ISSN 1809-9815 ano 4 | maio > agosto | 2009
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CIÊNCIA, SAÚDE E CINEMA: TERRITÓRIOS COMUNS SESC | Serviço Social do Comércio
Alexandre Palma
CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO SERINGUEIRO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 ELEMENTOS PARA PENSAR POLÍTICAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS
Cláudia Conceição Cunha
IMAGENS OBSESSIVAS EM AUGUSTO DOS ANJOS ano 3 | maio > agosto | 2009
www.sesc.com.br
Ivan Cavalcanti Proença
A LONGEVIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O MUNDO DO TRABALHO Lucia França
ESCOLAS DE SAMBA: CONFORMAÇÃO E RESISTÊNCIA Máslova Teixeira Valença
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v.4 nº10 maio > agosto | 2009 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional
iSSN 1809-9815 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.4 nº10 | p. 1-164 | MAio > AGoSTo 2009
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC Antonio Oliveira Santos DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO EDITORIAL Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Sebastião Henriques Chaves CONSELHO EDITORIAL Álvaro de Melo Salmito Luis Fernando de Mello Costa Mauricio Blanco Raimundo Vóssio Brígido Filho secretário executivo
Sebastião Henriques Chaves assessoria editorial
Andréa Reza EDIÇÃO Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral Christiane Caetano projeto gráfico
Vinicius Borges assistência editorial
Rosane Carneiro revisão
Elaine Bayma Sonia Oliveira Lima Sinais Sociais / Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional - vol.4, n.10 (maio/ agosto) - Rio de Janeiro, 2009 v. ; 29,5x20,7 cm. Quadrimestral ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO5 EDITORIAL7 SOBRE OS AUTORES8 CIÊNCIA, SAÚDE E CINEMA: TERRITÓRIOS COMUNS10 Alexandre Palma
CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO SERINGUEIRO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1970-198036 ELEMENTOS PARA PENSAR POLÍTICAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS Cláudia Conceição Cunha
IMAGENS OBSESSIVAS EM AUGUSTO DOS ANJOS70 Ivan Cavalcanti Proença
A longevidade e suas consequências para o mundo do trabalhO98 Lucia França
ESCOLAS DE SAMBA: CONFORMAÇÃO E RESISTÊNCIA122 Máslova Teixeira Valença
APRESENTAÇÃo A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar. Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.” Igualmente é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos. Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das idéias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo. O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país. Disseminar idéias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais. Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do SESC
EDiToRiAL Em seu livro Os dois Brasis, Jacques Lambert afirmava que o país se caracterizava pela coetaneidade dos não contemporâneos. Em outras palavras, declarava conviverem ao mesmo tempo o Brasil arcaico e o Brasil moderno. Nos dias de hoje, verifica-se que, apesar de todo o processo de modernização brasileiro, a frase mantém-se atual. Nota-se que o modelo fordista de produção, mesmo esgotado para responder às necessidades da economia, ainda se faz presente disciplinarizando o homem para ser dócil e útil. Já o capitalismo cognitivo emergente, resultante da revolução microeletrônica informacional, ainda não influencia suficientemente a sociedade para a gestação de sujeitos necessários às suas exigências. A sociedade disciplinar demandada pela produção fordista coexiste com a sociedade do conhecimento que o capitalismo cognitivo faz emergir em nossos tempos. Contribuir para o novo homem criativo, que tem a imaginação como instrumento de ação, capaz de pensar na contramão dos fatos, exige, fundamentalmente, um pensamento livre para criar, porém embasado em saberes principalmente científicos. O sujeito deste tempo já inaugurado deve conjugar especialização e generalização e ser impulsionado pela vontade do saber. A partir de tal perspectiva, e refletindo este tempo, a revista Sinais Sociais procura colaborar para este indivíduo, por intermédio de artigos que percorrem distintas dimensões da reflexão. A obra de Augusto dos Anjos, o trabalho educativo das escolas de samba, aspectos da configuração do movimento seringueiro na Amazônia nas décadas de 1970 e 1980, as consequências da longevidade para o mundo do trabalho, e a interseção entre cinema e saúde são temas dos textos aqui apresentados. A expectativa com esta edição é, mais uma vez, cooperar de forma crescente para a disseminação de saberes que permitam à sociedade do conhecimento não ser, em nossa terra, apenas uma figura de retórica. Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
SoBRE oS AUToRES Alexandre Palma Pós-doutorado em Psiquiatria e Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e Mestre em Educação Física pela Universidade Gama Filho (UGF). Licenciado em Educação Física pela Universidade Gama Filho (UGF), é docente da UFRJ. Cláudia Conceição Cunha Analista Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)/Acre, bióloga, mestre em Biologia – Botânica pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social no Programa Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Eicos/UFRJ) e membro do grupo de Pesquisa Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (Lieas), da Faculdade de Educação da UFRJ. Principais áreas de interesse e publicação: políticas públicas, unidades de conservação e educação ambiental. Contatos: cccunha@hotmail.com. Ivan Cavalcanti Proença Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Português/Literatura. Mestre e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em Literatura Brasileira. Autor de inúmeras obras de cultura brasileira em geral e de Literatura. Entre elas: A ideologia do cordel (4ª edição); Augusto dos Anjos, o poeta do Eu (12ª edição), Prêmio Especial Esso de Literatura; Futebol e palavra (2ª edição). Recentemente publicou, no âmbito sociopolítico, O golpe militar e civil de 64, em que relata o célebre episódio Caco, que protagonizou. Na área do governo do Estado do Rio de Janeiro, foi assessor pedagógico, diretor de Cultura e do Museu da Imagem do Som (ao longo das gestões de Leonel Brizola). Presidente de Conselhos de Cultura e da Comissão de Folclore do Rio de Janeiro. Eleito membro da Academia Carioca de Letras. Diretor da Oficina Literária que leva o seu nome (desde 1972) e titular de Cultura Brasileira na Faculdades Integradas Hélio Alonso.
Lucia França PhD em Psicologia Social pela Universidade de Auckland (Nova Zelândia), em 2004. Fez mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1989. É especialista em Gerontologia pelo Instituto Sedes Sapientiae/Sociedade Brasileira de Gerontologia e Geriatria (SBGG-SP), desde 1989. Foi assessora técnica do Departamento Nacional do SESC, entre 1979 a 1995, onde coordenou o Trabalho Social com Idosos. Atualmente é professora titular do Mestrado em Psicologia da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), onde coordena projetos e pesquisas, na área do envelhecimento, em especial sobre atitudes e educação para a aposentadoria e intergeracionalidade. É autora de diversos artigos, capítulos e livros, dentre eles destaca-se O desafio da aposentadoria, lançado pela Editora Rocco em 2008. Realiza há mais de 20 anos consultorias para organizações em Programas de Preparação para a Aposentadoria (PPA). Contatos: luciafranca@luciafranca.com. Máslova Teixeira Valença Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2005), licenciada em Educação Artística pelo Instituto Metodista Bennett (1990). Desde 1995 é assessora técnica do Departamento Nacional do SENAC, dedicada à formulação de estratégias educacionais para a formação de profissionais dos segmentos de Moda e Beleza. Já atuou como assessora parlamentar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e em programas de geração de rendimentos da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.
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O objetivo do artigo é, através de produções cinematográficas, refletir sobre temas presentes nos debates contemporâneos do conhecimento científico ou, mais especificamente, nas ciências da saúde. Neste sentido, as noções de risco, incerteza e interesses em jogo são trazidas à tona, tendo como pano de fundo filmes como A ilha, de Michael Bay; Minority Report, de Steven Spielberg; Efeito borboleta, de J. MaCkye Gruber & Eric Bress; e Gattaca, de Andrew Niccol. É possível dizer que essas noções parecem ser parte de uma estratégia de biopoder, da sociedade de controle, em que o pânico moral pode ser uma ferramenta essencial para o poder investido sobre a vida das pessoas.
The objective of the present study is, based on cinema productions, to reflect about some themes that are being discussed in scientific debates, specifically, health science. In this sense, notions of risk, uncertainty and interests are raised taking into account the analysis of the movies The Island, by Michael Bay; Minority Report, by Steven Spielberg; The Butterfly Effect, by J. MaCkye Gruber & Eric Bress; and Gattaca, by Andrew Niccol. It is possible to say that these notions seem to be part of a biopower strategy, society control, where moral panic may be an essential tool to the power invested on people’s lives.
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iNTRoDUÇÃo É de Platão (2000) o célebre Mito da Caverna que concorre para ilustrar o mundo próprio das ideias, o mundo real, do verdadeiro, do Logos. Neste mito, os homens estão aprisionados com correntes no fundo de uma caverna e a luz projeta em seu interior as sombras dos homens livres, dos animais, das árvores, além dos sons que ecoam caverna adentro. Os prisioneiros acreditavam, então, que estes sons fossem produzidos pelas sombras. Ao libertar um destes prisioneiros e trazê-lo para fora da morada subterrânea, poder-se-ia ocorrer, por parte deste, uma rejeição do mundo novo e mesmo provocar, naquilo que outrora via, algo de mais verdadeiro. Por certo, de início o sujeito necessitaria acostumar-se, perceber os objetos lentamente, suas luzes, seus sons. Ora, o que Platão parece enunciar é que “se o mundo das Ideias é um outro mundo diferente deste, mas igualmente real, então, pode-se apreendê-lo desde agora, com a condição de fazer os exercícios mentais necessários” (CHÂTELET, 1994, p. 37). Platão nomeia de doxa as diversas opiniões desenvolvidas no transcorrer do bom senso democrático. Contudo, procura demonstrar que essas opiniões estão ligadas a supostos fatos que são, em sua grande maioria, frutos das paixões, interesses e circunstâncias. Deste modo, cada um veria o real que melhor lhe conviesse e o denominaria “realidade”. Assim, ocorre uma distinção entre os mundos das ideias e o das aparências. O primeiro é transparente, sistemático, constituído de essências mantidas em relações claras umas com as outras. O mundo das aparências, por outro lado, é confuso; as diversas sequências que o constituem se sobrepõem, de tal modo que nunca se sabe onde se está (CHÂTELET, 1994). Mas, de todo modo, existem várias modalidades de conhecimento. Afora o conhecimento científico, dado como fidedigno, verificável ou refutável, objetivo e repetível, pode-se destacar outras formas de conhecimento: o senso comum, a religião, a filosofia e, também, as artes. Estas últimas, seja por meio da literatura, do cinema, do teatro, das artes plásticas, etc., expressam, sem dúvida, um saber diferenciado do cotidiano. Boaventura de Sousa Santos (1987) ensina que, na perspectiva da emergente ciência pós-moderna, nenhuma forma de conhecimento é
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de todo racional. Considera ele que somente a configuração de todos os conhecimentos seria racional. O autor estaria a querer dizer, então, que é possível e interessante proporcionar o diálogo entre as formas de conhecimento para que se aproxime do real. Santos (1987) ainda comenta que a criação científica, dentro desta perspectiva, aproxima-se da criação literária ou artística e podem, mesmo, ser uma a tradução da outra. Assim é que inúmeros médicos, longe da objetividade do discurso científico, apresentaram textos literários para expressar o sofrimento e/ou o adoecimento humano (CZERESNIA, 2003). Como relata Scliar (2001), ele próprio médico e escritor, vários são os exemplos de aproximação entre a medicina (ou a ciência) e a literatura (ou as artes). Como explica o autor (2001, p. 10), as grandes obras literárias, além de representarem um mergulho na condição humana, situam enfermidade e medicina em seu contexto histórico. (...) os escritores fazem epidemiologia sem saber: as suas prioridades em termos de doença coincidem com as prioridades da sociedade. Mesmo que essas prioridades não sejam claramente expressas. Porque a ficção fala sobre a face oculta da medicina e da doença.
De outro modo, Latour & Woolgar (1997), ao realizarem a etnografia de um laboratório que concorre ao Prêmio Nobel de Medicina, comentam que este espaço é um sistema de construção literária. Observam os autores que os pesquisadores exercem uma profissão a qual, por vezes, se assemelha ao de um escritor. Devem saber escrever, persuadir e discutir. Neste sentido, o objetivo do presente ensaio é, por meio de produções cinematográficas, refletir sobre temas presentes nos debates contemporâneos do conhecimento científico ou, mais especificamente, nas ciências da saúde. As noções de risco, incertezas do conhecimento e interesses em jogo são trazidas à tona, tendo como pano de fundo filmes como A ilha, de Michael Bay; Minority Report, de Steven Spielberg; Efeito borboleta, de J. Mackye Gruber & Eric Bress; e Gattaca, de Andrew Niccol. Além disto, buscar-se-á aproximar este debate às ideias contidas nas prescrições de comportamentos, principalmente de atividades físicas, como forma de prevenção de doenças.
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SiNoPSES DoS FiLMES ‘A iLHA’, DE MiCHAEL BAy Em futuro não muito distante, uma instituição empresarial cria e desenvolve clones financiados por milionários que podem pagar. Sempre que necessitam de algum transplante ou resolução para seus problemas de saúde os investidores podem recorrer aos “portadores de órgãos geneticamente idênticos” aos seus. Estes clones ou, mais adequadamente, estas novas vidas ficam confinadas em um espaço fechado e isolado do resto do mundo e são rigorosamente vigiadas. A alimentação, prática de exercícios, níveis de estresse, as relações pessoais, enfim, tudo é absoluta e asceticamente controlado para que o “produto” (como é tratada esta nova vida) não tenha defeitos. Para os habitantes (os clones) é dito que aquele é o espaço transitório para o único local seguro (não contaminado) do planeta, denominado A ilha. Todos irão, algum dia, para este novo local. Mas, de fato, a “viagem” significa a morte para ceder seus órgãos (a vida) para quem financiou o projeto biotecnológico, quando este precisou. Lincoln Six Echo (Ewan McGregor), um dos habitantes do complexo, contudo, descobre a farsa e decide escapar levando consigo Jordan Two Delta (Scarlett Johansson). E no mundo exterior descobrem o que realmente significavam suas vidas e as de seus companheiros. ‘MiNoRiTy REPoRT: A NoVA LEi’, DE STEVEN SPiELBERG O enredo se passa em Washington no ano 2054 e, neste espaço e tempo, os crimes foram banidos em decorrência da atuação da Divisão Pré-Crime, um setor da polícia que conta com três seres paranormais (precogs) que atuam conectados enquanto flutuam em um líquido. Somente assim os precogs, em conjunto, têm a visão que detecta o crime antes que ele ocorra. Os detalhes do crime, como os nomes da vítima e do criminoso e o horário do evento, são objetivamente mencionados. As imagens do crime, por outro lado, devem ser decodificadas por um grupo de especialistas para que possam descobrir onde será o crime. No sistema, considerado perfeito, o culpado, então, deve ser preso e punido antes que o crime possa ser cometido.
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O grande dilema ético apresentado é: pode alguém ser condenado por um crime que não aconteceu? Contudo, o chefe da equipe e grande entusiasta do programa é John Anderton (Tom Cruise), que acaba envolvido, ele próprio, com um assassinato e começa a perder a confiança na tecnologia. Assim, John Anderton inicia uma investigação para elucidar alguns problemas ocorridos com o sistema, enquanto foge dos policiais, que agora tentam capturá-lo. ‘EFEiTo BoRBoLETA’, DE J. MACkyE GRUBER & ERiC BRESS A trama deste filme perturbador se desenvolve a partir das reviravoltas pessoais de Evan (Ashton Kutcher) e seus “pensamentos”. Aquilo que aparece como um sério problema mental, que atormenta a vida de Evan, passa a ser por ele controlado a ponto de ele poder, ao fazer uso desta capacidade, voltar ao passado para alterá-lo e, consequentemente, corromper o futuro. A possibilidade de regressão física de seu próprio corpo permite que o personagem central do filme consiga distorcer o passado a seu modo. Entretanto, as alterações do futuro não são por ele controladas e, a cada regressão, um futuro incerto lhe espera. Desta forma, ao tentar solucionar problemas que se apresentaram ao longo da vida, Evan acaba por criar novos contratempos. ‘GATTACA: A ExPERiÊNCiA GENÉTiCA’, DE ANDREw NiCCoL Neste provocante filme de ficção científica, há uma sociedade no futuro na qual os casais, ao escolherem uma forma de inseminação artificial de elevado controle genético, podem “garantir” filhos mais bem desenvolvidos, aptos e saudáveis. Livre de doenças, física e intelectualmente mais capazes, este grupo de pessoas nascidas de uma seleção genética passa a ser denominado “válidos”. Em contrapartida, outra classe social, formada por pessoas não selecionadas geneticamente, emerge: os “inválidos”. Em virtude desta nova divisão social, aos “válidos” são oferecidos os melhores empregos e oportunidades, enquanto aos “inválidos” sobram os trabalhos desprezados.
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Vincent Freeman (Ethan Hawke) é um “inválido” que luta por seu sonho de ser astronauta e, a partir da falsificação de sua identidade e de uma série de outras fraudes, consegue burlar o sistema de vigilância implacável. Neste percurso, tudo parece caminhar para que Vincent conquiste seu sonho, mas um assassinato na Corporação Aeroespacial Gattaca faz com que este sonho possa ser comprometido por um investigador, seu próprio irmão “válido”, sedento por solucionar o caso. Vincent é, então, o grande suspeito, uma vez que não poderia estar entre os que possuem dotes superiores. RiSCoS, iNCERTEZAS E iNTERESSES O presente ensaio parte da perspectiva de que as artes e, em especial, a cinematografia produzem conhecimentos acerca de algumas questões e podem ser utilizadas para reflexão de vários problemas científicos e filosóficos. Em particular, o sci-phi, gênero que lida com indagações, contradições e problemas filosóficos por meio da ficção científica, permite confrontar os estranhamentos ficcionais com os entendimentos que temos de nós mesmos em nosso cotidiano ou ainda de questões advindas do conhecimento científico (ROWLANDS, 2005). A despeito de qualquer crítica positiva ou negativa a determinados filmes, Rowlands (2005) adverte que muitos dos chamados filmes ruins ou tratados como “não intelectuais” podem anexar temas filosóficos complexos. Nosso percurso tem como meta mais específica debater as noções de risco, incertezas do conhecimento e interesses em jogo. Entretanto, o pano de fundo frequentemente presente nas discussões diz respeito às formas de controle da vida que incorporam as populações. RiSCoS De um modo geral, a literatura científica tem considerado os vocábulos hazard (perigo) e risk (risco) para, respectivamente, expressar um risco, a partir da ação de um agente particular ou situação perigosa, e designar uma análise, normalmente quantitativa, tal como o estudo de probabilidades, da presença de algo que pode desencadear doenças e acidentes (SHORT Jr., 1992). Anthony Giddens (1991), ao tratar
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das sociedades contemporâneas, comenta que risco e perigo estão intimamente relacionados. O autor considera o “perigo” como uma ameaça aos resultados desejados, enquanto o “risco”, para ele, pressupõe o perigo, porém não necessariamente sua consciência. Alguém que se submete ao risco está, de fato, cortejando o perigo. Contudo, é possível assumir ações ou passar por situações nas quais os riscos estão presentes, tendo os indivíduos consciências (“risco calculado”) ou não de que estão se arriscando. Nesta perspectiva, o autor define, ainda, “confiança” como uma crença que um indivíduo deposita em outro ou em um sistema, em função de um determinado conjunto de resultados ou eventos. A “crença”, de outro modo, refere-se à expressão de fé na honestidade, amor ou conhecimento técnico de um outro. Por fim, “segurança” pode ser entendida como a situação pela qual um conjunto de situações perigosas encontra-se neutralizado ou minimizado. A percepção de segurança, segundo Giddens (1991), está baseada no equilíbrio entre confiança e risco aceitável. Esta percepção do risco como probabilidade é encarnada por grande parte dos cientistas da área de saúde. Para Olbekken (1995), comparações sobre a evolução no uso de determinados termos associados a “perigo” e “risco” e o crescimento da utilização da expressão “risco”, na literatura médica, não podem ser explicados apenas como mudança na terminologia. A hipótese do autor é de que esta alteração decorre da evolução da ciência e tecnologia, que modificou as crenças sobre o locus do controle dos fatores de risco. Assim, hegemonicamente, a literatura biomédica tem considerado que uma epidemia pode ser rastreada a partir do conhecimento da probabilidade estatística, especialmente com os recentes avanços na tecnologia informática. Por outro lado, o autor assinala sobre possíveis questionamentos advindos da construção epidemiológica do risco sobre a construção social do risco e das estratégias de enfrentamento destes riscos. Notícias sobre fatores de risco veiculadas na mídia como partícipes da construção de novas subjetividades foram estudadas por Vaz et al. (2007). A construção de subjetividade significa, segundo os autores, que as notícias permitiram aos indivíduos envolverem-se com o movimento, uma vez que explicam os modos de adoecer, ao mesmo tempo em que definem modos de enfrentamentos. Neste sentido, Vaz et al. (2007) lembram que uma questão central paira nos discursos
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midiáticos sobre o tema: para que o sofrimento não existisse, qual outra escolha teria que ser feita? A articulação entre escolhas passadas e o sofrimento presente participa da construção do futuro tido como justo, em que se considera que a catástrofe poderia ser evitada. Tornase fácil perceber que as narrativas são elaboradas a partir da determinação de responsabilidade, uma vez que o sofredor, seja da doença cardiovascular, do diabetes, da obesidade ou de qualquer outro sofrimento, tem sido considerado culpado por seu próprio comportamento inadequado. Assim, a morte que está por vir poderia ser adiada por meio de escolhas corretas, cientificamente fundadas. A concepção que envolve riscos e escolhas se organiza em torno de noções de crédito e dívida. Vaz et al. (2007) explicam que, para o saber científico biomédico, ao agir “corretamente” o indivíduo recebe um “crédito” na forma de esperança de não sofrer em sua vida no futuro (ou em outra vida, no caso do saber religioso). Em contrapartida, optar pela escolha de um estilo de vida “errado” implica um castigo, um pagamento de uma “dívida”, nesta ou em outra vida. Os autores lembram, porém, que esta compreensão não é nova e que várias culturas associaram a construção do futuro ao controle dos prazeres dos corpos. Considerando esta forma de abordagem, o risco se apresenta como algo que surge no presente com força para predizer o futuro e assim decidir sobre o que é (ou seria) desejável. Por outro lado, a construção do conceito de risco reduz as contradições imbricadas no cotidiano das pessoas, quando institui que seu gerenciamento só seria possível de modo racional (CASTIEL, 1999). iNCERTEZAS Atualmente, está cada vez mais difícil admitir a visão determinista da ciência clássica. O “demônio de Laplace”, que se acredita capaz de calcular os fenômenos a partir de algumas informações necessárias e de leis gerais, é, hoje, colocado à prova. Esta ciência, autodenominada objetiva, que busca isolar e reduzir seu objeto ou foco de estudo, omite que o conhecimento do objeto, seja ele físico, biológico ou sociológico, não pode estar dissociado de um sujeito que conhece, com raízes em uma cultura e uma história. É, pois, necessário combater a simplificação que oculta o ser e toda a sua complexidade.
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Uma “nova ciência”, então, se apresenta para desafiar as possibilidades de cálculo, para permitir um papel cada vez maior das incertezas, indeterminações, contradições e dos fenômenos aleatórios e com liberdade para inscrever todo conhecimento na contribuição do avanço da ciência. Sem dúvida, foi na física, mais precisamente na mecânica quântica, que estas discussões tomaram corpo. Ao poder explicar a luz por partículas descontínuas ou ondas luminosas caracterizam-se a ruptura do princípio do terceiro excluído e o surgimento do princípio da indeterminação. De uma maneira geral, Heisenberg (1999) mostra que nada obriga abandonar qualquer das interpretações. Este mesmo autor estende, com os devidos cuidados, esta compreensão às outras ciências e formas de conhecimento. Para ele, mesmo os conceitos do senso comum poderão ser bastante úteis. Ao ponderar sobre o problema epistemológico da complexidade, Edgar Morin (1983) comenta o quão incerta e frágil é a “aventura” de tentar compreender os fenômenos nos moldes clássicos. E avança tentando mostrar que o problema não está, necessariamente, em que cada um perca sua própria competência especializada, mas, antes, em que não desenvolva, suficientemente, a articulação com outras competências que, ligadas em cadeia, engendram o “anel epistêmico” do novo conhecimento. Assim, reduzir a sociedade humana ou suas organizações em sistemas simplificados poderia resultar numa compreensão irreal. Deste modo, torna-se importante integrar conceitos aparentemente paradoxais num processo de “destruição criativa”. Esta pluralidade de perspectivas, longe de ser um problema, torna-se essencial ao conhecimento. É com esta nova “ferramenta conceitual” que se pode produzir um entendimento filosófico denominado “ciência pós-normal”. O termo “pós-normal” é utilizado por Funtowicz et al. (1993) para caracterizar a superação do pensamento denominado “ciência normal”, elaborado por Thomas Kuhn (1997), em que a norma para a prática científica eficaz seria a resolução de quebra-cabeças dentro de um paradigma que ignora questões mais amplas. Funtowicz et al. (1993) explicaram que diferentes tipos de incertezas podem ser expressos e usados para a avaliação da qualidade da informação científica e propuseram um debate para análises de risco.
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Para Ravetz (1999), a necessidade de se utilizar a ciência pós-normal advém do fato de que atualmente os tipos de debates emergentes, tais como os problemas ambientais e as novas tecnologias, são tipicamente incertos, de interesses diversos e de urgentes decisões. Ravetz et al. (1999) destacam, ainda, uma questão bastante interessante: “Que importante área da ciência está imune aos problemas de incerteza e conflito de valores?” Para os autores, esta é a medida pela qual toda ciência tem se tornado “pós-normal”. A dinâmica de um sistema complexo perpassa pela compreensão de um sistema caótico, em que o enorme número de perturbações torna incertas as predições. Mesmo aquelas perturbações consideradas mínimas podem, a longo prazo, resultar em erros. Bergé et al. (1996) ao explicarem o modelo de Lorenz, conhecido como “efeito borboleta”, comentam que este professor de ciências da atmosfera percebeu que um minúsculo erro inicial em seus cálculos, em razão de um arredondamento, provocava um erro que crescia exponencialmente à medida que o cálculo prosseguia, até alcançar resultados completamente sem relação com os anteriores. Foi possível para Lorenz, então, descobrir o efeito considerável da sensibilidade às condições iniciais (SCI). O pesquisador, assim, formulou o modelo, em que considerou que “uma pequena perturbação, tão fraca quanto o bater de asas de uma borboleta, pode, um mês depois, ter um efeito considerável, como o desencadeamento de um ciclone, em razão de sua amplificação exponencial, que age sem cessar enquanto o tempo passa” (BERGÉ et al., 1996; p. 203 e LORENZ, 1996). Numa compreensão análoga, a sociedade comporta inúmeros aspectos em interação. Assim, para estudar a saúde pública e seus riscos não se deveria desconsiderar o contexto em que vive tal sociedade. Muitas vezes, uma perturbação considerada mínima pode ter efeitos devastadores. Pode-se exemplificar comentando sobre a dinâmica das bolsas de valores e os recentes abalos econômicos, que causaram instabilidade em todo o mundo. A competição pelo mercado mundial pode, também, gerar consideráveis níveis de desemprego num país e isto pode ter consequências sobre a saúde, como bem reconheceram Paim et al. (2000) e Waltner-Toews (2000). Enfim, a perturbação em um aspecto pode desencadear problemas ainda maiores em outros.
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Retomando a questão do risco na epidemiologia, é possível afirmar que um determinado saber induz a acreditar que o bem agir implicará o não sofrimento no futuro. Ou como Vaz et al. (2007) explicitaram: se nos impusermos sofrimentos no presente, poderemos não sofrer no futuro. Contudo, a falta de certeza nos deixa com dúvidas sobre a recompensa que teríamos direito. Sabemos que poderemos, a despeito de nossos sacrifícios, contrair doenças e, de modo pior, estarmos todos condenados à morte. Deste modo, pode ser que no futuro possamos nos arrepender de não termos aproveitado a vida em excesso. É preciso notar, ainda, que frequentemente se assiste a contradições nos resultados das pesquisas. Em um momento o consumo de ovos está associado ao aumento do colesterol, em outro já não responde por isto. A reposição hormonal ora é considerada importante às mulheres, ora está ligada ao câncer. Talvez o exemplo mais contundente seja o da talidomida. Esta droga foi lançada no mercado na Alemanha ao final da década de 1960. Era prescrita como sedativo e tinha poucos efeitos colaterais. A indústria farmacêutica tinha tamanha segurança e certeza na droga que o medicamento passou a ser prescrito para grávidas e acabou por acarretar vários casos de malformações congênitas. Vale (2000), ao discorrer sobre a ética da prescrição médica, critica de modo pontual a ideia de “medicina baseada em evidências”. Vale (2000) explica que a expressão transmite uma excessiva ideia de certeza e pode, desta forma, tornar-se prejudicial à investigação médica, uma vez que limitaria a capacidade de autocrítica e ao foro jurídico, em que o termo poderia sugerir a pretensa transformação da medicina em ciência exata. Ademais, a palavra evidence em inglês significa “prova” e é amplamente utilizada em tribunais para indicar as provas (ou evidências) do processo judicial. Em português, a palavra “evidência” está mais marcada pelo sentido de certeza, como uma qualidade ou caráter de evidente, como algo que não dá margem à dúvida. iNTERESSES Na atualidade, uma das principais inquietações no mundo científico diz respeito ao conflito de interesses. No rastro desta preocupação, vários textos têm sido publicados, e recentemente o International
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Journal of Epidemiology publicou um interessante e importante debate, em que Pearce (2008) reforçou o coro daqueles que se preocupam com a proximidade dos interesses corporativos com a pesquisa científica. Roy Moynihan, importante crítico deste tema, igualmente discute com propriedade alguns pontos relevantes em dois outros artigos (2003a, 2003b). De imediato, três aspectos devem ser destacados. O primeiro, amplamente debatido por Moynihan (2003a, 2003b), diz respeito ao estranho convívio entre a indústria farmacêutica e os médicos. O envolvimento dos profissionais de medicina com os representantes das indústrias cria embaraço na atuação dos primeiros. Sem dúvida, presentes, viagens, financiamento para congressos são espécies de suborno, e, considerando o fato de as empresas, obviamente, estarem motivadas pelo lucro e não exatamente por ações altruístas, é preciso ter cautela ao apreciar estas atitudes. No Brasil, esta questão também está sendo refletida. Fagundes et al. (2007), ao pesquisarem a influência da publicidade dos medicamentos conduzida à categoria médica, verificaram que 98% dos 50 médicos participantes da pesquisa recebem, com regularidade, a visita de representantes comerciais, sendo que 86% recebem brindes dos propagandistas da indústria farmacêutica e 14% informaram tomar decisões sobre a prescrição influenciados pelos prêmios recebidos. Em outra investigação, Barros et al. (2002) analisaram os anúncios de medicamentos em importantes revistas médicas brasileiras. Os autores observaram que pouco mais de 30% das 1.774 páginas das revistas destinavam-se às propagandas de medicamentos; poucos anúncios faziam referência às reações adversas ou contraindicações, bem como não cumpriam na íntegra os critérios propostos pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para as propagandas de medicamentos. Por fim, os autores ressaltaram que a atitude acrítica dos médicos diante das estratégias de mercado das indústrias farmacêuticas está associada à baixa qualidade da prescrição dos medicamentos. Um segundo aspecto ético relacionado aos textos de Pearce (2008) e de Moynihan (2003a, 2003b) refere-se ao conflito de interesses envolvendo a indústria farmacêutica como patrocinadora de pesquisas científicas. Cabe ressaltar que a pesquisa financiada com verba direta das empresas interessadas em seus resultados coloca em
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desconfiança suas conclusões e talvez seja, como advogou Pearce (2008), a maior ameaça à integridade das investigações científicas. É razoável sustentar que existe a possibilidade de se produzirem resultados favoráveis com desenhos metodológicos não adequados. Segundo Angell (2007), para justificar que uma droga é mais eficaz que outras, as investigações, rotineiramente, são conduzidas para encontrar os resultados favoráveis e, possivelmente, os estudos que não confirmam esta eficácia não são publicados. A estimativa de que 60% da pesquisa biomédica nos Estados Unidos recebem financiamento privado, como ressaltou Moynihan (2003a), pode ser um reflexo desta conduta. Ademais, algumas pesquisas podem ser conduzidas com o único intuito de criar um novo mercado para uso das drogas. Angell (2007) destaca de forma pontual esta situação ao expor suas considerações acerca dos medicamentos para a ansiedade social ou para o “transtorno da disforia pré-menstrual”. De modo semelhante, Moynihan (2003c) publicou um importante artigo na prestigiada revista BMJ sobre a criação e a fabricação do Viagra® para o sexo feminino sem que, no entanto, houvesse uma clara definição do que seja uma disfunção sexual entre mulheres. Por certo, diferentes interesses podem ser postos em jogo e não somente aqueles advindos dos financiamentos fundados pelos laboratórios farmacêuticos. Latour & Woolgar (1997) descreveram de forma original os diferentes “padrões de crédito” que, em exercício, têm favorecido determinados grupos de pesquisa e envolvem ganhos financeiros, citações dos estudos, destaque entre os pares da comunidade científica, corrida pelo Prêmio Nobel, entre outros aspectos. Um terceiro e não menos importante aspecto ético diz respeito à avaliação de drogas em seres humanos, especialmente em países não desenvolvidos (MOYNIHAN, 2003a e 2003b; ANGELL, 2007). Não à toa, grande parte dos ensaios clínicos é realizada nos países não desenvolvidos, vez que se torna mais barato, fácil e ágil de se fazer. Mais interessante ainda é constatar que poucas investigações têm sido conduzidas com o intuito de se encontrar e produzir medicamentos que atendam às necessidades dos países “fornecedores” de cobaias, como a malária ou esquistossomose, uma vez que não haveria compensação financeira (ANGELL, 2007).
