o programa Bolsa Escola, o Auxílio Gás, o Bolsa Alimentação e o Cartão Alimentação. É um programa de transferência direta de renda, que além de beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, possui condicionalidades que reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social. A contrapartida é que as famílias beneficiárias mantenham seus filhos e/ou dependentes com frequência na escola e vacinados, enquanto gestantes ou lactantes devem realizar o pré-natal e o acompanhamento da sua saúde e do bebê. Ademais, crianças e adolescentes com até 15 anos em risco ou retiradas do trabalho infantil pelo Peti devem participar dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do Peti e obter frequência mínima de 85% da carga horária mensal. A seleção das famílias é feita com base nas informações registradas pelo município no Cadastro Único,2 instrumento de coleta de dados que tem como objetivo identificar todas as famílias de baixa renda existentes no Brasil. Com base nesses dados, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome seleciona, de forma automatizada, as famílias que serão incluídas no Programa. No entanto, o cadastramento não implica a entrada imediata das famílias no Programa e o recebimento do benefício. Os valores dos benefícios pagos pelo programa variam de acordo com as características de cada família, dependendo da renda mensal da família por pessoa, o número de crianças e adolescentes de até 17 anos, de gestantes, nutrizes e de componentes da família. Atualmente, o programa atende mais de 14 milhões de famílias e tem um custo de R$ 25 bilhões. Uma vez que a condicionalidade educacional torna obrigatória a frequência das crianças à escola, há redução do tempo dispendido em outras atividades, inclusive no mercado de trabalho, o que acarreta redução do trabalho infantil. Diversos estudos que analisaram o impacto dos programas de transferência de renda condicionada sobre o trabalho infantil mostram efeitos positivos, tanto na redução da participação das crianças no mercado de trabalho quanto na redução do número de horas de trabalho das crianças. Ferro, Kassouf e Levison (2010) mostram que o programa Bolsa Escola reduz de 2% a 3% a probabilidade de crianças da área urbana trabalharem e de 6% a 9% a probabilidade de crianças da área rural trabalharem. Apesar de o programa Bolsa Família atender mais de 13 milhões de famílias em todo o território nacional e diversas pesquisas terem mostrado um grande impacto do programa na redução da pobreza e desigualdade de renda, aumento da escolaridade, queda no trabalho infantil e melhoria da nutrição e saúde das famílias, o seu orçamento é relativamente baixo, com valor em torno de 0,6% do PIB (Produto Interno Bruto). Além de todos esses fatores que com certeza colaboraram para a redução do trabalho infantil, fatores socioeconômicos também foram responsáveis pela diminuição do número de crianças trabalhando. O salário-mínimo real, por exemplo, aumenta de forma expressiva no período analisado e passa de R$ 227,00 em 1992 para R$ 585,00 em 2011, como pode ser visualizado no Gráfico 3. O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda da população, atinge em 2011 o valor mais baixo dos últimos 35 anos e a pobreza reduz significativamente, com o número de pessoas pobres (com renda inferior a R$ 200,00 por mês) passando de 53 milhões em 1995 para menos de 34 milhões em 2011, ou seja, uma redução de 36%. 26
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Evolução do salário-mínimo real no Brasil (1992 a 2011).
Salário-mínimo real (R$)
GRÁFICO 3 –
Fonte: Ipeadata.
Finalmente deve ser citado o documento formulado na reunião de Haia na Holanda em 2010, denominado Roadmap, que estabelece como prioridade a eliminação das piores formas de trabalho infantil até 2016. Como recomendações para atingir esse objetivo são destacadas as seguintes ações: 1) Adotar e implementar legislações contra o trabalho infantil e as piores formas de trabalho infantil, desenvolver e implementar planos de ações para a redução das piores formas de trabalho infantil, possibilitar que crianças e famílias tenham acesso à justiça, rever e atualizar a lista de atividades perigosas, promover e fortalecer as fiscalizações no trabalho. 2) Fornecer educação de qualidade às crianças e jovens, melhorar e facilitar o acesso às escolas, reduzir ou eliminar custos, facilitar e possibilitar a transição das crianças engajadas nas piores formas de trabalho para escolas apropriadas e treinamento vocacional. 3) Implementar estratégias, políticas e programas que ofereçam serviços sociais e de saúde para famílias vulneráveis e socialmente excluídas, assim como para crianças com necessidades especiais. 4) Promover emprego decente, oferecer cursos de capacitação, regularizar e formalizar economias informais, fortalecer a fiscalização no trabalho e combater o trabalho infantil em toda a cadeia produtiva. Muitas das ações propostas no Roadmap já estão sendo implementadas no Brasil. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
3. Análise dos dados Nesta seção serão apresentadas informações sobre trabalho infantil com base nos dados das Pnads de 1992 a 2011. O Gráfico 4 mostra a idade em que o indivíduo começou a trabalhar por faixa etária em 1992 e 2011. Nas faixas etárias mais jovens, os indivíduos em 1992 começavam a trabalhar cerca de dois anos mais cedo do que os indivíduos em 2011. Já nas faixas etárias de indivíduos mais idosos, a idade de ingresso no mercado de trabalho é semelhante em 1992 e 2011. Ademais, quanto mais jovem é o indivíduo mais tarde ele inicia no mercado de trabalho. Enquanto os jovens de 20 a 30 anos iniciaram suas atividades laborais com 16 anos em 2011, os de 70 a 80 anos iniciaram com menos de 12 anos de idade, em média. Isso mostra mais uma vez que há uma tendência de queda no trabalho infantil.
Idade em que o indivíduo começou a trabalhar, por faixa etária (1992 e 2011).
Idade que começou a trabalhar
GRÁFICO 4 –
Fonte: Pnad (IBGE, 1992, 2011).
O Gráfico 5 mostra o percentual de crianças de 10 a 15 anos trabalhando no período de 1992 a 2011 por região do Brasil. Em todo o período, é na região Nordeste onde há maior percentual de crianças trabalhando, enquanto no Sudeste observa-se o menor percentual. A região Sul foi a que mais reduziu o trabalho infantil, passando de 29% em 1992 para 8% em 2011, ou seja, uma redução de quase 21 pontos percentuais no período. As regiões Nordeste e Centro-Oeste também tiveram uma redução
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de quase 20 pontos percentuais no período. A região Norte não inclui a área rural, que não era coletada pelo IBGE antes de 2004, e foi então excluída para possibilitar a comparação no período. Se incluíssemos a área rural, em 2011, o percentual de crianças trabalhando de 10 a 15 anos seria de 11,8%, valor bem superior ao apresentado no Gráfico 5 (7,1%). A região Sudeste partiu de uma taxa de trabalho infantil, em 1992, de 17% e reduziu para menos de 5% em 2011. Atualmente, incluindo o Norte rural, observa-se que as maiores incidências de trabalho infantil estão no Norte e Nordeste, vindo em seguida o Sul e Centro-Oeste e com a menor porcentagem o Sudeste. GRÁFICO 5 –
Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por região do Brasil (1992 a 2011).
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
O Gráfico 6 mostra o percentual de crianças de 10 a 15 anos que trabalha por unidade da federação e Distrito Federal em 1992 e 2011. Em 2011, observa-se que as maiores porcentagens estão nos estados do Norte e Nordeste e as menores porcentagens estão no Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo, que são estados bastante urbanizados. O Piauí tem a maior porcentagem de crianças trabalhando, vindo em seguida, Tocantins, Maranhão, Amazonas e Acre. Ao analisarmos os valores absolutos, observamos que em 2011, Bahia e Minas Gerais contêm o maior número de crianças e adolescentes trabalhando, com valores próximos a 180 e 160 mil, respectivamente. O estado de São Paulo tem 150 mil crianças
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
trabalhando, apesar de a porcentagem ser baixa. Também é alto o número de trabalhadores no Maranhão, Ceará, Paraná e Rio Grande do Sul, com valores próximos a 100 mil trabalhadores. Comparando os valores de 1992 e 2011, observa-se que as maiores quedas na porcentagem de crianças trabalhando ocorreram nos estados de Pernambuco, Paraíba e Maranhão, com redução de quase 25 pontos percentuais. Todos os estados tiveram redução na porcentagem de crianças trabalhando no período analisado e muitos reduziram mais de 20 pontos percentuais.
Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por estado do Brasil (1992 e 2011).
% de crianças de 10 a 15 anos trabalhando
GRÁFICO 6 –
Fonte: Pnads de 1992 e 2011; excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
O Gráfico 7 mostra a relação entre o trabalho infantil e o PIB per capita entre os estados brasileiros em 2011. Pela reta estimada, observa-se uma relação inversa, isto é quanto maior a renda do estado menor é o trabalho infantil. O Piauí, Maranhão e Tocantins foram os estados com maior incidência de trabalho infantil, destacando-se os estados do Nordeste e do Norte com elevada incidência de trabalho infantil e também os estados mais pobres do país. Já o Distrito Federal, São Paulo e Rio de Janeiro são os estados mais ricos do país e têm menor incidência de crianças de 10 a 15 anos trabalhando. Por outro lado, há estados com PIB per capita semelhante e valores bastante diferentes de trabalho infantil como, 30
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por exemplo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Os dois estados têm PIB per capita próximo a R$ 11.000,00, mas no Rio de Janeiro a porcentagem de crianças trabalhando é menos de 2% e em Santa Catarina é quase 6%. Nesse último estado há emprego de crianças na agricultura familiar, mais por razões culturais do que por necessidade de renda. Da mesma forma, Tocantins, Bahia, Pernambuco e Amapá têm PIB per capita próximo a R$ 5.000,00 e porcentagens de crianças trabalhando com variação de 15% a 3%.
Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por estado. (Dados do PIB per capita, 2011).
% de crianças de 10 a 15 anos trabalhando
GRÁFICO 7 –
Fonte: Pnad (IBGE, 2011).
Apesar de o número de crianças trabalhando ser maior na área urbana com relação à área rural, a porcentagem de trabalhadores é superior na rural. Vale lembrar que, de acordo com a Pnad de 2011, 85% da população brasileira encontra-se na área urbana. Observe no Gráfico 8 que quase 50% das crianças de 10 a 15 anos trabalhavam na área rural em 1992 contra 15,6% na área urbana. Essas porcentagens caem sistematicamente ao longo do período, atingindo 19% e 5%, respectivamente, em 2011. Houve uma queda de 30 pontos percentuais na área rural, no período de 1992 a 2011, enquanto na área urbana a queda foi de pouco mais de 10 pontos percentuais. Em 1992 pouco menos de 2,4 milhões de crianças trabalhavam, tanto no rural como no urbano do Brasil, mas em 2011 esse número cai para 600 mil no rural e 800 mil no urbano. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando nas áreas rural e urbana do Brasil (1992 a 2011). GRÁFICO 8 –
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Há mais meninos trabalhando do que meninas no Brasil, mas essa diferença tem se reduzido ao longo do tempo. Em 1992, 31% dos meninos de 10 a 15 anos trabalhavam, reduzindo para 9,5% em 2011. Já as meninas passaram de 16% para menos de 5% nesse período, como pode ser observado no Gráfico 9. GRÁFICO 9 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por sexo (1992 a 2011).
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
O Gráfico 10 mostra a porcentagem de crianças de 10 a 15 anos que só estudam, trabalham e estudam, só trabalham e não trabalham nem estudam. Em 1992, 68% das crianças só estudam, 15% estudam e traba32
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lham, 8,5% só trabalham e 8,3% não estudam nem trabalham. Ao longo do tempo, aumenta a porcentagem de crianças só estudando e diminui as demais categorias. Em 2011, 91% só estudam, 6,6% estudam e trabalham, somente 0,5% só trabalha e 2,2% não estudam nem trabalham. Dessas 2,2% ou 460 mil crianças nessa faixa etária que não estudam nem trabalham, 72% das meninas e 30% dos meninos declararam cuidar de afazeres doméstico 22 horas e 10 horas por semana, respectivamente, o que explica em parte a alta incidência de crianças sem atividade (trabalho e escola) aparente. Entretanto, ainda é alta a porcentagem de meninos sem trabalhar nem estudar e que também não cuidam de afazeres domésticos. O aumento da porcentagem de crianças de 10 a 15 anos de idade só estudando e a redução nas atividades laborais de 1992 a 2011 podem estar associados às políticas governamentais voltadas à educação e aos programas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa Escola e o Bolsa Família, que fornecem renda às famílias pobres, mas exigem como contrapartida a frequência das crianças na escola, resultando em elevação da frequência escolar e redução do trabalho infantil.
GRÁFICO 10 – Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos estudando e/ou trabalhando ou sem
estudar nem trabalhar (1992 a 2011).
. Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
A Tabela 1 mostra a porcentagem de crianças ocupadas por posição na ocupação em 1992 e 2011. A maioria das crianças empregadas são não remuneradas, vindo em seguida os empregados sem carteira de
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trabalho assinada. Em 1992 os trabalhadores na produção para o próprio consumo representam 7,4%, passando para 15,2% em 2011. Já os trabalhadores domésticos passam de 10% em 1992 para 7,8% em 2011. Vale lembrar que a legislação brasileira proíbe o trabalho de menores de 16 anos, permitindo a partir de 14 anos somente na condição de aprendiz. O Decreto nº 6.481, que tratou da proibição das piores formas de trabalho infantil regulamentou a Convenção 182, da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil e atualizou a lista de atividades econômicas consideradas insalubres e perigosas para o trabalho de menores de 18 anos. Pelo decreto, ficou proibido o trabalho do menor de 18 anos em 94 tipos de atividades que podem causar danos à integridade física, mental, social, moral e ao desenvolvimento dos jovens. Entre as atividades elencadas, estão as que se referem aos serviços domésticos. Isso porque os jovens que trabalham nestas atividades estão sujeitos, por exemplo, a esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas de trabalho, trabalho noturno, calor, exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos, podendo comprometer o processo de formação social e psicológica. O emprego doméstico inclui todos os serviços domésticos: faxineira, lavadeira, diarista, jardineiro, empregada doméstica e babás. Do total de crianças de 10 a 15 anos que têm emprego doméstico em 2011 (122.651), mais de 12% somente trabalham e não estudam (mais de 15.000). Essas crianças recebem em média R$ 150,00 por mês (variando de R$ 10,00 a R$ 800,00 segundo a amostra) e trabalham, em média, 28 horas por semana. As engajadas na categoria “outro empregado sem carteira de trabalho assinada” recebem quase o dobro de salário (R$ 268,00 por mês) e trabalham 20,8 horas por semana, em média. Das crianças de 10 a 15 anos que trabalham, a maior porcentagem daquelas com emprego doméstico está na região Centro-Oeste (10%) e Sul (8%), vindo em seguida a região Sudeste, Nordeste e Norte. Há 135 mil adolescentes de 16 e 17 anos no trabalho doméstico, sendo mais comum nas regiões Norte (9,2%) e Nordeste (9,1%), vindo em seguida a região Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
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TABELA 1 – Crianças de 10 a 15 anos ocupadas por posição na ocupação (1992 e 2011). Posição na ocupação
1992
2011
Número
%
Número
%
Empregado com carteira de trabalho assinada
206.953
4,33
33.293
2,11
Outro empregado sem carteira assinada
1.129.859
23,63
464.860
29,46
Trabalhador doméstico
480.764
10,05
122.651
7,77
Conta própria
263.939
5,52
98.368
6,23
Empregador
658
0,01
1.372
0,09
Trabalhador na produção para o próprio consumo
353.181
7,39
240.286
15,23
Trabalhador na construção para o próprio uso
-
-
11.525
0,73
Não remunerado
2.346.914
49,08
605.323
38,37
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011)de 1992 e 2011; excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
O ramo agrícola é o que mais emprega crianças no Brasil. Como pode ser observado no Gráfico 11, em 1992, 52,4% das crianças de 10 a 15 anos que trabalhavam estavam exercendo atividades agrícolas e pecuárias, passando para 44% em 2011. Apesar de ter havido uma redução na porcentagem de crianças trabalhando no ramo agrícola, ainda é o ramo de atividade com a maior porcentagem de crianças trabalhando. Em 2011, além do ramo agrícola, 19% das crianças estavam trabalhando no comércio, 12% em serviços, 8% na indústria, 8% no emprego doméstico e 4% na construção civil. Dentro do ramo agrícola, as crianças trabalham principalmente nas culturas de arroz, milho, mandioca, em hortas e com manejo de animais e aves. Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando no ramo agrícola (1992 a 2011).
% de crianças de 10 a 15 anos trabalhando
GRÁFICO 11 –
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
A média do número de horas trabalhadas semanalmente por crianças de 10 a 15 anos de 1992 a 2011 pode ser visualizada no Gráfico 12. Pode-se observar que há uma queda constante de 1992 a 2006, passando de 32 para 21 horas. Após esse período, as médias de horas oscilam e em 2011 o valor é de 22 horas por semana. Em 2011, o ramo de atividade que teve a maior média de horas trabalhadas por semana foi o de serviços domésticos (28h), seguido pela construção civil (26h). O ramo agrícola foi o que apresentou o menor número médio de horas trabalhadas (19h), sendo o único ramo que apresentou jornada de trabalho semanal média de menos de 20 horas para crianças de 10 a 15 anos.
Média de horas trabalhadas por semana no trabalho principal (1992 a 2011).
Horas trabalhadas por semana
GRÁFICO 12 –
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Ao dividirmos a renda das famílias com crianças de 10 a 15 anos em décimos de renda, do mais pobre para o mais rico, observamos no Gráfico 13 que há maior porcentagem de crianças trabalhando no estrato mais pobre de renda. Em 1992 a diferença é mais acentuada, passando de 36% para 11%, já em 2011 no décimo mais pobre, 11,7% das crianças trabalham e no décimo mais rico, 4,5%. Observe que mesmo nos décimos mais ricos há um número elevado de crianças trabalhando; em 2011, quase 225 mil trabalham nos dois décimos mais ricos e 230 mil no décimo mais pobre. Em 1992, 500 mil trabalham nos dois décimos mais ricos e 700 mil no décimo mais pobre.
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Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando por décimo de renda familiar per capita (1992 e 2011).
% trabalhando de 10 a 15 anos
GRÁFICO 13 –
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins. .
O Gráfico 14 mostra os rendimentos mensais médios deflacionados das crianças de 10 a 15 anos que trabalham e têm remuneração para cada décimo de renda familiar per capita em 2011. No décimo mais pobre, o rendimento mensal médio é de cerca de R$ 100,00, aumentando até atingir R$ 420,00 no décimo mais rico de renda familiar.
Porcentagem de crianças de 10 a 15 anos trabalhando e rendimento mensal médio por décimo de renda familiar per capita (2011).
Porcentagem trabalhando
Rendimento mensal
GRÁFICO 14 –
Fonte: Pnad (IBGE, 2011). .
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
Essa mesma análise realizada para adolescentes de 16 e 17 anos mostra que, em 2011, se não considerarmos o décimo mais rico, a porcentagem de adolescentes trabalhando aumenta ao invés de diminuir (Gráfico 15). Está havendo uma mudança ao longo do tempo com relação aos fatores que levam crianças e adolescentes ao mercado de trabalho. Outros fatores, que não pobreza e necessidade, precisam ser avaliados. Disponibilidade de trabalho, maior qualificação e escolaridade dos jovens para obterem empregos com maior facilidade, influên cia dos pais e do ambiente mais rico para a inclusão no mercado de trabalho, autonomia e consumismo etc.
Porcentagem de crianças de 16 e 17 anos trabalhando por décimo de renda familiar per capita (1992 e 2011).
% trabalhando de 16 e 17 anos
GRÁFICO 15 –
Fonte: Pnads (IBGE, 1992-2011); excluem a área rural da região Norte, exceto Tocantins.
Caracterizar o perfil das crianças que exercem atividades tidas como perigosas, tais como cultivo de cana-de-açúcar e fumo, pesca, extração de minérios, fabricação de produtos químicos e outros é difícil devido ao reduzido número de observações de pessoas até 17 anos na amostra da Pnad nessas atividades. Deve-se levar em consideração que o reduzido número de observações resulta na não representatividade da população. Na Tabela 2, foram selecionadas algumas atividades consideradas perigosas, com base na Pnad 2011 e na lista de piores formas de trabalho infantil divulgada pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti). Vale ressaltar que não há dados detalhados sobre crianças e adolescentes desenvolvendo essas atividades e a tabela serve como uma orientação, mas não é precisa.
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Ana Lúcia Kassouf
Observa-se que há mais de 10 mil crianças e adolescentes com menos de 18 anos trabalhando no cultivo de cana-de-açúcar e mais de 22 mil no cultivo de fumo. Mais de 83 mil trabalham na exploração florestal e fabricação de produtos de madeira e móveis. Quase 36 mil trabalham em atividades relacionadas à pesca e muitos estão envolvidos na fabricação de couro, borracha, produtos químicos, minerais, metais e máquinas. Ademais, 63 mil trabalham como ambulantes no comércio de bens e alimentos.
TABELA 2 –
Crianças e adolescentes com menos de 18 anos trabalhando em atividades perigosas (2011).
Atividades perigosas
Número de pessoas menores de 18 anos
Cultivo de cana-de-açúcar
10.184
Cultivo de fumo
22.575
Silvicultura, exploração florestal e fabricação de produtos de madeira e móveis
83.571
Pesca
35.889
Fabricação de couro e artefatos de couro
36.304
Fabricação de produtos químicos
15.221
Fabricação de borracha e plástico
7.377
Fabricação de produtos de minerais não metálicos (cerâmica, mármore etc.)
21.674
Fabricação de produtos de metal
28.155
Fabricação de máquinas e equipamentos
16.140
Comércio ambulante
62.938
Total
340.028
Fonte: Pnad (IBGE, 2011).
Uma forma de reduzir o número de crianças e adolescentes exercendo atividades perigosas e os riscos envolvidos na realização dessas atividades é por meio das ações de fiscalização do trabalho. A Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) desenvolve ações de fiscalização do trabalho, articulação e mobilização social destinadas à prevenção e eliminação do trabalho infantil no país. Com base nas informações do Sistema de Informações sobre Focos de Trabalho Infantil (Siti), foram realizadas em todo o país cerca de 7.029 ações de fiscalização em 2011, que redundaram na retirada de 10.362 crianças e adolescentes com idade inferior a 18 anos em situações irregulares. A Tabela 3 mostra que a região Nordeste é onde há maior número de crianças afastadas (4.191) e a região Sul mostra o menor valor (810).
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
Todas as outras regiões têm valores semelhantes e em torno de 1.800 crianças e jovens afastados do trabalho. O Ceará (829), Pernambuco (817), Bahia (801) e Mato Grosso do Sul apresentam os maiores contingentes de crianças e adolescentes afastados em situação irregular de trabalho. Observa-se também que ainda é reduzida a porcentagem de municípios fiscalizados no Brasil, pois em 2011 somente 720 municípios no total de 5.565 foram fiscalizados, o que representa 13% dos municípios. Número de crianças e adolescentes afastadas de situação irregular de trabalho infantil e número de ações fiscais e de municípios fiscalizados no Brasil, grandes regiões e unidades da federação (2011). TABELA 3 –
Número de municípios
Área geográfica
Número de ações fiscais realizadas
Fiscalizados
Total
% Fiscalizados
Número total de crianças e adolescentes afastadas do trabalho
Região Norte
736
75
449
17
1747
Rondônia
83
8
52
15
292
Acre
94
15
22
68
180
Amazonas
223
9
62
15
430
Roraima
22
2
15
13
21
Pará
123
30
143
21
458
Amapá
42
2
16
13
111
Tocantins
149
9
139
6
255
Região Nordeste
1319
212
1794
12
4191
Maranhão
142
12
217
6
239
Piauí
101
21
224
9
309
Ceará
151
30
184
16
829
Rio Grande do Norte
23
13
167
8
326
Paraíba
30
10
223
4
316
Pernambuco
254
33
185
18
817
Alagoas
18
9
102
9
327
Sergipe
207
26
75
35
227
Bahia
393
58
417
14
801
Região Sudeste
2367
195
1668
12
1725
Minas Gerais
262
61
853
7
635
Espírito Santo
39
15
78
19
405
Rio de Janeiro
1510
44
92
48
496
São Paulo
556
75
645
12
189
Região Sul
848
118
1188
10
810
Paraná
287
24
399
6
364
Santa Catarina
454
41
293
14
217
Rio Grande do Sul
107
53
496
11
229
Região Centro-Oeste
1759
120
466
26
1889
Mato Grosso do Sul
776
65
78
83
763
Mato Grosso
175
26
141
18
269
Goiás
333
28
246
11
574
Distrito Federal
475
1
1
100
283
Total Brasil
7029
720
5565
13
10362
Fonte: Siti – Sistema de Informações sobre Focos de Trabalho Infantil no Brasil/Ministério do Trabalho. As informações referentes à quantidade de municípios em cada estado foram retiradas do Censo 2010.
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Apesar de ainda ser reduzida a porcentagem de municípios fiscalizados, sabe-se que as inspeções do trabalho infantil foram intensificadas a partir de 1994 com a criação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) e o número de ações fiscais tem aumentado. Entretanto, ao contrário do início da década de 1990 quando era mais fácil encontrar as crianças exercendo praticamente todos os tipos de atividades, inclusive no mercado formal, atualmente, com a grande redução no número de crianças trabalhando e com maior conscientização da população de que o trabalho infantil é maléfico, fica cada vez mais difícil encontrar crianças e adolescentes em situação de trabalho, exigindo muito mais esforço por parte dos fiscais e mais recursos para cobrir os custos. Antigamente, a cada ação fiscal realizada se encontrava em média sete crianças e adolescentes, mas hoje em dia essa média caiu para menos de uma criança ou adolescente. Observa-se assim que a fiscalização tem ido mais a campo, tem interiorizado mais as suas ações, mas ainda assim o corpo fiscal é pequeno e não tem condições de atingir a totalidade dos municípios. Assim, há um dispêndio maior de recursos e um maior número de ações, ainda que o corpo fiscal não tenha aumentado. O desafio de hoje é encontrar essas crianças e fazer a ação fiscal e não simplesmente ir a campo. O Gráfico 16 mostra o número de crianças e adolescentes encontrados em situação de trabalho e afastados pela fiscalização de 2000 a 2012. Número de crianças e adolescentes encontrados em situação de trabalho e afastados pela fiscalização (2000 a 2012).
