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EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO LICENCIAMENTO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES Carlos Frederico B. Loureiro
A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de Souza Valle
A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937–1996) Ieda Magri
ano 5 | setembro > dezembro | 2010
www.sesc.com.br
DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEITORES TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010 Larissa Morais
OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA ‘MORTE DO AUTOR’ Paulo Cesar Duque-Estrada
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v.5 nº14 setembro > dezembro | 2010 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional
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SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL Antonio oliveira Santos DiREtoR-GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL maron Emile Abi-Abib CooRDENAÇÃo EDitoRiAL Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento mauro Lopez Rego CoNSELHo EDitoRiAL Álvaro de melo Salmito Luis Fernando de mello Costa mauricio blanco Raimundo Vóssio brígido Filho secretário executivo
mauro Lopez Rego assessoria editorial
Andréa Reza EDiÇÃo Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral Christiane Caetano projeto gráfico
Vinicius borges produção editorial
Duas Águas editoração e consultoria revisão
Clarissa Penna Elaine bayma revisão do inglês
João mateus Cordeiro Pinto diagramação
Susan Johnson produção gráfica
Celso Clapp Sinais Sociais / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC, Departamento Nacional, 2006 - . v.; 30 cm. Quadrimestral. iSSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil. i. SESC. Departamento Nacional. As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
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SUmÁRio APRESENtAÇÃo5 EDitoRiAL7 SobRE oS AUtoRES8 EDUCAÇÃo AmbiENtAL No LiCENCiAmENto: UmA ANÁLiSE CRÍtiCA DE SUAS CoNtRADiÇÕES E PotENCiALiDADES10 Carlos Frederico b. Loureiro
A RESPoNSAbiLiDADE SoCiAL E AS ENtiDADES CoRPoRAtiVAS36 Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e bárbara de Souza Valle
A moDERNizAÇÃo DE SÃo PAULo Em DoiS tEXtoS DE JoÃo ANtÔNio (1937–1996)66 ieda magri
DiSCURSoS SobRE o HAiti: o QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEitoRES tiVERAm A DizER SobRE o tERREmoto DE 201098 Larissa morais
obSERVAÇÕES SobRE A CHAmADA ‘MORTE DO AUTOR’130 Paulo Cesar Duque-Estrada
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APRESENtAÇÃo A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar. Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.” Igualmente é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos. Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo. O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país. Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais. Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional
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EDitoRiAL Assim como as conexões entre causa e consequência são objeto da curiosidade e da investigação humanas, para melhor compreensão de uma obra frequentemente se lança mão do conhecimento a respeito do autor. Quanto mais a obra desperta emoções e instiga a imaginação e o intelecto, mais se produzem indagações sobre a personalidade do responsável pela sua criação, seu contexto histórico e seu percurso pessoal. Indagações que podem ser entendidas como uma extensão da fruição e da apreciação do trabalho de criação. A presente edição da revista Sinais Sociais apresenta trabalhos que ressaltam intencional ou circunstancialmente a figura do “autor”. O texto de Ieda Magri compara a produção literária de João Antonio, escritor que em dois de seus livros toma por cenário a mesma capital, São Paulo, separada por intervalo de duas décadas. O caminho pessoal e profissional do autor, por um lado, e as mudanças vividas pela cidade, por outro, são elementos complementares para a apreciação das obras e sua crítica literária. Servindo de contraponto, o artigo de Paulo Cesar Duque-Estrada enfoca especificamente as linhas de pensamento que defendem a chamada “morte do autor” – seja autor literário ou filosófico –, e suas conexões com a crítica ao Humanismo e à ideia de subjetividade. Larissa de Morais Ribeiro Mendes aborda a prática que a instantaneidade dos atuais meios de comunicação tornou possível: a integração dos comentários dos leitores às notícias dos jornais on-line. A celeridade do processo conduz a uma nova realidade: os leitores do jornal criticam, complementam e contextualizam as notícias e comentários anteriores, tornando-se também eles, autores do jornal. Os dois artigos seguintes situam a questão da autoria e da subjetividade no plano institucional. O texto de Carlos Frederico Loureiro discorre sobre o Estado brasileiro como elemento indutor da Educação Ambiental no licenciamento de atividades produtivas, frente à legislação e ao ambiente institucional atual. Aborda, portanto, os caminhos para que as organizações do ambiente econômico possam se tornar sujeitos efetivos dos processos de educação ambiental. Finalmente, Leticia Veloso, Eduardo R. Gomes e Bárbara de S. Valle enfocam como as entidades corporativas nacionais vêm adotando práticas da assim chamada responsabilidade social das empresas, alterando, como as próprias empresas que representam, suas formas de atuação junto à sociedade. Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
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SobRE oS AUtoRES Bárbara de Souza Valle Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2007), tem experiência na área de Ciência Política e Sociologia, atuando principalmente nos temas ligados à responsabilidade social empresarial, cidadania e participação. Atualmente é socióloga da Defensoria Pública da União. Carlos Frederico B. Loureiro Biólogo, mestre em Educação e doutor em Serviço Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Fundação Universidade Federal de Rio Grande. Coordenador do Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (Lieas/FE/UFRJ – grupo CNPq). Pesquisador do CNPq. Consultor ad hoc do CNPq e outras seis fundações de amparo à pesquisa. Parecerista ad hoc de mais de uma dezena de revistas científicas. Consultor de instituições públicas como: Instituto do Meio Ambiente da Bahia (IMA), Instituto de Gestão das Águas da Bahia, Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério da Educação e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). Autor de mais de uma centena de livros e artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Eduardo R. Gomes Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago e professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, na qual atua também no Mestrado Profissionalizante em Sistemas de Gestão, na área de Responsabilidade Social. Tem vários trabalhos publicados sobre este e outros temas, tendo sido professor visitante no exterior, inclusive como Fulbright Scholar. Na atualidade, atua também como consultor sobre Responsabilidade Social e Terceiro Setor.
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Ieda Magri Autora do livro de ficção Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007), doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ (2010). Tem graduação em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002) e mestrado em Teoria da Literatura pela mesma universidade (2005) com o tema Arte e público: reflexões sobre a experiência estética. Faz parte do corpo editorial do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea da UFRJ, é editora da Revista Anjos do Picadeiro e, juntamente com João Carlos Artigos, organizou o livro Teatro de Anônimo – sentidos de uma experiência. Larissa Morais Jornalista e professora-assistente do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). É também aluna do curso de Doutorado em Comunicação Social na mesma universidade com pesquisa sobre a participação do leitor no jornalismo. Como jornalista, já exerceu diferentes cargos em veículos da mídia impressa e digital, como Jornal do Brasil, O Globo, Globo On Line e Jornal do Commercio. Leticia Helena Medeiros Veloso Professora do Departamento de Sociologia e Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Tem pós-doutorado em Sociologia, doutorado e mestrado em Antropologia pela University of Chicago/EUA. Foi professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing/RJ e pesquisadora do Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing, ESPM/SP (2007-2009). É autora de livros e artigos nas áreas de Sociologia e Antropologia do Consumo, Responsabilidade Social, Antropologia das Empresas e Sociologia Urbana. Paulo Cesar Duque-Estrada Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1981), mestre em Filosofia pela mesma universidade (1987) e doutor em Filosofia pelo Boston College (1993), sob orientação de Jacques Taminiaux. Fez pós-doutorado na New School for Social Research (1999-2000). Atualmente é professor do Departamento de Filosofia e Coordenador Central de Pós-Graduação e Pesquisa da PUC-Rio. Consultor da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Atua nas áreas de Fenomenologia, Hermenêutica e Desconstrução, com ênfase nos temas: ética, linguagem, alteridade, ontologia e diferença.
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O presente artigo tem por objetivo caracterizar a educação ambiental no licenciamento, situando-a no âmbito dos avanços institucionais alcançados no Brasil em relação à gestão ambiental pública. Para isso, se apresenta breve contextualização do tema, indicando em seguida, de modo analítico, sua especificidade teórico-metodológica e a base legal de sustentação da educação ambiental enquanto condicionante de licença. Por fim, são indicados alguns critérios básicos que definem o perfil do profissional capaz de atuar nesse campo novo, que exige domínio dos processos pedagógicos, bom diálogo entre saberes e ciências e conhecimento dos marcos regulatórios do licenciamento no país. Palavras-chave: educação ambiental, licenciamento, administração pública This article aims to characterize the environmental education in licensing, situating it within the institutional progress made in Brazil referring to environmental public administration. Therefore, a brief context of the theme is presented, demonstrating afterwards, in an analytical mode, its specific theoretical-methodological and legal basis in support of environmental education as a condition for environmental licensing. Lastly, it suggests some basic criteria to define the professional profile able to perform in this new field, which requires mastery over the pedagogical processes, good dialogue between knowledge and science, and an understanding of national regulatory licensing frameworks. Keywords: environmental education, licensing, public administration
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iNtRoDUÇÃo Nos aproximadamente quarenta anos de história da educação ambiental, o Brasil teve destacado protagonismo em seu processo de consolidação nos diversos espaços pedagógicos: escolas, instituições públicas, movimentos sociais, áreas protegidas, grupos afetados por empreendimentos licenciados, comunidades etc. Nessa trajetória, em nosso país, principalmente a partir dos anos de 1990, as discussões sobre premissas e caminhos para sua universalização se avolumaram e ganharam densidade com a forte ação de gestores públicos, professores, ambientalistas e educadores populares (LOUREIRO, 2006). O resultado mais visível desse movimento foi a publicação da Política Nacional de Educação Ambiental (Pnea) – Lei Federal n. 9.795/1999 – e seu decreto de regulamentação (Decreto n. 4.281/2002), que apresentam diretrizes e pressupostos voltados para uma prática educativa participativa, historicizada, dialógica e humanista e um aspecto organizacional de grande relevância: o Órgão Gestor. Essa instância interministerial inédita de gestão paritária (Ministério da Educação (MEC) e Ministério do Meio Ambiente (MMA)) assegura diretrizes comuns e um diálogo entre a esfera ambiental e a de educação, com base na ação política unificada e no respeito às competências de cada órgão. A materialização do Órgão Gestor da Pnea em junho de 2003, apoiada em um contexto de adoção de políticas de democratização da área ambiental e de transversalização do tema na educação formal, sinalizou para a consolidação da educação ambiental como política pública nas três esferas de poder (federal, estadual e municipal). Com isso, as ações de formação, comunicação, bem como a institucionalização de fóruns de participação, se diversificaram e alcançaram praticamente todos os espaços possíveis de atuação dos agentes sociais públicos e privados – sem entrar aqui no mérito da qualidade ou efetividade das mesmas, apenas destacando o fato histórico e sua validade para o que interessa no escopo do artigo. Para ilustrar, podemos afirmar, com base em pesquisa nacional e em dados do Censo Escolar (LOUREIRO e COSSÍO, 2007; TRAJBER e MENDONÇA, 2006; LOUREIRO, AMORIM, AZEVEDO e COSSÍO, 2006), que no ano de 2006 mais de 96% das escolas de ensino funda-
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mental no Brasil, em um universo aproximado de 186 mil instituições, realizavam educação ambiental de alguma forma (normalmente por intermédio de uma ou mais de uma destas opções: projetos, inserção transversal, projeto político pedagógico ou disciplina). A articulação latino-americana e com os países lusófonos se concretizou, reforçando um enfoque socioambiental da educação ambiental nestes países (BRASIL, 2007). No que se refere ao processo de gestão ambiental, a presença da educação ambiental ganhou notoriedade e reconhecimento quanto à sua importância estratégica para a socialização de informações e conhecimentos, a autonomia dos grupos sociais, a participação popular e a democratização das decisões. O destaque se deu em especial nas atividades junto a unidades de conservação (LOUREIRO, AZAZIEL e FRANCA, 2007; LOUREIRO, 2004), mais genericamente junto a áreas protegidas (legitimadas com a publicação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) – Lei 9.985/2000 – e do Programa Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (Pnap) – Decreto 5.758/2006), e no licenciamento (ANELLO, 2006; UEMA, 2006; QUINTAS, GOMES e UEMA, 2006). Cabe lembrar que o licenciamento é o instrumento por excelência de comando e controle que o Estado possui para regular as atividades produtivas e econômicas em geral, estabelecendo os limites e normas na relação público-privado. A educação ambiental, nesse escopo e enquanto condicionante de licença, torna-se um meio de exercício de participação e controle social em cada empreendimento licenciado. Devemos ressaltar que esse dado de realidade se concretizou muito por meio do acúmulo obtido com as ações promovidas, ao longo da década de 1990 até o ano de 2007, pela Coordenação Geral de Educação Ambiental do Ibama (Cgeam), formuladora dos pressupostos teóricos e metodológicos da educação no processo de gestão ambiental (OLIVEIRA, 2003; QUINTAS, 2000 e 2004), que servem de referência para as experiências e para a proposta teórica apresentada neste artigo. Mas nesse cenário rapidamente apresentado, qual é a especificidade da educação ambiental no licenciamento? O que há de novo na discussão aberta em vários estados do país que a torna tão estratégica para a gestão ambiental?
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A resposta pode ser dada de um modo bem direto. A educação ambiental no licenciamento atua fundamentalmente na gestão dos conflitos de uso e distributivos ocasionados por um empreendimento, objetivando garantir: (1) a apropriação pública de informações pertinentes; (2) a produção de conhecimentos que permitam o posicionamento responsável e qualificado dos agentes sociais envolvidos; (3) a ampla participação e mobilização dos grupos afetados em todas as etapas do licenciamento e nas instâncias públicas decisórias; (4) o apoio a movimentos de reversão dos processos assimétricos no uso e na apropriação da natureza, tanto em termos materiais quanto simbólicos. O novo está, portanto, na adoção de uma perspectiva de educação ambiental com forte impacto nas políticas públicas e nas relações de poder entre os grupos sociais que se situam em territórios definidos por processos produtivos licenciados. O que exige projetos para além da realização de ações pontuais e de processos educativos que não abordam os sentidos do empreendimento, foco motivador da ação. Quando pensamos em educação no processo de gestão ambiental estamos desejando o controle social na elaboração e execução de políticas públicas, por meio da participação permanente dos cidadãos, principalmente de forma coletiva, na gestão do uso dos recursos ambientais e nas decisões que afetam a qualidade do meio ambiente (QUINTAS, 2002, p. 9).
Assumir esse pressuposto significa admitir que a gestão ambiental não se esgota em suas dimensões administrativas e técnicas, mas é estruturada e permeada por relações políticas e econômicas que situam as próprias escolhas técnicas. Assim sendo, a gestão ambiental é um processo de mediação de interesses e conflitos entre atores sociais que agem sobre o meio físico-natural e construído. Esse processo de mediação define e redefine, continuamente, o modo como os diferentes atores sociais, por meio de suas práticas, alteram a qualidade do meio ambiente, e, também, como se distribuem os custos e os benefícios decorrentes da ação desses agentes (QUINTAS, 2002, p. 14).
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Posto isso, a argumentação que sustenta o que foi dito de modo introdutório pode ser desenvolvida por dois caminhos. Um primeiro, que enfatiza os aspectos normativos e legais da proposta, que podem ser apropriados pelos órgãos ambientais na definição de suas políticas institucionais e validação jurídica. Há hoje no país, indiscutivelmente, um conjunto de instrumentos que corroboram a pertinência da educação ambiental no licenciamento sob uma perspectiva crítica e socioambiental. O outro caminho refere-se ao detalhamento teórico das premissas dos próprios documentos legais, que são respeitadas nas experiências pioneiras da Cgeam/Ibama. Esse aspecto merece atenção, uma vez que, apesar de serem amplamente mencionados, nem sempre há clareza sobre conceitos (LOUREIRO, 2006b) que “marcam” a educação ambiental no Brasil (emancipação, controle social, transformação social, participação, justiça ambiental, problematização da realidade socioambiental, entre outros). Com isso, o objetivo do artigo é tratar os dois aspectos visando fornecer as bases gerais que definem a educação ambiental no processo de licenciamento ambiental. Cabe destacar que sua pertinência está não só em termos do conhecimento produzido em uma área pouco estudada e pesquisada, mas também no esclarecimento das premissas gerais que orientam uma medida mitigadora obrigatória e que deve ser cumprida pelo conjunto de empreendimentos no Brasil. 1 o QUE NÃo É EDUCAÇÃo AmbiENtAL No LiCENCiAmENto? Essa é uma questão que poderia ser entendida como malcolocada, uma vez que temos uma multiplicidade de formas legítimas de pensar e fazer educação ambiental (CARVALHO, 2006). Todavia, esse fato, que por sinal não poderia ser diferente, já que todo campo político e de conhecimento se define por meio de contradições e posições divergentes e por vezes antagônicas, não implica cair em um enfoque relativista de aceitação simples e acrítica de qualquer modo de fazer educação ambiental. Assumir e instituir uma posição democraticamente discutida e legitimada, que se apresenta como válida para atender às finalidades da gestão pública, segundo critérios teóricos, metodológicos, políticos e legais, é indispensável para a operacionalização dos instrumentos da
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gestão ambiental. Ter uma posição não é sinônimo de estar fechado ao diálogo, ser autossuficiente. É sim ter a compreensão de que é preciso construir no diálogo e no movimento dos acontecimentos a coerência teórica e prática que possibilite a materialização de uma política pública e seus instrumentos, a partir de determinada concepção de sociedade, natureza e valores éticos que balizam a conduta humana sob certas condições históricas. O licenciamento é um processo institucionalizado e atributo exclusivo do Estado que busca garantir certos padrões de desenvolvimento humano, social e de proteção e preservação ambiental, cujos critérios para execução são definidos segundo motivações políticas e econômicas e parâmetros oriundos do conhecimento científico. Isso denota entender que o específico da educação ambiental no licenciamento se insere nesse movimento visando dar respostas efetivas aos desafios contemporâneos. A sociedade não está descolada das questões do Estado e se define nos tempos modernos de forma desigual e diversa. Nela convivem e disputam agentes sociais, em suas formas de se organizar, criar identidades e interferir politicamente. Consequentemente, o modo de apropriação dos recursos naturais envolve interesses e necessidades que determinam a qualidade ambiental resultante e a distribuição social dos custos e benefícios. Portanto, qualquer ato de ordenação do ambiente também contraria interesses e, em muitos casos, põe em risco as condições materiais e simbólicas que devem garantir a satisfação das necessidades básicas de grupos sociais já vulneráveis. Assim, o processo de apropriação social da natureza, além de não ser neutro, também é assimétrico. Desse modo, cabe ao Estado, por meio de seus instrumentos da gestão ambiental pública, tal como o licenciamento, fomentar condições para transformar o espaço “técnico” da gestão em espaço público, criando meios para a efetiva participação igualitária dos diferentes atores sociais, particularmente os que historicamente foram postos na condição de opressão cultural, expropriação material e exclusão da tomada de decisão. Tais desafios e arcabouço legal existentes, no atual momento, remetem à necessidade de uma prática educativa ambiental que seja capaz de trabalhar com as múltiplas dimensões das práticas sociais que originam o modo como nos relacionamos na natureza. Caso con-
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trário, uma ação planejada não conseguirá abordar satisfatoriamente os efeitos de um empreendimento por desconhecer os nexos entre o fundamento econômico (como se produz, quem produz e para que, quem se apropria e se beneficia de quê, quem recebe o ônus da atividade, quais são os custos energéticos e ecológicos etc.), as culturas dos grupos sociais, a dinâmica ecológica e os pressupostos pedagógicos da gestão ambiental. Em termos específicos dos pressupostos pedagógicos, diante dessa exigência, o caminho para a realização da educação ambiental no licenciamento passa necessariamente pela organização de espaços e momentos de troca de saberes, produção de conhecimentos, habilidades e atitudes que gerem a autonomia dos sujeitos participantes em suas capacidades de escolher e atuar transformando as condições socioambientais de seus territórios. Logo, não cabe pensar a educação ambiental como mera formalidade dissociada dos demais estudos e projetos previstos nas medidas compensatórias ou instrumento repassador de conhecimentos científicos. Suas concepção e execução precisam articular organicamente as ações, garantir a apropriação dos estudos técnicos pelos agentes envolvidos e transformar os espaços públicos de discussão dos encaminhamentos em espaços de aprendizagem e de decisão democrática. Uma proposição como essa não se pauta em ingenuidade política ou ilusões sobre os alcances do ato educativo. Não podemos repetir equívocos do passado e acreditar que à educação basta boa vontade das pessoas (educandos e educadores) para que ocorra e altere uma realidade existente, ou achar que por si mesma é suficiente para construir um “mundo novo”. Já manifestamos em outras oportunidades que, como bem afirma Paulo Freire, não há mudança substantiva da realidade sem educação, mas esta não acontece e nem se constituiu no “vazio”, fora das relações sociais (LOUREIRO, LAYRARGUES e CASTRO, 2007). Saber estruturar e executar um projeto de educação ambiental, bem como o seu processo de monitoramento e avaliação, para garantir que se cumpram finalidades e metas estabelecidas, significa saber também em qual contexto político-institucional, econômico e cultural isso está se dando e como um projeto no âmbito da gestão ambiental se movimenta e, até mesmo, pode alterar tais condições.
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Então, o que não cabe em educação ambiental no processo de licenciamento? Discorreremos sobre alguns pontos com base em nossa experiência e na boa sistematização feita por Uema (2006). Frequentemente observamos uma associação direta entre projeto de educação ambiental e realização de cursos de capacitação pontuais e de curta duração, sem uma articulação com as demais ações no âmbito do licenciamento e com políticas públicas implantadas. Verifica-se, igualmente, nesse escopo, ausência de concepção pedagógica que assegure unidade entre os cursos, módulos ou quaisquer outros momentos de formação previstos. A instauração de atividades educativas descoladas da realidade socioambiental em que se insere o empreendimento motivador do licenciamento agrava a situação. É recorrente no Brasil a execução de cursos e eventos sem um prévio conhecimento e diagnóstico da dinâmica socioambiental do território, dos conflitos e formas de organização social existentes, dos modos de produção e garantia de sobrevivência dos grupos sociais, das culturas e saberes que definem relações e sentidos dados à natureza. Os conteúdos são estruturados sem considerar essas informações e o diálogo com quem é o sujeito do processo educativo, havendo casos identificados de empresas de consultoria ou ONGs contratadas que repetem os mesmos cursos em cenários absolutamente distintos, o que evidencia falta de compromisso com os grupos mais vulneráveis socioambientalmente1 (LOUREIRO e AZAZIEL, 2006). O resultado é evidente: conhecimentos inócuos para quem vive em áreas atingidas pelos empreendimentos. Há incidência também de casos de desconhecimento do executor se há outros projetos de educação ambiental na região e se município(s) e estado(s) (dependendo do porte do empreendimento) apresentam 1 Em termos conceituais, cabe esclarecer que, por estado de vulnerabilidade socioambiental entendemos a situação de grupos específicos que se encontram: (1) em maior grau de dependência direta dos recursos naturais para produzir, trabalhar e melhorar as condições objetivas de vida; (2) excluídos do acesso aos bens públicos socialmente produzidos; e (3) normalmente ausentes de participação legítima em processos decisórios no que se refere à definição de políticas públicas que interferem na qualidade do ambiente em que se vive.