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FiCÇÃo CiENTÍFiCA oU iMPoRTANTES REFLExõES SoBRE A CiÊNCiA? Em que pese os filmes permitirem caminhar por várias direções, o debate que buscaremos realizar não envolve o impulso de engajar predições apocalípticas às novas tecnologias biomédicas, e em especial ao saber genético; nem, tampouco, tratará, prioritariamente, de questões bioéticas envolvendo estas mesmas tecnologias após toda a conduta nazista diante das ciências e dos inúmeros acordos que trataram de abusos na ciência. Os quatro filmes que se estabelecem como base para o presente texto possibilitam vislumbrar algumas reflexões acerca dos riscos estatisticamente calculados para determinadas doenças e as condutas de prevenção adotadas, bem como discutir as certezas dos conhecimentos e os interesses aí envolvidos. Tomemos como ponto de partida a ideia recomendada pelo Programa Agita São Paulo: os adultos deveriam acumular na maioria dos dias (e, preferencialmente, todos os dias da semana), ao menos, 30 minutos de atividade física de intensidade moderada para esta associar-se à saúde (entendida por eles como ausência de doenças). Neste sentido, o sedentarismo1 compreenderia um importante risco para diferentes doenças, tais como doença arterial coronariana, acidente vascular encefálico, hipertensão, diabetes, osteoporose, depressão, entre outras (US DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES, 1996). O que três (Minority Report, A ilha e Gattaca) dos quatro filmes têm em comum, afora a ficção científica, são as formas de controle social. O que a ciência parece constantemente indicar, e os filmes apenas refletem isto, é que o futuro pode ser seguramente previsto e controlado. O nível de certeza parece elevado. Castiel & Diaz (2007), ao abordarem o conto e o filme Minority Report, traçam algumas analogias com o desenvolvimento de dados científicos. Os precogs trabalham em conjunto, como um comitê de especialistas O termo sedentarismo denota um caráter moral, que estigmatiza o sujeito como preguiçoso, indolente. Além disto, comporta inúmeras discussões de caráter teórico sobre o que realmente significa. Contudo, será dada preferência por utilizá-lo por representar uma das formas de uso nos textos biomédicos que tratam de atividade física e saúde.
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que buscam consenso na prevenção de doenças, e flutuam e se alimentam em um tanque de líquido, tal como os cientistas fazem com as diferentes bases de dados da literatura científica (Pubmed, a mais importante delas; e o Scielo, por exemplo). A função dos precogs, como alguns biocientistas, é predizer os acontecimentos futuros para poder controlá-los. A questão fundamental do filme, então, centra-se na possibilidade de alguém ser condenado por um crime que não aconteceu. Há, assim, um “pré-crime”. A ciência biomédica, de certo modo, tem trabalhado com estas noções. É possível debater sobre isto, considerando dois pontos: a) há uma convicção de que os riscos podem ser detectados e, assim, a doença controlada; e, b) há em curso a ideia da existência de “prédoenças”. A primeira noção desconsidera a possibilidade das incertezas. De fato, o conhecimento de um aspecto envolvido com o fenômeno (o risco, por exemplo) não permite assegurar, com toda certeza, o que ocorrerá no futuro. Ou ainda, mesmo que se consiga alterar o futuro, a partir de comportamentos considerados adequados, nada garante o futuro melhor. Realizar atividades físicas rotineiramente pode, portanto, não garantir absolutamente nada no destino da saúde dos indivíduos. Por outro lado, a partir principalmente do conhecimento com base na noção de causa e efeito, tem sido imputada ao indivíduo a culpa por sua condição sedentária, uma vez que o comportamento pessoal dependeria apenas do próprio sujeito para ser modificado. Contudo, por vezes, o que se tem observado, a partir dos discursos persecutórios produzidos que ratificam esta compreensão, é um efeito iatrogênico, encontrado sob diferentes formas de normatização, estigmatização e discriminação. Por estas e outras razões, tem sido criticada a forma excessiva com que se atribui ao indivíduo a condução de sua própria saúde (CASTIEL & DIAZ, 2007). Neste sentido, o filme Efeito borboleta provoca um efeito desafiador. Em que pese permitir pensar utopicamente na possibilidade de alterar o futuro, retornando ao passado, aceita, igualmente, refletir sobre a impossibilidade de controlarmos o futuro. Quando o personagem Evan procura insistentemente regredir em vidas passadas, não espera encontrar devir tão incerto. Em outras palavras, o personagem central do filme volta ao passado para consertar o futuro. Contudo, nosso herói
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somente tem o poder de alterar o passado e não o futuro. E aí novas e inesperadas situações podem ocorrer. De fato, quando um indivíduo se submete a toda uma série de sacrifícios comportamentais (exercícios físicos, alimentação balanceada, etc.) nada pode garantir que o sujeito não morrerá cedo ou que não adoecerá por uma das doenças que tenta prevenir ou, ainda, adoecerá de outro problema como, por exemplo, um distúrbio associado à imagem corporal (bulimia ou anorexia). A segunda noção, que trata das “pré-doenças”, pode-se dizer, é uma consequência radical da primeira. Uma vez que se conhece o risco, a condição próxima da situação de risco é apontada como algo que precisa ser contido. Se anteriormente a “punição”, aqui compreendida como estigmatização e discriminação, ocorria para os portadores das doenças (doença cardiovascular, diabetes, etc.) ou dos riscos (sedentários, obesos, etc.), atualmente se dá, também, aos futuros (será?) doentes. O discurso persecutório não livra os “pré-doentes”. Cabe destacar que, por outro lado, alguns interesses podem nortear a classificação dos “pré-doentes”. Recentemente, por exemplo, as medidas de pressão arterial consideradas normais, a despeito de provas convincentes, foram reduzidas e os valores de 120 por 80 foram taxados de “pré-hipertensão”. Obviamente, o mercado de medicamentos para pressão arterial foi expandido ou, de certo modo, criado (ANGELL, 2007). Na esteira da identificação das “pré-doenças”, o mapeamento genético pode assumir papel central. O filme Gattaca, neste sentido, é pontual. As análises genéticas e, principalmente, a manipulação do material genético dos pais poderiam detectar e, mesmo, evitar as doenças. Aqueles concebidos de forma natural são, possivelmente, portadores de “pré-doenças” e, assim, julgados e discriminados como tal. Contudo, mais uma vez as incertezas que regem os fenômenos necessitam ser evocadas para que se reflita sobre toda produção discursiva acerca deste tema. Nos dois casos a avaliação torna-se instrumento basilar do controle. Não basta ver com os próprios olhos, é preciso medir cientificamente e calcular o risco de adoecimento. O saber biomédico, assim, abre espaço a uma nova percepção sobre estar ou não adoecido e permite que alguns sujeitos possam ser classificados, catalogados e enquadrados como doentes e circunscritos na bipolaridade do normal e do patológico. A avaliação é, então, fundamental na vigilância e disciplina dos corpos (MARKULA & PRINGLE, 2006; FOUCAULT, 2007).
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Outra questão relevante em todo este debate diz respeito ao modo como se tenta doutrinar as pessoas a conduzir suas vidas com rigorosa disciplina e autocontrole do corpo. No filme A ilha, o ideal ascético é levado às últimas consequências. O que A ilha demonstra é que o ideal de pureza dos corpos realmente tem servido como um indicador contemporâneo do controle ideológico. O filme, na verdade, mostra como o corpo puro é transformado em corpo-mercadoria. E, se de um lado, é preciso priorizar a saúde dos corpos dos habitantes da “ilha” para vendê-los e, neste sentido, fazê-los crer na necessidade de se manterem disciplinados, por outro, não há como impedir as resistências à ideologia, como nas tentativas de burlar a alimentação (e toda vida) controlada. Cabe ressaltar que os comportamentos ditos saudáveis podem assim ser prescritos com intuito de elevar o consumo de algo. Ou seja, mesmo sem o conhecimento aprofundado, poder-se-ia divulgar que determinado produto, se consumido com regularidade, é bom para a saúde das pessoas. O que é a ficção científica se não a imaginação, a criação fantasiosa, o projeto científico que parece não se realizar. Contudo, é também uma obra seminal, que estimula novas invenções, ideias, concepções, enfim, novas reflexões. Indagar sobre algumas questões éticas ou científicas a partir do cinema é um exercício desafiador e interessante. Desafiador porque é preciso ler e traduzir nas entrelinhas, o que, por vezes, está velado; interessante porque permite divulgar ideias nem sempre acessíveis ao grande público. PoLÍTiCAS PÚBLiCAS, ExERCÍCioS FÍSiCoS E SAÚDE: UM ExEMPLo Um dos primeiros estudos sobre a associação da atividade física e a prevalência de doenças foi realizado por Morris et al. (1953). Este grupo de pesquisadores investigou como o trabalho “mais ativo” dos carteiros e dos trocadores de ônibus (que trabalhavam caminhando e recolhendo dinheiro dos passageiros) em relação, respectivamente, a outros trabalhadores do serviço postal e motoristas de ônibus parecia ter um efeito protetor contra a doença arterial coronariana. Pouco mais tarde, na década de 1960, o pesquisador, grande entusiasta e divulgador Kenneth Cooper ajudou a popularizar a ideia de que os exercícios, especialmente o aeróbio, tinham um efeito
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importante para prevenção das doenças cardiovasculares. Todavia, foi ao final da década de 1980 e início da de 1990 que se estabeleceram consensos e posicionamentos acerca das relações entre atividades físicas, exercícios físicos e saúde (FRAGA, 2006; MARKULA & PRINGLE, 2006). No Brasil, em que pese diferentes programas embrionários, como o Esporte para Todos, possivelmente o de maior repercussão é o Agita São Paulo. O Programa Agita São Paulo foi desenvolvido por pesquisadores do Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul com o propósito de propiciar conhecimentos e incentivar a prática de atividades físicas para combater o sedentarismo e a ocorrência de doenças associadas a este comportamento (AGITA SÃO PAULO, 2009). Em seu sítio na internet, o Agita São Paulo disponibiliza algumas informações de como se tornar mais ativo: “em vez de usar o controle remoto e gastar apenas uma caloria, levante-se para trocar de canal. Assim, elimina três”; “abrir o portão da maneira tradicional – ou seja, sem acioná-lo eletronicamente – faz com que o seu corpo gaste três calorias. No outro caso, menos de uma”; “esperar meia hora pela entrega de uma pizza em casa, por exemplo, consome 15 calorias. Cozinhar pelo mesmo período, 25”; “parar o carro próximo ao destino é o costume de muitos sedentários. Ter essa atitude e caminhar por apenas dez segundos gastam apenas 0,3 caloria. Andar por dois minutos, cinco vezes por semana, oito”; ou, ainda, “levar o carro ao lava-rápido uma vez por mês gasta 18 calorias. Deixar a preguiça de lado e lavá-lo, 300”. A despeito da dificuldade em crer que estas informações possam ter alguma consequência sobre os indivíduos, o efeito do discurso é a distinção social entre aqueles que são responsáveis por cuidarem de si e os que não são (VAZ et al., 2007). VAZ et al. (2007) ainda ponderam que um dilema moral se aplica àqueles que estão diante das escolhas prescritas como saudáveis. Por um lado, considerando o cálculo estatístico-probabilístico, o sujeito pode escolher pelo estado de prazer e analisa se sua opção, por acaso, no futuro, poderá ter uma consequência negativa. Assim, há uma alteração na direção temporal do arrependimento, uma vez que o que se pretende é que o sujeito se arrependa antes da decisão. Além disto, é preciso obser-
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var também outras dificuldades para a adesão às recomendações. O sujeito entende que a doença a ser evitada pode, de fato, nunca se manifestar e, por isso, talvez não seja necessário cuidar de si a partir de sacrifícios. Sabe, ainda, que a morte pode vir fortuitamente e, assim, não valeria desperdiçar o máximo de prazer. Pode, também, perceber importantes contradições nas divulgações dos achados científicos e duvidar destas informações. Enfim, há inúmeras incertezas (VAZ et al., 2007). Fraga (2006) também destaca que o desleixo na construção e na manutenção de espaços públicos destinados às práticas de atividades físico-esportivas em troca da tentativa de aumentar o conhecimento sobre os possíveis benefícios desta prática à saúde pode ser uma inversão relevante no modo de intervir e provocar a responsabilização do sujeito. As políticas públicas como têm sido propostas, neste sentido, estão fadadas ao insucesso. Tratar alguns comportamentos e estados, como o sedentarismo e a obesidade, de forma alarmista (MANSO et al., 2004), imperativa (SPARLING et al., 2000) ou mesmo como marcadores de saúde (ORTEGA et al., 2008) possivelmente não resolve a questão. A representação do cálculo estatístico associada aos discursos dos “bioespecialistas”, ao que parece, tem configurado uma temerária relação entre ciência e verdade e divulgado o ponto de vista de que seria possível gerenciar o futuro da saúde através do pensamento racional. A simplicidade dessa visão de mundo evita encarar de frente as incertezas e ambiguidades da vida e da própria ciência. Por outro lado, um diferente grupo de pesquisadores tem despertado e debatido as possíveis consequências morais trazidas pelos discursos dominantes (GARD et al., 2005; CAMPOS et al., 2006). Possivelmente, há aí uma estratégia de poder que, associada ao pânico moral desencadeado em torno de discursos que constituem os saberes da saúde e mesmo do fitness, possibilita tornar os corpos dóceis (FOUCAULT, 1994). Foucault (1985) oferece uma importante explicação ao tratar da valorização do corpo e da saúde da burguesia do século XVIII, que talvez sirva para reflexão do que ocorre atualmente. Para o filósofo, esta importância dada ao corpo esteve ligada ao crescimento e estabelecimento da hegemonia burguesa em virtude do que representou política, econômica e historicamente. A prova concreta encontra-se,
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segundo o filósofo, na elevada quantidade de publicações sobre higiene, longevidade, métodos para ter filhos saudáveis e para melhorar a descendência humana publicados no século XVIII. Ainda de acordo com Foucault (1985), há, portanto, certa “confusão” entre os cuidados com o corpo e uma espécie de racismo; um racismo dinâmico, em expansão, que gerou os frutos podres que a humanidade provou. Cabe, então, refletirmos, todos, sobre estas séries atuais de medicalização e estetização generalizadas das populações e o que daí pode surgir. De outra forma, é interessante destacar que a preocupação excessiva com o corpo e com a saúde poderia provocar uma alteração da própria compreensão de saúde, tornando-a superficial e egocêntrica. Esta mudança, porém, parece estar sendo decisivamente influenciada pelos meios de comunicação, uma vez que a saúde e o corpo passaram a ser cultivados e adorados na modernidade tardia. Crawford (1980) denomina essa mania coletiva em relação à saúde como Healthism (higiomania) e observa que esta se encontra ao alcance de todos, desde que sigam a norma de estilo de vida considerada acertada e evitem os riscos sobre os quais são constantemente advertidos. Assim, a noção de higiomania passou a ser nutrida por uma normatividade, a qual estabelece a melhor escolha para a saúde e para o corpo e a importância da prevenção aos riscos. Ademais, segundo Bauman (2000), a saúde quando circunscrita por padrões normativos não se livra da agonia de alcançar um estado saudável, entre outros aspectos porque a própria distinção entre “normalidade” e “anormalidade” é frequente e severamente abalada, tornando-se frágil, na medida em que se experimenta uma sociedade de incertezas e de indefinidas possibilidades. Assim, o que anteriormente era considerado normal e, por conseguinte, aceitável, atualmente pode significar uma inquietação, um estado patológico. Não se estranha, portanto, as mudanças, ao longo do tempo, nas formas de realizar dietas, exercícios físicos ou outras escolhas ligadas à saúde e/ou ao corpo. Quando a normatividade se modifica, o consumo dos padrões de referência se altera. Neste sentido, os “comportamentos” duram um tempo menor do que seus benefícios podem se estabelecer, uma vez que uma nova recomendação denuncia seus efeitos prejudiciais.
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CoNCLUSõES O texto apresentou como propósito tratar de temas relevantes da ciência e da saúde a partir de algumas obras cinematográficas. A arte, e no presente caso o cinema, possibilita algumas reflexões, quer sejam éticas ou mesmo científicas, que precisam ser cuidadosamente aprofundadas. A noção do risco epidemiológico, as incertezas que o cercam e os interesses que o acompanham precisam ser mais bem esquadrinhados. Decerto, os bioespecialistas não desistem de anunciar novos riscos e, junto a estes, novos “remédios” são propalados. O pânico moral talvez seja, assim, uma ferramenta essencial ao poder que se investe sobre as vidas das pessoas, em sociedade. O modo operatório deste poder se regula pelo investimento na vida como prevenção e funciona como um modelo de gestão da população. Deste modo, para lidar com o medo dos temerosos e a esperança em abrandar os riscos, a economia de consumo providencia, ao mesmo tempo, a ameaça (“doença”), o “remédio” (medicalização e/ou moralização dos riscos) e o consumidor (“doente”). Enfim, criar medo para afirmar o biopoder. Assim, o engenho humano segue desconhecendo limites e criando “promessas salvacionistas”.
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CoNFiGURAÇÃo Do MoViMENTo SERiNGUEiRo NA AMAZÔNiA BRASiLEiRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 ELEMENToS PARA PENSAR PoLÍTiCAS PÚBLiCAS SUSTENTÁVEiS Cláudia Conceição Cunha
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Nas décadas de 1970-1980 configurou-se, na Amazônia brasileira, um movimento social que explicita a tensão vivida, naquele momento, entre dois modelos de desenvolvimento de diferentes fundamentos: um, com incentivos governamentais, apoiado no desenvolvimento através da expansão agropecuária; e outro, protagonizado pelos seringueiros, baseado na exploração da floresta através do extrativismo, em princípios sustentáveis. Contrapondo-se ao alardeado “vazio demográfico”, os seringueiros desenvolveram articulações e estratégias de resistência que lhes garantiram visibilidade e influência na construção de políticas públicas que contemplassem suas especificidades enquanto modo de vida e reprodução. Atualmente, o principal resultado desse movimento, as Reservas Extrativistas, ocupa um papel importante nas estratégias de conservação da natureza adotadas no país, sendo implementadas em outros biomas brasileiros com implicações no reconhecimento dos territórios ocupados pelas populações extrativistas tradicionais. Este artigo busca contribuir para a compreensão do momento histórico de configuração do Movimento Seringueiro e suas implicações sociopolíticas no processo de criação das Reservas Extrativistas. In the decades of 1970-1980 was organized in the brazilian Amazon, a social movement that explicit the tension experienced at the moment between two development models of different essences: one, with government incentives, supported in the cattle ranching and agriculture expansion; and another, carried out for the rubber tappers, based on the extraction of forest products on sustainable principles. Opposed to the propagated “demographic gap”, the rubber tappers developed joints and strategies of resistance that make visibility and influence in the construction of public policies that includes its way of life and reproduction. Currently, the main result of this movement, the extractive reserves, occupies an important role in the strategies of nature conservation adopted in the country, being implemented in other brazilian biomes with implications for recognition of the territories occupied by traditional extractive populations. This article aims to give a contribution for the understanding of the historical moment of configuration of the rubber tappers movement and its sociopolitical implications in the creation of extractive reserves.
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1. iNTRoDUÇÃo A Amazônia brasileira tem sido palco de iniciativas governamentais que visam, dentre outros motivos, integrá-la subordinadamente ao território brasileiro, em uma proposta desenvolvimentista. Ao longo dos séculos, várias estratégias têm sido implementadas, dentre as quais podemos destacar dois momentos que, articuladamente, foram fundamentais para a constituição do Movimento Seringueiro. Primeiramente, a estratégia baseou-se na extração de borracha em um modelo que privilegiava a concentração de poder nas mãos de seringalistas e casas aviadoras de Manaus e Belém, que por sua vez estavam atreladas a casas exportadoras europeias e norte-americanas que as financiavam; e, posteriormente, deslocou-se para a abertura de estradas e incentivo à migração de fazendeiros do centro-sul do país, com interesses agropecuários. A “saga” dos seringueiros está irremediavelmente ligada a estes dois momentos. No período de incentivo para exploração gumífera, milhares de nordestinos migraram para a Amazônia por meio de programas estatais, como mão de obra nos seringais nativos. No segundo momento, cujo interesse principal era o desenvolvimento da agropecuária, esses mesmos nordestinos ou seus descendentes, agora convertidos em seringueiros, estavam sendo expulsos dos seringais em função da incompatibilidade entre a sua permanência na terra e o destino que se queria dar a ela. Dessa forma, e tendo como palco a expressiva expulsão do território que teve lugar com o viés de expansão agropecuária assumido pelas políticas públicas da década de 1970, os seringueiros, articulados nos sindicatos dos trabalhadores rurais, protagonizaram um movimento que questionaria as bases de um modelo de desenvolvimento que estava sendo implantado e que os desconsiderava. A capacidade de desenvolver amplas alianças (em nível local, regional, internacional), com diferentes mediadores (pesquisadores, igreja, sindicato, universidades, ambientalistas, políticos) que em diferentes momentos e situações estiveram junto ao/com o Movimento em suas ações ou reivindicações, tornou-se uma das principais características do Movimento Seringueiro, e contribuiu para a consolidação de sua conquista mais consistente, as Reservas Extrativistas (Resex).
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As Resex foram oficializadas em 1990, como principal reivindicação desse Movimento, na figura jurídica de Unidades de Conservação da Natureza que contemplavam a necessidade de garantia de território, enquanto meio e local de reprodução social, estabelecida de acordo com as especificidades no modo de vida de um grupo social. Por seu caráter de garantia de território e de reconhecimento de saber das populações que utilizam os recursos naturais, assim como sua capacidade de se contrapor às fronteiras de expansão capitalista que vêm acompanhadas da expulsão de populações extrativistas, as Resex logo se consolidaram como uma estratégia de luta de outros povos extrativistas, como quebradeiras de coco babaçu e pescadores, nas demais regiões do país. Objetivamos, com este artigo, analisar o processo de constituição do Movimento Seringueiro, que teve seu “epicentro” no Acre, destacando os principais aspectos que fazem deste movimento um legítimo representante de um movimento social de caráter contra-hegemônico que se estabeleceu no Brasil nas décadas de 1970-1980. Procuraremos destacar em que contexto se formam e conformam seus principais sujeitos, e as diferentes aproximações que foram se desenvolvendo, buscando compreender como os protagonistas se constituíram como tal e como, constituindo-se, foram estabelecendo suas mediações. Como estratégia metodológica utilizaremos a revisão da bibliografia e a análise de documentos referentes ao I Encontro Nacional dos Seringueiros e da legislação que regulava a posse e o uso da terra no período. Com isso, buscaremos delimitar o contexto em que se situou o Movimento Seringueiro e definir seus principais propósitos, analisando-o sob a luz do paradigma teórico crítico. Este trabalho faz parte da pesquisa de doutorado da autora1, onde discutimos o significado da institucionalização e da implementação das Reservas Extrativistas em um momento em que o Estado brasileiro se neoliberalizava. Acreditamos que esta discussão pode nos auxiliar na definição de estratégias para a construção de políticas públicas integradas e sustentáveis para o Brasil, e em particular para a Amazônia, na medida em que explicita um período da história em que um grupo 1 A pesquisa, vinculada ao Programa Eicos/IP/UFRJ, tem como título As Reservas Extrativistas e o Estado brasileiro: análise das políticas públicas da década de 1990.
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social, baseado em sua especificidade, atuou em favor da democratização na definição de políticas públicas, mostrando-nos a possibilidade de desenvolvimento regional que coloque a cidadania como sua condição e que subordine o projeto econômico às especificidades dos sujeitos sociais (ACSERALD, 2001). 2. A ExPANSÃo CAPiTALiSTA PARA A AMAZÔNiA Assim como não é possível falar de Reserva Extrativista sem falar do movimento que lhe deu origem, é impossível entender esse movimento sem inseri-lo historicamente no contexto de internacionalização e expansão capitalista para a Amazônia. Baseados em extensos trabalhos já realizados, descreveremos os processos pelos quais passou (ou foi atingida) a Amazônia e seus sujeitos, no seu contexto de transformação capitalista, até o período de 1970-1980, quando se configura o Movimento Seringueiro. Procuraremos, em alguns aspectos da história recente da Amazônia, destacar como se foi construindo o ambiente necessário para que emergissem novos sujeitos na cena política regional. Falar da Amazônia a partir do século XIX significa falar da utilização-exportação da borracha a partir da extração do látex da seringueira (Hevea brasiliensis2). Porto-Gonçalves (2001a) nos mostra que os limites territoriais da Amazônia foram demarcados pela presença desta árvore, demonstrando o quanto a importância econômica interferiu na interpretação científica. O mesmo autor destaca que já nos anos 1820 se tem conhecimento de grande exportação de sapatos de borracha para os Estados Unidos, comprovando que a sua extração-produção já era dominada e utilizada pelos indígenas habitantes da região, que foram posteriormente massacrados por um modelo de ocupação da Amazônia. Tomando-se o estado do Acre como espaço de discussão, podemos destacar algumas fases no ciclo da borracha, que nos ajuda a entender seu processo histórico de ocupação. Nas décadas de 1860-1870, ainda como território boliviano, se tem notícia da primeira grande migração 2 De várias espécies do gênero Hevea pode ser extraído o látex, com o qual se produz a borracha, sendo que a mais produtiva é a espécie Hevea brasiliensis, encontrada em abundância na Amazônia ocidental.
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de nordestinos3 para trabalhar na exploração da borracha onde posteriormente seria formado o estado do Acre. Em 1899, esta região tornar-se-ia responsável por 60% da borracha produzida na Amazônia (SILVA, Marina, 2001), permanecendo esse período áureo até 1912. Nesse meio-tempo, ocorre a revolução acreana, que provoca a anexação do Acre ao território brasileiro, através do Tratado de Petrópolis (1903). A exploração da borracha para os insumos da indústria, especialmente no fabrico de pneumáticos, inseriu a Amazônia no mercado mundial (final do século XIX), de uma forma dependente, em que as decisões eram tomadas de fora, com clara repercussão e consequências para os de dentro. A exploração dos extratores (seringueiros) pelos seringalistas (coronéis-patrões) era ocultada pelo isolamento em que se encontravam na floresta, onde o poder presente era explicitado pela dependência dos primeiros em relação aos últimos, uma vez que eram impedidos de plantar e comercializar com outros que não os “donos” dos seringais e a eles ficavam atrelados para aquisição de mantimentos e instrumentos de trabalho, por meio do crédito, pago com a produção de borracha4. No entanto, outra dependência também mantinha o seringalista preso à casa aviadora, em um sistema de crédito, e esta a casas exportadoras europeias e norte-americanas que a financiavam. Portanto, o sistema de extração gumífera na Amazônia já estava internacionalizado. Porto-Gonçalves (2001a) destaca que essa grande migração ocorre não apenas por conta da forte seca que atingiu o Nordeste, mas por fatores econômicos, uma vez que a principal economia do sertão nordestino (o algodão) sofre forte impacto pelo retorno da produção norte-americana no mercado internacional, após o fim da guerra civil naquele país. 4 Este sistema de dependência através do crédito é chamado de aviamento. No local onde os seringueiros conseguiam se libertar desse sistema, podendo vender sua produção para quem quisesse (seja o próprio seringalista, o marreteiro, ou o comerciante da cidade), ele é chamado de “seringueiro liberto ou autônomo”, mostrando o caráter de aprisionamento ao qual ele se via inserido. Afinal, o seringueiro era mantido “preso” no seringal por meio da dívida que contraía desde o momento em que chegava. Vemos que o “seringueiro” não se define tão somente pela atividade que exerce (extração do látex), mas principalmente pelas relações sociais que estabelece. 3
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Assim, toda uma forma de comércio era estabelecida sem que os seringueiros fizessem parte da tomada de decisão. Vejamos o que diz Picoli (2006, p. 27), sobre o chamado “período áureo” da borracha: Nessa fase da investida capitalista na Amazônia, e que compreende o decênio 1901-1910, as exportações de borracha atingiram o nível mais alto das exportações brasileiras. Esse ciclo beneficiava basicamente os setores seringalistas e os grandes latifundiários, enquanto a mão-de-obra desse ciclo, o seringueiro, ficava em um quadro econômico escravagista, à margem dessa participação.
Uma visão/relação colonial ainda se detinha sobre a Amazônia, em que dela se esperava apenas a exportação dos produtos naturais que ali eram retirados ou produzidos, reproduzindo em escala nacional a relação antes existente entre a Europa e o continente americano, entre Portugal e Brasil, dessa vez entre o centro-sul e o norte brasileiros. As riquezas produzidas na Amazônia, nesse período, eram exteriorizadas nacional ou internacionalmente, nada ficando na região a não ser os conflitos e a exploração (dos recursos naturais e humanos). Após o início da comercialização de látex pela Malásia, a preços mais competitivos (primeira década do século XX), a produção amazônica entra em declínio, levando também a uma busca pela diversificação na produção, com outros produtos da floresta e pequena agricultura, o que propiciou a sobrevivência dos seringueiros na floresta. Em 1942, em função da ocupação do sudeste asiático pelo Japão, e consequente bloqueio do fornecimento de borracha, tem início o chamado segundo ciclo da borracha. A assinatura dos “Acordos de Washington” entre o governo brasileiro e os Estados Unidos garantiu o suprimento de borracha extraído dos seringais nativos brasileiros para os aliados e, ao mesmo tempo, permitiu ao governo brasileiro consolidar seu projeto de industrialização com o financiamento para a Companhia Siderúrgica Nacional e a criação da Companhia Vale do Rio Doce, nacionalizando a produção de ferro (PORTO-
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GONÇALVES, 2003). Nesse período, têm lugar intensas migrações nordestinas na figura dos soldados da borracha5, e o governo brasileiro institui o monopólio na compra e venda de borracha, criando o Banco da Borracha e substituindo, em sua função comercial, as casas aviadoras de Belém e Manaus (DUARTE, 1986; PORTOGONÇALVES, 2003). Porto-Gonçalves (2003) relata como os recursos obtidos com a borracha, enquanto o Acre foi território federal, ajudaram a manter o orçamento da União e serviram ao embelezamento e à afirmação do Rio de Janeiro, então capital federal, diante de São Paulo, que se consolidava como capital financeira do país. A Amazônia insere-se no contexto nacional de forma colonizada, servindo de suporte para o equilíbrio do poder político com o poder financeiro. A situação não era diferente nos outros países que compunham a Amazônia: A Amazônia será sempre vista nos novos Estados independentes com um peso político marginal nos blocos de poder nacional e, portanto, sem voz própria. É uma região periférica de países periféricos. Em outras palavras, é uma região subordinada na hierarquia de poder no interior dos seus próprios países. Ela é sempre vista a partir dos interesses nacionais e estes são definidos nos centros hegemônicos do poder nacional (PORTO-GONÇALVES, 2001a, p. 25).
Considerando o bloco histórico que comandava o país à época, Porto-Gonçalves (2001a, 2003) nos alerta que as elites amazônicas não conseguiram se afirmar nacionalmente como bloco regional im5 Dessa forma eram conhecidos os homens que se alistavam e iam para a Amazônia contribuir com a guerra através da extração de borracha, em vez de irem ao campo de batalha. A eles foram prometidos os benefícios que seriam concedidos aos outros combatentes pelo serviço prestado à pátria, tais como vantagens pecuniárias, contrato de dois anos, isenção do serviço militar obrigatório e pagamento de pensão à família em caso de morte ou invalidez (ALMEIDA et al., 2002). Terminada a guerra, ficaram esquecidos nos seringais, tendo que sobreviver com a nova situação e empreendendo uma longa batalha para serem reconhecidos como os “soldados da borracha” e terem garantidos os seus direitos.
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portante, integrando o bloco de poder nacional de forma subordinada. Embora se favorecendo das decisões, estas eram definidas externamente à Amazônia, pelas elites do centro-sul do país, ou muitas vezes fora do Brasil. No entanto, as elites regionais mantinham com as do Centro-Sul uma relação orgânica em que eram mutuamente sustentadas. A Amazônia é, assim, uma questão nacional, menos pelo poder das elites regionais na composição do bloco de poder nesta escala nacional e mais pelas alianças que conseguem forjar com setores da burocracia civil e, sobretudo, militar e, até mesmo, com os setores ligados à indústria de artefatos de borracha, localizada esta, sobretudo, no Sudeste brasileiro (PORTO-GONÇALVES, 2003, p. 87).
Finda a Segunda Guerra Mundial, inicia-se mais um período de declínio na produção de borracha na Amazônia, em função da perda de incentivos estatais e do abandono das condições de produção. Após uma sobrevida proporcionada pela concessão de créditos aos antigos seringalistas pelo Banco de Crédito da Amazônia (PORTOGONÇALVES, 2001a), eles abandonam os seringais ou os vendem para grupos com interesses em agropecuária, incentivados pela ideia de expansão da fronteira agrícola para o Norte, e os seringueiros são abandonados à própria sorte. São nessas condições que, em 1962, o então território federal passa à condição de “estado do Acre”. Nas décadas de 1960-1970, inicia-se a construção de grandes vias de integração da região ao sul e sudeste do país, acompanhada por incentivos a uma outra forma de ocupação, agora baseada na produção agropecuária extensiva, que marcaria o início dos conflitos que conformariam o Movimento Seringueiro. Começa um outro ciclo na Amazônia, no qual não estão inseridos os seringueiros, sequer como mão de obra, uma vez que a nova forma de ocupação pressupunha a saída dos antigos ocupantes6. Da estratégia Não ignoramos o processo de expropriação pelo qual passaram os indígenas, primeiros ocupantes da Amazônia, processo do qual os próprios seringueiros participaram a mando do “patrão”. Apenas demarcamos que, diferentes dos índios, os nordestinos que se formaram seringueiros, e agora estavam sendo expulsos, haviam feito parte de uma estratégia estatal de ocupação.