Crianças/adolescentes afastados pela fiscalização
GRÁFICO 16 –
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego.
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
6. Considerações finais O número de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos trabalhando (excluindo empregado com carteira de trabalho assinada) se reduz progressivamente durante todo o período considerado, passando de pouco mais de 5,5 milhões ou 15% em 1992 para cerca de 1,7 milhão ou 4% em 2011. A diminuição do número de crianças e adolescentes trabalhando no Brasil deve ser atribuída a diversas ações direcionadas ao combate do trabalho infantil, desde o início da década de 1990, por parte de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil, de sindicatos, do setor produtivo e de organismos internacionais. As diferentes ações, que incluem a criação de programas sociais resultaram em um significativo aumento da frequência escolar no período, queda da pobreza e desigualdade de renda e aumento do saláriomínimo real, que direta ou indiretamente impactaram na redução do trabalho infantil. Apesar do progresso observado na redução do trabalho infantil e no aumento da frequência escolar de 1992 até 2011, quase 2 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos ainda trabalham. Muitos desses trabalhadores não são remunerados ou recebem baixos rendimentos e trabalham um número elevado de horas por semana, o que os impedem de estudar. A baixa escolaridade e o pior desempenho escolar têm o efeito de limitar as oportunidades de emprego a postos que não exigem qualificação e que dão baixa remuneração, mantendo o jovem dentro de um ciclo repetitivo de pobreza já experimentado pelos pais. Ações fiscalizadoras são necessárias, mas são cada vez de mais difícil acesso, dado o caráter informal do trabalho. As maiores porcentagens de crianças e adolescentes trabalhando estão na região Norte e Nordeste, vindo em seguida o Sul, Centro-Oeste e por último o Sudeste. A redução do trabalho infantil de 1992 a 2011 está em torno de 20 pontos percentuais nas regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste. O Sudeste apresentou uma redução de 12 pontos percentuais. Antes de 2004 não se coletava informações do Norte rural, o que impossibilita a comparação. De forma análoga, a porcentagem de crianças de 10 a 15
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anos trabalhando na área rural do Brasil cai de 50% em 1992 para 19% em 2011, enquanto na área urbana, a queda foi de 15,6% para 5%. As maiores porcentagens de trabalho infantil estão nos estados do Norte e Nordeste e as menores porcentagens estão no Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo, que são estados bastante urbanizados. O Piauí tem a maior porcentagem de crianças trabalhando, vindo em seguida, Tocantins e Maranhão. Comparando os valores de 1992 e 2011, observa-se que as maiores quedas na porcentagem de crianças trabalhando ocorreram nos estados de Pernambuco, Paraíba e Maranhão, com redução de quase 25 pontos percentuais. Os dados mostram que uma porcentagem elevada de crianças e adolescentes em domicílios relativamente mais ricos trabalha, mostrando que não é só pobreza e necessidade que leva os jovens a trabalhar, mas também uma maior oferta de trabalho, um maior desejo de consumo e independência financeira e a perspectiva de que a escola e os estudos no qual deveriam estar inseridos não trazem retornos futuros. Muitas das ações sugeridas pelo Roadmap estão sendo implementadas no Brasil. Atualmente, 98% das crianças de 6 a 14 anos estão na escola. Cerca de 14 milhões de famílias estão sendo atendidas pelo programa Bolsa Família, o qual tem incorporado o programa Peti, voltado para a eliminação das piores formas de trabalho infantil e assistência às famílias. O programa Brasil Carinhoso visa atender famílias com pelo menos um filho de até 15 anos que, mesmo recebendo o Bolsa Família, continuavam na extrema pobreza, ou seja, com renda mensal inferior a R$ 70 por pessoa. Os programas envolvem não só o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), mas também o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Educação (MEC). A fiscalização e retirada de crianças e adolescentes em situações irregulares de trabalho é realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O Ministério Público do Trabalho (MPT) atua na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes que se encontram em situação de trabalho. Dos cerca de 1,7 milhão de trabalhadores de 5 a 15 anos no Brasil, 1 milhão têm entre 14 e 15 anos e deveriam estar cursando ou iniciando o Ensino Médio. Assim, o problema não é mais incluir e manter as crianças no Ensino Fundamental, mesmo porque atualmente 98% das crianças de
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
6 a 14 anos frequentam a escola, mas garantir que concluam o Ensino Médio e/ou cursos técnicos, adotando paralelamente políticas de capacitação que tornem a escola mais interessante e atrativa, de forma a adiar a entrada desses jovens no mercado de trabalho. É importante ampliar e melhorar o acesso à educação de qualidade, obrigatória e gratuita, para todas as crianças e adolescentes, adotando estratégias que garantam a conclusão do ensino básico (Fundamental e Médio). Disponibilidade de cursos técnicos e de capacitação adaptados às necessidades do mercado de trabalho é de extrema importância para a qualificação dos adolescentes e sua formação profissional para que possam estar aptos a trabalhar no futuro em melhores condições e recebendo melhores salários. Ademais, é preciso atender às necessidades dos adolescentes carentes que precisam do rendimento do trabalho para sua sobrevivência ou da sua família, assistindo-os com programas de renda para garantir sua transição à educação ou à formação profissional adequada. No âmbito da proteção social, é importante facilitar o acesso e a prestação de serviços de saúde e social nos territórios vulneráveis e marginalizados, como nas regiões mais pobres e em locais mais remotos e de difícil acesso, além de garantir atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade social, de modo a evitar que ingressem no mercado de trabalho. Finalmente, é preciso trabalhar a favor da regulação e formalização da economia informal, fortalecendo os sistemas públicos de inspeção do trabalho, apoiando a criação de empregos e promovendo o trabalho decente. Infelizmente, mesmo com a luta de diversos órgãos pela erradicação do trabalho infantil, ainda há alguns setores da sociedade defendendo a inserção precoce de crianças e adolescentes no mundo do trabalho como forma de mitigar a pobreza, o ócio, o consumo de drogas e a criminalidade. O papel da comunicação e da mídia é imprescindível para transmitir conhecimento e conscientizar a sociedade dos prejuízos e danos que o trabalho precoce causa às crianças, assim como da necessidade de se priorizar a educação de qualidade. Sabe-se hoje que não existe uma única política para eliminar o trabalho infantil e a sua persistência é uma evidência clara de que não há uma
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solução fácil. Entretanto, hoje temos maior e melhor entendimento das causas e consequências do trabalho infantil, o que nos permite avaliar e sugerir políticas para reduzi-lo ou erradicá-lo com maior segurança. Não há dúvidas de que o trabalho que envolve as piores formas de trabalho infantil – exploração sexual, tráfico e atividades de risco às crianças e adolescentes – deve ser banido, assim como os investimentos na qualidade e disponibilidade de escolas devem ser incentivados. É fundamental avançar no entendimento dos fatores que resultem na atração e permanência na escola por um período maior para todas as crianças e adolescentes brasileiros.
Notas 1 Nos anos de 2000 e 2010 não se realizou a Pnad por serem anos de censo
e em 1994 excepcionalmente também não houve Pnad. Em 1996 e 1997 as informações da Pnad sobre trabalho não incluíram menores de 10 anos. Para efeito de comparação, esses dados não incluem a área rural da região Norte, a qual não era levantada antes de 2004. 2 Cadastro Único. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/resolve
uid/1169e4d98311fe31e82e6712f9aa7c4a>. Acesso em: 23 ago. de 2013.
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Evolução do trabalho infantil no Brasil
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Ana Lúcia Kassouf
K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux
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Anna Faedrich Professora substituta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj/Departamento de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira), pós-doutoranda em Estudos de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora em Letras – Teoria da Literatura (PUCRS/2014). Autora da tese de doutorado Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura contemporânea brasileira (2014), pesquisa sobre autoficção e literatura contemporânea.
Renato Lima Doutorando em Ciência Política no Massachusetts Institute of Technology (MIT), mestre em Estudos da América Latina pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (UIUC) e jornalista pela UFPE. Fundador do programa de rádio “Café Colombo – o seu programa de livros e ideias” da Universitária FM, Recife.
Jacques Fux Pós-doutorando em Literatura Comparada pela UFMG. Pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp. Visiting Scholar em Harvard (2012/2014). Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e doutor em Língua, Literatura e Civilização Francesa pela Universidade de Lille 3. Autor dos livros Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (versão da tese que recebeu o Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística 2011) e Antiterapias (Prêmio São Paulo de Literatura 2013).
50
Resumo Este artigo tem como objetivo discutir a questão da autoficção em relação à memória traumática do período da ditadura militar no Brasil. Além disso, propomos pensar nos efeitos políticos desencadeados a partir da publicação do livro K., relato de uma busca, de Bernardo Kucinski. O livro narra, na voz do pai da vítima, o desparecimento de Ana Rosa Kucinski, professora de Química na Universidade de São Paulo (USP), e de seu marido, o físico Wilson Silva, durante a ditadura militar brasileira, e o processo instaurado pela Universidade por “abandono de emprego”. Aqui pensamos essa questão no contexto político e literário e o que mudou após a publicação do livro. Palavras-chave: K: relato de uma busca. Ditadura militar. Autoficção.
Abstract The objective of this article is to discuss the autofiction issue regarding the traumatic memory of the military dictatorship period in Brazil. We also propose thinking about the political effects triggered since the publication of the book K., by Bernardo Kucinski. In the victim’s father voice, the book chronicles the disappearance of Ana Rosa Kucinski, a Chemistry Teacher at the University of São Paulo (USP), and her husband, the Physicist Wilson Silva, during the military dictatorship in Brazil, in addition to the process initiated by the University for “job abandonment”. Here, we think this issue in a political and literary context and what has changed after the book publication. Keywords: K. Dictatorship. Autofiction.
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K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos
1. Introdução Um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse fenômeno caracteriza uma volta ao passado que contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro, que tanto caracterizou as primeiras décadas da modernidade do século XX. Henry Rousso (2002, p. 88)
Quais os limites da ficção? E da ficcionalização de si mesmo, de experiências próprias, de traumas e de acontecimentos dolorosos? É possível sublimar a dor por meio da literatura? Não seria, então, o registro do trauma no plano literário uma prática visceral e cada vez mais comum aos autores contemporâneos? E quais são os efeitos disso? Efeitos jurídicos,1 como os casos em que o autor sofre ameaça de processo por ter exposto a vida íntima de outra pessoa; e efeitos políticos, como no caso de K., relato de uma busca, em que a obra literária acaba provocando alguma mudança na realidade, como a abertura de um processo de um desaparecido político? Não é raro encontrarmos na literatura brasileira contemporânea obras marcadas pela ambiguidade, pelo hibridismo e pelo desbordamento. Desbordar é ir para além das bordas, trans-bordar, romper fronteiras, perder a noção do limite, enfim, amalgamar a antítese paradigmática verdade/ ficção. Neste artigo, nossa atenção estará voltada, justamente, nesse tipo de obra literária que, de alguma forma, está calcada numa “realidade”. K., relato de uma busca, livro do jornalista e professor Bernardo Kucinski (1937), publicado em 2014 pela Cosac Naify, inicia com o impacto das primeiras páginas na cor preta, detalhe que, ao longo da leitura do romance, entendemos como uma espécie de luto pelo desaparecimento da irmã do autor na época da ditadura militar no Brasil. Em uma dessas páginas, está a dedicatória de Bernardo: “Às amigas, que a perderam: / De repente / um universo de afetos se desfez.” As páginas pretas e a dedicatória já dão o tom do livro: noir, luto, dor irreparável. A matéria do livro é justamente esta: o testemunho de um trauma que ao mesmo tempo é coletivo, causado pela época de repressão, perseguição, tortura e censura 52
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015
Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux
da ditadura, e pessoal, por meio de um relato sobre o sumiço de Ana Rosa Kucinski e de seu marido Wilson Silva, em abril de 1974. “O carteiro nunca saberá que a destinatária não existe, que foi sequestrada, torturada e assassinada pela ditadura militar” (KUCINSKI, 2014, p. 12). Tal relato sensibiliza facilmente o leitor, detido em páginas de tristeza, revolta, história do Brasil, desespero familiar, inconformação etc. O livro está dividido em 28 capítulos, seguidos de um post scriptum, em linguagem e ritmo fluidos. É possível que o autor se exceda um pouco no didatismo, marcado por inúmeras – talvez, desnecessárias – notas explicativas de rodapé, geralmente sobre referências ao judaísmo e à questão da ficção, que podem ser interpretadas como uma aparente subestimação do leitor. O relato – que transcende o mero relato – adquire tom íntimo pelo acesso que temos às mentes narradas e, principalmente, aos sentimentos de um pai, que sofre a perda da filha. Em tempos de repressão, o livro mostra a angústia de não saber exatamente o que aconteceu com a filha, de não saber se ela ainda está viva ou não; uma dor que leva o pai a uma busca exaustiva, quase sisífica, por respostas, rastros e pistas sobre o paradeiro da filha: Assim começou a saga do velho pai, cada dia mais aflito, mais maldormido. No vigésimo dia, depois de mais uma incursão inútil ao campus e à casa de Padre Chico, recorreu aos amigos do círculo literário; os mesmos que por descontrole havia amaldiçoado. Quem sabe conheciam alguém que conhecesse alguém outro, na polícia, no exército, no SNI, seja onde for dentro daquele sistema que engolia pessoas sem deixar traços (KUCINSKI, 2014, p. 18).
Apesar de o narrador predominante ser em terceira pessoa e de dar uma unidade à narrativa, Kucinski joga com o foco narrativo, deixando ecoar outras vozes. Uma delas parece ser a sua própria voz, irmão de Ana, logo no primeiro capítulo. Trata-se de um texto grifado em itálico, que aborda “As cartas a destinatária inexistente”. Os vestígios que nos permitem o esforço de identificar essa voz estão nas seguintes sentenças: “Nunca conheceu meus filhos. Nunca pôde ser a tia de seus sobrinhos. Eu sempre lamentei em especial essa consequência de tudo o que aconteceu” (KUCINSKI, 2014, p. 11, grifo nosso). Essa mesma voz volta ao final do livro, no post scriptum, texto igualmente grifado, no qual o irmão fala de um telefonema recebido após 40 anos do sumiço de Ana: “Passadas quase quatro décadas, súbito, não mais que de repente, um telefonema a essa Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015
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mesma casa, a esse mesmo filho meu que não conheceu sua tia sequestrada e assassinada” (KUCINSKI, 2014, p. 181, grifo nosso). Outra voz muito interessante dentro da obra é a voz do opressor, um foco narrativo diferenciado, dando espaço para a surpresa que é se deparar com um narrador em primeira pessoa, ninguém menos que um dos sequestradores do casal: O que fazer com a cadela? Com o casal tudo deu certo, do jeito que o chefe gosta, sem deixar rastro, sem testemunha, nada, serviço limpo, nem na casa entramos, para não correr risco com vizinhos, casa muito colada nas outras; pegamos os dois no beco, de surpresa; uma sorte, aquela saída lateral do parque, meio escondida, quando os dois se deram conta, já estavam dentro do carro e de saco na cabeça, só a cadela latiu, mas já era tarde (KUCINSKI, 2014, p. 63).
Não há como negar que a história de Kucinski parte da realidade, de um momento histórico traumático no país, o qual o autor não mostra esforço em disfarçar por meio de recursos literários. Não há nada implícito no que diz respeito ao teor da obra. O perfil jornalístico do autor revela-se na pesquisa, na procura e na vontade de alcançar uma “verdade” irreal, mas que serviria para atar as pontas de uma história traumática vivenciada pelo autor e por sua família. Se considerarmos a literatura, entre suas diferentes concepções ao longo da história, como um conjunto de produção escrita dotada de propriedades específicas, que basicamente se resumem numa elaboração especial da linguagem e na constituição de universos ficcionais ou imaginários, podemos dizer que o ato de atribuir valor literário a uma obra é, portanto, levar em consideração o modo especial de elaboração da linguagem, inerente às composições literárias, caracterizado por um desvio em relação às ocorrências mais ordinárias da linguagem. Vale lembrar que esse é um método de análise de base linguística, que privilegiará também o caráter plurissignificativo da literatura, o qual possibilita várias leituras de um mesmo texto. Sendo assim, em relação à qualidade literária, K. não apresenta grande complexidade no que diz respeito à linguagem e às possíveis entrelinhas e subentendidos, que poderiam ser intencionalmente construídos. É um relato, ao mesmo tempo tão objetivo (refletido, por exemplo, na transparência da linguagem), que pode até parecer pouco literário (se considerarmos os 54
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critérios de base linguística referidos), e tão subjetivo, na medida em que mostra a repercussão dos acontecimentos sociais na interioridade do sujeito. Ou melhor, dos sujeitos, já que há diferentes focos narrativos ao longo do livro. Podemos pensar em K. como uma espécie de um livro-denúncia, embora não tão audacioso quanto O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, escrito ainda num momento de transição político-social.2 Em nossa literatura atual, o testemunho e a denúncia não correm o mesmo risco de censura ou represália, ademais são bem aclamados pelo público-leitor e pela crítica. Uma forma de elucidar essa boa aclamação da crítica são os próprios prêmios literários – que acabam atribuindo valor à obra literária. K., por sua vez, é um livro bem-aclamado pela crítica, finalista dos Prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura em 2012, entre outros. Se mencionamos no início do artigo que a literatura contemporânea compartilha da ambiguidade, do hibridismo e do desbordamento, K. é uma das obras que reforça essa constatação. Tais características são comuns, também, ao que chamamos hoje de autoficção. A nossa intenção não é definir K. como uma autoficção propriamente dita, mas refletir sobre as possíveis relações entre a prática autoficcional, o livro de Kucinski e a possibilidade de denúncia e aceitação de um desdobramento “real”, ou seja, os rumos que foram tomados em relação à “justiça” e à memória dos fatos narrados com publicação desse livro.
2. Da ambiguidade e do desbordamento Um recado ao “caro leitor” logo nas primeiras páginas do livro já estabelece o chamado “pacto oximórico”3 (típico da autoficção) com o leitor. Neste “contrato de leitura”, o autor cria deliberadamente um jogo de ambiguidades com o receptor da obra. Kucinski assina embaixo do recado, onde diz: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Ora, parece-nos óbvio e até um pouco ingênuo dizer que se tudo fosse invenção, tornar-se-ia impossível alguma coisa ter realmente acontecido, ou seja, não ser invenção, mesmo que seja no campo ficcional. O que nos interessa aqui é que é justamente nesta contradição, uma espécie de “alerta ao leitor”, um “paratexto” intencional, que o pacto é estabelecido. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 49-67 | jan.-abr. 2015
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A ambiguidade está anunciada. E o leitor deve se preparar. Para o quê? Para o desbordamento, que tanto desconforta o leitor acostumado com o prazer da leitura e a outra margem do rio bem-delineada. O texto desborda, retira bordas, transcende às bordas. Não importa mais o ponto de início e de fim bem-marcados. Trata-se da falta de fronteiras, de buracos, da falta, entre o que é real e o que é imaginado, o que aconteceu e o que foi criado; e o leitor tende a ficar perdido neste entre-lugar, entre o fato e a ficção; entre mundo real e mundo imaginado. E não pode reclamar porque foi devidamente pré-avisado.
3. Hibridismo Se num texto de autoficção, isto é, o exercício literário em que o autor ficcionaliza fragmentos da sua própria vida,4 nós temos como condição necessária a identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista (A = N = P), K., por sua vez, apresenta diferentes “eus”, diferentes narradores, formando, assim, um texto híbrido no que diz respeito ao foco narrativo e, também, à tessitura, ao apresentar relatos, diários, cartas e post-scriptum. A narração em terceira pessoa é predominante no livro. Por meio dela, é como se o autor se transportasse para a pele de seu pai, conseguindo expor tudo o que não é objetivo da história: os sentimentos, as frustrações, os pensamentos, a “transparência interior”5 da personagem. Poderíamos falar aqui em alterficção, uma prática muito próxima à autoficção, uma “irmã mais nova” do gênero incipiente, tendo por base o conceito de alterbiografia proposto por Ana Maria Bulhões-Carvalho (2011). Pensando na etimologia da palavra alterbiografia (alter/outro + biografia – do grego antigo: βιογραφία, de βíος – bíos, vida e γράφειν – gráphein, escrever), vemos que se trata de uma escrita da vida do outro, ou ainda, uma escrita de si como se fosse um outro. O corpus do trabalho de BulhõesCarvalho é o livro de Silviano Santiago, Em liberdade.6 Trata-se de uma espécie de diário do escritor brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953), inventado por Santiago, escrito no intervalo entre sua saída da cadeia e a instauração do Estado Novo. Não é, de forma alguma, uma biografia estrito senso de Graciliano Ramos, mas sim uma “apropriação” de sua voz narrativa, uma apropriação de sua identidade, numa mescla ousada 56
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de gêneros – biografia, romance, ensaio, em que, de acordo com BulhõesCarvalho, “cabe perfeitamente o nome de alterbiografia”: A mescla de recursos, agenciados numa mesma obra pela lógica do paradoxo – porque aponta simultaneamente para dois sentidos opostos –, serve para que este escritor possa escrever a vida de um outro, personagem real da literatura e da história política brasileira, Graciliano Ramos, usando provas factuais suficientes para que se garanta sua identificação, num primeiro movimento, como se fosse encapsular-lhe a vida numa biografia; para depois, num golpe certeiro, apossar-se de sua identidade, de modo a passar por ele, registrando seus pensamentos e emoções como se fosse ele, imitando a escrita de um possível diário iniciado após a saída da prisão. Isto é, torna-se narrador de uma autobiografia de outro, criando-o como um alter de si mesmo. A essa forma miscigenada de discurso, suficientemente ambíguo para dar conta das vicissitudes de projeto literário tão ousado, cabe perfeitamente o nome alterbiografia (BULHÕES-CARVALHO, 2011, p. 28, grifos nossos).
Outro exemplo é o livro de Gertrude Stein, A autobiografia de Alice B. Toklas. Stein escreve de si por meio da voz da companheira Alice. O nome da narradora e da protagonista não é o mesmo da autora. É a escrita da vida do outro (de Alice B. Toklas, de Graciliano Ramos) e da sua própria vida (Stein, Santiago) pela apropriação da voz narrativa do outro. Podemos, dessa forma, denominar essas obras como alterficções, ao invés de autoficções. Também essa diferenciação não é tão relevante assim, já que são classificações tidas como “irmãs”, isto é, uma prática análoga à outra. Importante é observarmos mais um tipo de desdobramento da escritura autobiográfica. Dessa forma, a letra K no livro de Bernardo Kucinski, em seu sentido mais explícito, refere-se ao pai Majer Kucinski, sendo a alterficção uma estratégia literária em que o autor fala do outro e de si mesmo por meio do outro. A polissemia da letra também nos leva a pensar numa referência ao próprio autor Bernardo Kucinski e, no plano literário, à Kafka, com quem partilha o sentimento do absurdo. Mas K. clama por uma reparação histórica, por uma necessidade de intervir nas leis e no perdão que a História, e o tempo, insistem em corroborar. É uma audácia, sobretudo para um livro de ficção, mas talvez seja essa a única forma de se enfrentar verdadeiramente essa questão tabu e traumática da ditatura brasileira.
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4. O aspecto dramático Um terceiro e último aspecto da ficção de K., que se assemelha ao exercício autoficcional, é o aspecto noir, isto é, a dramaticidade. Trata-se de textos que compartilham um trauma, uma dor, por meio de uma escritura que é visceral, incontrolada, uma verdadeira necessidade. A autoficção é o exercício literário que permite ao autor a elaboração,7 por intermédio da escrita, de um sentimento de dor e de luto. Mais do que um mero relato ou desabafo, a experiência traumática é sublimada em arte. Serge Doubrovsky relaciona a autoficção à Psicanálise e, para ele, o exercício autoficcional é uma “prática da cura”. Para ele, “a autoficção é a ficção que decidi, enquanto escritor, dar a mim mesmo e por mim mesmo, nela incorporando, no sentido pleno do termo, a experiência da análise, não apenas na temática, mas na produção do texto” (DOUBROVSKY, 1988, p. 77, tradução nossa).8 Sobre a sua autoficção Fils, Doubrovsky escreve um ensaio de autoanálise dos processos escriturais colocados em jogo pelo romance, a saber, os recursos do domínio consonântico substituídos pela ordem sintática e discursiva tradicional, para tentar elaborar não uma escrita do inconsciente (que, sem dúvida, não a tem), mas para o inconsciente (o que se esforça em fazer, sem sabê-lo, a própria escrita analítica, desde que ela existe) (DOUBROVSKY, 1988, p. 77, tradução nossa).9
Doubrovsky fala em explorar as profundezas inconscientes de sua intimidade, elucidar coisas ainda obscuras, fala também em uma análise interminável. Ele diz: A experiência da Psicanálise, possível somente depois de Freud, é o primeiro esforço ou efeito de ruptura em relação ao dilema clássico de um autoconhecimento separado de si mesmo em sua dimensão do outro, uma vez que é através da escuta do outro que a verdade retorna (acontece) no discurso que o sujeito se esforça para compreender (DOUBROVSKY, 1988, p. 77, tradução nossa).10
É sempre interessante pensarmos como se dá a projeção do autor na escrita e a construção desse ser-ficcional, ou ainda, desse duplo-ficcional. Para cada obra literária será necessário um olhar singular e especial, uma vez que reconhecemos no monumento literário a impossibilidade de uma classificação genérica e homogênea, que cria “caixinhas fixas”
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para enquadrar e simplificar os gêneros literários. Nesse sentido, o discurso crítico-literário atual fala em autoficções no plural, reconhecendo a multiplicidade do exercício de ficcionalização do eu. Camille Renard (2010), no artigo intitulado “Neuroses do indivíduo contemporâneo e escritura autoficcional: o caso Fils”,11 analisa a escritura autoficcional como “prática da cura”, tendo como corpus de análise a própria autoficção de Doubrovsky. Renard observa que a proposta de um novo gênero literário se associa a três elementos – o inconsciente, a escritura e a cura analítica. Tal reflexão nos ajuda a entender melhor a autoficção enquanto prática da cura ou escrita terapêutica: A escritura da cura analítica expressa, graças à autoficção, o inconsciente do autor/narrador. Depois que a psicanálise atacou a noção de identidade pessoal que funda tradicionalmente a escritura do eu, a ambição da autoficção consiste em renovar o gênero autobiográfico. Mas ao estabelecer uma escritura do inconsciente, “pós-analítica”, Doubrovsky realiza um discurso sobre o significado sociocultural de sua obra. A autoficção literária revelaria as evoluções de um indivíduo contemporâneo à identidade equivocada (RENARD, 2010, tradução e grifo nosso).12
Sendo assim, o sujeito da autoficção está à procura de si mesmo e busca, pelo jogo de palavras, escrever os meandros do inconsciente. Entretanto Renard, que parte da área das ciências sociais, mostra que a autoficção, enquanto escrita da cura e das neuroses do indivíduo contemporâneo, permite que o texto literário construa imagens coletivas e – o que ela chama de – “um espírito do tempo” (zeitgeist):13 “O espírito do tempo é o produto de um gênero literário informado pelas mutações sociais informadas pela produção literária” (RENARD, 2010, tradução nossa).14 A estudiosa observa que há uma interação entre a produção literária e a evolução sociocultural. Essa busca, portanto, do narrador (e do autor) de K., visa à denúncia, à expurgação e à reparação histórica. Há que se pensar, também, em outros aspectos relativos ao autor do livro. Bernardo Kucinski é uma pessoa influente no meio político. Um livrodenúncia, mesmo ficcional, escrito por ele, tem uma certa credibilidade, ainda mais se pensarmos que os fatos narrados habitam o imaginário e os traumas de muitos, ainda vivos, que também viveram, e sentiram, experiências semelhantes. Uma questão também de fundamental
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importância aqui, é que a forma como a memória da ditadura é tratada no Brasil, permite (e auxilia) o tratamento ficcional, e responsável, desses momentos traumáticos da recente História. Assim se torna necessário explicar o tratamento brasileiro, distinto de outros países que vivenciaram questões similares.