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políticas específicas em execução, propiciando sobreposições que levam à perda de oportunidade de se otimizar recursos e tempo com resultados concretos. São, em síntese, quando organizadas com essas características, atividades cumpridas por formalidade e força de exigência legal, que, fruto desses equívocos, geram desperdício de recursos aplicados e desrespeito às premissas e diretrizes da educação ambiental, à situação dos grupos afetados e à necessidade premente de mudança da realidade socioambiental frente à grave crise civilizatória em que estamos inseridos. No que se refere ao teor dos programas de capacitação ou treinamento, é comum a ênfase na informação e na transmissão de conteúdos científicos oriundos da ecologia e ciências naturais sem situar socialmente esses importantes conceitos para a compreensão dos processos materiais e energéticos, dos ecossistemas e dos modos de vida de outras espécies. Isso é um erro, pois, como bem coloca Acselrad (2004), o entendimento e a apreensão racional da natureza são mediados por aspectos produzidos pela ação dos agentes sociais e por dimensões subjetivas vinculadas a tais práticas, ou seja, a realidade ambiental não está dada e somente pode ser trabalhada e problematizada se contextualizada. Assim, a categoria ambiente não significa um aglomerado de objetos materiais que podem se esgotar diante da ação humana, sendo permeada por sentidos culturais e interesses diferenciados. Refere-se a um espaço comum, só que constituído por distintos projetos de sociedade, visão de mundo e modos de apropriação e usos material e simbólico. Exemplificando, uma floresta é meio e espaço de vida para seringueiros e índios e é igualmente espaço de acumulação e especulação fundiária diante dos regimes de propriedade e valorização monetária em uma sociedade produtora de mercadorias. A água de um rio é base vital para a organização produtiva e cultural de ribeirinhos e vazandeiros e é valorizada como meio para geração de uma modalidade de energia economicamente barata que permite o padrão de desenvolvimento urbano-industrial vigente. Como essas alternativas são admitidas, legitimadas e instituídas pelo Estado? Qual é a concepção hegemônica? Sob que condições é possível estabelecer diálogo entre culturas? Como aprendemos com elas? Como problematizamos os caminhos estabelecidos no momento da licença? Quais são as opções mais viáveis em termos de garantia da
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sustentabilidade? São questões que, para serem respondidas, exigem domínio teórico do contexto socioambiental e do processo de licenciamento, trânsito entre ciências sociais e naturais, entre ciências e saberes populares, e capacidade pedagógica para problematizar a realidade, buscando alternativas que se situem para além de modelos prescritivos e idealizados. O conceito de ambiente para a educação no processo de gestão ambiental expressa, portanto, um espaço percebido e materialmente produzido, com diferentes escalas de compreensão e intervenção, em que se operam as relações sociedade-meio natural. Exprime uma totalidade, que só se concretiza na medida em que é preenchida pelos agentes sociais com suas visões de mundo e práticas. O ambiente é o resultado de interações complexas, limitadas em recortes espaçotemporais que permitem a construção do sentido de localidade, territorialidade, identidade e de pertencimento para os sujeitos. A ideologia dominante que constitui o discurso oficial de muitos Estados e empresas, reproduzido em programas e projetos de educação ambiental e comunicação social, não evidencia que a compreensão e a percepção da problemática ambiental são distintas conforme os interesses, necessidades, formas de produzir e instituir as relações intersubjetivas de grupos e classes sociais. Para tal concepção reducionista, as não conformidades de uso podem ser equacionadas tecnicamente (com o avanço tecnológico e do conhecimento científico). Essa premissa é associada à procura por uma gestão eficiente voltada para o crescimento econômico – eficiência técnica no manejo dos recursos naturais, objetivando ganhos econômicos (monetários) bem como ecológicos por meio de medidas tributárias, entre outras, sobre as atividades degradantes (ALIER, 2007). O que é gerado como mercadoria e as consequências disso na reprodução dos mecanismos que engendram a desigualdade social e a sobre-exploração dos recursos naturais não entram em discussão, como se as atuais relações de propriedade e o tipo de uso da tecnologia fossem algo intrínseco à condição humana, a única opção. Esse discurso da modernização ecológica ou da ecoeficiência (ALIER, 2007) reforça o primado do mercado, eliminando como alternativa de sustentabilidade outras formas de cultura e de produção. Mais ainda, ao considerar como caminho a lógica mercantil privada,
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aposta no crescimento econômico (leia-se: aumento da produção de mercadorias e do consumo) como meio para assegurar bem-estar e preservação. Algo que é pouco defensável diante da perpetuação das relações de assimetria e acumulação material que se manifestam no aguçamento da miséria e na aceleração do consumo de bens supérfluos (cultura do efêmero e do descartável) que exigem contínua disponibilização de “matéria-prima” e representação utilitária da natureza (MÉSZÁROS, 2007). Os desafios que se colocam para a construção da sustentabilidade e da justiça ambiental no Brasil exigem, portanto, o reconhecimento das formas históricas de significação e apropriação do espaço, que anulam uma multiplicidade de formas de conceber e agir junto ao ambiente natural. Isso remete à necessária valorização das alternativas culturais disseminadas por entre as várias camadas sociais, assim como a compreensão das dinâmicas de poder existentes entre elas. A heterogeneidade cultural de nossa sociedade contrapõe-se à forma homogeneizante de intervenção na natureza, expressando propostas de sustentabilidades plurais – múltiplas possibilidades de viver, que se refletem na diversificação do espaço e inspiram uma visão de sustentabilidade que deve necessariamente articular as dimensões da equidade, da igualdade, da distribuição, assim como da universalidade do direito de viver na singularidade (ZHOURI, LASCHEFSKI, PEREIRA, 2005, p. 19).
Quando nos encontramos frente a um tratamento desistoricizado como esses mencionados, que preconcebe o ambiente como categoria do consenso e da cooperação, ignorando sua dimensão de contestação e de conflito, as atividades educativas tendem a voltar-se para a sensibilização e para a transmissão de conceitos abstratamente. Não há, nesse escopo de ações, preocupação em organizar as atividades a partir de e com foco nos grupos prioritários do processo educativo (os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade socioambiental). De modo ilustrativo, isso quer dizer que ocorrem atividades de sensibilização, de “despertar sentimentos” e sentidos pela natureza sem se trabalhar de forma vinculada as condições concretas de vida das pessoas e suas culturas (que já englobam certas representações de
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natureza e ambiente); elegem-se temas como energia, aquecimento global, lixo, água, mas estes não são tratados de modo a serem relacionados ao modo de produção existente no território impactado por um empreendimento licenciado e nem são estabelecidos os nexos entre os macroproblemas ambientais e os problemas existentes na base territorial de nossa vida cotidiana. Com isso, no momento da escolha e seleção dos sujeitos participantes do fazer educativo, habitualmente enfatizam-se alunos de escolas, crianças e comunidade em geral (como se fosse um todo homogêneo), ocasionando alguns equívocos pedagógicos. Primeiro, é inviável se estabelecer um processo educativo com resultados concretos de mudança da realidade tratando todos os grupos sociais de modo indistinto (quando se faz isso, fica-se no plano da sensibilização e da transmissão de conhecimentos previamente escolhidos pelo corpo técnico). É inexequível um projeto que apresenta como público toda a população, ainda que, em última instância queiramos que todos se sintam envolvidos com a questão ambiental. Um projeto, para ser operacional, com objetivos plausíveis, que parta das contradições concretas da realidade e que possa ser avaliado, necessita de clara delimitação dos sujeitos do processo educativo e das metas. Além disso, o tipo de linguagem, de conteúdo, de interesse e de capacidade de organização para intervenção e atuação no espaço público se altera significativamente entre os grupos. Compreender essa dinâmica e respeitá-la é condição elementar para que se estabeleça um processo educativo em que os sujeitos se motivem, se apropriem de informações, criem conhecimentos, atuem conscientemente e conquistem direitos. Segundo, compete à educação ambiental no licenciamento a ação educativa não formal. A dimensão formal, que se refere fundamentalmente à dimensão curricular, e não apenas ao ato de se realizar atividades na escola, tal como expressa a Pnea e a LDB, é de competência das instâncias de ensino. A confusão entre o que cabe à educação formal e à não formal gera problemas de atribuições entre órgãos ambientais, de educação, empresas e organizações populares. Há casos no Brasil de redes de ensino adotando como políticas municipais de educação ambiental projetos definidos por ONGs ou empresas, sem respeito à autonomia escolar e às competências da Secretaria de
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Educação, que passa de reguladora, mediadora e instância promotora de direitos e da esfera pública à condição de executora de políticas definidas na esfera privada. Há igualmente casos em que secretarias de meio ambiente definem ações de educação ambiental repassando às secretarias de educação apenas a função de implementação nas escolas, ferindo a própria estrutura paritária de gestão prevista na Política Nacional de Educação Ambiental (Pnea). São claros exemplos de conflito entre público e privado (mais objetivamente de sobreposição do privado sobre o público) e entre competências no interior do poder público, que não podem ser estimuladas ou admitidas. A educação no processo de gestão ambiental, até por exigência legal, deve partir de movimentos sociais, sindicatos, empresas, entre outras, podendo chegar às escolas, articulando escola-comunidade, sob o prisma da educação não formal, o que é um movimento positivo e uma diretriz da educação ambiental brasileira, fomentada em iniciativas como Agenda 21 escolar e COM-VIDA (BRASIL, 2004). Pode também, por força da dinâmica dos projetos e programas, favorecer e fomentar discussões com secretarias de educação visando a adequações curriculares, como desdobramento de algo que se inicia na órbita do licenciamento, mas desde que se tenha clareza de que esse tipo de ação não é o cerne da educação na gestão ambiental. Além disso, como já foi dito, o público prioritário de qualquer projeto no contexto do licenciamento são os grupos afetados, e os espaços de atuação por excelência são aqueles onde se manifestam de modo imediato os conflitos de uso, e isso exige que se saiba definir graus de prioridade nas relações institucionais e com os sujeitos envolvidos. Em resumo, não é admissível em um projeto no licenciamento, por exemplo, que se invista majoritariamente em atividades de sensibilização com crianças em escolas e visitações em áreas preservadas sem considerar o objeto central: o empreendimento e seus efeitos; e a atribuição educativa própria da gestão ambiental: a educação não formal. Uma última confusão recorrente que merece citação é identificar programas de comunicação social como sendo de educação ambiental. E, o que é pior, a partir dessa simplificação, utilizar a educação ambiental como meio para divulgação de informações relativas ao empreendimento como estratégia de marketing, de promoção institucional ou como meio de convencimento ideológico junto à popu-
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lação, dizendo que o empreendimento licenciado é a única opção viável para o “progresso da região e geração de empregos”. São programas que podem ser pensados de forma integrada? Sem dúvida, já que se complementam e se potencializam mutuamente, posto que se referem às nossas relações intersubjetivas, às interações humanas, à linguagem e à cultura, mas não são a mesma coisa. A comunicação social atua na publicização de informações, tem por finalidade tornar transparentes informações relativas às ações instauradas, divulgar fatos, tornar acessível conhecimentos e formar opiniões, podendo ainda ser importante meio de organização popular, quando temos meios de comunicação democráticos, por intermédio do uso de instrumentos como rádios comunitárias, produção de jornais comunitários e fomento a redes e canais interativos. A educação atua no processo ensino-aprendizagem, na problematização e tomada de consciência de dada realidade pelo conhecimento e pela intervenção prática, na construção de valores e condutas, na reflexão crítica do que fazemos e da realidade objetiva e na criação de meios instrumentais (técnicas) que propiciam determinado tipo de transformação da natureza para atendimento de nossas necessidades. Há um louvável esforço do Órgão Gestor da Pnea na articulação dessas duas dimensões, por intermédio do Programa de Educomunicação Socioambiental (BRASIL, 2005). Com ele se busca atender a linha de ação Comunicação e Educação Ambiental do Programa Nacional de Educação Ambiental (Pronea). Até o momento, foram realizadas ações de campanhas, produção e distribuição de materiais didáticos, folhetos e livros, criação do portal EA.net, veiculação de produções independentes em canais de rádio e TV, implementação do Projeto Rádio-Escolas Verdes, entre outras. É um programa que, ao ser conhecido, pode ajudar a desfazer as confusões existentes e a construir as “pontes” pertinentes. 2 QUAL É A EDUCAÇÃo DA EDUCAÇÃo AmbiENtAL? Define-se a educação como sendo uma prática social cujo fim é o aprimoramento humano naquilo que pode ser aprendido e recriado a partir dos diferentes saberes existentes em uma cultura, de acordo com as necessidades e exigências de uma sociedade. Atua, portanto,
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sobre a vida humana em dois sentidos: (1) desenvolvimento da produção social como cultura, mesmo dos meios instrumentais e tecnológicos de atuação no ambiente; (2) construção e reprodução dos valores culturais. (...) Educação, antes de ser um procedimento formal de escolarização, é um processo livre, em tese, de relação entre pessoas e grupos, que busca maneiras para reproduzir e/ou recriar aquilo que é comum, seja como trabalho ou estilo de vida, a uma sociedade, grupo ou classe social (LOUREIRO et al., 2005, p. 12).
Pelo que foi exposto até aqui, é fácil perceber que a educação não se esgota na escolarização (mesmo que esta seja corretamente entendida como um direito social inalienável). Refere-se, também, aos processos sociais pelos quais nos constituímos como seres sociais, e a partir dos quais diferentes saberes, conhecimentos, atitudes e habilidades são criados e transmitidos (reproduzidos), gerando cultura (LOUREIRO, 2006a). Os indivíduos não nascem prontos, mas se definem enquanto tal por meio das relações sociais. Consequentemente, educar é uma prática intersubjetiva intencional, pois expressa nossos projetos e ideais sobre a condição humana e a sociedade em que queremos viver, estando para além da sensibilização ou da acumulação de conhecimentos (componentes necessários ao processo, mas não suficientes), encontrando-se também na consciência acerca da realidade e no modo como intervimos nesta e objetivamos nossos valores (SAVIANI, 2003). Com efeito, se cada indivíduo humano sintetiza relações sociais, isso significa que ele só se constitui como homem por meio das relações que estabelece com os outros homens, isto é, só pode tornar-se homem se incorporar em sua própria subjetividade formas de comportamento e ideias criadas pelas gerações anteriores e retrabalhadas por ele e por aqueles que com ele convivem (SAVIANI, 2004, p. 46).
Ora, se esse é o pressuposto primordial da educação, sua finalidade primeira e última é atuar no processo emancipatório. Educar é emancipar (LOUREIRO, 2007).
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Aprofundando um pouco mais a reflexão, vale ressaltar, para fins didáticos, alguns princípios pedagógicos com base em Paulo Freire (1988), que facilitam a compreensão da amplitude conceitual em volta da educação no processo de gestão ambiental. • Educar é propiciar a leitura do mundo, conhecê-lo para transformá-lo e, ao transformá-lo, conhecê-lo. Tal movimento envolve metodologias participativas e dialógicas associadas a conteúdos transmitidos, assimilados e reconstruídos coletivamente. • Educar é sentir, interpretar, conhecer e agir. Conhecer é estabelecer relações lógicas, definir nexos e explicar fenômenos. A veracidade do conhecimento, além de ser transitória, histórica e vinculada à materialidade existente, está condicionada à sua possibilidade prática, de realizar-se e de ser apropriada para fins emancipatórios. Logo, saber não é possuir uma forma ideal, um conteúdo prévio e universal que se aplica na sociedade, mas formar-se, construir o conteúdo que vira forma no processo e que nos permite pensar o mundo. • Aprender está para além de acumular conhecimentos. É conseguir racionalmente relacioná-los e contextualizá-los para saber como a história foi feita até aqui e o que é preciso fazer para a construção de nossa própria história daqui para frente. • Educar é reconhecer que diferentes saberes são válidos. A validade de nosso ponto de vista se afirma no enfrentamento respeitoso de ideias e posicionamentos, no diálogo, na explicitação de conflitos e busca de novas realidades. Pedagogicamente válido é o que se afirma pela exposição e argumentação e não pela imposição. • A participação na vida pública é o cerne da aprendizagem política, da gestão democrática. É por meio desta que vinculamos a educação à cidadania, estabelecemos os elos para formulações transdisciplinares e ampliadas acerca da realidade, nos posicionamos frente aos problemas e buscamos garantir a igualdade de direitos e a justa distribuição do que é socialmente produzido. Em síntese, podemos dizer que a educação torna-se o principal meio de formação humana e importante meio de exercício de cidadania e controle social na gestão ambiental ao propiciar vivências de percepção sensorial e gerar consciência das condições materiais de
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existência; ao favorecer a produção de novos conhecimentos que nos permitam refletir criticamente sobre o que fazemos no cotidiano e sobre os rumos do modelo de desenvolvimento adotado em um país ou região; ao exercitar nossa capacidade de definir os melhores caminhos para uma “cultura da sustentabilidade”. 3 ASPECtoS LEGAiS DA EDUCAÇÃo AmbiENtAL No LiCENCiAmENto Na Constituição Federal temos a premissa da participação popular e a exigibilidade da educação ambiental, bem como a determinação do caráter público do ambiente. Portanto, há o reconhecimento, ainda que posto de modo genérico, da validade de construção de alternativas que busquem uma sustentabilidade democrática, voltada para a justiça ambiental. CAPÍTULO VI DO MEIO AMBIENTE Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;(...) IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (...).
Essas premissas se traduzem, no campo da educação ambiental, principalmente nos seguintes trechos da Política Nacional de Educação Ambiental (Lei 9.795/99):
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Capítulo I Art. 2o A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal. Art. 3o Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo: I - ao Poder Público, nos termos dos artigos 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; II - às instituições educativas, promover a educação ambiental de maneira integrada aos programas educacionais que desenvolvem; III - aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), promover ações de educação ambiental integradas aos programas de conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; IV - aos meios de comunicação de massa, colaborar de maneira ativa e permanente na disseminação de informações e práticas educativas sobre meio ambiente e incorporar a dimensão ambiental em sua programação; V - às empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio ambiente; VI - à sociedade como um todo, manter atenção permanente à formação de valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuação individual e coletiva voltada para a prevenção, a identificação e a solução de problemas ambientais.
Em seu artigo 8 § 2o, define-se o tipo de capacitação cabível. Esta voltar-se-á para: I - a incorporação da dimensão ambiental na formação, especialização e atualização dos educadores de todos os níveis e modalidades de ensino;
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II - a incorporação da dimensão ambiental na formação, especialização e atualização dos profissionais de todas as áreas; III - a preparação de profissionais orientados para as atividades de gestão ambiental; IV - a formação, especialização e atualização de profissionais na área de meio ambiente; V - o atendimento da demanda dos diversos segmentos da sociedade no que diz respeito à problemática ambiental.
De modo complementar, o decreto regulamentador 4.281/02, afirma: Art. 6º - Para o cumprimento do estabelecido neste Decreto, deverão ser criados, mantidos e implementados, sem prejuízo de outras ações, programas de educação ambiental integrados: I - a todos os níveis e modalidades de ensino; II - às atividades de conservação da biodiversidade, de zoneamento ambiental, de licenciamento e revisão de atividades efetivas ou potencialmente poluidoras, de gerenciamento de resíduos, de gerenciamento costeiro, de gestão de recursos hídricos, de ordenamento de recursos pesqueiros, de manejo sustentável de recursos ambientais, de ecoturismo e melhoria de qualidade ambiental; III - às políticas públicas, econômicas, sociais e culturais, de ciência e tecnologia de comunicação, de transporte, de saneamento e de saúde; IV - aos processos de capacitação de profissionais promovidos por empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas; V - a projetos financiados com recursos públicos; VI - ao cumprimento da Agenda 21.
Devemos recordar que o Programa Nacional de Educação Ambiental (Pronea), no plano da concepção pedagógica, articula as mudanças individuais de percepção e cognição às mudanças sociais com vistas a uma transformação profunda do modo como nos relacionamos na natureza. Propõe compreender as especificidades dos grupos sociais, o modo como produzem seus meios de vida, como criam condutas e se situam na sociedade, para que se estabeleçam processos pautados no diálogo, na problematização do mundo e na ação. Em sua exposição de princípios norteadores, em consonância com a Pnea, alguns se
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referem diretamente a um entendimento pedagógico crítico da educação ambiental: (1) respeito à liberdade e apreço à tolerância; (2) vinculação entre ética, estética, educação, trabalho e práticas sociais; (3) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; (4) compromisso com a cidadania ambiental ativa; (5) transversalidade ambiental construída a partir de uma perspectiva interdisciplinar. 4 QUAL EDUCADoR E EDUCADoRA AmbiENtAL AtENDE À PRoPoStA? Diante do que foi exposto, uma questão que aparece nas discussões que visam à normatização da educação ambiental no licenciamento é: quais são as características que um profissional deve ter para poder atuar em um projeto com tais especificidades? Enfim, ao contrário de outros campos de conhecimento, a educação ambiental, pelo modo como se constituiu, não é uma atividade profissional regulada, ou seja, não há nenhuma instância que credencie uma pessoa como educador ou educadora ambiental. Esse aspecto, se por um lado é interessante, traz em si seu reverso quando pensamos na gestão ambiental: se todos podem se identificar como educadores, quem efetivamente pode se habilitar a atuar como tal em ações de educação não formal? É preciso, portanto, pensar em algumas condições que possam ser exigidas para que se tenha maior margem de segurança de que projetos, com o grau de complexidade cabível em um processo de licenciamento, se concretizem dentro do escopo previsto. Não temos a pretensão de estabelecer um modelo pronto, mas alguns aspectos que podem ser preliminarmente elencados, inspirados na sistematização feita pela Cgeam (IBAMA, 2002). Um profissional, para atuar na educação no processo de gestão ambiental, tem que demonstrar experiência e capacidade de interlocução com grupos com diferentes faixas de escolaridade (por vezes, extremamente discrepantes), ou seja, tem que ser capaz de adequar linguagens e metodologias em função dos sujeitos participantes. Necessita dominar também os procedimentos pedagógicos para a ação prioritariamente junto a jovens e adultos, posto que são as faixas etárias que compõem majoritariamente o conjunto dos envolvidos nas
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discussões sobre um empreendimento e que atuam de forma mais direta no enfrentamento dos conflitos de uso. Nesse plano mais genérico, precisa igualmente evidenciar conhecimento das diretrizes da educação ambiental e os princípios da gestão ambiental pública. Para tanto, o educador e a educadora ambiental devem estar habilitados a: • analisar criticamente o contexto político, cultural e econômico e as institucionalidades que legitimam os processos decisórios sobre acesso e uso aos recursos ambientais; • reconhecer os limites e as possibilidades de utilização dos instrumentos de gestão ambiental no ordenamento dos usos; • agir para superar a visão fragmentada da realidade socioambiental, por meio de processos críticos e dialógicos; • respeitar as culturas existentes na base territorial afetada; • fortalecer a organização e a mobilização dos grupos territorializados no exercício de sua autonomia; • agir eticamente no processo de construção de novas relações sociais na natureza, respeitando princípios como: justiça social, sustentabilidade democrática, equilíbrio ecológico, dignidade de vida e respeito à diversidade cultural. Em resumo, são aspectos que exigem cada vez mais uma formação profissional interdisciplinar e bom domínio de categorias próprias das ciências sociais no trato da questão ambiental. CoNSiDERAÇÕES FiNAiS Vivemos um momento único no Brasil para a viabilização da educação ambiental enquanto política pública de caráter democrático, inserida e articulada aos diferentes espaços pedagógicos, incluindo a gestão ambiental e o ensino formal. Mas a certeza disso não pode estar associada a um otimismo descabido. As contradições que o padrão societário nos colocam são agudas e, ao mesmo tempo em que conseguimos avançar na consolidação de espaços de participação e no controle social de políticas ambientais e educacionais, reproduzimos relações de preconceito, expropriação e dominação, ocasionando desesperança e o aguçamento da miséria e da destruição ambiental. Simultaneamente ao amadurecimento teórico e metodológico na
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educação ambiental, as dúvidas sobre o que fazer e como fazer diante dos gigantescos problemas cotidianos se avolumam. Nesse contexto, a educação ambiental no licenciamento se consolida enquanto espaço de disputa no uso e na apropriação dos instrumentos da gestão ambiental pública brasileira, que pode contribuir de modo significativo para a democratização da sociedade e superação de injustiças ambientais, principalmente em um momento de forte crescimento econômico que se reflete na demanda por licenças e atuação do Estado. Estar ciente desse dado de realidade significa negar um otimismo idealizado e igualmente o imobilismo e a angústia. A realidade concreta é o estímulo para que, a partir do conhecimento crítico da mesma, se construam alternativas viáveis. Precisamos sair do senso comum na educação ambiental, das respostas prontas e fáceis, e enfrentar, sem medo e com a necessária dose de utopia, os desafios que podem nos conduzir à consolidação de uma alternativa à atual formação socioeconômica.
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A RESPoNSAbiLiDADE SoCiAL E AS ENtiDADES CoRPoRAtiVAS Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bรกrbara de Souza Valle
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O presente estudo mostra que houve uma significativa incorporação de ideias da Responsabilidade Social pelas entidades corporativas e que esta apropriação é variável no que concerne à missão, aos objetivos e às ações das organizações corporativas, apontando para uma importante renovação da visão empresarial do social nas estruturas corporativas, especialmente se comparada àquela do período do desenvolvimentismo, tipicamente construída a partir da fábrica. Palavras-chave: Responsabilidade Social, corporativismo, Sistema S, empresários This study shows that there has been a significant incorporation of ideas from Social Responsibility by corporatist entities, but this appropriation varies in respect to the mission, objectives and actions of these corporatist organizations, pointing out to an important renewing of the entrepreneurial view of social issues, especially if compared to the one of the developmentalist phase, commonly built from the industry. Keywords: Social Responsibility, corporativism, S System, entrepreneurs
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iNtRoDUÇÃo Este artigo volta-se aos impactos do novo e crescente envolvimento dos empresários com a chamada “Responsabilidade Social” na missão, nos objetivos e ações das entidades corporativas, uma vez que essa nova forma de atuação empresarial surgiu e se desenvolveu externamente àquelas organizações de classe, tradicionalmente marcadas por uma postura de defesa de interesses econômicos empresariais, desde sua fundação em meados dos anos 1940 até os anos 1980/90. Isso não quer dizer que as entidades corporativas não tivessem preocupações sociais – o que, na verdade, é a razão de ser, por exemplo, do Serviço Social da Indústria (Sesi) e do Serviço Social do Comércio (SESC), entre outras que são parte do que se convencionou chamar de Sistema S – mas que a defesa daqueles interesses esteve no centro da atuação das organizações corporativas em grande parte desse período2. Caracterizada por um engajamento de pequenas, médias e grandes empresas dos mais variados setores em ações sociais voluntárias voltadas para o enfrentamento de problemas sociais e ecológicos, a Responsabilidade Social ganhou grande importância na sociedade brasileira contemporânea. Como foi constatado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) há poucos anos, quase sete em cada dez empresas haviam feito uma ação social voluntária (PELIANO, 2006). A principal entidade empresarial voltada para promoção da Responsabilidade Social no país, o Instituto Ethos, parece se O chamado “Sistema S” não é um sistema orgânico, ainda que algumas de suas entidades tenham uma estrutura semelhante. Na atualidade, compõese de 11 organizações como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), o Serviço Social do Comércio (SESC), o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Serviço Social de Transporte (Sest), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Diretoria de Portos e Costas do Ministério da Marinha (DPC), que passaram por significativas modificações ao longo dos anos desde sua fundação.