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fazia parte a realização de grandes obras de infraestrutura, que tinham como objetivo anunciado a “integração da região ao Brasil”, camuflando o interesse e a “entrega” de seus recursos ao capital nacional e internacional por meio da facilitação de escoamento dos recursos naturais (madeira, minérios) baseado em um forte esquema de isenção fiscal às empresas que ali se instalavam. Com o discurso de integração da Amazônia ao mercado mundial, sintetizado no lema “integrar para não entregar”, praticava-se a entrega da Amazônia ao mercado mundial. Faz-se importante lembrar que, à época da crise do petróleo (década de 1970), a exploração de minérios passa a representar uma excelente oportunidade de pagamento da dívida externa, o que favorece ainda mais o interesse na construção de infraestrutura de transporte e energia, cujo aval do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (Bird) mostrou-se decisivo para atrair investimentos estrangeiros (PORTO-GONÇALVES, 2001a). Uma nova migração ocorre para a Amazônia, só que desta vez não mais de pessoas que vão “trabalhar na floresta” e sim de pessoas que vão “substituir a floresta”: capitalistas com a instalação de suas empresas; pessoas que são atraídas por uma propaganda de emprego em indústrias e obras na região, ou pela aquisição de terra barata para agricultura e pecuária; aqueles que foram atrás de terra “disponível” para subsistência; ou ainda os que são direcionados para a Amazônia por meio de programas de colonização oficiais7. Os que migraram à Amazônia serviram de base e estrutura de trabalho nas cidades planejadas, como também deram estrutura ao sistema de concentração econômica na região de modo geral. Nesse período, deslocou-se para a região o maior volume de exército industrial de reserva flutuante de que temos conhecimento no país. Em 1960, na Amazônia Legal brasileira existiam pouco mais de 3,6 milhões de habitantes; em 1996, havia em torno de 18,7 milhões de habitantes e, em 2005, a população da região ultrapassou a casa dos 23 milhões de habitantes (PICOLI, 2006, p. 38). Duarte (1986) relata como os Projetos de Colonização oficiais na Amazônia serviram, entre outros motivos, para diminuir a tensão existente em função dos desapropriados com a construção da hidrelétrica de Itaipu, um grande empreendimento hidroelétrico construído no sul do país.
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A migração que ocorre para a Amazônia é fruto de um desenvolvimento capitalista no Brasil que interliga, de forma subordinada, suas diferentes regiões. E, dessa forma, migram tanto frações das classes dominantes, que vão ocupar a região de forma a explorá-la capitalisticamente, quanto frações das classes dominadas, que servirão de força de trabalho nesses empreendimentos. Observa-se que a migração para a Amazônia não foi somente de diferentes lugares geográficos do país, mas também uma migração de diferentes sujeitos sociais: uns empresários, outros latifundiários, outros antigos pequenos proprietários que venderam suas terras para adquirir outras mais baratas e com maior extensão, outros, ainda camponeses, pobres e sem terra [...] Na Amazônia esses diferentes sujeitos sociais encontraram diversas populações remanescentes do ciclo da borracha, caboclos ribeirinhos, populações indígenas com seus territórios imemoriais, populações negras que habitavam antigos quilombos. É como se quatro séculos de diferentes desigualdades sociais se encontrassem num mesmo espaço, a Amazônia (PORTO-GONÇALVES, 2001a, p. 54).
A configuração institucional brasileira também dá apoio a essa nova reconfiguração da sociedade amazônica por intermédio da criação ou redirecionamento de estruturas para crédito e incentivo na “colonização” da região. Segundo Picoli (2006, p. 46), “efetivaram-se duas vias de integração: no primeiro estágio, vinculou-se a região ao mercado mundial via exportação; no segundo, a internacionalização dos produtos através da produção”. Vale citar algumas estruturas importantes na aceleração-modernização da ocupação regional que demonstram uma nova fase para o desenvolvimento extensivo do capitalismo dependente8 do Estado brasileiro: transformação do Banco de Crédito da O Brasil se insere e se integra ao modo capitalista desenvolvimentista-moderno de forma dependente, tendo o seu suposto “subdesenvolvimento produzido não a partir de dentro, mas a partir de fora, por fatores estruturais e conjunturais do mercado capitalista mundial (CARDOSO, 1996). Para a autora, que se baseia nas formulações de Florestan Fernandes, essa relação não se deu de forma exteriorizada. Ao contrário, ocorre com a participação das frações dominantes locais, que se aliam à fração dominante internacional, porém em relação de dependência.
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Borracha em Banco da Amazônia S/A (Basa), criação da Zona Franca de Manaus e da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), por meio da reformulação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) (BECKER, 2005; PICOLI, 2006; PORTO-GONÇALVES, 2001a). Em 1970, é criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que também viria a desempenhar um importante papel nesta ocupação. Os órgãos que iriam servir para incentivar a ocupação nasceram com as seguintes funções: ampliar a rede de transporte e comunicação; ordenar o povoamento e a colonização; incentivar a agricultura e a pecuária; fazer o reaparelhamento das indústrias existentes e a criação de novas; incentivar os mecanismos para as exportações; dar condições sanitárias, de educação e habitação. Com essas estratégias, criaram mecanismos para viabilizar a concentração econômica através da expansão dos grupos organizados e colocar a região à disposição do mercado mundial (PICOLI, 2006, p. 37).
A sobre-exploração que ocorreu na Amazônia brasileira tinha como função sustentar o modelo de desenvolvimento que então ocorria, com profunda desigualdade social, fundado em um processo crescente de expropriação e, segundo Picoli (2006), tendo como base principal o trabalho de pessoas que foram para a região em busca “do mel prometido”. Na Amazônia, criou-se uma nova formação de trabalhadores, que pode ser identificada da seguinte maneira: de expropriados a marginalizados, de marginalizados a explorados, de explorados a superexplorados. Isso é possível na região através da presença dos grupos econômicos, impulsionados pelos incentivos fiscais do estado e pela forma capitalista organizada implantada na região. Trata-se do capitalismo de centro, que transfere suas estratégias para o capitalismo periférico. Os limites da exploração passam a ser regidos por meio do exército industrial de reserva, que é formado na região através da engenhosa fórmula que apura o processo de mais-valia (PICOLI, 2006, p. 43).
São formas ditas atrasadas que sustentam o almejado progresso. Afinal, nesse período, intensifica-se a identificação da Região Amazônica a
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uma imagem de atraso, em pleno período de exaltação da modernidade como sinônimo de industrialização, o que justifica a Zona Franca de Manaus e vários outros incentivos à instalação de indústrias na Amazônia, na maior parte com subsídios públicos diretos ou a isenção de impostos, ao tempo em que as práticas tradicionais (então sinônimos de atrasadas) são substituídas por esse desenvolvimento. Este binômio modernidade/atraso estará sempre imbricado na história da Amazônia, como nos mostra Porto-Gonçalves: Desta forma a borracha se inscrevia no coração das máquinas da nova etapa da Revolução Industrial e ainda fazia parte do novo símbolo da modernidade que era o automóvel. Todavia, em contraposição a esse pólo moderno da nova fase de desenvolvimento capitalista esteve associada uma das mais brutais formas de opressão e exploração de que se tem notícia (PORTO-GONÇALVES, 2001a, p. 88).
Afinado com a política federal, o governo do estado do Acre muito contribuiu para a vinda de pessoas “de fora” para se estabelecer na região. O governo de Wanderley Dantas (1971-1974) fez extensa propaganda no centro-sul do país, conclamando investidores a virem para o estado, onde haveria “terras extensas e baratas” e de alta fertilidade (ALLEGRETTI, 2002). A possibilidade de facilitação de exportação aos países vizinhos (Peru e Bolívia) e também para os Estados Unidos e Japão, com o plano de abertura das rodovias que interligariam o Acre ao Oceano Pacífico, também fez parte da propaganda governamental, mais uma vez alinhada ao plano federal (DUARTE, 1986). Beneficiando-se dos incentivos fiscais da Sudam e de benefícios oferecidos pelo governo estadual (serviços dos órgãos estatais, estrutura de apoio para implantação de projetos, apoio financeiro através do Banacre, etc.), a vinda dos empresários “paulistas”9 facilitou a vida dos seringalistas que, vendendo “suas” terras, saldaram dívidas Chamavam-se “paulistas” às pessoas de diferentes estados que vieram para o Acre nas décadas de 1960-1970, para ocupar as áreas propostas para agropecuária. Como explica Porto-Gonçalves (2003), eram os “de fora” e “de cima”, que substituíam os seringalistas na hierarquia de poder na região.
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contraídas com o Basa10. Além dos pecuaristas, especuladores também eram atraídos para a região pela perspectiva de futura valorização da terra em função dos investimentos que estavam sendo feitos em infraestrutura, com abertura e pavimentação de estradas. Como resultado, o local onde houve maior concentração de terras vendidas situa-se ao longo da BR-364 (que liga Porto Velho a Rio Branco) e da BR-317 (que liga Rio Branco a Assis Brasil). Os únicos que não foram beneficiados com essa história foram os que antes migraram para a região por incentivo estatal, os seringueiros. Assim, o papel assumido pelo Estado como organizador das relações em todas as fases de “desenvolvimento” da Região Amazônica foi marcado por uma forte presença na forma de financiamentos e de incentivos estatais, seja para grandes grupos econômicos, para particulares ou na instalação de grandes obras que vieram a favorecer empreiteiras e o acesso dos capitalistas à região (PICOLI, 2006; PORTO-GONÇALVES, 2001a). Em todas essas fases do desenvolvimento capitalista na Amazônia, o conflito entre as diferentes racionalidades e as disputas de modelos para a região, ou, mais ainda, a luta pela sobrevivência dos “de baixo”, se fizeram presentes de forma mais ou menos conhecidas, explícitas ou mobilizadas. Ações individuais, como as dos seringueiros que utilizavam estratégias para diminuição da exploração que sofriam, vendendo seu produto ao marreteiro11 escondidos do patrão, ou inOs créditos que haviam sido concedidos pelo Basa aos seringalistas, dando-lhes uma sobrevida, foram convertidos em dívidas difíceis de serem saldadas após o banco ter renunciado ao monopólio de compra e venda da borracha. Devemos lembrar que os seringalistas estavam acostumados a sobreviver em esquema de crédito. 11 Comerciante que percorria os seringais vendendo e comprando produtos dos seringueiros a preços mais baixos (no caso de compra) e mais altos (no caso de venda) do que os normalmente praticados (quando o comércio era feito pelos rios, esse comerciante era chamado de regatão). Apesar da injustiça na relação de compra e venda, havia uma dependência dos seringueiros em relação aos marreteiros, uma vez que estes representavam a possibilidade de comércio sem que precisassem ir até a cidade, cujo acesso era penoso e custoso. Na época da luta pela libertação do patrão, esse comerciante desempenhou um importante papel, uma vez que representava uma forma de não subordinação aos barracões e à quebra do sistema de aviamento. 10
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serindo utensílios que aumentavam o peso das pélas12 de borracha, ou movimentos organizados como a Cabanagem (1835-1840) e Movimento Seringueiro (décadas de 1970-1980) estão inseridos na mesma lógica de luta contra o capital, contra a exploração não apenas de uma região, mas de um grupo que se vê excluído do processo de decisão e inserido no processo de produção como os superexplorados por esse sistema. Assim, poderemos analisar o movimento que é protagonizado pelos seringueiros da Amazônia como inserido nesse sistema de superexploração, no qual o conflito de classes se externaliza na forma de embates entre seringueiros e fazendeiros. Estes últimos com o apoio, financiamento e proteção do Estado, que, por sua vez, está cada vez mais ligado a empréstimos internacionais. 2.1 A ExPLiCiTAÇÃo DoS CoNFLiToS NA REGiÃo Em plena vigência do regime ditatorial militar, a abertura de estradas na Região Amazônica, especificamente na Amazônia ocidental, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (Bird), evidenciou o conflito entre os diferentes modelos de desenvolvimento para a região. Como já nos referimos, as estradas trazem consigo um modelo de ocupação baseado em grandes projetos e exploração agropecuária que foram vivamente incentivados pelo governo federal e pelos governos estaduais, uma vez que representavam a possibilidade de integração da Amazônia ao resto do país, em plena vigência do “integrar para não entregar”. Entretanto, também trazem consigo o debate sobre este modelo de ocupação. A partir de 1970, quando se dá de forma mais intensa a ocupação dos seringais do Acre por empresas capitalistas de agropecuária, os conflitos fundiários também se intensificam, uma vez que os “paulistas” que lá chegaram precisavam “limpar a área” dos posseiros que lá estavam, para valorizar a terra no caso de venda, ou para implantação de seus interesses em agricultura e especialmente pecuária. Assim são chamadas as bolas de borracha maciça defumada produzidas no seringal, em um processo de defumação manual. 12
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Com esse encontro (pecuaristas-“paulistas”/seringueiros-posseiros13), evidenciaram-se dois projetos incompatíveis por princípio: o primeiro refere-se a um projeto de ocupação do solo em grandes latifúndios, aliado a uma exploração dos recursos que se baseia na derrubada da floresta para valorização da terra nua; o segundo baseia-se na ocupação da floresta e em sua exploração por intermédio do extrativismo aliado à pequena agricultura para subsistência. Estabelecia-se o conflito. A incompatibilidade dos dois modelos está evidenciada na presença ou ausência da floresta e, com ela, nos atores que serão beneficiados e permanecerão no local. No entanto, uma outra diferença também se faz notar: o primeiro modelo tem não apenas o aval, mas o incentivo governamental; enquanto que os protagonistas do segundo modelo contam apenas com os seus próprios braços e sua capacidade de articulação. Diferentes articulações, apoios e estratégias começaram a se configurar e ser adotados pelas diferentes partes nos conflitos estabelecidos. Duarte (1986) descreve os meios seguidos pelos fazendeiros para se livrar da presença indesejável dos posseiros-seringueiros. Expulsão por intimidação, uso direto da violência e oferta de indenizações irrisórias fizeram parte das estratégias de retirada das pessoas que estavam nesses seringais, provando definitivamente que o Acre não fazia parte desse vazio demográfico que era propagado. A chegada de jagunços ao estado marcou profundamente a mudança na configuração da sociedade local, especialmente nos lugares onde os conflitos estavam mais acirrados. Ameaças passaram a fazer parte do cotidiano e ao mesmo tempo explicitava-se a ausência (ou o posicionamento) do Estado, em sua forma coercitiva, a estes desmandos ocasionados por quem, na realidade, detinha o poder na região. Por outro lado, os seringueiros adotaram formas de resistência de acordo com a situação em que se encontravam. Resignação ao aceitar as indenizações 13 A denominação pela qual eram tratados os seringueiros também representava sua situação e a forma como eram interpretados na sociedade. Posseiros, colonos, ocupantes, seringueiros, trabalhadores, etc., cada uma das denominações carrega em si a marca de seu lugar no mundo e no jogo de poder existente. Ao chamá-los de posseiros, a Contag fazia uma alusão direta à obrigação de indenização ao seringueiro que, após a saída do seringalista, continuou na terra por mais de um ano (BRASIL, 1964).
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injustas e intimidações, confronto com os fazendeiros e jagunços na resistência à expulsão, e busca incessante da polícia em seu apoio fizeram parte das estratégias adotadas pelos seringueiros até perceberem que estava na organização sua única chance, e terem os empates como principal tática. 3. oS SERiNGUEiRoS SE oRGANiZAM Refletindo uma situação presente no resto do país, de reconfiguração da igreja e do movimento sindical (SADER, 1988), a Igreja desempenhou um papel primordial no apoio e organização dos seringueiros. Em uma época em que a teologia da libertação assumia uma grande repercussão na área rural do país, com a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e com uma discussão que ligava a justiça divina à justiça social, emergiram muitas lideranças do Movimento. Veio da Igreja o primeiro apoio explícito à luta dos seringueiros, o que fez com que em seus salões fossem criadas as primeiras estruturas de organização de classe que se tem notícia na região: os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs). Com o apoio da Igreja e da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag)14, em 1975 foram criados os sindicatos de Brasileia e Sena Madureira; em 1977, o de Xapuri; e até 1980 já somavam oito sindicatos criados no Acre. Inicia-se uma nova fase de articulação para os seringueiros. Com a criação dos STRs, além de uma representação de classe, passa-se a ter uma estrutura de intermediação com o governo e os “patrões”, e uma ligação com outros movimentos que estavam ocorrendo no Brasil, dando maior abrangência ao movimento desses trabalhadores da floresta. Assim, a emergência do sindicalismo rural no estado do Acre assumiu um papel primordial na luta dos seringueiros, que chegaram a representar a categoria majoritária dentro do STR de Xapuri. A existência dessa instância de organização deu uma outra dimensão à luta empreendida nesta parte da Amazônia, reforçando o caráter político da disputa que cada vez mais explicitava a incompatibilidade entre dois modelos de desenvolvimento, de progresso, e trazendo à 14
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Uma delegacia da Contag havia se instalado em Rio Branco em 1975.
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tona, sem máscaras e sem subterfúgios, a existência de dois projetos para a Amazônia. Um, que reconhecia a existência de pessoas que detinham o conhecimento sobre a mesma, devendo participar das decisões; e outro, que considerava a Amazônia um vazio demográfico, para onde políticas precisavam ser elaboradas por Brasília e a construção precisava ser feita pelos “de fora”, pelos paulistas, uma vez que os amazônidas, enxergados com as lentes do colonialismo, eram, quando considerados, tidos como atrasados. Ao lado e incentivados pela Igreja, os STRs seriam os principais interlocutores dos seringueiros junto ao Estado. Porto-Gonçalves (2003) ressalta o duplo papel assumido pelo sindicato na ligação dos seringueiros com os outros trabalhadores, na construção de uma identidade de classe e, ao mesmo tempo, em uma situação de contraposição aos que questionavam essa identidade. O autor destaca ainda a importância dessas entidades na nova conformação/criação de um espaço público no Acre, onde novos atores se colocavam e forçavam a relocalização dos atores até então presentes ou visíveis. Pode-se, assim, afirmar que a presença de um sindicalismo forte no Acre, após 1975, colocou uma demanda explícita para que o Estado exercesse o monopólio da violência e não a justiça feita pelas próprias mãos dos próprios protagonistas, sem mediação. Há, assim, um espaço público sendo, de fato, construído (PORTO-GONÇALVES, 2003, p. 453).
A situação sindical no Acre refletia o sindicalismo nacional, com suas disputas por hegemonia no interior das entidades e, com isso, seus diferentes posicionamentos ante a resolução dos conflitos e a vinculação político-partidária (PAULA, 2003), o que influenciou diferentes posicionamentos diante do Movimento Seringueiro e dos novos mediadores que surgiriam na década de 1990 (SILVA, Mauro, 2001). Nesse mesmo tempo, os sindicatos começavam a enfrentar modificações em sua composição e demandas, ocasionadas pela chegada e sindicalização dos migrantes que chegavam do Sul para trabalhar na terra, e pelas pessoas que assumiam posições assalariadas nas fazendas. Segundo Paula (2003, p. 129) “[...] ao entrarem em cena os colonos do centro-sul do país, instaurou-se uma outra ordem de problemas a ser enfren-
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tada pelo sindicalismo: recriar na diversidade cultural um coletivo articulado em torno de interesses comuns”. Assim, a diversificação observada na sociedade civil acreana estava representada no sindicato com seus desafios e consequências. Compondo o espaço de lutas na sociedade civil, os “de cima” também se organizaram, reagindo à organização dos seringueiros e dos outros movimentos pela terra. Na medida em que os trabalhadores se organizavam na forma de sindicatos, o patronato/empresariado também buscava sua organização na forma de associações, sindicatos, e, especialmente após a abertura democrática, na eleição de representantes para o Legislativo e Executivo estadual e federal que representassem seus interesses. Sant’ana (1988) relata como alianças foram feitas (implícita ou explicitamente) de forma a garantir a representatividade dos interesses do poder capitalista em expansão no estado do Acre, na Assembleia Constituinte; e, da mesma forma, como esses grupos disputavam a hegemonia na sociedade civil. O autor retrata as estratégias adotadas pelo empresariado do setor agropecuário para formação de representantes que defendam publicamente sua ideologia e um modelo de desenvolvimento para o Acre. Face à necessidade de criar mecanismos para a viabilização de seu projeto de classe, quer nos aspectos afirmativos quer nas medidas que precisam ser abortadas, o patronato acreano, sobretudo a fração empresarial-latifundiária, parece ter encontrado na via política a forma mais efetiva de fazê-lo. Por outro lado, integrando-se a correntes de renovação da entidade corporativa oficial, a CNA15, e aos movimentos nacionais de empresários rurais, tipo a Frente Ampla Agropecuária e o Centro Empresarial Brasileiro, cujo propósito comum é afirmar e consolidar na organização social brasileira os dogmas burgueses – liberdade econômica e a propriedade privada capitalista (SANT’ANA, 1988, p. 257).
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) é uma entidade sindical de grau superior, reconhecida pelo Decreto nº 53.516, de 31/1/64, publicado no Diário Oficial da União de 5/2/64, constituída pela categoria econômica dos ramos da agricultura, da pecuária, do extrativismo rural, da pesca, da silvicultura e da agroindústria (Fonte: http://www.cna.org.br/). 15
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Respondendo aos inúmeros conflitos de (pela) terra que começam a ganhar visibilidade e contrapondo-se ao Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), é criada, em 1985, a União Democrática Ruralista, e em 1988 organiza-se no Acre (CALAÇA, 1993), reunindo os fazendeiros que se achavam ameaçados (e ameaçavam) pelo (o) movimento crescente dos seringueiros. Na década de 1980, a violência registrada contra as lideranças do Movimento foram características desse momento de ameaça de perda da hegemonia e ao mesmo tempo explicitava a resistência existente na floresta. 3.1 ESTRATÉGiAS DE RESiSTÊNCiA E LUTA: NoVAS APRoxiMAÇõES Com o recrudescimento da violência na floresta, as estratégias se intensificaram e a necessidade de união dos trabalhadores mostrouse a única arma capaz de conter a devastação que se impunha à floresta, e consequentemente aos seringueiros. Da criação dos STRs aos primeiros empates não demorou muito. Colocando-se juntamente com as crianças e as mulheres diante das árvores a serem derrubadas, os seringueiros, ao tentar empatar o desmatamento, conseguiam ainda explicitar as relações que então existiam na floresta. As tropas policiais eram enviadas para os locais, revelando o lugar que o Estado ocupava e quais interesses defendia. Paula (1998) destaca a importância desse fato para revelar os antagonismos de classe ali presentes e tornar os seringueiros mais do que uma entidade funcional (extrator de látex), uma entidade política em oposição aos fazendeiros, uma vez que representantes de interesses de classe distinta. Com uma técnica pacífica de resistência, os seringueiros explicitavam as relações que ocorriam nos seringais da forma mais clara possível: no âmbito das lutas de classe, ambientados nos valores da sociedade capitalista. Ao colocar-se ao lado dos fazendeiros, o Estado assume a defesa de um princípio fundamental na sociedade capitalista que é a defesa da propriedade privada. Entretanto, para o seringueiro, o que estava em jogo era o direito de uso, uma vez que a terra valia não por seu valor em si, e sim pelo uso que se podia fazer dela. Segundo esse entendimento, teria direito à terra quem
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dela fizesse uso, quem nela estivesse (DUARTE, 1986; SILVA, Marina, 2001), demarcando uma racionalidade diferenciada da racionalidade em voga nos marcos do capitalismo. A forma de “demarcação” do espaço utilizada pelos seringueiros, estabelecendo os limites de sua área pelos rios, igarapés, estradas de seringa e castanha, demonstrava o significado emprestado à floresta. Ameaçados por uma política governamental de ocupação da Amazônia, com base em um modelo de desenvolvimento baseado na exploração agropecuária, os seringueiros impuseram-se como sujeitos coletivos de construção de uma nova política para a Amazônia. As palavras de Chauí (1988), apesar de não se referirem à distância geográfica, refletem perfeitamente o movimento ocorrido entre sujeitos que, antes dispersos na floresta, uniram-se por uma mesma luta, motivados e orientados por uma vida comum: O novo sujeito é social; são os movimentos sociais populares em cujo interior indivíduos, até então dispersos e privatizados, passam a definir-se, a reconhecer-se mutuamente, a decidir-se e agir em conjunto e a redefinir-se a cada efeito resultante das decisões e atividades realizadas (CHAUÍ, 1988, p. 10).
Inicialmente, com o STR de Brasileia, e seu principal sujeito, Wilson Pinheiro, e posteriormente com Chico Mendes à frente do STR de Xapuri, os seringueiros assumiam a luta dos trabalhadores (e se reconheciam e eram reconhecidos como tal), levando sua reivindicação de uma reforma agrária que contemplasse o contexto sociocultural dos povos da floresta, em um processo nacional-regionalizado, para o Encontro dos Trabalhadores Rurais, realizado em Brasília, em 1984 (PORTO-GONÇALVES, 2001b). A construção de espaços no meio sindical também foi uma conquista para os seringueiros, que viram a necessidade de reconhecimento de suas especificidades, inclusive no que se referia à posse da terra. Participando da criação da Fetacre e da CUT, esta categoria “seringueiros” ia mostrando que os chamados trabalhadores rurais eram mais diversos do que até então se acreditava nas lutas envolvendo o centro-sul do país.
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Diferentes estratégias de negociação com o Estado se impõem aos seringueiros. Inicialmente, orientados pela Contag, os seringueiros assumem a política do recebimento de lote como “indenização” pela área a ser desocupada, onde os conflitos agrários eram resolvidos a partir do assentamento dos extrativistas em áreas destinadas pelo Incra, correspondentes ao mesmo tamanho/modelo que se aplicava no resto do país (em torno de 50 a 150 hectares). Entretanto, com esta estratégia, eles não tinham garantidas as condições de permanência no local, uma vez que para a prática extrativista havia a necessidade de uma área de floresta que o loteamento não garantia. Além disso, muitos lotes foram estabelecidos onde não havia seringueiras ou castanheiras, uma vez que esse fator não era considerado na demarcação. Como resultado dessa política muitos seringueiros que se assentaram terminaram por migrar para a cidade, instalando-se nas periferias, ou vendendo seu lote e transformando-se em comerciantes ou peões em fazendas. Assim, empreendeu-se a luta por uma mudança na forma de “assentamento”, o que corresponderia a uma luta pela mudança nas leis, baseada em uma construção em cima do real, do vivido e com as pessoas “de baixo” que viviam nas áreas. Ao invés do cumprimento das leis, lutava-se agora para que elas garantissem a satisfação e os interesses dos seringueiros (PAULA, 2003). Com essa nova estratégia observou-se pontos de atrito com a orientação da Contag. Essa foi uma outra luta empreendida pelos seringueiros no Movimento Sindical Rural que extrapolava, inclusive, os limites do estado do Acre e da Amazônia. No 4° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, organizado em Brasília pela Contag, em maio de 1985, a proposta defendida por Chico Mendes refletia a especificidade nas necessidades dos seringueiros da Amazônia, quando defendia “um modelo específico de Reforma Agrária para a Região Amazônica, principalmente na área extrativista para o seringueiro que após 100 anos de resistência e derramamento de sangue tem a sua existência ameaçada” (Anais do 4° CNTR, apud ALLEGRETTI, 2002, p. 407).
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A liderança de Chico Mendes16 no Sindicato de Xapuri foi essencial na construção de ligações “para fora”, aumentando as escalas do Movimento e proporcionando a realização de alianças. Sendo socialista (MENDES, 1989), Chico Mendes também emprestaria ao movimento sindical acreano muito dessa característica, valorizando questões como organização e formação do trabalhador, autonomia e união de lutas dos trabalhadores (SILVA, Mauro, 2001). 3.2 PRiMEiRo ENCoNTRo NACioNAL DoS SERiNGUEiRoS O primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros ocorreu em Brasília, de 11 a 16 de outubro de 1985. Em uma articulação que envolveu parceiros locais, internacionais (ONGs estrangeiras financiaram parte do encontro) e a equipe do Projeto Interação (Fundação Pró-Memória/SEC-MEC)17, os seringueiros conseguiram, além de atingir um grau de visibilidade dantes inexistente, realizar reuniões preparatórias em vários estados da Amazônia (Acre, Rondônia, Amazonas, Amapá), que fortaleceram sua articulação nesses locais. O Encontro teve como principais resultados: a visibilidade conseguida pelo Movimento, a formulação de uma proposta de reforma agrária para a Amazônia e a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Foi a partir daí que se iniciaram as articulações (e vinculações) com o movimento ambientalista, por meio, principalmente, de sua fração internacional. A importância da realização desse primeiro Encontro em Brasília se dá na medida em que são levados para o centro do poder nacional, onde as decisões são tomadas, aqueles que foram esquecidos por este 16 Em termos gramscianos, Chico Mendes deve ser considerado um importante intelectual orgânico no Movimento Seringueiro. Formou-se no interior deste grupo social, dando-lhe “homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, 2006, p. 15). 17 O Projeto Interação entre Educação Básica e Contextos Culturais Específicos (Projeto Interação) foi uma experiência ligada à Secretaria de Cultura do MEC, posteriormente Ministério da Cultura, que, com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação apoiava técnica e financeiramente projetos vinculados à educação e cultura (OLIVEIRA, 2003).
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poder. O reconhecimento da existência dos seringueiros obrigatoriamente expõe a invisibilidade a que esses trabalhadores estavam submetidos18 e explicita a alienação presente no processo de divisão de trabalho capitalista, em que a separação do trabalhador dos meios de produção remete-os a uma invisibilidade. Está expresso no documento do I Encontro Nacional dos Seringueiros (I ENS) que os seringueiros tinham uma proposta de desenvolvimento para a Amazônia e principalmente que não aceitariam modelos implementados à sua revelia e que reproduzissem as fórmulas já muito conhecidas destes trabalhadores. Foi firmada a necessidade de reconhecimento do saber tradicionalmente adquirido por aqueles que convivem com a floresta. Cito trechos referentes ao item “Desenvolvimento da Amazônia” (CNS, 1985): 1. Exigimos uma política de desenvolvimento para a Amazônia que atenda aos interesses dos seringueiros e que respeite os nossos direitos. Não aceitamos uma política para o desenvolvimento da Amazônia que favoreça as grandes empresas que exploram e massacram trabalhadores e destroem a natureza. 2. Não somos contra a tecnologia, desde que ela esteja a serviço nosso e não ignore nosso saber, nossas experiências, nossos interesses e nossos direitos. Queremos que seja respeitada nossa cultura e que seja respeitado o modo de viver dos habitantes da floresta amazônica.
Também foi nesse Encontro que, reforçando a tese defendida e aprovada no 4° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (1985), elaborou-se o que viria a ser a base para a proposta das reservas extra18 É importante salientar que essa invisibilidade não se dava apenas em nível nacional. Porto-Gonçalves (2003) relata como a imprensa local, inicialmente, ignorou os conflitos de terra existentes, posteriormente posicionando-se em favor dos pecuaristas e mostrando integrar o bloco de poder local. Somente após a visibilidade conseguida pelos seringueiros e sua luta em outras instâncias, passaram a publicar matérias em que reconheciam a existência dos seringueiros autônomos e demonstravam a situação que verdadeiramente estava ocorrendo no estado. Vale lembrar a presença de jornais de resistência, como Varadouro – Jornal das selvas, que circulou no período de 1977-1981 e representava uma voz dos “de baixo”.
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tivistas, publicizando-se pela primeira vez esta denominação. Allegretti (2002) relata que a ideia de uma área reservada para os extrativistas surgiu em um encontro preparatório para o I ENS. Inspirados nas terras indígenas, os seringueiros de Rondônia elaboraram uma proposta que seria levada ao Encontro, divulgada e inserida no documento final como parte de suas reivindicações a respeito da Reforma Agrária. Eis o que diz o documento no item intitulado “Reforma Agrária” (CNS, 1985, grifos nossos): 1. Desapropriação dos seringais nativos. 2. Que as colocações ocupadas pelos seringueiros sejam marcadas pelos próprios seringueiros, conforme as estradas de seringa. 3. Não divisão das terras em lotes. 4. Definição das áreas ocupadas por seringueiros como reservas extrativistas assegurado seu uso pelos seringueiros. 5. Que não haja a indenização das áreas desapropriadas, não recaindo seu custo sobre os seringueiros. 6. Que sejam respeitadas as decisões do 4º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, no que diz respeito a um modelo espe cífico de Reforma Agrária para a Amazônia, que garanta um mí nimo de 300 hectares e um máximo de 500 hectares por colocação, obedecendo à realidade extrativista da região. 7. Que os seringueiros tenham assegurado o direito de enviar seus delegados à Assembléia Nacional Constituinte para defender uma legislação florestal e fundiária de acordo com suas necessidades específicas.