5. Limites políticos à memória e à verdade Saber do paradeiro dessas pessoas e não revelá-lo à sociedade já estava me atormentando há muito tempo. Eu sei que cada uma dessas pessoas tem uma família que merece saber a verdade, por pior que ela seja. E se tive coragem, por ideologia, de fazer o que fiz, agora eu preciso ter a mesma coragem para contar o que foi feito. Ao folhear o Livro dos desaparecidos, produzido pela Presidência da República, consegui identificar as pessoas que eu levei para cremação. Os corpos, repito, já chegavam mortos para mim. Não tenho responsabilidade pela tortura e pelo assassinato deles, mas sim pelo desaparecimento. Cláudio Guerra, Marcelo Netto, Medeieros (2012, p. 54)
A forma como indivíduos se recordam de eventos traumáticos de regimes autoritários é influenciada pela própria dinâmica política da mudança de regime e transição democrática. No quebra-cabeça mental de construir uma memória ou esclarecer episódios, a quantidade de peças que uma pessoa tem em mãos para reconstruir fatos e evidências enfrenta limites do processo político de transição e os acordos que foram feitos no passado. Como será argumentado, mecanismos da chamada justiça de transição, como comissões da verdade, processos criminais a violadores de direitos humanos e formas de homenagear vítimas de regimes autoritários, contribuem para o resgate da memória das pessoas e familiares diretamente envolvidos – ao produzir novas peças desse quebra-cabeça – bem como transcendem o pessoal para ganhar repercussões políticas amplas. Uma das temáticas mais caras à ciência política é a de transições de regimes, em especial a da democratização. Nas últimas décadas do século XX, quando muitos países estavam migrando de regimes autoritários para formas mais participativas de governo, uma imensa literatura foi produzida para tentar entender como se dava esse processo, quais seus 60
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limites, como acelerar tais transições em regimes ainda fechados e, finalmente, o que seria necessário para consolidar a democracia e evitar retornos autoritários. A América Latina, palco de vários governos militares, foi fonte constante de reflexão. Um dos mais influentes argumentos dessa literatura é o de Huntington (1991), que considera que a balança de poder, existente no momento da transição, determina os limites do regime democrático em lidar com violações de direitos humanos do passado. Em casos de colapso do regime autoritário, quando seus líderes falharam de tal forma que não conseguem negociar uma saída do poder, é mais fácil processar oficiais do regime anterior e expor seus crimes. Trata-se de governos e líderes que saíram do poder desmoralizados, com muito pouca base de apoio na população e sem conseguir prerrogativas formais e informais que os protegessem uma vez fora do governo. Entretanto, mesmo nesses casos, novos regimes democráticos podem enfrentar resistências, tais como tentativas de novos golpes militares ou rebeliões armadas. Um outro modelo de transição se dá quando o regime autoritário ensaia uma abertura e inicia um processo de transição negociada do poder. Isso exige dos atores da sociedade civil a definição de uma estratégia de cooperação: negociar e aceitar termos exigidos pelo regime autoritário – incluindo a proteção contra crimes previamente cometidos – ou ficar irredutível, o que acaba prolongando a longevidade do regime de exceção. Afinal, qual líder de um governo não democrático estaria disposto a abreviar o seu regime e passar o controle para uma democracia se tiver certeza que no dia seguinte será processado e preso? Da mesma forma, qual desses líderes gostaria de ver episódios negativos como desaparecimento de pessoas e casos de tortura sendo trazidos à luz do dia? Dessa forma, o colapso de um regime implica maiores possibilidades de atacar o passado autoritário, enquanto a transição negociada acelera o caminho para a democracia ao custo de não expor o passado autoritário nem buscar o accountability. Em relação à “verdade” e memória, questões importantes para a ficção e literatura, as implicações são ainda mais sutis e difíceis. Na América Latina, a Argentina representa o caso de colapso de regime com a rápida instauração de uma comissão da verdade, presidida pelo
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escritor Ernesto Sábato, seguida de processos contra militares. Chile e Brasil, países de transições negociadas para a democracia, protegeram o passado ao adotar uma anistia. A proteção a esse passado liberta a possibilidade ficcional, por excesso de lacunas. Processos de busca pelo esclarecimento do período autoritário foram conduzidos por mecanismos oficiais – como comissões da verdade, muito mais cedo e com maior intensidade no Chile do que no Brasil – mas igualmente enfrentaram resistências e pouca cooperação dos militares. Na Argentina, o grupo liderado por Sábato, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), produziu um relatório que identificou gravíssimos casos de violação de direitos humanos, identificando cerca de 9.000 vítimas, mas reconhecendo que inúmeros outros episódios ficaram sem respostas (há quem aponte até 30.000 mortes pela ditadura argentina, como Skaar (2011)). No Chile, creditam-se à ditadura de Pinochet 3.197 vítimas (COLLINS, 2010) enquanto no Brasil seriam 474 (BRASIL, 2007). Dos três países, a Argentina foi o que foi mais longe em processar militares. Um dos primeiros atos do governo de Raúl Alfonsín na Argentina pós-ditadura militar foi revogar a anistia que protegia os militares. A Conadep trabalhava com a perspectiva real de obter evidências que seriam depois usadas em tribunais contra os agentes do regime autoritário. Dessa forma, cooperar com a Comissão – produzir verdade, portanto – era assinar uma sentença condenatória por parte de quem sabia dos casos de desaparecimento por estar diretamente envolvido. Não espanta, portanto, que o número total de vítimas seja tão pouco conhecido, variando entre cerca de 10.000 até o triplo desse número. Tanto Chile quanto o Brasil não aboliram o mecanismo da anistia, embora no Chile processos criminais contra militares tenham avançado pelo uso de brechas legais. Cooperar com comissões da verdade, dado a existência de anistia, é possível, mas tem seu risco. Quem participou e revela o que sabe de atos criminosos em uma ditadura, porque protegido por uma anistia, produz material que pode ser justamente usado por quem deseja ver um fim à impunidade e, talvez, um bordeamento mais plausível do evento. Pelo exposto, a busca da verdade sem anistia não incentiva a cooperação de quem sabe sobre episódios violentos mas tem receio das consequências criminais que pode sofrer. Por sua vez, a busca da verdade com anistia pode 62
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incentivar a cooperação de alguns, mas não afasta completamente o risco da cooperação, dado que a verdade sobre o passado tem efeitos reais sobre a política, inclusive a pressão pelo fim da impunidade. Por fim, existe um outro tipo de modelo, o que foi adotado na África do Sul por ocasião do fim do apartheid. Neste caso, uma Comissão da Verdade e Reconciliação Nacional trabalhou com o mandato de conceder anistia aos indivíduos que cooperassem, se apresentando à comissão e contando integralmente o que sabiam. Não testemunhar, neste caso, era correr o risco de ser processado. Consequentemente, anistia em troca de verdade, é o modelo que oferece maiores incentivos para o conhecimento do passado. O Brasil se engajou apenas tardiamente em mecanismos de justiça de transição (OLIVEIRA, 2014). Dado os limites impostos pela natureza política da mudança de regime – negociada e com anistia – esforços atuais de se conhecer mais sobre episódios autoritários esbarram na falta de incentivos à cooperação por parte de quem mais teria a contar. Na falta de evidências concretas ou completas, o que se sabe apenas parcialmente é preenchido com especulações plausíveis e ficcionais, como diz Kucinski em K.
6. Efeitos da ficção e da anistia brasileira No dia 17 de abril de 2014, a Congregação do Instituto de Química da USP decidiu, por unanimidade, revogar a demissão da docente Ana Rosa Kucinski, que teria abandonado, sem justificava, seu trabalho como professora e pesquisadora deste Instituto há 40 anos. O processo foi revisto e uma decisão inédita foi tomada.
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Notas 1 Podemos relacionar os efeitos jurídicos de expor a vida de outra pessoa com
o debate atual sobre as biografias não autorizadas. Entretanto, na autoficção, tal efeito é amenizado por seu caráter fictício. Em 2014, artistas integrantes do grupo Procure Saber, tais como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, defenderam o direito à privacidade por meio da autorização prévia a biografias. Segundo os artigos 20 e 21 do Código Civil (BRASIL, 2002), é proibida a publicação de informações pessoais de qualquer cidadão em casos que “atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Há dois casos famosos de censura de biografias não autorizadas no Brasil, o da biografia Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar de Araújo; e o da biografia de Daniella Perez escrita por Guilherme de Pádua, seu assassino (que já cumpriu a pena e está livre). A questão é considerada polêmica porque, de um lado, temos os artistas querendo o direito de preservar a vida pessoal (“Pensei que o Roberto Carlos tivesse o direito de preservar sua vida pessoal. Parece que não” (BUARQUE, 2013) e, de outro, temos uma série de jornalistas e biógrafos, principalmente, alegando a liberdade de expressão conquistada a duras penas (inclusive pelos próprios Chico Buarque e Caetano Veloso na época da ditadura militar) e o retrocesso que é censurar as biografias. Vale lembrar que Paulo César de Araújo lançou, finalmente, o livro O réu e o rei, em 2014. 2 Não nos estenderemos, aqui, na reflexão sobre O que é isso, companheiro?,
porque o objetivo desse artigo não é uma leitura comparativista entre as obras. A intenção é mostrar que um livro-denúncia publicado hoje, numa sociedade democrática, que conquistou a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, não se compara com um livro-denúncia publicado em um momento de transição política, em que os riscos de censura e repressão são inigualáveis. 3 Expressão proposta por Hélène Jaccomard (1993) em Lecteur et lecture dans
l’autobiographie française contemporaine: Violette Leduc, Françoise d’Eaubonne, Serge Doubrovsky, Marguerite Yourcenar. 4 Segundo Serge Doubrovsky (1977), a autoficção é “ficção, de acontecimentos
e fatos estritamente reais”. 5 Esta é uma expressão utilizada pela teórica norte-americana Dorrit
Cohn (1978) no livro Transparent minds: Narrative modes for presenting consciousness in fiction, em que a autora mostra as técnicas utilizadas, no âmbito da narratologia, para “transparecer a mente” da personagem. 6 1981; vencedor do Prêmio Jabuti de Romance, em 1982. 7 Trata-se da elaboração psicológica (ou perlaboração), expressão utilizada
por Freud para designar o trabalho de integração das experiências vividas ao mundo mental. Em “Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II)”, artigo de 1914, Freud explica que a elaboração é um processo lento e trabalhoso de transformação, e que a experiência se torna traumática ao não ser elaborada (FREUD, 1996).
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8 No original: Autofiction, c’est la fiction que j’ai décidé, en tant qu’écrivain, de
me donner de moi-même et par moi-même, en y incorporant, au sens plein du terme, l’expérience de l’analyse, non point seulement dans la thématique, mais dans la production du texte. 9 No original: “[...] à savoir les ressources du domaine consonantique substituées
à l’ordre syntaxique et discursif traditionnel, pour tenter d’élaborer non une écriture de l’inconscient (qui n’en a sans doute pas), mais pour l’inconscient (ce que s’efforce de faire, sans bien le savoir, l’écriture analytique elle-même, depuis qu’elle existe)”. 10 No original: L’experience de la psychanalyse, possible seulement depuis Freud,
est bien le premier effort ou effet de rupture par rapport au dilemme classique d’une autoconnaissance coupée d’elle-même en sa dimension de l’autre, puisque c’est de l’écoute de l’autre que la vérité revient (advient) dans le discours où le sujet tâche à se saisir. 11 No original: Névroses de l’individu contemporain et écriture autofictionnelle:
le cas Fils. Renard, na época da publicação, era doutoranda em Ciência Política na Paris II e na EHESS (École de Hutes Études en Sciences Sociales). 12 No original: L’écriture de la cure analytique exprimerait grâce à l’autofiction
l’inconscient de l’auteur/narrateur. La psychanalyse ayant battu en brèche la notion d’identité personnelle qui fonde traditionnellement l’écriture du «moi», l’ambition de l’autofiction consiste à renouveler le genre autobiographique. Or tout en instituant une écriture de l’inconscient, «postanalytique», Doubrovsky tient un discours sur la portée socio-culturelle de son œuvre. L’autofiction littéraire révèlerait les évolutions d’un individu contemporain à l’identité équivoque. 13 Termo alemão que significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal
dos tempos. O Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo. 14 Tradução nossa. No original: L’esprit du temps est le produit aussi bien d’un
genre littéraire informé par les mutations sociales que des mutations sociales informées par la production littéraire.
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K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos
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Ana Lúcia Kassouf
Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro*
Beni Trojbicz
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 11-47 | jan.-abr. 2015
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Beni Trojbicz** Economista formado pela Universidade de São Paulo, MBA pelo INSEAD (França), mestre e doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas (EAESPFGV). Atualmente é pesquisador pós-doutor do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas (CEPESP-FGV). Atua principalmente nas áreas de Economia Política e Políticas Públicas, com foco no setor de Petróleo.
* Versão modificada de trabalho apresentado no 8º Encontro da Associação Brasileira
de Ciência Política, em Gramado 2012 (beneficiada pelas contribuições recebidas acerca das formulações iniciais, em 2013). ** O autor gostaria de agradecer à Fapesp pelo apoio financeiro na forma de bolsa de
doutorado e pós-doutorado.
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Resumo Em seu discurso de posse, Dilma Rousseff se referiu ao pré-sal como fonte de recursos que seria utilizada para financiar melhora dos serviços públicos, redução da pobreza e conservação do meio ambiente, indicando nova orientação atribuída às políticas de desenvolvimento econômico e seus vínculos com o bem-estar social. Não é trivial o gerenciamento das rendas minerais, sendo abundante na literatura a referência à “maldição dos recursos naturais”– presença de resultados negativos acompanhando sua exploração, do ponto de vista econômico, político e social. Existem muitas experiências de gerenciamento das rendas minerais, com diferentes resultados e possíveis aprendizados para o caso do pré-sal brasileiro. Esse trabalho vai apresentar experiências internacionais relevantes, focando a perspectiva política e institucional, e em seguida as implicações para a experiência brasileira. Palavras-chave: Política comparada. Petróleo. Pré-sal. Rendas minerais.
Abstract In her inaugural address, President Dilma Rousseff referred to the pre-salt oil as a source of resources that would be used to finance public services improvement, poverty reduction, and environmental conservation, indicating a new orientation given to economic development policies and its links with the social welfare. Management of mineral revenues is not trivial, with plenty of reference in the literature on the “resource curse” – the presence of negative economic, political, and social results following its exploitation. There are many international experiences in natural resources management, with different results and possible apprenticeships for the Brazilian pre-salt case. This paper will present relevant international experience, focusing on the political and institutional perspective, followed by the implications to the Brazilian experience. Keywords: Comparative politics. Oil. Pre-salt. Mineral Rents.
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Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro
Introdução A descoberta de maciças reservas de petróleo no pré-sal1 brasileiro desen cadeou processo de reforma do marco regulatório do petróleo para explorar essa riqueza. A então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, cuja carreira originou-se no setor energético e que havia recentemente ocupado o cargo de ministra das Minas e Energia, foi artífice dessa mudança e a ela pode-se atribuir parte importante da responsabilidade pela legislação aprovada em 2010. Já como presidente, em seu discurso de posse, ela se referiu ao pré-sal como fonte de recursos que seria utilizada para financiar melhora dos serviços públicos, redução da pobreza, conservação do meio ambiente e geração de poupança de longo prazo: O meu governo terá a responsabilidade de transformar a enorme riqueza obtida no pré-sal em poupança de longo prazo, capaz de fornecer às atuais e às futuras gerações a melhor parcela dessa riqueza, transformada, ao longo do tempo, em investimentos efetivos na qualidade dos serviços públicos, na redução da pobreza e na valorização do meio ambiente. Recusaremos o gasto apressado, que reserva às futuras gerações apenas as dívidas e a desesperança (ROUSSEFF, 2011).
Ideologia socialdemocrata encontra-se subjacente ao discurso, uma vez que o ponto de partida implícito é a distribuição social dos resultados do crescimento econômico. Como indica Przeworski (1991), na socialdemocracia o Estado não busca controle dos meios de produção, mas sim garante que resultados do crescimento econômico têm distribuição social. Dentro da tradição brasileira, esse modelo indica nova orientação atribuída às políticas de desenvolvimento econômico e seus vínculos com o bem-estar social. Tal orientação tem origem na posição fundamental dos direitos sociais indicada na Constituição de 1988 (DRAIBE, 2003), mas que somente passam a ocupar posição central na agenda pública durante o governo Lula (CUNHA; PINTO, 2008; HUNTER; POWER, 2007 apud PEDROTI, 2011). Diferenciando-se de maneira clara dos governos anteriores, pela articulação entre desenvolvimento econômico e social (SINGER, 2009). Não é trivial o gerenciamento das rendas minerais, sendo abundante na literatura referência à “maldição dos recursos naturais”, isto é, a presença de resultados negativos acompanhando sua exploração, tanto do ponto de vista econômico, político e social. Na área econômica, o fenômeno da “doença holandesa” costuma ser o mais destacado. Ele implica a apreciação 72
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do câmbio decorrente de maciça entrada de divisas originadas nas rendas minerais, que sobrevalorizam a taxa de câmbio local, tornando os produtos de outros setores da economia pouco competitivos em relação aos produtos estrangeiros, gerando atrofia. Do ponto de vista político, os resultados negativos aparecem devido aos conflitos gerados pelos interesses de diferentes grupos atraídos pelo alto valor de tais recursos e por sua luta para apropriá-los privadamente. Finalmente, do ponto de vista social, as rendas minerais tendem a aumentar a desigualdade existente, ao privilegiar os grupos e regiões mais diretamente relacionados à atividade extrativista, prejudicando a coesão social (ASFAHA, 2012; HINOJOSA; BEBBINGTON; BARRIENTOS, 2012; RIESCO, 2008; UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2008, 2010). Mas dentre os diferentes países que exploram suas riquezas naturais, encontram-se resultados diversos, sendo que para alguns países, a “maldição” não se manifesta. Uma ação importante para que não se incorra no fenômeno é a neutralização da doença holandesa, para o que são necessárias políticas macroeconômicas que desfaçam as pressões inflacionárias advindas do fluxo de moeda estrangeira, e que afetam a competitividade da indústria (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010 apud STÜRMER, 2008). Uma vez que a doença holandesa seja neutralizada, ainda existe um longo caminho para que os recursos gerados pela exploração das riquezas minerais sejam utilizados no desenvolvimento social. Governos não necessariamente conseguem utilizar os recursos advindos das riquezas naturais na indução do processo de crescimento econômico sustentado, muito menos no crescimento acompanhado de distribuição equitativa dos recursos para melhora do bem-estar geral dos cidadãos (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010). De forma geral, a existência de uma fonte de recursos substantiva aumenta a possibilidade de conflitos entre atores sociais, já que é mais provável que existam tentativas de apropriação privada desses recursos. Um segundo elemento geral a ressaltar, é que uma entrada vultosa de recursos, se não administrada de forma a gerar resultados equitativos para a sociedade, tende a acentuar a desigualdade no país. Esse resultado se deve ao fato de que, numa sociedade desigual, os grupos com mais recursos, naturalmente terão acesso privilegiado às rendas minerais, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015
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acentuando as desigualdades já existentes. Ação específica do Estado no sentido de garantir a distribuição equitativa pode atenuar ou até neutralizar esse efeito. O Estado de bem-estar (Welfare State)2 se encontra subjacente à presente análise, motivando o estudo das rendas minerais pois estas são uma das formas de seu financiamento.3 Nesse sentido, o marco teórico utilizado é o conceito de “Estado de bem-estar desenvolvimentista” (DRAIBE, 2007), que está apoiado em dois elementos importantes. O primeiro deles é a utilização de abordagem integrada das políticas econômica e social, em que as
[...] políticas sociais são posicionadas em seus contextos político e econômico, com especial atenção aos vínculos entre desempenho macroeconômico e o objetivo fundamental de melhorar bem-estar, [...] buscando explorar possibilidades de construção de nexo Estado-sociedade que seja desenvolvimentista, democrático e socialmente inclusivo, bem como sublinhando o papel da política social em assegurar este objetivo (DRAIBE, 2007, p. 2-3, grifos do autor).4
O segundo elemento é a perspectiva histórica utilizada na análise, em que processos de transformação econômicos e sociais são tratados em profundidade e em períodos estendidos no tempo, visando reter sua complexidade. Nesse sentido, a abordagem utilizada toma a política social como ponto de partida, em contraposição a outras abordagens integradas que partem da política econômica. Tal dinâmica implica radicalização do argumento keynesiano, em que se orquestra mudança de direção para interpelação concreta e histórica da análise da política social (DRAIBE, 2007, p. 2-3). Tal referencial teórico está aqui embutido numa exposição de casos múltiplos, em que os temas foram selecionados com base em dois objetivos. O primeiro deles é apontar a diversidade de resultados existentes na experiência internacional, elemento que também norteou a escolha dos países a serem incluídos no estudo. O segundo objetivo diz respeito à detecção de questões pertinentes ao caso brasileiro. A exposição dos casos contém breve panorama histórico do país visando à criação de contexto para a análise. O artigo está estruturado da seguinte forma: após esta introdução, a próxima parte do trabalho trata das experiências internacionais no gerenciamento das rendas minerais, seguida de avaliação de algumas dimen-
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sões desse gerenciamento para o caso do pré-sal brasileiro. Uma última parte conclui e sugere pesquisas adicionais, com base na avaliação do caso brasileiro à luz da experiência internacional.