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orgulhar de ter cerca de 1.200 empresas associadas, que representam 35% do PIB brasileiro3. Em termos gerais, a Responsabilidade Social das Empresas (ou Responsabilidade Social Corporativa) tem sido entendida como uma resposta voluntária das empresas a uma sociedade formada de indivíduos cada vez mais críticos – como consumidores e/ou cidadãos – dos problemas sociais e ambientais por elas mesmas gerados, assumindo-se que o Estado teria certas limitações para dar soluções a essas questões e, portanto, caberia a elas compensar a sociedade. Assim configurado, esse novo tipo de ação social empresarial aparece como distinto de atitudes filantrópicas ou assistencialistas, feitas ocasionalmente em nome de algum valor humanitário ou religioso, com objetivos similares. Tendo em vista essa nova postura consciente da sociedade, a incorporação da Responsabilidade Social nos negócios empresariais aparece como uma atitude que as empresas devem naturalmente abraçar, uma vez que pode proporcionar-lhes um diferencial competitivo, sendo que alguns poucos, como Milton Friedman, opõem-se a esse tipo de abordagem afirmando que “the business of business is business” (GRAYSON; HODGES, 2003; TENÓRIO, 2004; MELO NETO; FRÓES, 2001). Dado que o empresariado brasileiro tem se engajado de forma cada vez mais intensa em práticas de Responsabilidade Social, cabe investigar as apropriações desse novo pensamento pelas entidades corporativas, já que essa nova postura não só surgiu com uma orientação distinta daquela assumida pelas organizações corporativas desde o pós-guerra até recentemente, externa a elas e até mesmo de maneira crítica a elas. Como o sistema corporativista no Brasil é estruturado hierarquicamente em sindicatos de ramos de setores econômicos locais, federações multissetoriais estaduais e confederações setoriais nacionais como, originalmente, aquelas da indústria e do comércio, enfocamos o nível meso desta estrutura, que são as federações estaduais, possivelmente captando a diversidade do panorama econômico nacional. Valores sociais perpassaram, sem dúvida, a modernização da economia brasileira resultando em iniciativas como as das entidades sociais do Sistema S e outras, mas nosso foco é o impacto desse novo enfoque 3
Ver Instituto Ethos (2006).
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da questão social, sob o prisma de “Responsabilidade Social”, que acabou por se consolidar como um sistema de gestão, que se baseia em algum tipo de compensação das externalidades negativas das empresas, ou em intervenções sociais que demonstrem um certo compromisso destas com demandas sociais, de maneira voluntária e individual, à guisa de marketing, de valorização da marca ou de outro ganho. Para Cheibub e Locke (2002), tais nuances não importam muito e é difícil, senão impossível, estabelecer as motivações reais das ações sociais das empresas no envolvimento com Responsabilidade Social. Os autores questionam também o porquê de se enfocar tão enfaticamente as empresas sem considerar outras instituições como sindicatos, associações, entre outras entidades, que também podem gerar algum tipo de predação social. No entanto, esses mesmos autores consideram, como nós e Amaeshi e Bongo (2006), que é inequívoco que as empresas estão crescentemente adotando essa nova postura social privada e que isso pode ser não apenas compatível com ganhos individuais, mas também com o interesse público. Portanto, a partir de uma análise das origens e dos principais aspectos da Responsabilidade Social no Brasil, estamos interessados em explorar questões: Como as entidades corporativas estão interagindo com esse novo discurso empresarial? Quais são as categorias nele enfatizadas? Quais são as semelhanças e diferenças da postura das organizações corporativas acerca da concepção predominante de Responsabilidade Social? Neste artigo, enfocamos apenas o empresariado industrial, por meio das suas Federações Estaduais, examinadas aqui pelas informações contidas nos seus sites institucionais. Esse foco se justifica pelo fato de a Responsabilidade Social, no Brasil, ter-se originado da indústria, sem prejuízo de sua incorporação pelos outros setores, o que está ocorrendo e merece atenção. De qualquer forma, podemos adiantar que o que se apreende da pesquisa, é que houve, sim, uma significativa incorporação das ideias de Responsabilidade Social nas entidades corporativas, mas essa apropriação mostrou-se algo variável. Dessa forma, não foi possível identificar um formato de incorporação específico, que englobe todas as Federações, nem fazer correlações explicativas com fatores externos às organizações, digamos, como o nível do desenvolvimento dos estados poderia indicar. Assim mesmo, parece-nos que a ampla adesão à nova
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postura “socialmente responsável” e seu conteúdo plural sugere uma significativa renovação da visão empresarial do social nas entidades corporativas, principalmente se comparada à visão social dos empresários no período da modernização desenvolvimentista, tipicamente centrada na fábrica, ou no ramo ou setor econômico. Isso abre um sem-número de questões da maior importância para relações concretas entre empresários, governo e sociedade no âmbito das políticas públicas, assim como para as teorizações sobre um novo papel social das empresas nas sociedades de mercado, de que não trataremos aqui, mas estão na nossa pauta de preocupações. Para responder às questões que nos propusemos neste artigo, recuperaremos as origens, os delineamentos e desdobramentos do movimento em torno da Responsabilidade Social no Brasil. Em seguida, apresentaremos os resultados da investigação e da discussão desse material à luz da nossa proposta de análise, com o que chegaremos às conclusões delineadas no desenvolvimento do trabalho, articulandoas a partir do que podem ser os primeiros momentos da interação da Responsabilidade Social com os seviços sociais do Sistema S. Em vez de realizar uma comparação exaustiva entre todos os Estados, decidimos enfocar a missão e/ou objetivos das federações, assim como ações desenvolvidas por algumas federações. Além disso, é importante esclarecer que, para adequar nossa análise às formas concretas pelas quais aparece, nestes materiais, algum grau de preocupação com a responsabilidade da indústria, foi preciso que expandíssemos o conteúdo de nosso próprio conceito. Trabalhávamos, inicialmente, com um conceito de Responsabilidade Social Empresarial tal como sugerido pelo Instituto Ethos, para o qual, a responsabilidade empresarial deve abranger não só o cumprimento da lei nem apenas a ação social propriamente dita, mas um modelo mais amplo de condução dos negócios que englobe todos os aspectos da produção e da gestão. Nesse modelo, todo e qualquer aspecto da atividade empresarial é visto como englobado sob a rubrica da responsabilidade. No entanto, ao analisar os sites das federações, logo descobrimos ser necessário expandir ainda mais o conceito para dar conta das diferentes formas pelas quais tais preocupações vêm sendo incorporadas pelas federações. Em outras palavras, nem sempre as federações se utilizam dos mesmos conceitos para dar significado às mesmas ações ou percepções acer-
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ca do novo papel social da indústria: enquanto algumas falam explicitamente de responsabilidade social empresarial, outras preferem o termo desenvolvimento sustentável, por exemplo. No entanto, ambas podem estar se referindo ao mesmo conjunto de ideias, segundo o qual a empresa é percebida como tendo um papel social no desenvolvimento do país e até mesmo na resolução das questões sociais. Portanto, expandindo o conceito para que fosse possível dar conta das várias formas pelas quais as federações específicas o vêm utilizando, foi possível perceber que praticamente todas as federações estaduais pressupõem algum reconhecimento da importância e necessidade da Responsabilidade Social, o que nos parece uma importante constatação, ainda que mereça aprofundamento, evidentemente, em outros trabalhos. 1 oRiGENS E EVoLUÇÃo DA RESPoNSAbiLiDADE SoCiAL No bRASiL O que se configurou de forma minimamente reconhecida como Responsabilidade Social Empresarial no Brasil de hoje constitui-se como um novo tipo de ações e projetos de intervenção social e ambiental, desenvolvidos por um sem-número de empresas, empresários e organizações por eles constituídas. Diferentemente das práticas filantrópicas, que seriam aquelas marcadas pelo voluntarismo e altruísmo, essas ações e projetos visam intervir em problemas sociais e ambientais como parte integrante da própria atividade empresarial, tendo por base a ideia de que, em vista dos lucros que as empresas auferem com a utilização dos recursos humanos e materiais da sociedade, cabe a elas uma responsabilidade especial de compensar, de alguma forma, a própria sociedade. Dentre todos os fatores que conduziram ao surgimento da Responsabilidade Social Empresarial no Brasil, parece-nos que a crítica às dificuldades do Welfare State de manter o enfoque universalista, oriunda dos países desenvolvidos do Hemisfério Norte nos anos 1980, formou como que o pano de fundo dessa mudança e, portanto, pode ser o primeiro item a ser considerado. Com isso, foi valorizada uma forma de assistência mais segmentada, em que a sociedade estivesse mais diretamente envolvida, inclusive arcando com parte dos custos dos programas sociais (ESPING-ANDERSEN, 1995).
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Tal revisão do Welfare State, que deita raízes na crise dos anos 1970, que encerrou o ciclo de prosperidade do pós-guerra do mundo ocidental, ecoou no Brasil nos anos 1990, ou seja, exatamente no momento em que se firmava a ideologia neoliberal. Com base em uma ampla crítica ao modelo desenvolvimentista que havia guiado o Brasil por praticamente cerca de cinquenta anos, formou-se entre as elites brasileiras naquele momento um grande consenso em torno do ideário neoliberal, visto como única saída para se combater de vez a inflação crônica que nos assolava e que havia chegado à hiperinflação na década anterior (DINIZ, 1997). Diferentemente das tentativas da segunda metade dos anos 1980 de se compatibilizar crescimento econômico e redistribuição através de vários planos econômicos heterodoxos, a nova orientação prevalecente nos anos 1990 priorizava o combate à inflação através de políticas ortodoxas de estabilização, independentemente das consequências regressivas que delas pudessem advir. Assim, além de uma luta irrestrita contra a inflação, a nova postura envolvia a implementação de amplas reformas liberalizantes na economia e no Estado, como a liberalização e a desregulamentação econômica, a privatização das empresas estatais e a reforma administrativa, entre outras medidas. Esse diagnóstico ganhou espaço já nos primeiros anos da década de 1990, com o governo Collor, e ampliou-se na administração Fernando Henrique, que também obteve o primeiro sucesso de combate duradouro à inflação com o Plano Real, implementado pelo seu antecessor, Itamar Franco. Dentro dessa revisão do modelo desenvolvimentista, atacou-se também o paradigma do modelo de assistência social vigente no país, praticamente nos mesmos termos em que o Welfare State tinha sido criticado desde o final dos anos 1970 no exterior. Seguindo essa nova visão, o governo Fernando Henrique implementou uma série de reformas do sistema brasileiro de bem-estar social, a partir do que ganhou importância a formação de parcerias com a sociedade civil (ARRETCHE, 1999). Estas foram viabilizadas pelas chamadas “Lei do Voluntariado”, de 1998, e “Lei das OSCIP” (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), de 1999, implementadas por esse mesmo governo (SZAZI, 2005). De qualquer forma, estávamos no momento pós-constituinte e, do lado da sociedade civil, também se notava uma mobilização no sen-
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tido de institucionalizar os espaços de participação conquistados com as lutas dos anos anteriores, desde a redemocratização (DAGNINO, 2002). Nesse contexto, o Instituto Brasileiro de Análise Social (Ibase) e seu presidente Herbert de Souza (Betinho) tiveram um papel dinamizador muito importante, ao chamar a atenção para a existência de fome no país, conclamando a todos, em 1993, para que colaborassem para saná-la através de doações. O Ibase, na verdade, já vinha realizando algumas campanhas sociais desde os anos 1980, mas esta campanha em especial procurou ligar a solução desse problema social básico – que é a fome – à sociedade brasileira como um todo, ao intitular-se “Ação da Cidadania contra a Miséria pela Vida”. Pode-se dizer que, definida nesses moldes, tal iniciativa foi extremamente bem-sucedida, tendo obtido apoio explícito de vários setores sociais, inclusive dos empresários4. Talvez não por coincidência, este foi também o momento em que emergiu o movimento “Reage Rio”, que buscava mobilizar sociedade e governo contra o que foi visto como escalada de violência por que passava a cidade do Rio de Janeiro, o que depois ecoou em outras grandes cidades brasileiras. Liderado pelo antropólogo Rubem César Fernandes, o movimento se transformou, no caso do Rio de Janeiro, em outra importante Organização Não Governamental: o Viva Rio5. Mais tarde, no final dos anos 1990, o mesmo Betinho, sintonizado com essas mudanças, iniciou uma luta pela adoção de um Relatório Social pelas empresas. Tal relatório, na concepção de Betinho, seria como que um sinal público da atuação socialmente responsável de cada empresa, vindo a se juntar a um conjunto de novas normatizações internacionais do comportamento empresarial socialmente responsável. E estas, por sua vez, também estimularam a disseminação dos princípios da Responsabilidade Social Empresarial entre nós. Assim, o cenário do surgimento da Responsabilidade Social Empresarial no Brasil é bastante complexo, com diversos determinantes e desdobramentos: por um lado, a crise do tradicional modelo de assistência social e previdência universalista do Welfare State, que ecoou nas reformas do modelo de desenvolvimento do país nos anos 1990 voltadas para priorizar os determinantes de mercado. Por outro, a so4 5
Ver Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase (2006). Ver Viva Rio (2006).
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ciedade não só começava a reclamar mais dos problemas sociais, mas – de forma inédita – também se envolvia cada vez mais com alternativas à intervenção estatal para solucioná-los. Finalmente, essa mesma sociedade também começava a ter uma voz cada vez mais ativa na avaliação do que recebia como consumidora. Dentro desse quadro, foi surpreendente observar que os empresários, tradicionalmente marcados por uma postura reativa às mudanças político-econômicas, e sem demonstrar uma preocupação mais efetiva com as questões sociais, passaram por um processo de profunda mudança. Tal renovação se explicitou, principalmente, através do envolvimento empresarial em vários tipos de ações e projetos sociais, o que, por sua vez, abriu caminho para a formação de novas associações de classe muito distintas daquelas entidades corporativas em que tradicionalmente tinham se envolvido ao longo de nossa história recente. Esse envolvimento derivou também do processo de transição democrática, no qual alguns setores reconheceram que sua busca por influência na definição de novos rumos para o Brasil não podia passar à margem de um posicionamento sobre nossos problemas sociais, mais do que nunca explicitados. Pioneiro e emblemático nessa mudança dos empresários foi o Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE). Surgido em meados de 1987, o PNBE foi um movimento de reação de jovens líderes da indústria paulista à oligarquização da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a seu silêncio frente às questões em pauta na redemocratização do Brasil. Buscando ter um lugar próprio na organização dos empresários e querendo levar uma nova voz à política nacional, o PNBE entrou na cena política lutando por uma orientação social das políticas econômicas e pelo fortalecimento das práticas democráticas em todos os níveis, inclusive dentro da própria organização que nascia. Dessa forma, esse novo movimento se notabilizou por uma constante luta por políticas econômicas redistributivas, baseadas na negociação aberta entre as classes. Foi com essa agenda, que se aproximava de uma postura social-democrata, que o movimento trabalhou, principalmente enquanto esteve mais proeminente na cena pública nacional: no período entre 1987 e 1994. Preocupados em marcar sua singularidade no conjunto da classe, líderes do PNBE desde cedo tentaram sensibilizar o grupo para que praticassem uma “cidadania empresarial”, demonstrando por meio de
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iniciativas concretas as possibilidades de solucionar os problemas sociais do país. E não foram menos bem-sucedidos nesse aspecto, pois desde seus primeiros anos de atuação até os dias de hoje, o movimento desenvolveu uma série de atividades nesse sentido, desde as parcerias empresa-escola ao desenvolvimento de projetos ambientais, passando pelo envolvimento com causas sociais como a luta contra a exploração do trabalho infantil, entre outras questões. No final dos anos 1990, chegaram mesmo a se abrir para uma ambiciosa tentativa: a de proporcionar um mínimo de condições dignas de vida a todos os moradores de rua adultos de São Paulo, através da construção de abrigos públicos sob os viadutos da cidade. Foi o projeto “Minha rua, minha casa” que, no entanto, terminou por ficar restrito a uma única unidade, valorizada pelo movimento pelo seu “efeito demonstração”. Investindo na mesma linha, o PNBE instituiu o que veio a se tornar o prestigioso “Prêmio PNBE de Cidadania”, que homenagearia todo ano indivíduos que se destacassem em sua atuação em prol da defesa da cidadania. Criado em parte para homenagear Betinho – o primeiro agraciado – esse prêmio ilustrava o reconhecimento empresarial do novo enfoque que a questão social ganhava. Seguindo o mesmo objetivo, a homenagem já foi concedida ao ex-ministro da Saúde, Adib Jatene, ao sociólogo Caio Ferraz e ao jurista Fábio Konder Comparato, entre outros. Ainda que restrita a um pequeno grupo de empresários, mais recentemente tal atuação vem se desdobrando em outras iniciativas voltadas para problemas sociais não menos graves: foi do PNBE que se originaram entidades empresariais como a Transparência Brasil (em 2000), voltada para a luta contra a corrupção, o Instituto Akatu (em 2001), voltado para a promoção do consumo consciente e, mais recentemente, o Instituto ETCO (2003), engajado na defesa da concorrência. Lembre-se, ainda, de que o PNBE esteve também à frente da campanha pelo impeachment do presidente Collor e da formação do Instituto São Paulo Contra a Violência. Não por coincidência, portanto, esse movimento acabou por se constituir em referência fundamental dentro da Responsabilidade Social Empresarial. Isso se deu inclusive pelo fato de que um de seus fundadores, Oded Grajew, viria a ser a figura-chave nessa área no Brasil: foi ele quem formou a Fundação Abrinq, em 1990, e também quem fundou o Instituto Ethos de Responsabilidade Social Empresarial, já mencionado anteriormente (GOMES; GUIMARÃES, 2004).
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O Instituto Ethos especializou-se em promover a prática de Responsabilidade Social Empresarial em duas linhas de atuação: o desenvolvimento de uma série de ações indutoras direcionadas a empresas e a disseminação, por meio dos chamados “agentes multiplicadores” (como jornalistas e professores), da própria ideia de que o setor empresarial tinha realmente uma determinada responsabilidade a ser cumprida. Mais concretamente, o Instituto Ethos volta-se para a realização de congressos e outros encontros profissionais, oferece prêmios aos projetos sociais das empresas e a estudos sobre Responsabilidade Social, além de desenvolver uma extensa lista de publicações especializadas sobre o assunto. Aparentemente consolidado como a instituição mais importante na área de Responsabilidade Social Empresarial no Brasil, o Instituto Ethos chega a se alinhar com o Ibase na disseminação do uso do Balanço Social, mas acabou por desenvolver seus próprios instrumentos de avaliação, que são os Indicadores Ethos de Responsabilidade Social6. De qualquer forma, não menos relevante que a fundação do Instituto Ethos, foi a formação do Grupo de Fundações, Institutos e Empresas (Gife), em 1989. Esta é uma verdadeira organização de cúpula, formada por cerca de 60 grandes empresas, fundações e instituições, todas voltadas para ações e/ou investimentos sociais desenvolvidos ou financiados por empresários. Originalmente um grupo de trabalho da Câmara Americana de Comércio de São Paulo, nascido da necessidade de se encontrar formas de parcerias entre o Estado e as organizações da sociedade civil na busca de soluções para as desigualdades sociais do país, o Gife se institucionalizou em 1995, motivado principalmente pelos problemas de credibilidade que a área da filantropia empresarial passava na metade da última década7. A formação do Gife e do PNBE talvez seja o exemplo mais emblemático da grande importância que as ideias de Responsabilidade Social ganharam no meio empresarial brasileiro, uma vez que, historicamente, esse setor social quase sempre teve suas entidades de classe submetidas a um ou a outro tipo de tutela do Estado. Por último, mas não menos importante, há a recente constatação, em uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), da disseminação de práticas de ações sociais voluntárias por 6 7
Ver Instituto Ethos (2006). Ver Grupo de Institutos, Fundações e Empresas – Gife (2004).
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todo o empresariado brasileiro8. Coordenada por Anna Peliano, a pesquisa Ação Social das Empresas fez um estudo quantitativo dessa prática, mas já surpreendeu indicando que, para todo o país, cerca de 60% dos empresários haviam se envolvido em pelo menos uma ação desse tipo no ano 2000. A pesquisa revelou ainda que apenas 20% dos empresários não haviam tido nenhum tipo de envolvimento com ações sociais (PELIANO, 2001). Enfim, a renovação no meio empresarial brasileiro quanto às questões sociais parece ser muito profunda. Isso se percebe não só pela formação dessas novas entidades, mas também por outro fato merecedor de nota: ainda mais recentemente, as antigas organizações de classe do sistema corporativista dos empresários também se abriram para a questão da Responsabilidade Social. Exemplo maior disso é a transformação recente do slogan do Serviço Social da Indústria (Sesi) como “a marca da responsabilidade social”. Cappellin, Giulliani, Morel e Pessanha (2002) já situaram os primórdios desse diálogo, mas ainda não se sabe exatamente como está se dando esse processo, que é o tema específico da próxima seção. 2 oS imPACtoS Do moVimENto Em toRNo DA RESPoNSAbiLiDADE SoCiAL NAS ENtiDADES CoRPoRAtiVAS Passemos, portanto, a examinar a crescente preocupação com a responsabilidade e a sustentabilidade tal como vêm se construindo nas Federações Estaduais da Indústria, região por região. Note-se que concentramos a análise naqueles estados que possuem os programas mais atuantes, o que não quer dizer que tal não se modificará. A escolha deveu-se ao fato de que, nos Estados não incluídos nesta análise, a Responsabilidade Social não parece ocupar papel significativo. Percebeu-se isso na pesquisa pelo fato de que algumas federações não possuem sites que incluam o tema da Responsabilidade Social, seja em sua missão ou objetivos, seja na descrição de suas esferas de atuação. Dentro da região Norte, o estado do Acre surpreendeu pelo seu claro compromisso quanto à Responsabilidade Social. A Federação das Indústrias do Estado do Acre (Fieac) chega a incluir, como seus 8
Ver Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea (2006).
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objetivos mais imediatos, a “responsabilidade social e ambiental, [e a] relação ética e transparente da organização com todas as suas partes interessadas, visando o desenvolvimento sustentável” (FIEAC, 2006). Essa definição de seus objetivos se complementa com sua missão, na qual a defesa dos interesses empresariais se alia à busca do desenvolvimento sustentável. A entidade possui ainda um projeto voltado especificamente para a promoção da Responsabilidade Social. Intitulado “Fieac Solidário”, o projeto pretende, conforme descrição no site: Catalisar e propagar o espírito sinérgico de pessoas e instituições sensíveis aos graves problemas sociais que afligem a comunidade acreana, incentivando a mobilização de mutirões de solidariedade institucional, com foco no exercício da responsabilidade social, junto a organizações não governamentais de carência comprovada e de reconhecida missão social, na oferta de alguns de seus produtos e serviços (FIEAC, 2006).