Alguns resultados deste Encontro, no que diz respeito à articulação e às alianças que o Movimento estava consolidando, merecem ser citados: em nível nacional, especialmente na área acadêmica, puderam ser sentidos pela criação do Núcleo de Estudos Amazônicos na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade de São Paulo (USP) e pelo convite efetuado pelo reitor da Universidade de Brasília (Cristovam Buarque) para que Jaime da Silva Araújo, seringueiro e presidente do STR de Novo Aripuanã/Amazonas, permanecesse por um ano como professor-visitante, dando aulas e palestras na Universidade, convite concretizado em 1987 (ALLEGRETTI, 2002). Em nível internacional, a aproximação também foi consolidada, em função especialmente das
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articulações feitas previamente ao Encontro e da participação de um documentarista da televisão de meio ambiente mantida pelo Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (Adrian Cowell) e de um antropólogo que mantinha ações junto a instituições não governamentais de direitos humanos e de meio ambiente (Steve Schwartzman), que viriam a influenciar de forma decisiva os próximos contatos do Movimento (ALLEGRETTI, 2002). Por sua vez, a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros viria representar uma modificação na nova estrutura de intermediações e estabelecer novas tensões no Movimento, uma vez que, nascido pela necessidade de afirmação perante “o outro”, inicia o processo de sua institucionalização, com todas as tensões que isto pode acarretar. Lembramos Houtart (2006) quando alerta para o perigo da institucionalização dos movimentos, o que pode transformar “trabalhadores em luta” em “burocracias” que passam a obedecer à agenda dos adversários e abandonam o projeto de transformação radical do sistema. O autor destaca a existência de uma “permanente dialética entre metas e organização, cujo perigo potencial sempre presente é a possibilidade de que a lógica de reprodução se imponha sobre as exigências dos objetivos buscados” (HOUTART, 2006, p. 438, tradução nossa). Importante resgatar que o CNS surge em um tensionamento com o status quo, uma vez que os seringueiros buscavam confrontar o Conselho Nacional da Borracha, que não os contemplava em sua composição (ALLEGRETTI, 2002). No entanto, uma vez criado, também iria deparar-se com o desafio de articulação com outros entes (seus e dos outros), como veremos adiante. 3.3 o CoNSELHo NACioNAL DoS SERiNGUEiRoS E NoVAS ALiANÇAS A criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), a partir do I Encontro Nacional dos Seringueiros (ENS), sem dúvida marcou um momento importante do Movimento. Vejamos, nas palavras de Chico Mendes, o que comportava a ideia do CNS, em seu papel de articulação: O Conselho Nacional dos Seringueiros não pretendia e nem pretende ser um sindicato paralelo, mas uma entidade de seringueiros, porque os seringueiros nunca foram reconhecidos como classe [...] As outras clas-
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ses todas têm o seu reconhecimento como classe, o seringueiro não. [...] Então, uma das razões do Conselho Nacional dos Seringueiros é fazer reconhecer o seringueiro como uma classe que já deu sua contribuição, que luta e que tem muita luta importante, luta por um objetivo muito importante que é a defesa da Amazônia (MENDES, 1989, p. 26).
Nesse mesmo depoimento, Chico Mendes descreve como forma de organização e ampliação da luta do Conselho a discussão com os seringueiros, principalmente nas comunidades já organizadas, nas delegacias sindicais, demonstrando a importância do sindicato para o próprio Conselho Nacional dos Seringueiros. Apesar de nascer em uma situação de enfrentamento com as próprias entidades de representação classista (CUT, Contag) na necessidade de reconhecimento do seringueiro como uma classe e a dificuldade dessas entidades nessa interlocução, o CNS não negava o sindicato nem a luta sindical. No entanto, o CNS viria a assumir, gradativamente e por uma série de conjunturas políticas, o papel de principal interlocutor dos seringueiros na construção das políticas públicas, substituindo o papel antes ocupado pelos sindicatos (PAULA, 1998; SILVA, Mauro, 2001), o que representou uma tensão a ser enfrentada pelos seringueiros. A importância principal da criação do Conselho manifestou-se em sua capacidade de dar visibilidade à luta dos seringueiros, uma vez que trouxe o debate para um circuito nacional e internacional. Organizou-se em regionais, onde havia uma maior mobilização dos seringueiros, e aproximou-se cada vez mais do movimento ambientalista, assumindo algumas de suas bandeiras, como veremos adiante. Ao mesmo tempo, também representava um contraponto às organizações de trabalhadores rurais, ao assumir a especificidade dos seringueiros como grupo de trabalhadores. Ou seja: afirmavam a sua individualidade, dentro de um grupo maior, e firmavam-se como mediadores desse grupo (PORTO-GONÇALVES, 2003). Após o I ENS, os seringueiros promoveram reuniões municipais e regionais para discutir e estruturar o CNS, culminando na realização do primeiro encontro do CNS, em Rio Branco, em março de 1986, onde foram definidas as prioridades regionais e nacionais para o ano de 1986 (ALLEGRETTI, 2002), e que não diferiam, em substância, das deliberações do I ENS. Entretanto precisaram também lidar com novas
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demandas, que coincidiam com a visibilidade que o Movimento atingia, assim como começaram a deparar-se com escolhas tais como: atuar apenas na resistência, ou também na captação de recursos e implementação de projetos (ALMEIDA, 2004). Dentre as novas demandas que se impunham ao Movimento estava seu viés ambientalista. Mary Allegretti, na época assessora dos seringueiros por meio do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) e uma das principais articuladoras com o movimento ambientalista internacional, relata como o envolvimento de Chico Mendes com organizações governamentais e não governamentais de Brasília por ocasião da preparação do I Encontro influenciou na inserção de argumentos ambientais em seu discurso, procurando associar a defesa da posse da terra aos seringueiros à necessidade de proteção das florestas. Embalado pelo momento mundial de grandes mobilizações do movimento ambientalista internacional, os seringueiros viram-se inseridos em uma “rede internacional”, como citado por Allegretti (2002): As conexões internacionais foram rapidamente estabelecidas. Na semana seguinte ao Encontro Nacional dos Seringueiros, no dia 28 de outubro de 1985, teve início, em São Paulo, audiências públicas organizadas pela World Commission on Environment and Development, presidida por Gro Harlem Brundtland, ex-primeira ministra, e ex-ministra de Meio Ambiente da Noruega. A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento era um organismo novo e autônomo, criado em 1984, com o objetivo de examinar os problemas críticos sobre meio ambiente e desenvolvimento e propor à comunidade internacional melhores meios e vias para resolvê-los. Por iniciativa de Adrian Cowell, o recém-criado Conselho Nacional dos Seringueiros foi convidado a participar das audiências públicas e enviou dois representantes, o presidente da Comissão Provisória, Jaime da Silva Araújo e José Saraiva, presidente da Fetacre, cujas intervenções foram filmadas (ALLEGRETTI, 2002, p. 450).
A aliança com o movimento ambientalista trouxe para o movimento dos seringueiros a dimensão “de fora”, expressa tanto internamente (repercussão nos outros estados da federação) quanto externamente (ar-
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ticulação com ONGs internacionais), levando a uma identificação do Movimento com a causa ambiental, que, para eles, era intrinsecamente ligada à questão social. Não havia uma relação de subordinação entre os seringueiros e os ambientalistas. Ao contrário: os seringueiros foram úteis aos ambientalistas, dando-lhes “uma causa” com a qual pudessem basear e internalizar no Brasil suas reivindicações de paralisação de derrubada da floresta, na conservação ambiental. Mas, ao mesmo tempo, os ambientalistas emprestavam ao Movimento uma visibilidade que até então eles não haviam conseguido, extrapolando a questão agrária, que era fortemente reprimida na época, e aliando-se à questão ambiental, em evidência no período por conta dos primeiros anúncios de possíveis tragédias ambientais. Portanto, cada um ao seu modo tirava proveito da relação, desde que resguardando-se sua devida autonomia e tendo claro limite da atuação de um no principal interesse do outro. É importante destacar que, apesar de ter se aproveitado do discurso ambientalista, o Movimento Seringueiro estava baseado na luta contra a ameaça de um modo de vida existente, que, por sua vez, estava irremediavelmente ligado à floresta. Mais do que proteger o “verde”, os seringueiros e sindicalistas buscavam assegurar as suas condições materiais de existência e reprodução, o que dá sentido a muitas das decisões tomadas pelo Movimento durante seu percurso, assim como às articulações firmadas. Da mesma forma que os seringueiros foram a “porta de entrada” dos ambientalistas para a Amazônia, os ambientalistas foram a “porta de saída” dos seringueiros da Amazônia. Através desta articulação, Chico Mendes foi convidado a falar na reunião do BID em Miami (1987), denunciando os impactos de projetos financiados com recursos internacionais para a Amazônia e colaborando com as pressões de ONGs internacionais para a revisão dos termos de financiamentos dos bancos multilaterais a obras de infraestrutura em países ditos em desenvolvimento19 (ALLEGRETTI, 2002; MENDES, 1989). O CNS tornou-se um interlocutor a ser considerado nas negociações que daí em diante ocorreram. Já havia sido suspenso um financiamento que seria executado pelo governo de Rondônia, o Polonoroeste, por não obediência das cláusulas de condicionantes ambientais (ALLEGRETTI, 2002).
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4. CoNSiDERAÇõES FiNAiS As Reservas Extrativistas apontam claramente para novos horizontes onde Estado Nacional e relação planetária não necessariamente sejam excludentes. Que as fronteiras que os seringueiros conseguiram grafar não suprimam a memória dos fronts que a ensejaram. Que o produto não sufoque o produtor; a criatura o criador. (PORTO-GONÇALVES, 2003, p. 578)
A configuração do Movimento Seringueiro se dá no decorrer de processos societários de diferentes implicações no Brasil: ele se consolidou em um Estado sob ditadura (anos 1970-1980) e se institucionalizou em um período de abertura democrática (1985). Estes diferentes períodos marcam as movimentações ocorridas, assim como demarcam a instituição de conceitos e modificações estruturais na sociedade brasileira que vão definir o futuro do Movimento. A tensão existente entre os diferentes modos de se pensar o desenvolvimento da Amazônia estava clara para o Movimento Seringueiro, assim como a necessidade de se firmar como interlocutor na construção e consolidação de políticas para a região. A luta pela permanência na floresta passa a ser uma luta pela sobrevivência. Se antes a disputa era com o patrão, pelo melhor preço, pela liberdade de vender para qualquer comprador (seringueiro liberto), por melhores condições de vida na floresta, passou-se a tratar da luta pela permanência na floresta, entendida como seu local de reprodução social. Assim, todo o processo que originou a construção do conceito de Reservas Extrativistas está impregnado do “lugar” que estes seringueiros ocuparam na sociedade capitalista e esteve permeado pelo papel que o Estado possui nessa mesma sociedade. Na descrição das condições de ocupação da Amazônia e do Acre nos períodos que vão do final do século XIX a meados do século XX, percebemos como diferentes formas de ocupação do espaço foram-se instituindo com a ingerência direta do governo, a serviço das classes dominantes. Ao relacionar a constituição do Movimento Seringueiro com as transformações societárias que estavam ocorrendo na Amazônia, desejamos contribuir para a explicitação das lutas que resultaram nas Reservas Extrativistas, para que essa conquista e os esforços em sua im-
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plementação não sirvam para ocultar os conflitos que lhes deram origem, comprometendo seus princípios contra-hegemônicos. As Resex são importantes para demonstrar a possibilidade de políticas integradas que aliem conservação ambiental e justiça social como necessidades inseparáveis, mas o Movimento Seringueiro foi fundamental por representar, nas décadas de 1970 e 1980, uma experiência concreta de um grupo social que, sendo atingido por estratégias de desenvolvimento que não o contemplavam e ameaçavam seu modo de vida, organizou-se, e com estratégias de resistência, lutas e alianças conseguiu influenciar a construção de políticas públicas baseadas em suas demandas e democraticamente construídas.
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iMAGENS oBSESSiVAS EM AUGUSTo DoS ANJoS Ivan Cavalcanti Proenรงa
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Alguns aspectos inusitados envolveram a produção literária de Augusto dos Anjos – apenas um livro publicado: Eu, 1912, edição financiada pelo próprio e por seu irmão, já que nenhuma editora quis publicá-lo. Hoje, segundo levantamentos, em gênero poesia, o livro mais reeditado em Língua Portuguesa no Brasil. A crítica de época, além da infeliz “sentença” de Olavo Bilac, também foi impiedosa com o autor (ou o ignorou). Augusto, desempregado, passou necessidade quando se deslocou da Paraíba (terra natal) para o Rio, professor que era de Geografia e depois de Português, fazendo ponto em certos espaços da cidade para tentar alunos avulsos. Morreu em Leopoldina (Minas Gerais), esquecido, ignorado, mas lecionando e, pelo menos, como dizia, sem depender da “misericórdia alheia”. Tudo que aqui revelo remeterá o leitor à essência do meu Ensaio sobre o poeta. O Eu de Augusto, evidente que (compreensivelmente) revela as angústias, o desencanto, o em vão, um trágico fatalismo, o não crer, a miséria humana: o que passou e sofreu em vida. Ainda assim, com tais imagens ora interativas, ora recorrentes, sempre obsessivas, aquele Eu se mostrará nos não ditos, na conotação, no sub (sub mesmo) entendimento, pleno daquela ânsia de “ser Cristo para sacrificar-me pelos homens!”. E ao longo dos sonetos (basicamente) aquele mesmo Eu se transfere a Nós enquanto solidariedade pungente diante da humanidade que sofre, padece e não encontra alento em vida. Augusto, o dos Anjos. Some unique events pervade the literary production of Augusto dos Anjos – just one single book published: Eu (Me), a 1912 edition funded by the author himself and his brother as the book arose no interest from publishers. According to recent surveys, this is the Portuguese language poetry book that counts the largest number of re-editions in Brazil. In addition to Olavo Bilac’s unfortunate “sentence”, book reviewers at the time also were ruthless with the author (or quite simply ignored him). Unemployed, Augusto faced hardship as he moved from Paraíba (his home state) to Rio. As a result, the geography (and later Portuguese) teacher then took to hanging out in some areas around the city in an attempt to capture some students. He died in Leopoldina (Minas Gerais), forgotten, ignored, but still giving lessons and at least, as he used to say, without depending on “other people’s mercy”. All of my thoughts here will take the reader right into the very core of my essay on the poet. Obviously (and understandably), Augusto’s Eu reveals the author’s anxieties, disillusionment, vainness, tragic fatalism, disbelief, and human misery: what he went through and suffered in life. Yet, despite such either interactive or recurrent and always obsessive images, that Eu will show through the untold, connotation, and implied (indeed) understanding, filled with overwhelming anxiety over the thought of “being Christlike and sacrificing myself for mankind”. And all along the sonnets, that same (primarily) Eu is transferred to Us as a feeling of poignant solidarity towards suffering, enduring human beings that are left painfully helpless in life. Augusto, dos Anjos, indeed.
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“Uma vontade absurda de ser Cristo Para sacrificar-me pelos homens!” .................................................................... “Grito e se grito é para que meu grito Seja a revelação deste Infinito Que eu trago encarcerado na minh’alma!” .................................................................... “Eu sou aquele que ficou sozinho Cantando sobre os ossos do caminho A poesia de tudo quanto é morto!” A.A.
UMA CoNSTATAÇÃo Curioso, no mínimo, o que se passa com o poeta Augusto dos Anjos. Reconhecidamente, poeta de difícil, muito complexo, vocabulário, a exigir conhecimentos ora puramente científicos, ora filosóficos, para justa e ampla compreensão de seus escritos, poeta cujos versos acabam resultando, por vezes, herméticos e de sofrida “tradução”, este mesmo poeta acaba se transformando em escritor dos mais conhecidos, muito lido, e, aqui o mais surpreendente, “decorado”, declamado pelo público leitor (ou não). Do intelectual ao superficialmente interessado em poesia, do professor e estudante (agora menos, é verdade) ao pacato funcionário público, da poetisa à dona de casa. Encontram-se apaixonados e conhecedores da obra de Augusto. E mais: sabendo-lhes os versos mais intrincados, capazes de repeti-los e dizê-los sem vacilações ou traições da memória. Aí, é claro, fica sugerido desde logo que o fator musicalidade, intensa força sonora dos versos do poeta favorecem o memorizá-los. Mas, por outro lado, o exótico, o esdrúxulo, o estranho (!) deste mesmo vocabulário e principalmente das ideias de nosso poeta, amargo e cultuando a negação, também devem favorecer interesse e debruçamento sobre sua poesia. E tal não ocorreu apenas à época (ou melhor, à época até que tais “audácias” o incompatibilizaram com o espírito, o “clima” vigente em relação à arte poética), o que se observa é que sua poesia atravessou o período Pré-Modernista, a fase
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do Sincretismo literário da virada de século, resistiu ao Modernismo e sua força desmitificadora e de renovação de conceitos e técnicas, resistiu às etapas posteriores da Literatura brasileira, à aventura de 1945 (neoparnasiana), às Vanguardas (?) do Concretismo e suas variantes, e do Processo, e resiste hoje aos experimentalismos e Modernidades ou pós-Modernos (Ah, Mário, como ficou chato mesmo, isso de Moderno...), enfim resistiu ao tempo e às transformações. A prova é a constante publicação, hoje, de poemas de Augusto em suplementos, revistas, jornais (estudantis ou não), e a publicação de estudos sobre o poeta, ou de Antologias suas comentadas ou não, ou de sua Obra completa, como a recente edição da Civilização Brasileira. Talvez esta constatação, pura e simples, já signifique. Isto é, bastaria, em princípio, no sentido de qualquer apreciação inicial da poesia de Augusto dos Anjos: deve haver realmente motivos ponderáveis para que tal ocorra. Erraram Editora, críticos, colegas, à época da publicação de sua obra, financiada pelo próprio autor e pelo irmão? Ou “errou” Augusto em viver em tal época? Mas, também, se surgisse em épocas posteriores, mais recentes, como seria recebido? Afinal, quais seriam época e momento adequados a esse poeta, sem estilo típico (!), sem vínculos a preceitos e normas de (qualquer) época, sem identificação com grupos ou ismos? O fato é que morreu Augusto, sem conhecer qualquer tipo de manifestação à altura de sua obra, sem saber (ou pressentir?) que, de fato, era relevante seu trabalho como criador. À amargura da vida, aos sofrimentos por que passou, ainda se somou este fato, o de sua obra literária não ter sido reconhecida. Mistérios do fazer artístico, do universo de quem cria. UM SÓ LiVRo, SÓ Augusto dos Anjos é autor de um só livro, e de um livro que se chama Eu. Indicação curiosa para que vejamos nessa circunstância um autor que, evidentemente, deveria descrever um universo cujo centro era sua própria pessoa. E, interessante, este universo augusto-cêntrico é apresentado dentro de uma avassaladora maioria de versos decassílabos, de tal modo que poderíamos dizer que toda poesia de Augusto é feita em decassílabos, tão raros e tão pouco numerosos os que não têm dez sílabas. Ora, devemos notar que a leitura desses versos nos
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traz a todo momento a repetição das mesmas ideias. Só o gênio do poeta – dando roupagem a esse pequeno número de ideias – é que faz do livro um dos de maior aceitação entre todos os de poetas brasileiros, além de isolá-lo entre os demais de nossa literatura. O problema da técnica artesanal não o preocupava especialmente. Adotou aquele verso parnasiano, cheio de ditongos, a ponto de, em certo momento, aparecer a palavra raiz contada com uma só sílaba. Não teve preocupação de rimas. Rimou canseira e cera dentro da oralidade da poesia, que esta é, afinal, a grande verdade. Assim, porque escolheu uma forma conhecida, não seduz o leitor somente por isso. Pouco variada, é uma forma de trabalho apenas tradicional. Mas esta adoção de forma já preestabelecida, o isossilabismo desses versos decassílabos, certas tendências formais que se repetem como as que se veem observadas por vários críticos que lhe estudavam o tipo de verso, todo o material serve para colocar esta obra de arte, do ponto de vista formal, quase apagadamente: para ressaltar, então, o problema das ideias, do pensamento do poeta. Ideias Iterativas / Recorrências O que poderia, mas não chega a ser O Irrealizado A angústia do apenas potencial
O que vai acontecer é que um exame pouco mais detido deste pensamento escolherá um grupo restrito de ideias, que se apresenta permanentemente, quase poema sim–poema não; algumas vezes, imagens repetidas dentro do próprio poema. Estes pensamentos vêm sempre vestidos com roupagem nova, não métrica, porém vocabular; com o aproveitamento de termos científicos, filosóficos, que – possuindo definição – são justamente condensadores de significado, isto é, termos de semântica muito densa, concentrados. Entre essas ideias, podemos ressaltar uma, presente sempre à obra de Augusto, que vem a ser a ideia da própria vida, da existência, do próprio ser. Este ser tomado agora como resumo, escolhido como vocábulo para designar o fato, é apresentado ora como um ser cujo destino e futuro são um nada, ora como o ser que começou a se formar, mas não atin-
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giu a plenitude, a maturidade. Não chegou a realizar-se. E como acaso chega a imagem, isto é, quando a larva (aquela forma que no sentido latino significa máscara, e máscara do ser) evolui até a condição de imagem, o imago dos entomologistas; e ainda por acaso a lagarta chega até borboleta; as angústias do mundo e a precisão do nada que os espera, da natureza que não para, mas que é madrasta... Esta ideia percorre permanentemente o tipo de pensamento com uma frequência tal em Augusto, que poderíamos falar de uma obsessão poética. E por que obsessão? Repetida tantas vezes, repisada esta ideia, acaba considerada como elemento de ritmo mental. A própria ideia do poeta, através dos seus poemas, volta sempre a um motivo recorrente que vai ser, por esta razão, elemento não só obsessivo pela frequência, mas também marcador de um ritmo da evolução da poesia de Augusto. Cabe aqui um parêntese. Carolina Spurgeon, estudando a obra toda de Shakespeare, acabou por descobrir no levantamento minucioso da imagística do poeta trágico inglês certas imagens que voltam sempre, quase como símbolos em determinadas tragédias e que, por isso, definem simbolicamente cada livro de Shakespeare. Como, por exemplo, a luz que representa o amor de Romeu e Julieta, e os opositores a esse amor representados pelas trevas e escuridão. Dentro desta linha é que levantamos a imagem de Augusto, seu pensamento sobre o ser irrealizado, ou condenado pelo fatalismo e o nada da morte. Este ser cuja permanência está entre o aborto, no sentido de vida irrealizada, e a podridão no sentido da morte e reintegração na natureza. Esta faixa intermediária é na obra de Augusto sempre restrita, ameaçada. Por isso, podemos referir que algumas palavras e sua sinonímia representam este ser incriado, o ser que ainda não chegou a ser. Vem desde a criação do universo. Naquele célebre poema que nos fala da luz “luz que não chegou a ser lampejo”, da transcendência que não se realiza e da natureza que parou no rudimentarismo do desejo. E é neste Lamento das coisas Triste, a escutar pancada por pancada, A sucessividade dos segundos, Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos, O choro da Energia abandonada! É a dor da Força desaproveitada
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– O cantochão dos dínamos profundos, Que, podendo mover milhões de mundos, Jazem ainda na estática do Nada! É o soluço da forma mais imprecisa... Da transcendência que se não realiza... Da luz que não chegou a ser lampejo... E é em suma, o subconsciente aí formidando Da Natureza que parou, chorando, No rudimentarismo do Desejo!
que nos vai falando dos sons subterrâneos do choro, da energia abandonada, a força desaproveitada, os dínamos profundos que jazem ainda na estática do nada, quando poderiam estar movendo milhões de mundos, a forma imprecisa, o subconsciente. E notem então esse prefixo sub que aparece sob a forma de subconsciente: o som subterrâneo e o tempo. Condenados pelo tempo que vai passando, eles não se realizam, e é o rudimentarismo do desejo, primitivo, forma indeterminada ainda, sem limitações, completa nem perfeita. Este ser incriado é que o preocupa, porque para ele muitas das faculdades do homem ainda não atingiram esta maturidade e estão naquele rudimentarismo da forma, da fusão. O universo é incompleto, nós mal saímos do momento em que a Bíblia nos fala do espírito de Deus flutuando sobre as águas que encheram os abismos. Quer dizer, o caos dos antigos. Pois ele próprio nos diz da “larva do caos telúrico procedo”: “Sou uma sombra! Venho de outras eras, / Do cosmopolitismo das moneras... Polipo de recônditas reentrâncias, / Larva de caos telúrico, procedo / Da escuridão do cósmico segredo, / Da substância de todas as substâncias! /. Julga-se a larva do caos telúrico, não é ainda o homem completo, perfeito. Nós, segundo Augusto, ainda éramos seres não realizados (a caminho apenas), larva do caos telúrico, daquela terra-máter, porque telus não é a mesma coisa que terra, e sim a alma telus, a terra nutriz. Pois bem, se, destas primeiras considerações que estamos fazendo, quisermos partir para uma metodização deste tipo de obsessão, veremos que os animais, as crianças, as formas jovens, larva, bezerro, são elementos que justamente significam fase evolutiva ainda não realizada.
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E tudo com frequência extraordinária. Assim é que constataremos que a própria ideia do homem, nascida num mundo cerebral, encontra as resistências do aparelho corporal imperfeito. As imperfeições do corpo humano, a ideia luminosa, abstração, pureza. Entra, então, no “a ideia que / chega em seguida às cordas da laringe, / tísica, tênue, mínima, raquítica”. Aqui estão os quatro adjetivos mostrando exatamente a ideia em forma de larva, quase inexistente, procurando existir. Melhor ainda, ideia rudimentar em estado tísico. Não tuberculoso. O tísico é justamente a imagem translata do que a tísica produz: magreza, ossos e pele que não têm o recheio muscular que dá a força (é fraca, tênue, mínima). O tamanho dos fracos, raquíticos. E aí o crescimento que se interrompe e não chega ao desenvolvimento total. Afinal, quando num esforço maior, ele quebra a força centrípeta que o amarra, ela está ligada ao cérebro. Força para se liberar do cérebro e se transformar em palavra, a ideia. A ideia que vinha tísica, raquítica, e esbarra – cai quase morta – no mulambo da língua paralítica. Eis, portanto, não só o ser incriado que é a palavra como tradução do pensamento humano, como também uma teoria da linguagem, e que na poesia recebe o nome hoje difundida de inefável. Isto significa que nem sempre a ideia encontra correspondente na palavra e, assim, as palavras jamais conseguem reproduzir toda sua pureza, isto é, a primeira ideia que nasceu no cérebro. Mas não há somente o problema da criação da palavra. Veremos que muitas vezes aquele que já teve o dom da palavra, esse dom precário, a palavra impura como elemento representativo das ideias, pode acontecer-lhe tornar-se paralítico. E, para falar, puxa e repuxa a língua, sem que lhe venha à boca uma só palavra. Aí está justamente a angústia tremenda daquele que possui a ideia, mas não consegue estabelecer a ponte entre o objeto e o signo, como se diz na semântica, porque há uma incapacidade total. Foi rompido o elo, tombada a noite, o paralítico não encontra palavras para traduzir as suas ideias, embora puxe aquele mulambo de língua paralítica, já agora imprestável e incapaz. Portanto, numa escala descendente, vamos ver agora que também este problema do signo, de encontrar a representação para a ideia, ocorre igualmente a ele, poeta, muitas vezes pensando nos animais. Assim é que diz da alma dos animais, entre a ânsia de um vocábulo completo e uma expressão que não chegou à língua.
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É justamente isto que o faz notar e dizer que ser cachorro é tentar falar, embrulhando-se a palavra na laringe, escapando-se em latidos, como forma imperfeita da palavra dos animais. Não se trata de discutir cientificamente ideias do poeta. Trata-se, isto sim, de demonstrar, no sentido figurado, este cão cuja palavra se transforma em latidos porque não consegue passar além disso; a imperfeição, a irrealização, e não um problema de zoologia a ser debatido. Por isso, tem cabimento total dentro das ideias da irrealização de que estamos tratando. Agora, veremos ainda que não se trata somente da linha de animais que não podem falar – como seres que não chegaram ao nível do homem e estão em fase evolutiva muito abaixo daquelas pelas quais já passou a espécie humana. Mas também a infância, os frutos verdes, os embriões, os óvulos, tudo aquilo que é promessa de vida ainda não realizada. Também esses elementos aparecem com uma frequência obsessiva dentro da mesma linha de irrealização que temos visto até agora. É uma verdadeira escala de irrealizações. E assim é que vamos ver “essa obsessão cromática me abate”, a obsessão do vermelho do sangue, porque o sangue muitas vezes aparece na poesia de Augusto dos Anjos naquele sentido popular de elemento de vida: aqueles que transmitem o seu sangue a outro dentro da concepção de que a herança está no sangue. E também o sangue como elemento de prenúncio da morte, por isso diz ele que o abate da obsessão cromática, do vermelho. Ainda que na obsessão, está o poeta dentro daquela linha de pensamento para quem a ameaça da morte é única certeza daquele que começa a viver, do que vive. É angústia da vida, a permanente ameaça da morte que conduz ao nada. Por isto, ..................................................................... Essa obsessão cromática me abate Não sei por que me vêm sempre à lembrança O estômago esfaqueado de uma criança E um pedaço de víscera escarlate. (As cismas do destino)
Então, o estômago de uma criança é a cor vermelha, estômago esfaqueado, a víscera escarlate. Esfaquear, sangrar, é o caminho da morte.
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A víscera escarlate fora do corpo é também o caminho da morte, mas, em meio a este problema de morte, ainda notamos que ele não vê um homem propriamente. Não é um homem esfaqueado e sim uma criança, um ser ainda irrealizado. Os doentes: “Mordia-me a obsessão má de que havia, / Sob os meus pés, na terra onde eu pisava, / Um fígado doente que sangrava / E uma garganta de órfã que gemia!” / Como na sua condenação à prostituição, ainda em As cismas do destino: Prostituição ou outro qualquer nome, Por tua causa, embora o homem te aceite, É que as mulheres ruins ficam sem leite E os meninos sem pai morrem de fome!
É o órfão, portanto, desamparado e a caminho da morte, antes que se realize, antes que deixe a infância. É justamente nesse tom que ele fala, no mesmo poema, do carbúnculo que mata a sociedade infante dos bezerros na fazenda. Exatamente o bezerro colocado aí ao lado da criança: Por que há de haver aqui tantos enterros? Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata... Há o malvado carbúnculo que mata A sociedade infante dos bezerros!
É isto que o leva também a maldizer a prostituição, pela esterilização das mulheres e, então, vemos, de vez em quando, imagens dolorosas como “as aves moças que perderam a asa”. Notem, as aves moças: quer dizer, as jovens, aquelas não realizadas. Então, por isso, ele vê também, “poeta feto malsão, criado com os sucos / de um leite mau, carnívoro, asqueroso”. Em sua concepção, o poeta, ser superior, ainda é feto malsão. Note-se, portanto, que os sucos de um leite mau é a espécie de maldição, aquele quase pecado original que o homem adquire na própria infância, de modo que lhe tira totalmente a crença, a esperança de poder chegar a um destino melhor que não seja o do nada. E isso com a passagem transitória da sepultura, onde estão presentes sempre os vermes, os micróbios, todos aqueles que vivem da
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putrefação, que em Augusto parece contaminar a própria alma, não havendo uma integração da alma ao corpo. De tal ordem, que este corpo se putrefaz e contamina a própria alma de quem morre. Observaremos, em série, como surgem estes fatos: Forma vermicular desconhecida Que estacionaste, mísera e mofina, Como quase impalpável gelatina, Nos estados prodrômicos da vida; ..................................................................... Ah! de ti foi que, autônoma e sem normas, Oh! Mãe original das outras formas, A minha forma lúgubre nasceu! (Mater originalis)
É o verme (a forma vermicular), aquela que está nas primeiras escalas, primeiras fases da escala zoológica, estacionante, sem caminhar, mísera e mofina como quase impalpável gelatina. Importante é que o pródromo é justamente o começo da corrida, quer dizer, esta forma vermicular está ainda na fase que precede a verdadeira corrida da vida, é toda uma massa de formas rudimentares, que vemos aparecer em “essa elementaríssima semente / do que hei de ser, tenta transpor o ideal, / grita em meu grito”. E aqui veja-se o elementar e superlativo elementaríssimo. Isto é, semente não no sentido de semente de planta, mas de germe, o germe elementaríssimo do que ainda há de ser. Vejamos o irrealizado, o que não é ainda, tenta transpor o ideal, grita em meu grito: Alta noite, esse mundo incoerente Essa elementaríssima semente Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal... Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto, E, aí! como eu sinto no esqueleto exausto Não poder dar-lhe vida material! (Anseio)
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Então, a palavra do homem, a poesia, estes decassílabos que estamos vendo, são justamente o seu grito. Através dele, é que se nota a busca, a tentativa de buscar o ideal. Aí “como eu sinto no esqueleto exausto / não poder dar-lhe vida material”. Quer dizer, não pode dar vida ao seu pensamento. E volta àquele momento inicial da ideia de que falamos, ainda: Era a larva agarrada a absconsas landes, Era o abjecto vibrião rudimentar Na impotência angustiosa de falar, No desespero de não serem grandes! (Viagem de um vencido)
Lembremos nessa larva agarrada, os subterrâneos dos sons, o sub do início. A larva agarrada a absconsas landes está escondida, este sub implícito: porque landes no sentido de terra. Agarrada, ela está escondida como aquela ideia das circunvoluções cerebrais, dos ventrículos cerebrais: o abjecto embrião rudimentar, que é uma bactéria. Portanto, o ponto da escala zoológica vegetal. Porque o embrião pertence ao grupo dos chamados protistas, a vida unicelular, rudimento da vida (rudimentar que substitui o elementar, elementaríssimo, lá do exemplo anterior. Aqui, outra vez, a impotência angustiosa de falar, incapacidade, irrealização no desespero de não serem grandes) – o próprio poeta vendo a sua contingência, a fraqueza, se comparando portanto a esta larva, ao embrião, a tudo que é rudimentar, no desespero de não serem grandes. Tudo traduzido nos versos obsessivos que estamos estudando. Acontece, no entanto, que dentro dessa linha deveremos abordar não apenas a representação do irrealizado sob a forma mental de ideias, mas também sob forma material. Então, vemos que, além de criança, aqui o poeta já era feto malsão, para dizer além: Ah! Possas tu dormir feto esquecido, Panteisticamente dissolvido Na noumenalidade do NÃO SER.