Experiência internacional Como mencionado, os casos escolhidos buscam espelhar diversidade de resultados presente na experiência internacional. Nesse sentido, um primeiro critério foi inclusão de casos vistos como bem-sucedidos, mas também aqueles cujos resultados não são tão positivos. Para representar processos de sucesso, foram incluídos os casos da Noruega e Chile, em que o caminho adotado tem matizes ideológicos distintos, respectivamente socialdemocrata e liberal. A Indonésia representa modelo de gerenciamento efetivo do ponto de vista econômico, mas executado baixo regime autocrático e sem distribuição social de seus resultados. A Nigéria é caso paradigmático sobre o potencial nocivo da abundância de recursos naturais, enquanto o caso da Bolívia apresenta problemas políticos e sociais recentes, em contexto de distribuição social dos recursos. Noruega5 A Noruega é caso paradigmático na utilização dos recursos advindos da exploração das riquezas naturais, onde ao mesmo tempo em que a exploração do petróleo foi acompanhada de políticas econômicas que lograram neutralizar os efeitos da doença holandesa, os recursos auferidos foram utilizados na promoção do bem-estar da sociedade de forma universal. O petróleo norueguês foi descoberto no mar do Norte nos anos 1960 e a produção começou em 1973. Inicialmente, a exploração foi feita por empresas estrangeiras. Durante os anos 1970, o envolvimento do Estado norueguês aumentou, em grande parte por meio da criação da companhia de exploração e produção estatal Statoil.6 Entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980 houve grande aumento de consumo, acompanhado de superaquecimento da economia, originados no aumento da cotação do petróleo. O aprendizado gerado possibilitou amadurecimento da política fiscal, levando à constituição do “Fundo do Petróleo”, posteriormente renomeado Government Petroleum Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015
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Fund Global (GPF-G). Entre meados da década de 1980 e meados da década de 1990, outro aprendizado decorrente dos déficits da economia nãopetrolífera, que atingiu 9,5% do PIB não petrolífero, levou à criação de regra fiscal que limita a utilização das receitas do petróleo depositadas no fundo (GOBETTI, 2009). Dois aspectos da experiência norueguesa serão apontados. Em primeiro lugar, tratarei das inovações institucionais no gerenciamento financeiro dos recursos das rendas minerais, em segundo lugar, abordarei o desenvolvimento de políticas públicas visando atenuar os impactos do aumento de importância do setor de petróleo sobre o emprego. As duas inovações institucionais importantes no caso norueguês são a criação do GPF-G e a regra estrutural que limita as transferências de recursos do fundo para o orçamento. O GPF-G tem como objetivo garantir o uso sustentado e transparente das receitas da exploração do petróleo, e recebe todas as receitas de impostos e ganhos da propriedade pública direta com a exploração do petróleo. Foi criado em 1990, mas o depósito de valores foi iniciado somente em 1996, tendo acumulado desde então recursos da ordem de U$ 400 bilhões, valor próximo do PIB norueguês. A adoção do fundo teve três resultados positivos a serem ressaltados: a estabilização macroeconômica, a continuidade de gasto social elevado, e a equidade intergeracional (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010). Fundamental na estabilização macroeconômica, a utilização de fundos no gerenciamento dos recursos de rendas minerais é elemento anticíclico e de combate à doença holandesa, pois amortece o fluxo de divisas estrangeiras auferidas com a exportação do petróleo, que de outra maneira gerariam desvalorização do câmbio e perda de competitividade do produto nacional. Do ponto de vista da estabilização das receitas para utilização em políticas sociais, os fundos regulam a volatilidade das receitas do petróleo, permitindo que a utilização dos recursos em gastos públicos se desconecte dos ciclos econômicos. A utilização do patrimônio do fundo é feita por meio de transferência ao orçamento público anualmente, sendo utilizados no financiamento de políticas públicas de caráter universal. Como resultado, uma parte importante da riqueza gerada pelo petróleo é 76
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transferida para os cidadãos noruegueses na forma de aumento do gasto com bem-estar, ao invés de cortes nos impostos ou subsídios ao combustível, que tendem a favorecer grupos de maior renda. A equidade intergeracional é decorrente da poupança de longo prazo propiciada pela existência do fundo. O aprofundamento dessa característica se deu em 2001, quando a transferência de recursos do fundo ao orçamento público foi limitada a 4% do valor do fundo, tornando a utilização de recursos inferior ao rendimento de longo prazo – então calculado em 4,25% ao ano. Dessa forma, o fundo ganhou sustentabilidade, e gerações futuras poderão se beneficiar da riqueza mineral, mesmo que tais recursos já tenham se exaurido. O segundo aspecto da experiência norueguesa a ressaltar é a política de emprego implantada concomitantemente às mudanças setoriais originadas no desenvolvimento da indústria do petróleo. Após a descoberta e início da exploração do petróleo nos anos 1970, a Noruega sofre período de rápida transição setorial, em que a coordenação do Estado sobre o mercado de trabalho foi fundamental. Períodos de transição setorial são momentos em que a participação relativa de setores na economia se modifica, e implicam obsolescência da capacitação profissional de parte da população, bem como do capital empregado. No caso norueguês, houve um aumento do setor petrolífero, da indústria relacionada ao petróleo e do setor de serviços públicos, mas um declínio da participação de indústrias tradicionais de manufaturados e de exportação – metais, pesca e silvicultura. Esse declínio implicou diminuição do emprego para trabalhadores capacitados a atuar naquelas áreas de especialização, concomitantemente, aumentou a demanda para atuação em setores para os quais os trabalhadores não possuíam capacitação. As ações do governo nesse momento lograram gerar crescimento líquido da participação da população adulta no mercado de trabalho, resultado de ações orientadas à incorporação da mulher no mercado de trabalho, mas também a movimentos para flexibilizar a jornada de trabalho. Educação superior subsidiada para as mulheres nos anos 1960, aumento da oferta de creches nos anos 1970, e provisão de cuidados para a terceira Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015
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idade são exemplos de ações que incorporaram a força de trabalho feminina ao mercado laboral, fazendo com que essa participação aumentasse de 40% para 80% entre 1970 e 1990. Houve ainda, como resultado das políticas de flexibilização do tempo de trabalho, aumento absoluto da participação da população adulta no mercado de trabalho, de 65% para 80% entre 1970 e 2006. Com relação ao efeito do aumento da demanda de serviços do setor público, esse foi outro vetor de mudança setorial importante na composição da mão de obra nacional, resultado da expansão do Estado de bem-estar, e financiada pelos recursos adicionais das rendas minerais. Essa demanda adicional de pessoal para postos de serviços públicos foi suprida por meio do aumento da escolaridade da população adulta, permitindo a expansão da provisão desses serviços sem efeitos colaterais de escassez de mão de obra nos demais setores da economia. O desempenho positivo do modelo de exploração de rendas minerais na Noruega é explicado com base na forte governança democrática centrada em representação política ampla com pesos e contramedidas na sociedade civil. Nesse sentido, a existência de burocracia funcional estabelecida, além de setor industrial com sindicatos e associações patronais fortes, é vista como fator explicativo desse bom resultado. Por outro lado, o sistema parlamentarista favoreceu gasto redistributivo em programas universais, propiciando acumulação de capital humano, sendo que o sistema político permitiu continuidade no gerenciamento das rendas minerais, mesmo durante mudanças de governo (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2008). Chile O Chile apresenta experiência bem-sucedida na superação da “maldição dos recursos naturais”, por meio de modelo ideológico liberal, apresentando inovação institucional financeira de lógica similar à encontrada na Noruega. A exploração de minerais no Chile remonta à época colonial, o que introduz dois elementos históricos de grande importância. O primeiro é que o gerenciamento recente das rendas minerais foi condicionado pela longa experiência acumulada, em que se destacam os ciclos de expansão e retração de commodities, especialmente a queda do preço do nitrato7 após a 78
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crise de 1929. O segundo elemento é a participação do capital externo na exploração dos recursos minerais. O ciclo do nitrato foi promovido por empreendedores ingleses, que detinham a propriedade dos recursos, enquanto o cobre inicialmente foi explorado por capitais norte-americanos, suscitando questionamentos sobre a estrutura de propriedade em indústria estratégica, com estilo de exploração de enclave, de baixa contribuição para a economia do país (GUAJARDO, 2012). Nesse sentido, a preocupação com a apropriação estrangeira excessiva sobre as rendas do cobre motivou transformações importantes no gerenciamento das atividades de mineração. Em 1955 a política “Nuevo Trato” garantiu pagamento de renda mínima ao Estado sobre exploração do cobre, bem como criação de burocracia específica para fiscalização do setor, o Departamento del Cobre. Em 1969, a “Chilenização do Cobre” aprofundou a participação do Estado na exploração da mineração, determinou a obrigatoriedade de associação minoritária das companhias exploradoras estrangeiras ao Estado chileno e passou para o Estado o controle do mar keting e venda do cobre. Em 1971, a nacionalização do cobre é aprovada pelo parlamento, por meio de reforma constitucional. No governo militar, iniciado com o golpe que derrubou Salvador Allende em 1973, a mineração foi objeto de disputa entre as correntes nacionalistas e liberais das forças armadas. Apesar da ampla privatização das empresas estatais imposta pela ala liberal dos militares, os nacionalistas lograram manter o controle estatal sobre a mineração pela Codelco (Corporación Nacional del Cobre).8 Sem privatizar a Codelco, o avanço dos liberais na legislação da mineração se deu pela privatização das propriedades de mineração, por meio da Lei 18.097/81, que permitiu que empresas estrangeiras voltassem a operar no Chile, estabelecendo marco de referência que acelerou o desenvolvimento da mineração no país (GUAJARDO, 2012) . Dentro desse contexto, também no Chile foram implantadas inovações institucionais decorrentes da necessidade de gerenciamento das rendas minerais, em que se encontram ações anticíclicas e intergeracionais. As inovações mencionadas são a Regra de Equilíbrio Estrutural (REE) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Em 2001 foi adotada a REE, política de equilíbrio estrutural com meta de superávit de 1% do PIB. A REE relaciona gasto governamental a condições econômicas de médio e longo prazo, buscando isolar o efeito cíclico de Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015
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três variáveis macroeconômicas de grande influência na determinação das receitas do governo: a atividade econômica, os preços do cobre e do molibdênio.9 Essa regra indica o equilíbrio orçamentário caso os três indicadores estejam em nível de médio prazo, consistindo na utilização da projeção desses indicadores na determinação da “receita estrutural” – definida como receita governamental caso o PIB e os preços do cobre e molibdênio estivessem em seu nível de médio prazo. Os gastos governamentais são calculados de forma que, diminuídos da “receita estrutural”, se incorra em superávit de 1% do PIB (VELASCO et al., 2007). A REE foi utilizada com sucesso na proteção da economia em face das oscilações econômicas originadas na crise de 2008 (ORGANISATON FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT, 2012). Enquanto a REE regula o fluxo fiscal buscando gerar ação anticíclica, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) regula tais fluxos por meio da criação de regras e instituições para administração dos ativos resultantes. Tido como o segundo pilar da institucionalização da política fiscal chilena, a LRF foi gerada em 2006. Dentre os principais elementos de interesse da LRF, estão o Fundo de Reserva da Previdência (FRP) e o Fundo de Estabilização Econômica e Social (FEES). O FRP foi criado para garantir assistência e previdência mínima, em que se estabeleceu um aporte anual ao FRP equivalente ao superávit efetivo do ano anterior. Já o FEES foi criado visando isolar o gasto público de situações de grande expansão ou recessão econômica, acumulando os superávits existentes (VELASCO et al., 2007). Vale sublinhar que, se no caso norueguês todas as receitas auferidas com a exploração do petróleo são direcionadas ao fundo, e somente seus rendimentos são transferidos para o orçamento público, no caso chileno os recursos advindos da exploração mineral são diretamente utilizados no orçamento nacional, sendo retida somente parte desses recursos, que se transformam em reserva para utilização em períodos de menor atividade econômica. Essa inovação institucional proporcionou vários benefícios para o Chile,10 mas que não enfatizam a área social como no caso norueguês. No entanto, se observa que o manejo das riquezas minerais no Chile teve um efeito positivo na política social do país, ainda que sem ênfase universalista.
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Manuel Riesco (2008) aponta alguns aspectos negativos da estratégia chilena de exploração de riquezas minerais, advogando a retenção e maximização dos recursos advindos de riquezas minerais para o desenvolvimento social do país. Em sua crítica, o autor aponta que políticas tributárias deficientes possibilitaram que agentes privados, principalmente companhias estrangeiras, apropriassem a maior parte das rendas minerais. Adicionalmente, os incentivos dispensados aos investimentos extrativistas geraram distorções na alocação de recursos e prejudicaram economia e receitas federais. Riesco ainda aponta que medidas corretivas foram tomadas com a implantação de um imposto especial sobre a mineração, que apesar de haver gerado um bilhão de dólares adicionais à arrecadação do setor, ainda seria insuficiente quando comparado aos lucros que mineradoras obtêm no Chile. Segundo Riesco (2008), a adequação do nível de impostos entre as mineradoras públicas e privadas poderia gerar recursos que permitiriam ao Estado chileno aumentar seu gasto social em mais de dois terços do valor atual. Em contraste com os casos chileno e norueguês, os casos nigeriano e indonésio apresentam novos matizes sobre as dificuldades advindas da existência de riquezas minerais abundantes, em que se percebe a importância do contexto histórico para entender a situação específica de cada país. Indonésia11 No caso da Indonésia, se observa que o país logrou utilizar os recursos da exploração mineral para gerar desenvolvimento econômico, mas esse desenvolvimento não se refletiu em uma melhora significativa do bemestar social. Níveis altos de corrupção, orientação econômica pró-mercado e um governo autoritário explicam parcialmente esse resultado. Ainda assim, a Indonésia é considerada caso bem-sucedido no que diz respeito a resultados econômicos da exploração dos recursos minerais. Entre os anos 1970 e os anos 2000, a Indonésia fez transição de país de baixa renda para país de renda média. Bom gerenciamento econômico conseguiu manter a produção agrícola concomitante ao desenvolvimento de setor industrial competitivo. Como resultado, houve diminuição de dependência da exportação de matérias-primas e utilização de parcela significativa das rendas minerais para agricultura, infraestrutura e serviços sociais.
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A Indonésia evitou a doença holandesa ao desvalorizar a taxa de câmbio em resposta à alta na cotação do petróleo, protegendo a competitividade nacional. O investimento de parte importante dos recursos recebidos no exterior foi responsável em grande medida pela contenção da inflação e consumo, possibilitando uma taxa de poupança doméstica de 30%. O governo autoritário de Suharto foi responsável pela estratégia de gerenciamento das rendas minerais, utilizando instituições de exploração do petróleo fracas, contrabalançadas por uma tradição de instituições fortes a nível central, especificamente para política econômica, finanças e planejamento. No período pós-Suharto (1998), desenvolveu-se estratégia de canalizar recursos para serviços sociais por meio de políticas de descentralização, visando diminuir a corrupção, bastante difundida, e a influência dos partidários de Suharto. Essa política de descentralização permitiu introduzir políticas de transferências monetárias, financiadas com a eliminação de subsídios aos combustíveis, que teve boa aceitação por parte da sociedade. Em 2005, essas transferências monetárias chegaram a 19 milhões de famílias carentes, enquanto os preços dos combustíveis dobraram, sem gerar distúrbios sociais (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2008, p. 17-18). No entanto, o desenvolvimento social da Indonésia é pior que de outros países da região, mesmo considerando a relativa riqueza do país. No setor da saúde, são exemplos as políticas de vacinação deficientes e falta de pessoal. Na área da educação, apesar da bem-sucedida inclusão de crianças na pré-escola, não houve sucesso no aumento de matrícula na educação secundária. Esforços para melhorar os níveis de educação não foram apoiados por aumentos de orçamento. Existem bons resultados no combate à pobreza, com a diminuição das pessoas vivendo com menos de um dólar por dia de 17,4% em 1993 para 7,5% em 2002, sendo que são indicados progressos com gasto público em educação e saúde desde 2006/2007. Nigéria12 A Nigéria oferece um caso fascinante sobre utilização de riquezas minerais no desenvolvimento social, com grande variabilidade nas políticas ao longo do tempo. 82
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Na história recente da Nigéria existem dois períodos com desenvolvimento das áreas social e econômica de forma articulada. O primeiro período vai de 1955 a 1960, durante o 1º Plano de desenvolvimento do governo da Nigéria Ocidental, o qual se concentrava em capital humano, infraestrutura, apoio à produção agrícola e diversificação da economia. Esse período mostra um compromisso normativo com o desenvolvimento social, aliado à política fiscal conservadora e administração pública de alta qualidade. Após a guerra civil (1967-1970) se inicia o segundo período de desenvolvimento econômico-social articulado: o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (1970 a 1974) tinha na política social instrumento para promoção de desenvolvimento de senso de identidade nacional e coesão social. Essa política social foi financiada em grande medida com recursos originados da exploração de recursos naturais: agrícolas e hidrocarbonetos. A ênfase nesse período foi em políticas de educação e saúde, evidenciando as dimensões produtivas e redistributivas da política social. As ações de política sociais universais desse período incluem o programa de educação primária universal e ensino superior gratuito. Através dessa ação, se atingiu um investimento em educação da ordem de 6% do PIB em 1980, sendo que a saúde apresentou expansão similar. Durante o 3o Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1980), o salto do preço do petróleo aumentou as receitas do Estado em sete vezes. Esse período evidencia as dificuldades políticas e institucionais relativas à “maldição”, já que o aumento das receitas levou a agravamento substantivo de corrupção, que, aliada à péssima gestão das receitas adicionais, não permitiu utilização desses recursos para desenvolvimento econômico e social. A inexistência de políticas anticíclicas deixou o país vulnerável à posterior queda da cotação do petróleo, que levou a Nigéria a grave crise econômica. No período subsequente, entre 1980 e 1985, se iniciou transição para políticas pró-mercado, com lançamento de programa de estabilização em 1982, que visava diminuir a dependência do petróleo. Essa política se concentrou em uma retração do gasto público, racionamento de crédito e divisas externas e um programa de liberalização da economia. Após 1985, houve aprofundamento da agenda de reforma neoliberal, que levou à decadência institucional e à erosão da confiança e coesão social, sem solucionar a dependência dos recursos da exploração do petróleo.
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O marco de políticas sociais universais, desenvolvido nos anos 1970, foi enfraquecido no período de estabilização, desaparecendo no regime de liberalização. Para que se tenha ideia do impacto dos cortes no gasto público após 1982, o gasto com educação passou de 6% do PIB em 1980 para 0,65% do PIB em 1995. Posteriormente, a diminuição na qualidade do serviço foi usada com argumento para defender a transição para a provisão privada. Houve também queda nos indicadores de desenvolvimento humano, e aumento da pobreza de 28% em 1980 para 66% em 1996 (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2008, p. 17-19). Bolívia O caso boliviano mostra a utilização de recursos minerais em ambiente pouco estável, em que dividendos gerados pela participação estatal em empresas de energia financiavam o sistema de pensão isento de contribuição, dirigido aos idosos: o Bono Solidário ou Bonosol. Com a renacionalização das empresas de petróleo e gás em 2006,13 empresas privadas foram obrigadas a assinar novos contratos de exploração com o governo boliviano, prejudicando o financiamento do Bonosol, que levou à substituição deste em 2007 pelo Renta Dignidad, novo fundo de pensão universal. O financiamento do Renta Dignidad se baseou em impostos diretos preexistentes sobre hidrocarbonetos, também utilizados para políticas redistributivas para as regiões mais pobres, grupos indígenas, comunidades agrícolas, universidades e outras instituições públicas. O redirecionamento dos recursos provocou grande resistência dos que tiveram seus rendimentos diminuídos, em especial as regiões governadas pela oposição ao presidente Evo Morales. Em agosto de 2008, em virtude do aumento dos preços internacionais do gás natural, foi decidido aumentar o valor anual da pensão, o que aumentou a tensão entre o governo e grupos anteriormente beneficiários desse imposto. Esse processo ilustra os conflitos originados nas políticas redistributivas, mas ilustra também a fragilidade de um modelo que apoia programas de bem-estar em rendas minerais, devido à volatilidade dessas receitas. A volatilidade se exacerbou no caso boliviano pelo recente declínio de exportações e preços do gás natural, diminuindo a renda mineral recebida e colocando em perigo o financiamento 84
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do sistema de pensões (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010). Elemento adicional a ser considerado é a forte pressão para utilização imediata dos recursos advindos da exploração das riquezas minerais, dada necessidade de aliviar condições precárias em que vive grande parte da população. Isso ocorre especialmente se a plataforma pela qual se elegeram os governantes explicita a redistribuição de renda, o que gera pressão que pode levar a conflito social e político (UNITED NATIONS RESEARCH INSTITUTE FOR SOCIAL DEVELOPMENT, 2010).
Resumo dos casos O Quadro 1 apresenta os principais elementos dos casos apresentados recortados por variáveis econômicas ou sociais e políticas. Nas questões econômicas destacam-se questões relacionadas à doença holandesa e variabilidade das receitas das rendas minerais. No âmbito social e político se destacam questões redistributivas. QUADRO 1 –
País
Resumo dos principais elementos dos casos.
Variáveis econômicas
Variáveis sociais e políticas
Controle da doença holandesa com inovação institucional de criação de fundo Noruega
Não existe problema de dependência dos recursos minerais
Redistribuição social dos recursos
Políticas anticíclicas Política de emprego visando coordenar mudanças setoriais
Chile
Controle da doença holandesa com inovação institucional de nível de renda de médio prazo Solução parcial do problema da dependência de recursos naturais
Melhora na qualidade de vida da população, mas sem vínculo direto com políticas sociais
Políticas anticíclicas
Indonésia
Controle da doença holandesa com investimentos dos recursos no exterior Solução parcial do problema da dependência de recursos naturais Não existe menção a politicas anticíclicas
Nigéria
Bolívia
Dependência do petróleo indica subdesenvolvimento de outros setores da economia, doença holandesa Dependência das riquezas minerais
Governo autoritário até 1998 Corrupção Redistribuição só iniciada recentemente Inicialmente processo de redistribuição, processo de liberalização da economia levou à captura dos recursos por grupos privados
Sem políticas anticíclicas
Abundância de recursos levou a aumento da corrupção
Subdesenvolvimento de outros setores da economia, doença holandesa
Políticas redistributivas
Dependência das riquezas minerais
Fragilidade nas questões econômicas impede continuidade das políticas redistributivas
Sem políticas anticíclicas
Fonte: Elaborado pelo autor.
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Como a experiência internacional pode contribuir para o caso brasileiro? Com base nos elementos apontados nos casos internacionais, foram escolhidos dois temas para discussão no contexto do caso brasileiro: a criação de fundos de poupança ou estabilização e a atuação do Estado sobre a política de emprego, visando amortecer os efeitos da mudança setorial originada na ascensão da atividade relacionada ao petróleo.
Criação de fundos de poupança ou estabilização A criação de fundos de poupança ou estabilização engloba três questões inter-relacionadas: a estabilização macroeconômica, o financiamento de políticas públicas e a equidade intergeracional. Essa última é resultado da capacidade de criar poupança de longo prazo para as gerações futuras e está sujeita à pressão por utilização imediata dos recursos. No caso brasileiro, ela também introduz elementos da disputa federativa. No caso norueguês em maior medida, mas também no caso chileno, se observa utilização bem-sucedida de fundos, visando amortecer desequilíbrios macroeconômicos, criar justiça intergeracional e gerar fluxos contínuos de recursos para políticas públicas. Por outro lado, o caso boliviano mostra efeitos da pressão da população pela utilização imediata das receitas das rendas minerais. Vale ressaltar que a criação de fundos não é garantia de sucesso nos objetivos mencionados. Fundos podem ser criados, mas a aderência às regras depende da manutenção do compromisso governamental. No Brasil, houve criação do Fundo Social do Pré-Sal (FS), por meio da Lei nº 12.351/2010, depois modificada pela Lei nº 12.858 de 9 de setembro de 2013. Essa última responde a pressões da população por melhoras nos serviços públicos e estabelece destinação determinada para royalties e participação especial de todos os entes federativos: 75% para gastos com educação e 25% para gastos com saúde. Além disso, indicou utilização imediata de 50% dos recursos do FS para a educação. A Lei nº 12.858/2013 cria condicionantes à lei de 2010, com impactos diversos sobre a efetividade dos objetivos originais do FS. Em primeiro 86
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lugar, afeta negativamente a capacidade do governo de combater flutuações macroeconômicas. Na lei de 2010, o desenho das fontes de recursos para o FS indica que a maior fonte de recursos será originada na participação do Estado no petróleo físico extraído sob regime de partilha,14 o que é denominado profit oil. Dadas as características do regime de partilha, não é esperado fluxo importante de recursos originados no profit oil a curto e médio prazo.15 Por outro lado, existe grande estoque de contratos celebrados sob regime de concessão,16 inclusive em áreas do pré-sal. Nesses contratos, a receita do Estado se origina principalmente no pagamento de royalties e participação especial, que devem ingressar na economia de forma direta, o que pode gerar desequilíbrios macroeconômicos. Com a lei de 2013, determinou-se uso imediato de 50% dos recursos do FS, o que impacta a já baixa capacidade de controle das flutuações macroeconômicas do governo central. A segunda questão inter-relacionada, a equidade intergeracional, apresenta matizes. Como mencionado, existe uma distinção sobre o fluxo de recursos para o FS no curto e médio prazo. No curto prazo, a maior parte das receitas recebidas pelo Estado brasileiro será originada nos royalties e participação especial dos contratos de concessão. A parcela desses recursos a ser destinada ao FS é de aproximadamente 20% das receitas dos royalties, o que representa parcela minoritária destas receitas. No médio prazo os contratos de partilha passaram a fornecer recursos mais generosos ao fundo, com o início do pagamento de profit oil. Nos dois casos, somente metade dos recursos que ingressarem no FS constituirão poupança de longo prazo. No entanto, dada existência de significativas carências da população, cabe questionar o que seria equidade intergeracional no caso brasileiro. A literatura17 oferece vários modelos que tratam da definição de como recursos podem ser distribuídos ao longo do tempo, indicando que tal escolha é normativa (GOBETTI, 2009). O modelo norueguês, que é chamado bird-in-hand, é o caso que mais favorece as gerações futuras, em detrimento das presentes, pois somente rendimentos são utilizados. Em um país em que a população já goza de excelente padrão de desenvolvimento humano, tal configuração não implica manutenção de carências da população, o que o torna aceitável. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015
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Outros modelos chamados de “modelos de renda permanente” apresentam maior equilíbrio entre a utilização dos recursos pelas gerações atuais e as gerações futuras, o que pode ser mais adequado à situação do Brasil. Portanto, a promoção de equidade intergeracional é elemento polêmico, pois é necessário balancear as carências da população no presente com a exaustão das riquezas minerais futuras e, nesse sentido, parece que o desenho da legislação brasileira logrou certo equilíbrio. Em terceiro, com relação aos fluxos contínuos de recursos para políticas públicas, a lei de 2013 foi um grande avanço, pois garante a utilização dos recursos do petróleo para fins estritos de políticas públicas. No entanto, essa lei não soluciona o problema da distribuição desigual dos recursos entre estados e municípios da Federação. A distribuição federativa atual dos recursos do petróleo obedece à legislação de 1985, que beneficia estados e municípios confrontantes às explorações, principalmente o estado do Rio de Janeiro e alguns de seus municípios litorâneos. Essa questão tornou-se o centro dos debates legislativos durante o processo de aprovação do marco regulatório de 2010, nos quais a maioria dos parlamentares apoiou nova distribuição dos recursos, com base no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Esse processo incluiu dois vetos presidenciais, derrubados pelo Parlamento. Atualmente, o processo encontra-se no Supremo Tribunal Federal, no qual a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), promovida pelos estados atualmente mais beneficiados, aguarda julgamento. A distribuição desigual dos recursos implica recursos acima dos necessários para jurisdições mais beneficiadas pelo arranjo atual, enquanto jurisdições menos beneficiadas recebem quantias irrisórias. Nesse sentido, a destinação obrigatória para políticas de saúde e educação gera solução desigual em termos regionais para o problema do financiamento das políticas públicas. Em suma, o FS apresenta deficiências com relação à sua capacidade de amortecer desequilíbrios macroeconômicos, mas pode constituir fonte de recursos estável para execução de políticas públicas, desde que se logre distribuição mais equitativa dessa riqueza entre os entes da federação. Em termos de equidade intergeracional, é certo que a criação de poupança de longo prazo beneficiaria as gerações futuras, mas, dadas as 88
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carências atuais, utilizar parte dessas receitas para aliviar essas carências parece acertado.
Política de emprego visando amortecer mudanças setoriais O caso norueguês mostrou ações do Estado visando facilitar a adaptação da força de trabalho às mudanças setoriais decorrentes da emergência do setor do petróleo. Tais ações se mostraram importantes na manutenção do emprego naquele país. Já surgem sinais de estrangulamento na oferta de mão de obra para atividades relacionadas à exploração do petróleo no Brasil. Existem também programas de qualificação financiados pela Petrobras, mas de caráter pontual. Não se criou política ampla para antecipar as mudanças setoriais. À luz da experiência norueguesa, é necessário avaliar as implicações do contexto atual, em que se inclui o processo de expansão do setor primário e retração da indústria, visando criar política efetiva para tratar dos desafios na economia do trabalho.