O Fieac Solidário, trabalhando em conjunto com o Sesi e o Senai, tem como sua principal atividade, no momento, o atendimento a jovens e adultos dependentes químicos e alcoólicos. São oferecidos tratamento odontológico, auxílio alimentar, palestras educativas, e vagas nos cursos de qualificação profissional e de ensino fundamental e médio (as vagas são disponibilizadas através das unidades operacionais do Sesi e Senai). Além do trabalho com o Sesi e o Senai, o projeto busca, sempre, interagir com Organizações Não Governamentais. Estabelece-se, assim, um modelo de atuação em Responsabilidade Social que é bem característico no país: aquele no qual institutos, fundações, associações etc., formadas por empresários do setor privado, trabalham em prol de uma causa pública, não só financiando projetos, mas realmente construindo parcerias e cooperações entre empresários e organizações da sociedade civil (sejam elas Organizações Não Governamentais propriamente ditas, ou mesmo organizações filantrópicas). No caso do Acre, por exemplo, a organização-parceira do Fieac Solidário nesse projeto de recuperação de jovens é a instituição filantrópica Desafio Jovem Peniel, que atua há 30 anos no Brasil e há 8 anos em Rio Branco. As ações promovidas por essa instituição são bem pontuais e decididamente filantrópicas, mas foram incorporadas como parte
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da definição de metas do Fieac Solidário. Ou seja, as metas estabelecidas pela Peniel é que são reapropriadas e, por extensão, cumpridas pelo Fieac Solidário. Isso, por si só, demonstra duas características da Responsabilidade Social nessa federação: em primeiro lugar, a consolidação de parcerias em prol do bem comum e de projetos voltados para os mais necessitados, num modelo cada vez mais presente em todo o país; mas, em segundo lugar, o fato de a Fieac se unir a uma entidade de cunho decididamente filantrópico e assistencialista que, por definição, vai na contramão do próprio conceito de Responsabilidade Social (ASHLEY, 2005), o que acaba por limitar os rumos dessa ação. Somos convidados a ler, no site do Fieac Solidário, que a instituição “atua na reabilitação de jovens e adultos, dependentes químicos e alcoólicos, mediante a execução de programas terapêuticos ocupacionais cristãos, que possam motivá-los a deixar o mundo das drogas”. A ênfase nos programas ocupacionais cristãos, portanto, já indica que, apesar de, em sua definição de metas e objetivos, o Fieac Solidário pretender definir-se como entidade voltada para a Responsabilidade Social do setor industrial brasileiro, o modelo realmente seguido, na prática, acaba por incorporar práticas assistencialistas e filantrópicas – ou seja, exatamente aquilo que o próprio conceito de Responsabilidade Social Empresarial pretende negar (FERNANDES, 1994). Nesse sentido, parece inegável que há diferenças profundas entre esse modelo de ação social e o outro modelo, mais abrangente, da indústria e dos negócios responsáveis (como proposto pelo Instituto Ethos). Afinal, tal como vem sendo desenvolvido na literatura, o conceito de Responsabilidade Social Empresarial não pode nem deve englobar ações de cunho filantrópico ou mesmo religioso (CHEIBUB; LOCKE, 2002). Quadro semelhante foi encontrado na região Nordeste onde, embora praticamente todos os estados indiquem seu compromisso com o desenvolvimento sustentável, não se define o que seja tal desenvolvimento e como exatamente as indústrias podem contribuir para sua construção. Porém, novamente, não se podem perceber correlações imediatas entre graus de industrialização, por exemplo, ou outras especificidades que justificassem um maior ou menor envolvimento do Estado na Responsabilidade Social. Pelo mesmo motivo que o explicitado, decidimos concentrar a análise, aqui, em um estado especialmente ativo na disseminação não
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só do conceito de Responsabilidade Social, mas de um conceito de indústria que, por definição, se percebe como responsável perante o social, para além de suas outras especificidades. O estado escolhido, principalmente pela extensão de sua preocupação com a redefinição da atividade industrial como uma atividade que se percebe como responsável pelos problemas sociais, bem como pela boa condução das relações sociais, morais e éticas no seio de uma sociedade, foi o Ceará. Aqui, a Responsabilidade Social confunde-se com a própria missão da Federação das Indústrias do Estado do Ceará, cuja missão é “promover a adoção de práticas de responsabilidade social pela indústria cearense, estimulando a formação de redes de colaboração que agreguem valor às empresas e contribuam para o desenvolvimento sustentável” (FIEC, 2006). Da mesma forma que no Acre, a federação criou um instituto especificamente voltado para a divulgação e promoção da Responsabilidade Social entre seus membros. Lemos, portanto, no mesmo site, que o Instituto Fiec de Responsabilidade Social tem como principal atribuição “motivar empresários a agir de forma socialmente responsável” e que a missão da Fiec “é catalisar, induzir e divulgar ações de Responsabilidade Social nas empresas”, concluindo que “queremos transformar o Ceará em exemplo de participação do empresariado nas ações em prol do desenvolvimento da cidadania”. É interessante notar que a adoção da Responsabilidade Social por parte da Fiec do Ceará segue quase que rigorosamente as diretrizes sugeridas pelo Instituto Ethos, segundo as quais as práticas de responsabilidade devem ser incorporadas às empresas não só por conta de seu suposto papel na questão social, mas também porque contribuem para o desenvolvimento sustentável e, até, porque agregam valor às empresas. Como se encontra indicado no site, a missão do Instituto é trabalhar precisamente nesse sentido, promovendo esse tipo de ação empresarial responsável. No entanto, há aqui um diferencial importante que, na verdade, se identifica com algumas das preocupações centrais do PNBE: o fato de que, para esse Instituto, ser socialmente responsável significa não só agir de acordo com regras e valores éticos em todas as etapas nas quais a empresa esteja envolvida, mas também agir “em prol do desenvolvimento da cidadania”, como vimos na citação anterior. Ou seja, pretende a Fiec que as empresas ajam como verdadeiros agentes promotores de cidadania – a qual, apesar de um
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bem essencialmente público, vem sendo cada vez mais promovida por agentes privados em nosso país, pois cada vez mais empresas parecem identificar a Responsabilidade Social, primordialmente, com a atuação direta no desenvolvimento da cidadania (FERNANDES, 1994). Nesse sentido, a Responsabilidade Social propagada pela Fiec identifica-se com a maior parte do discurso predominante no Brasil: ser socialmente responsável é agir pelo bem do cidadão e do país. Mas, talvez seja ainda mais interessante, neste caso, o fato de a Fiec reconhecer a necessidade da relação entre empresas e empresariado com os outros agentes responsáveis pelo desenvolvimento e pelo social: sua “visão de futuro”, ou seja, aquilo a que o Instituto almeja é “ser reconhecido, em nível nacional, pela sua exemplaridade em responsabilidade social pela sociedade civil, meio empresarial e poder público”. Para cumprir essa visão acerca de si em relação a seu papel perante a sociedade brasileira, o Instituto oferece uma série de serviços às empresas interessadas em instituir práticas de gestão responsável, tais como assessoria no tocante à implementação, monitoramento e avaliação de iniciativas de pesquisa, e na promoção, difusão, concepção e execução de projetos de responsabilidade social. Além disso, pretende o Instituto, tal qual o próprio Instituto Ethos no qual obviamente se inspira, “divulgar experiências bem-sucedidas de empresas na área de RSE”, “sistematizar, divulgar e disponibilizar informações sobre o tema”, “promover diálogos e ações colaborativas entre o setor empresarial, o poder público e a sociedade civil organizada”, “divulgar e buscar apoio aos projetos que causem impactos sociais positivos e que demonstrem gestão eficaz das ações”. Finalmente, cabe ressaltar que talvez a maior contribuição desse Instituto seja o modo como procura redefinir o papel da empresa na sociedade e o cuidado com que se engaja nessa tentativa de redefinição. Assim, o Instituto nos oferece quase que um manifesto sobre o que é, em sua essência, uma empresa responsável: “não importa se é grande ou pequena, uma empresa moderna é socialmente responsável”. Essa postura, que é esperada de todas as empresas, é assim detalhada pelo Instituto em seu site: • ser transparente; • ter compromisso público;
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• envolver-se com instituições que representam interesses coletivos; • ser capaz de atrair e manter colaboradores participativos e voluntários; • desenvolver um alto grau de motivação e compromisso dos atores sociais; • ser capaz de lidar com situações de conflitos; • envolver toda a direção da empresa; • estabelecer metas de curto e longo prazo que visem ao desenvolvimento humano. O Instituto vai mais além e considera que tal orientação é importante porque ajuda a: • diminuir os conflitos; • estimular e reconhecer o capital humano e social; • valorizar a marca e a imagem institucional; • conquistar a lealdade do consumidor; • agregar valor aos produtos; • alcançar o desenvolvimento sustentável; • promover a inclusão social. Passando, a seguir, para a região Centro-Oeste, percebemos que todos os seus estados têm alguma atuação em termos de Responsabilidade Social, mas em nenhum deles há atuação tão forte quanto em outras regiões. Concentramo-nos, aqui, no estado de Goiás, para demonstrar que houve incorporação do conceito e do ideal de Responsabilidade Social como parte integrante daquilo que toda empresa deve ser, mas que ainda há muito espaço para se expandir tal atuação. Tendo por missão “Promover o desenvolvimento econômico, social, cultural e industrial do Estado, fortalecendo o associativismo sindical, fomentando os negócios das empresas e defendendo os interesses políticos da classe industrial goiana” (FIEG, 2006), a Federação da Indústria do Estado de Goiás (Fieg), por exemplo, tem todo um setor voltado essencialmente para: • discutir as questões relacionadas com a elaboração e a execução das políticas de Responsabilidade Social Empresarial em âmbito fe-
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deral, estadual e municipal, propondo ações e desenvolvendo articulações em benefício da atividade industrial quando necessário; • definir e orientar as políticas e estratégias de trabalho das instituições do Sistema Fieg, em temas relacionados com a Responsabilidade Social Empresarial; • colaborar para o desenvolvimento da cultura e da prática da Responsabilidade Social Empresarial nas indústrias; • representar a federação, perante as instituições públicas e privadas, em questões relacionadas com a Responsabilidade Social Empresarial. A listagem das ações contempladas pela Fieg se completa com: • desenvolver seminários, encontros e palestras visando conscientizar e sensibilizar as indústrias, quanto às boas práticas de Responsabilidade Social; • realizar pesquisa de Responsabilidade Social nas indústrias goianas; • estimular a realização de ações de Responsabilidade Social nas indústrias; • divulgar experiências bem-sucedidas na prática da Responsabilidade Social; • promover a aproximação das indústrias com as organizações governamentais e não governamentais (terceiro setor), voltadas para o trabalho de Responsabilidade Social; • apoiar e orientar as indústrias na implementação da Responsabilidade Social; • estimular a realização de parcerias para o desenvolvimento de projetos e ações de Responsabilidade Social. Mas que tipo de incorporação do conceito de RSE foi empreendido aqui? Parece claro, novamente, que se busca reorientar a própria definição do que seja uma empresa, quais suas áreas de atuação, e como deve se relacionar com os outros atores sociais e políticos, tais como Organizações Não Governamentais. Atribui-se à Fieg, um papel quase equivalente ao do Instituto Ethos, o qual busca exatamente essa disseminação, por toda a sociedade, de uma nova forma de se perceber a empresa e seu papel. Nesse sentido, em sua busca pela divulgação
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das boas práticas de Responsabilidade Social, ou pela promoção de uma “aproximação entre indústria e organizações governamentais e não governamentais”, expande a Fieg, assim, grandemente seu espaço de atuação. Pois, mais do que defender os interesses imediatos do setor industrial, pretende essa federação reestruturar a própria área de atuação do setor – não mais como um setor atuando essencialmente no desenvolvimento do país através da produção industrial, mas como um setor responsável pelo próprio social. Continuando nossa análise e passando para a Região Sul, percebese um detalhe interessante: as federações de nenhum dos três estados preocupam-se em explicitar sua preocupação com a Responsabilidade Social do setor industrial. Por exemplo, não se encontram aqui compromissos explícitos, na missão e/ou nos objetivos de nenhuma das três federações, com a disseminação do conceito de Responsabilidade Social. Na verdade, o termo nem aparece em nenhum dos três sites dessas federações. No entanto, e este é o dado interessante, essas federações demonstram ter incorporado o interesse e a preocupação com a Responsabilidade Social. Porém, a incorporação se dá por meio da atuação responsável do Sesi, principalmente, e do Senai. Em outras palavras, embora não se defina, por exemplo, o Sistema Fiesc como tendo, em sua missão e/ou objetivos, a meta de desenvolver a Responsabilidade Social diretamente, durante a leitura do site somos remetidos a numerosas menções quanto à atuação responsável dessas entidades. Informa-nos a Fiesc sobre toda a atuação do Sesi neste setor: suas ações sociais, sua preocupação com a promoção da cidadania, seu interesse em divulgar a necessidade de práticas de negócios socialmente responsáveis, e assim por diante. Como principal exemplo dessa responsabilidade construída pela interação com o Sesi, temos a seguinte descrição sobre seu papel como condutor da Responsabilidade Social dentro da federação: O Sesi, que é um serviço social, procura adequar-se à nova realidade e agregar valor às suas ações. Sem afastar-se de suas atividades finalísticas, voltadas para a qualidade de vida do industriário, oferece suporte às empresas no que respeita ao novo conceito de responsabilidade social e para isso desenvolve modernas ferramentas de gestão da tecnologia do social (FIESC, 2006).
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Além desse statement inicial, o que mais chama atenção quanto ao tema da Responsabilidade Social no site é que esse tema aparece como absolutamente essencial: enfatizam-se, por exemplo, a preocupação com a divulgação das ações do Sesi, ou os prêmios distribuídos pelos Sesi às empresas que apresentam as melhores práticas socialmente responsáveis, ou quaisquer outras de suas ações responsáveis. Portanto, por mais que não se possa comparar o grau de incorporação da Fiesc com outras federações aqui analisadas, também não seria correto afirmar que, nesse caso, houve pouca ou nenhuma absorção da RSE. Na verdade, o grau de incorporação parece quase que ainda maior, pois a temática da responsabilidade aparece, literalmente, a todo instante no site. Porém, essa incorporação ocorre de uma maneira bem específica: em vez de se redefinir, e à indústria mesmo, como “aquela que é socialmente responsável” de maneira inovadora independentemente de seu ensemble institucional, a preocupação com a RSE da Federação Estadual das Indústrias de Santa Catarina opera entrelaçada com o sistema Sesi, o que, na verdade, diferencia a Fiesc. Argumentamos anteriormente que é difícil encontrar uma justificativa plausível para as diferenças entre formas e extensão da Responsabilidade Social nas diversas federações: por que, por exemplo, deveria o estado do Acre se constituir como modelo exemplar de incorporação do conceito de RSE? E como deveríamos entender, por outro lado, o fato de o Rio Grande do Sul não parecer demonstrar grande preocupação com o tema? Ao mesmo tempo em que se torna difícil encontrar uma explicação causal para o grau de interesse diferenciado entre os estados é impossível não perceber que há um predomínio óbvio na disseminação da RSE entre os estados do Sudeste. É importante ressaltar, porém, que a Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) segue até certo ponto um modelo semelhante ao de Santa Catarina: enquanto o tema da Responsabilidade Social aparece a todo instante no site, também é claro que tal ocorre, principalmente, através da incorporação, ao site da Findes, de todo o trabalho na área de Responsabilidade Social desenvolvido pelo Sesi daquele estado. E se é verdade que o sistema Findes achou por bem instituir seu próprio Conselho de Cidadania Empresarial, ainda assim, no momento de coletar informações sobre a Responsabilidade Social na Findes, somos remetidos aos atos do Sesi.
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Por outro lado, a federação articula a missão a pelo menos um programa cuja importância não se pode desconsiderar. Tomando como missão “criar um movimento e uma rede local de difusores da cultura da responsabilidade social e também de fomentos das ações das empresas capixabas, ampliando o número das que já iniciaram diversas atividades nesse campo”, a Findes criou um balcão ambiental que tem por finalidade “proporcionar às micro e pequenas empresas capixabas toda a assessoria necessária ao atendimento das exigências ambientais”, assumindo que “uma produção mais limpa (...) se reflete positivamente na sociedade” (FINDES, 2006). Já outros três estados, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo demonstram compromisso ainda mais explícito com a disseminação da Responsabilidade Social em suas mais diferentes formas e, independentemente da relação com o Sesi, trabalham por si nessa direção. Por esse motivo, não faria sentido efetuarmos a análise, aqui, de apenas um caso exemplar. Torna-se necessário, pelo contrário, observar as federações dos três estados em conjunto, o que possibilita um quadro geral da construção da Responsabilidade Social no sistema das Federações Estaduais das Indústrias nessa região. Nos três estados, tal trabalho de disseminação se dá de modo semelhante, por exemplo, através da criação de Conselhos de Responsabilidade Social (tal qual o Conselho de Cidadania Empresarial do Espírito Santo), encarregados de divulgar o conceito e auxiliar as empresas interessadas a expandirem suas atividades nessa direção. Assim, no estado do Rio de Janeiro, criou-se um Conselho Empresarial de Responsabilidade Social que atua em conjunto, dentro do sistema Firjan, com uma Assessoria de Responsabilidade Social Empresarial, para: Conscientizar, motivar, facilitar e orientar as empresas para a prática continuada e crescente da responsabilidade social. Neste sentido, a responsabilidade social é considerada como uma estratégia de crescimento e longevidade, de apoio ao desenvolvimento integral do estado do Rio de Janeiro e de contribuição às políticas públicas do país (FIRJAN, 2006).
Note-se, aqui, a preocupação em expandir o conceito de Responsabilidade Social quase até seu limite lógico, pois mais do que uma série
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de práticas de negócios éticas e socialmente conscientes, o que se busca aqui é nada menos do que influenciar o próprio rumo das políticas públicas no estado. Busca essa que, recentemente, vem atraindo atenção até da mídia não especializada, que em reportagens recentes divulgou o intenso trabalho de pesquisa conjuntural desenvolvido pela Firjan sobre a crise no estado do Rio de Janeiro, e que inclusive busca sugerir políticas mais adequadas do que aquelas empreendidas pelo próprio governo. Apesar de o real significado dessa forma de atuação da Firjan não ter sido mencionado pela mídia, é importante ressaltar o quanto de transformação no papel da indústria e da própria Firjan está pressuposto nesse processo. Ao conduzir suas pesquisas sobre as mais importantes questões sociais no estado, e ao propor soluções em termos de política pública, a Firjan se coloca, explicitamente, como apta a lidar com tais problemas sociais, e como tendo voz ativa na definição de quais políticas devem ser adotadas para resolver quais problemas em quais contextos. Ou seja, atribui-se à Firjan um papel não de todo dessemelhante ao papel do governo. Seguindo uma mesma linha, o Conselho de Cidadania Empresarial e Voluntários das Gerais da Fiemg nos informa que: “o Sistema Fiemg acredita que a qualidade de uma empresa vai além do seu desempenho operacional. É nas diversas formas de exercício da cidadania que o meio empresarial se compromete com a geração de riqueza social, ajudando a diminuir as desigualdades de nosso país” (FIEMG, 2006). E complementa: Acreditando que a prática da Responsabilidade Social é um instrumento eficaz de transformação social, o Sistema Fiemg, em 2000, cria o Conselho de Cidadania Empresarial e de Voluntários das Gerais, com o objetivo de mobilizar os empresários e oferecer estratégias que facilitem a atuação social de suas empresas. Dessa forma, o Conselho contribui para a formação de um grande movimento que visa canalizar ações para a construção de um país mais justo e igualitário (FIEMG, 2006).
Ou seja, percebe-se aqui exatamente o mesmo tipo de pressuposto de que cabe ao sistema das Federações Estaduais das Indústrias contribuir para nada menos que a resolução da questão social em nosso
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país – aquilo que a Fiemg entende como “transformação da realidade social”. Nesse sentido, a Responsabilidade Social propagada por tais federações vai muito além daquela concebida por agentes disseminadores do conceito, tal como o Instituto Ethos. Pois, aqui, mais do que a redefinição das práticas internas à empresa em direção a mais responsabilidade e ética, o que temos é a presunção de que cabe a tais federações decidir o rumo do estado e do país, por meio da tomada de responsabilidade perante as políticas públicas. Tal preocupação com o papel político das federações também aparece no sistema Fiesp. No entanto, a ênfase aqui – apesar de a Responsabilidade Social da Fiesp também incluir pressupostos acerca da responsabilidade do sistema para com a construção de uma realidade social mais justa e menos desigual – está na questão da corrupção e da (i)legalidade, por meio do trabalho de três conselhos, enfocando precisamente algumas das questões mais candentes no cenário político brasileiro atual. Estes são o Conselho Superior de Responsabilidade Social (Consocial), o Conselho Superior de Meio Ambiente (Cosema) e o Comitê de Responsabilidade Social (Cores). Por meio do “Programa Sou Legal”, a Fiesp vem promovendo uma verdadeira campanha pela legalidade nas relações políticas, éticas e sociais no país: O objetivo da campanha é promover de forma permanente e transversal o diálogo entre empresários e sociedade civil quanto à precarização das relações de trabalho, promover o consumo consciente buscando o combate à pirataria e a proteção do produto paulista. As ações envolvem também informar as empresas sobre aspectos legais e morais dos financiamentos de campanhas eleitorais, riscos e consequências do não cumprimento de obrigações tributárias. Essas ações visam fortalecer o compromisso das empresas com a ética e o exercício da cidadania (FIESP, 2006).
Para concluir esta etapa, retomemos a análise da Firjan, que dentre todas as federações pesquisadas parece ser aquela que mais se destaca em termos de sua atuação em responsabilidade social na região e, possivelmente, no país. A importância da atuação em RSE da Firjan se dá, principalmente, pelo fato de que toda a sua atuação se faz em
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nome das políticas públicas e políticas sociais, o que dá ao conceito de Responsabilidade Social um grau muito maior de penetração na sociedade do que se imaginaria possível: Agindo organizadamente para o avanço social, a Firjan apóia políticas sociais de diferentes instâncias do poder público. São parcerias que resultam na valorização da cidadania e beneficiam diretamente centenas de famílias em todo o Estado. O envolvimento do Sistema Firjan na defesa das reformas trabalhista, tributária, da Previdência Social, do sistema político e do judiciário gerou ações concretas como a proposta para flexibilizar as relações de trabalho (FIRJAN, 2006).
CoNSiDERAÇÕES FiNAiS Com base nessas informações, parece-nos, portanto, que esse novo olhar dos empresários para a questão social está mesmo bastante incorporado nas entidades de classe corporativas estaduais da indústria, a despeito de este ter sido um discurso originado fora do sistema corporativo e sua ênfase econômica por várias décadas desde os anos 1940, sem falar nas especificidades locais. Cada federação tem certas peculiaridades no que diz respeito à forma e ao conteúdo desse envolvimento, mas, surpreendentemente, em vários casos, a apropriação passou pela incorporação dos recursos do antigo Sistema S na nova postura das empresas e das entidades. Ao lado das atividades típicas do Senai e do Sesi, o envolvimento com Responsabilidade Social defendido pelas entidades corporativas compreende uma série de outras atividades. Estas podem ir desde o tratamento de dependentes até a colaboração nas políticas públicas estaduais de desenvolvimento, passando pelo combate à corrupção, pirataria e outros problemas. De um lado, em quase todos os casos, ressalta-se a importância de que iniciativas nesse sentido sejam levadas a cabo por meio de parcerias com a sociedade e com o Estado, ainda que, de outro, as federações também aparecem como fomentadoras da adoção de práticas socialmente responsáveis, o que sugere a existência de um complexo processo que acaba de se iniciar. Ainda que não tenha sido possível relacionar as várias posturas socialmente responsáveis das diversas federações com fenômenos so-
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ciais mais amplos, como indicamos algumas vezes, parece-nos possível comparar essa nova forma de “olhar social” com aquele que perpassou nossa industrialização, ou seja, aquele que encarava o “social” através da fábrica ou através dos ramos ou setores econômicos. Pelo que foi exposto, definitivamente tal não é mais o caso. Pelo contrário, o que temos agora é uma postura ou modelo empresarial de resposta às mais diversas questões sociais que não só perpassa as empresas individualmente mas também suas mais tradicionais entidades representativas – além das ONGs constituídas recentemente, também pelos empresários. Ou seja, os empresários como que revolucionaram sua visão do social e o fizeram de maneira absolutamente voluntária, o que só reforça o potencial orgânico dessa renovação. Tendo em vista que tal mudança ocorre no momento de afirmação da redemocratização e da liberalização econômica, por último, queremos levantar a hipótese de que esse amplo movimento de Responsabilidade Social Empresarial pode representar uma inédita capacidade do empresariado de responder aos desafios inerentes às mudanças políticas e econômicas de nossa “transição dual”, reconstruindo assim a legitimidade da empresa com missões, objetivos e ações menos centradas na defesa dos interesses econômicos, no caso, no nível de seus respectivos estados. Indo um pouco além nessa última reflexão, pode-se considerar que a renovação das empresas e das federações abre uma porta para um jogo de soma positiva entre elas, sugerindo a possibilidade de um maior fortalecimento da susentabilidade do desenvolvimento brasileiro.