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O nômeno contrário a fenômeno. Aqui, em respeito a quem lê, não desejamos apenas dar a nossa definição. Podemos ir ao mais corrente dicionário, não sob a forma de nômeno, mas de númeno. A coisa em si, por oposição ao fenômeno, ou às coisas tais como aparecem, embora só conhecidas assim, fato concebido pela consciência abstrata e problemática... etc. Vejamos como na própria definição encontramos tudo que está resumido nessa noumenalidade: a coisa em si, oposta ao fenômeno, as coisas como aparecem e são conhecidas, e não a essência das coisas, apenas a aparência. Portanto, uma forma irrealizada de conhecimento, fato concebido pela consciência, mas não confirmado pela experiência. Justamente aquela ideia de que afinal de contas o próprio pensamento nunca encontra uma tradução e, por essa razão, pode intuir certas coisas que a experiência não confirma. Finalmente, objeto cuja existência é abstrata e problemática, isto é, panteisticamente dissolvido na noumenalidade do não ser. Quer dizer, ele dissolvido na natureza. Esta ideia de abstração, incerteza, é afinal irrealização também; aparece no “possas tu dormir feto esquecido”. Agora é o feto, aquela vida animal, que não chegou a nascer; dissolvido na natureza da noumenalidade de não ser, não teve existência. Praticamente é uma abstração, e problemático. Assim, podemos verificar que a todo momento voltam aquelas primeiras ideias que anunciamos, e assim se dará “pelos séculos adiante, latindo a esquisitíssima prosódia da angústia hereditária dos pais”. Angústia para sempre, cão latindo a esquisitíssima prosódia, milênios. Não sabemos quando cessará, mas essa é a angústia hereditária não apenas dos cães, mas, na verdade, dos homens. Ainda, do geral para o particular, será intuída uma outra angústia particular e específica do poeta Augusto dos Anjos, pois quem não vê na paciência budista de um cachorro a alma embrionária que não continua? Quer dizer alma limitada, a própria larva que não chega a imago, feto que não chega a ser zoológico, semente que não brotou, porque a alma do cão não continua. Paciência que é alma embrionária.
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ARAUTo Do UNiVERSo Examinamos, no capítulo anterior, o mundo vocabular de Augusto e as incidências, “significando” em torno de embrionário, rudimentar, elementar, orfandade, aves moças, crianças etc. Todos são termos que se aplicam na concepção de uma vida que é pura frustração, irrealização, nunca realizada integralmente. Constatamos, então, que estes elementos (do tipo embrião) ressurgem, em diferentes roupagens: Quando a promiscuidade aterradora Matar a última força geradora... E comer o último óvulo do ventre. (O lupanar)
Adiante: Dissolva-se, portanto, minha vida Igualmente a uma célula caída Na aberração de um óvulo infecundo; (Budismo moderno)
Sempre aquilo que podia ser (ter) vida, deixou de ser (ter). E então ele chega à dolorosa conclusão de que “ser homem! Escapar de ser aborto”, ou de ser óvulo “infecundo”. Por outro lado, retorna à sua cena o verme, que há sempre na vida do homem: Já o verme – este operário das ruínas – Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! (Psicologia de um vencido)
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Então entra a irrealização do que não nasceu, não nato, e o nada que espera o homem ao fim de sua existência. Vemos oscilar, sofredoramente, a angústia do poeta Augusto dos Anjos, e aquele grito que é um meio pelo qual busca transpor o ideal. Para que “...meu grito / seja a revelação deste infinito / que eu trago encarcerado na minha alma”. Aí, então, é a alma que é o infinito encarcerado. Infinito encarcerado na alma, que é capaz de contê-lo. Observe-se que este outro infinito está encarcerado no corpo que os vermes destruirão. Neste mundo em que ele busca a luz: E, em vez de achar a luz que os Céus inflama, Somente achei moléculas de lama E a nossa alegre da putrefação! (Idealização da humanidade futura)
No entanto, nesta alma e em sua poesia, veremos que não importa a ele o corpo destruído, nem o verme que o espera, a putrefação ou a mosca alegre. Nada. O que lhe importa é a própria poesia que considera eterna. Assim, quando diz: Tome, doutor, esta tesoura, e... corte Minha singularíssima pessoa Que importa a mim que a bicharia roa Todo o meu coração, depois da morte?! ................................................................. Mas o agregado abstracto das saudades Fique batendo nas perpétuas grades Do último verso que eu fizer no mundo! (Budismo moderno)
Descreve o nada do seu corpo. Mas sabe muito bem, e afirma, que o agregado é que o espera. E unicamente que “... o agregado abstrato das saudades / fique batendo nas perpétuas grades / do último verso que eu fizer no mundo”. De fato, ele crê na sua poesia. Crê curiosa e angustiosamente na sobrevivência da alma. E então
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todo esse materialismo que o cerca, essa concepção de que o mundo é pura matéria e putrescível, sobressai dentro de sua poesia naqueles momentos que não podemos interpretar senão como uma crença: breve, rápida, oscilante, indecisa. Mas persiste. Observamos aquela alma que é capaz de conter o infinito, vimos o agregado abstrato das saudades e as perpétuas grades do verso. Os versos são justamente as grades que contêm uma ideia aprisionada. É um cativeiro, ideia sem liberdade. E não aquela outra luminosa, pura. Por isto, a ele pouco importa – e até o deseja – estar como as bestas mortas “penduradas no bico dos abutres”; cinzas, podridão, “miniatura alegórica do chão / onde os ventres maternos ficam podres”. Notese que aqui já é a podridão, mas novamente os ventres maternos. Justifica-se, porque desse ventre materno é que nasce a vida, aí estão os óvulos, a vida em estado potencial, a vida latente, aquela luz que não chega a ser lampejo. E então é apenas uma afirmação sem maior convicção “Entre a abundância do que eu sou, no Mundo, / E o nada do meu interior”. Este homem interior dele é profundo e extraordinariamente rico, quando diz que: ........................................................................... Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres De atingir, como o gérmen de outros seres, Ao supremo infortúnio de ser alma! (A um gérmen)
Poderíamos chamar a esse trecho aquilo que Camões disse de maneira Barroca “as magoadas iras”. É uma ira magoada esse horror todo pela alma: crê e não crê ao mesmo tempo. Nestas iras magoadas observa-se que ele bendiz a mágoa: “eu bendigo a desgraça em meio, porque eu hoje só vivo da descrença”. Não é descrença, é dúvida: ........................................................................... Vinte e quatro anos e vinte e quatro horas... Sei que na infância nunca tive auroras, E afora disso eu já nem sei mais nada!
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(Senectude precoce)
Este é o poeta descrente, para quem, no mundo, quando deu um balanço: nada encontrou. A humanidade vai pesar seu gênio. O poeta encheu o mundo vazio da angústia, da dúvida. Mas é um poeta que “Eu sinto a dor de todas essas vidas / em minha vida anônima de larva”, ele que se julga incompleto. Por isso, chora pelos homens: “Chorei biliões de vezes com a canseira / de inexorabilíssimos trabalhos!” E, também, vê os “fetos magros ainda na placenta / estendendo-me as mãos rudimentares”. O poeta considera-se um intérprete do mundo, das dores – de tudo que é necessário chorar nessa angústia do próprio mundo. Quando admite: “Homem... tudo só tens um direito: – o de chorar!” Esse homem é ele próprio, e porque é ele próprio, recebe a ressonância de todas as dores. Também sente-se o arauto do universo, aquele que deve transformar em mensagem o sofrimento do mundo. E arremata: “Uma vontade absurda de ser Cristo, / Para sacrificar-me pelos homens!” oUTRAS LEiTURAS PoSSÍVEiS A esta altura, não será difícil verificar que todo o material colhido vem, por si só, caracterizar o mundo do exercício poético de Augusto. Começamos pela seleção/incidência vocabular, e as ideias que a acompanham, que, como dissemos, quase poema sim–poema não, vêm definir uma angústia em presença do que poderia ser mas não chega a ser, do irrealizado. Com tal força e recorrência, que o autor em dado momento pretende ser o arauto do universo. E todo o campo fônico de que se vale Augusto para dizer deve ser insistentemente lembrado. A partir daí, exame pouco mais atento aproximará vocabulário, aquelas ideias, e os extratos fônicos de hipérboles (metáforas hiperbólicas no mais das vezes), de um mundo de oposições que começa nas antíteses, passa pelo paradoxo e chega ao oximoro. Associe-se esta “colheita” às incidências dos proparoxítonos, fartamente usados por Augusto, ao cromatismo (ao longo do estudo mesmo, citamos alguns versos, “essa obsessão cromática me abate”) e ao esdrúxulo (alguns o consideram cientificista) vocabulário. Assim, todo esse material aqui citado se constitui fator indiscutível para o agrado popular.
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Basta lembrar que os textos do Cordel são plenos de construções hiperbólicas (o exagero, sempre um fator ponderável na comunicação autor/leitor) e obviamente de musicalidade (como não poderia deixar de ser). O que pode causar estranheza é justamente o vocabulário hermético de Augusto. Mas, ainda aí, lembramos que alguns autores de Literatura oral fazem questão de “variar”, incluindo em seus versos palavras “dificílimas”; chegam a pedi-las aos mais eruditos, ou a procurar no dicionário. E tais palavras aparecem, magicamente, ao lado dos mais ostensivos lugares-comuns e frases feitas (estes, estruturais e indispensáveis ao cordel) – aí se realiza espontaneamente aquilo que os técnicos de Comunicação vêm colocando ao nível de redundância 0, redundância 100 etc. Isto tudo, sem falar na própria desmitificação violenta de conceitos tradicionais, quase aforismos, na poesia de Augusto. Desestruturas surpreendentes que completam o quadro. Bom exemplo, o célebre, conhecidíssimo Versos íntimos, onde é inevitável admitir que o poeta fale a si mesmo, intimamente, apesar da 2ª pessoa. Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!
Aliás, este poema serviria a uma leitura (pura constatação) a partir
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de pensadores que também se colocam em campos opostos, como Emil Staiger e Roman Jakobson. O primeiro (admitindo-se que o eu do poeta se solidariza com este Homem; é ele mesmo talvez) veria neste poema excelente material para colaboração a suas teorias, ao nível da filosofia da linguagem. E o segundo, ao nível estrutural. Isto é, Staiger concluindo que o um no outro se evidencia através da disposição anímica (de eus solitários, autor/leitor); Jakobson, que as oposições binárias se aprofundam nas sequências e contiguidades, em exame dos eixos de seleção e combinação. Mas, ambas as leituras, setorizantes e reducionistas; a primeira um tanto extrínseca e a segunda por “científica”. Podem, isto sim, fornecer elementos para uma visão totalizadora do mundo do autor. Em Augusto, outro tipo ainda de análise (levantamento, constatação, estatística etc.) pode favorecer a coleta de elementos. Exemplo, em Versos a um cão: Que força pôde, adstricta a embriões informes, Tua garganta estúpida arrancar Do segredo da célula ovular Para latir nas solidões enormes?! Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes, Suficientíssima é para provar A incógnita alma, avoenga e elementar Dos teus antepassados vermiformes. Cão! – Alma de Inferior rapsodo errante! Resigna-a, ampara-a, anima-a, afaga-a, acode-a A escala dos latidos ancestrais... E irás assim, pelos séculos, adiante, Latindo a esquisitíssima prosódia Da angústia hereditária dos teus pais!
a) O campo niilista (o des, o in):
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Informe (sem forma, o embrião). Estúpida (a garganta, que ignora, que “não diz”, no estado rudimentar). Solidões – Sem companhia. Segredo – Des / conhecido. Obnóxia – Funesta (a morte, como o des / conhecido). Inconsciência – Sem consciência (é suficientíssima, como será esquisitíssima a prosódia. Os proparoxítonos, superlativos, se integram ao levantamento). Incógnita – Des/conhecido. Inferior – Abaixo de, sob. Rapsodo errante – Cantor ambulante, sem pouso, des / conhecido no lugar. b) Primeiros estágios – O ser: Embrião – Ser vivo na 1ª fase do desenvolvimento (outros versos de Augusto: “abjeção embriológica da vida”, “abjecto vibrião rudimentar”). O embrião adstringe, restringe a força. Célula – Unidade fundamental do ser vivo (“o pensamento / que em suas frontais células guarda”). Ovular – De óvulo, célula sexual feminina (“matar a última força geradora e comer o último óvulo do ventre”). Vermiforme – Forma de verme, larva, estado rudimentar, prodrômico (“forma vermicular desconhecida / que estacionaste, mísera e
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mofina, como quase impalpável gelatina / nos estados prodrômicos da vida”; “larva de caos telúrico procedo”; “em minha vida anônima de larva”; “Já o verme – este operário das ruínas”; “E quando esse homem se transforme em verme” etc.). – A origem: Avoenga – dos antepassados. Antepassados – (vermiformes) Ancestrais. Hereditária (angústia dos pais). Como poemas de apoio prolongando a constatação do material colhido até aqui, nos serviriam A Idéia (A ideia que esbarra no mulambo da língua paralítica – chega ao laringe tísica), As cismas do destino (Ser cachorro é ganir incompreendido, a palavra embrulha-se no laringe, escapa em latidos), O martírio do artista (Puxa e repuxa a língua e não lhe vem à boca uma palavra), Viagem de um vencido (Larva na impotência angustiosa de falar). E, finalmente, toda a angústia de um não livre-arbítrio nem no comunicar-se, desde os primeiros estágios: a prosódia do cão é esquisitíssima, não diz, não comunica: angústia hereditária. É a ideia do homem que, também, esbarra, não diz, não comunica, hereditariamente (larva do caos telúrico procedo), impotência angustiosa de falar. o PoETA Do NÓS (Onde se transcende ao puramente eu)
Todas essas colocações, a própria atitude do questionamento (individual embora e, até, muito ao nível dos problemas do dia a dia, copa e cozinha – mas e isto não conta? Afinal não é isto que também conta, inicialmente?) do poeta colaboram numa compreensão ampla deste autor cujo livro tem o título Eu e cujos demais poemas são outros (Eu e outras poesias) e esquecidos, mas mais relevantes serão as considerações a partir e em torno daquele material mesmo, colhido
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anteriormente. Antes, algumas considerações. A angústia, a solidão, o amargor que favorecem o niilismo obsessivo em um Augusto dos Anjos, mesmo quando envoltos em “clima” de revolta, muitas das vezes se aproximam de uma atitude conformista. É comum, por outro lado, que uma segunda etapa no processamento das ideias de um Augusto possa levá-lo – como quase válvula de escape – às tais revoluções formais, vanguardistas, que, não raro, lhe sufocam uma possível (ou latente) posição crítica (diante de tudo: estética, literatura, vida principalmente). Mas não se veja aqui, também, qualquer conceituação definitiva em torno de que o Autor precise realmente desta tal visão crítica. O que fica é o texto, é a obra. A nós, pouco vão interessar sua posição ou suas reações pessoais, e menos ainda a intencionalidade dele (a intenção realmente não conta). O texto é quem conta. Mesmo porque – com o passar do tempo – a obra pode ganhar roupagens novas, problemáticas várias, aspecto documental etc. Retomemos. Até quando vingará a “redução” ou o exotismo de certos e gratuitos experimentos formais; até quando será possível mudar os frisos, o painel, as calotas, na busca incrível (e terrível) da novidade pela novidade? O consumo é muito amigo (a indústria cultural também) da literatura (arte) de “impactos” na medida em que, nela, haverá “novidadeiros”. A literatura, crítica, porém, do real, cuja literariedade – como dissemos à abertura – é algo mais que simples macetes, não lhes atribui maior importância. Em Augusto, a “crise do amor” é realismo, enquanto (ou porque) trágico também. Um convite ao leitor para tomada de consciência em relação ao cotidiano, ao “trabalho” diário, à vida e à sociedade. Convite à reflexão que pode ser, até, espécie de despertar, uma primeira “sacudidela” neste leitor. O não poder dizer, que sofre um bloqueio inicial quando as ideias já chegam insuficientes em forma de fala, e um segundo bloqueio porque, de fato, talvez não se possa dizer mesmo (até se antecipam as “camuflagens” ou as alegorias de hoje). Ideias que não passam de forma primitiva, ou foram abortadas, porque há uma distância muito grande entre o pensar, o pretender ser, o ideal enfim, e o que é possível efetivar. Mas se ao homem se constroem muros e obstáculos, quando as estruturas pretendem barrar-lhe as pretensões ou o livre deslocar-se, e
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se o homem pretender também valer-se, por sua vez, desses mesmos “recursos”, para não se conscientizar, para uma não tomada de posição, isto de nada adiantará, mesmo que ele veja, metafórico-hiperbolicamente, consciência como um morcego: Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: Na bruta ardência orgânica da sede Morde-me güela ígneo e escaldante molho. “Vou mandar levantar outra parede...” – Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho, Circularmente sobre a minha rede! Pego de um pau. Esforços faço. Chego A tocá-lo. Minh’alma se concentra. Que ventre produziu tão feio parto?! A Consciência Humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto! (O morcego)
Quando o autor resolve comentar seu próprio fazer literário, se vale do amor como referente, e embora acredite que só há amor “duma caveira para outra caveira”, o que pode ter violentado os conceitos de poesia à época (ou, quem sabe, da própria arte poética em geral, de então), talvez seja a quadra de abertura do poema que, curiosamente, se chama Idealismo, espécie de niilismo de Augusto, mas a serviço de um desvio das normas da temática tradicional (o grifo é nosso): Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! O amor na Humanidade é uma mentira. É. E é por isso que na minha lira
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De amores fúteis poucas vezes falo.
Aquele não poder dizer (“censura filogenética”?) se prolonga ao próprio mundo em suas origens primeiras, e às formas mais diversas, rudes, elementares etc. E elas pretendem a fala como vingança. E no estrume fresquíssimo da gleba Formigavam, com a símplice sarcode, O vibrião, o ancilóstomo, o colpode E outros irmãos legítimos da ameba! E todas essas formas que Deus lança No Cosmos, me pediam, com o ar horrível, Um pedaço de língua disponível Para a filogenética vingança!
SoLiDARiEDADE
Talvez, aqui, devamos aprofundar os significados da poesia de Augusto, a partir mesmo de duas etapas em suas trajetórias temáticas. A primeira quando o autor denuncia o mundo, a impossibilidade de chegar a ser (como vimos, a luz não chega a lampejo, a ideia não se efetiva, os infantes – bezerros – não crescem até porque os carbúnculos os consomem, e o homem quando cresce é porque escapou do aborto etc.) e daí, toda a carga negativista e “horrenda” que empresta ao vocabulário e às problemáticas; tudo, através das camadas fônicas que, curiosamente (mas não paradoxal), complementam o mundo do autor e também o mundo de quem recebe toda a carga, o leitor. Mas uma segunda etapa começa a tomar corpo quando o poeta pretende ser o arauto do universo, espécie de porta-voz dos homens, sem omissão e sem conformismo – favorecendo aquela purificação, aquela catarse que, segundo Lukács, seria uma espécie de missão da Literatura como provocadora de reflexões e tensões, em torno do (entre) cotidiano e “clima” da obra, sem cair, porém, em “sociologismos” de encomenda ou de momento. O eu do poeta, ou o poeta do eu passa a ser o nós do poeta, ou o poeta do nós. Uma vontade absurda de ser Cristo para sacrificar-se pelos homens. Dar-se-á o grito de quem, de repente, descobre que os cárceres devem ser rompidos, cabendo a
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nós o raciocínio em presença do grito e do Infinito do poeta: Súbito, arrebentando a horrenda calma Grito, e se grito é para que meu grito Seja a revelação deste Infinito Que eu trago encarcerado na minha alma.
O grito de quem carrega a dor da própria humanidade: Continua o martírio das criaturas: – O homicídio nas vielas mais escuras – O ferido que a hostil gleba atra escrava, – O último solilóquio dos suicidas – Eu sinto a dor de todas essas vidas Em minha vida anônima de larva!
E não importou a ele nem a certeza de que ficou sozinho: grito que não encontrou ressonâncias: Eu sou aquele que ficou sozinho Cantando sobre os ossos do caminho A poesia de tudo quanto é morto!
Mas, poeta, literariedade naquele sentido que colocamos de início, o Eu de Augusto acaba, de certa forma, transcendendo aos eus das angústias de ocasião e de consumo, meros extravasamentos ingênuos (ou geradores de ingenuidades). Não surpreende que, à época, da literatura-sorriso-da-sociedade, no clima sofisticado e artificial do Rio, o poeta tenha sido considerado uma aberração, verdadeiro descaso pelas Letras (que, então, refletia um bovarismo e um “brilho” que não admitiriam poetas como Augusto, antibem-comportados). Não importam nem algumas posições do autor quanto a uma espécie de fatalismo que acompanha o homem, quanto às angústias e sofrimentos, o que se situaria num plano apenas compreensível ao nível estritamente humano, mas não histórico. E é claro que não se define, nítida, uma atitude crítica do poeta, a partir de toda sua solidão, angústia e irrealização. Prevalece um inconformismo Individualista, é fato. Mas acaba falando mais alto o fato de que a leitura de seus
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poemas afinal revela uma rebeldia e uma não adesão ao “espírito de classe” e à própria época em todas as suas deformações e seus artificialismos. E aí é que entram os (entramos) nós. Sugerindo caminhos despertando questionamentos que, afinal, se aproximem do poeta, e seu canto, para que este último não resulte tão isolado assim. E favorecendo reflexões sobre qual maneira, até diversa, e atual, de discuti-lo. ARREMATES Ao início deste estudo, lançamos várias indagações em torno, todas do mesmo, e curioso, aspecto: poeta sem quaisquer vínculos ao estilo de época, rigorosamente só em seu Eu, ignorado por tudo e por todos quando publicou sua obra, ignorado enquanto viveu. E, por outro lado, a partir da década de 20 até hoje, dos mais lidos, publicados e discutidos poetas brasileiros. Não pretendemos responder nem solucionar. Como dissemos, atribua-se ao imponderável do mundo artístico e criativo. Mas, na certeza de que muitos outros estudiosos surgirão, e sempre, debruçados sobre a poesia deste Augusto dos Anjos, poeta, aqui deixamos uma primeira sugestão, ideia em torno de um possível caminho de investigação: pacífico, que Augusto rompeu com sua época, distante que ficou dos moldes parnasianos ou simbolistas. Ao nível da forma, desprezou caminhos do rigor formal, tal sua “displicência”, sua indiferença e “desleixo” em presença daquele culto à forma. Em campo conteudístico, derrubou ou violentou conceitos estratificados, desestruturando-os inclusive quanto ao “bom gosto” de temas e ideário poéticos. Aí estava, já, um esboço da (de uma) profissão de fé Modernista. Sem a definição desta, sem a efetivação de postulados e princípios ou Manifestos deste. Mas, sem dúvida, uma primeira identificação; embora sem o radical e corajoso desprezo aos esquemas rímico e métrico, e sem a diversificação de temas e o despojamento que levaria – mas só em segunda etapa – a também hermética poesia Modernista a aproximar-se do cotidiano, do verso assumidamente prosaico, a tornar-se, enfim, simples (e não banal) sem prejuízo (ao contrário, até) daquele profundo que todos sabemos indispensável ao
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exercício artístico. Mas se Augusto “não deu o (este) salto”, isto também se deveu ao exercício solitário, isolado, de uma forma de produção de arte, O Eu, o eu só, foi, afinal, o responsável por um movimento (!?) igualmente solitário. Temas, assuntos repetitivos – embora, aqui, caiba também a ressalva de que foi seu primeiro, e único, livro. Entre a poesia dita antiga e a de nossos dias, situou-se Augusto. Antecipando-os?
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REFERÊNCiAS NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa: Ed. da UFPB, 1962. PROENÇA, M. Cavalcanti. Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959. SOARES, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. João Pessoa: Ed. Paraíba do Norte, 1920.
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A LoNGEViDADE E SUAS CoNSEQUร NCiAS PARA o MUNDo Do TRABALHo Lucia Franรงa
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O considerável aumento da expectativa de vida não é apenas um privilégio, mas uma conquista da modernidade. O desafio é, e será cada vez mais, manter os padrões de saúde e independência para os cidadãos idosos, embora o processo de envelhecimento não seja igual para todos. É preciso que uma série de aspectos estejam alinhados a fim de que esta longevidade não represente apenas adicionar anos à vida, mas também adicionar qualidade para estes anos. Embora algumas políticas e diretrizes já tenham sido tomadas por órgãos da sociedade, muito pouco tem sido discutido sobre a longevidade no mundo do trabalho. O presente artigo analisa as consequências do envelhecimento para as organizações, alertando para algumas medidas que o governo, organizações e os próprios trabalhadores devem adotar para enfrentar este desafio. Entre as medidas sugeridas ganham ênfase a quebra de preconceitos contra a idade, a atualização dos trabalhadores mais velhos, a integração de equipes intergeracionais e a preparação para a aposentadoria. O texto sugere ainda aspectos metodológicos relacionados aos Programas de Preparação para a Aposentadoria (PPAs).
The considerable increase in life expectancy is not only a privilege but also an achievement of modernity. The challenge is and increasingly will be to keep the independence and good health conditions of older citizens, even though the ageing process is not equal for all. Some aspects must be aligned in order to not only add years to life but also add quality to those years. Although some measures have been already addressed by some sectors of Brazilian society, very little has been discussed about this issue into the business world. This article analyses the ageing consequences for the businesses, addressing some measures that government, organisations, and the workers themselves should take to face this challenge. Amongst these suggested measures it is emphasised the breaking of ageing prejudices – ageism, the updating process for older workers, the integration of intergenerational teams and retirement preparation. The text also suggests some methodological aspects related to Retirement Preparation Programs (RPP).
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o AUMENTo DA ExPECTATiVA DE ViDA E SUAS CoNSEQUÊNCiAS Há cerca de meio século, a expectativa de vida para os brasileiros era em torno dos 50 anos. Hoje, as pessoas com essa idade são consideradas ainda jovens e com grandes perspectivas de serem chamadas de “centenárias”. Com efeito, em 2007 a esperança de vida ao nascer para os brasileiros alcançou 73 anos, sendo de 69 anos para os homens e 76 anos para as mulheres, e as projeções do IBGE (2008) para 2050 apontam que a expectativa atingirá 81 anos. Esta longevidade é, sem dúvida, algo para ser celebrado, mas também alerta para uma série de medidas que o governo, as empresas, universidades e os próprios cidadãos terão que tomar para viver melhor este acréscimo de vida. Diante do fenômeno do envelhecimento, a Organização das Nações Unidas – ONU, a Organização Mundial de Saúde – OMS e outras organizações governamentais e não governamentais de quase todos os países realizaram dois eventos com a finalidade de propor políticas e diretrizes para fazer frente a este desafio: a Assembleia Mundial de Envelhecimento de Viena, em 1982, e a Assembleia Mundial de Envelhecimento de Madri, em 2002. Neste último evento, o conceito de envelhecimento ativo (WHO, 2002) foi lançado e difundido pela mídia no mundo inteiro. O “Envelhecimento Ativo” é uma visão (individual e coletiva) que busca garantir qualidade de vida à medida que a população envelhece, considerando a otimização dos aspectos de saúde, participação e seguridade, visando à independência, à dignidade e ao direito às oportunidades. Dentro do quadro de envelhecimento ativo está o direito à seguridade a todos os trabalhadores que dedicaram um tempo de vida ao trabalho, contribuíram para um sistema de previdência e esperam contar com esse recurso na época da aposentadoria. Entretanto, é preciso ressaltar que pelo fato de os padrões de envelhecimento serem diferenciados, muitos trabalhadores com condições sacrificantes, associadas ou não com uma condição de saúde, poderão antecipar a aposentadoria. Assim, a “mobilidade” e a “seguridade” devem ser asseguradas por uma pensão que permita a sobrevivência digna e o atendimento na rede de saúde pública, quando necessário. A “participação social” também deve ser estimulada dentro do contexto familiar, no contato
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com a comunidade, ou na frequência aos serviços sociais, de lazer e de educação que precisam estar disponíveis para todos os idosos. No Brasil, instituições sociais como o SESC e as Universidades Abertas da Terceira Idade contribuíram enormemente para o desenvolvimento de serviços, projetos e pesquisas voltados para o bem-estar das pessoas idosas. Em 1994, a Lei 8.842 dispõe sobre a Política Nacional do Idoso e cria o Conselho Nacional do Idoso, sendo regulamentada pelo Decreto 1.948/96. Com relação especificamente ao mundo do trabalho, esta legislação estabelece em seu artigo 10, como competência dos órgãos e entidades públicas na área do trabalho e previdência, “criar e estimular a manutenção de programas de preparação para aposentadoria nos setores público e privado com antecedência mínima de dois anos antes do afastamento”. Em 2003, foi criada a Lei 10.741 (Ministério da Saúde, 2003) que regula o direito assegurado para as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, e o Estatuto do Idoso. A lei dispõe claramente quanto à proibição da discriminação de idade na contratação de empregados, dando preferência, inclusive, em caso de empate, a quem for mais velho. Entretanto, ainda há muito a fazer para que essas e outras leis sejam cumpridas, e para que a redução do ageísmo – preconceito contra idade –, banido legalmente em diversos países, possa de fato acontecer. Não apenas o governo deve estabelecer políticas que garantam o acesso aos serviços de educação, saúde e lazer para a população de idosos, mas as organizações devem abrir espaço para projetos destinados a seus trabalhadores mais velhos, visando à continuidade na organização por meio da atualização e educação permanente, ou ao apoio na saída – programa de preparação para a aposentadoria. Esses projetos devem ressaltar o bem-estar das pessoas no futuro, e seria desejável que em alguns momentos os programas misturassem faixas etárias, em propostas de qualidade de vida para todos, independentemente da idade. AS APoSENTADoRiAS ANTECiPADAS E SUAS CoNSEQUÊNCiAS O padrão do envelhecimento brasileiro não é apenas diferenciado por gênero, mas por níveis de educação, saúde e renda, que se perpetuam
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num círculo vicioso à espera de uma equidade social. Tomemos, por exemplo, a aposentadoria e o fator previdenciário. Como corrigir as distorções para a concessão da aposentadoria entre os residentes de uma cidade rica no Rio Grande do Sul – com expectativa de vida de 75 anos – e os residentes de uma cidade pobre em Alagoas – com expectativa de vida de 67 anos? No segundo caso, a aposentadoria, enquanto um período merecido de descanso, liberdade e lazer após anos de trabalho, pode ser uma utopia. Essas e outras contradições põem em cheque o conceito de aposentadoria no Brasil, e foram reforçadas quando, a partir de 1990, ocorreu o boom das demissões voluntárias ou incentivadas. As empresas, compelidas pelo processo de globalização, fusão ou privatização, estimulavam a aposentadoria antecipada para que seus quadros de pessoal fossem renovados ou reduzidos. Vale assinalar que as aposentadorias antecipadas quando forçadas são ainda mais drásticas, uma vez que algumas pesquisas (vide a seguir) indicam que a saúde após a aposentadoria irá depender da capacidade do pré-aposentado em decidir se irá ou não continuar a trabalhar ou se irá se aposentar mais cedo. Henretta, Chan e O’Rand (1992) e Shultz, Morton e Weckerle (1998) apontaram que a aposentadoria compulsória traz uma diminuição dos níveis de saúde e de satisfação com a vida. Payne, Robbins e Dougherty (1991) também encontraram um efeito negativo significativo na mortalidade pela aposentadoria antecipada forçada, bem como a perda de atividade na aposentadoria. Apesar das críticas acerca das aposentadorias antecipadas, alguns trabalhadores, principalmente aqueles insatisfeitos com o trabalho ou com a organização, admitem que os incentivos por vezes oferecidos representam também uma oportunidade de saída da organização. Entretanto, apesar da carência de pesquisas nesta área, é possível supor duas consequências com a saída de um grande contingente de trabalhadores experientes nos planos de demissão incentivadas, como a perda do conhecimento e da memória organizacional; e a dificuldade de os trabalhadores mais velhos retornarem ao mercado, principalmente aqueles que sentem necessidade de continuar trabalhando na aposentadoria. Se, por um lado, as aposentadorias antecipadas poderiam revelar um comportamento discriminatório por parte de algumas organiza-
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ções ao descartarem seus trabalhadores mais velhos, substituindo-os por mais jovens, conforme apontaram Appelbaum, Patton, e Shapiro (2003), por outro lado, muitos dos trabalhadores que antes concordaram com a saída antecipada, após poucos anos de aposentadoria, podem sentir uma ambivalência quanto à decisão ter sido ou não “voluntária” (SOLINGE, 2007). Além disso, a aposentadoria incentivada provocou, para os trabalhadores que sobreviveram a ela, uma sombra de medo, um sentimento de estranheza e desconfiança em relação à organização. Hoje, reduzidas as aposentadorias incentivadas e as fusões nas organizações, algumas empresas, principalmente aquelas que têm entre seus principais colaboradores trabalhadores altamente especializados, não desejam antecipar a saída deles. Muito pelo contrário, estão cada vez mais preocupadas em retê-los. Uma das formas para esta retenção é exatamente mantê-los atualizados e satisfeitos, mesmo que isto implique uma redefinição do trabalho, seja por meio da mudança dos métodos, ambiente ou da flexibilização de horário. Henretta (2000) lembra que a redefinição do trabalho poderá conter a saída dos trabalhadores mais velhos, e, assim, equilibrar a demanda de trabalhadores especializados num futuro próximo, e propõe o aumento de empregos temporários, por prazo determinado ou com horários reduzidos. Contudo, Kim e Feldman (1998) alertam para o fato de que quanto mais os trabalhadores se engajarem em empregos temporários (bridge employment), menor será a possibilidade de desenvolverem atividades de lazer. Como o lazer e o voluntariado provaram estar significantemente correlacionados à aposentadoria e à satisfação com a vida (ELLIS, 1994; KIM & FELDMAN, 2000), o desafio para os trabalhadores mais velhos será, então, buscar um novo contrato que possa permitir tempo livre para atender a seus interesses e necessidades pessoais. Assim, há uma demanda para que os Programas de Preparação para a Aposentadoria assumam um novo formato, pautados na livre escolha do trabalhador, que desenvolvam não apenas os seminários informativos, mas oportunizem espaços para as reflexões e discussões com os participantes sobre a qualidade de vida atual e o estilo de vida que desejam para o futuro (FRANÇA, 2002, 2008). Nesta nova ótica de preparar para a aposentadoria, ganham força os projetos de vida, a continuidade ou a busca de um trabalho mais prazeroso que
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complemente a renda ou que atenda à necessidade de uma poupança maior para o futuro. APoSENTADoRiA – SAÍDA Do MERCADo DE TRABALHo? O trabalho para muitos pode estar intimamente relacionado a sua identidade e a aposentadoria não deve representar o fim deste (ASHFORTH, 2001). Entretanto, há trabalhadores que gostariam de mudar de estilo de vida, e fazer de seu trabalho um instrumento de ajuda ao próximo ou à sociedade. Há aqueles que desejam dedicar mais tempo aos amigos, famílias, aos estudos, ao lazer, ou mesmo ter tempo para o ócio. Stepansky & França (2008) apontam para a atenção especial e o cuidado que os profissionais de Recursos Humanos devem ter com trabalhadores obcecados pelo trabalho, a tal ponto que, quando estão prestes a assumir o controle do tempo na aposentadoria, sentem-se incapazes e com uma sensação de falta de propósito. Assim, a ideia tradicional da aposentadoria como êxito final está obsoleta (MOEN, KIM & HOFMEISTER, 2001). A aposentadoria e o trabalho podem não ser tão antagônicos quanto parecem, e, não apenas para reter os trabalhadores no mercado ou para permitir que os aposentados se envolvam numa atividade laborativa pós-carreira, é fundamental a atualização permanente dos trabalhadores, e discutir os preconceitos (cognitivos e sociais) que são normalmente estabelecidos na organização. Holzmann (2002) enfatiza que o conhecimento e as habilidades são os fatores-chave para o desenvolvimento da economia e cruciais para que os trabalhadores mais velhos permaneçam competitivos no mercado de trabalho. A educação ao longo da vida (LLL – Life Long Learning) se estende da infância até a pós-aposentadoria, permitindo o acesso das pessoas à aprendizagem, ao desenvolvimento pessoal, independentemente da idade. A educação ao longo da vida pode ser uma das formas para reinserir trabalhadores de qualquer idade no mercado de trabalho, como uma estratégia para os trabalhadores mais velhos que queiram se atualizar e adquirir novas metodologias e habilidades. Além disso, é um espaço para conhecer pessoas e estabelecer novas parcerias.