Considerações finais As experiências internacionais apresentadas mostram grande variedade nos resultados do desenvolvimento a partir de contextos históricos e institucionais específicos. No entanto, alguns elementos podem ser observados e avaliados, visando iluminar entendimento de aspectos específicos do caso brasileiro. Nesse sentido, as experiências da Noruega e do Chile são mais relevantes, apontando soluções concretas da estabilização macroeconômica, equidade intergeracional e estabilidade do financiamento de políticas públicas. O caso boliviano aponta dificuldades na criação de poupança de longo prazo em contextos de carência social. Finalmente, a experiência de intervenção estatal norueguesa, visando facilitar a mudança setorial, pode indicar necessidade de maior atenção a este aspecto do contexto nacional atual. A partir dos elementos expostos, poderiam desenvolver-se pesquisas para aprofundar questões aqui apresentadas. Em primeiro lugar é necessária uma avaliação da efetividade do FS enquanto elemento de estabiSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 69-93 | jan.-abr. 2015
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lização macroeconômica, promotor de justiça intergeracional e financiador de políticas públicas. Tal avaliação deve necessariamente levar em consideração o aspecto federativo, elemento que não está presente nos casos da Noruega e do Chile. Nesse sentido, recomenda-se fazer uma análise de cenários para os recursos depositados no FS para maior clareza sobre implicações da política pública em seu formato atual. Outro tema de interesse estaria no campo das políticas de emprego necessárias à coordenação de mudança setorial decorrente do aumento de importância da indústria do petróleo no Brasil. Nesse sentido, se faz necessário inventário das ações empreendidas atualmente e sua adequação aos cenários futuros.
Notas 1 Camada geológica anterior à camada de sal, localizada na plataforma
continental brasileira, onde em 2006 foram descobertas reservas de petróleo e gás natural que tornariam o Brasil um dos maiores produtores mundiais. 2 Nesse texto utilizo o termo “Estado de bem-estar” como sinônimo de políticas
sociais propositalmente. Apesar de controverso, não desenvolverei a discussão aqui. 3 O Estado de bem-estar também pode ser financiado por impostos, previdência
social, ajuda externa e envio de trabalhadores nacionais no exterior (UNRISD, 2010). 4 Tradução livre do autor, itálicos presentes no original. 5 Esta seção se baseia fortemente em Mehlum, Moene e Torvik (2012). 6 Equivalente a Petrobras no Brasil. 7 O Chile era o único produtor mundial de nitrato, insumo que teve demanda
elevada em decorrência da aceleração da produção industrial europeia. Dada a posição monopolista, o Chile usufruiu de alta lucratividade na atividade. Com a invenção do nitrato sintético e a diminuição da atividade em decorrência da crise de 1929, a demanda do nitrato teve diminuição brusca, com efeitos fiscais profundos sobre a economia chilena. Entre 1880 e 1931, o nitrato foi responsável por 42% das receitas governamentais, caindo para 14% entre 1932 e 1945 (GUAJARDO, 2012).
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8 A Codelco foi criada com a nacionalização do cobre, pelo agrupamento dos
ativos das empresas mineradoras estrangeiras, sendo de importância para o governo tanto pela receita gerada como também pela influência econômica sobre o país. Essa importância estratégica da Codelco para o governo é parte da explicação da manutenção da empresa como estatal, mas houve influência do posicionamento nacionalista de seus trabalhadores, que logrou mobilizar a opinião pública contra a privatização. 9 Produto derivado da exploração do cobre. 10 “Benefícios da aplicação do conceito de equilíbrio estrutural mencionados:
implementação de política anticíclica; aumento de poupança pública durante períodos de grande crescimento, permitindo evitar apreciação cambial e manutenção da competitividade do setor exportador; redução da volatilidade da taxa de juros; maior credibilidade do governo chileno como emissor de dívida pública, levando à diminuição do risco soberano; melhora no acesso a financiamento externo durante choques externos e menor contágio de crises internacionais; redução da exigência financeira internacional; e melhora na capacidade de planejamento de políticas sociais de longo prazo pela garantia de sustentabilidade financeira” (UNRISD, 2008, p.14) – Tradução livre do autor. 11 Esta seção se baseia fortemente em Ascher (2012). 12 Esta seção se baseia fortemente em UNRISD (2008). 13 As empresas haviam sido privatizadas em 1990. 14 A Lei nº 12.351/2010 também instituiu o regime de partilha da produção para
as áreas de interesse estratégico como o Pré-Sal. Nesse regime, a empresa que recebe a concessão para exploração incorre nos riscos da exploração, e os recursos auferidos com a venda do petróleo são destinados primeiramente a ressarcir os investimentos de exploração. O petróleo extraído nesse período é denominado cost oil. Em seguida, o petróleo extraído passa a ser dividido entre empresa concessionária e Estado na proporção estabelecida no contrato de partilha. O petróleo extraído nesse período é denominado profit oil. 15 O primeiro contrato sob regime de partilha foi o campo de Libra, licitado em
outubro de 2013. Após a licitação, existe período de prospecção, recuperação de custos de investimento do consórcio exploratório e criação de massa crítica de recursos no FS. 16 Regime de exploração vigente quando da descoberta das jazidas do
pré-sal, instituído pela Lei do Petróleo (Lei 9.478/1997), em que a empresa concessionária incorre nos riscos de exploração, pagando principalmente royalties e participação especial como contrapartida ao Estado. 17 Para discussão mais aprofundada sobre modelos fiscais de utilização das
rendas minerais, ver Maliszewski (2009).
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Governo representativo e democratização: revendo o debate1 Fernando Limongi
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Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro
Fernando Limongi Fernando Limongi é professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Cebrap/CEM/Neci e bolsista do CNPq. É coautor, com Argelina Figueiredo, de Política orçamentária no presidencialismo de coalizão (Rio de Janeiro, Editora FGV/Konrad Adenauer, 2008); Executivo e legislativo na nova ordem constitucional (Rio de Janeiro, Editora FGV/Fapesp 1999); e, com Adam Przeworski, Michael Alvarez e José Antonio Cheibub, de Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World, 1950-1990 (New York: Cambridge University Press, 2000).
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Resumo Este artigo propõe uma releitura do debate sobre a evolução política do país. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma revisão da forma de entender o processo de democratização. Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens são traçadas a interpretações clássicas como o de Victor Nunes Leal e Sérgio Buarque de Holanda. Palavras-chave: Democracia. Governo representativo. Direitos civis. Direitos políticos.
Abstract This paper proposes a new reading of the debate on the country’s political evolution. Starting from the theses that support the infeasibility or incompleteness of democracy in Brazil, this paper proposes a review to understand the democratization process, addressing an old debate originated with the classical interpretations of Nunes Leal and Sergio Buarque de Holanda. Keywords: Democracy. Representative government. Civil rights. Political rights.
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Governo representativo e democratização: revendo o debate
Introdução1 A história política do Brasil pede uma revisão. A forma usual de reconstituí-la assume que a história política do país difere radicalmente da trajetória seguida em países como a Inglaterra, França e Estados Unidos. A herança colonial, a ausência de uma ruptura efetiva com o passado, é uma variável chave nas interpretações canônicas sobre a evolução do governo representativo e da democracia no país. Contudo, estudos recentes sobre a evolução política europeia e norte-americana recomendam uma revisão da forma usual de entendermos a evolução política do país. Este é o objetivo deste trabalho.
O governo representativo falseado Em seu clássico Coronelismo, enxada e voto, Victor Nunes Leal define seu objeto de estudo da seguinte forma: “Concebemos o ‘coronelismo’ como o resultado da superposição de formas desenvolvidas de governo representativo a uma estrutura econômica e social inadequada” (LEAL, 1975, p. 20). Mais que inadequação, teríamos uma inviabilidade. O governo representativo não encontraria no Brasil a realidade social sobre a qual se assentava em outros lugares. A descrição realista das práticas eleitorais do país é um dos sustentáculos da análise do autor. No essencial, estas práticas teriam experimentado pouca variação ao longo do primeiro século de vida independente do país. As inúmeras reformas da legislação eleitoral feitas no Império e na Primeira República não teriam tido chances de sucesso. O problema fundamental residiria na ausência de um eleitorado que apresentasse as condições exigidas para o funcionamento de um governo representativo. Não teríamos, de fato, eleitores, pelo menos não os exigidos para um funcionamento efetivo do governo representativo. Sérgio Buarque de Holanda argumenta que Proclamadas com eloquência, e abraçadas aparentemente com sinceridade, as doutrinas revolucionárias foram, assim, condicionadas no Brasil a fatores que não existiam, ou existiram de maneira diferente, em seus lugares de origem. [...] Mas se a derrocada do absolutismo e a afirmação da independência ajudavam a remoção do obstáculo, o certo é que
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não poderiam, somente, suprir algumas lacunas sérias da organização preexistente. [...] A mais notável, entre estas lacunas, era a inexistência de uma numerosa camada social intermediária entre os grandes senhores e a parte ínfima da população livre, que pudesse fazer as vezes de classe média. [...] Como entender, com efeito, um sistema representativo digno desse nome onde faltava o elemento que em toda a parte vinha constituindo o nervo das democracias? (HOLANDA, 1972, p. 80).
O contraste é claramente enunciado nestas duas formulações. Em certas sociedades, observa-se a adequação entre a forma e a realidade, entre o governo representativo e as práticas eleitorais. O Brasil é caracterizado negativamente, pelo que está faltando. A ausência do elemento fundamental sobre o qual se assentaria o governo representativo condiciona a sua adaptação aos trópicos. Adequado na origem, inadequado em sua cópia. A ausência, o que faltaria à sociedade brasileira, a tal camada intermediá ria numerosa, é o elemento central da caracterização. O latifúndio, herdado do período colonial, o obstáculo que a independência não remove, gera a atrofia. O eleitor nacional típico, porque dependente do proprietário de terra, não teria vontade autônoma a expressar. Votaria a mando, expressando a vontade de seus superiores. Destituído de eleitores capacitados, o país não poderia senão experimentar uma versão falseada do governo representativo. Em suas versões mais extremadas, estes argumentos sublinham o irrealismo de nossas elites políticas, a falta de percepção destas sobre as condições sociais vigentes no país. A insistência com que as elites nacionais teriam “importado” os modelos políticos da Inglaterra, Estados Unidos e França seria a prova de seu irrealismo. A suposição fundamental deste tipo de visão é a de que em certos países seriam observadas as condições sociais necessárias para o sucesso do governo representativo. Por lá, haveria povo ou classe média, a matéria necessária para o funcionamento adequado do governo representativo. Ausentes estas condições, a cópia redundaria em farsa. As “formas desenvolvidas do governo representativo” não funcionariam porque fora de lugar. Se assim for, isto é, se aceitarmos as premissas desta crítica, a história institucional do Brasil não mereceria estudo. Para entender a evolução institucional do governo representativo, o correto seria estudar o que se passou com o original. Nada de relevante teria tido lugar nestas plagas.
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A experiência do governo representativo no Brasil seria sempre e irremediavelmente marcada pelo atraso, expresso de forma mais clara nas práticas eleitorais viciadas, em que violência e fraude campeariam. Nunes Leal, por exemplo, após revisar a evolução da legislação eleitoral brasileira, conclui: Através de todas essas tentativas, recebidas confiantemente por uns e, com descrença ou pessimismo por outros, o mecanismo representativo continuou a revelar deficiências, por vezes graves. [...] Sempre impressionou aos espíritos mais lúcidos o artificialismo da representação, que era de modo quase invariável maciçamente governista. Entretanto, a subsistência de certos vícios exteriores ou formais, notadamente a insinceridade da verificação de poderes [...] muito concorria para que se atribuíssem os defeitos do nosso regime representativo a fatores de ordem puramente ou predominantemente política. Por esse mesmo motivo, a atenção dos observadores quase sempre se desviava dos fatores econômicos e sociais, mais profundos, que eram e ainda são [1947], os maiores responsáveis pelo governismo e, portanto, pelo falseamento intrínseco da nossa representação (LEAL, 1973, p. 241).
A transformação da legislação eleitoral brasileira, portanto, teria pouco interesse: pura reafirmação do “artificialismo”. As reformas feitas – e não foram poucas – seriam apenas a prova do irrealismo de nossas elites, reafirmando, a cada nova tentativa, a impossibilidade de implantação de mecanismos representativos no país. Consequentemente, o debate institucional nacional seria vazio porque descolado da realidade, por não atacar o problema de fundo, a realidade social por detrás do voto de cabresto. Quando analisada, invariavelmente, a evolução da legislação eleitoral brasileira tende a ser vista como a comprovação do elitismo arraigado das nossas elites, de sua rejeição profunda a qualquer valor democrático, expresso em uma constante negação de medidas que ampliassem a participação popular. A aprovação da Lei Saraiva em 1881 seria a expressão mais acabada deste reacionarismo.2 Como se sabe, esta lei levou a uma drástica redução do direito ao voto, reduzindo-o a praticamente a 1% da população do país.3 Frise-se a data: 1881. As elites brasileiras optaram por uma redução do eleitorado no final do século XIX, no momento em que os países europeus estariam caminhando na direção contrária. Por isto mesmo, quando 100
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analisa a legislação eleitoral do império, José Murilo de Carvalho (1988, p. 140) afirma que “no que se refere à definição da cidadania, a evolução da legislação foi uma involução”.4 O reacionarismo das elites políticas brasileiras não poderia ser maior e mais completo, como mostrariam os debates parlamentares que acompanharam a discussão e a aprovação da Lei Saraiva. Os eleitores pobres acabaram responsabilizados pelo desvirtuamento das práticas representativas. Para moralizar as eleições, esta a conclusão a que teria chegado a elite governante brasileira, seria necessário afastar os pobres das eleições, negar-lhes o direito a voto. Seguindo esta linha de argumentação, a literatura recente tende a afirmar o caráter anômalo do desenvolvimento político brasileiro, sua divergência em relação ao modelo ocidental clássico representado, por exemplo, no conhecido esquema proposto por T. H. Marshall para dar conta da expansão da cidadania na Inglaterra. Neste tipo de análise, a ênfase recai sobre a diferença, sobre a especificidade da experiência nacional cujo resultado último seria uma democracia atrofiada e frágil. Estas análises, em geral, carecem ou não são fundamentadas por um modelo explicativo claro para a emergência do regime democrático. A história política do Brasil continua caracterizada pela negativa, pela ausência, a partir de um contraste a um modelo de desenvolvimento político modelar. A referência é a história política da Inglaterra, França e Estados Unidos sem que estas sejam examinadas a fundo. Nas análises recentes (CARVALHO, 2005; O´DONNEL, 2011; HOLSTON, 2013), o modelo elaborado por T. H. Marshall para dar conta do caso inglês é tomado como o padrão, enquanto o Brasil (ou de forma mais geral, a América Latina) assume o papel do caso desviante. Como afirma José Murilo de Carvalho (2003, p. 11), a sequência identificada por Marshall é tanto histórica quanto lógica. O ponto de partida define os degraus seguintes. Os direitos civis, cujo reconhecimento teria se dado na Inglaterra no século XIX, anunciam os direitos políticos e os sociais. Se todos os membros de uma comunidade política são iguais perante a lei, isto significa que se assume que todos são dotados da capacidade de tomar as decisões, de celebrar contratos, enfim de ser responsáveis pelos seus próprios atos. Reconhecida esta igualdade fundamental, então Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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é apenas um passo para aceitar que estes mesmos indivíduos têm capacidade para participar das decisões políticas. A extensão dos direitos políticos, que viria no século XIX, não seria senão o reconhecimento das consequências do primeiro avanço. Tratar-se-ia de uma decorrência histórica e lógica. O encadeamento entre um e outro seria necessário. A relação entre os direitos políticos e sociais seria da mesma ordem. A relação seria direta. Se o voto é estendido aos mais pobres, então um governo que siga a vontade da maioria deve adotar políticas que visem à promoção da igualdade. No mínimo, os mais pobres devem ser protegidos dos azares do mercado. Se o governo com voto da maioria não o fizer, então esta não é uma democracia efetiva, real. No máximo, pode ser vista como uma democracia incompleta, atrofiada pela herança história: a falta de uma ruptura com o passado no momento de implantação do direito civil. Dada a natureza da relação interna entre as fases da expansão da cidadania, isto é, dado o caráter ao mesmo tempo histórico e lógico da evolução, segue que o ponto de partida é o passo verdadeiramente fundamental, do qual os demais são derivados. O ponto de partida define a trajetória posterior. Como afirma David Held: A cidadania civil constitui um passo significativo no desenvolvimento dos direitos políticos; na medida em que o agente individual foi reconhecido como uma pessoa autônoma – isto é, uma pessoa capaz de refletir e de tomar decisões sobre as condições básicas da vida – foi mais fácil pensar nessa pessoa como, em princípio, sendo capaz de responsabilidade política (HELD, 1995, p. 67 apud O’DONNEL, 2011, p. 55).
Se, de fato, o direito civil anuncia sua transformação no século seguinte, se esta pode ser deduzida daquela, então a democratização do sistema político inglês não precisa ser investigada. Tratar-se-ia de uma mera consequência. Nesta explicação, a verdadeira ruptura é a anterior, a afirmação da cidadania civil, o reconhecimento da autonomia individual, da capacidade de cada um de tomar decisões. Dada esta premissa, o reconhecimento de que todos teriam o direito de participar do processo político é uma consequência direta. O desdobramento ou passagem do civil ao político seria natural e necessário. Houve resistências, é certo, mas estas estavam necessariamente fadadas ao fracasso. Seriam menos relevantes que a marcha inexorável anunciada pela ruptura anterior.
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Assim, neste tipo de análise, por paradoxal que possa parecer, a democratização não é problematizada ou estudada. Democracias emergem naturalmente das revoluções burguesas, da quebra da velha ordem. Sepultado o Antigo Regime, o novo florescerá. Pode demandar tempo, mas a evolução pode ser tomada como certa. Esta, digamos, seria a rota clássica, aquela que na formulação clássica de Barrington Moore Jr. (1966) permite combinar modernização socioeconômica e política, isto é, na qual a modernização culmina na democracia representativa. Nos demais casos históricos analisados por Moore, a ausência de uma ruptura violenta com o passado feudal condiciona o desenvolvimento histórico futuro, impossibilitando o nascimento de governos democráticos. A equação “se revolução burguesa então democracia representativa” permite que Moore desconsidere a democratização das sociedades que examina. Por exemplo, a reconstituição da história política inglesa é abandonada em 1688. Isto é, no interior do modelo explicativo oferecido por Moore, a Revolução Gloriosa seria suficiente para estabelecer toda a trajetória subsequente do país. A primeira reforma estendendo o sufrágio, contudo, só viria a acontecer um século e meio mais tarde, em 1832, após longas e acirradas discussões, quando o direito de voto foi estendido a não mais que 20% da população adulta masculina. Duas outras reformas (1867 e 1884) promoveram novas extensões de tal sorte que o direito do voto havia sido estendido a não mais que 60% da população adulta masculina no final do século XIX. Mulheres – e apenas algo como 40% delas – obtêm o direito de votar ao final da Primeira Guerra Mundial. O sufrágio universal só foi adotado na segunda década do século XX.5 Assim, o período histórico olimpicamente omitido por Moore não é pequeno. Na literatura recente referências a Barrington Moore e a revoluções burguesas são escassas. Abordagens mais recentes tomam a extensão da cidadania como eixo central para a construção das trajetórias divergentes. Marshall passou a ocupar o lugar que pertenceu a Moore. Em lugar da modernização, o processo de longo prazo subjacente e que confere sentido às análises passou a ser a expansão da cidadania. A afirmação do princípio da igualdade, não importa se formal, continua a ser o marco inicial.
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As referências e variáveis mudaram, a estrutura do modelo explicativo não. O esquema é o mesmo. A história da ampliação da cidadania comportaria diferentes rotas, determinadas em última análise pelo momento fundador ou original da instauração da igualdade civil. O fundamental é o grau de ruptura com o Antigo Regime e a afirmação da igualdade formal perante a lei. Onde esta ruptura foi para valer, direitos civis e políticos podem ser encadeados. Nas palavras de O’Donnel (2011, p. 54): Quando em algum momento do século XIX, a maioria dos países do Noroeste adotou democracias não inclusivas, já havia sido atribuído a uma grande parte da população masculina uma série de direitos subjetivos que regulavam boa parte de suas vidas. Mas estes não eram – ainda – os direitos políticos da aposta democrática. Eram direitos civis e subjetivos [...] quando a plena inclusão política começou a ser debatida, nos países do Noroeste, já existia um rico repertório de critérios legalmente elaborados e sancionados para atribuição de agência na esfera privada a um grande número de indivíduos (em sua maioria homens). Certamente, segundo os padrões contemporâneos o alcance destes direitos era muito limitado. Mas também é certo que, devido ao processo de atribuição de direitos subjetivos, preparou-se para tornar extensivos à cidadania política e social.
O modelo explicativo supõe o contraste. Os direitos civis, se acompanhados do reconhecimento da autonomia do agente, incluem a “aposta democrática”. Mas os direitos civis podem ser apenas epidérmicos, casos em que não incluem o reconhecimento pleno dos agentes e, portanto, não carregam consigo os germes de sua transformação, para usar uma linguagem datada. As trajetórias históricas dos países do Noroeste6 e da América Latina são distintas. O que se pretende explicar é a divergência presente, a fragilidade ou falta de efetividade dos regimes democráticos na América Ibérica. Como em Nunes Leal e em Sérgio Buarque de Holanda, a ausência da ruptura histórica atrofia a experiência futura. No caso da versão contemporânea centrada na expansão da desigualdade, a democracia política não gera igualdade social. As ênfases mudam, mas a essência do modelo não. O que é preciso ter claro é que os processos de democratização dos casos bem-sucedidos não são objeto de tratamento sistemático. A evolução política destes países é deduzida do modelo adotado. Marshall, que não dedica mais dos que uns poucos parágrafos à extensão dos direito do voto, seria suficiente para caracterizar a democratização do sistema político inglês. Em 104
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outras palavras, a construção do contraste das diferentes rotas trilhadas é altamente dependente da idealização do que teria sido o processo de democratização da Inglaterra, França e Estados Unidos. A contraposição marca estes modelos explicativos. A afirmação de que o governo representativo não funcionaria adequadamente no Brasil supõe a existência de seu contrário, isto é, do funcionamento adequado desta forma de governo em determinados países. Para retornar a Nunes Leal, o autor nos oferece uma visão realista de como de fato funcionam as eleições no Brasil, como por aqui os princípios do governo representativo são falseados. Como afirma: “A corrupção eleitoral tem sido um dos mais notórios e enraizados flagelos do regime representativo no Brasil” (LEAL, 1975, p. 240). O complemento deste realismo é a idealização da operação do governo representativo alhures. Assume-se, implicitamente, que o que por aqui se busca, “eleições limpas e verazes”, teria sido alcançado onde a grande propriedade foi destruída e uma classe média numerosa se formou. E se as eleições são efetivas, para retornar à versão contemporânea do argumento, a igualdade social deveria ser uma consequência da política. Contudo, cabe perguntar: sabemos se funcionou o governo representativo em que haveria uma adequação entre forma política e realidade social? Podemos afirmar que, na origem, as sociedades inglesas, francesas e norte-americanas eram mais igualitárias que a brasileira (latino-americanas)? Existem de fato duas experiências históricas com as instituições representativas, uma falseada e outra verdadeira?
Governo representativo e desigualdade política Nunes Leal uma vez mais é a referência inicial. Os termos que emprega em sua formulação clássica merecem atenção. A referência é ao governo representativo e não à democracia. O centro de sua análise são as eleições, seu funcionamento, ou melhor, seu desvirtuamento no Brasil em relação ao modelo. A referência é duplamente importante. Primeiro porque define de forma clara o ponto de partida ou origem a partir da qual a reconstituição histórica deve ser empreendida. O ponto de partida é a adoção do governo representativo e não o liberalismo e muito menos a liberal-democracia. Segundo porque coloca as expectativas acerca das práticas eleitorais no centro do debate. A análise das práticas eleitorais Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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viciadas experimentadas pelo país se ampara em uma contraposição, na expectativa de como elas deveriam funcionar. Mas como afinal deveriam funcionar eleições? Além disto, estas expectativas se referem à realidade ou ao modelo? Cabe considerar a hipótese: não estaríamos construindo uma contraposição entre o real e o idealizado? Afinal, sabemos como evoluiu de fato o governo representativo na Inglaterra, França e Estados Unidos? A omissão de uma análise detida da história destes países, quando não da pura idealização de como esta teria transcorrido, está na base do argumento empregado por Nunes Leal e tantos outros. Como frisou com propriedade Bernard Manin (1997), o sucedâneo dos governos hereditários é o governo representativo. A característica essencial do governo representativo é o fato de que neste a seleção de líderes se dá por meio de eleições.7 Governantes são eleitos. Ainda que hoje associemos eleição à democracia, na filosofia política clássica, o método de seleção de governantes identificado com a democracia é o sorteio e não a eleição. Este método específico, a eleição, como sublinha Manin, sempre foi associado ao governo aristocrático e sua adoção no momento de criação do governo representativo se deu com plena consciência desta associação. As consequências desta associação não devem ser lidas como curiosidades ou provas de ilustração. O caráter aristocrático das eleições era conhecido pelos que propuseram sua adoção. Para dizer de outro modo: seus efeitos não igualitários pesaram na escolha. Quando eleições passaram a ser usadas para selecionar governantes não se esperava que representantes fossem iguais aos representados. Antes o contrário. A expectativa dos criadores desta forma de governo era de que eleições levassem à seleção dos melhores, dos mais capacitados, da elite social e cultural. Caberia a estes governar. Eleições não são igualitárias porque nem todos têm as mesmas chances de serem eleitos e desempenhar funções de governo. Na origem, portanto, temos uma afirmação clara e explícita da desigualdade política. Eleições não foram pensadas com um expediente para contornar a impossibilidade da deliberação direta, para contornar a impossibilidade prática da democracia direta. Os teóricos do governo representativo movem-se, de forma consciente e explícita, na direção contrária à democracia. O governo representativo seria superior à democracia justamente 106
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por recorrer às eleições e, desta forma, garantir que representantes seriam selecionados no interior da elite. O governo representativo era para ser o governo dos melhores. Melhor recorrer a Bernard Manin: O governo representativo foi instituído com amplo conhecimento de que os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidadãos distinguidos, socialmente diferentes do que aqueles que os elegiam. Chamarei este de o princípio da distinção (MANIN, 1997, p. 94, tradução nossa).