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A moDERNizAÇÃo DE SÃo PAULo Em DoiS tEXtoS DE JoÃo ANtÔNio (1937–1996) Ieda Magri
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O presente artigo aborda a modernização de São Paulo presente no texto de João Antônio “Abraçado ao meu rancor”, de 1986, lido em perspectiva com “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de 1963. As personagens de ambos os textos percorrem as mesmas ruas de São Paulo com duas décadas de distância histórica, o que permite mapear o surgimento de novos materiais como a fórmica e o plástico, presentes nos bares e restaurantes modernizados, como também o apagamento do malandro e dos salões de bilhar ou sinuca, que dão lugar tanto à limpeza dos novos prédios de negócios como à prostituição em pleno dia no centro da cidade. A análise do texto literário, assim, permite ler as mutações da cidade e da cultura recente. Palavras-chave: cidade, cultura, modernização, anos 1980
This article discusses the modernization of São Paulo in the present text of João Antônio “Abraçado ao meu rancor”, 1986, read in perspective with “Malagueta, Perus e Bacanaço”, 1963. The characters of both texts go through the same streets of São Paulo with two decades of historical distance, which allows you to map the emergence of new materials present in bars and restaurants modernized, as well as the deletion of the trickster and lounges billiard or pool, giving rise to both the cleaning of new buildings as the prostitution business in broad daylight in the city center. The analysis of literary texts, thus, allows to read the changes of recent city and culture. Keywords: city, culture, modernization, 80 years
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iNtRoDUÇÃo Tendo iniciado sua carreira literária em 1963 com a publicação de Malagueta, Perus e Bacanaço, João Antônio, no início da década de 1970, era reconhecido escritor de quem não se encontrava um único exemplar nas livrarias brasileiras. Seu primeiro livro causou impacto antes mesmo de ser publicado já que seus contos frequentaram concursos literários de várias cidades brasileiras e circularam nos suplementos mais importantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, como informa Rodrigo Lacerda na orelha da mais recente edição do livro, a de 2004. Em 1962, ganhou o Prêmio Paulo Prado para Contos, o maior da época para originais inéditos. Uma vez publicado, recebeu dois Jabuti: Autor Revelação 1963 e Melhor Livro de Contos. Durante o período em que foi um escritor sem livros no mercado brasileiro, alguns dos seus contos eram publicados em antologias na Tchecoslováquia, Espanha, Argentina, Alemanha Ocidental e Venezuela. O desconforto com a situação do escritor brasileiro, que, segundo João Antônio, era explorado pelas editoras, calado pela ditadura e ignorado pela maioria da população, que não podia ler porque preocupada com a sobrevivência diária e, ademais, analfabeta, só ia crescendo durante a segunda metade da década de 1960. Depois de passados 12 anos da publicação de seu primeiro livro, a essa altura usando a designação de escritor, muito embora dele não se vissem mais os livros, João Antônio acumulava a profissão de jornalista. Com passagens pelo Jornal do Brasil e pelas revistas Cláudia, Manchete e Realidade, publica, em 1975, o livro Leão-de-chácara – que havia ganhado, ano antes, o Prêmio Paraná – e, em seguida, Malhação do Judas Carioca, além de editar o Livro de cabeceira do homem pela Civilização Brasileira e ter nova edição de Malagueta, Perus e Bacanaço. Embora tivesse escrito, muito provavelmente, a maioria dos contos de Leão-de-chácara ainda na década anterior, a década de 1970 será a de sua maior produção: em 1976 publica Casa de loucos, em 1977, Lambões de caçarola, em 1978, Ô Copacabana, além de viajar para a maioria dos estados brasileiros a convite de estudantes e de cursos de Letras para fazer palestras e conferências sobre seus livros e sobre a produção literária brasileira. É neste período, de 1975 a 1979, que se localiza sua fase de maior militância política em prol da profissio-
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nalização do escritor, do investimento gráfico e midiático no escritor brasileiro, numa espécie de valorização do “produto nacional”, e na produção de uma literatura comprometida com o que ele chama de levantamento das realidades nacionais. O livro Malhação do Judas Carioca é o epicentro de sua produção no período, o que melhor apresenta seu projeto estético-político, por conter o texto “Corpo-acorpo com a vida”, no qual o autor intervém no debate em torno da literatura. Na década de 1980, João Antônio publicou dois livros que deram novo significado à sua carreira, principalmente pelo investimento ficcional dedicado à maior parte dos textos que os compõem: Dedoduro e Abraçado ao meu rancor. Publicado em 1986, com prefácio de Alfredo Bosi, depois de ganhar o Prêmio Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte, em 1984, Abraçado ao meu rancor marca uma diferença em relação aos livros anteriores de João Antônio, que vem apontada por João Luiz Lafetá em resenha publicada no caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo: sete dos dez contos são centrados em personagens da classe média. Ainda que todos enfoquem o contraste entre a miséria e a riqueza, ainda que o narrador esteja criticando a chamada classe média ou se ressentindo de pertencer a ela, essa é uma novidade em João Antônio. Em “Abraçado ao meu rancor”, o conto mais longo do livro, visivelmente autobiográfico, o narrador diz, definitivo: “Mas da classe média você não vai escapar, seu. A armadilha é inteiriça, arapuca blindada, depois que você caiu” (1986, p. 92). Assim, com essa nova consciência – o pertencimento a outra classe social e, por conseguinte, o distanciamento, marcado pela dependência estabelecida pelas novas necessidades de consumo, do espaço e do modo de viver de uma época anterior –, o narrador invoca o mundo perdido de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, conto de seu livro de estreia, de 1963, o mundo perdido da malandragem. Num longo reconhecimento da cidade natal, vai rememorando histórica e geograficamente os percursos. A cidade que João Antônio anuncia, para além da geografia pisada no presente, compreende aquele espaço já grande conhecido dos leitores de Malagueta, Perus e Bacanaço:
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Osasco, Lapa, Vila Ipojuca, Água Branca, Perdizes, Barra Funda, centro, Pinheiros, Lapa na volta. Roteiro é este, com alguma variação para as beiradas das estações de ferro, dos cantos da Luz, dos escondidos de Santa Efigênia. Também um giro lá por aquele U, antigamente famoso, que se fazia entre as Ruas Itaboca e Aimorés, na fervura da zona do Bom Retiro (ANTÔNIO, 1996, p. 77).
Na sua andança desse dia de ressaca, vai ainda além da Lapa, em pensamento, enquanto pisa o asfalto das imediações da Sorocabana: Presidente Altino, Jaguaré, Anastácio, Morro da Geada, Osasco (p. 80), bairros e cidade conhecidos seus da infância e agora relembrados pela precariedade dos serviços de transportes, logo no início de sua caminhada de recém “desguiado da manada”, o grupo de jornalistas brasileiros convidados para uma semana de coquetéis e apresentações da cidade de São Paulo no circuito do turismo de negócios (p. 80). Mas, cumprindo o roteiro anunciado no início do conto, e na tentativa de reaver a cidade interior, a de outrora, entra num prédio, o Martinelli, à procura do Mourisco, um salão de bilhar que costumava ter ao redor de suas mesas famosos sinuqueiros: “Brahma, Tarzan, Itapevi, Calói, Estilingue, Boca Murcha...”. As reticências finais dão a ideia de que a lista continua. Nesse percurso tem início uma das mais belas cenas do texto, quando o autor, doído pela descoberta de que o prédio está meio abandonado, sem mais o rumor das bolas de sinuca, vai, no elevador, recriando aquela atmosfera com “o eco longínquo das bolas batendo no pano verde”. O ambiente oprimido, escuro, em preto e branco, de que nos dá a ideia descrevendo o elevador como uma caixa imunda, com um ascensorista andrajoso, se torna, no ritmo das bolas e do coração, uma sinfonia de cores comandada pela bola branca: É que começa, vindo lá de longe, o eco longínquo das bolas se batendo no pano verde. Subo. Que o elevador me leve. Mas ele é uma caixa imunda, e o ascensorista, andrajoso, encolhido, pele enferrujada. Meu coração batendo. Bolas vêm vindo e vão indo, barulham e se chocam, formam combinações e fazem colocação para a branca. A ponta do taco, a cabeça toca na branca e bate macio, é bonito, vai que vai embora a branca, colori-
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damente, que se multiplica em duas, três, quatro, seis cores. Amarelo, verde, marron, azul, rosa, preto (p. 89).
Nessa cena fica muito evidente o contraste do salão iluminado, colorido, rumorejante, com as suas “majestades” de outrora, e o abandono e a decadência de hoje, o dia em que o autor tenta reaver a sua cidade e não cansa de descobrir que ela deu em outra. O ritmo de coração batendo, marcado pelas frases organizadas em dois movimentos no início (bolas vêm vindo e vão indo / barulham e se chocam / formam combinações / e fazem colocação / para a branca) e que se vai acelerando no final do parágrafo (que se multiplica em duas / três / quatro / seis / cores / Amarelo / verde / marron / azul / rosa / preto), dão bem o tom do texto e da oscilação, que vai de uma melancolia pouco dissimulada pela nostalgia ao rancor de pertencer a um tempo que não acessa mais o antigo, nem externamente, pois que a cidade mudou, nem intimamente, pois que o escritor também mudou. A batida do coração que acelera, no entanto, não é só peso, só perda. Em outras passagens do texto, como veremos adiante, há uma aceleração que esquece a melancolia e se entrega a reviver o passado de forma plena, esquecendo os rancores do presente. Ainda nesse pequeno fragmento do texto, é possível perceber a batida seca do taco na bola através da frase de uma só palavra: “Subo.” Esse corte, essa parada, ou essa partida que põe imediatamente o texto em movimento pelas frases que se seguem a ela, juntamente com a rima e o ritmo da batida na lata de graxa, colocam “Abraçado ao meu rancor”, enquanto texto mesmo, em sua linguagem, no ambiente de jogo, dentro dos salões. Veremos adiante como o autor intercala esses movimentos do jogo e da caminhada, como faz o texto “andar”, num ritmo de passo largo ou de parada para olhar, sentir, observar a cidade, como faz o narrador, no nível do conteúdo, que, assim, está refletido na estrutura e no ritmo da linguagem. Depois do Martinelli, nova caminhada, recheada de pensamentos que passam a limpo uma vida de escritor, de publicitário, de jornalista; e uma cidade que se escancara para que o escritor a veja, se veja. E então, ganha o vale do Anhangabaú, o Largo do Correio – onde se assusta com a prostituição matutina, “a putaria fuleira” (p. 96) –, a Avenida São João. O Largo do Paissandu mostra novo contraste pela
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dignidade da igreja dos negros. Entra no Ponto Chic, um dos poucos botequins que restam, e rapidamente vai a outro tempo, o de “rapaz de dinheiro curto”, quando comia o sanduíche famoso, o bauru, e depois tomava o chope gelado. São menos de 11h00, o texto indica, e o narrador pede chope para combater a ressaca. Depois, na esquina da São João com a Avenida Ipiranga, bebe um café no Jeca e vai à Praça da República, onde procura o Maravilhoso, um dos salões grandes da cidade. Ao contar, anedoticamente, uma partida de sinuca que não teve vencedor entre Carne Frita e Lincoln, mostra a destreza, a paciência dos dois jogadores, comparando sua abundância com a falta absoluta de qualidades dos jornalistas de hoje. Mesa de sinuca e escritório de edição, jogadores e escritores: parece-lhe não haver nada em comum. Está no meio do caminho e no ápice do texto: o rancor destila o xingamento aberto do escritor que toca na maior ferida de sua profissão: o sem-saída dos assuntos repetitivos, encomendados, a recomendação para colocar o povo na pauta do dia, sem que para isso se importem os jornalistas e editores a conhecê-lo, a sentir o que ele sente; os 300 mil exemplares de jornais vendidos num país que tem mais de 120 milhões de habitantes. O tirar o corpo fora, coisa que jogador nenhum faz. O salão está mudado, embelezado. De fórmica e acrílico, para o narrador, o salão virou farmácia. Como é asséptico também o texto que dá as notícias sem “ir fundo no drama dos que sofrem.” O roteiro segue pela Praça da República, Rua dos Timbiras, Rua Aurora, Praça Julio de Mesquita, Largo do Arouche. Às seis horas da tarde, resolve ir para casa, a antiga, a dos pais. Praça Princesa Isabel, Alameda Cleveland, o trem do subúrbio. Experimenta outra vez o caminho tão conhecido. De trem, passa as estações de Barra Funda, Lapa, Domingos de Moraes, Leopoldina, Altino. Antes de subir o Morro da Geada, ainda faz sua última parada: A noite caiu. Entro, peço grande e repito, espero arder na garganta. Que lá em cima venta bravo. E toco a subir no escuro o Morro da Geada. Um pensamento me passa, que empurro. Se tivesse de viver de novo aqui, de onde me viria a força? (p. 141).
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O texto se encerra com a noite que cai. É um texto diurno, portanto. O ciclo anoitecer-amanhecer é recorrente na obra de João Antônio: “Malagueta, Perus e Bacanaço” transcorre numa noite, cujo final, que prolonga o olhar do menino Perus no vermelho que anuncia o nascimento do sol, é muito comovente. “Galeria Alasca” se fecha também com essa promessa e mostra a movimentação na galeria durante vinte e quatro horas: da chegada do leite, no amanhecer, até o fim da madrugada desse dia e a nova rotina anunciada pela nova manhã. Também “Joãozinho da Babilônia” vê os pardais anunciando o dia de sol que está nascendo. O recolhimento do narrador – que sabemos ser o do escritor, pelo itinerário e pelos dados biográficos existentes no texto e que são os mesmos dos documentos – nessa noite e o texto que se fecha com a frase da mãe, na forma do discurso direto livre “– a sua arte não permite dois amores”, indica, ao que parece, a parada para reflexão profunda, a lembrança novamente latente do escritor que está dividido com o jornalista. A frase dá ênfase, outra vez, ao duelo que o texto encerra – entre o passado e o presente, o jornalismo e a literatura, a cidade antiga e a de hoje, a lembrança colorida e a realidade em preto e branco experimentada amargamente nesse dia, a classe média e os pobres que não têm nada, entre os que jantam nos restaurantes finos e os que olham no lado de fora, entre os que podem comprar roupas finas e os que se viram com duas camisas, entre o consumo desenfreado oferecido pelo folheto publicitário e a total falta de acesso a ele para as coisas mais imediatas, entre o trabalho para sobreviver e o trabalho para enriquecer, como quando diz que as prostitutas vendem apenas o corpo (p. 84), enquanto “a canalhada” – os publicitários da campanha do turismo de negócios – não joga limpo como elas, e, nisso, dá a entender que ele se reconhece tendo vendido sua capacidade de escrever quando se dedicou ao jornalismo para sobreviver. No nível da estrutura do texto, também é evidente esse duelo no ritmo ora mais lento e ora mais veloz, na disposição dos assuntos que se interpenetram, ganham o primeiro plano para depois sair de cena e dar a vez para novo assunto que, assim, se reveza com ainda outros, sempre num jogo de vai e vem. O texto se inicia por uma busca em forma de pergunta jogada no ar: “Por onde andará Germano Matias? Magro, irrequieto, sarará, sua
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ginga da Praça da Sé, jogo de cintura da crioulada da Rua Direita? E o que foi que fez, maluco, azoado, de seu samba levado na lata de graxa?” (p. 77). Essa questão é uma espécie de estribilho, como nas canções, nos sambas, e é também uma batucada que lembra o samba “levado na lata de graxa”. Com pequenas variações, aparece várias vezes no texto: Por que se escondeu Germano Matias, saído sambista e malandreco, repinicando na lata de graxa? E aprendeu onde, com quem? Lá no Largo da Banana, dos carroceiros, do bebedouro de burros, das empregadinhas que subiam de braço dado a Alameda Olga e para a gafieira do Garitão e ensaios da escola de samba, do pessoal da vida suada da estrada de ferro? Ou o sarará aprendeu descobrindo, sozinho pegando, prendendo aquele repinicado da lata de graxa? (p. 98).
Ou abreviado em forma de pergunta: “Onde enfiaram os sambas de Germano Matias?” (p. 91). A certa altura, na esquina da São João com a Avenida Ipiranga, o narrador vê “um maluco de capa esfiapada, batendo-lhe nos pés”, que “berra um pedaço de marcha carnavalesca que ninguém ouve, mas que o narrador persegue, tentando buscar sentido. Essa frase substitui por algumas páginas o refrão do Germano Matias e está grafada ao modo do discurso direto livre, como se quem a disse se incorporasse ao texto e exibisse sua presença: “– Você conhece o pedreiro Valdemar?” Ela aparece, insistente, três vezes na mesma página, para depois ir acalmando o ritmo, o grito, e se fazer mais espaçada até que o pedreiro Valdemar se junta com Germano Matias: “Cadê Germano, que fazia batucada na lata de graxa e falava na Praça da Sé?/ – Você conhece o pedreiro Valdemar?” (p. 119). Duas implicações sérias dessa busca, tanto do sambista quanto do pedreiro, estão dispostas assim no texto de João Antônio: Aposentaram os bondes, enlataram a cerveja, correram com o sambista, enquadraram até os poetas. Lanchonetaram os botequins de mesinhas e cadeiras; pasteurizaram os restaurantes sórdidos do centro e as cantinas do Brás, mas restaurante que se prezava era de paredes sujas, velhas! Plastificaram as toalhas, os jarros, as flores; niquelaram paste-
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larias dos japoneses, meteram tamboretes nos restaurantes dos árabes. Formicaram as mesas e os balcões. Puseram ordem na vida largada e andeja dos engraxates. Na batida em que vão, acabarão usando luvas. Caso contrário, farão cara de nojo ao bater a escova no pisante do freguês. Ficharam, documentaram os guardadores de carros. Silenciou-se a batucada na lata de graxa. Acrilizaram a sinuca. E um sambado nas ruas, grita para ninguém: – Você conhece o pedreiro Valdemar? (pp. 115-116).
A começar pelo ritmo gingado da escrita, pela disposição das frases curtas entremeadas pelas mais longas, pelo uso do ponto e vírgula, que indica uma pausa menor que a do ponto e maior que a da vírgula, num encadeamento sutil de ritmos, esse fragmento do texto mostra a habilidade de João Antônio no uso da linguagem, que é a estrela primeira da grandeza do que escreve. A enxurrada de verbos na terceira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo em contraste com os no futuro do presente dá a ideia exata de causa e consequência sempre reforçada pelos verbos inventados: acrilizar, formicar, lanchonetar. As frases todas no passado ou no futuro, sempre no plural, colocam em destaque as duas que remetem a Germano Matias e ao pedreiro Valdemar. “Silenciou-se a batucada na lata de graxa.” A ausência de definição do sujeito das frases que estão no plural indica um tom fúnebre, ainda reforçado pela sonoridade da repetição de aram. Não silenciaram a batucada. Silenciou-se a batucada. Como se ainda se estivesse investigando quais dessas ações, ou se todas juntas, foram capazes de silenciar a batucada. A solidão enfeixada com a última frase que anuncia a pergunta incisiva, que implica o leitor na cena, “– Você conhece o pedreiro Valdemar?”, a imagem do homem que grita a marchinha na rua quando ninguém o ouve, coloca aquele que ouve na condição de melhor ouvinte. Ele também é aquele que vê melhor, pois percebe a ação do progresso e acusa a transformação evidente que está por trás dessa assepsia dos antigos botequins: afastar os feios, os sujos e preparar a cidade para o turismo, maquiá-la, mostrar a face de cartão-postal, tão menos indigesta. Aquele que vê mais, que sai da ignorância, também sofre mais. A sentença é esta: puseram ordem em tudo. A palavra pisante funciona na sequência de frases como o resquício de outra época. A gíria
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malandra dos meninos, tão sonora quanto a batucadinha dos engraxates que tiravam samba no sapato do freguês, está silenciada. O eco em ão do prognóstico futuro da assepsia parece uma vaia. Mais adiante, ao enfileirar uma passagem do folheto turístico com a letra da marchinha que pergunta do pedreiro, João Antônio expõe de novo como a manipulação publicitária vende a cidade pelo que ela não é, ou pelo que aparece de forma menos sutil e mais vendável: “Ela é mais. É a rua das butiques elegantes e passarela do charme local. Um ponto de apontamento dos motoqueiros e das gatinhas incrementadas nas garupas que arrancam e voam no rumo dos bairros-jardins”. – Você conhece o pedreiro Valdemar? Do que o sol nasce a que morre, esta gente trabalha. Uns entram a trabalhar pela noite nas indústrias, gramam ali, buscando horas extras. Moram em Carapicuíba, Jandira, Itapevi, Osasco e lidam no outro lado da cidade. Queimam hora, hora e meia de trem. Viajam de pé, marmita de baixo do braço e os tarecos necessários. Ninguém se fala. Andam sonados, destroncados de cansaço. Tristes uns, inexpressivos outros. Feito coisas. Feito bichos, olhos parados de boi (pp. 136-137).
Nada mais contrastante do que “gatinhas incrementadas nas garupas” rumo aos bairros-jardins e o transporte apertado de um dia cansativo de trabalho dos pedreiros Valdemar, que se repete ad infinitum. A pergunta, dessa vez, parece endereçada aos publicitários e aos incautos que preferem acreditar na propaganda a ver a realidade dura dos operários das fábricas, dos migrantes nordestinos, das diaristas que não podem sentar no trem para não dormirem de cansaço e perder a estação de desembarque (p. 137). A temática da violenta transformação da cidade, que joga para a periferia e para o mundo do crime os antigos malandros, os boêmios, os pobres, os sem-nada no mundo além da rua, está explícita nas obras de João Antônio e a opção de escrever essa transformação através do olhar e da fala desses sem-nada, vê-los do ponto de vista deles mesmos, é o que a salva do clichê de mostrar as mazelas da pobreza brasileira numa catarse capaz de apaziguar a angústia de uma sociedade burguesa implicada nessa realidade.
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Em “Abraçado ao meu rancor”, o pedreiro Valdemar e o sambista Germano Matias funcionam como símbolos da multidão que palmilha a grande cidade. Mostrando-os na sua singularidade, João Antônio faz com que existam como indivíduos, sem um julgamento moral que os separa, num gueto onde se manteriam anônimos outra vez, dos humilhados, da imensa maioria dos injustiçados, dos vendedores de carros da Bolsa do Automóvel, que o folheto publicitário vende como exotismo e opção de “negócios da China” (p. 132). Se a publicidade só consegue ver o pobre como um problema social da grande cidade que, como tal, merece ser eliminado, escondido, trancafiado em nome de uma ideia falsa de segurança dos que têm seu espaço legislado, os habitantes das ruas são mostrados em outros textos de João Antônio – como em “Malagueta Perus e Bacanaço”, “Paulinho Perna Torta”, “Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)”, para citar alguns – enfrentando os mandos violentos do Estado, mesmo que saibam ser esta uma luta diária na qual já entram perdendo. Mas, num ato de dignidade, de coragem e também de violência, astuciosamente – com picardia, diria ele –, João Antônio mostrou o malandro, o bandido, a prostituta desafiando a organização do cartãopostal, exigindo um espaço um pouco seu, trapaceando com as armas que tem – o corpo e a linguagem – para se manter vivo. O efeito não pede piedade, é corrosivo. Nesse texto, João Antônio não encontra mais os malandros de outrora, só a “putaria fuleira” que tomou o Largo do Correio em plena luz do dia e a “viração braba” dos trabalhadores das fábricas, dos emigrantes, dos engraxates que silenciaram a batucada, dos vendedores de balas e de automóveis, do lúmpen. Assim, a presença do alegre sambista – o malandro – no texto, dá lugar ao pedreiro, ao trabalhador assalariado. Essa a descoberta dura do narrador: não há mais malandros se virando na sinuca, há homens explorados, que foram absorvidos pelo sistema capitalista, movidos pelo consumo. Mais adiante o pedreiro Valdemar sai do texto e o grito do “maluco” fica para trás, lá na Rua Ipiranga, para dar lugar a um outro grito, insistente e também denunciador: “– Baleiro. Baleiro, bala!” (p. 133). São os meninos que tentam sobreviver vendendo balas na Estação Julio Prestes sob o olhar constrangedor de um policial: “Há um praça, arma ao ombro, cara quadrada nos espia, raivoso ou debochado. Sentirá nojo?” (p. 134).
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A administração funcionalista das cidades rejeita todos os detritos, as partes indesejáveis que borram a beleza que as expõe como produto. Os pobres são excluídos, rechaçados, empurrados aos guetos suburbanos, aos morros e aos interiores da face maquilada das cidades. Por isso são tão marcantes e denunciadoras as perguntas sobre o sambista e sobre o pedreiro. Há lugar para eles, para a alegria do samba e da toada carnavalesca de outrora nessa cidade que João Antônio não reconhece mais em “Abraçado ao meu rancor”? A pobreza, a despeito de uma organização forçada da cidade, que tenta separar os pobres dos menos pobres e dos ricos, mistura as diferenças pintando a cidade com as cores que as empresas de turismo e a especulação imobiliária não escolheriam. Nessa guerra de pertencimento, a cidade não escolhe seus habitantes, é aceitação. Nela há lugar para todos, uns bem folgados em seus espaços imensos, outros apertadíssimos, vivendo dos restos. A opção de ler a cidade a partir dos que caminham nela e fazem desse caminhar na rua o mote de sua existência íntima na cidade, ou daqueles que são obrigados a ganhá-la através dos trens e dos ônibus precários do subúrbio, é uma forma de reescrever, reconceituar a cidade perdida. Ler a cidade através dos seus “praticantes ordinários” (CERTEAU, 1994, p. 171) é admitir-lhe outra existência que não aquela que a constituiu: o traço planejado, a limpeza, suas práticas organizadoras. É contradizer o folheto publicitário. O que o narrador encontra na cidade está em grande contraste com o que o folheto de publicidade oferece. Ele está em busca da sua cidade conhecida, palmilhada, onde viu suas personagens nascerem, a cidade que o alimentou no início da carreira. Não a encontra. Ele busca, mesmo que para contradizê-la, a cidade que o folheto vende. Também não a encontra: “A cidade deu em outra. Deu em outra a cidade, como certos dias dão em cinzentos, de repente, num lance” (ANTÔNIO, 1986, p. 80). Em vinte fragmentos, uns mais longos e lentos, cheios de amargura, outros mais breves, com certa violência e num ritmo bem veloz, “Abraçado ao meu rancor” é a saga de um dia na vida de um jornalista e escritor que, convidado a passar uma semana em São Paulo a fim de conhecer e passar a vender a cidade como polo turístico, se depara com a amargura de reconhecer que perdeu
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a sua amada9. Como no tango que ele lembra e cita: “Estou me lembrando de uma letra de tangaço. Carregada. E em que o osso, o buraco e o nervo da coisa ficam mais embaixo. Diz, corta, rasga que me quero morrer abraçado ao meu rancor”. O texto ensaia os movimentos do tango. Um tango abrasileirado certamente, um tango que está no lugar da batucada. Como o samba, o tango também nasceu nos subúrbios de uma grande cidade, Buenos Aires, e virou ritmo nacional. Ambos foram absorvidos pelo turismo e viraram, não raro, símbolo de exotismo. As letras tradicionais dos dois ritmos lembram o cotidiano de gente dolorida e tocam o narrador no que há nele de sensível. Não é à toa que as palavras osso, buraco, nervo, corta e rasga, estão enfileiradas em duas linhas e o parágrafo que as contém está entre um que fala da decadência do Largo do Correio e que se fecha lembrando “os desocupados e tristes” e outro que se inicia com a frase “viração de mulheres às dez e meia da manhã” (p. 95). O narrador dói. Do modo como João Antônio estruturou o texto, o leitor vai sabendo aos poucos das minúcias do enredo, ficando em primeiro plano a sensação, a dor latente, o rancor, a amargura, a melancolia, a tristeza, a frustração, a esperança perdida, a busca de alguém que já não encontra o que procura, como se dizendo que isso não se vende. Assim, no primeiro fragmento do texto entrevemos o narrador à procura de Germano Matias. No segundo, ele dá o roteiro, o percurso dessa busÉ conhecida a personificação das cidades nos textos de João Antônio. Como aparece no texto “Amsterdam, ai”, por exemplo, em várias passagens o narrador trata a cidade por você e estabelece uma relação de desejo entre aquele que caminha e aquela que o recebe. É também assim que se inicia Ô Copacabana!: “Meu amor. / Hoje acordei encapetado. E me ganiu, profunda, alta, uma vontade de brigar contigo, te chutar a barriga, sua marafona engalicada! Vontade não: gana. Urrar e vomitar sobre você. Você e tu. Mijar na tua cabeça, tronco e membros, te socar contra a parede, te fazer sangue. Ao te beijar ficou perdido de amor é o cacete. Pelas manhãs tu és a vida a cantar é uma pinóia, uma ova, uma bosta. A tua cara decadentosa parece o mapa do Chile, estrepe velho, tralha, cadela arrombada, esmerdeada, meu horror. / Mas és para ser entendida só por aqueles que não tiveram dinheiro nem para comer um prato feito. E, isto sim, é a pior das sacanagens. / E eu te bato porque te amo” (Antônio, 1978, p. 11). Aqui João Antônio faz um aproveitamento parodístico do samba-canção Copacabana (1947), de Braguinha e Alberto Ribeiro.