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Reter bons trabalhadores implica oferecer treinamentos e atualizações constantes, numa perspectiva de desenvolvimento integral (FRANÇA & STEPANSKY, 2005). Este é o papel das organizações, que também depende do próprio trabalhador e do investimento que ele próprio deve fazer no seu futuro por meio da busca pela educação. Governos e empresas precisam considerar ainda a necessidade de uma campanha de sensibilização junto à sociedade, perante o ageísmo e as possibilidades que não devem se limitar por conta da idade. É preciso ainda considerar um debate entre os setores da sociedade, de forma que sejam implementadas novas opções de contratos de trabalho, em horários reduzidos. Nesta discussão, devem entrar em consideração o desperdício no descarte de especialistas no auge de sua formação profissional, a modificação da legislação trabalhista e a redução de impostos que facilitem alternativas para trabalho parcial, temporário ou de meio-período. Estas alternativas acomodariam não só a necessidade do aposentado que deseja continuar no mercado, mas também do estudante que precisa sustentar seus estudos e da mulher e do homem que têm sob sua responsabilidade o cuidado e a criação dos filhos pequenos. Estamos vivendo uma revolução nos conceitos e nas práticas organizacionais com relação ao envelhecimento dos trabalhadores, em que a prioridade é reforçar a atualização, o desenvolvimento pessoal e o bem-estar, tanto daqueles que desejam continuar no mercado, como para aqueles que desejam se aposentar. É importante ressaltar que a inserção e a participação social das pessoas mais velhas não se restringem apenas ao seu engajamento formal ou informal no mercado de trabalho, mas na sua atuação, quer na família ou na comunidade. Para que as organizações sejam parceiras do processo de crescimento e mudança social do país, é fundamental que deem o exemplo e cuidem da sua família organizacional. Isto inclui as oportunidades das equipes intergeracionais, tanto para aqueles que recém-ingressam na empresa, e representam o futuro, quanto para aqueles que estão saindo e que são os guardiões da memória organizacional. A crescente extensão na amplitude das faixas etárias nas equipes de trabalho trouxe ainda uma inquietação quanto às possibilidades de conflitos intergeracionais, sobretudo quanto à otimização da produtividade e à manutenção do clima motivacional entre os componentes
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das equipes (FRANÇA, 2008). Se, por um lado, a organização estava imbuída com o desenvolvimento e a especialização de seus jovens colaboradores, hoje ela também tem consciência da importância em oferecer condições para que os trabalhadores mais velhos se mantenham atualizados e assim permaneçam no mercado. Consequentemente, torna-se mais visível a formação de equipes com trainees de 20 anos e seniores de 65 anos ou mais de trabalhadores, cada um com sua função/responsabilidade/tarefa, mas envolvidos em um mesmo projeto. Entretanto, é preciso que estes encontros sejam facilitados e reduzidos os eventuais conflitos que possam surgir. As equipes intergeracionais são bastante motivadoras pela troca que proporcionam e podem formar uma ponte de conhecimento e apoio mútuo entre aqueles que detêm a experiência, a memória da organização, o conhecimento e o contexto do trabalho; e os mais jovens, que aprenderam as novidades tecnológicas, insumos metodológicos e que podem facilitar as práticas de trabalho. De forma que facilite o desenvolvimento e a capacitação das equipes compostas por duas ou mais gerações, sugere-se a adoção de dinâmicas de trabalho, com temas escolhidos pelos próprios trabalhadores. Além de facilitar o entrosamento entre as equipes, estas técnicas poderão proporcionar o intercâmbio de conhecimentos e da experiência entre os trabalhadores mais velhos e os mais jovens, estimular a solidariedade e reduzir possíveis conflitos entre as gerações. Um dos papéis dos gerentes de Recursos Humanos e dos gestores de pessoas – aqueles que lideram equipes – é favorecer o processo do resgate e registro da memória institucional e do trabalho. Os gestores podem identificar aqueles que desejam e têm condições de saúde para continuar trabalhando para a organização, de acordo com os critérios estabelecidos pelas políticas da organização. Os gestores deverão apoiar os aposentáveis engajados em projetos pós-carreira, ao mesmo tempo facilitar a troca de habilidades dos mais velhos aos mais jovens; e o repasse das novas práticas e tecnologias dos mais jovens para os mais velhos. Trabalhadores mais velhos, se estimulados, ajudam a criar um sistema de “pertencer” que é muito importante para a integração das equipes.
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ATiTUDES PERANTE A APoSENTADoRiA – o PoNTo DE ViSTA DoS TRABALHADoRES O conceito de aposentadoria está mudando e, apesar de todos os membros da sociedade serem convocados para contribuir para o bem-estar dos aposentados, o futuro depende também das atitudes individuais diante da própria vida. As atitudes são um conjunto de crenças, valores, conceitos, avaliações positivas ou negativas perante uma dada situação. As atitudes predispõem as pessoas a agir (comportamento), mas podem ser modificadas por um fato, incentivo ou pelo próprio desejo. Estudar a aposentadoria é analisar as atitudes dos trabalhadores, dos governos e das organizações, considerando os aspectos que podem determinar o bem-estar no futuro e assim antecipar as tendências. Para França (2004; 2008) as atitudes diante da aposentadoria dependem da perspectiva individual, social, familiar, da perspectiva econômica e sociopolítica e ambiental da coletividade onde os aposentados estão inseridos. Para medir estas atitudes perante a aposentadoria, foram construídas duas escalas: uma pautada na importância dos ganhos percebidos na aposentadoria (EPGR), outra que reflete a importância das perdas percebidas na aposentadoria (EPLR). Estas escalas foram aplicadas em 517 executivos (FRANÇA, 2004; FRANÇA & VAUGHAN, 2008), e os resultados da análise fatorial das respectivas escalas são relatados a seguir. A escala de ganhos foi composta por cinco dimensões: i) liberdade do trabalho (não ter mais que representar a empresa, não ter mais que gerenciar uma equipe, não ter mais responsabilidade pelo trabalho, que trabalhar sob pressão, compromisso de tempo, e ter mais liberdade para criar); ii) ter mais tempo para os relacionamentos (ter mais tempo para o relacionamento com os parceiros, com os filhos, com os pais, com os parentes e com os amigos); iii) novo começo (mais tempo para o trabalho voluntário, para a educação, participar da política e a chance de realizar um trabalho diferente); iv) ter mais tempo para atividades culturais e de lazer (viajar de férias, praticar esportes e atividades culturais e participar de clubes e associações); v) ter mais tempo para os investimentos (item homônimo).
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A escala de perdas foi subdividida em quatro dimensões: i) aspectos emocionais do trabalho (perda dos desafios do trabalho, responsabilidade do cargo, senso de ter um trabalho competitivo, liderança, poder de decisão, criatividade do trabalho, senso de pertencer à empresa); ii) aspectos tangíveis do trabalho (perda dos eventos e festas do trabalho, de ter uma secretária, status do cargo, do ambiente no trabalho, das oportunidades das viagens a trabalho; do senso de estar ocupado, reuniões e contatos com os clientes e da própria rotina; iii) relacionamentos do trabalho (com a equipe e com os colegas de trabalho); iv) salários e benefícios (plano de assistência médica e da compensação do cargo). Tanto os ganhos quanto as perdas esperadas com a saída do trabalho podem ser percebidos por qualquer trabalhador. Entretanto, a importância que cada um imprime às dimensões é que representa as atitudes positivas ou negativas perante o evento. Algumas perdas podem ser vivenciadas também pela família e justificam a importância de esta participar do programa de preparação para a aposentadoria. O reforço dos ganhos e a substituição das perdas por outros ganhos são fundamentais para o preparo para esta nova fase. França (2008) indicou ainda que os preditores mais importantes para as atitudes positivas ante a aposentadoria foram a diversidade nas atividades na alocação do tempo (SOD) e a influência da família e dos amigos (FFIRD) na decisão. Ou seja: estes dois preditores são capazes de influenciar positivamente os executivos em relação à aposentadoria, especialmente quanto à importância do tempo que eles poderão ter pela frente, seja para intensificar seus relacionamentos, realizar atividades culturais e de lazer, além das expectativas diante de um novo começo. Assim, como apontado por França (2009), o engajamento às atividades diversificadas e o relacionamento social e familiar devem ser estimulados nos Programas de Preparação para a Aposentadoria. A iMPoRTâNCiA Do PRoGRAMA DE PREPARAÇÃo PARA A APoSENTADoRiA – PPA A cultura brasileira tem cultuado muito mais o dia a dia e o imediatismo, e há quase uma ausência de reflexão para o futuro. Atividades
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de planejamento e de resolução de problemas deveriam ser estimuladas nas crianças por meio do currículo escolar, desenvolvidas na universidade, na comunidade, e estendidas no ambiente do trabalho. As pesquisas têm demonstrado que aqueles que têm oportunidade para planejar aposentam-se mais tranquilos e podem transformar esta fase em uma oportunidade de avaliação de possibilidades e otimização da vida. A preparação para a aposentadoria deve estar inserida à filosofia de educação ao longo da vida, podendo atingir tanto os interesses daqueles que desejam se atualizar para continuar no mercado de trabalho formal ou informal, quanto para o desenvolvimento social, cultural e individual. Assim, um PPA, além de abordar temas que promovam o bem-estar, deve estimular a atualização e o desenvolvimento das pessoas, o insumo de novas metodologias, a inserção digital e ainda aspectos de transformação social, como a quebra dos preconceitos contra o envelhecimento e a integração entre os mais velhos e mais jovens. O Programa de Preparação para a Aposentadoria (PPA) deve considerar tanto os fatores de risco (econômicos e de saúde), como os aspectos que favoreçam o bem-estar (relacionamentos familiares e sociais, lazer, voluntariado, projetos pessoais), e mesmo o ócio pode figurar entre as necessidades dos aposentáveis. Como resultado, o bem-estar dos aposentados representará um saldo positivo para toda a sociedade, pois não só afasta as possibilidades de doença, como se reverte em economia para os serviços de saúde, quer públicos ou privados. O PPA, numa perspectiva de novo começo, poderá prever até mesmo uma reorientação profissional para aqueles que desejam experimentar uma atividade provisória, consultoria ou voluntariado. É aconselhável, contudo, que as atividades que envolvam conteúdos laborativos sejam realizadas sempre em horários reduzidos, de forma que o aposentado tenha tempo para se dedicar a seus outros interesses. A aposentadoria deve ser um período de maior liberdade, em que o indivíduo decide e aprende como utilizar o seu tempo, mesmo que ele dedique algumas horas à atividade laborativa. Em alguns casos, o aposentável necessita reaprender a utilizar o tempo livre em prol dele mesmo. É um momento de aproveitar a vida, com todas as variedades
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e possibilidades de situações que antes não havia tempo para desfrutar. O trabalho, voluntário ou remunerado, pode estar incluído nesta nova distribuição, desde que tenha uma carga horária reduzida. Slowik (1991) demonstrou que existe uma relação entre o envolvimento dos trabalhadores em programas de preparação para a aposentadoria e a percepção de bem-estar, bem como entre as intervenções de apoio emocional antes da aposentadoria e a redução do nível de estresse provocado pela antecipação do fim do trabalho (NUTTMANSHWARTZ, 2004). Gall e Evans (2000) ressaltaram que o estresse da aposentadoria estava associado ao aspecto financeiro, ao relacionamento social e ao fato de o futuro aposentado se imaginar entediado e sem motivação, sendo difícil o ajustamento à mudança. Assim, a adoção de programas de pós-aposentadoria poderia ajudar os aposentados a se manterem saudáveis, reforçando as suas atitudes positivas. França (2002) acredita que o efeito do planejamento da aposentadoria torna-se mais eficaz quando os trabalhadores têm a oportunidade de participar do PPA com antecedência, e o ideal é que algumas palestras e workshops (por exemplo, que envolvam o risco financeiro e de saúde) sejam iniciados assim que o trabalhador ingressa na organização e desenvolvidos ao longo da sua carreira. Assim, a transição trabalho–aposentadoria, que normalmente traz uma certa ansiedade, poderia fluir de maneira mais tranquila, oferecendo condições para que o aposentável possa usufruir melhor seu tempo na nova fase da vida. O papel da organização é o de estimular a responsabilidade individual e o planejamento dos trabalhadores perante a aposentadoria. Os aposentáveis precisam receber informações sobre o processo, as variáveis que envolvem o risco – saúde e aspectos financeiros – e o bem-estar na aposentadoria – família, amigos, afetividade e sexualidade, lazer, desenvolvimento intelectual, participação social (FRANÇA, 2002). De posse dessas informações, eles poderão estar mais seguros para planejar como desejam viver seus próximos anos e organizar seus projetos de vida. A adoção dos PPAs é reconhecida como relevante para o bem-estar na aposentadoria: uma pesquisa realizada com 320 altos executivos brasileiros apontou que apenas 18% das suas organizações realizavam tais programas (FRANÇA, 2004, 2008). Contudo, mesmo as organiza-
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ções que adotam estes programas não têm em sua equipe profissionais com o preparo necessário sobre os aspectos psicológicos e sociológicos da transição trabalho–aposentadoria, bem como o conhecimento de pesquisas empíricas que destacam as variáveis que podem influenciar o bem-estar nesta transição. Da mesma forma, é preciso haver uma preocupação quanto ao diagnóstico prévio à implantação do programa, de forma que sejam reveladas as atitudes destes futuros aposentáveis diante da aposentadoria e as suas expectativas perante um programa. A organização, ao oferecer um programa que propicie o bem-estar aos seus empregados, acaba por agregar valor ao seu produto. Arriscamos hipotetizar que há uma relação entre: i) a credibilidade na organização; ii) o comprometimento dos trabalhadores jovens e mais velhos; iii) o cuidado da organização quanto ao bem-estar de seus colaboradores, da admissão até a sua saída. Mesmo para os futuros aposentados que contribuem para os fundos de pensão, e desfrutam de maior equilíbrio financeiro, é necessária a aquisição de informações atuais de forma que saibam gerir seus recursos. Sem dúvida, há pessoas que têm maior ou menor habilidade para planejar e lidar com dinheiro, e nem sempre a segurança financeira está relacionada ao salário. Apesar disto, a informação precisa estar disponível e o trabalhador tem que ter a oportunidade de simular o quanto é necessário economizar para que possa ter a condição de vida desejável. A perda financeira é a mais relevante e os conteúdos relacionados às finanças e aos investimentos devem ser oferecidos por meio de workshops. Deve ser estimulada ainda a discussão entre os participantes quanto ao estilo de vida que desejam adotar na aposentadoria, quanto esperam gastar, de quais recursos dispõem, quanto normalmente gastam, quantas pessoas sustentam, quanto economizaram e quanto esperam reinvestir no futuro. O aposentado deve levar em consideração a vida com qualidade, a longevidade e o que ele precisa reinvestir para que a sua sobrevivência seja uma realidade. Além da tranquilidade financeira, outros aspectos figuram na transição e as necessidades dos aposentados como: a preservação da saúde física e mental; a busca da criatividade e do equilíbrio nas relações entre os indivíduos; a afetividade e o prazer; o lazer e as
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manifestações culturais; e o ócio ou mesmo o retorno a uma atividade remunerada. Para Butler (2002), existem cinco aspectos relacionados ao bemestar: o primeiro é o financeiro, seguido da rede de relacionamentos sociais, a intimidade (relacionamento mais próximo), o físico (dietas e exercícios) e, por fim, um senso de propósito. Para ele, o senso de propósito pode incluir um trabalho formal, uma segunda carreira, o voluntariado ou um projeto pessoal, atividade esportiva, um tipo de aprendizado, ou algo que dê sentido à vida. Bossé, Aldwin, Levenson e Workman-Daniels (1991) e Ekerdt e Bossé (1982) apontam que, apesar de a aposentadoria trazer ansiedade, a educação e o aconselhamento poderão reforçar os aspectos positivos e reduzir os aspectos negativos com antecedência. França (2004, 2008) ressalta que um programa deve reforçar as percepções positivas e minimizar a importância dada às perdas. Deste modo, o programa deve incluir a discussão sobre os ganhos percebidos, sejam eles relativos à liberdade do trabalho, ao novo começo, ao tempo para os relacionamentos, a atividades culturais e de lazer e aos investimentos. O PPA deve ainda oferecer condições para que os aposentáveis busquem alternativas para compensar as perdas percebidas e aprendam como superá-las, sejam elas relacionadas aos aspectos emocionais do trabalho, aos aspectos tangíveis, aos relacionamentos do trabalho ou à perda dos salários e benefícios. O PPA é uma oportunidade não só para receber informações, mas para a adoção de práticas e estilos de vida mais saudáveis. É também o momento para reconstruir o projeto de vida, a curto, médio e longo prazos, priorizando os interesses e as atitudes que precisam ser considerados para realização dos projetos pessoais e familiares. Os Programas de Preparação para a Aposentadoria devem proporcionar maior participação, mobilidade e bem-estar dos aposentados. O Programa de Preparação para a Aposentadoria deve ser proposto pelas organizações, com o apoio do governo, das universidades e da sociedade. ASPECToS oPERACioNAiS DE UM PPA A transição da aposentadoria se inicia antes do desligamento do trabalhador e se estende até alguns anos depois da aposentadoria em
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si (ATCHLEY, 1989). O planejamento deve ser iniciado, idealmente, cinco anos antes da decisão. Contudo o planejamento precisa ser garantido assim que a pessoa ingressa no mercado de trabalho. É a poupança para o futuro, independentemente de outros planos de vida, como casamento, aquisição de automóvel, casa própria, nascimento e educação dos filhos, etc. DiAGNÓSTiCo O diagnóstico é o ponto de partida do PPA para que a demanda seja traduzida e revele o desenho próprio para a organização. O PPA pode ser realizado de diversas formas, e em várias etapas, a depender do prazo de quem está solicitando. Contudo, o diagnóstico precisa levar em conta, prioritariamente, os interesses dos futuros aposentados, suas atitudes diante da aposentadoria e os conteúdos a serem oferecidos nos módulos. Outras análises complementares ao diagnóstico poderão ser realizadas pelas organizações. Por exemplo, a identificação das políticas de Recursos Humanos e a opinião das gerências quanto à longevidade da organização. Uma terceira análise poderá considerar o número dos trabalhadores que a organização prevê aposentar. Assim, uma entrevista com estes prováveis aposentados, ou aqueles que estão mais próximos ao evento, poderia ser a oportunidade para detalhar os interesses e o quanto eles esperam ser atendidos pelo Programa. Uma quarta análise complementar seria entrevistar os aposentados da organização nos últimos cinco anos, focalizando os aspectos positivos e negativos da sua aposentadoria, especialmente no que diz respeito a sua qualidade de vida, aos preconceitos percebidos, e quais seriam os aspectos mais importantes para um planejamento na opinião deles. A análise deste referencial poderá ajudar a equipe a montar uma proposta de PPA que atenda aos requisitos da organização. CoNTEÚDoS DoS PPAS O PPA deve ser pautado no sucesso do planejamento e, por sua vez, deve envolver a antecipação de aspectos de riscos (saúde e aspectos financeiros) e de bem-estar na aposentadoria (família, amigos,
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afetividade e sexualidade, lazer, desenvolvimento intelectual, participação social). Deverá incluir conteúdos informativos e “formativos”, que são propostos através de módulos (FRANÇA, 2002). No módulo informativo, encontram-se as informações sobre a transição, e os aposentáveis são estimulados a refletir sobre como esperam viver seus próximos anos. Devem ser realizadas palestras com profissionais que trabalham com temas de interesse, identificados no diagnóstico prévio com os trabalhadores. Além de palestras, o módulo informativo pode incluir a exibição de vídeos e entrevistas com aposentados bem-sucedidos e empreendedores; aspectos relevantes para a promoção da saúde; e nutrição e atividade física. Entre os temas mais selecionados pelos trabalhadores para serem abordados nos workshops estão: criatividade, investimentos financeiros, inserção digital, empreendedorismo e hábitos saudáveis. Estas temáticas podem fazer parte de um cadastro contendo contatos de psicólogos, economistas, dermatologistas, nutricionistas, médicos geriatras e instituições locais. Os módulos podem também seguir eixos temáticos, tais como saúde, família, comunidade, segunda carreira, intergeracionalidade. O módulo informativo deve ser oferecido para todos os trabalhadores, embora priorizada a participação daqueles que estejam próximos à aposentadoria. O módulo informativo é essencial e se constitui em um manancial básico para ajudar o trabalhador a coletar informações para a tomada de decisão, que não é obrigatória. O módulo informativo representa o início de uma preparação, mas não necessariamente irá tocar no projeto de vida dos futuros aposentados, que deve ser abordado no módulo formativo ou vivencial. O segundo módulo, ou módulo formativo ou vivencial, deverá incluir a discussão do projeto de vida. Neste o trabalhador poderá experimentar novas situações, desenvolver habilidades, aptidões e mesmo descobrir novos interesses. O trabalho, como atividade remunerada ou voluntária, deve ter um espaço reduzido para que outros contextos sejam inseridos numa divisão de tempo mais equilibrada. O módulo do projeto de vida poderá ser iniciado a partir das discussões sobre as percepções de perdas e de ganhos perante a aposentadoria, e como elas poderão ser reforçadas e melhoradas. A organização deverá promover encontros sistemáticos entre aqueles que
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irão se aposentar, convidando um psicólogo para facilitar as reflexões e discussões e reforçar os pontos em comum. Nesses encontros, os aposentáveis irão avaliar o que foi alcançado no prazo que eles estabeleceram, as dificuldades em face de metas estabelecidas, bem como as estratégias e as alternativas que devem utilizar para alcançar o que desejam. A tendência atual da aposentadoria é ser um evento do casal, já que homens e mulheres estão participando ativamente do mercado de trabalho. Apesar disto, eles reagem e se adaptam de forma diferente, como consequência das trajetórias e das expectativas de gênero (MOEN, KIM & HOFMEISTER, 2001; QUICK & MOEN, 1998; SMITH & MOEN, 1998; SZINOVACZ, DEVINEY, & DAVEY, 2001). Para facilitar o processo de adaptação a estas diferenças, o programa deve considerar a participação dos parceiros em algumas das atividades para os aposentáveis. O projeto de vida deverá oferecer a oportunidade para refletir sobre a qualidade do relacionamento familiar e do casal. Algumas crises podem ocorrer no início da transição. Contudo, se o casal tiver um nível satisfatório de intimidade e entendimento, com mágoas já resolvidas, será mais fácil que as adversidades sejam superadas nesta fase. A organização deverá designar um facilitador para o segundo módulo, cuja tarefa básica é estimular o aposentável a focar o seu projeto de vida. Isto inclui o reforço do que foi alcançado, sugerindo estratégias, em função das dimensões priorizadas pelos próprios aposentáveis, sejam elas familiares, sociais, econômicas, comunitárias, afetivas, laborativas, intelectuais, de saúde, espirituais, culturais ou de lazer. Para Soares (2002) a reorientação pode ajudar a buscar os sonhos adormecidos, a realização de projetos deixados para trás por motivos familiares e profissionais. O projeto de vida difere dos sonhos. Nos sonhos as pessoas trabalham com a fantasia, que pode ser impossível ou irrealista. O projeto precisa ser paupável, viável e baseado nos interesses, nas necessidades e no que se quer fazer ou viver. Deverão participar do módulo formativo ou vivencial aqueles que já se decidiram pela aposentadoria e estão comprometidos em experienciar uma outra forma de divisão de tempo, em que os interesses poderão ser descobertos e reinventados. Para esta nova experiência de divisão de tempo, é recomendável que
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seja reduzida a carga horária (ou no horário de entrada ou no de saída) para que este grupo possa ter ao seu dispor pelo menos duas horas diárias, seis meses antes da aposentadoria. Tal como num projeto, o cronograma deverá incluir o detalhamento das etapas, de acordo com o prazo desejável para cada dimensão ou aspecto a ser desenvolvido. É preciso que sejam escalados os degraus necessários para o alcance do topo da montanha. Cada aposentável deve definir as formas para gerenciar e controlar o seu projeto de vida a curto, médio e longo prazos. Recomenda-se a inclusão de um gráfico de intenções (o que foi investido e o que se pretende investir), que pode auxiliar o processo de acompanhamento. O acompanhamento deve ser pautado na análise do que já foi investido e do que é preciso investir, numa abordagem multidimensional, ou seja: o que foi planejado realizar, o que efetivamente foi realizado num intervalo de tempo x e o que é preciso fazer para que as metas propostas sejam atingidas. ACoMPANHAMENTo E AVALiAÇÃo Do PPA Para que a organização confirme a importância dos Programas de Preparação para Aposentadoria e se eles atingiram os interesses dos aposentáveis são necessárias avaliações periódicas, mesmo após a aposentadoria. Este será o feedback necessário ao aperfeiçoamento dos módulos, tanto em função das temáticas quanto da metodologia do programa. Nos dois primeiros anos, a aposentadoria ainda representa uma lua de mel, mas a ausência do trabalho e dos relacionamentos nos anos subsequentes pode ser problemática. O acompanhamento deve ser periódico e preferencialmente se estender até cinco anos após a saída do trabalhador da organização. Devem ser avaliados os resultados dentro do que foi abordado no programa, para que ele seja realimentado, e serem introduzidas as modificações de acordo com os pontos positivos e negativos avaliados. As associações dos aposentados devem ser convidadas a participar e/ou colaborar com o PPA desde o seu início. Algumas atividades ou palestras poderiam ser realizadas em conjunto, bem como cursos de atualização, inserção digital, projetos de voluntariado e outros que fossem identificados no diagnóstico.
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CoNCLUSõES A aposentadoria se apresenta como um período de incertezas, apesar das sofisticadas projeções econômicas e atuárias tão em voga no mundo de hoje. Há, sem dúvida, uma carência de estudos e pesquisas diante desta realidade, bem como são desconhecidos e imprevisíveis os comportamentos dos trabalhadores e das empresas perante o aumento da expectativa de vida. Sob o prisma econômico, se a expectativa de vida está aumentando será inviável que a Previdência tenha recursos para pagar um contingente cada vez mais numeroso de aposentados. Este fato por si gera uma nova contradição, principalmente se nos detivermos nas desigualdades sociais do Brasil, onde muitos trabalhadores aos 50 anos já estão sem condições físicas para continuar a trabalhar, exercendo funções extremamente penosas e sacrificantes. Considerando a saúde e a vontade daqueles que desejam continuar trabalhando, e o investimento em tempo e recurso para que tivessem se tornado especialistas, é imprescindível uma mudança de mentalidade no aproveitamento desta mão de obra. Esta mudança de comportamento, em parte justificada pela busca do crescimento econômico e pela eliminação das diferenças entre a produção de bens e serviços entre os países periféricos e os ricos, é hoje motivo de agenda dos governos e organizações. É preciso garantir a participação e o envolvimento de todos, jovens e velhos trabalhadores, em função da melhoria do bem-estar comum. Por conseguinte, observa-se uma proliferação de equipes intergeracionais e, em alguns casos, a escala hierárquica é inversamente proporcional à pirâmide etária. Apesar de as organizações estarem despertando para a importância da retenção dos trabalhadores no mercado e da atualização dos seus trabalhadores mais velhos, é preciso que elas também sejam sensibilizadas quanto aos benefícios da integração das equipes intergeracionais. Saber gerenciar equipes com faixas etárias diferenciadas, possibilitar as trocas e mantê-las motivadas, harmônicas e produtivas é o novo desafio para a gestão de pessoas. Da mesma forma, apoiar e acompanhar o trabalhador que decidiu se aposentar é o papel das gerências.
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A cada dia se faz presente a proliferação de um programa de educação desenvolvido pelas empresas, universidades e pelo governo, voltado para o apoio ao trabalhador tanto na sua decisão quanto no planejamento, desde que seja garantida a livre-escolha daquele que decide se aposentar. O modo como as gerências irão se comportar diante dos subordinados em vias de se aposentar irá se refletir na harmonia da equipe e no bem-estar daqueles que sairão da organização. Consequentemente, estarão contribuindo para perpetuar a filosofia da organização na sociedade e para a promoção da sua imagem organizacional e de seus produtos. O Programa deverá apoiar o aposentável na administração dos seus tempo de trabalho e tempo livre para suas necessidades e interesses (FRANÇA, 2002). Viver mais não significa viver melhor, e existem diversos fatores que podem contribuir para um viver mais saudável, de forma que seja obtido o equilíbrio entre tempo de vida e trabalho. A falta deste equilíbrio tem sido um dos problemas mais sérios que o aposentado brasileiro enfrenta, até porque o trabalho é supervalorizado neste país, bem como o tempo dedicado a ele. Tendo passado a maior parte da vida dentro de um escritório, muitas vezes o trabalhador não sabe o que fazer com o seu tempo livre. O PPA deve estimular uma avaliação dos investimentos realizados e a serem desenvolvidos pelos trabalhadores, perante o relacionamento familiar, afetivo e social, a educação, as realizações pessoais, a cultura, ao lazer, a saúde, as finanças, o voluntariado e mesmo a segunda carreira. Estes e outros conteúdos poderão estar inseridos no projeto de vida do trabalhador e seguir uma escala de prioridades em função dos seus interesses, numa perspectiva de curto, médio e longo prazos. Assim, mais do que dispor da liberdade de escolha, é preciso que os trabalhadores mais velhos tenham subsídios e elementos necessários para decidir sua aposentadoria, bem como para gerenciar o seu projeto de vida, administrando as perdas e reforçando os ganhos, em função dos desejos e das possibilidades.
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ESCoLAS DE SAMBA: CoNFoRMAÇÃo E RESiSTÊNCiA Máslova Teixeira Valença
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Este artigo é parte do resultado de ampla pesquisa que procurou investigar a dimensão educativa do trabalho nos barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro. Nele analisa-se a trajetória das escolas de samba desde a sua criação, nos anos 30 do século passado, até os dias atuais. Destacam-se as condições sociais, econômicas e culturais do momento de seu surgimento, a sua institucionalização e finalmente os elementos determinantes da sua transformação em espetáculo regido por fortes interesses econômicos. A construção do Sambódromo e a criação da Liga Independente das Escolas de Samba são apontadas como marcos da espetacularização do desfile das escolas de samba do grupo especial, responsável por uma exacerbação da profissionalização da produção do desfile e do “empresariamento” da administração das escolas de samba. A forma como a profissionalização vem ocorrendo é discutida a partir dos resultados da pesquisa realizada no barracão do G.R.E.S. Império Serrano, cujas conclusões apontam para o grande risco que o esvaziamento do sentido de coletividade existente naquelas agremiações pode representar para a sua existência.
This paper is the result of an extensive research which aims at investigating the work’s educational dimension at samba schools’ workshops in Rio de Janeiro. The history of samba schools has been analyzed since their foundation in the 30s. This paper demonstrates the social, economic and cultural conditions in their beginning, their formal establishment and finally the evidence of their transformation into a show governed by powerful economic interests. The construction of the Sambadrome and the Samba Schools Independent League foundation are identified as a landmark of the samba schools’ parade transformation into a show business. The Samba Schools Independent League was also responsible for turning the parade’s production into more professional and the samba schools’ administration into more “entrepreunal”. The way business is managed has been discussed based on the research results concluded at Império Serrano’s Workshop, whose findings proved to be a great risk of emptying the sense of community associations.
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O presente trabalho é resultado de uma pesquisa realizada nos anos de 2003 e 2004, que teve por objetivo apreender o processo educativo que se efetiva nos barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro. O estudo levou em conta o contexto no qual se insere o trabalho nos barracões, no qual identificamos, de um lado, um processo de mercantilização da produção do desfile dessas agremiações carnavalescas e, de outro, a manifestação de intensas transformações no mercado de trabalho. Cabe destacar que tratamos o processo educativo em dois sentidos complementares: o primeiro relacionado à escolarização e à aprendizagem do conteúdo do trabalho, e o segundo referente à possibilidade de resistência ao controle do capital. Procurando um deslocamento conceitual em relação a outros estudiosos da evolução das escolas de samba, que opõem uma origem genuína a um presente degradado, buscamos demonstrar que as escolas de samba, oriundas das formas de lazer da população marginalizada, são fruto da afirmação do capitalismo industrial no Brasil e que, portanto, sua existência sempre esteve marcada por elementos de conformação e resistência. Para tanto, organizamos esse texto em quatro partes. A primeira situa o contexto no qual surgiram o samba e as escolas de samba como estratégia de afirmação deste gênero musical, no bojo do processo de modernização conservadora imposto ao país a partir dos anos 1930. A segunda discute a espetacularização do desfile das escolas de samba, demandando das agremiações novas estratégias de organização interna. A terceira atém-se aos impactos que a atual configuração do mundo do trabalho traz para os trabalhadores. A quarta apresenta os dados da pesquisa empírica realizada no barracão do Grêmio Recreativo Escola de Samba (G.R.E.S.) Império Serrano. Por fim, as conclusões procuram, a partir do confronto entre as questões levantadas ao longo do texto e a realidade observada na pesquisa empírica, destacar os elementos formadores no processo de trabalho que se realiza no barracão, bem como a manifestação de formas de alienação no trabalho e de expropriação do saber, características do modo de produção capitalista.