Em sua origem, portanto, o apelo a eleições não aspirava criar um corpo representativo que espelhasse o corpo social. Eleições deveriam levar aos postos de mandos os mais capacitados, a elite. Basta esta referência para questionar uma parte considerável dos estudos sobre o pensamento político brasileiro no século XIX. O elitismo não é específico ou suficiente para discriminar o pensamento político brasileiro. Os ingleses, franceses e americanos do período eram igualmente elitistas. Neste aspecto, o Brasil não é singular. A superioridade dos eleitos não decorre do voto censitário. A superioridade esperada tem por referência um corpo eleitoral restrito. Representantes devem pertencer a um grupo social superior ao dos seus eleitores. Medidas específicas foram tomadas com este fim. Isto é, não apenas o voto era censitário, como também o acesso aos cargos eletivos era protegido por exigências de propriedade, renda e idade. Dito de outra forma: as exigências legais para ser candidato eram maiores do que as que limitavam o direito ao voto. Assim, necessariamente, por força da lei, os ocupantes de cargos públicos teriam status superior ao de seus eleitores. Afirma-se desta forma de maneira explícita e clara o caráter não igualitário do princípio representativo. Em geral, precauções foram tomadas para garantir que representantes fossem recrutados no interior de um grupo seleto. O ponto merece ser frisado: a distinção fundamental embutida no governo representativo diz respeito menos a quem pode votar do que quem pode exercer o poder. Dito de forma mais direta: é possível compatibilizar o sufrágio universal ao Governo Representativo. Tanto a legislação inglesa quanto a francesa regulavam de forma explícita o acesso aos cargos de governo, enquanto os Estados Unidos, por razões discutidas a seguir, deixou de regular a matéria. Vale, uma vez mais, recorrer a Manin:
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Os limites ao direito de voto nos primórdios do governo representativo são bem conhecidos […]. O que é menos notado e estudado, contudo, é que, independente destas restrições, existiam ainda um número de provisões, arranjos e circunstâncias que asseguravam que os eleitos seriam de um estrato social mais elevado do que o eleitorado. Isto foi obtido de formas diversas na Inglaterra, França e Estados Unidos. De forma geral, se pode dizer que a superioridade social era garantida na Inglaterra por uma mistura entre estatutos legais, normas culturais e fatores práticos enquanto na França puramente com base na lei. O caso dos Estados Unidos é mais complicado, mas também, por isto mesmo, como será visto, mais revelador (MANIN, 1997, p. 95).
O reconhecimento desta desigualdade fundamental é crucial para uma reavaliação das origens e desenvolvimento do governo representativo e, consequentemente, para o surgimento das democracias representativas contemporâneas. O elitismo, ou mais claramente, a negação explícita e direta da ideia da igualdade política está na origem da adoção do governo representativo. O método de seleção de líderes adotado não é igualitário. Não se esperava, portanto, que governantes fossem iguais aos governados. Se o governo representativo funcionar de acordo com suas expectativas, então, os melhores, os mais aptos governam. Se não for assim, se os mais capazes não forem selecionados, então há algo de errado com o processo eleitoral. A corrupção eleitoral, o desvirtuamento do governo representativo, se dá quando outros critérios que não a capacidade para o exercício do poder prevalecem. Mas de onde vêm estas expectativas? Por que se espera que o princípio da distinção opere? Por que o funcionamento regular das eleições leva a seleção dos superiores socialmente? Uma resposta se encontra na passagem transcrita anteriormente: por uma combinação entre leis, normas culturais e fatores práticos. A interação entre estes fatores deve garantir que o governo representativo leve ao governo das elites. Tanto na Inglaterra quanto na França, precauções legais – critérios explícitos de renda e idade – foram tomados para assegurar que apenas os detentores de propriedade poderiam ser os eleitos.8 Na passagem citada, contudo, Manin afirma que o caso norte-americano é mais revelador justamente por dispensar precauções desta natureza. Mais especificamente, os Estados Unidos prescindem da intervenção das leis para assegurar que representantes fossem socialmente superiores aos representados. 108
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A alternativa seguida, contudo, não se deve a uma maior adesão ao credo democrático ou aceitação do princípio da igualdade política. Segundo Manin (1997), ao longo dos debates constitucionais na Filadélfia, os constituintes foram incapazes de encontrar um critério legal que pudesse ser aplicado uniformemente nas 13 ex-colônias. O que seria um critério de exclusão adequado no Sul seria insuficiente no Nordeste. Como diz Manin (1997), a heterogeneidade social, geograficamente delimitada, impediu que os constituintes americanos chegassem a um acordo neste ponto. Ideologicamente, a maioria era favorável a uma restrição censitária tanto do direito ao voto quanto do acesso a cargos públicos. Havia desejo de fazê-lo, mas foi impossível encontrar uma condição que servisse aos propósitos pretendidos. Assim, a regulação da matéria foi deixada aos estados membros. O caso é mais revelador justamente por esta omissão e a confiança obtida de que não seria desnecessário restringir o conjunto de cidadãos que poderiam se candidatar a exercer cargos públicos. Reside aí a importância dos debates entre os federalistas e os antifederalistas. Os antifederalistas acusam os defensores da nova Constituição de favorecer um governo aristocrático. Afirmam que o modelo proposto faria com que a distância social entre representantes e representados seria enorme. Somente os mais ricos seriam os eleitos. Os críticos da Constituição falham, contudo, na identificação do mecanismo que produziria este resultado. De sua parte, os federalistas, defensores da Constituição, apontam para a inexistência de barreiras legais para que representantes e representados sejam iguais. A Constituição não restringia a cidadania política e tampouco regulava quem poderia se candidatar. Não havendo restrição, se os resultados das eleições confirmassem os temores dos antifederalistas, isto se daria pela livre escolha do povo. Como mostra Manin, a posição dos federalistas neste debate decorre da sua confiança no caráter aristocrático das eleições. Restrições legais que discriminassem quem poderia ser eleito não seriam necessárias. Pela sua própria natureza, eleições levariam à diferenciação entre representantes e representados. O mecanismo, pela sua natureza, geraria a distinção. Os federalistas confiavam que os mais ricos e destacados socialmente Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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levariam vantagem sobre os demais, sobretudo em distritos amplos. Isto é quanto maior o distrito, quanto mais eleitores fossem necessários para eleger um representante, mais relevante a saliência social dos candidatos para sua eleição. A linha de interpretação aberta por Manin, sem exagero algum, revoluciona o entendimento das origens das modernas democracias representativas. Eleição dos líderes políticos é parte de qualquer definição corrente de democracia. Contudo, como argumenta Manin, as marcas da origem não são inteiramente apagadas pelas transformações que levaram à democratização do governo representativo. O componente aristocrático e não igualitário é inerente à eleição, não desaparecendo com a democratização dos sistemas políticos: No interior de governos baseados exclusivamente em eleições nem todos os cidadãos têm as mesmas chances de serem governantes. Os cargos representativos são reservados para pessoas vistas como superiores ou para membros das classes mais altas. Governo representativo pode em certos aspectos se tornar mais popular e democrático. Ainda assim, ele reterá dimensões aristocráticas no sentido de que aqueles que são eleitos não seriam similares a aqueles que os elegem, mesmo quando ninguém é impedido de competir por cargos eletivos (MANIN, 1997, p. 134).
Assim, a contribuição de Manin vai muito além do estudo das origens do governo representativo. A inspiração aristocrática tem consequências para o entendimento das modernas democracias. Muitas das características constitutivas do governo representativo foram mantidas. Algumas destas decorrem da natureza do processo eleitoral, outras das definições do papel dos próprios representantes e seus vínculos com os eleitores, como ausência de mandato imperativo ou recall. Contudo, para os fins deste artigo, estas consequências são menos importantes que a caracterização oferecida para entender a primeira aparição do governo representativo. O fundamental a reter é a consequência do trabalho de Bernard Manin para entender tanto o momento original, para a caracterização da ruptura política operada com o antigo regime, como também para o entendimento do processo de democratização. Mais especificamente, cabe retomar a história política da Inglaterra, França e Estados Unidos com novas lentes. O fim do governo hereditário não é seguido pela afirmação da igualdade política. Antes o contrário.
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O foco da análise do processo de democratização deve ser revisado. Importa menos quem pode votar do que quem pode ser votado. O governo representativo não pode ser interpretado como uma forma de governo protodemocrática,9 da qual teria brotado, por desdobramento interno, como uma evolução, a democracia moderna.10 Na origem, não há uma aposta democrática ou inclusiva. Os Pais Fundadores do governo representativo se movem na direção contrária, reafirmando e sustentando teoricamente a distribuição desigual das possibilidades de exercer o poder. A desigualdade política entre os membros da comunidade não se afirma apenas na restrição ao direito de voto. Ela é mais profunda. Na realidade, a extensão do direito de voto é menos relevante que a distinção quanto a quem pode exercer o poder. Não se trata, por certo, de equiparar todas as experiências históricas. O estudo de Bernard Manin chama atenção para a variação da combinação entre legal provisions, cultural norms, and practical factors para explicar os processos políticos específicos experimentados pela Inglaterra, França e Estados Unidos. O estudo de nossa história institucional sob esta perspectiva revelará, por certo, especificidades. Seja como for, porém, o fato é que a perspectiva interpretativa aberta pelo trabalho de Manin força uma revisão das noções estabelecidas sobre o ponto de partida trilhado pelos países ocidentais. Na origem, em qualquer lado do Atlântico e em qualquer hemisfério, temos uma afirmação explícita da desigualdade política. Tomar os regimes instaurados no século XIX pelo que vieram a se tornar no século XX é incorrer na falácia do determinismo retrospectivo (BENDIX, 1964, p.16). O desenvolvimento que estes regimes vieram a ter não era o esperado. Em muitos aspectos, as modernas democracias se baseiam em princípios e práticas não previstos pelos criadores do governo representativo. Entender o nascimento das modernas democracias, como estas se desenvolveram a partir do governo representativo, ocupa novamente posição de destaque na literatura comparada. Assim, a perspectiva inaugurada por Bernard Manin justifica uma releitura da experiência brasileira com o governo representativo. No princípio, todos eram elitistas. O ponto de partida não é a afirmação da igualdade.
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Governo representativo e democratização O ponto de partida, portanto, é o governo representativo e não as revoluções burguesas e/ou afirmação da cidadania civil. Em lugar de tomar como dada a existência de experiências históricas divergentes, cuja constituição remontaria o momento da queda do Antigo Regime, passamos a ter uma origem comum. Mais que isto, um ponto de partida que não supõe ou contém em embrião a ideia da igualdade entre representantes e representados. A literatura latino-americana sequer cogita colocar a experiência política da região em pé de igualdade com a dos países da região temperada. A agenda de pesquisa sobre a história política da região é voltada para explicar seu desenvolvimento anômalo ou incompleto. No passado recente, a diferença dos resultados históricos era clara e evidente. A região era marcada pela instabilidade política e pelo autoritarismo. No presente, contudo, a divergência de resultados não é mais tão evidente. A cena política da região mudou radicalmente nos últimos tempos. A maioria dos países tem regimes democráticos que já deram provas de sua estabilidade. Ainda assim, persiste a ideia da inferioridade dos regimes políticos da região, cujas democracias seriam marcadas por um déficit de cidadania, cujo passivo teria começado a se acumular logo após a independência. A revisão de perspectiva proposta significa rejeitar a tese de que história política da Inglaterra e do Brasil, ou de forma mais geral, dos países avançados e dos atrasados, devam ser tratadas como duas realidades distintas.11 Posto de forma positiva: os problemas políticos enfrentados por Inglaterra e Brasil são da mesma ordem. Trata-se de implantar o governo representativo. As trajetórias, ao menos no momento de sua implantação, estão sobrepostas. Os problemas institucionais brasileiros não devem ser analisados como problemas enfrentados pela adaptação do governo representativo aos trópicos, a uma realidade social inóspita. A ideia de adaptação ou importação de ideias e instituições precisa ser questionada. Há problemas que são inerentes ao governo representativo e que se manifestam onde quer que ele tenha sido instaurado. Cabe entender a lógica do governo representativo e não a de governos liberais. A diferença é sutil, mas não sem consequências.
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A visão segundo a qual governos liberais precedem governos democráticos e que a diferença essencial entre um e outro é a restrição ao sufrágio que vigoraria no primeiro e não no segundo acaba por minimizar a ruptura entre governo representativo e a democracia contemporânea. Implicitamente, ao fazê-lo, os que adotam esta perspectiva acabam por negligenciar as características próprias do governo representativo identificadas por Manin. Regimes liberais são geralmente caracterizados como democracias em gestação, como se o problema por excelência com que se defrontariam fosse a regulação do direito do sufrágio. Nesta linha de argumentação, em última análise, a divergência entre a experiência política inglesa e a brasileira acaba por se resumir às atitudes das elites diante desse problema, às respostas divergentes que estas teriam dado à pressão pela extensão da igualdade política.12 Enquanto a Inglaterra estendeu o sufrágio, no Brasil o caminho tomado teria sido inverso. Tudo se passa como se somente nos trópicos as elites políticas tivessem explicitamente negado a igualdade política. A referência ao governo representativo altera o foco. Como discutido na seção precedente, as premissas sobre as quais se assenta esta forma de governo são manifestamente antidemocráticas. Os pais fundadores desta forma de governo não eram democratas. Não eram sequer protodemocratas. Eram declaradamente contrários à igualdade política. Vale voltar uma vez mais a Manin: eleição é um método de seleção de líderes não igualitário e sua adoção se deu com plena consciência desta característica. Sabia-se e valorizava-se o fato que nem todos teriam a mesma chance de exercer o poder. O exercício do poder ficaria reservado aos membros da elite. A restrição ao direito do voto, a defesa do voto censitário, não é, portanto, produto de uma inconsistência com o princípio fundamental da igualdade que, assim, seria eliminada naturalmente. Por revolucionária e radical que seja a afirmação da igualdade civil, esta não se estende naturalmente e necessariamente ao campo político. Benjamin Constant, ao fazer a célebre distinção entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, estava justamente, como argumenta Rosanvallon (1999, p. 225), estabelecendo uma separação profunda entre a igualdade civil e política. Para os modernos, a segunda não decorreria da primeira. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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Como afirma Rivera (2000, p. 31), o liberalismo das elites latino-americanas “não era mais contrário à democracia e à participação popular que o liberalismo dos pais da moderna república liberal”. Os regimes criados na Inglaterra, Estados Unidos e França não apenas se assentavam sobre sociedades altamente desiguais do ponto de vista social, como também supunham que esta mesma desigualdade guiasse a distribuição dos cargos de poder. Os regimes criados naqueles três países eram tão oligárquicos quanto seus pares latino-americanos. As divergências entre estes dois mundos, nos campos social e político, são menores que as convergências. Rivera (2000, p. 37) observa que não se deve assumir que o modelo do governo representativo tenha vindo ao mundo pronto e acabado, com respostas para todos os problemas com que viria a se defrontar. Mais do que isto: não se deve assumir que as falhas e inconsistências do modelo teriam se manifestado exclusivamente na América Latina.13 A implantação do modelo conviveu com os mesmos problemas nos dois lados do Atlântico e nos dois hemisférios. Desde o ponto de vista institucional, não cabe falar em divergência ou rotas. Há uma história comum, a da evolução e transformação do governo representativo. Uma história que é necessariamente turbulenta e errática em função das inconsistências do modelo original. O ponto de partida necessário, portanto, é uma caracterização mais acurada do governo representativo, de seus princípios e forma de funcionamento. Tomar a extensão do direito de voto aos mais pobres como o principal indicador, quando não o único, de democratização acaba por deixar em segundo plano as transformações radicais, verdadeiras rupturas, que marcaram o nascimento da moderna democracia. Dito de forma diversa: não se deve assumir que o único e o mais importante desafio institucional enfrentado pelo governo representativo em sua evolução tenha sido a extensão do sufrágio aos mais pobres. Não se pode assumir que os pais fundadores do governo representativo tenham sido capazes de antecipar todas as vicissitudes práticas com que o modelo que criaram viria a se defrontar. Na realidade, a incompletude do modelo não tardou a se manifestar. Como argumentou Hofstadter (1969), o modelo criado não tinha lugar para a constituição de uma oposição legítima ao governo. Não tinha lugar no sentido em que não era possível acomodar uma oposição legítima aos princípios do governo 114
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representativo identificados por Bernard Manin. Como afirma Hofstadter (1969, p. 8, tradução nossa): A ideia de uma legítima-oposição reconhecida, organizada e livre o suficiente em suas atividades para ser capaz de retirar do poder o governo em exercício, por meios pacíficos, é uma ideia imensamente sofisticada, e esta não era uma ideia que os Pais Fundadadores encontraram totalmente desenvolvida e pronta para ser aplicada quando eles começaram sua experiência com o constitucionalismo republicano em 1788.14
O reconhecimento de uma oposição legítima não se resume e, portanto, não deve ser confundido como o reconhecimento da liberdade da opinião pública identificada no modelo de Manin. Como observa Hofstadter (1969), a liberdade para a crítica política se encontrava firmemente estabelecida na experiência política inglesa e norte-americana, mas o que era chamado pelos ingleses de uma oposição formada – isto é, um grupo de oposição organizado e permanente, distinto de um indivíduo expressando a sua opinião dentro ou fora do parlamento – ainda ficava aquém da respeitabilidade, e na opinião de muitos recebia a mácula da deslealdade, subversão ou traição (HOFSTADTER, 1969, p. ix, tradução nossa).
Não é a liberdade individual que está em jogo. É algo mais complexo, como nota Hofstadter, mais sofisticado, que está em jogo. Vale observar que o autor está se referindo a uma oposição legítima, constitucional e responsável que pretende chegar ao poder por meios eleitorais. Por isto mesmo, a solução para esta dificuldade não se dá no campo dos valores ou ideais. Não se trata simplesmente de a oposição aderir à Constituição, aceitar as regras do jogo e visar chegar ao poder por meios eleitorais. Não é fácil assimilar uma oposição deste tipo. A história norte-americana, analisada por Hofstadter, prova-se crucial para o argumento, uma vez que a dificuldade desta aceitação se manifesta no interior da elite responsável pela elaboração e aprovação da Constituição. Ao longo do governo de John Adams (1796-1800), James Madison e Alexander Hamilton, que anos antes haviam colaborado na elaboração dos Federalists Papers, acabam em partidos opostos, o Republicano e o Federalista respectivamente. Enquanto Madison está entre os que acusam os federalistas de traidores da causa republicana, de defensores de um governo aristocrático alinhado com os interesses monarSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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quistas da Inglaterra, Hamilton está entre os que acreditam que os republicanos não passariam de democratas extremados, verdadeiros jacobinos que, por isto mesmo, defendiam a França e a Revolução Francesa. Ou seja, cada um dos partidos nega legitimidade a outro, caracterizando-os como inimigos da ordem política vigente, verdadeiros traidores da pátria, representantes dos interesses estrangeiros. Tanto Madison quanto Hamilton, como deixaram claro nas páginas em que defenderam conjuntamente a ratificação da Constituição que haviam ajudado a elaborar, execravam os partidos políticos, mas isto não os impediu de participarem ativamente na criação de partidos políticos. O mais interessante no caso dos dois é que tenham liderado partidos diferentes. Jefferson, mesmo tendo afirmado em carta a Thomas Hopinkson que não iria aos céus se o preço a pagar fosse entrar em um partido,15 não hesitou em fundar um partido para entrar na Casa Branca. Como mostra Hofstadter (1969), a adaptação das ideias à realidade não foi fácil e tomou tempo. Como indica o mesmo autor, na realidade, esta aceitação nunca foi completa, justamente porque ela envolve um conflito com o princípio segundo o qual o critério para o exercício do poder é a qualificação do candidato e não sua fidelidade e pertencimento a um grupo político qualquer. Há, portanto, um conflito entre o princípio da distinção e o partidário. A aceitação da oposição responsável passa por uma questão prática e imediata, a saber, o tratamento dispensado pelo governo à oposição. Se os detentores do governo foram legitimamente eleitos, então como justificar a contestação de seus atos? Uma vez mais, cabe citar Hofstadter (1969, p. 87, tradução nossa): Aqueles que estão no poder tendem a pensar em si próprios não como membros de um partido que tomou o controle do governo, mas sim como o governo em si mesmo. Assim, a oposição é identificada como uma facção inteiramente destrutiva, como o antigoverno. Suas críticas das políticas adotadas são tomadas como críticas ao governo. Sua crítica a um governo particular é tomada como a crítica a todo e qualquer governo. É assim identificada a anarquia, subversão e deslealdade.
A oposição ao governo em exercício é naturalmente confundida com a oposição ao governo em si mesmo. A tendência a negar legitimidade aos partidos tem duas mãos. O governo tende a ver a oposição como 116
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subversiva tanto quanto a oposição questiona a integridade dos governantes. Os governantes, contudo, contam com uma vantagem evidente, uma vez que justamente por ser governo, controlam o aparato de repressão e podem definir os limites da ação da oposição. Os federalistas, por exemplo, aprovam em 1798, o Alien and Sediction Act, com base no qual restringem a ação legal da oposição. O seu objetivo era claro: perseguir e eliminar a oposição. Falharam, mas os seus sucessores, os republicanos, não. A ascensão de Jefferson ao poder em 1800 leva ao desaparecimento dos federalistas da cena política e a um longo período de governo unipartidário. Os princípios do governo representativo não preveem a emergência de eleições competitivas. Não deveriam ser e, em geral, não eram. Eleitores deveriam reconhecer os seus superiores. Campanhas e, mesmo, candidaturas prévias eram vistas como ilegítimas, quando não proibidas por medidas legais. Pedir votos seria dar prova de que o pretendente ao cargo não teria suas qualidades naturalmente reconhecidas pelos eleitores. Além disto, se candidatar, aspirar a um cargo público era dar mostras de ambição, de desejo de governar. Exercer um cargo público era visto como um encargo, um ônus que comportava colocar o interesse público acima do privado. Virtude era a característica exigida para o exercício do poder. Como afirma Hofstadter (1969, p. 47), referindo-se especificamente a Virgínia no período anterior à independência, “a sociedade colonial era uma sociedade estruturada com base na deferência (a deferential society) e assim também era com sua vida política”. A implicação para as eleições é que “no século XVIII, virginianos não eram eleitos em razão do grupo ao qual eram associados ou pelo que se propunham a fazer a respeito desta ou daquela questão, mas sim porque eles eram quem eram” (HOFSTADTER, 1969, p. 64). A deferência dos subordinados para com os socialmente superiores era a relação crucial sobre a qual se assentavam as expectativas sobre como as eleições deveriam funcionar. Nestes termos, é impossível dissociar o voto da submissão socialmente construída. Era justamente isto que se esperava do eleitor, que consentisse ser governado pelos seus superiores, que reconhecesse que o papel de governar cabia aos que se destacavam socialmente. O critério que eleitores deveriam usar ao votar não deveria ser político, mas sim social. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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Competição eleitoral e partidos políticos não eram partes do modelo original. Mas, como todo cientista politico sabe, tenha ou não lido Schattschneider, a democracia foi criada pelos partidos e é impensável sem eles. A referência aos dois eixos da democratização identificados por Dahl é imediata. A presença de partidos que competem pelo poder, que buscam votos para chegar ao poder, está diretamente associada ao eixo da contestação. O fato é que a movimentação neste eixo tende a ser menos estudada e analisada do que a ampliação da participação. O processo de democratização acaba por ser identificado à ampliação da participação. Ainda assim, competição eleitoral é o elemento crucial em qualquer definição de democracia contemporânea. Democratização, portanto, não se resume a extensão do sufrágio. A dificuldade maior decorre da necessidade de encontrar uma fórmula institucional que regule a competição entre os partidos por votos. Trata-se de um desdobramento não previsto pela teoria. Uma dificuldade que se manifestou com a mesma força e intensidade nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Brasil, México e assim por diante. O fato é que os pais fundadores do governo tinham expectativas irrealistas sobre o funcionamento das eleições. Mas este irrealismo não diz respeito às expectativas quanto às relações entre superiores e subordinados. Como o caso norte-americano deixa claro, o problema se manifesta nas relações internas à elite. O conflito entre republicanos e federalistas se dá no interior da elite e não tem implicações diretas para a definição da cidadania política. Os líderes de ambos os grupos eram igualmente membros das elites. O que não estava previsto não era que os membros das elites não pudessem ter divergências entre si. O que não estava no mapa era que levassem suas divergências aos eleitores, que se organizassem para vencer eleições. Partidos eleitoralmente constituídos não poderiam existir. A informalidade que cercava o processo eleitoral garantia que a influên cia e o controle social exercidos pelos mais favorecidos se fizessem presentes na assembleia eleitoral. O processo eleitoral deveria funcionar como um momento em que os eleitores expressavam sua aquiescência para com os representantes, momentos de reafirmação da hierarquia social, momentos para expressão pública do consentimento da diferença. Por isto mesmo, como argumenta John Stuart Mill em Considerações sobre 118
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o governo representativo, cuja primeira edição é de 1861, não poderia ser secreto. Quando eleições funcionam de forma adequada, os mais capazes são eleitos. Contudo, a quem cabe o papel de julgar se as escolhas feitas foram corretas, se de fato os mais qualificados para o exercício do poder foram os escolhidos? Como vimos anteriormente, os republicanos, liderados por Tomas Jefferson e James Madison, acreditavam piamente que os federalistas não deveriam merecer a confiança do povo. Foram eleitos, foram distinguidos com a aprovação popular, mas não deveriam ter sido. Mas como explicar que as eleições tenham levado a escolhas equivocadas? Se o poder é conferido a homens destituídos da qualificação necessária, então o processo eleitoral necessariamente deve ter sido corrompido em algum ponto. Ou bem houve fraude (alteração dos resultados) ou bem o povo que participou do processo eleitoral não tinha as qualificações necessárias e, desta forma, pode ser corrompido por políticos inescrupulosos. Assim, o conflito entre as elites acaba por desaguar no debate acerca dos critérios para atribuir o direito do voto. Eleitores passíveis de ser objeto de corrupção devem ter seu direito de voto negado. As elites políticas, quando divididas, só têm uma forma de explicar o apoio eleitoral obtido por seus adversários: a corrupção, a influência ilegítima exercida por seus oponentes para granjear a simpatia e confiança popular. O conflito intraelite, portanto, remete necessariamente ao debate sobre os critérios empregados para definir o direito ao sufrágio. O eleitorado verdadeiramente qualificado seria aquele dotado da capacidade de distinguir entre os membros da elite econômica aqueles que são os verdadeiramente virtuosos. O eleitor que falha ao fazer esta distinção, que pauta suas escolhas por critério diverso, deve ter negado o direito ao sufrágio. O equívoco da sua escolha é prova da sua incapacidade. Neste modelo, vale insistir no ponto explorando suas consequências sobre outro ângulo, não há lugar para partidos que visem influir nas decisões dos eleitores. Fazer campanhas e procurar arregimentar eleitores contraria as normas que estruturam as relações representados-representantes. A superioridade que destaca o governante potencial tem que ser percebida naturalmente pelo eleitor. A relação esperada e legítima é a da deferência. Aquele que pede votos, que organiza eleitores para Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 95-125 | jan.-abr. 2015
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apoiá-lo, implicitamente, reconhece a insuficiência das suas qualificações, recorrendo à construção de um elo artificial entre representantes e representados. Fazer campanha, organizar um partido, é dar prova da motivação facciosa da empreitada, com toda a carga pejorativa que o termo carrega consigo. Obviamente, republicanos e federalistas acreditavam que contavam com os votos do eleitor capacitado e seus adversários, com o dos despreparados. A corrupção dos eleitores sempre é a arma a que recorrem os adversários, os ambiciosos, os que se movem pelos interesses parciais. Cada uma das partes acredita estar do lado certo, que seu grupo reúne os homens virtuosos, cujo apoio deriva da confiança e deferência entre as camadas inferiores. Ainda que a comparação não seja usual, o fato é que a natureza do conflito entre federalistas e republicanos é a mesma que se verifica entre conservadores e liberais nos primeiros anos do reinado de dom Pedro II após a derrubada do Gabinete da Maioridade pela intervenção do Poder Moderador. Os conservadores justificam a dissolução da Câmara eleita em 1840 como uma medida necessária para deter o “embate das facções”, antes que estas tenham produzido “irreparáveis estragos” ao sistema monárquico constitucional representativo, do qual seriam os defensores legítimos. A dissolução se impõe como uma defesa da ordem constitucional, porque A atual Câmara dos Deputados, Senhor, não tem a força moral indispensável para acreditar e fortalecer entre nós, o sistema representativo. Não pode representar a opinião do País porque a expressão da vontade nacional e das necessidades públicas somente pode produzir a liberdade dos votos (JAVARI, 1989, p. 84).