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ca, que é o mesmo de “Malagueta, Perus e Bacanaço” (voltaremos a isso). No terceiro já entramos de cheio na razão de ele estar em São Paulo, na campanha publicitária, já sabemos do folheto. Mas é só no quarto, o mais longo até aqui, depois de saber que a cidade que ele procura deu em outra, que há a confissão do motivo da dor, ou do rancor do título: Ninguém pergunta o que me dói. Ela redói. A cidade me bate fundo aqui e o que me irrita foi me passarem, empurrarem, ontem, depois do coquetel, antes do porre, um folheto colorido, publicidade de turismo sobre ela. Quem a conhece que a possa açambarcar tão, tão simplesmente? (p. 83).
Assim fica justificado o porre, a dor, a busca pela cidade real, verdadeira, que ele julga ser a mesma da lembrança e vai aos poucos percebendo que se engana. Em cada antigo ponto de sinuqueiros, em cada esquina, vê mais miséria e mais dor do que estava acostumado a ver noutros tempos. Essa cidade que tem mazelas ainda piores do que as esperadas, contrasta ainda mais com o folheto que a vende. Embora apareçam no texto em fragmentos distantes entre si, enumero aqui algumas passagens relacionadas ao consumo a que o folheto apela, para depois comparar com o que o narrador vê ou quer mostrar, a fim de analisar o movimento proposto por João Antônio no texto: Compre em São Paulo o que o mundo tem de melhor (p. 86). Preços do princípio do século com mensagens de paz inteiramente de graça (p. 103). Em São Paulo comer é um despotismo (p. 104). Imaginamos que você é uma pessoa muito sofisticada, que deseja realçar sua beleza ou dar a alguém um presente maravilhoso (p. 123).
Cada um desses fragmentos está em relação com uma situação de pobreza extrema. Assim, enquanto a cidade oferece “o que o mundo tem de melhor”, “os baianos camelam arrepiados de frio, assustados de frio, estranhando o frio”. O anúncio de preços de outra época é seguido pela descrição dos restaurantes da Avenida São João, às quatro horas da manhã, apinhados de gente comendo do bom e do melhor,
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enquanto “os vagabundos e os eira-sem-beira, os vidas-tortas passam e pensam. Aqueles vivem um vidão”. E de novo a lembrança dos migrantes: “A rapaziada chegada nos paus-de-arara e descida no Morro de Altino come feijão sem nada”. Essa lembrança é prolongada pela imagem da avó do narrador, que ajuda os nordestinos, lá chamados de baianos, costurando roupas, incrementando o feijão com cebola e outros temperos, para se fechar com a frase que ganha toques de cinismo, maldade mal disfarçada dos que já não se sensibilizam em um país de tanta desigualdade: “Comer em São Paulo é um despotismo”. Esse tema e esse contraste é mais uma vez repetido quatro fragmentos depois, a insistir para que não se fechem os olhos para uma realidade tão gritante. Talvez, exposto assim, cruamente, o tema do texto de João Antônio pareça por demais panfletário, sem a mediação necessária a um texto literário. Mas o texto é muito maior do que o tema a que se dedica, pois está arquitetado de modo a deixar aparentes as oscilações dessa imensa construção de concreto que é a cidade de São Paulo e que é também o Brasil. Como se espiássemos, na leitura, as vigas de sustentação repletas de seres indesejados a abalar a estrutura vendida como símbolo de resistência. Mais uma vez pautado pela sensação, João Antônio aposta no contraste da cidade aparente e da subterrânea, que só parece escondida aos que não querem enxergar além do centro comercial conhecido em todo o país10. O leitor já sabe desde o início que o que tem nas mãos é o texto de um jornalista às voltas com seus rancores, designado para fazer uma 10 É conhecida a imagem de Gustav Le Bon para designar a massa: “Com poder unicamente destruidor, as massas atuam como aqueles micróbios que aceleram a desintegração dos organismos debilitados ou dos cadáveres. Assim, quando o edifício de uma civilização está minado pelos vermes, as massas são as que produzem a derrocada final” (apud CALDAS, 1991, p. 32). Embora não estejamos discutindo o conceito de massa e nem a mesma época histórica do texto de Le Bon, a imagem do edifício minado serve para a imagem da cidade, com seus pobres indesejáveis a solicitar atenção, seja pela feiura das suas misérias, seja pela violência. Não mais a massa bárbara e inculta reivindicando o poder, mas a massa empobrecida, desafiando o poder instituído, abalando as estruturas do sistema capitalista com o simples espetáculo de sua presença indesejada.
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matéria sobre a cidade de São Paulo e sua propensão para o turismo de negócios. Já sabe que o narrador aceitou o trabalho em partes porque o clima da redação não é o melhor do mundo na época: “Noutro tempo, bem outro, a redação fora um lugar de entusiasmo, rumor e movimento. Isso, sem a ditadura. Agora transpirava-se nojo, derrota. (...) Sair para a rua, a trabalho, era um alívio” (p. 79). Mas na medida em que o texto se desenvolve, a atmosfera de pressão que ronda o jornalismo vai se tornando mais clara. O narrador parte de um problema pessoal seu com a profissão, na qual já não acredita, e vai destilando o rancor, motivado essencialmente pelo que vê de entrega à campanha publicitária nos outros colegas, até chegar a uma espécie de clímax em que os agride, numa escolha nada sutil de vocabulário. Assim, temos no quinto fragmento uma espécie de confissão: “Esta profissão não presta. Com o tempo, você vai empurrando a coisa com a barriga, meio pesadão. Sem alegria, garra ou crença, cutucado pela necessidade da sobrevivência. Apenas” (p. 81). No décimo sexto fragmento, depois de ter percorrido grande parte da cidade tentando reavê-la, em busca, quem sabe, de uma motivação para fazer a matéria que deseja e não a encomendada, o narrador passa pelo que restou do Edifício Andraus depois de um incêndio e outra vez a lembrança do tratamento que se dá nas redações a calamidades desse tipo aumenta a descida ao poço da desilusão: Quiquirica-se ainda nas redações a necessidade de matérias humanas. Com historinhas, empostam. Humanas e boas. Nenhum sabido da profissão fez o inventário dos sonhos impossíveis que embalaram essas vidas perdidas no incêndio. Um homem empanturrado não pode entender um faminto. Disso sei. Mas já sabiam antes de mim os russos e escreveram isso há mais de cem anos. Em todo caso, me permito: um incêndio, o sente quem já teve a casa pegando fogo e, depois, só a roupa do corpo (p. 121).
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É conhecida a história do incêndio na casa de João Antônio e sua sofrida reescrita do conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”11. Ao colocar em cena sua história pessoal, o autor explicita de forma irrevogável a tese de seu texto: enquanto a profissão exige que os jornalistas escrevam para vender matérias, ele reivindica o compromisso com aquilo que se escreve. Esse compromisso, a que muitos da mesma profissão não se sentem atrelados, toca fundo a João Antônio por ter vivido as mesmas dores das vítimas cujas “historinhas” saíram no jornal. Se nas redações apelam “para a necessidade de historinhas humanas e boas”, virou praxe escrever sobre os problemas sem se envolver com eles. Assim como todo jornalista, todo escritor deveria fazer sua profissão de fé com o povo, pelo povo. Eram tempos em que ninguém gostava de assumir ser de outra classe. Se, deliberadamente, João Antônio assumiu sua identidade de “escritor que cheira a povo,” nunca admitiu que usassem esse epíteto para estar na moda, ou para atender exigências de mercado. No auge de seu xingamento, cujas palavras mais duras não precisam ser sublinhadas neste trabalho, como se o texto se tratasse de uma carta aberta aos jornalistas, vai assim o seu recado:
11 Na edição da Cosac Naify para Malagueta, Perus e Bacanaço há uma apresentação de João Antônio intitulada “De Malagueta, de Perus e de Bacanaço”, escrita em 1963, mas só publicada pela primeira vez na terceira edição do livro, pelo Círculo do Livro, em 1980. Nela, o autor dá notícias do incêndio: “[o livro] estava pronto em 12 de agosto de 1960, data em que veio um incêndio, queimou minha casa, lambeu tudo. Fiquei sem roupas, sem casa, sem livro. / Naquela casa, naquele meu quarto, eu trazia guardadas as coisas que me acompanhavam desde os cinco anos de idade” (ANTÔNIO, 2004, p. 14). No encarte que acompanha o livro e traz um histórico de sua composição e lançamento, Rodrigo Lacerda esclarece que, ao contrário do que diz João Antônio, só os originais do conto homônimo foram perdidos no incêndio: “João Antônio, malandramente, manipulou tal coincidência de títulos, deixando que o mal entendido se propagasse” (p. 7). Ilka Brunhilde Laurito confirma a versão de Lacerda: “Em princípios de agosto, depois de um largo silêncio, recebo um telefonema desesperado de João Antônio. Sua casa havia pegado fogo. E, junto com a perda de seus objetos queridos, seu quadros, seus livros, sua máquina de escrever, ele também perdeu os originais do conto que lhe custara tantos meses de trabalho e sofrimento” (Remate de Males, 1999, p. 49).
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Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês nem sabem onde mora e como. Não reportem povo, que ele fede. Não contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o restolho que vocês não vêem humanidade ali. Que vocês não percebem vida ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem sentir certas emoções, como o ouvido humano não percebe ultra-sons (p. 110).
Ou então, noutro tom: “Humilhado e ofendido é uma ova! Comprado e vendido. Safardana e omisso” (p. 101). À parte a reivindicação do lugar privilegiado de representante do povo como único capaz de compreendê-lo, sem levar em conta que o que sente doer em si pode ser experimentado por outras pessoas que compartilham a mesma sensibilidade, o primeiro excerto mostra ser legítimo o direito de chamar a atenção para a fabricação de posições de gabinete, ação que iguala os políticos e os jornalistas. A manipulação das emoções, a fabricação de matérias pautadas por interesses de mercado – como está reforçado no segundo excerto –, o cinismo mal dissimulado parecem ser justamente o que impulsiona a escrita do texto. É um narrador que expõe suas entranhas. O título já anunciava isso: a exposição dos rancores. Nisso vai acusação, acerto de contas, revisão da vida, da profissão. Deliberadamente, João Antônio coloca em cena um narrador que se confunde com ele próprio, o que aumenta o grau de autenticidade, verdade, e faz do texto algo que intriga, que é recebido com certo incômodo, pois não há como entregar à personagem os equívocos dessa passagem a limpo de uma situação que envolve o leitor, de um cenário muito conhecido dos brasileiros e de uma realidade que não é ignorada. A crueza do tema exige que se leia o texto partilhando esse rancor, mas também essa dor, toda a impotência que se expande a cada linha. Se, a princípio, fica mais ou menos estabelecido que seu rancor se dirige aos jornalistas – que reduz a um tipo de publicitários que tanto se deixam levar pelas campanhas e fazem delas seus motes de escrita como não se comprometem com os problemas que poderiam ser atacados pelos jornais diários, que, por sua vez, cumpririam, assim, sua função de informar e denunciar, levando a população a exigir mudanças concretas –, no movimento do texto o narrador trata de deixar claro que se deixa levar pela emoção que experimenta na caminhada. Seguidamente usa expressões que mostram esse desabafo em meio à
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caminhada: “mas me calo” (p. 116), “dou por mim” (p. 100), “ganho o andado de novo” (p. 120) etc. O texto, escrito todo no presente, com algumas digressões que dão conta da cidade de São Paulo em outra época, anedotas de jogos de sinuca famosos e de como foi escalado para a matéria que deveria escrever, vai revendo posicionamentos do começo ao fim, e é assim que, como se numa tomada de consciência, ameniza o desprezo reservado aos jornalistas em passagens anteriores: “Logo caio em mim. Não foram os jornalistas que encomendaram ditadura, mas são eles, principalmente, que a têm no lombo. Nem pediram políticos biônicos. Também não inventaram a sociedade de consumo” (p. 124). Ou então, num desvio do pensamento, quando se sente oprimido – “empurrado e espremido” – no trem rumo à casa materna e lembra-se da proibição do uso da palavra vagão: A palavra vagão, proibida aos jornais pelos órgãos oficiais, só deve ser usada para transporte de carga ou animais. Assim, que culpa terão os jornalistas com uma ditadura no lombo, além dos patrões? Alguns, mais afoitos ou rebeldes, estão comendo processos ou cadeia (p. 134).
Essa tomada de consciência que se dá à medida que a raiva vai passando, permite-lhe ampliar o olhar do âmbito do jornalismo para todo o contexto social da época. Não é tão fácil apontar um culpado para a situação e ela se torna mais complexa. Os leitores que acusam a saída pela tangente, a opção simplista de culpar a ditadura, logo atentam para a fineza da comparação entre o clima gerado por esta – de medo, sufoco, indignação, impotência – e o do interior do trem de subúrbio lotado: Enquanto sou apertado, bato os olhos lá fora, e medo. Se me escruncharem os bolsos, se me pisarem, se me chutarem, me arrancarem os botões da roupa, se me tirarem os sapatos, se me cotovelarem, sequer conseguirei endireitar o espinhaço, me empertigar. E um grito seria um rilhar de dentes, um estalo de boca, nada. Suo (pp.134-135).
O texto de João Antônio, na medida em que parte de um acontecimento que desencadeia uma tomada de consciência, uma avaliação
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de perspectivas, se assemelha a um romance de iniciação. Como se, depois desse dia, a personagem-herói não pudesse mais ser a mesma. Há uma passagem de um estado a outro e esse clima é reforçado pelo final simbólico que remete à volta do filho pródigo: como citamos no início da análise desse texto, ao ter chegado à casa materna, o narrador é perguntado sobre se voltou para ficar. Não diz nada e é a mãe que conclui: “– A sua arte não permite dois amores” (p. 142). A conclusão da mãe invoca a frase que define a literatura como uma mulher exigente de dedicação exclusiva. A volta, assim, encerra muitos lugares de origem indicados no texto: volta à Presidente Altino, lugar a que o narrador confessa não ter forças para voltar; à profissão de jornalista, que o aguarda no Rio de Janeiro, e volta à linguagem literária, que o autor diz ter perdido no exercício do jornalismo: “Perdi a linguagem no verbalismo palavroso da profissão” (p. 122). A aparente falta de mediação entre o vivido e a criação literária pode ser refutada tanto pelo final simbólico, que remete ao que está além do texto, quanto pela curva dramática que, à maneira aristotélica, faz crescer a ação de modo a atingir o clímax para depois encaminhar o desfecho (ARISTÓTELES, 2000, p. 59). Assim, o narrador vai expondo seu rancor de modo antes melancólico, desejoso de encontrar a cidade delineada em sua imaginação e calcada no passado, crescendo para um ímpeto agressivo e se fechando de modo melancólico outra vez. Não há lugar para três cenas lineares – começo, meio e fim –, como na teoria clássica de Aristóteles, são muitas as idas e vindas no interior de assuntos diferentes entre si: a busca de Germano Matias e de sua música, que contém em si digressões tanto para os cenários em que o músico costumava ser encontrado quanto para a cultura da batucada encontrada nas ruas de outrora: na lata de graxa, na frigideira, no sapato sendo engraxado; a busca dos salões de sinuca e de seus jogadores, com digressão para a anedota da partida de sinuca que teve muitas apostas, mas não teve vencedor; a análise da situação atual do jornalismo brasileiro; a volta à casa materna; a descrição da cidade de São Paulo e seus contrastes entre ricos e pobres. Todos esses assuntos não têm necessariamente uma relação de causa e consequência. O texto está armado de modo a dar a impressão de um monólogo interno que se vai construindo conforme os passos do narrador. Ambos, texto e narrador, parecem não se guiar por um roteiro, mas serem im-
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pelidos pelo que suscitam as imagens com que se deparam. A análise simples da linguagem e do ritmo, ora veloz ora lento, ora lembrando um tango, ora um samba, acusa o trabalho do autor em busca do efeito estético rigorosamente planejado. Havendo ou não identificação com o narrador, o que o leitor acompanha nessa caminhada a pé, na entrada nos prédios abandonados ou modernizados, no percurso do trem, é a decadência do mundo de “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Como se naquele texto – o primeiro livro, a promessa de uma carreira de sucesso – o mundo fosse colorido, a exemplo da passagem em que rememora as bolas de sinuca marcando o seu ritmo na mesa do Mourisco, e agora fosse todo em preto e branco: “É preto-e-branco fazendo o lado real, por dentro” (ANTÔNIO, 1986, p. 133). Em Malagueta, Perus e Bacanaço João Antônio dedica toda a última parte do livro à sinuca, com quatro contos: “Frio”, “Visita”, “Meninão do caixote” e “Malagueta, Perus e Bacanaço”. A crítica brasileira é unânime em colocar este último entre os melhores contos do autor. Nele, três malandros vivem a noite paulista à procura de um jogo de sinuca que possa render algum dinheiro. O percurso tem início na Lapa, em um sábado à tarde, com Perus e Bacanaço, que “avistavamse todas as tardes” no Celestino, um salão antigo daquele bairro pobre. Ficam ali até o lusco-fusco, sem dinheiro para nada, Perus com fome e sem muito que fazer. O ritmo lento dá lugar a uma atmosfera viciada, de espera, onde nada acontece e a repetição é bastante marcada tanto na estrutura do conto quanto explicitamente pelas imagens: “O menino Perus repetia cigarros” (ANTÔNIO, 2004, p. 157). Na cena inicial do conto, que se prolonga e descreve até mesmo os gestos do menino Perus em sua primeira fala, “três dedos enfiaram-se nos cabelos. – Que nada! Tou quebrado, meu – os dedos voltaram a descansar nos joelhos” (p. 149), Perus e Bacanaço tentam se entender para um jogo. Mas não há o capital. Somente quando a cidade se ilumina – “A lapa trocava de cor” (p. 157) – é que Bacanaço se lembra de Malagueta. Assim, João Antônio vai marcando, demoradamente, a entrada dos personagens e as horas passando: “Sete horas. Capiongo e meio nu, como sempre meio bêbado, Malagueta apareceu (...) – A gente se junta, meus. Faz marmelo e pega os trouxas” (pp. 158-159). Encontrada a primeira solução, que coloca Bacanaço como patrão do
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jogo, empenhando seu relógio, e Perus e Malagueta como parceiros dissimulados, os três saem à procura de salões onde não são conhecidos e poderiam ganhar algum dinheiro. Assim começa a aventura e o percurso se estende para Água Branca e, no Joana d’Arc, entram no jogo da vida, “o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca” (p. 164). Ali, se empenham, se arriscam, que a roda do jogo era de Lima, policial aposentado que desconfiou do conluio dos dois. Mas acabaram ganhando “três mil em notas miúdas” e seguem para Barra Funda à procura de novos salões. Nessa parte do conto, a atmosfera de abafamento, tensão pelo que poderia vir pela frente, se acentua: “Uma noite quente, chata. Zoada de moscas assanhadas nos salões” (p. 179). E Barra Funda não deu jogo, obrigando-os a seguir para Cidade. João Antônio se demora descrevendo a São Paulo noturna: Avenida São João e sua costumeira zona de prostituição, a Rua Ipiranga, o Jeca, descrito no conto como o “boteco de concentração maior de toda a malandragem, fecha-nunca, boca do inferno, olho aceso por toda a madrugada” (p. 184). Vão para o Americano, na Amador Bueno, depois ao Paratodos, no Largo Santa Efigênia, onde encontraram, em vez de jogo, a polícia e “aquele silêncio esquisito de esporro que vai se dar” (p. 190). Ali foram extorquidos. “Quase três horas” e os três seguiram para o Martinelli, onde também não deu jogo. Dali, partiram para Pinheiros e, jogando só os três, toparam com Robertinho, que lhes tirou tudo. Malandro mais malandro que os três, naquela noite com a mesma intenção, aplicou a mesma sua dissimulação, obrigando-os a voltar à Lapa, ao Celestino, ao ponto de partida, ainda com fome e pedindo três cafés fiados. É fácil perceber que em “Abraçado ao meu rancor” o narrador faz o mesmo percurso dos três malandros, nessa noite, na Cidade (Avenida São João com Ipiranga, o Jeca, o Martinelli, o Maravilhoso, na esquina em que os três encontram Carne Frita, reverenciado) e que “Abraçado ao meu rancor” faz lembrar outra vez as façanhas do jogador. Quando Malagueta, Perus e Bacanaço chegam à Cidade já é madrugada: “Uma, duas, três, mil luzes na Avenida São João!” (p. 182) e “a cidade expunha seus homens e mulheres da madrugada” (p. 183). Os malandros se movem bem ali e o narrador em terceira pessoa (jogando sempre com o ponto de vista das personagens) se esmera em mostrar
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bem esses homens e mulheres viradores, malandros, prostitutas, as curriolas. Descreve-os, os faz falar, relembra anedotas acerca de um ou de outro que se cruza com a vida de um dos três malandros, aqui a “mulher da zona” de Bacanaço, ali a mulher que deve favores à Malagueta. A Cidade está iluminada, iluminados os três malandros que crescem nessa parte do texto. A cidade de São Paulo, e seu centro especificamente, é personagem à altura dos três e ganha, no conto, os contornos que a delineiam: é apinhada de gente, os malandros estão em todos os seus cantos, ela é propícia ao jogo e à prostituição, pode-se andar longos percursos a pé, à noite, há perigos e há policiais corruptos, há calor, samba, sinuca. Há bondes passando, os salões são grandes e iluminados como a cidade. “E quando é madrugada até um cachorro na Praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma em tudo” (p. 183). Misturam-se ali todos os tipos: mulheres de vestido de baile, vadios, otários, “malandros pé-de-chinelo promiscuídos com finos malandros do jogo de turfe” (p. 183). A cor verde está em tudo: nas cortinas e nas mesas e até nos olhos de uma mulher bonita que atravessa a rua, nos olhos claros do menino Perus. E há o colorido das bolas. Em “Abraçado ao meu rancor”, a Praça da República só reserva ao narrador um grupo de estudantes que fazem “pesquisa social de campo”, que percebe, comovido, que a cidade lhe foge e que lhe falta intimidade para reavê-la. Torço as mãos e ando. Houvesse tempo esperaria o aparecimento das luzes elétricas, os globos de três a três, gringos, na cabeça dos postes. Assim, de um lance, dançando, jogando mais escuros que claros, escondendo as deformações dos edifícios e o sumiço de alguns estabelecimentos, talvez a luz elétrica fizesse surgir de novo a outra cidade (ANTÔNIO, 1986, p. 117).