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NASCEM o SAMBA E AS ESCoLAS DE SAMBA Nascidas no seio da população marginalizada, remanescente da desordenada migração rural que sucedeu a abolição da escravidão, as escolas de samba surgiram por volta de 1920, nas imediações da Praça Onze. Ao longo de sete décadas de apresentações em desfiles1, elas adquiriram uma feição bastante diversa daquela que as caracterizava em seus primórdios. Passaram de manifestação espontânea de um grupo social restrito a espetáculo de prestígio internacional, regido por fortes interesses econômicos. O surgimento das escolas de samba está associado a dois fenômenos que tiveram lugar na cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. O primeiro é a aparição do samba enquanto gênero musical, e o segundo relaciona-se às diferentes formas de lazer da classe trabalhadora em formação naquele período. Os fenômenos supracitados situam-se no contexto mais amplo das mudanças estruturais que se realizaram no país, visando à sua integração ao capitalismo internacional, onde a cidade do Rio de Janeiro teve um papel destacado. Não cabe aqui traçar um amplo painel do modo como o Brasil incorporou-se ao modelo capitalista vigente na Europa pós-Revolução Industrial. Cabe somente destacar que o referido processo, naquele momento, passou, no âmbito político, pela superação do estágio colonial, com a instituição do regime republicano e, no socioeconômico, pela gradativa industrialização do país. A superação de uma mentalidade associada à vida agrário-colonial e a sua substituição por outra mais adequada ao modelo urbano-industrial que se procurava alcançar foram as grandes questões que se colocaram no âmbito da cultura2. Daremos ênfase especial a essa passagem que implicou a disseminação de um conjunto de ideias para toda a sociedade, no sentido de dar sustentação ao projeto político de aproximar o país de um modelo de civilização europeu. Esse processo pode ser identificado como um momento exemplar de disputa de hegemonia na sociedade brasileira, se considerarmos a hegemonia tal como definida por Gramsci (1991) O primeiro desfile, organizado pelo jornal Mundo Sportivo, data de 1932. “Compreendida como o modo como os sujeitos individuais e coletivos concebem e representam o real, nele se reconhecem e se situam.” (RUMMERT, 2000, p. 27)
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como a direção cultural e política que se procura imprimir à totalidade social por intermédio de permanente ação educativa. Um tipo de ação educativa por meio da qual “são produzidas e valorizadas determinadas formas de representação da realidade, crenças e valores, padrões de relações e de comportamentos sociais e individuais que irão imprimir características particulares à cultura de uma determinada sociedade” (RUMMERT, 2000, p. 27). Capital da República recém-implantada, a cidade do Rio de Janeiro terá um papel decisivo na construção de uma nova identidade para o país. No curso das transformações socioeconômicas e políticas ocorridas na virada do século XIX para o século XX, a cidade teve o seu perfil urbano e demográfico profundamente alterado. A leitura de Chalhoub (2001) nos auxilia a compreender o alcance destas transformações para além de seus aspectos mais visíveis. Ajuda-nos, principalmente, a identificar o “lugar” destinado à classe trabalhadora, especialmente à população negra, nesse processo. Dentre as questões tratadas pelo autor destacamos em primeiro lugar as alterações operadas nas relações de trabalho, que promoveram a transição das relações de tipo senhorial-escravista para as de tipo burguês-capitalista, incluindo neste processo a construção de um novo conceito de trabalho3 e a repressão a qualquer atividade que pudesse ser taxada de vadiagem. Importa também destacar a forma como as obras de renovação da cidade, mais conhecidas como “bota-abaixo”, do prefeito Pereira Passos, valorizaram o espaço urbano, expulsando amplas parcelas da população pobre do centro da cidade. E, por fim, salientar que as transformações em curso na época estavam relacionadas ao projeto de integração do país à economia internacional, implicando ajustes nas formas de viver da população brasileira e na economia do país e da cidade, conforme destacamos anteriormente. Chalhoub (2001) demonstra como o regime republicano teve como um de seus projetos políticos mais urgentes a transformação do homem O trabalho será aqui tratado em duas perspectivas. A primeira, segundo a abordagem de Chalhoub, que aponta para o momento específico de transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. A segunda, que identifica a antinomia, apontada por Marx (1982), entre o trabalho como categoria ontológica do ser social (Lukács, 1978) e o trabalho transformado em mercadoria sob o modo de produção capitalista.
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livre em trabalhador assalariado. Demonstra, ainda, que o referido projeto já vinha se delineando desde meados do século XIX, quando a supressão definitiva do tráfico de escravos é acompanhada por leis que regulamentavam o acesso à terra, vedando a esse grupo social o direito à propriedade da mesma. Entretanto, a transformação desse homem livre em trabalhador assalariado não foi um processo simples nem tampouco imediato. A imersão do trabalhador previamente expropriado nas leis do mercado de trabalho assalariado passa por dois movimentos essenciais, simultâneos e não excludentes: a construção de uma nova ideologia do trabalho e a vigilância e repressão contínuas exercidas pelas autoridades policiais e judiciárias (CHALHOUB, 2001, p. 47).
Esses dois movimentos – construção de um novo conceito de trabalho e repressão à ociosidade – representam, assim, duas faces de uma mesma questão. O negro era visto pela classe dominante da época como uma ameaça à ordem e à propriedade. Segundo seu entendimento, a condição de escravo não o teria preparado para a convivência dentro das leis de uma sociedade livre; ele não traria em seu repertório as noções de justiça, de direito à propriedade e de liberdade. Era preciso, então, desencadear, por um lado, um processo de educação para o trabalho, visando à sua conformação ao modelo de sociedade em construção, e, por outro, combater todas as formas de “não trabalho”, ou seja, de ócio ou de vadiagem, conforme expressões da época. O abandono de hábitos que pudessem ser identificados com o atraso colonial também fazia parte do projeto de “modernização” do país. Nesse sentido, as casas de cômodos e cortiços localizados no centro, onde habitavam cerca de um quarto da população da cidade, em sua maioria negros e mestiços, não se adequavam a este projeto. A falta de condições de higiene nessas unidades habitacionais foi o principal argumento das autoridades para acabar com esse tipo de moradia. Segundo Cabral (1996), a partir de 1893 o prefeito Barata Ribeiro mandou demolir parte dessas habitações e, no início do século XX, a já mencionada revolução urbanística conhecida como “bota-abaixo” promovida pelo prefeito Pereira Passos concluiu o serviço.
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É importante compreender que para aquela população a extinção do local de moradia representou o rompimento dos vínculos com vizinhos e parentes e a necessidade de construção de novos laços em um novo ambiente, desconhecido e, muitas vezes, inóspito. A mudança teve um grande impacto sobre essa população, considerando que negros e imigrantes tinham nos laços de amizade e vizinhança pontos de apoio importantes em função da perda de referências socioculturais decorrentes de sua condição, seja de escravo ou imigrante. Perda essa que no caso dos escravos é agravada pelo rompimento dos laços construídos nas senzalas, que se desarticularam com a abolição. A mudança do local de moradia representaria, ainda, um duro golpe em suas formas de organização e relacionamento. Seus pontos de encontro “se dispersaram neste momento de transição, vivendo o negro no Brasil novamente a situação de ruptura de seu mundo associativo e simbólico frente às estruturas sociais em mutação” (MOURA, 1995, p. 17). Os hábitos da vida comum que, de certa forma, protegiam essa população se desfizeram e só voltariam a se recompor na Cidade Nova e nas favelas depois de algum tempo. Impossível imaginar que um projeto de tal magnitude fosse implantado sem que houvesse resistências. Inúmeros foram os movimentos de oposição que se forjaram até os anos 1960/70, quando o mesmo virá a esgotar suas possibilidades. Contudo, a resistência a esse projeto político não se deu apenas no âmbito dos movimentos organizados, mas também no dia a dia da classe trabalhadora. O samba, com as características que lhe eram próprias no período, pode ser compreendido como uma dessas estratégias de resistência, que, em sua dimensão contraditória, abriga igualmente espaços de conformação. Moura (1995) reforça essa ideia ao destacar que uma das formas de organização da classe trabalhadora foram os sindicatos liderados pelos anarquistas, e outra foram os centros religiosos e organizações festeiras que garantiram a permanência das tradições africanas na cidade, sendo, na ocasião, duramente reprimidas pelas forças policiais. As casas de macumba que abrigavam o samba confundiam-se com as chamadas casas das festeiras, que eram pontos de referência e de encontro para os adeptos dos cultos, da música e da dança afro-brasi-
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leiros. Essas casas eram comandadas, quase sempre, por baianas – as famosas tias – que gozavam de grande prestígio junto ao seu grupo social, em função de sua liderança religiosa e, também, de sua generosidade para com os conterrâneos que, como elas, quisessem vir da Bahia para se estabelecer na capital federal. Assim, suas casas tornaram-se referência não apenas para os baianos, mas para toda a população que habitava a região do centro da cidade. As festas nas casas das tias são lembradas por seus descendentes como momentos de lazer e devoção, em que a criação e a expressão musical eram privilegiadas. Na parte da frente das casas, um baile animava os frequentadores, enquanto os quintais, nos fundos, eram reservados às rodas de samba que duravam dias, sendo acompanhadas pelos famosos quitutes baianos. Dos encontros nas casas das tias, especialmente na casa da Tia Ciata, a mais famosa das baianas da Cidade Nova, nasce o samba como gênero musical. Os sambas eram apresentados nas rodas de bambas onde os frequentadores improvisavam versos, produzindo composições “bastante mutáveis”, cuja autoria era coletiva. À medida que o projeto das classes dominantes ia se consolidando, reduzia-se a necessidade de repressão às camadas populares, passando-se a utilizar mecanismos mais sutis de adesão ao projeto dominante. Em outras palavras, minimizam-se os espaços de coerção e ampliam-se os espaços de produção de consensos na disputa por hegemonia na sociedade. Os estudiosos do samba identificam a partir dos anos 1920 uma redução da perseguição policial e até mesmo um movimento de valorização do samba. O reconhecimento institucional das formas de expressão e lazer das camadas populares e a integração ao mercado fonográfico foram fatores decisivos para a rápida disseminação do samba criado pelos compositores do Estácio, incentivando a criação de escolas de samba e revelando novos compositores à indústria fonográfica e à imprensa. Depois de desarticulada pelo violento processo de transferência do local de moradia, a vida dos grupos que foram alvo do “bota abaixo” do prefeito Pereira Passos começa a se reorganizar nos morros e subúrbios da cidade. Forjam-se novas lideranças locais e surgem grupos religiosos e festeiros semelhantes aos existentes na Cidade Nova. A vida já reconstituída nos morros e subúrbios produziu inúmeros
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pontos onde se praticavam os cultos afro-brasileiros, o samba, o jongo e o caxambu. Além das reuniões realizadas no próprio local de moradia, a Festa da Penha4 e a Praça Onze5 eram pontos de reunião dos diferentes grupos populares. Com a descentralização dos locais de moradia passam a ser comuns as visitas que os grupos de uma localidade faziam aos moradores de outro ponto da cidade. Os momentos de encontro têm evidentemente um papel fundamental na disseminação das novidades, nascendo as escolas de samba dessa síntese entre o samba trazido e divulgado pelo pessoal do Estácio e os vários grupos carnavalescos mais ou menos organizados existentes nos morros. Foram os momentos de reunião desses agrupamentos festivos na Praça Onze que chamaram a atenção de alguns jornalistas, levando-os a promover, por meio do jornal, o primeiro concurso entre as agremiações6, em 1932. O primeiro desfile tem lugar no Rio de Janeiro dos anos 1930, época em que a cidade já era considerada a Paris dos Trópicos, representando a vitória do projeto de integração do país ao sistema econômico capitalista mundial. Entretanto, a coesão que viabilizou a implantação deste projeto não foi suficiente para avançar na consolidação do capitalismo no Brasil; foi preciso uma nova reorganização das forças políticas para dar continuidade a ele. Os anos 1920 e 1930 foram marcados por inúmeras disputas entre correntes de pensamento que tensionaram o cenário político nacional. A tomada do poder pela Aliança Liberal liderada por Getúlio Vargas colocou um fim na velha República e marcou a queda da hegemonia oligárquica no país, abrindo caminho para a industrialização. A industrialização era vista como um meio de afirmação do país e de superação de suas dificuldades socioeconômicas e o Rio de Janeiro, mais uma vez, simbolizava a capacidade brasileira de construir uma A Festa da Penha era um importante ponto de encontro onde sambistas de diferentes pontos da cidade se encontravam para cantar o samba. Sobre a festa da Penha ver Moura (1995). 5 A Praça Onze era à época ponto de confluência de vários morros e bairros ocupados pela população negra carioca. 6 A falta de notícias relacionadas ao esporte teria levado Mário Filho a inventar o concurso entre as escolas. Sobre o assunto ver Cabral (1996). 4
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civilização nos trópicos. Era preciso destruir os últimos resquícios do atraso colonial e em seu lugar colocar uma sociedade moderna e original. A cidade cumpriu este papel destruindo o Morro do Castelo, ainda ligado ao estilo de vida colonial, e convertendo Copacabana, até então um imenso areal, em ícone da modernidade e da originalidade nacional. A cidade deixa de ser a Paris dos Trópicos para ser o Paraíso Tropical (LESSA, 2000). Se na República velha o samba representava uma ameaça à ordem vigente, podemos dizer que na nova República ele já está inteiramente integrado à institucionalidade nacional. O projeto de industrialização do país demandou um aparato jurídico e institucional que materializou-se na criação da legislação trabalhista e previdenciária, na criação e desmembramento de ministérios e de diversas organizações repersentativas da sociedade, dentre elas a União das Escolas de Samba (UES)7, em 1934. A UES nasce com o objetivo mais imediato de conquistar a oficialização do desfile, o que garantiria às escolas uma subvenção oficial, a exemplo do que já ocorria com os blocos, ranchos e grandes sociedades. Era uma entidade legal, reconhecida não apenas pelos sambistas como pelo poder público. Considerando que o desfile das escolas de samba, na ocasião, já fazia parte do calendário turístico oficial, o pleito foi rapidamente atendido, estando, já em 1935, oficializado o desfile. A integração das escolas de samba à sociedade brasileira e à carioca, em particular, pode ser verificada, ainda, em diversos episódios relatados por Cabral (1996, p. 108), tais como a transmissão do programa oficial A hora do Brasil do dia 30 de janeiro de 1936 diretamente da Mangueira para a Alemanha “como forma do governo brasileiro fazer média com os nazistas com quem flertava”, ou a publicação dos artigos do então jovem comunista Carlos Lacerda defendendo o caráter classista do samba e atacando a sua apropriação pela indústria fonográfica. Pode também ser compreendida se verificarmos as disputas internas à entidade representativa das No início de 1939, a União das Escolas de Samba (UES) atravessa uma crise interna e muda seu nome para União Geral das Escolas de Samba (Uges). Em fins da década de 1940 novas disputas fragmentarão a entidade, que só virá a reunificar-se nos primeiros anos da década seguinte, já com o nome de Associação das Escolas de Samba do Brasil. Sobre o assunto ver Cabral (1996).
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escolas de samba, que vinculam-se, de certa forma, ao ideário dos partidos políticos da época8. Convém lembrar, ainda, que as escolas, desde os seus primórdios, participaram de filmagens para o cinema, tiveram os seus instrumentos vendidos em lojas especializadas, receberam em suas quadras a visita de políticos influentes, de jornalistas, de estudiosos da cultura brasileira e de turistas. Um público bastante eclético assistiu, desde sempre, ao seu desfile. Fatos que, do nosso ponto de vista, demonstram e comprovam que as escolas de samba já nascem perfeitamente integradas à institucionalidade do país. Evidentemente, isso não significa que essa incorporação tenha se dado sem confrontos. Como sabemos, ao longo da trajetória das escolas de samba houve inúmeras ocasiões em que a violência, ou sua outra face, o preconceito, se manifestaram contra os sambistas. Mas as escolas de samba, frutos da sociedade urbano-industrial, souberam resistir e ao longo do tempo permaneceram integradas à vida cultural da cidade e do país não apenas em suas dimensões de conformação, mas também de resistência. As escolas de samba tiveram um importante papel na definição das formas de participação de amplas parcelas da classe trabalhadora na vida institucional do país. Essa população esteve incorporada ao projeto de implantação do capitalismo no Brasil não apenas pela via do trabalho assalariado, mas também por essa “outra porta” propiciada pela participação no dia a dia das escolas de samba. Guardando as tradições associativistas e gregárias herdadas das casas das baianas puderam não apenas afirmar as suas formas de lazer e produção musical, mas, pelo tipo de interação que estabeleceram com as formas de produção social da existência que se desenvolveram no país, agregar novos elementos que tornariam o desfile o maior espetáculo da Terra. Cabral relata com riqueza de detalhes como o apoio que a União Geral das Escolas de Samba (Uges) deu ao Partido Comunista, vitorioso nas eleições de janeiro de 1947 para a Câmara dos Vereadores, despertou a ira da direita, que em represália fundou uma outra entidade para as escolas de samba: a Federação Brasileira das Escolas de Samba. Esta, com o apoio da Prefeitura, provocou um racha no desfile, que só voltaria a se unificar em 1952. Sobre o assunto ver Cabral (1996).
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AS ESCoLAS DE SAMBA ToRNAM-SE SUPERESCoLAS DE SAMBA De manifestação cultural de uma parcela da população que lutou para incorporar-se à institucionalidade do país a espetáculo de grande visibilidade na mídia, as escolas de samba percorreram um longo caminho. O desfile chega aos dias atuais transformado em produto cultural em uma sociedade muito distinta daquela que forjou as escolas de samba nos anos de 1930 e 1940. Não seria possível, tampouco é nosso objetivo neste artigo, fazer um apanhado histórico dessa evolução. Estabelecemos como marcos da espetacularização dos desfiles a construção do Sambódromo e a criação da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), ambas em 1984. A construção do Sambódromo, na medida em que procura responder aos problemas provocados pela crescente ampliação do público interessado em assistir ao desfile, impôs um novo dimensionamento para a apresentação das escolas de samba, provocando com isso alterações em sua organização interna. A Liesa, por sua vez, na tentativa de estabelecer um novo tipo de relacionamento, de um lado, do público com o desfile e, de outro, das escolas com o poder público, determina um tipo de organização para o desfile, que acaba por padronizar a apresentação das escolas, o que também provocará impactos nas suas formas de gestão. Evidentemente o ano de 1984, tratado aqui como marco de um conjunto de transformações que tornaram o desfile um espetáculo, não deve ser entendido como um momento de ruptura. Muitos aspectos que viriam a consolidar-se após a construção do Sambódromo e a fundação da Liesa já estavam em processo de desenvolvimento bem antes destes fatos. É conveniente, entretanto, destacar que não nos propomos a investigar os múltiplos aspectos decorrentes destes dois episódios, mas a examinar aqueles que, de alguma forma, se tornaram elementos determinantes para a adoção de um modelo de gestão que transforma o trabalho existente nas escolas de samba em trabalho assalariado, privilegiando seu valor de troca em detrimento de seu valor de uso. São eles: a ampliação da escala do desfile propiciada pelo gigantismo do Sambódromo e uma nova forma de apresentar e gerir o espetáculo proposta e implementada pela Liesa. A face mais visível das transformações pelas quais passaram as escolas de samba e que está articulada aos objetivos deste trabalho é
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a ampliação da escala e o refinamento estético e técnico dos carros alegóricos. As alegorias, por sua dimensão e concepção, passaram a ocupar um lugar de destaque no desfile carnavalesco. Itens secundários nas origens das escolas de samba, as alegorias ganharam maior destaque quando o “ver” toma uma dimensão maior que o “brincar” (CAVALCANTI, 1994, p. 52). A mudança na concepção estética do desfile, a ampliação das alegorias e fantasias e a introdução (ainda que extraoficialmente) do quesito luxo estão relacionadas a uma transformação na relação das escolas com o público assistente. O crescente aumento do público interessado em assistir ao desfile das escolas de samba levou as autoridades a estabelecer, em 1962, a venda de ingressos como requisito de acesso ao local do desfile. Inicia-se, a partir daí, uma mudança no perfil do público, na medida em que o valor do ingresso passa a determinar quem terá acesso à “Avenida”. Vai-se moldando assim uma separação entre o desfile e o público, tanto do ponto de vista físico quanto socioeconômico, que atingirá o seu ápice com a construção do Sambódromo. Um local definitivo para abrigar os desfiles era uma antiga reivindicação dos sambistas, que foi atendida pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro em 1984. A questão imediata que se colocava era acabar com a etapa de montagem e desmontagem das estruturas, cada vez maiores, das arquibancadas, que além de dispendiosa para os cofres públicos causava inúmeros transtornos à vida da cidade. A construção representava também uma forma de reconhecimento, por parte do poder público, da importância das escolas de samba, na medida em que se tornaria um monumento da cidade. Se as mudanças provocadas pelos carnavalescos formados em belasartes que passaram a conceber o carnaval a partir dos anos de 1970 foram no âmbito estético, o Sambódromo irá provocar mudanças mais estruturais no escopo do desfile. Uma das mais fortes sensações que o desfile de 1984 deixou foi o descompasso entre a dimensão das escolas de samba e a passarela. Para usar uma expressão popular, tinha-se a impressão de que o “defunto era maior”. As primeiras soluções encontradas foram a ampliação do número de carros alegóricos e de suas dimensões, por um lado, e o aumento do número de desfilantes e do tamanho de suas fantasias, por outro.
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Os carros alegóricos, que antes comportavam um único plano, com a ampliação de comprimento, altura e largura, passam a ter como possibilidade a criação de uma multiplicidade de planos; passam a agregar, ainda, inúmeras figuras vivas que lhes conferiam maior movimento. As alas, compostas até então por 40 ou 50 pessoas, passaram a ter cerca de 100 componentes, trajados com fantasias que exploram cabeça e ombros, de modo a dar o volume necessário para que o grupo apareça na Avenida. Assim, ambos, carros e fantasias, passaram a proporcionar ao espectador um outro tipo de percepção. Ainda que as soluções encontradas tenham criado um padrão de desfile que minimizou os efeitos da monumentalidade do Sambódromo, Valença, I. (2003, p. 51) chama a atenção para a incapacidade que este monumento tem de traduzir o espírito e o clima do carnaval carioca e de proporcionar aconchego aos sambistas e ao desfile. Segundo a autora, a passarela do samba tornou a participação do público menos importante do que os fatores estético, tecnológico e financeiro, aproximando, mais do que nunca, o desfile das escolas de samba do espetáculo, do show. Cabral (1996) tem opinião semelhante. Para ele, a imensa distância entre o público e a pista e as arquibancadas de cimento esfriaram o espetáculo. Além disso, o autor enfatiza o papel que o sistema de som implantado teve na percepção do desfile na medida em que a plateia e os telespectadores passaram a ouvir apenas a voz do puxador em detrimento do coral das escolas de samba. É preciso ponderar que não apenas os aspectos arquitetônicos da passarela do samba contribuíram para o distanciamento e a frieza do público. Sua própria composição e a relação que ele estabelece com o desfile são fatores que interferem na forma de apreciação. Os altos preços dos ingressos e a venda de setores inteiros exclusivamente para turistas trazem para a passarela do samba um público certamente mais interessado nos aspectos visuais do que nos festivos. A definição dos preços e as políticas de distribuição dos ingressos, além de distinguir o perfil do público, nos remetem à questão das receitas e da administração dos desfiles. Embora não esteja entre os objetivos deste trabalho discutir as formas de financiamento do desfile das escolas de samba, autores como Valença, I. (2003) e Araujo (2000) associam um aumento do volume dos recursos envolvidos no espetáculo à construção do Sambódromo
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e à criação da Liesa. O fim da despesa com a montagem e a desmontagem das arquibancadas e o aumento do número de lugares disponíveis e do valor dos ingressos teriam despertado o interesse das grandes escolas de samba em administrar essas verbas. As escolas alegavam que a grandeza do espetáculo exigia a aplicação de um volume cada vez maior de recursos em suas apresentações e que estariam em melhores condições de gerenciar tais recursos do que o poder público. Nessas circunstâncias, as agremiações desligaram-se da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e fundaram a Liesa. Segundo Valença, R. (1996, p. 65): Dirigentes de grandes escolas verificaram que já não era possível misturar os interesses dessas verdadeiras empresas com os de pequenas escolas que sobrevivem exclusivamente das verbas oficiais. A convivência de interesses tão díspares, na Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, tornou-se impossível. No dia 23 de julho de 1984, foi fundada a Liga Independente das Escolas de Samba, tendo como finalidade congregar apenas as grandes escolas, que participam do desfile principal, atualmente dividido em dois dias. E os interesses dessas agremiações quase que se limitavam a questões pecuniárias: participação nos lucros decorrentes da venda de ingressos, participação nos direitos de transmissão do desfile e criação do selo fonográfico LIESA para gravação e comercialização dos discos com os sambas-de-enredo.
A criação da Liesa e o tipo de gerenciamento por ela proposto para o desfile das escolas de samba representaram, de certa forma, a “institucionalização” de um processo de “mercantilização do samba” que já estava em curso há algumas décadas. “Isso virou uma indústria e cada um quer levar o seu” (CARTOLA, s/d apud CABRAL, 1996, p. 210). A frase de Cartola, que data da década de 1970, atesta que este processo já estava bastante disseminado nas escolas de samba quando da fundação da Liga. Mas é verdade também que esta entidade foi responsável pela transformação desse processo em um projeto político amplo que unificou as escolas de samba em torno da ideia de assumir a administração dos desfiles.
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Os criadores da Liga pretendiam dar à administração das escolas de samba um tratamento que imaginavam empresarial. Queriam maior poder de barganha nas suas negociações com a prefeitura carioca, tendo em vista a receita auferida com a venda de ingressos para as arquibancadas, a negociação com as emissoras de televisão, a publicidade no Sambódromo e outras fontes de renda proporcionadas pelo desfile. Cinqüenta anos depois da oficialização do desfile por Pedro Ernesto, queriam, na verdade, que fosse entregue a eles toda a organização do evento. A privatização, enfim (CABRAL, 1996, p. 225).
Se desde a sua fundação a Liesa lutou por uma maior participação na receita dos desfiles, seu grande objetivo sempre foi a administração total do espetáculo. Este, entretanto, só se consolidou em 1995, quando a Prefeitura entregou à Liga a administração do desfile, oficializando finalmente a privatização, embora desde a sua fundação a Liesa tenha dividido com a Riotur a responsabilidade pela organização do desfile. Na disputa que empreendeu junto ao poder público, pelo controle sobre as receitas e sobre a administração do desfile, a Liesa adotou como uma de suas estratégias a disseminação de uma imagem empreendedora e propositiva junto à sociedade, promovendo alterações no desfile que vieram a ter impactos na organização interna das escolas. A produção desse megaespetáculo tem se tornado cada vez mais incompatível com as formas de organização interna das escolas de samba, baseadas na associação e na cooperação. Suas diretorias têm sido impelidas a recorrer ao trabalho de profissionais para desenvolver atividades anteriormente realizadas pelos próprios integrantes das agremiações. Esta nova forma de gestão causa profundo impacto na organização das escolas de samba e nas relações entre seus membros. A contratação de profissionais revela-se ainda mais estranha às formas de organização das escolas de samba se considerarmos que ela atinge inclusive as atividades-fim dessas “empresas”. Hoje já é possível contratar no “mercado” mestres-salas e porta-bandeiras, puxadores e comissões de frente.
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CHEGA A PRoFiSSioNALiZAÇÃo NA ERA DA GLoBALiZAÇÃo A profissionalização9 do trabalho nas escolas de samba, a um só tempo, esconde e revela a ampliação das garras do processo de sociabilidade capitalista que impõe a substituição do valor de uso pelo valor de troca, em todos os campos. Esconde na medida em que aparece como processo natural, e até mesmo bastante positivo, pois passa a gerar empregos, alça o samba e o sambista à categoria dos produtores de bens úteis socialmente, “ajudando-os” a sair da condição de “vadios” e “marginais” com a qual eram identificados nos primórdios das escolas de samba. Mas, à medida que cada uma das etapas de produção e o próprio desfile tornam-se mercadorias cada vez mais banais, o processo se revela inconfundivelmente. Cabe ressaltar que a profissionalização do trabalho nas escolas de samba vem ocorrendo, ironicamente, justamente em um momento histórico de esgarçamento das relações de trabalho na sociedade como um todo. A compreensão em profundidade de um conjunto de transformações que se puseram em curso globalmente no final do século passado, e que impactam sobremaneira as relações de trabalho contemporâneas, não tem sido tarefa simples para estudiosos de vários campos do conhecimento. As dificuldades verificadas no campo teórico relacionam-se, para além de sua aparência, a uma crise do padrão de acumulação fordista que dominou o ocidente por cerca de cinquenta anos. As abordagens trazidas por Harvey (1993) e Jameson (1996 e 2001) tornam-se fundamentais à compreensão de tais transformações. Harvey (1993) apresenta uma análise que permite uma visão panorâmica da situação. Entretanto, no que se refere aos objetivos do presente estudo, importa-nos mais diretamente compreender o lugar da indústria cultural nas sociedades marcadas pela emergência do padrão de acumulação flexível10. Segundo o autor, uma das particularidades A profissionalização, na forma como será aqui tratada, refere-se simultaneamente ao processo que ampliou as exigências em relação à apresentação do desfile e à necessidade de contratação de pessoal especializado e inteiramente dedicado a essa atividade em troca da percepção de um salário. 10 Sobre o padrão de acumulação flexível ver Harvey, 1993, e Antunes, 2002. 9
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deste padrão consiste em uma aceleração no ritmo de inovação dos produtos, acompanhada de uma redução do tempo de giro do consumo. Como decorrência dessa necessidade de aceleração do tempo de giro do consumo observa-se uma mudança de ênfase na produção, mais precisamente um deslocamento da ênfase anteriormente conferida à produção de bens, cuja duração pode estender-se por um longo período, para a produção de eventos, cujo tempo de giro é quase instantâneo. A partir da compreensão desse movimento de incorporação da esfera cultural à lógica da mercadoria, podemos entender a posição de Jameson (1996) de que o pós-modernismo não é um estilo artístico ou cultural, mas a própria lógica do capitalismo tardio11. Nesse sentido, o pós-modernismo é caracterizado pelo autor, dentre outros aspectos, por uma relação de reciprocidade entre a lógica da produção cultural e a lógica da produção das mercadorias em geral. Pois, se é verdade que a produção cultural se aproxima da produção de qualquer mercadoria, pode-se afirmar, também, que a mercantilização é uma estetização, ou seja, que a mercadoria é também consumida “esteticamente”. Trata-se, portanto, de um movimento que vai da economia para a cultura; mas igualmente e de modo não menos significativo da cultura para a economia (JAMESON, 2001, p. 23). As formulações de tais autores nos ajudam a compreender melhor a transformação do desfile das escolas de samba em produto cultural de alto valor comercial. Cabe-nos agora buscar compreender a situação dos trabalhadores nessa engrenagem. Para tanto, recorremos a Hobsbawm (1995), Harvey (1993), Antunes (2002) e Sennett (2002). Esses autores são unânimes em afirmar que o espraiamento da lógica do novo padrão de acumulação tem sido extremamente desfavorável à classe trabalhadora, que tem sofrido inúmeras perdas, dentre as quais a mais cruel seria a perda do próprio emprego. O desemprego associado à competição global e ao aperto financeiro dos governos é apontado como um dos aspectos mais graves da nova configuração do mundo do trabalho, levando milhares de trabalhadores para a informalidade. 11
Cf. Mandel, apud Jameson (1996).
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Harvey (1993), ao analisar o mercado de trabalho, identifica uma estrutura com um centro composto por trabalhadores em tempo integral, condição permanente e posição essencial para o futuro de longo prazo das organizações. A periferia do mercado de trabalho seria composta por dois grupos bem distintos: o primeiro, caracterizado pela alta rotatividade, é integrado por empregados em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como secretárias, pessoal do setor financeiro e de trabalho manual menos especializado. O segundo grupo periférico seria ainda maior e teria menos segurança que o primeiro; inclui empregados em tempo parcial e pessoal com contrato por tempo determinado. Esse grupo, segundo as evidências, é o que mais tem crescido nos últimos anos (HARVEY, 1993). Hobsbawm chama a atenção para um outro grupo que, excluído do mercado de trabalho, sobrevive nos países ricos do sistema previdenciário e nos países pobres da economia informal ou paralela “por meio de uma combinação de pequenos empregos, serviços, expedientes, compra, venda e roubo” (1995, p. 405). É preciso considerar ainda que, apesar das características comuns mencionadas anteriormente, as transformações que se puseram em curso mundialmente têm provocado um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora (ANTUNES, 2002). Um outro aspecto fundamental quando se analisa o mundo do trabalho contemporâneo diz respeito à questão da alienação12. Frequentemente os defensores do modelo de acumulação flexível afirmam que esse modelo teria suprimido a alienação, própria do modelo fordista de organização do trabalho, que separava elaboração e execução. Para Antunes (2002), as novas condições de trabalho não suprimem o estranhamento; pelo contrário, o ampliam. Se a introdução da microeletrônica é um dos fatores que contribui para 12 “Significa a separação ou a perda sofrida pelo trabalhador de uma parte do seu ser, de sua atividade, da sua construção humana. Ao se sujeitar ao processo de trabalho capitalista, sofre um processo objetivo de desapropriação de si (...). Nessas circunstâncias, a alienação se manifesta em três dimensões principais: 1) em relação aos produtos do trabalho (...); 2) em relação à atividade de trabalho (...); 3) em relação à espécie (...) (FIDALGO e MACHADO, 2000, p. 17).