Os liberais, de sua parte, em Representação enviada ao imperador pela Câmara Provincial de São Paulo, acusam o Gabinete no poder de “traidor”, que seus atos estariam pondo em risco a “paz do Império, a ordem e a tranquilidade da Província e até a segurança do Trono”. Os liberais sustentam que a Lei da Reforma do Código e a criação do Conselho de Estado seriam obras de uma Legislatura irregular, composta por uma “maioria vendida” e, por isto mesmo, em desacordo com a verdadeira “vontade nacional” (MARINHO, 1843, p. 307).
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Como se vê, cada um dos partidos acusava o outro de deslealdade e desrespeito à Constituição. Conservadores e liberais acreditam que representam a vontade nacional, que seriam os vencedores em uma eleição livre. Segue desta premissa que se derrotados, tal fato só pode ser explicado pelos expedientes escusos a que recorreram os vencedores. Os adversários são facciosos e, por isto, prontos a recorrer à corrupção para chegar ao poder. Ironicamente, no interior dos princípios do governo representativo, as influências que emergem de relações políticas, ditada pela disputa do poder, são vistas como ilegítimas. Os homens de partido se movem pela ambição, pelo desejo de exercer o poder e dele tirar vantagens para si e para seus seguidores. A influência legítima é aquela que é construída no campo social, anterior portanto à política. Como sustenta Bernard Manin (1997, p. 203): Eleições aparecem como reflexos e expressão de interações não-políticas. [...] Estes [os vínculos e interações] não são gerados pela competição política. Antes o contrário, estes laços constituem recursos preexistentes que políticos mobilizam em sua luta pelo poder. Representantes, obtiveram proeminência em suas comunidades em virtude de seu caráter, riqueza, ou ocupação. Eleições selecionam um tipo particular de elite: os notáveis. Governo representativo começou como o governo dos notáveis.
Considerações finais A análise da história política brasileira tende a ser reconstituída a partir do contraste com a história da Inglaterra, França e Estados Unidos. Em geral, o foco explicativo recai sobre as travas que impediram que o desenvolvimento das instituições democráticas seguisse o rumo tomado naqueles países. Trata-se de uma explicação calcada sobre o signo da ausência, incompletude, divergência ou anomalia. Em Nunes Leal, o contraste toma a forma da contraposição entre a forma corrompida e a íntegra do governo representativo. Nas explicações calcadas no modelo da expansão da cidadania, a ênfase recai sobre a resistência das elites brasileiras em aceitar ideário da igualdade fundamental entre os homens. Em ambos os casos, o modelo explicativo se baseia no contraste entre o real e o idealizado. As referências históricas aos casos de implantação
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plena da democracia são escassas e esquemáticas. Na realidade, o modelo das trajetórias divergentes se equivoca quanto ao ponto de partida da experiência política moderna. O ponto de partida é o governo representativo e a desigualdade politica que eleições supõem. Sua evolução, portanto, não pode ser traçada e apreendida pela extensão do sufrágio. A emergência dos partidos e das eleições competitivas marca o advento da democracia. O caminho não estava traçado de antemão e não foi simples e automático em nenhum lugar.
Notas 1 Este trabalho foi parcialmente financiado com recursos da Fapesp e do CNPq. 2 Para uma análise dos debates com ênfase no elitismo do liberalismo
brasileiro, ver Kinzo (1980). 3 Para uma revisão completa da evolução da legislação eleitoral brasileira,
consultar Nicolau (2012). Para um questionamento da interpretação tradicional sobre a Lei Saraiva, ver Buescu (1981). 4 Ver Carvalho (2003), para uma generalização do argumento. 5 A falta de linearidade da expansão do direito ao voto nos Estados Unidos,
marcada por movimentos cíclicos de expansão e retração, é enfatizada por Keyssar (2000). O caso francês e suas inúmeras idas e vindas é o objeto de estudo de Rosanvallon (1999). Para uma revisão das interpretações sobre a expansão do sufrágio na Inglaterra, consultar Conacher (1971). 6 Os países citados como pertencendo ao Noroeste são os mesmos que
trilharam a rota clássica de Barrington Moore Jr. 7 Manin apresenta uma caracterização mais complexa. São quatro os traços
distintivos do governo representativo: seleção dos governantes por eleições dentro de intervalos regulares; independência relativa dos governantes diante dos eleitores; liberdade da opinião pública e o caráter público das decisões.
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8 Na Inglaterra, as normas e efeitos práticos contribuíam decisivamente para
assegurar a distinção. Do ponto de vista prático pesavam os custos eleitorais que ficavam a cargo dos candidatos. 9 Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 13) chama atenção para a
ambiguidade que marca a análise dos governos oligárquicos, vistos ora como antidemocráticos ora como protodemocráticos. 10 Cabe observar: o termo democratização implica a suposição de um processo
evolutivo em que os sistemas políticos se tornam mais democráticos com o tempo. 11 A distinção países desenvolvidos/subdesenvolvidos caiu em desuso em
função de suas conotações evolucionistas. O tratamento em separado como duas realidades diversas persiste, dando lugar a verdadeiros malabarismos tipológicos para distinguir as trajetórias díspares. A América Latina pode ser mais facilmente delimitada, por critérios históricos e geográficos, que o grupo contrastante. Para não incorrer neste tipo de erro, optei por elencar os casos. Não é fácil encontrar um critério que coloque Inglaterra, França e Estados Unidos em um mesmo grupo. 12 Ter o direito ao voto não implica ter as mesmas chances de exercer o poder.
Esta a desigualdade fundamental implicada pela adoção do método eleitoral. A indistinção que caracterizaria a democracia, a igualdade entre súditos e soberanos não é obtida. Por isto mesmo, o sorteio é o método de seleção de líderes associada à democracia. 13 Rivera (2000) nota que a reconstituição da história político-institucional da
região, invariavelmente, atribui à realidade social inóspita todas as dificuldades e tropeços do governo representativo. O modelo institucional, assim, é absolvido, como se seus criadores tivessem formulado as respostas para todas as vicissitudes que enfrentaria. O modelo estaria pronto para ser aplicado. Se falha, a culpa é do usuário. O corolário desta visão é a ideia da transplantação. O modelo teria sido concebido tendo em vista uma realidade social diversa, mais igualitária, na qual, quando implantado, teria funcionado sem maiores problemas. 14 A tradução de todas as citações do trabalho de Hofstadter são minhas. 15 A passagem é a seguinte: “I never submitted the whole system of my
opinions to the creed of any party of men whatever, in religion, in philosophy, in politics, or in anything else, where I was capable of thinking for myself. Such an addiction is the last degradation of a free and moral agent. If I could not go to heaven but with a party, I would not go there at all.” Thomas Jefferson to Francis Hopkinson, in Writings of Thomas Jefferson, Memorial Editon, Lipscomb and Bergh Editors, Washington DC, Vol. 7 pag 300.
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Ana Lúcia Kassouf
Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro Rosana Magalhães
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Rosana Magalhães Rosana Magalhães é nutricionista (UFRJ), doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz). Foi chefe do Departamento de Ciências Sociais da ENSP, coordenadora da área de Saúde e Sociedade do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP e atualmente desenvolve pesquisas e estudos sobre os temas da Pobreza, Desigualdades Sociais e Políticas Públicas de Saúde. Publicou o livro Fome – uma releitura de Josué de Castro (editora Fiocruz, 1997). Escreveu, dentre outros artigos, Implementação de Programas Multiestratégicos: Uma Proposta de Matriz Avaliativa e Avaliação de Políticas e Iniciativas de Segurança Alimentar e Nutricional: Dilemas e Perspectivas Metodológicas, ambos os estudos publicados na revista Ciência e Saúde Coletiva, da Abrasco.
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Resumo Este artigo faz um convite à leitura de Josué de Castro, médico, sociólogo e geógrafo cuja obra contribuiu de maneira inegável para a renovação do pensamento social brasileiro. O autor sistematizou um discurso sobre a fome buscando articular permanentemente as faces biológica e social de uma realidade dramática presente no país e em várias regiões do mundo. Seus textos expressam uma vigorosa crítica aos caminhos da nossa nacionalidade e ao alcance da ciência. O seu esforço para criar novas possibilidades interpretativas sem abdicar da busca de alternativas políticas para o enfrentamento da fome e da miséria segue como exemplo de compromisso público e abrangência intelectual. Palavras-chave: Fome. Pobreza. Desenvolvimento. Políticas públicas.
Abstract This article is an invitation to read Josué de Castro, a doctor, sociologist, and geographer, whose work undeniably contributed to renew the Brazilian social thought. The author systematized a speech on starvation seeking to integrate the biological and social sides of this dramatic reality in Brazil and other regions of the world. His writings express a strong criticism of our nationality paths and science impacts. His efforts to create new interpretive possibilities without giving up the search for political alternatives to cope with starvation and poverty remain as an example of public commitment and intellectual comprehensiveness. Keywords: Starvation. Poverty. Development. Public Policies.
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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro
Introdução O debate sobre as relações entre fome, pobreza e desenvolvimento não é novo. Ainda assim, é inegável a existência de controvérsias, ambiguidades e múltiplas referências tanto teóricas como metodológicas em torno do tema. Podemos dizer que um dos grandes desafios para avançar na compreensão integrada destes fenômenos e construção de instrumentos de análise que possam ser compartilhados de uma maneira consistente foi e ainda é romper com fronteiras disciplinares muito rígidas. Sem dúvida, a tarefa não é fácil. Apesar da dinâmica e historicidade da realidade social, o pensamento científico tem trilhado caminhos muitas vezes avessos à reflexividade interdisciplinar e abrangente. No que se refere à questão alimentar e nutricional, a desagregação do objeto de estudo é recorrente. De um lado, a chamada ciência da nutrição que surgiu no início do século XX e envolveu bioquímicos, médicos, nutricionistas e outros profissionais de saúde corroborou para a investigação sobre nutrientes, patologias e terapias nutricionais. De outro lado, economistas e planejadores privilegiaram a análise de dinâmicas organizacionais, processos produtivos e barreiras relativas à disponibilidade e ao acesso aos alimentos. Embora seja fundamental reconhecer a importância de cada uma destas correntes e manter a prudência em relação à unanimidade, há pouca convergência entre as abordagens e o diálogo com os diferentes especialistas segue frágil e pouco ambicioso. Segundo Lang e Heasman (2004), embora o mundo hoje esteja produzin do mais alimentos do que em qualquer outro momento da história, enfrentamos ainda inúmeros desafios para alcançar melhores condições de alimentação e nutrição: o envelhecimento da população, a introdução de novas tecnologias envolvendo alterações genéticas dos alimentos, o uso indiscriminado de agrotóxicos, o enfraquecimento das instituições e arenas reguladoras, a persistência da fome e o aumento dos problemas de saúde associados à alimentação cotidiana como a obesidade, o diabetes e a hipertensão arterial. Neste cenário desconcertante há poucos consensos sobre o que fazer. As fortes tensões entre grupos de interesse e divergências incontornáveis que atravessam o debate sobre a natureza das culturas alimentares e das instituições e agências públicas de segurança alimentar e nutricional têm produzido uma verdadeira “batalha de
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paradigmas”. É razoável supor que esta falta de articulação dificilmente irá contribuir para o alcance de mudanças efetivas. Sem dúvida, a reflexão sobre pobreza e desenvolvimento social também tem sido marcada por diferentes pontos de vista e antagonismos dificilmente equacionados ou condensados em objetivos comuns. Aliás, há um amplo e inconcluso debate sobre os conceitos de pobreza envolvendo desde Adam Smith, Karl Marx e Alexis de Tocqueville até brilhantes pesquisadores e estudiosos contemporâneos como Peter Townsend, Serge Paugam e Amartya Sen. No Brasil também é vasta a produção na área e neste percurso, os consensos também têm se mostrado provisórios. Na verdade trata-se de um terreno pantanoso. É preciso lembrar que a diminuição da pobreza associada à gestão governamental gera bons frutos políticos e eleitorais. Com isso, proposições e teorias explicativas podem ser consagradas ou obscurecidas muitas vezes ao sabor de objetivos políticos pontuais. Assim, a natureza multidimensional das situações de pobreza e miséria pode, por exemplo, dar lugar às interpretações bem menos abrangentes e centradas apenas no critério de renda monetária. Como lembra Loic Wacquant, sociólogo francês especialista nos temas da desigualdade e da pobreza, “a renda é uma variável que os analistas e os arquitetos das políticas públicas consideram mais amena: parece fácil de medir e manipular” (WACQUANT, 2008). De acordo com o autor, construir uma abordagem sobre pobreza baseada somente na renda monetária é criar castelos de areia. Isto porque a definição de uma renda mínima como fronteira entre pobres e não pobres tende a ser arbitrária e não incorpora aspectos cruciais como o acesso a bens e serviços, experiências de privação simbólica, os tipos de recursos disponíveis e sua efetiva utilização pelos indivíduos e famílias. Outro problema é que o uso do critério de renda tende a tornar homogêneas situações distintas e não considera a capacidade de cada indivíduo, família ou grupo social converter a renda em bem-estar (SEN, 1997). Com isso, nas áreas rurais onde ainda é possível a produção de alimentos para o próprio consumo, por exemplo, a pobreza pode estar superestimada, enquanto nas cidades onde a dependência das transações de mercado é maior, subestimada (ROCHA, 2003). De fato, estudos longitudinais conciliando dados quantitativos e qualitativos buscando reconhecer as interdependências entre baixa escolari-
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dade, desemprego, segregação urbana e isolamento social apontam para cenários bastante diferentes daqueles que são traçados a partir de abordagens limitadas aos parâmetros de renda. No caso brasileiro, é preciso lembrar que não temos uma linha monetária “oficial” e, frequentemente, são superpostos critérios fazendo com que a renda per capita mensal de até 25% do salário-mínimo utilizada para caracterizar a extrema pobreza em alguns estudos oficiais não seja a mesma para a seleção de beneficiários pobres e “extremamente pobres” no programa federal de transferência de renda Bolsa Família, por exemplo. Por fim, como o encontro de linhas monetárias de pobreza parte da compreensão não só da pobreza mas do que é justo e aceitável em cada sociedade, em muitos países admite-se como renda mínima um valor que é próximo da renda média nacional levando-se em conta o Produto Interno Bruto (PIB) per capita. Se aplicada esta perspectiva no Brasil, teríamos que aceitar como pobres uma população muito maior do que o contingente que tem sido demarcado pelas políticas públicas recentes. Ainda assim as inconsistências permaneceriam já que, dificilmente, seriam contempladas diferenças regionais, de gênero ou étnicas que têm fortes interfaces com o acesso à renda em um país tão complexo e desigual como o nosso. Na verdade em sociedades com sistemas de proteção social mais amplos e menos estigmatizantes, a renda tem deixado de ser a principal via de acesso a bens e serviços de qualidade e demais prerrogativas de cidadania. Nestes contextos é visto como intensamente problemático comparar níveis de pobreza entre os grupos sociais sem incorporar dados sobre o acesso às políticas de saneamento, habitação, saúde educação, participação social e demais direitos sociais. Nesse aspecto, as tradições teóricas que buscam associar a fome e a pobreza à história e à dinâmica dos laços comunitários (SIMMEL, 1998; DOUGLAS, 2003) têm o mérito de evitar clivagens arbitrárias e econométricas entre pobres e não pobres e, consequentemente, avançar na reflexão mais ampla sobre cidadania, justiça distributiva, solidariedade social e os múltiplos significados do desenvolvimento. Mas a especialização crescente, o ambiente intensamente competitivo e certo esvaziamento dos vínculos políticos e éticos entre a prática de pesquisa e a natureza complexa das demandas e necessidades da população contribuem para perpetuar a fragmentação e fortalecer antagonismos entre saberes e
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áreas de conhecimento. Além disso, distinções mecânicas entre o “natural” e o “social” dificultam a problematização de situações marcadas por interdependências e interações recíprocas entre aspectos econômicos, culturais, políticos e de saúde. Evidentemente, é preciso reconhecer e valorizar resistências e alternativas a tais enfoques e abordagens. Sob a influência da Antropologia, da Sociologia, da História e da Geografia vários autores preocupados em entender a natureza das práticas alimentares e das experiências de privação tanto material como simbólica colaboraram de maneira substantiva para a construção de estratégias interpretativas interdisciplinares. Sabemos, porém, que cada contexto histórico traz possibilidades e limites próprios para a reflexão conceitual e desenho de iniciativas concretas para lidar com problemas sociais. Há, nesta perspectiva, um “horizonte social” ou campo de debates e preocupações que balizam posições cognitivas, itinerários de pesquisa e a obra de cada autor. Ainda assim, é inescapável reconhecer o compromisso científico e a coerência intelectual nos textos que assumiram o desafio de interrogar o seu tempo e para, além disso, reivindicar mudanças sociais com base no estudo de práticas e experiências cotidianas de diferentes comunidades. Esse é o caso da obra de Josué de Castro, médico, sociólogo e geógrafo pernambucano cujo projeto de vida foi analisar as origens, contornos e repercussões da fome. Inúmeras instituições criadas no país e no mundo em torno da questão alimentar e nutricional entre as décadas de 1930 e 1970 revelam a influência intelectual do autor. Mesmo durante o período do exílio e sofrendo as ambivalências e contradições desta experiência, Josué de Castro permaneceu refletindo e produzindo análises contundentes sobre os desafios da fome e do desenvolvimento social.
Cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo Josué de Castro nasceu no Recife no dia 5 de setembro de 1908, filho de um agricultor sertanejo expulso pela seca de 1877. Em 1929, aos 21 anos concluiu o curso de Medicina na Universidade do Brasil no Rio de Janeiro e começou a clinicar em um consultório de endocrinologia no Recife. Ainda na faculdade, mostrou um forte interesse pela obra de Sigmund Freud e também pela literatura. Além de poemas e crônicas, em 1930 publicou um conto intitulado O ciclo do caranguejo, que se
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tornaria um testemunho da sua sensibilidade em relação ao drama da miséria nos mangues do Recife. Para Josué de Castro, ali nos mangues a lama, os caranguejos e os homens se fundiam em uma luta incessante pela sobrevivência. O ciclo do caranguejo revela um pouco do clima intelectual e político da época. Desde a década de 1920, as crises da economia agrário-exportadora e do Estado oligárquico alimentavam o desejo de mudanças sociais orientadas para a formação de um Estado nacional e de uma sociedade mais democrática. Se antes a intelectualidade brasileira só tinha olhos para a Europa, neste período cresce a crítica à imitação, ao chamado “macaqueamento” (SCHWARZ, 2005). A geração de artistas e intelectuais da época vai buscar olhar o Brasil abandonando as lentes estrangeiras. O movimento modernista expressou bem este contexto em que o mais importante passou a ser redescobrir um Brasil oculto, ambíguo e bem mais contraditório. Josué de Castro acompanhou este movimento de construção de uma identidade nacional. Por meio da literatura e do cinema, será pelo campo científico que ele irá buscar instrumentos, metodologias e enfoques conceituais para lidar com as grandes transformações e desafios do início do século XX no país, especialmente o desafio da fome. No que se refere ao tratamento dado à questão alimentar até os anos 1930, é preciso lembrar que já existiam intervenções e medidas orientadas para a construção de parâmetros para a boa alimentação. Oswaldo Cruz e Eduardo Magalhães, pioneiros da saúde pública no Brasil, integraram a alimentação às preocupações higienistas (BRAGA, 1978). No entanto, o abastecimento de alimentos e a fiscalização para evitar o consumo de produtos deteriorados eram, na época, os principais focos da agenda pública. Ainda não havia um discurso científico legitimado em torno da nutrição no país apesar das pesquisas e descobertas no campo da Bioquímica, dinamizado com a I Guerra Mundial, e, especialmente, focalizadas no valor calórico dos alimentos e na identificação de nutrientes capazes de prevenir patologias. Apesar dos avanços da Endocrinologia no final dos anos 1920, a área só ganhará fôlego no Brasil a partir da consolidação de um Estado Nacional capaz de propor e implementar políticas de saúde pública capazes de atender às necessidades dos trabalhadores e aos interesses da economia urbana e industrial.
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Assim, interagindo com o contexto político do governo de Getúlio Vargas e dialogando com os múltiplos olhares disciplinares da Bioquímica, Fisiologia, Antropologia, Sociologia e Economia o autor construiu uma abordagem interdisciplinar sobre a fome coletiva. Em O problema da alimentação no Brasil, publicado em 1933 e na pesquisa As Condições de Vida das Classes Operárias em Recife, divulgada no ano seguinte, Josué deixou evidente sua preocupação em desvendar as influências mútuas do clima, da cultura, da pobreza e da alimentação na saúde e na produtividade do brasileiro. Josué de Castro analisou as práticas alimentares de cerca de 500 famílias e concluiu que mais de 70% de sua renda mensal era comprometida com a compra de alimentos e, ainda assim, as necessidades nutricionais não eram atendidas tanto em termos quantitativos como qualitativos: O regime que analisamos, possuindo apenas 1.645 calorias, é um regime insuficiente, que somente chega a cobrir os gastos do metabolismo mínimo individual no nosso clima, sem margem para o gasto do trabalho. Sob o ponto de vista qualitativo também é um regime incompleto (CASTRO, 1937).
Apesar de compartilhar da perspectiva de valorização da identidade nacional, Josué de Castro irá se confrontar com a imagem romanceada do Brasil onde as possibilidades naturais eram imensas, o solo fértil e havia fartura de alimentos para todos. De certa forma, a polêmica com Gilberto Freyre após a publicação de O problema fisiológico da alimentação no Brasil, em 1932, está ligada a esta verdadeira obsessão do autor: construir uma visão crítica da situação alimentar no país e apontar caminhos para a superação da fome. Se para Gilberto Freyre o dono de engenho e o escravo eram bem alimentados, para Josué eram alarmantes as condições nutricionais na região tanto entre os pobres como entre os ricos. E esta descoberta da má nutrição atravessando os diferentes grupos sociais era desconcertante. Como dirá Antonio Candido nas décadas de 1930 e 1940, a palavra de ordem era apresentar o país como a “Terra Prometida” (CANDIDO, 2001). Para Josué de Castro, na verdade, havia uma verdadeira “conspiração de silêncio” e a fome no Brasil teria se tornado um tabu, um assunto ao mesmo tempo “delicado e perigoso”.