A referência à cidade de Malagueta, Perus e Bacanaço, aqui, é ainda mais evidente. Interessante perceber que o surgimento da luz elétrica, o ato de acender a luz do poste, tem um sentido primeiro de iluminar, mas o surgimento da cidade que o narrador vislumbra poder ainda ver não seria proporcionado pela luz que se acende e sim pela noite, que esconde o que aparece durante o dia. Ver menos seria o necessário para reaver a cidade de outrora. Trocar a claridade do dia e seus ho-
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mens apressados para a sobrevivência no trabalho pelo escuro e seus outros homens que sobrevivem da noite, mais famintos, mas talvez mais alegres. A expressão “houvesse tempo esperaria o aparecimento das luzes elétricas” remete a outro tempo que não o cronológico, já que o narrador apenas anda, olha, relembra, sem destino certo, sem hora marcada, sem um “aonde ir”. Como se não houvesse modo de recuperar o tempo perdido, a cidade que não mais pertence a ele, o homem que já é outro. Por isso não é completa – e não é para sempre a volta para casa – “parece impossível o retorno a quem já transpôs o limiar da classe” (BOSI, 2002, p. 242). Ao mesmo tempo em que ressoam as perguntas “onde andará Germano Matias?, “você conhece o pedreiro Valdemar?”, “que cidade é essa que não reconheço mais?”, também vem outra: “foi ela que mudou ou fui eu?”. Detestável ir a todos esses buracos, desentocaiar vagabundos, localizar salões de sinuca e me mover de carro. (...) Quando conheci essa gente e gostei deles, quando me estrepei e sofri na mesma canoa furada, a perigo e a medo, eu não tinha esses refinamentos, não. Mudei, sou outra pessoa; terei tirado de onde essas importâncias ou finuras? (ANTÔNIO, 1986, pp. 82-83).
O novo contexto histórico abre espaço para o novo discurso, para um novo modo de ver, que, no texto de João Antônio vem marcado pela substituição do uso da palavra povo por população ou multidão: “Outra palavra no folheto brilhoso, multidão” (p. 132). Se humilharam as nossas cidades e as fizeram perder a identidade e a vergonha, se mais da metade da população – isto, dance conforme a música e use população e não povo, lavrador e não camponês – passa fome ou não tem onde morar, isso não está dizendo nada. O escriba fará trabalhos edificantes e modernosos (pp. 101-102).
No que pese a aceleração da modernização de São Paulo, João Antônio fala justamente a partir do tempo da substituição dos materiais, do gosto pelo acrílico, pelo asfalto, pelo néon. Já se fazem notar os efeitos da industrialização e do consumo que se estendem por todo o
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país e, apesar da visível deterioração das relações humanas na cidade, a modernização é incorporada ao discurso como fator positivo de civilização. Se na década anterior alardeava-se o povo, agora a nova ordem é dizer população, multidão. Ficam para trás as implicações políticas ligadas ao vocábulo e acentua-se o vazio da despersonalização. Vale a pena uma pequena incursão pelo uso do vocábulo povo ao longo da história, pois com ela ficará ainda mais evidente as implicações do conceito no novo tempo que João Antônio acusa. Segundo Jesús Martin-Barbero (2003), é com a Ilustração que o povo ganha um significado político: como grande número, ele passa a representar uma ameaça por sua constante ebulição, tornando-se “instância legitimante do governo civil”. No âmbito da cultura, entretanto, o povo representa tudo aquilo que é contrário à razão: as crenças, superstições, a ignorância e a desordem. A descoberta do povo, assim, teve dois lados equivalentes: “A racionalidade que inaugura o pensamento ilustrado se condensa inteira neste circuito e na contradição que encobre: está contra a tirania em nome da vontade popular, mas está contra o povo em nome da razão” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 36). Responde-se ao povo colocandoo abaixo da razão: ele precisa ser governado, a ele é preciso dar a ilustração, o divertimento e as condições mínimas de sobrevivência. O povo é a “necessidade imediata”, enquanto a pequena burguesia é a detentora do saber que precisa ser dado a ele como conhecimento. São os românticos que fazem progredir a ideia de que para além da cultura oficial dos ilustrados existe uma outra cultura. O povo é pensado, pelos românticos, como alma, entidade não analisável socialmente, abaixo ou acima do movimento social, e sua cultura é vista como algo que não se mistura, não se contamina com o comércio ou com a cultura oficial. Logo, a cultura do povo, numa ideia romântica, é aquela primitiva, folclórica, é a cultura-patrimônio. A significação de povo, tanto no sentido romântico como no da Ilustração, se dissolve no conceito de classe social, na oposição entre proletariado e burguesia a partir da revolução industrial. Paralelamente ao conceito de classe social, nasce o de massa. Martin-Barbero localiza os usos dos dois termos ligando “classe social” ao marxismo, à esquerda que busca pensar o proletariado pelas relações de produção, que pensa as diferenças sociais a partir das diferenças de classes geradas na
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opressão que uma impõe à outra; e massa, a um pensamento político de direita desencadeado “sob os efeitos da industrialização capitalista sobre o quadro de vida das classes populares” (p. 55). Paolo Virno, pensador italiano que tem se dedicado ao estudo do comportamento na sociedade urbana contemporânea, sustenta que a multidão atual se caracteriza principalmente pela linguagem, pelo intelecto, e situa no nascimento da indústria cultural o momento em que trabalho – poiésis – e política – práxis – deixam de ser conceitos separados para convergirem. É nesse momento que o trabalhador se torna um virtuoso (executante sem produto material) através da linguagem, porque a faculdade comunicativa torna-se um componente essencial de cooperação produtiva: Con el nacimiento de la industria cultural, el virtuosismo se convierte en trabajo masificado. Es ahí que el virtuoso comienza a marcar su tarjeta de ingreso. De hecho, en la industria cultural, la actividad sin obra, es decir la actividad comunicativa que se cumple en sí misma, es un elemento central y necesario. Y justamente por este motivo es en la industria cultural donde la estructura del trabajo asalariado coincidió con la de la acción política (VIRNO, 2003, p. 56).
O uso do vocábulo multidão na década de 1980, acusado por João Antônio, está em sintonia com a entrada do Brasil nos modelos da indústria cultural mundializada, em que ganha maior valor o trabalhador virtual, como está bem caracterizado no texto o agente publicitário, um vendedor de palavras, como o são também o jornalista e o escritor. A tensão entre trabalho material e imaterial também está presente na cena em que o narrador se pergunta se os jornalistas seriam capazes de encarar o trabalho dos carregadores (ANTÔNIO, 1986, p. 122). A busca do progresso técnico/tecnológico a todo custo e a própria organização do espaço urbano, com seus novos prédios descaracterizadores e a renovação dos bares, dos antigos pés-sujos – a cuja modernização João Antônio chama de acrilização, formicação, evidenciando a mudança de fachada – também são geradoras de mais marginalização social, afastando os que já não tem nada do bar que se renova para atender os clientes que estão incluídos de alguma maneira no projeto de modernização: os que pertencem a alguma classe, os
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que conseguem se definir no sistema como trabalhadores assalariados ou como autônomos, mas, de qualquer modo, inseridos no mundo do trabalho. A remodelação da cidade inclui dispositivos antimendigos (não ainda os que viriam a ser criados alguns anos mais tarde, como os bancos de ferro, as luzes ou os jatos de água nas portarias dos prédios). Menos sofisticados, repelem pelo aspecto asséptico. Como se pode confirmar pelas análises de muitos estudiosos dos efeitos da modernização do país, o cientista político Raymundo Faoro resume bem o processo gerador dos contrastes expostos no texto de João Antônio: Em vez de buscar a modernidade, o Brasil padece de ímpetos de modernização, através dos quais se tenta queimar etapas no processo de desenvolvimento. Uma nova modernização sepulta a anterior e nenhuma consegue fazer com que o País encontre o caminho para o desenvolvimento. Impostas por elites pseudodissidentes em favor dos seus interesses, essas modernizações mantêm a maioria da população alijada de benefícios sociais elementares (FAORO, 2009).
Todo o texto evidencia a cada fragmento justamente o problema da modernização, do chamado progresso que ignora o descompasso produzido pelo afastamento cada vez maior entre os que são beneficiados pelo projeto de modernização e os que são apenas ignorados por não se adequarem a ele: “Tem cinemas, teatros, livrarias, plásticos, restaurantes, hotéis, acrílicos, neons, boates, fórmicas e os melhores cimentos armados do país. Isso a que dão o nome de progresso, terá a ver com a gente, com o nosso andrajo, fomes e complicada solidão?” (ANTÔNIO, 1986, p. 120). A mistura das listas, a dos serviços e a dos materiais característicos da modernização, realça ainda mais a existência de duas forças que se repelem: o desejo de modernização a qualquer custo – projeto das elites dirigentes – e do resíduo que permanece como problema, como resto humano. O andrajo e a fome são característicos da pobreza que não acerta o passo com o progresso. Mas a solidão figura aí como algo que ultrapassa a questão material e que também é denunciado no texto: o trabalho que passa a ter como único objetivo a sobrevivência, a avidez do dinheiro, a cidade que impõe pressa.
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Não se pode negar que nos anos 1970 o Brasil, à semelhança de outros países da América Latina, entrou definitivamente no processo de urbanização e de desenvolvimento das formas de vida vinculadas aos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, que se tornou um dos principais divulgadores da sociedade de consumo, impondo modas e novas formas de comportamento. Uma dessas modas foi a redescoberta do povo, mais visível nos jornais tanto impressos quanto televisivos. Isso fica evidente tanto nesse texto de João Antônio, em passagens citadas anteriomente, como em entrevistas. O investimento do Estado na indústria cultural, na década de 1970, promovendo o “clima eufórico e ufanista do ‘milagre brasileiro’” (HOLLANDA, in NOVAES, 2005, p. 99) e, contraditoriamente, “alimentando o surgimento e o sucesso da ‘imprensa nanica’, com veículos como O Pasquim, Opinião, Movimento, que cresceram na resistência ao autoritarismo do Estado e ao seu braço censor” (CAMARGO, 2010), gerou um clima de debate, de mobilização pela profissionalização do escritor e criou perspectivas para a divulgação da literatura, fazendo crer no crescimento do acesso da população à cultura letrada, na diminuição das taxas de analfabetismo. João Antônio participou ativamente dos debates e foi uma espécie de figura que marcou o discurso de toda a década. CoNSiDERAÇÕES FiNAiS Em “Abraçado ao meu rancor”, João Antônio já está distante daquele mundo de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, da cidade de São Paulo, está frente a frente com as impossibilidades de voltar a ser quem foi e de fazer aquela literatura, que ele já considera romântica. Está às voltas com rancores e vivenciou certas coisas que não permitem crer numa mudança satisfatória na sociedade, menos ainda operada pela literatura. Isso fica claro tanto pelo que escreve em cartas aos amigos, como pelo próprio texto literário, que mescla a vivência real do escritor com nuances poéticas, com nítido trabalho de carpintaria literária, e pelo novo tom presente na sua participação na imprensa escrita. O clima de debate se acalma e João Antônio escreve resenhas, exercitando aí sua veia crítica e reivindicando a publicação e o reconhecimento dos escritores nacionais como antes; percebe-se, no entanto, que o tom já é outro.
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“Abraçado ao meu rancor” seria, assim, além de uma volta à casa paterna, à cidade natal, também uma volta ao texto “Malagueta, Perus e Bacanaço”; o que traz a consciência, senão do fracasso (próprio e da sociedade), da falta de energia para se empenhar de novo num projeto de transformação que acredita malogrado e mesmo, talvez, da impossibilidade de escrever de novo sem a mágoa que experimenta na nova década. Os anos 1980, aparentemente de menor badalação em torno do nome de João Antônio, foi, na sua primeira metade, o momento de maior reconhecimento do escritor, tanto pelo valor de Dedo-duro e a promessa da volta ao literário quanto pelo prestígio internacional que o autor alcançou: em 1985 foi à Europa, realizando conferências na Holanda, em Portugal e na Alemanha. Em 1987 foi a Cuba, integrando o júri do concurso Casa de las Américas e, ainda no mesmo ano, voltou à Europa, desta vez a Berlim Ocidental, onde permaneceu um ano sob custeio da Deutscher Akademischer Austausch Dienst (DAAD).
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DiSCURSoS SobRE o HAiti: o QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEitoRES tiVERAm A DizER SobRE o tERREmoto DE 2010 Larissa Morais
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O que os textos produzidos pelos leitores de uma notícia convencional na Internet têm a dizer sobre essa notícia de diferente do já assinalado pela mídia que a veicula? Até que ponto os leitores reproduzem, nas suas falas, o discurso do veículo por onde navegam e até onde exercem sua capacidade crítica, estabelecendo um debate público pertinente e contribuindo para a renovação do jornalismo, na atualidade? E até que ponto são capazes de contribuir para uma compreensão mais abrangente do noticiário? É o que procuramos investigar, neste ensaio, que toma como objeto de análise uma notícia publicada no site de O Globo sobre o terremoto que atingiu o Haiti em 13 de janeiro de 2010 e os mais de 600 comentários de leitores que ela suscitou. O principal ponto de apoio teórico está na metodologia de Análise do Discurso do teórico francês Dominique Maingueneau, aqui posta em diálogo com autores de referência da Comunicação Social. Palavras-chave: jornalismo online, terremoto no Haiti, Análise do Discurso What do the texts produced by readers of a common internet news have to say about that news other than what has already been mentioned by the media that transmitted it? Up to what extent do readers reproduce, in their own words, the discourse of the medium they visited and up to what point do they exercise their critical thinking, thus establishing a relevant public debate and contributing to the renewal of journalism in present times? And up to what degree are they able to contribute to a broader understanding of the evening news? That is what we examine in this essay which takes, as the object of analysis, a news published on The Globo website about the earthquake which hit Haiti on January 13th 2010, and the more than 600 comments posted it triggered. The main theoretical tool used for analysis is found on the French scholar Dominique Maingueneau´s Discourse Analysis (DA) methodology, presented here in a dialogue with authors of reference in the field of Social Communication. Keywords: online journalism, Haiti earthquake, Discourse Analysis
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iNtRoDUÇÃo – Tava justamente pensando: só fazem matérias no Haiti mostrando caos, tragédia, lixo, destruição. Mas é só isso lá? – Claro que não. Também tem saques, fome, miséria, guerra de gangues. Por outro lado, há outras coisas que não tem por lá tipo água potável, remédios... (Diálogo entre os jornalistas Jorge Henrique Cordeiro e Carlos Vasconcelos, publicado em 18 janeiro de 2010 no Facebook12).
O terremoto que atingiu o Haiti em 13 de janeiro de 2010 foi um dos temas de maior destaque na imprensa nacional durante os dias que se seguiram. Imagens de casas e edifícios transformados em pó, de covas coletivas a céu aberto abarrotadas de haitianos mortos e de longas filas para distribuição de alimentos e remédios, entre outras, impressionaram a opinião pública e motivaram a participação de um grande número de leitores em sites, blogs, Twitter, Facebook e todo gênero de mídia que abre esse tipo de espaço interativo. No dia do terremoto, algumas notícias chegaram a gerar centenas de comentários. “Em 20 dias de cobertura, o site recebeu cerca de 30 mil comentários sobre o tema”, contou o diretor de Interatividade de O Globo, Paulo Mussoi13. Só a notícia principal, que permaneceu como manchete do site durante boa parte do dia do terremoto, gerou 666 registros de participação. O conjunto desses comentários14 e a matéria que os provocou são tomados como objeto, neste ensaio, cuja proposta é analisar diferenças e pontos de ligação entre o discurso de O Globo e o de seus leitores no episódio do terremoto do Haiti. O que os textos produzidos pelos leitores de uma notícia convencional na internet têm a dizer sobre esse conteúdo de complementar ao que já assinalam textos da 12 Jorge Henrique Cordeiro é autor do blog independente O Escriba e colaborador do Blog do Planalto, da Presidência da República. Carlos Vasconcelos é jornalista da TV Brasil. 13 Dados fornecidos por e-mail em 8 de fevereiro de 2010. 14 Os comentários deixados na página de O Globo devem ter um tamanho máximo de 500 caracteres.
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mídia hegemônica, no espaço interativo criado para colher suas opiniões e impressões? Tomamos como ponto de apoio e principal referência o teórico da Análise do Discurso Dominique Maingueneau – em especial seu mais recente livro publicado no Brasil, Análise de textos de comunicação. Maingueneau está ligado à linha pragmática da Análise do Discurso, que se caracteriza por requerer do interpretante de um texto – verbal ou não – não apenas capacidade de interpretação semântica, mas também a análise do contexto em que está inserido e as regras implícitas e explícitas que envolveram sua formulação. Recorremos às principais chaves de interpretação propostas por Maingueneau para avaliar e comparar os textos de O Globo e dos leitores, procurando compreendê-los como discursos maiores inseridos no contexto do jornalismo produzido na web, na atualidade. Um cenário em que leitores não são apenas receptores no sentido clássico do termo, mas têm a possibilidade de produzir e veicular críticas e conteúdo, num momento em que o estatuto do jornalismo tradicional vem constantemente sendo posto em xeque. Ainda no que se refere à metodologia, foi necessário selecionar, entre todos os comentários gerados pela notícia do terremoto, os que consideramos mais representativos do todo. O maior desafio foi buscar uma unidade interpretativa num volume tão grande de falas dispersas, deixadas por leitores de perfil desconhecido. Sabemos apenas que eles: a) São leitores da edição online de O Globo, o que não quer necessariamente dizer que eles apreciem a linha do jornal. Ao contrário, muitos parecem usar a área de comentários apenas para criticar o veículo; b) Têm o impulso não apenas de ler notícias, mas também de comentá-las e/ou participar das discussões que suscitam. Para poder fazer isso, preencheram um cadastro no site, o único requisito necessário para quem quer deixar um comentário15; c) O tema em questão despertou neles interesse, ou não teriam se dado ao trabalho de enviar ao jornal um ou mais dos comentários que analisamos aqui. 15 Nesse cadastro, o internauta deve preencher nome, e-mail e endereço residencial. O Globo manda em seguida uma senha de acesso que permite a leitura de reportagens no site e acesso às áreas de comentários de notícias e blogs, bem como o envio de contribuições à seção de jornalismo participativo Eu-Repórter.
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Depois de ler todos os comentários deixados, fizemos a opção metodológica de trabalhar com os 100 primeiros. Essa amostra nos ofereceu um bom material do ponto de vista qualitativo e, ao mesmo tempo, tem representatividade do ponto de vista quantitativo. O número redondo também facilitou a elaboração de um quadro-resumo dos registros de participação, conforme a classificação em oito temas16: • Demonstração de solidariedade e/ou pêsames pelo terremoto e/ ou a morte de Zilda Arns (37 comentários); • Críticas ao governo, à ação brasileira no Haiti ou à política em geral tomando a tragédia como gancho (23 comentários); • Críticas a (comentários de) outros leitores (16 comentários); • Comentários (não críticos) tecidos a partir de falas de outros leitores (6 comentários); • Críticas à matéria ou à imprensa em geral (6 comentários); • Críticas à Pastoral da Criança (6 comentários); • Elogio à ação brasileira no Haiti (2 comentários); • Outros (temas diversos, pouco relevantes para a discussão proposta, 2 comentários). Quando houve sobreposição de dois ou mais assuntos num mesmo comentário, optamos, a título de classificação, pelo que nos pareceu prevalecer, no contexto da discussão. Exemplo: se um leitor diz que Zilda Arns é uma grande mulher e faz disso um gancho para dizer que o terremoto deveria ter acontecido em Brasília, a matéria foi classificada na categoria que prevê críticas ao governo ou a políticos. A leitura desse material indica que boa parte dos leitores que registra um ou mais comentários em uma notícia lê não só a notícia de referência, mas também pelo menos uma parcela dos comentários que ela suscitou. Tanto que um percentual relevante de textos enviados (22%) tem como mote principal a fala de outro leitor. Essa constatação fortaleceu nossa disposição em encarar a área de comentários como uma espécie de prolongamento interativo da notícia, capaz de explicitar potencialidades, mas também limitações, da mídia eletrônica como arena pública de discussões. 16 A tabela completa de classificação de comentários, com exemplo de cada categoria, está nos Anexos deste artigo.
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Nesse contexto, a participação do leitor – figura colocada fora do foco da problemática da comunicação em geral e do jornalismo em particular até muito recentemente17 – é tomada como elemento capaz de suscitar um olhar mais complexo para a produção jornalística contemporânea. Depois do trabalho de leitura e classificação, buscamos, em Maingueneau, algumas chaves de interpretação que, junto a um aparato teórico da comunicação, nos auxiliam a dar maior materialidade à questão proposta, no contexto de uma discussão maior sobre a contribuição dos leitores para a renovação do jornalismo. Uma questão posta é: até que ponto a participação do leitor, amplamente incentivada e acolhida no contexto dos meios eletrônicos, contribui para uma compreensão mais abrangente das notícias? Antes de iniciar essa análise textual, contudo, falaremos brevemente sobre o campo da Análise do Discurso, sempre procurando estabelecer um paralelo deste campo de estudos com o da Comunicação Social. 1 bREVE PERCURSo HiStÓRiCo-FiLoSÓFiCo Adotamos neste trabalho o pressuposto teórico de que, para interpretar um texto, não importam a organização textual em si nem a situação particular de comunicação, mas a associação entre as duas coisas. Avaliar essa conjugação é, para Maingueneau (2008), a melhor maneira de ver emergir, do texto, a complexidade das relações entre sentido e contexto. No universo da comunicação, corresponde a dizer que não basta analisar o conteúdo de uma mensagem, mas também não adianta se fixar no processo de emissão-recepção. Para entender a comunicação como processo complexo, esse conjunto de elementos deve ser levado em conta considerando micro e macro: mensagem, contexto genérico e detalhes da situação particular de comunicação. Nem sempre se pensou assim. Refletindo um paradigma que tomava as ciências exatas como modelo e a linguagem como aparato 17 Como aponta Sousa (2002), o leitor só é valorizado no campo da Comunicação Social como vetor importante do processo comunicativo no fim dos anos 1980, com os Estudos de Recepção.
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capaz de transmitir conteúdos transparentes, as primeiras teorias da comunicação, formuladas no início do século XX, valorizaram ora a mensagem em si, ora o modo de tornar sua emissão mais eficaz. Nas teorias da linguagem e da representação, prevaleceu por muito tempo a ideia de que cada enunciado era portador de um sentido estável que poderia ser interpretado por qualquer pessoa dotada do mesmo código linguístico do emissor. Guilherme Nery Atem18 divide essas teorias em quatro grandes fases: 1. Num primeiro momento, os estudos deixaram as questões de ordem metafísica e se voltaram para a busca de uma estrutura lógica da linguagem. Destacaram-se no período autores como Gottlob Frege (1872-1925), George Edward Moore (1848-1958) e Bertrand Russel (1872-1970). 2. Em outra fase, houve o aprofundamento da procura de uma estrutura lógica transparente que procurava dar conta do real. A matemática é tomada como modelo de ciência. Pensadores como o próprio Russel, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e Moritz Schlick (1882-1936), entre outros, criam o chamado positivismo lógico, que buscava encontrar as formas lógicas da linguagem “perfeita”. 3. Nessa fase se dá a chamada virada pragmática, que corresponde à segunda fase do pensamento de Wittgenstein. A marca é a publicação do livro Investigações filosóficas, de 1953. O filósofo começa a duvidar de que a busca da precisão absoluta garante o conhecimento verdadeiro. Wittgenstein passa a se preocupar com os jogos de linguagem19 que se dão durante relações humanas concretas. O jogo de xadrez é tomado como metáfora para pensar a natureza da linguagem: uma peça importa dependendo do lugar que ocupa no tabuleiro numa jogada específica. Do 18 Anotações tomadas no curso de Teorias da Análise do Discurso, ministrado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense no segundo semestre de 2009. 19 Por jogos de linguagem o autor entende a multiplicidade de ferramentas linguísticas e seus modos de emprego (BUENO; PEREIRA, in REZENDE, 2001, p. 250).
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mesmo modo, o significado de uma palavra depende do uso que fazemos em dada situação. 4. Ampliação e aprofundamento da pragmática. Estudiosos como Gilbert Ryle (1910-1976) e John Austin (1911-1960) valorizam a linguagem cotidiana e voltam a dar importância, nos estudos da linguagem, a questões de ordem subjetiva. A expressão Análise do Discurso surge em 1952, usada pelo linguista norte-americano Zelig Harris, mas só passa a designar um novo campo teórico nos anos 1960, com outro filósofo, de inspiração marxista, o francês Michel Pêcheux. Para ele, se a ideologia está inscrita na língua, como concluiu Mikhail Bakhtin anos antes, é necessário expor os pontos de contato entre ambas. Segundo Pêcheux, a língua não paira sobre a história; ela é história, e se constitui historicamente. Com o filósofo, acontece um deslocamento de foco no campo da linguagem. As atenções antes voltadas para a língua, com seus enunciados possíveis, recaem sobre o discurso, com suas enunciações necessárias e contingentes. Desde então alguns princípios da Análise do Discurso se revelaram constantes: • A fala é tão social e coletiva quanto a língua e, no contexto de análise, importa tanto quanto ela; • O foco das análises está nas sintaxes particulares e não na língua universal; • O saber linguístico é associado ao saber histórico; • As análises utilizam corpora concretos, datados no espaço e no tempo; • A interdiscursividade (relação de um discurso com outros que o sucederam) sobressai à intradiscursividade (o discurso no discurso, a partir do qual o conhecimento acumulado do sujeito permite a construção de múltiplos efeitos de sentido); • São ressaltadas as regras sociais, coletivas, das formações discursivas; • Os discursos são tidos como opacos e não óbvios e transparentes; • O enunciado não pode ser isolado do momento de sua enunciação, nem de suas condições de produção.