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a ampliação do estranhamento do homem em relação ao trabalho, como veremos mais adiante, o seu efeito mais perverso manifesta-se ao nível dos valores. Assim, o processo de conformação do trabalhador à flexibilização se deu, em grande parte, por meio da incorporação do seu ideário por amplas parcelas da classe trabalhadora. O estranhamento próprio do toyotismo é aquele dado pelo “envolvimento cooptado”, que possibilita ao capital apropriar-se do saber e do fazer do trabalho. Este, na lógica da integração toyotista, deve pensar e agir para o capital, para a produtividade, sob a aparência da eliminação efetiva do fosso existente entre elaboração e execução no processo de trabalho. Aparência porque a concepção efetiva dos produtos, a decisão do que e de como produzir não pertence aos trabalhadores. O resultado do processo de trabalho corporificado no produto permanece alheio e estranho ao produtor, preservando, sob todos os aspectos, o fetichismo da mercadoria. A existência de uma atividade autodeterminada, em todas as fases do processo produtivo, é uma absoluta impossibilidade sob o toyotismo, porque seu comando permanece movido pela lógica do sistema produtor de mercadorias (ANTUNES, 2002, p. 42, grifos do autor).
E não apenas isso, pois a expansão do modelo toyotista de produção industrial para os demais setores produtivos da economia e a sua universalização, resguardadas as condições específicas de cada país, atingiriam em cheio, além do clássico trabalhador industrial, “o universo da consciência, da subjetividade do trabalho, das suas formas de representação” (idem, p. 43). É o que Sennett (2002) coloca em relevo com a análise que empreende a partir da vida de alguns “personagens”. Em A corrosão do caráter destaca questões cruciais para a análise dos impactos das novas formas de organização do trabalho sobre a dimensão humana do trabalhador, ou sobre aquilo que Antunes (2002) chama de “subjetividade”. Duas delas relacionam-se mais de perto aos objetivos do nosso estudo: a primeira é discutida pelo autor em um ensaio denominado “À deriva” e diz respeito a uma ênfase nas relações de curto prazo, típicas do mundo dos negócios atualmente, que transpostas para a vida
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pessoal têm consequências desastrosas; a segunda, abordada em um ensaio denominado “Ilegível”, trata da perda de sentido do trabalho a partir da introdução de novas tecnologias. No primeiro ensaio, Sennett (2002) compara duas gerações de trabalhadores representadas por pai e filho. Tomando a comparação entre as duas gerações como ponto de partida, ele discorre sobre os impactos da reestruturação produtiva sobre a construção do caráter pessoal e das relações sociais contemporâneas. A “linearidade do tempo” é o aspecto destacado da geração do pai. As pessoas daquela geração viviam um tempo que era previsível: mantinham-se invariavelmente no mesmo emprego, adotando a mesma rotina e com ela construindo uma história e o reconhecimento dos seus. A geração do filho é descrita pelo autor como uma geração marcada pela fragmentação do tempo. As pessoas dessa geração foram educadas para mudar constantemente de emprego, em busca de melhores oportunidades, tendo sua vida pessoal ficado ao sabor dessa instabilidade profissional. Essa geração teve de se adaptar ao lema “não há longo prazo”, que pode ser apropriado para o mundo dos negócios, mas que limita o amadurecimento da confiança informal. O mundo do “curto prazo” não oferece à geração do filho a possibilidade de construção de uma narrativa, criando uma espécie de vazio na vida pessoal. No segundo ensaio, Sennett (2002) discute a questão do vínculo dos trabalhadores com o trabalho organizado pela lógica da flexibilidade. Narrando uma visita a uma padaria de Boston, revela as mudanças ocorridas nos processos de trabalho, a partir da introdução de novas tecnologias de fabricação do pão e de novas formas de gestão do trabalho. Descreve o processo tradicional de fabricação de pães como uma atividade na qual os padeiros empenhavam todo o seu corpo; onde os homens usavam, além das mãos, o nariz e os olhos, para julgar quando o pão estava pronto; uma atividade que requeria que todos estivessem num mesmo espaço, onde o cheiro de fermento se misturava ao de suor humano, sob o calor dos fornos. Esse trabalho, apesar de seus inconvenientes, fazia com que os padeiros tivessem orgulho de sua profissão (SENNETT, 2002, p. 77). Mas a padaria de Boston, depois de comprada por um gigantesco conglomerado da área de alimentos, não fabrica mais pães do modo tradicional. Utiliza máquinas reconfiguráveis que possibilitam adequar
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a produção à demanda dos clientes. As mudanças no processo de trabalho alteraram também as relações entre os trabalhadores e destes com o trabalho: não existe mais a cooperação e a solidariedade, e agora os trabalhadores têm o que Sennett (2002) identificou como uma fraca identidade com o trabalho. Na padaria computadorizada, os padeiros não têm mais contato com os pães. O pão tornou-se para eles uma representação em uma tela. Na verdade, os padeiros não sabem mais fazer pão; não têm qualificação alguma, são contratados apenas para apertar botões. A tecnologia “roubou” a qualificação dos padeiros e simplificou o seu trabalho a tal ponto que lhe retirou todo o interesse, tornando o compromisso com o trabalho superficial. O trabalho não é mais legível para eles. A análise de Sennett (2002) sobre o contexto no qual estamos imersos sinaliza para o fato de que o fim do “longo prazo” é o que há de mais tangível nas mudanças em curso. Talvez seja essa a expressão mais forte do significado da flexibilidade que, ao conformar o trabalho em ilhas formando uma espécie de “arquipélago” acessível apenas virtualmente, deflagrou um tipo novo de estranhamento, que se caracteriza não pela alienação, no sentido clássico, mas por uma indiferença em relação ao trabalho e quiçá até a própria vida. PRECARiEDADE E SoLiDARiEDADE MARCAM o TRABALHo NoS BARRACõES Dezesseis equipes prepararam o carnaval de 2004 do G.R.E.S. Império Serrano. Dentre elas, somente as equipes de ferragem, carpintaria/marcenaria, escultura, laminação e empastelação permaneceram no barracão durante todo o período, já que elas são responsáveis pela construção dos elementos estruturais dos carros alegóricos. Em função dessa permanência e de sua centralidade na confecção dos carros alegóricos, elas foram privilegiadas neste trabalho. A administração esteve concentrada nas mãos de três pessoas ligadas à diretoria da escola. A concepção do enredo e a coordenação do trabalho cabem ao carnavalesco. Convém destacar que esse aspecto teve especial interesse para nós, na medida em que o andamento do trabalho no barracão se relaciona não apenas ao tipo de administração da escola, mas também ao estilo do carnavalesco. Ressaltando que o estilo, nesse caso, refere-se tanto ao aspecto estético quanto à forma de gerenciamento
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do trabalho. A esse respeito, vale citar o depoimento de Silva (2004), chefe da equipe de ferragem do barracão. Para ele, cada escola trabalha de um modo diferente. Escola e carnavalesco, no caso. Tem carnavalesco que prefere não te dar um desenho e sim te passar a idéia do que ele quer. Você tem que captar a idéia dele e se juntar a ele e vamos fazer assim, assim, assim. Aí tudo bem, a gente faz um rascunho e tal, com as medidas que ele pretende fazer, e a gente executa o trabalho. Outros não. Fazem questão de te dar a planta baixa, com vista lateral, vista frontal e arte final. Aí é até mais fácil para você trabalhar (SILVA, 2004).
O elo entre a concepção e a execução é feito pelos chefes de equipe, figuras centrais em nossa pesquisa pelo papel que desempenham como agentes pedagógicos no barracão. Sua experiência, seu saber e sua competência técnica são reconhecidos por todos, o que lhes confere ascendência junto à sua equipe, aos demais trabalhadores, à direção da escola e ao carnavalesco. O chefe de equipe é responsável por estabelecer o “contrato de trabalho” com a escola de samba e montar uma equipe para executar o trabalho. Os chefes de equipe do barracão, entretanto, estão longe da imagem clássica do supervisor que apenas observa o trabalho; a maioria deles trabalha junto aos demais companheiros, sendo impossível distingui-los no grupo a um simples olhar. A maioria dos trabalhadores do barracão aprendeu a sua profissão no próprio ambiente de trabalho. Considerando os baixíssimos índices de escolaridade verificados, percebemos que a escola regular tem um caráter subsidiário na formação desses trabalhadores. Identificamos que, do total de 25 trabalhadores pesquisados, praticamente a metade (12) não completou sequer o ensino fundamental. A educação profissional também não desempenha um papel relevante em sua formação. Para eles, a aprendizagem que se desenvolve no local de trabalho é o elemento preponderante para a sua formação profissional. Silva (2004), chefe da equipe de ferragem, formado pelo Senai, resume esse sentimento ao reconhecer a importância da formação profissional como um elemento complementar à formação que teve no barracão. Para ele, a formação propiciada pelo curso que frequentou
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ajuda na parte teórica, porque na prática, na realidade, não influencia muito. Por quê? Porque o Senai, onde eu aprendi, ele ensina você a conhecer a medida do material, a proceder, a conviver com os seus colegas de trabalho, a parte mais teórica. A prática a gente aprende praticando (SILVA, 2004).
A ideia de uma formação que se dá ao longo do tempo no ambiente de trabalho é tão arraigada que mesmo aqueles trabalhadores que tiveram acesso à formação escolar e/ou profissional ressaltam a sua importância no processo de formação. Perguntados sobre onde aprenderam a sua profissão, esses trabalhadores, invariavelmente, responderam “na escola e no barracão”, revelando a sua consciência em relação à importância da articulação entre os conhecimentos adquiridos na escola e no local de trabalho. A experiência conta muito, e a ideia de uma aprendizagem que se faz continuamente na prática é dominante. Para Canuto Neto (2004), no barracão há sempre a possibilidade de aprender coisas novas: “Para mim está sendo uma escola até hoje o barracão.” A forma de ingresso mais comum no barracão é por meio do convite de amigos e familiares. Boa parte do pessoal hoje em atividade chegou ao barracão ainda jovem, e muitos deles tiveram a oportunidade de “progressão” a partir da aprendizagem no trabalho. Araújo (2004), chefe da escultura do barracão, afirma: “Eu comecei desenhando. Só fazia os desenhos de carro e figurino para o João Trinta. Depois eu retornei para a escultura e daí não saí mais.” Essa foi também a experiência de Canuto Neto, escultor da equipe de Araújo. De desenhista ele passou a auxiliar de escultura e depois a escultor. “Na época eu fiquei até feliz porque ele me pagou quatro vezes mais do que o que eu ganhava. Quatro vezes mais! E eu fiquei muito feliz” (CANUTO NETO, 2004). Além da formação específica, dois aspectos se destacaram no que se refere à aprendizagem que se efetiva no barracão: a amplitude do universo de trabalho e as relações humanas que ali se estabelecem. As inúmeras possibilidades abertas pelo barracão em função da diversidade de atividades que ele comporta dentro de um mesmo espaço físico foram levantadas por vários entrevistados. As palavras de Canuto Neto (2004), escultor, ilustram essa situação privilegiada de aprendizagem propiciada pelo ambiente de trabalho.
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No barracão, mesmo sendo da escultura, do setor de escultura e desenho, eu aprendo coisas sem ser do meu setor. Eu aprendo de adereços, de alegoria, até o pessoal da fibra mesmo, eu aprendo coisas da fibra, até coisas da ferragem. Porque o barracão é como se fosse uma família só. Quando um precisa do outro, o outro passa para o outro o que sabe, pede uma ajuda (CANUTO NETO, 2004).
Carneiro (2004), laminador experiente, hoje aposentado, já tendo trabalhado em inúmeras firmas, indica por que o barracão oferece mais oportunidades de aprendizagem do que uma firma convencional. Para ele, no barracão já pega alguma coisa, alguma experiência sobre a laminação, dentro do barracão a pessoa aprende. Aqui é tipo o que se dá o nome de cabeça de porco. Em cabeça de porco a gente aprende a fazer de tudo dentro da laminação. Se você já for trabalhar numa firma assim com renome, você não aprende tudo. Você vai... entra botando manta, outro só bate, outro dá o gel. Tem uma especificação para cada pessoa. Aqui no barracão, não; você faz de tudo (CARNEIRO, 2004).
O bom relacionamento pessoal também foi bastante mencionado pelos trabalhadores entrevistados. Santos (2004), escultor, aborda a questão da seguinte maneira: Acho que a primeira coisa, assim de cara, que se aprende num barracão é se relacionar com as pessoas, é conviver com as pessoas e com pessoas diferentes, porque você vê todo tipo de gente aqui dentro. Então, o meu grande aprendizado aqui dentro é o aprendizado da vida, é o aprendizado da convivência, é o aprendizado da tolerância, é o aprendizado do coleguismo, do companheirismo, de um ajudar o outro, um quebrar o galho do outro, um facilitar o trabalho do outro.
Canuto Neto (2004), igualmente ressalta esse aspecto: “O que a gente aprende muito também no barracão é a respeitar um ao outro, respeitar o amigo como na escola, irmandade, família, respeito, bastante carinho um com o outro. Isso nós aprendemos aqui.”
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Na análise do processo de aprendizagem no barracão, os chefes de equipe emergem como mestres. Não apenas porque eles detêm o conhecimento do conteúdo do trabalho, mas também porque as formas como eles organizam o trabalho podem favorecer ou não o processo de aprendizagem. Além dos chefes de equipe, carnavalescos e colegas de trabalho também são citados como elementos importantes no processo ensino-aprendizagem. Quando Santos (2004) afirma que “o chefe da minha equipe (...) é um cara supercapaz, é um mestre na escultura; só de vê-lo trabalhar, eu estou aprendendo”, ele a um só tempo reconhece a competência técnica do chefe da equipe e o seu papel no processo de ensino-aprendizagem, como também indica um dos métodos de aprendizagem mais utilizados no barracão: a observação. É a partir da observação que os aprendizes se sentem estimulados a fazer suas primeiras experimentações. Lima (2004), auxiliar de escultura, nos conta como aprende no barracão: “Peço para fazer as coisas, se deixarem eu fazer eu vou tentando.” A demonstração e a experimentação são usadas como método de ensino pelos chefes de equipe, que tomam o processo real do trabalho como laboratório de aprendizagem. Gonçalves (2004), chefe da equipe de carpintaria, fala um pouco sobre esse método: “Eu tenho que construir. Eu tenho que fazer. Eu vou fazendo e vou chamando a pessoa para estar comigo.” Os chefes de equipe têm plena consciência do seu papel de mestres nesse processo, estando sempre atentos a novos “talentos” que possam vir a integrar suas equipes de trabalho. Silva (2004), chefe da ferragem, nos fala sobre esse processo: Eu dou oportunidade para eles. Aí, quando vejo que há interesse da parte deles de querer aprender a profissão de ferreiro, eu procuro, então, encaixar ele e adaptá-lo no lugar onde ele tem rendimento, onde ele vai ter sucesso. (...) vou ver onde ele desenvolveu melhor a função dele: se foi ponteando (soldando) ou se foi virando a peça que eu pedi a ele. Se ele virou a peça com mais perfeição do que soldou, então, vou encaixar ele como montador, dali eu vou dando uma orientação a ele. Às vezes, quando erra, eu explico a ele: “é assim, assim...” Então, a pessoa tendo vontade de aprender, ela vai aprender. Agora, se não quiser aprender, fica difícil.
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A formação proporcionada pela escola é considerada importante para a aprendizagem do conteúdo do trabalho. Convém destacar que, com poucas exceções, a parcela dos entrevistados que considera essa formação relevante é exatamente aquela que apresenta os maiores níveis de escolaridade. A disciplina que foi citada com maior frequência, dentre aquelas que apresentam afinidade com o trabalho desenvolvido, foi a matemática. Ler plantas, “ver” medidas, conhecer escala, saber porcentagens são atividades lembradas por eles para justificar a importância do conhecimento dessa disciplina escolar. A história e a geografia também foram citadas como importantes para o entendimento dos enredos. Para além das atividades desempenhadas por cada equipe, o conhecimento do processo de trabalho revelou-se como um conhecimento comum. Todos foram capazes de descrever com detalhes as etapas do trabalho que é desenvolvido no barracão. Etapas que não são compreendidas por eles como momentos isolados, mas que, pelo contrário, são sempre associadas à ideia de uma “engrenagem”. Mas, apesar do profundo conhecimento que têm do processo de trabalho, há uma etapa que não está ao seu alcance: a concepção do enredo que está sendo executado. Em decorrência, desconhecem também o plano de trabalho que organiza as suas atividades. É verdade que os chefes de equipe, quase sempre, têm acesso aos planos do carnavalesco no momento de “fechar o contrato”, mas isso dá a eles apenas uma noção geral do trabalho, não permitindo uma apropriação desses planos. Os demais trabalhadores só vão tomando conhecimento (ou não) da concepção artística do trabalho e das etapas que estão desenvolvendo muito depois. Canuto Neto (2004) afirma: “No início, eu nem sabia do enredo. Fiquei umas duas semanas sem saber.” O entendimento sobre a concepção geral do carnaval é uma aquisição tardia. Para Santos (2004) isso se dá durante o processo. Basicamente é durante o processo. Porque tudo é muito informal. Não existem reuniões, nada disso. Para cada funcionário tomar conhecimento exatamente do que cada carro representa, isso a gente no próprio dia a dia do barracão vai, aos pouquinhos, se inteirando, vai aos pouquinhos tomando consciência do que é o enredo, do que é essa história que este enredo está contando e o
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que cada elemento que está sendo produzido aqui dentro representa dentro dessa história, dentro desse enredo. (...) Isso é uma noção que todo mundo bem ou mal acaba tendo, porque são meses aqui dentro, várias horas por dia, e a gente convive o tempo todo com isso, com esses elementos, a gente esbarra nesses carros dez, vinte vezes por dia. Então, você queira ou não, a coisa acaba entrando até por osmose, você acaba, até sem procurar saber, mesmo que você não se interesse em perguntar...
Os conhecimentos do enredo e do andamento do trabalho configuram-se então como uma esfera mais restrita ao domínio do carnavalesco. Perguntados sobre a importância de que esse domínio seja estendido à sua esfera de trabalho, os trabalhadores se dividiram. Alguns afirmam não haver nenhuma necessidade. Outros afirmam que, embora não haja necessidade, o conhecimento do enredo possibilita um maior envolvimento com o trabalho. E há ainda uma outra parcela que entende que o conhecimento sobre a concepção artística do enredo lhes permite maior controle e participação no processo de trabalho, bem como um melhor desempenho profissional. Para Lima (2004), saber o que está fazendo, nesse caso, é uma condição para o desenvolvimento de um trabalho de qualidade: Se você não souber o enredo, não souber como vai ser o carro, você não vai ter como fazer. Você vai fazer uma onça como se fosse uma estátua mesmo, sem movimento. Você já sabendo como que é o carro, como vai ser a forma do carro, o desenho, e sabendo o enredo, fica mais fácil para fazer uma peça para o carro. Você já faz especialmente para aquele carro.
Para finalizar, gostaríamos de apontar um aspecto que atraiu a nossa atenção durante a pesquisa: o tipo de vínculo que esses trabalhadores estabelecem com o trabalho e com seus colegas de ofício. Ele merece destaque pela importância que assume no processo de ensino-aprendizagem, na medida em que contribui para a criação de um ambiente favorável para o desenvolvimento do mesmo. Observa-se um grande envolvimento dos trabalhadores com sua atividade, que pode ser medido pela participação intensa do grupo na
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busca de soluções para os desafios que surgem no desenvolvimento do trabalho. Esse envolvimento pode ser explicado não apenas pelo fato de que a esmagadora maioria gosta de carnaval, tendo uma grande satisfação em deixar a sua marca no produto final do trabalho, mas principalmente pelo fato de eles gostarem do trabalho que realizam. Silva (2004), ao contar como começou a trabalhar no barracão, explicita sua paixão: “Daí eu comecei trabalhando e gostei. (...) Isso é como se fosse uma cachaça, a gente bebe a primeira vez e não esquece mais.” Fonseca Filho (2004) também fala da sua ligação com o trabalho de maneira muito expressiva: “Minha paixão pelo que faço é meter a mão no trabalho mesmo. Eu não sei ficar dando ordem. Eu gosto de fazer também. Se eu não meter a mão, para mim não tá legal.” Já para Silva (2004), o que mais proporciona prazer é a adrenalina de montar os carros na concentração. E ele revela: “Então, quer dizer, a gente passa a gostar disso aí. (...) Na hora você passa aquele sufoco, mas quando é Quarta-Feira de Cinzas você já está com saudades, querendo voltar a trabalhar no barracão” (SILVA, 2004). A Quarta-Feira de Cinzas aparece para os trabalhadores do samba como o início de um período de descanso, mas também de apreensão. Depois de trabalhar intensamente, o descanso parece merecido, mas o tipo de contrato de trabalho que firmam com as escolas de samba não prevê o descanso remunerado. Então, para muitos, os meses que se seguem ao carnaval são dedicados à execução de outras atividades remuneradas até que o barracão retome suas atividades. De fato, o barracão é entendido pela maioria do grupo como o espaço de um exercício profissional que lhes confere identidade e respeito na sociedade. E é nessa perspectiva que se pode afirmar que, apesar do tipo de vínculo de trabalho precário, caracterizado pelos trabalhadores a partir de expressões como “verbal”, “de boca” ou “palavra de honra”13, em nenhum momento sua atividade pode ser encarada como “bico” ou “viração”. Esse vínculo precário tampouco esmaece a noção de profissão, bastante arraigada no grupo. 13 Referem-se desta maneira a um tipo de acordo estabelecido entre a escola e o chefe de equipe, no qual este último “funciona” como um empreiteiro, subcontratando o restante do grupo.
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CoNCLUSõES O confronto entre o prazer de realização do trabalho e a apreensão em relação à renovação do “contrato de trabalho” ilustra o movimento contraditório identificado em nossa pesquisa: embora os trabalhadores do barracão estejam formalmente presos às mazelas da flexibilidade apontadas por Harvey (1993), Antunes (2002) e Hobsbawm (1995), do ponto de vista pessoal e emocional não observamos a presença dos aspectos identificados por Sennett (2002) como responsáveis pela “corrosão do caráter” dos trabalhadores atualmente. Pelo contrário, no barracão pudemos perceber a manifestação clara de uma forte identidade com o trabalho e o estabelecimento de vínculos duradouros entre os companheiros de trabalho. No barracão, todos têm atribuições muito bem definidas e uma consciência precisa de qual é a sua responsabilidade. Foi comum ouvirmos durante o trabalho de campo no barracão frases que evidenciam essa consciência, tais como “é isso que eu faço”; “é por isso que eu sou responsável”; ou ainda, “cada um tem sua função aqui dentro”. Percebemos também que os trabalhadores do barracão não estão “à deriva”, no sentido atribuído ao termo por Sennett (2002). Pelo contrário, eles são reconhecidos no seu grupo e possuem um senso de coletividade que fortalece a sua identidade. A maioria das equipes trabalha junta há muitos anos, fazendo com que o trabalho no barracão não esteja sob o domínio daquele tipo de relação de curto prazo que, segundo Sennett (2002), limita o amadurecimento da confiança informal e enfraquece os laços entre as pessoas, esmaecendo as qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros. As relações de trabalho que se estabelecem no barracão vão no sentido oposto a essa tendência. Lá, relações de longo prazo permitem o amadurecimento da confiança, da lealdade e do compromisso mútuo. Nesse sentido, percebemos que a organização do trabalho em equipes, constituídas a partir de relações de parentesco e de compadrio, oferece um sentido de proteção ao trabalhador e favorece o fortalecimento desses vínculos fraternos e solidários. Outra questão que emergiu na pesquisa como um dos elementos a ser considerado na aprendizagem dos trabalhadores foi a forma como se estrutura o trabalho no barracão. Um primeiro aspecto que deve ser
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destacado é a organização do espaço físico. O fato de as atividades se desenvolverem em um mesmo ambiente possibilita aos trabalhadores o domínio das diferentes etapas do trabalho. Um segundo aspecto importante é que a forma como o trabalho é organizado no barracão exige um diálogo permanente entre as equipes. Percebemos que os trabalhadores do barracão conhecem todo o processo de trabalho e que esse domínio do processo de trabalho, associado a uma consciência precisa do seu lugar e da sua função naquela engrenagem, desdobra-se em um grande envolvimento dos trabalhadores com sua atividade. Esse envolvimento revela-se também na paixão e na profunda ligação que o grupo tem com o seu fazer. A identificação com o produto do trabalho também foi um aspecto bastante presente. Contudo, apesar do profundo vínculo com o trabalho e com os colegas, e do conhecimento que têm de todo o processo de construção dos carros alegóricos, verificamos no barracão a manifestação de uma das formas mais características da alienação no trabalho: a separação entre concepção e execução. Assim, retomando a formulação de Antunes (2002) acerca da alienação, percebemos que, apesar dos inúmeros elementos que nos levam a pensar o barracão como um espaço extremamente favorável à formação do trabalhador, o “fosso existente entre elaboração e execução no processo de trabalho” não foi superado. “A decisão do quê e de como produzir não pertence aos trabalhadores” (ANTUNES, 2002, p. 42). Um último aspecto que levantaremos nestas conclusões diz respeito à aprendizagem do conteúdo do trabalho no barracão e às suas relações com a escolaridade dos trabalhadores. Sobre esse tema entendemos que um dos aspectos fundamentais ao se pensar as relações entre trabalho e educação é o fato de que, mesmo considerando a enorme expansão escolar demandada pela Revolução Industrial, que tornou a escola o espaço predominante de educação, o trabalho continua a ser um importante ambiente de aprendizagem. No Brasil, a formação que se realiza no trabalho assume grande relevância em função dos baixos índices de escolaridade da maior parte da população. A maioria dos trabalhadores do barracão integra um grupo social que, excluído da escola regular, tem no ambiente de trabalho seu maior espaço de formação.
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Percebe-se também, apesar da existência de um processo de aprendizagem bastante significativo no barracão, o descontentamento dos trabalhadores em relação ao não reconhecimento de seu trabalho. Essa falta de reconhecimento se manifesta nos baixos salários e na precariedade no que se refere aos direitos trabalhistas e também em suas condições de trabalho. Procuramos entender esse não reconhecimento como aquilo que Kuenzer aponta como uma das formas de dominação exercida pelo capital: a desqualificação do saber do operário. Segundo a autora, o capital, segundo suas necessidades contraditórias, de por um lado exercer dominação pelo controle do saber e por outro se utilizar do saber do operário como força produtiva, ora nega, ora afirma o saber do operário, utilizando-se para isso de critérios de valorização e desvalorização do saber teórico e do saber prático, que também são utilizados diferentemente nas distintas circunstâncias (KUENZER, 1995, p. 182).
Para Kuenzer (1995), esse processo de desqualificação do saber do operário, associado à distribuição desigual do conhecimento científico proporcionado pela escola, caracteriza-se como um mecanismo de restrição do acesso dos trabalhadores ao conhecimento. Mecanismo que faz parte do movimento contraditório, apontado por Saviani (2003), a que está submetida a educação sob o capitalismo: de um lado o avanço do sistema impulsiona no sentido da ampliação do acesso ao conhecimento, mas de outro as necessidades de acumulação do capital impulsionam no sentido da redução do conhecimento do trabalhador ao nível apenas suficiente para garantir a execução das tarefas que lhe cabem no processo produtivo. Kuenzer (1995) destaca que o aprendizado que se realiza no trabalho, por ser parcial, fragmentado e assistemático, não permite ao trabalhador perceber os princípios que regem sua ação, apreender o processo de trabalho em sua totalidade e controlá-lo. Dessa forma, esse aprendizado acaba contribuindo para que o trabalhador permaneça dominado por um processo de trabalho planejado e controlado por outros. Em função disso, a autora entende que a superação da parcialidade desse saber passa pela ampliação da escolaridade dos trabalhadores, ainda que reconheça que a escola, tal como está organizada hoje, apresenta
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algumas limitações relacionadas ao seu caráter de classe. Mas somente o acesso aos instrumentos teórico-metodológicos que permitam aos trabalhadores a elaboração de seu fazer pode, do nosso ponto de vista, contribuir, se não para a superação, ao menos para a ampliação dos espaços de resistência à alienação no trabalho. Reconhecemos que as questões por nós levantadas representam apenas um esforço inicial no sentido de tentar apreender as relações entre trabalho e educação num espaço de produção de cultura em nossa cidade. Embora estejamos conscientes de que sob o modo de produção capitalista é impossível eliminar o trabalho como fonte criadora de valor, gostaríamos de pensar, de uma forma otimista, que esta pesquisa pode servir como uma contribuição no sentido da ampliação do debate sobre a necessidade de criar espaços de afirmação do trabalho como fonte criadora de humanidade. Nesse sentido, parece-nos importante lembrar que, nas condições históricas que ora se apresentam, faz-se necessário preservar o espírito de solidariedade e os hábitos coletivistas predominantes nas casas das antigas baianas, bem como ampliar cada vez mais a escolaridade dos trabalhadores.
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NÚMERoS ANTERioRES EDiÇÃo 5 A iNSUPoRTÁVEL LEVEZA Do CAPiTAL - Excertos a partir de Baudrillard André Queiroz MUDANÇAS SoCiETÁRiAS E CRiSE Do EMPREGo - Mistificações, limites e possibilidades da formação profissional Gaudêncio Frigotto CoNFUSõES EM ToRNo DA NoÇÃo DE PÚBLiCo - o caso da educação superior (provida por quem, para quem?) Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho, Samuel Franco, Rosane Mendonça e Paulo Tafner ENTRE A ESPERANÇA E A REALiDADE SoBRE A ARTE E o SEU ENSiNo Ronaldo Rosas Reis SoBRE o RELATiViSMo ESTÉTiCo PÓS-MoDERNo E SEU iMPACTo ExTRA-ESTÉTiCo walzi C. S. da Silva
EDiÇÃo 6 o PRoGRAMA BoLSA FAMÍLiA E AS CoNDiCioNALiDADES DE SAÚDE EM NÍVEL MUNiCiPAL – Um programa populista ou estrutural? Juliana Estrella Leandro Molhano Ribeiro HUMoR NA LiTERATURA BRASiLEiRA – No início do século xx Leandro konder A CiDADE-oBRA oU ‘oS oLHoS DA CiDADE SÃo DELES’ Luizan Pinheiro
PoBREZA E SAÚDE iNFANTiL – Uma análise a partir dos dados da PoF e da Pnad Maurício Reis Anna Crespo A SoCiEDADE iNDUSTRiAL E SUAS VULNERABiLiDADES Sergio Elias Couri
EDiÇÃo 7 CUiDADoS DE LoNGA DURAÇÃo PARA A PoPULAÇÃo iDoSA – Família ou instituição de longa permanência? Ana Amélia Camarano FAToRES QUE iNFLUENCiAM o AMBiENTE DA ASSiSTÊNCiA À SAÚDE No BRASiL – Modelo atual e novas perspectivas Flávia Poppe SiMULACRo, SHoPPiNG CENTER E EDUCAÇÃo SUPERioR José Rodrigues PoLÍTiCAS PASSiVAS DE EMPREGo – Características, despesas, focalização e impacto sobre a pobreza Luís Henrique Paiva PREViDÊNCiA No BRASiL – Debates e desafios Paulo Tafner
EDiÇÃo 8 FAToRES QUE iNFLUENCiAM o AMBiENTE DA ASSiSTÊNCiA À SAÚDE No BRASiL – Modelo atual e novas perspectivas Flávia Poppe AÇÃo AFiRMATiVA: PoLÍTiCA PÚBLiCA E oPiNiÃo João Feres Júnior
A ARQUiTETURA NA ‘ESTÉTiCA’ DE LUkÁCS Juarez Duayer PREViDÊNCiA CoMPLEMENTAR PARA o SERViÇo PÚBLiCo No BRASiL Marcelo Abi-Ramia Caetano TRANSFERÊNCiAS DE RENDA FoCALiZADAS NoS PoBRES – o BPC versus o Bolsa Família Sonia Rocha
EDiÇÃo 9 iNTELECTUAiS E ESTRUTURA SoCiAL: UMA PRoPoSTA TEÓRiCA Daniel de Pinho Barreiros CULTURAS URBANAS E EDUCAÇÃo – Experimentações da cultura na educação Ecio Salles RELAÇõES iNTERNACioNAiS – Uma introdução ao seu estudo Franklin Trein A EVoLUÇÃo FAZ SENTiDo. iNCLUSiVE NA ATiViDADE FÍSiCA? Hugo Rodolfo Lovisolo ‘DESiGNERS’, SUJEiToS PRoJETiVoS oU PRoGRAMADoS? Marco Antonio Esquef Maciel
Obtenção de exemplares: Assessoria de Divulgação e Promoção Departamento Nacional do SESC adpsecretaria@sesc.com.br Tel.: (21) 21365149 Fax: (21) 21365470
ISSN 1809-9815 ano 4 | maio > agosto | 2009
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CIÊNCIA, SAÚDE E CINEMA: TERRITÓRIOS COMUNS SESC | Serviço Social do Comércio
Alexandre Palma
CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO SERINGUEIRO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 ELEMENTOS PARA PENSAR POLÍTICAS PÚBLICAS SUSTENTÁVEIS
Cláudia Conceição Cunha
IMAGENS OBSESSIVAS EM AUGUSTO DOS ANJOS ano 3 | maio > agosto | 2009
www.sesc.com.br
Ivan Cavalcanti Proença
A LONGEVIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O MUNDO DO TRABALHO Lucia França
ESCOLAS DE SAMBA: CONFORMAÇÃO E RESISTÊNCIA Máslova Teixeira Valença
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