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A influência do pensamento geográfico de Paul Vidal de La Blache A influência da Geografia Humana, na sua vertente francesa e sob a inspiração de Vidal de La Blache, foi decisiva na obra de Josué de Castro. Embora tal vertente reiterasse a crença na neutralidade científica e compartilhasse algumas premissas do positivismo, também incorporava uma crítica importante ao determinismo e às interpretações a-históricas sobre a relação entre o homem, a cultura e o meio ambiente. Esta geografia muito mais interpretativa do que descritiva, e que valorizava ao mesmo tempo os obstáculos e as oportunidades de cada território em sua interação com os agrupamentos humanos, contribuiu para o desenho de um quadro de análise sobre a fome nas diferentes regiões do país. Em 1937, Josué de Castro assumiu a cátedra de Geografia Humana na Universidade do Distrito Federal, posteriormente Universidade Federal do Rio de Janeiro, consolidando a Geografia como uma ferramenta teórica e metodológica capaz de transcender as fronteiras disciplinares e favorecer um olhar qualificado sobre as interdependências e influências recíprocas entre natureza e cultura. Sem abdicar das demonstrações empíricas da fome crônica e das carências nutricionais em suas múltiplas formas, a obra caminhou desvendando o enraizamento social, cultural e político das populações que têm fome. Quem são os famintos, como vivem, como trabalham e, sobretudo, de que maneira fazem parte da história de sua região emergiram como eixos privilegiados da sua investigação. O livro Alimentação à luz da geografia humana, escrito em 1937, revelou a centra lidade da geografia no seu trabalho: Só a geografia que considera a terra como um todo e que ensina a saber ver os fenômenos que se passam na superfície, a observá-los, agrupá-los e classificá-los, tendo em vista a sua localização, extensão e causalidade, pode orientar o espírito humano na análise do vasto problema da alimentação, como fenômeno ligado, através de influências recíprocas à ação do homem, do solo, do clima, da vegetação e do horizonte de trabalho (CASTRO, 1937a, p. 26).
Nesta direção, como aponta Anthony Giddens ainda que, historicamente, sociólogos e geógrafos tenham trilhado caminhos diferentes ao longo da história, partilham origens comuns. Para Giddens “as configurações espaciais da vida social são matéria de tanta importância básica para a teoria social quanto a dimensão de temporalidade” (GIDDENS, 2003). Em
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1939, Josué de Castro é convidado para participar do governo de Getúlio Vargas e passa a dirigir o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps). Será no Saps que Josué de Castro propôs a obrigatoriedade da merenda escolar e participou da discussão sobre cestas alimentares básicas e a criação do salário-mínimo. Em 1946, a publicação do livro Geografia da fome consagrou sua abordagem apresentando descrições regionais aprofundadas marcadas pela análise do entrelaçamento entre o homem e a natureza ao longo da história. A procura pela identidade e vocação de cada comunidade foi aliada à arguta observação de singularidades e especificidades locais. Reforçando o enfoque interdisciplinar, Josué de Castro problematizou a visão da fome proposta por bioquímicos ou economistas sempre constrangidos pelo quadro de suas especializações. Para ele, o método geográfico teria o objetivo de superar estes limites e favorecer a reflexão em torno das correlações entre aspectos naturais e sociais. Podemos dizer que, menos a ideia de um circuito vicioso em que a fome gerava a baixa produtividade que por sua vez gerava mais fome, Josué de Castro estava preocupado com fluxos interdependentes. Deixando muito claro seu foco na fome coletiva, o autor contribuiu de maneira pioneira para a distinção entre a fome total, em geral presente nas regiões de miséria extrema e a fome parcial ou fome oculta: “A fome oculta faz morrer lentamente todos os dias de fome grupos inteiros da população apesar de comerem todos os dias” (CASTRO, 1946). Josué de Castro rompeu desta forma, com os estigmas da raça e do clima como obstáculos ao desenvolvimento do país, estereótipos que ainda eram muito fortes no início do século XX no país: “Não existem superioridades ou inferioridades raciais, o que existe são diferenciações biológicas condicionadas pelas condições locais. O que é superioridade nas regiões polares pode ser uma inferioridade nas regiões tropicais e viceversa” (CASTRO, 1946). Josué de Castro também se opôs fortemente a qualquer forma de controle demográfico para equacionar o problema da fome. Invertendo a relação de causalidade entre crescimento populacional e escassez de alimentos prevista por Malthus, Josué de Castro afirmava que a superpopulação não gerava a fome e sim era a fome, por meio de um mecanismo complexo de estímulo à fecundidade que gerava o aumento populacional. Esta tese foi intensamente criticada e mesmo refutada por vários estudos que
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demonstraram que o fenômeno do crescimento populacional era mais complexo e ligado às múltiplas causas para além da dimensão biológica No entanto podemos dizer que ainda é válida a concepção do autor sobre as relações entre desenvolvimento econômico e social e o equilíbrio demográfico assim como a crítica a Malthus por considerar o crescimento da população uma variável independente da realidade social.
As regiões de fome No livro Geografia da fome, publicado em 1946, Josué de Castro estudou com rigor as especificidades da alimentação entre as populações das diferentes regiões do país e delineou as chamadas “cinco áreas de fome”. Na Amazônia, por exemplo, a pobreza do solo, as práticas arcaicas na agricultura e a baixa densidade demográfica eram refletidas na alimentação composta basicamente de farinha de mandioca, feijão, peixe, ovos de tartaruga e arroz. O abandono da região após o fim do ciclo da borracha, os altos índices de mortalidade e a migração para o Sul, segundo o autor, teriam contribuído para um quadro de fome endêmica. O cenário onde prevalecia o déficit calórico só não era mais grave porque existia ali na região um complexo mecanismo de aclimatação, o qual acarretava a queda da taxa de metabolismo basal dos trabalhadores. Assim, a alimentação monótona e hipocalórica, que poderia ser mortal em um clima temperado ou frio, na Amazônia quente e úmida se tornava adequada à sobrevivência. Esta adaptação orgânica, na sua avaliação, poderia ser entendida como uma ressignificação mais acurada do que era comumente chamado de preguiça ou falta de disposição para o trabalho. Como mostrou Josué de Castro, a preguiça era, na verdade, uma manobra inteligente do corpo para enfrentar o contexto local. Todavia, se o corpo enfrentava as condições naturais com sabedoria, o Estado mostrava sua debilidade. Para Josué de Castro, a ausência de projetos de investimento e de alternativas para o aproveitamento dos recursos naturais na região revelava o total desinteresse pelo desenvolvimento local. Neste aspecto, sua análise sobre as razões do déficit proteico na região amazônica foi emblemática. A partir de sua pesquisa, foi possível perceber que a população local, apesar de contar com uma grande variedade de peixes nos rios, lagoas e igarapés, não podia consumir essas
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fontes privilegiadas de proteína de alto valor biológico porque não existia nenhuma organização da atividade pesqueira ou intervenção voltada à industrialização dos produtos da pesca capaz de garantir a comercialização do peixe seco ou de conservas durante todo o ano. Já no Nordeste, Josué de Castro evidenciou duas realidades distintas e contraditórias: as conformações sociais do sertão e da região açucareira com diferentes possibilidades alimentares e quadros de fome. Ao estudar a composição privilegiada da dieta no sertão, onde a economia agroexportadora ainda não havia dizimado a policultura, ele percebeu a presença do milho, do leite, da carne e também de vários tubérculos. No entanto, ao mesmo tempo o autor pôde perceber que este cenário positivo era ameaçado durante o período das secas. A dieta favorável era desse modo, totalmente desestruturada com a falta de chuvas configurando “verdadeiras epidemias de fome”. A sabedoria alimentar do sertanejo nordestino era assim corroída mais uma vez pela ineficiência da intervenção pública. No chamado Nordeste açucareiro, a ação dos colonizadores preocupados apenas com sua sustentação econômica baseada na monocultura da cana conduzia a região a um quadro de fome permanente ou endêmica. O lucro com a cana-de-açúcar, de acordo com Josué de Castro, exigia a exploração dos trabalhadores e o esgotamento do solo. Com isso, a dieta da população era inadequada e impactava fortemente o quadro de saúde local. De um lado, o consumo exagerado de alimentos ricos em açúcar e amido contribuía para a grande incidência de diabetes e obesidade. De outro lado, estavam presentes múltiplas doenças carenciais devido à falta de proteínas, vitaminas e sais minerais. Reconhecendo, porém, a complexidade da questão alimentar e as múltiplas influências históricas e culturais observáveis na região, Josué de Castro pôde iluminar os efeitos positivos das culturas indígena e negra amenizando tais problemas e possibilitando a criação de importantes alternativas à monotonia alimentar. Durante o período colonial, o cultivo de frutas e hortaliças era proibido entre os escravos, mas ainda assim, sobretudo nos quilombos, os negros buscavam manter plantações de banana, laranja e outras frutas. Com isso, hábitos alimentares mais saudáveis em contraponto à dieta restrita composta pela farinha de mandioca, feijão e toucinho puderam ser garantidos ao longo das décadas. A maior parte da população,
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porém, ainda sofria com a falta de ferro, vitaminas do complexo B e proteínas de alto valor biológico. Apenas os grupos que moravam à beira do litoral escapavam desta miséria alimentar incorporando nas preparações culinárias o coco, os peixes e o azeite de dendê. No Centro-Oeste, além do cultivo do milho e da couve, a produção do melado e a criação de gado contribuíam para uma alimentação mais equilibrada. De acordo com Josué de Castro apenas o bócio endêmico e, portanto, a carência de iodo denunciavam o desequilíbrio alimentar na região. Nas regiões Sudeste e Sul, a influência dos imigrantes europeus favoreceu a policultura com destaque para a produção de aveia, lentilhas, hortaliças, frutas e também o consumo de carnes. Com efeito, para Josué de Castro esta composição diversificada configurava uma situação alimentar e nutricional bastante favorável, como apenas zonas de subnutrição e raros casos de fome em geral presentes entre os trabalhadores menos especializados do contexto urbano. Para Josué de Castro, a pouca importância dada pelo Estado à agricultura, à questão da propriedade da terra e à industrialização em todas as regiões do país, porém, ampliava as intensas desigualdades sociais e criava profundos obstáculos para o desenvolvimento: “É impossível promover o desenvolvimento em um país em que 8% dos proprietários possuem 75% da terra” (CASTRO, 1967).
Fome e desenvolvimento Na décima edição do livro Geografia da fome, a qual considerava definitiva, Josué de Castro incluiu o subtítulo O Dilema Brasileiro: Pão ou Aço. No texto, o autor chamou a atenção para o privilegiamento de alguns setores industriais em detrimento da promoção do desenvolvimento agrícola de maneira integrada e atento às necessidades crescentes do mercado interno: Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboçar um retrato do Brasil que era então tipicamente subdesenvolvido, com suas características econômicas de tipo colonial, na exclusiva dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil, estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico porque fome e subdesenvolvimento é a mesma coisa. Mas o desnível entre a agricultura e a
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indústria agravou ainda mais a fome no país. Não foi nem casual nem politicamente desinteressada esta opção por uma política preocupada em desenvolver áreas já desenvolvidas e em enriquecer os grupos já enriquecidos (CASTRO, 1987).
A fome para Josué de Castro era a expressão biológica de um fenômeno econômico, mas também dos impactos sociais, culturais e políticos do colonialismo. A economia colonial baseada na exportação de matériaprima necessária para a expansão comercial e industrial dos países europeus e mais tarde dos Estados Unidos gerou um quadro de miséria e fome nos países latino-americanos e especialmente no Brasil. No entanto, apesar de rompido o pacto colonial, surgiam permanentemente novas desigualdades a partir da ação de grupos de interesse preocupados em manter privilégios. Segundo o autor, uma política orientada pelo lucro e não para o atendimento das necessidades do homem resultou na exploração da população e manutenção da miséria no país. Apesar de reconhecer que a má nutrição também afetava algumas partes da Europa como o sul da Itália, a Espanha e a Grécia, para Josué de Castro a fome endêmica nas primeiras décadas do século XX assolava a África, a Ásia e a América Latina de maneira contundente. Na sua análise, a produção agrícola voltada ao mercado externo em detrimento do mercado interno permitiu o enriquecimento de uma burguesia mercantil e a perpetuação de uma elite fundiária. Para romper com este arranjo ancorado em uma estrutura agrária arcaica era fundamental promover a diversificação da produção agrícola, o aumento da demanda interna e do poder aquisitivo do salário dos trabalhadores e a reforma agrária. A modernização da produção agrícola ocupou um lugar central na abordagem de Josué de Castro. Mas longe de focalizar apenas a introdução de novas tecnologias produtivas, o autor chamava a atenção para a necessidade de mudanças amplas na estrutura social do campo. A reforma agrária limitada apenas à redistribuição da terra seria inócua ou, segundo suas palavras, “uma falsa reforma”. Para resgatar a função social da terra era preciso um amplo movimento educacional, sanitário e assistencial capaz de reduzir as desigualdades e possibilitar ganhos efetivos nas condições de saúde e bem-estar de trabalhadores rurais. O autor se aproximou da corrente cepalina tanto no que se refere ao diagnóstico da situação brasileira como na proposição de alternativas e
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soluções políticas. A Cepal, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, criada em 1948 pela Organização das Nações Unidas, reunia grandes estudiosos em torno da questão do desenvolvimento. Josué de Castro compartilhava a visão de Raul Prebisch de que a divisão internacional do trabalho colocava a América Latina como periferia no sistema econômico mundial e consequentemente cristalizava seu papel de fornecedora de matéria-prima para os países centrais. Assim, o subdesenvolvimento não era entendido como a ausência ou insuficiência de desenvolvimento, mas sim um produto perverso e indissociável do próprio desenvolvimento. Josué de Castro tentou contornar algumas das principais críticas às teorias desenvolvimentistas da Cepal: a sua análise sobre as razões do atraso brasileiro não privilegiava apenas a dimensão econômica da exploração colonial (TARANTO, 1980). Fatores socioculturais, assimetrias de poder no campo e a trajetória institucional centralizadora e avessa à inovação foram questões que ganharam destaque e relevância na sua obra. A propriedade da terra no Brasil extremamente concentrada foi identificada como um obstáculo econômico e político para o alcance do desenvolvimento social. Josué de Castro analisou as especificidades dos países latino-americanos e do Brasil também no que se refere ao investimento em capital humano. Assim, para ele somente uma aliança com setores industriais modernizantes e a radicalização da democracia no plano político poderiam levar a cabo as reformas econômicas e sociais necessárias. Para Josué de Castro, se era importante consolidar um capitalismo nacional, moderno, industrializante capaz de transformar as relações entre centro e periferia e criar desta forma um mercado forte entre os países, também era crucial promover amplas mudanças institucionais e culturais. Com esta perspectiva ocupou posições de destaque em várias organizações internacionais como a presidência do Conselho Executivo da FAO, órgão das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação entre 1952 e 1956 e a Associação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam), organização não governamental voltada ao desenvolvimento de ações e políticas contra a fome.
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Impacto e desdobramentos: o contexto contemporâneo No Brasil, a consolidação da alimentação como direito constitucional e a aprovação de uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional revelam o amadurecimento do debate conceitual e o refinamento institucional sobre a questão da fome ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, o quadro nutricional tornou-se mais complexo e multifacetado. Os déficits calóricos em algumas regiões analisadas por Josué de Castro diminuíram, assim como a prevalência de algumas carências de vitaminas e sais minerais. O perfil alimentar e nutricional modificou-se de maneira significativa. O valor calórico médio da dieta cotidiana aumentou e o déficit proteico deixou de ser uma questão prioritária na maioria das regiões do país. O aumento do consumo de carnes, leite e ovos atenuou o problema e também reduziu a deficiência de cálcio e de vitaminas do complexo B. A iodação do sal praticamente eliminou o risco de bócio nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. Os déficits de altura para idade foram reduzidos. Dentre as razões para estas transformações podemos destacar a melhoria na assistência à saúde, avanços nos níveis de escolaridade, sobretudo das mães, diminuição do desemprego e ampliação de direitos sociais. Além disso, o panorama nutricional também foi impactado pelo acelerado processo de urbanização ocorrido no país. Se no período analisado por Josué de Castro cerca de 80% da população vivia nas zonas rurais, hoje a situação é inversa e a maioria da população está concentrada nas áreas metropolitanas. Com isso, apesar da existência de enormes desafios nutricionais no campo o quadro de miséria e fome tornou-se mais urbano e segmentado a partir de clivagens de gênero, etnia, escolaridade e inserção ocupacional, sobretudo nas periferias e favelas. Ou seja, apesar dos avanços em relação às décadas de 1940 e 1950, persistem barreiras sociais históricas que ainda impedem o acesso equitativo aos alimentos. A hipovitaminose A e a anemia por deficiência de ferro, sobretudo em crianças, permanecem sendo problemas graves em várias regiões do país assim como as doenças carenciais causadas por diarreias e infecções intestinais devido à falta de saneamento básico. E houve um aumento significativo dos casos de obesidade entre adultos e também em crianças e jovens. Doenças como diabetes e hipertensão arterial associadas a baixos níveis de atividade física e ao consumo elevado de
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açúcares, gorduras e sódio presentes em alimentos processados e de baixo custo têm crescido de maneira alarmante gerando o aumento das taxas de mortalidade e morbidade. Neste contexto, a fome, entendida nos termos de Josué de Castro, como problema coletivo, muitas vezes oculto e marcado por déficits qualitativos e não só quantitativos, é ainda um tema prioritário. Como sinalizou Josué de Castro no Brasil e na maioria dos países do mundo, a fome não pode ser explicada pela incapacidade de produzir alimentos. O que prevalece como principais vetores da má nutrição são, na verdade, as barreiras sociais e as múltiplas desigualdades no acesso aos alimentos de maneira adequada e ambientalmente sustentável. Não conseguimos universalizar a educação com qualidade e erradicar a indigência, entendida como a incapacidade de obter a renda necessária para garantir a cesta básica de alimentos e, portanto, a mera sobrevivência física dos indivíduos em patamares aceitáveis. Apesar das inegáveis mudanças positivas, o acesso aos serviços de saúde e ao saneamento de maneira universal e efetiva ainda é um grande desafio. A fome e a pobreza não são sinônimas na medida em que as pessoas que vivem em condições de pobreza extrema podem por meio de múltiplas estratégias de sobrevivência e, também, do acesso diferenciado à rede de serviços de saúde e saneamento, contornar a desnutrição e algumas carências nutricionais. No entanto, é clara a maior vulnerabilidade à fome dos indivíduos e famílias que vivem em contextos de privação material e acumulam desvantagens sociais. Ou seja, a experiência da fome ratifica uma estrutura social injusta. No que se refere à infraestrutura para lidar com problemas que afetam seriamente o acesso a alimentos em algumas regiões, podemos dizer que no caso das secas no Nordeste a situação ainda é dramática. Neste sentido, superar o desequilíbrio alimentar durante o período das secas ainda é um dilema no cenário social brasileiro: o sertão nordestino experimentou em 2013 a maior seca das últimas cinco décadas, atualizando o diagnóstico feito por Josué de Castro nos anos 1940. De fato, ao formular um conceito de desenvolvimento que não é puramente econômico, mas que remete aos aspectos substantivos do bem-estar dos indivíduos, a obra mantém uma proximidade inquestionável com o debate atual sobre segurança alimentar e nutricional. Esta atualidade da obra também pode
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ser percebida na agenda pública global em torno das formas de produção e consumo articuladas ao respeito ao meio ambiente e à promoção da saúde. Para Josué de Castro, a elasticidade do ambiente natural tinha limites – o que ele chamou de “limites de nocividade”. Além destes limites, o impacto do homem sobre a natureza mostrava-se extremamente perigoso. Dialogando com diferentes referências analíticas embora sob a motivação do olhar geográfico, Josué de Castro segue, assim, inspirando a reflexão interdisciplinar sobre padrões alimentares e de desenvolvimento social democráticos, sustentáveis e orientados pela equidade.
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Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro
Referências BRAGA, Jaime C. A questão da saúde no Brasil. 1978. Dissertação (Mestrado) Departamento de Economia e Planejamento Econômico, Universidade Federal de Campinas, Campinas, 1978. CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. 9. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2001. CASTRO, J. Alimentação brasileira à luz da geografia humana. Rio de Janeiro: Globo, 1937a. CASTRO, J. O ciclo do caranguejo. In: CASTRO, J. Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937b. p. 25-28. CASTRO, J. Condições de vida nas classes operárias do Recife. In: CASTRO, J. Documentário do Nordeste. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1937c. p. 75-91. CASTRO, J. Geografia da fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1946. CASTRO, J. Geografia da fome: o dilema brasileiro, pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares, 1987. CASTRO, J. Inquérito sobre as condições de alimentação popular no Distrito Federal. Rio de Janeiro: [s.n.], 1937d. CASTRO, J. O problema da alimentação no Brasil. [S.l.]: Ed. Nacional, 1933. CASTRO, J. O problema fisiológico da alimentação no Brasil. Recife: Impr. Industrial, 1932. DAHRENDORF, Ralph. O conflito social moderno. São Paulo: J. Zahar, 1992. DOUGLAS, Mary. Food in social order. Routledge: [s.n.], 2003. GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: M. Fontes, 2003. LANG, T.; HEASMAN, M. Food war: the global battle for mouths, minds and markets. London: Earthscan, 2004. LANG, T.; HEASMAN, M. The war of paradigms: time for a new framework? In: LANG, T.; HEASMAN, M. Food war: the global battle for mouths, minds and markets. London: Earthscan, 2004. p. 16. LAVINAS, L.; GARCIA, Eduardo Henrique. Programas sociais de combate à fome. Rio de Janeiro: UFRJ/Ipea, 2004. MAGALHÃES, Rosana. Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1997.
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ROCHA, Sonia. Pobreza: afinal do que se trata? Rio de Janeiro: FGV, 2003. SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 59-83. SEN, Amartya. Poverty and famines. New York: Oxford University Press, 1997. SIMMEL, Georg. Les pauvres. [Paris]: Presses Universitaires de France, 1998. TARANTO, G. Societá ed sottosviluppo nell´opera di Josué de Castro. Geneve: Cahiers Internationaux D´Histoire Economique et Sociale, 1982. p. 3-110. WACQUANT, Loic. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.
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NÚMEROS ANTERIORES Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015
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EDIÇÃO 22 DOSSIÊ Velhice, família, Estado e propostas políticas Myriam Moraes Lins de Barros (Organização)
Feminismo e velhice Guita Grin Debert
Entre o Estado, as famílias e o mercado Carlos Eugênio Soares de Lemos
Violências específicas aos idosos Alda Britto da Motta
ARTIGOS Vazios culturais versus alternativas da cultura e as estratégias da poesia de Cacaso Carlos Augusto Lima
Violência e maus-tratos contra as pessoas idosas Lucia Helena de Freitas Pinho França e Edson Alexandre da Silva
EDIÇÃO 23 DOSSIÊ Lazer Edmundo de Drummond Alves Junior (Organização)
Sobre o conceito de lazer Victor Andrade Melo
O profissional do lazer Hélder Ferreira Isayama
Lazer: um direito de todos Edmundo de Drummond Alves Junior Cleber Dias
ARTIGOS Por uma história da assistência medieval: o caso de Portugal Priscila Aquino Silva
A forma e as formas de “Alumbramento” André Vinícius Pessoa 150
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EDIÇÃO 24 O americanista tardio: as relações entre o Brasil e os Estados Unidos nos escritos de Joaquim Nabuco Angela Alonso 9
Anísio Teixeira: cultura e educação para a nova cidadania Carlos Guilherme Mota3
Pornografia e Shoah Jacques Fux53
Teoria do Estado Desenvolvimentista: uma revisão da literatura Marcus Ianoni
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As reflexões históricas de Sérgio Buarque de Holanda sobre agricultura (1936-1957) Robert Wegner
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EDIÇÃO 25 O Estado Novo e o debate sobre o populismo no Brasil Angela de Castro Gomes
Mundo desencantado e mundo desengajado Luis Carlos Fridman
Henrique Galvão entre os descompassos no império lusitano Rita Chaves
O marketing político no Brasil: da consolidação ao desafio das redes sociais Sérgio Ricardo Rodrigues Castilho
Exílio e linguagem: a escrita de Samuel Rawet Vera Lins
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EDIÇÃO 26 DOSSIÊ Sustentabilidade Marta de Azevedo Irving (Organização)
Sustentabilidade e O futuro que não queremos: polissemias, controvérsias e a construção de sociedades sustentáveis Marta de Azevedo Irving
Sustentabilidade e educação ambiental: controvérsias e caminhos do caso brasileiro Carlos Frederico B. Loureiro
“Sustentabilidade líquida”: o consumo da natureza e a dimensão do capitalismo rizomático nos platôs da sociedade de controle Fred Tavares
Sustentabilidade e justiça social Maryane Vieira Saisse
Comunicação e sustentabilidade: reflexões sobre o papel da mídia na construção de novas práticas de cidadania Elizabeth Oliveira
Caso tenha interesse em receber a revista
Sinais Sociais, entre em contato conosco: Assessoria de Comunicação do Departamento Nacional do Sesc publicacoes@sesc.com.br tel.: (21) 2136-5149 fax: (21) 2136-5470
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 127-147 | jan.-abr. 2015
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Política editorial A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão e o desenvolvimento da produção acadêmica e científica nas áreas das ciências humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a agenda pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac. A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está condicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à adequação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz respeito à qualidade das contribuições, garantido o duplo anonimato no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo por parte da Editoria são previamente acordadas com os autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição.
Normas editoriais e de apresentação de artigos O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail pelos(s) autor(es), que devem se responsabilizar pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve indicar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica. A mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em caso de mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos. Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação acadêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome completo, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no mesmo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor: nome, formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho, pesquisa, ensino e últimas publicações. Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail: sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD ao endereço a seguir: 154
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DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Gerência de Estudos e Pesquisas Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004 Rio de Janeiro/RJ O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 caracteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha. A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem: a) Título (e subtítulo se houver). b) Nome(s) do(s) autor(es). c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 10, não repetido no corpo do texto). d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto). e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 10). f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto). g) Corpo do texto. h) Nota(s) explicativa(s). i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em uma única ordem alfabética). j) Glossário (opcional). l) Apêndice(s) (opcional). m) Anexo(s) (opcional). Anexos, tabelas, gráficos, fotos e desenhos, com suas respectivas legendas, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível, deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF ou JPEG). Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes à apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apresentação de citações em documentos utilizando sistema autor-data (NBR 10520) e numeração progressiva das seções de um documento (NBR 6024).
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Referências (exemplos): Artigos de periódicos DEMO, Pedro. Aprendizagem por problematização. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 5, n. 15, p. 112-137, jan. 2011. DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 817-838, set. 2003.
Capítulos de livros CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.
Documentos eletrônicos IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores: 2002. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: < http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/ sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152582011000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2013. SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina. Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas. org.br/congresso/Trabalhos2011/I-002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.
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Livro HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1936.
Trabalho acadêmico VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais (1945/1964): um estudo da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.
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Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std e impressa em papel p贸len 90g, na Rona Editora Ltda.