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Convém destacar que, em Maingueneau, também está presente a ideia sugerida ainda por Barthes (2004), Eco (1986, 1976) e Foucault (2006) – de que todo discurso é formado de discursos anteriores que possibilitaram sua enunciação. Para ele, o intertexto de um discurso revela com quais textos anteriores ele dialoga, num determinado universo discursivo. Os sujeitos – no caso dos textos que vamos analisar, o jornalista e seus leitores – são chamados a se expressar dentro de determinado sistema de restrições semânticas. A Análise do Discurso sofre grande influência do filósofo russo marxista Mikhail Bakhtin. Em Marxismo e a filosofia da linguagem20, de 1929, ele afirmou a natureza irredutivelmente filosófica dos signos linguísticos. Para Bakhtin, os permanentes jogos de signos da e na sociedade carregavam intensas lutas de classes codificadas. “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 1992, p. 41). Bakhtin postula que os sistemas de signos servem para expressar ideologias e, ao mesmo tempo, são moldados por elas. Sua proposta é pensar as relações concretas entre linguagem e sociedade. Michel Foucault também dá uma contribuição fundamental nesse percurso teórico, ao postular, em As palavras e as coisas, em 1966, que “os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar” (FOUCAULT, 1995). Foucault enfatiza que o homem enquadra cognitivamente o mundo conforme “as condições de possibilidade” de que dispõe. Tais ideias foram fundamentais para a construção da Análise do Discurso como disciplina que toma a linguagem como algo opaco, capaz de transmitir mensagens cujo sentido não está dado, mas é construído pelo olhar. Maingueneau fala da Análise do Discurso como teoria constituída por uma dualidade da linguagem: ao mesmo tempo opaca e atravessada por embates subjetivos e sociais. Não cabe propriamen20 Na época, o livro foi publicado como de autoria de V. N. Volochínov, discípulo de Bakhtin.
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te desvendar, nos textos analisados, um sentido oculto único, mas pistas de sentidos possíveis, em determinado contexto de interpretação. 2 ANÁLiSE Como se vê, enunciar não é somente expressar ideias, é também tentar construir e legitimar um quadro de enunciação (MAINGUENEAU, 2008, p. 93).
Como vimos, o contexto é uma das mais importantes chaves de interpretação de um texto, para Maingueneau. Em diversos exemplos (MAINGUENEAU, 2008), o autor demonstra que, mesmo para os enunciados aparentemente mais simples e diretos, a interpretação varia conforme a situação. Uma placa onde se lê em letras vermelhas de imprensa a expressão “É proibido fumar”, posta na sala de espera de uma repartição pública, será lida como uma interdição, mas o mesmo dizer escrito na parede em caneta hidrocor não será levado tão a sério. O contexto está relacionado ao momento e ao lugar físico da enunciação, mas também ao suporte – nesse caso, uma placa “séria” ou um dizer escrito em hidrocor. Também tem ligação com os saberes anteriores ao momento da enunciação – no exemplo, o conhecimento do formato dos avisos de interdições. Os textos que analisamos compõem o noticiário online do principal jornal do Rio de Janeiro, com uma circulação média de 281 mil exemplares impressos e uma das maiores audiências, entre os jornais online. Um veículo informativo tradicional, pertencente ao mais poderoso grupo midiático do país, com atuação em tevê, rádio, mídia impressa e internet, sendo monopolista em algumas delas. Isso significa que o modo de dizer desse veículo é tido como referência no fazer jornalístico nacional; desnaturalizá-lo não é tarefa fácil para esta pesquisadora que é também jornalista. O texto da matéria principal analisada é bastante convencional, redigido nos padrões do jornalismo hegemônico. Em função da construção histórica da atividade jornalística no país21, dessa leitura a princípio 21 Ribeiro (2003) e Oliveira (2005) analisam a legitimação do jornalismo como fala autorizada perante a sociedade brasileira nos anos 1950.
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se espera uma narração objetiva e embasada do que é noticiado. O fato em questão, por sua vez, é uma catástrofe de grandes proporções provocada por um fenômeno geológico inesperado – tema de grande interesse jornalístico, dentro de um conjunto vigente de critérios de noticiabilidade22. Sobre o contexto de onde parte o olhar dos leitores para esse acontecimento internacional nos parece relevante destacar a ocorrência, menos de duas semanas antes, no Réveillon de 2009 para 2010, de tempestades que deixaram mais de 100 mortos e milhares de desabrigados em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, e em dezenas de municípios de São Paulo. Embora as perdas decorrentes das chuvas no Brasil não sejam comparáveis às do terremoto, acreditamos na hipótese de que os problemas locais, gerados também por um evento imponderável, podem ter gerado uma sensação de maior proximidade e solidariedade com a população haitiana, entre os leitores do site de O Globo. Palco do mais violento terremoto das últimas décadas, o Haiti não costuma aparecer na mídia brasileira, exceto quando a notícia envolve alguma ação nacional no país – envio de tropas, ajuda humanitária ou visita oficial, por exemplo. Ou quando ocorrem catástrofes ou ainda eventos políticos dramáticos, como o golpe militar que, em 2004, destituiu pela segunda vez Jean-Bertrand Aristide do cargo de presidente do país. No Brasil, o Haiti costuma ser lembrado como país subdesenvolvido, explorado, maltratado ao extremo. “Pense no Haiti, reze pelo Haiti. O Haiti é aqui”, canta o compositor Caetano Veloso, para depois emendar com o verso “O Haiti não é aqui”23. No seu pior, está dito no subtexto da canção, não se esqueçam de que o Brasil se parece com o Haiti. É como se Caetano dissesse: cidadão brasileiro, não fique aliviado de não estar no Haiti, pois nossos problemas não são tão diferentes dos deles. Por definição, noticiabilidade é o conjunto de critérios que determinam se um assunto vai ou não virar notícia. Segundo Traquina (2002), os principais critérios de noticiabilidade são: morte, notoriedade, proximidade (tanto geográfica como cultural), relevância, novidade, atualidade, notabilidade, o inesperado, conflito (físico ou simbólico), infração. 23 A letra completa pode ser acessada em http://letras.terra.com.br/caetanoveloso/44730/. 22
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O Haiti foi dominado primeiro pela Espanha, que “descobriu” suas terras em 1492, e depois pela França, a quem os espanhóis cederam o território em 1697. Ainda sofreu o domínio dos Estados Unidos – que ocuparam o país em 1915 e mais tarde apoiaram o governo do presidente François Duvalier. Papa Doc, como era chamado Duvalier, se tornou conhecido mundialmente como o mais sanguinário ditador da América Latina. Ele se manteve no poder de 1957 a 1971, ano de sua morte. A primeira eleição livre do país, em 1990, foi vencida pelo padre salesiano Jean-Bertrand Aristide, ligado à teologia da libertação, mas apenas um ano depois ele foi deposto por um golpe militar. Retornou ao poder em 1994, com apoio de forças internacionais, mas não conseguiu livrar o país da instabilidade política e de seus graves problemas sociais. Desde 2004, quando foi deposto pela segunda vez, desta vez acusado de fraude eleitoral, a Organização das Nações Unidas (ONU) mantém forças de paz no Haiti. O Brasil é uma das 16 nações que participam da missão. É nesse contexto sociopolítico que ocorre o terremoto de 2010. Além de enviar contingente militar ao Haiti, o Brasil contribui com projetos de cunho social. A sanitarista Zilda Arns – fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança24 – estava no país em missão humanitária durante o terremoto. A presença do Brasil ali aumenta o apelo da cobertura midiática do terremoto e justifica a opção do jornal por abrir a matéria sobre o terremoto falando da morte de Zilda Arns e de militares brasileiros em missão. O texto em questão destaca ainda o desaparecimento do funcionário da ONU Luiz Carlos da Costa – cuja morte foi confirmada mais tarde. Essa escolha de lead 25 termina por funcionar como um modo de valorização da política externa nacional – o que, como veremos, será contestado por alguns leitores – e da própria contribuição de brasileiros à recuperação do país. Mesmo sem utilizar adjetivos para falar de Zilda Arns e dos outros brasileiros mortos, o texto contribui para a construção de uma imagem de heróis para esses personagens. A 24 A Pastoral da Criança é um dos organismos de ação social da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. 25 O lead é o primeiro parágrafo de uma notícia impressa no jornalismo e, por definição, deve conter as principais informações sobre a matéria: quem fez o que, como, onde, quando e por quê.
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seguir, o primeiro parágrafo da matéria. Os textos sublinhados são hiperlinks para outras matérias de O Globo. Zilda Arns e ao menos 11 militares brasileiros morrem após terremoto no Haiti; há muitos soldados desaparecidos RIO e BRASÍLIA – A fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns Neumann, de 75 anos, morreu no terremoto que atingiu na noite de terça-feira os arredores de Porto Príncipe, capital do Haiti. De acordo com o Ministério da Defesa, onze militares brasileiros morreram e vários outros ficaram feridos em decorrência do tremor de 7 graus na escala Richter. Em coletiva de imprensa, o chanceler Celso Amorim disse que trata como desaparecido o brasileiro Luiz Carlos da Costa, que ocupa o segundo maior cargo da representação da ONU (Minustah) no Haiti. Costa é atualmente o brasileiro com posto mais alto nas Nações Unidas. O presidente do Haiti, Rene Preval, afirmou que o chefe da missão de paz da ONU no país, o tunisiano Hedi Annabi, morreu no terremoto, mas a ONU ainda não confirma. Mais cedo, o governo haitiano chegou a divulgar que os mortos poderiam chegar a centenas de milhares. Mais tarde, no entanto, o presidente do Haiti afirmou que as vítimas do terremoto devem ficar entre 30 e 50 mil (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010).
Os brasileiros mortos são identificados no texto pela nobreza de suas funções. A sanitarista Zilda Arns é logo apresentada como fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança – instituição que, na matéria, dispensa maiores apresentações. Sua idade é citada – o que é muito incomum entre matérias do veículo. Nossa hipótese é que isso acontece porque, no caso, o fato de ela ter 75 anos e estar trabalhando no Haiti em missão humanitária reforça sua boa imagem. Menos conhecido no Brasil, o funcionário da ONU Luiz Carlos da Costa é primeiro identificado como “brasileiro” e, logo depois, como “ocupante do segundo maior cargo da representação da ONU”. No mesmo parágrafo, novamente é mencionada sua nacionalidade. Só então a matéria fala da morte, ainda não confirmada, do chefe da missão da ONU no país e traz a estimativa de haitianos mortos em função do terremoto. Cabe chamar a atenção para o fato de que o texto não é assinado. No cabeçalho, apenas a indicação de que foi redigido em conjunto
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pelas redações do jornal no Rio e em Brasília, provavelmente com a ajuda de agências internacionais de notícias (embora isso não seja explicitado no texto) 26. Quem chancela o material é o próprio veículo que o ancora – que supostamente apurou esse material de fonte confiável, checou informações e as editou conforme um conjunto de procedimentos-padrão do universo jornalístico. São normas implícitas que estabelecem a credibilidade de um veículo de imprensa. No mesmo site, a crítica sobre um programa humorístico, por exemplo, alteraria o contexto em questão, por envolver um outro tipo de contrato de leitura27. Afinal, a crítica é um tipo de conteúdo sem o mesmo compromisso com a objetividade; prevê a opinião como elemento constitutivo. E o tema humor prevê certa dose de ironia e brincadeira. Tudo muito bem dosado, para evitar o estranhamento do leitor. Maingueneau explica que o conhecimento de um conjunto de “regras do jogo” é fundamental para que o leitor (que ele chama também de destinatário e, preferencialmente, de coenunciador) consiga interpretar uma enunciação. Isso se faz por um acordo tácito que remonta a saberes mutuamente conhecidos. Essas regras permitem também a transmissão de conteúdos implícitos. Num exemplo citado pelo autor, uma placa dizendo “não sonhar”, posta na sala de espera de um guru indiano, provocaria estranheza e levaria o visitante a buscar ali uma interpretação distinta da convencional. O contexto em que se dão os comentários dos leitores é também diferente, por fazer parte de um espaço com regras diferentes (retomaremos o tema no próximo item). De alguém que deixa seu comentário em uma matéria não se espera apuração, checagem ou objetividade narrativa. O leitor tem espaço para dizer o que quer, seguindo um conjunto bastante flexível de normas. São vetados apenas excessos como insultos e palavrões28. O Globo costuma recorrer a agências internacionais como suporte para a cobertura de fatos em países onde não mantém correspondentes internacionais. 27 Usamos “contrato de leitura” nos termos de Eco (1986). 28 Abaixo do espaço de cada comentário que um leitor envia está escrito: “Normas para publicação: acusações insultuosas, palavrões e comentários em desacordo com o tema da notícia serão despublicados e seus autores poderão ter o envio de comentários bloqueado”. 26
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As participações entram no site sem filtragem prévia e, quando infringem as regras, são excluídas por recomendação de um profissional encarregado dessa leitura ou dos próprios leitores. Nesse contrato informal, leitores não têm a mesma credibilidade que os jornalistas. O jornal publica o que dizem, contanto que não haja excessos; está implícito que não tem compromisso com aquela informação. O nível de compromisso do comentarista de um texto para com seu próprio comentário também é baixo, já que ele pode registrar sua participação usando inclusive nome falso – o que é muito comum. Isso não quer dizer que os leitores não achem o que dizem. A leitura desses comentários nos faz crer, ao contrário, que eles têm grande convicção das opiniões que registram. O anonimato os libera de certas regras de polidez e pode levá-los, curiosamente, a dizer exatamente o que queiram, sem constrangimentos sociais. Um exemplo hipotético: um funcionário público, João, tem inclinação política contrária à de seu chefe imediato. Embora ele seja concursado, portanto não sujeito a demissão sem justa causa, seu bom relacionamento com o superior lhe garante pequenos benefícios que fazem diferença no seu dia a dia, como tirar férias durante os meses de férias do filho ou sair alguns minutos mais cedo no dia em que faz um curso extra. Não há como negar que a assimetria de poder colocaria João em desvantagem num eventual embate entre os dois, embora não exista uma regra que diga que um funcionário não deve discordar de seu superior. João mantém, portanto, uma relação cuidadosa com o chefe, e evita a todo custo os temas políticos – que sabidamente despertam a paixão de ambos. Fala no assunto apenas quando se impõe situação inevitável e, nesses casos, toma bastante cuidado ao expressar suas opiniões. Sendo tão cauteloso, João não usa o próprio nome quando tem vontade de deixar um comentário num site jornalístico como O Globo. Escolhe um pseudônimo: “funcionariopadrão”, por exemplo. Desse modo, pode extravasar o que pensa com toda a veemência deixada de lado no cotidiano. Entre as chamadas leis do discurso, Maingueneau cita a submissão a um conjunto de regras de polidez. Os fenômenos da polidez foram estudados por Brown e Levinson (1987) com inspiração na chamada teoria das faces, formulada pelo sociólogo americano E. Goffman
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(1974). Nesse modelo, considera-se que todo indivíduo possui uma face negativa, que corresponde ao território de sua intimidade, e uma face positiva, relacionada à boa imagem social que quer deixar na relação com o outro. Uma enunciação pressupõe, portanto, no mínimo quatro faces – a positiva e a negativa de cada um dos indivíduos que interagem; no caso da interação que interpretamos, estão envolvidas a face negativa e a positiva do jornal e de cada um dos leitores que deixam comentários no site. Maingueneau chama a atenção para o fato de que todo ato de enunciação pode constituir uma ameaça a uma ou várias dessas faces: Dar uma ordem valoriza a face positiva do locutor, desvalorizando a do interlocutor; dirigir a palavra a um desconhecido ameaça a face negativa do destinatário (é uma intrusão no seu território), mas também a face positiva do locutor (que pode ser visto como sendo excessivamente desinibido) (MAINGUENEAU, 2008, p. 38).
Para Maingueneau (2008), visando preservar suas próprias faces e as de seus interlocutores, as pessoas seriam levadas a buscar um acordo tácito, a negociar. Há um conjunto de estratégias discursivas que podem ser utilizadas com a finalidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre exigências contraditórias. Na matéria que analisamos, como em outros produtos jornalísticos, não há uma ameaça à face positiva dos leitores. Diferentemente do que ocorre no texto publicitário, que de certo modo invade o espaço do destinatário, o texto jornalístico é antecipadamente legitimado – o próprio leitor o procura: compra o jornal, sintoniza o telejornal, busca um site informativo. O jornal, por sua vez, procura apresentar-se como quem responde a demandas de seus leitores. O próprio modo narrativo do jornalismo impresso fortalece essa face positiva, à medida que valoriza a informação que oferece com um distanciamento característico de quem fala a um público heterogêneo. Já os leitores, como vimos, não precisam assumir o mesmo compromisso. A leitura da área de comentários demonstra que, ali, o recurso da polidez é utilizado de modo bem mais frouxo do que em outros tipos de interação. Tampouco notamos a disposição de negociar que Maingueneau acredita existir.
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Boa parte dos leitores não se sente constrangida em criticar abertamente seus pares, apontar falhas na reportagem ou criticar o governo, por exemplo. Em geral, os que claramente não usam os próprios nomes são os menos preocupados em expor a própria “face negativa” e preservar a “face positiva” do interlocutor. Como no exemplo a seguir em que, além de insinuar que um leitor tem problemas sexuais, uma leitora manda, em inglês, que ele cale a boca. A troca de mensagens é transcrita abaixo, sem correção textual: Segundo relatório da Pastoral, cerca de 71% dos recursos sai do Ministério da Saúde (leia-se, dinheiro de impostos). O que a Pastoral faz (como quase todas as obras pilantrópicas) é dar esmola com o dinheiro dos outros. Não sou contra projetos que reduzam a miséria. Mas sou contra o governo bancar projetos de instituições religiosas que só servem como propaganda destas multimilionárias intituições (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “Daniel Barbosa Reynaldo”). Daniel Reynaldo: qual o seu problema? Erétil? O que o senhor tem feito de útil pelos seus semelhantes? Nada, aposto. Então, shut up! (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “Misbel”, grifo nosso).
No comentário que se segue, o leitor “Lundendorff” faz de uma expressão supostamente pertencente ao repertório da educação – meu caro – um recurso para ironizar uma fala em que o leitor “dionísio rocha” comparou o terremoto no Haiti a desastres naturais no Japão. Dizer que o outro “precisa ler mais sobre a história do Japão” equivale a sustentar que ele está dando opiniões levianas, sem ter conhecimento do que diz. O maior sinal da incompetência de um ser humano é saber como ele encara as dificuldades da vida. Atribuir o atraso de um país à natureza, ao passado histórico e até a língua que falam é de estupidez sem igual. O Japão, por exemplo, foi vítima da exploração colonial, arrasado na IIGM, e sofre com terremotos e tufões quase mensalmente. Entretanto, é uma das maiores potências mundiais. Portanto, O POVO HAITIANO, infelizmente, é o maior culpado pela sua pobreza (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “dionisio rocha”).
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O Japão, meu caro, jamais foi vítima de exploração colonial. Você precisa ler mais sobre a história do Japão antes de colocar certas coisas (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “Lundendorff”).
Na fala que reproduzimos a seguir, o leitor que assina como “Nelson Maia” chama o leitor “ByeByeBrasil”, que deixara um comentário de crítica ao governo, de “reclamão”, “mauricinho de pijama”, “sabichão” e “mauriçola preconceituoso”, entre outros adjetivos. Algo inimaginável entre as regras de polidez vigentes em qualquer espaço mais oficial do jornalismo. A seguir, o diálogo entre os dois: O mais tragicomico disto é que os nossos srs da guerra se apresentaram imediatamente a dar noticias, se dizendo informados, que nada havia acontecido com nenhum brasileiro. Os nossos ministros e o presidente só servem para comedia pastelao, e olhe lá. Somos um povo, gracas a Deus nao todo, com uma falta de senso de ridiculo que chega a dar dó. O pior é a empafia com que se apresentam nessas ocasioes (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “ByeByeBrasil”). ByeByeBrasil, Somos de fato um povo ridículo se colocamos a lupa sobre sujeitinhos reclamões como vc. Sua rabugice típica de mauricinho de pijama é capaz de colocar a culpa do terremoto no governo brasileiro. Confessa aí que vc até tentou encontrar um gancho pra isso, vai sabichão. Cada uma. A casa cai no Haiti e o mauriçola preconceituoso não perde a viagem pra destilar rancor e frustração (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “Nelson Maia”, grifos nossos).
Os comentários dos leitores explicitam ainda um dos principais postulados da Análise do Discurso: que um mesmo conteúdo pode ser tomado de modo radicalmente distinto por pessoas diferentes. Cada leitor mobiliza seus conhecimentos anteriores, seu repertório de experiências, e lê, numa mesma mensagem, uma mensagem diferente. A leitura do texto sobre terremoto a uns evoca solidariedade para com o povo haitiano e/ou a família dos brasileiros mortos no terremoto; a outros, o desejo de criticar o governo; a outro grupo, o desejo de elogiar a ação brasileira no episódio, só para citar algumas possibilidades.
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Na matéria sobre o terremoto, não há indicadores que levem o leitor a duvidar do que está dito ali. Ao contrário, como vimos, o texto é construído para legitimar a própria enunciação. As fontes de informação são constantemente explicitadas, como nas expressões: “De acordo com o Ministério da Defesa”, “em coletiva de imprensa, o chanceler Celso Amorim disse” e “O presidente do Haiti, René Preval, afirmou que”, entre outras. Ainda conforme vimos, o texto jornalístico tem por regra se apresentar como algo a ser levado a sério – e com a notícia em questão não é diferente. O que ocorre de curioso, neste caso, é o fato de ainda assim o leitor muitas vezes questionar a legitimidade da imprensa. Exemplos: Eu nao sabia que o Haiti e um pais vizinho do Brasil. Acho que nao estudei, direito, geografia. Caramba, como sou burro!!! ou e o reporter???? (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “olivio pafuncio”). O título da matéria é inadequado e evidencia despreparo do Redator, pois sugere que Zilda Arns não é brasileira. Seria mais adequado: “Cinco brasileiros, inclusive Zilda Arns, morrem...” É preciso selecionar e capacitar melhor os redatores, pois há muitos desses casos (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por “Roberto Lopes de Abreu”).
A primeira fala abusa da ironia para apontar um erro – que não encontramos na matéria, portanto supomos que foi corrigido. O leitor diz que não sabia que o Brasil é vizinho do Haiti porque não estudou direito e é burro. É o mesmo que xingar o redator. O rigor que o leitor demonstra com o conhecimento geográfico não está presente em sua própria escrita, que registra “é” e “país” sem acento, “não” sem til, “ou” depois da exclamação sem caixa alta e “repórter” sem acento. O segundo comentário, assinado por “Roberto Lopes de Abreu”, que não sabemos se é nome real ou fictício, aponta o erro em termos mais respeitosos, embora duros. As chamadas leis do discurso são adaptadas ao gênero discursivo em que se inserem. Como exemplifica Maingueneau (2008), é possível insultar o público numa peça de teatro, mas não numa conferência. Do mesmo modo, vimos que é aceitável que um leitor critique um
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jornalista na área de comentários de notícia. A mesma postura será vista com bem mais estranhamento num programa sério de entrevistas com a participação do público. Ora, se a regra de participação na área de comentários de um site diz que não são permitidas “acusações insultuosas, palavrões e comentários em desacordo com o tema da notícia”, há uma permissividade implícita quanto a normas vigentes em outros contextos do jornalismo. As críticas minimamente educadas a governos, fontes, outros leitores, procedimentos jornalísticos etc. estão livres. Mais do que isso, são esperadas. Para Maingueneau, certos rótulos podem ajudar na interpretação, embora não devam ser tomados de modo absoluto. Ele ressalta que há diferentes tipologias, algumas bastante abstratas. Umas se apresentam pela função de linguagem que exercem predominantemente (emotiva, fática, poética etc.), outras pela função social que desempenham (lúdica, religiosa etc.) – e muitas vezes é difícil traçar uma fronteira nítida entre elas. Existem ainda rótulos que se referem a certos dispositivos de comunicação que aparecem quando certas condições sócio-históricas estão presentes. É o caso de certos gêneros jornalísticos, como o fait divers, o talk show e o editorial – para citar alguns exemplos usados pelo teórico. Para ele, “é possível caracterizar uma sociedade pelos gêneros de discurso que ela torna possível e que a tornam possível” (MAINGUENEAU, 2008, p. 61). Alguns autores empregam indiferentemente gênero e tipo de discurso, mas Maingueneau prefere distingui-los. Para ele, os gêneros pertencem a certos tipos de discurso associados a setores de atividade social. O talk show, por exemplo, constitui um gênero de discurso no interior de um tipo de discurso televisivo que, por sua vez, está inserido num tipo ainda mais abrangente de discurso, que é o midiático – que engloba também as mídias radiofônica, impressa etc. Neste trabalho, tomaremos tanto a notícia de O Globo quanto os comentários que gerou como parte de um discurso midiático jornalístico, produzido para a web. Embora ambos estejam num jornal de internet, não é óbvia a opção de classificá-los como jornalísticos. Muitos profissionais e teóricos dirão que opinião e jornalismo não se misturam. Aqui nos arriscamos, contudo, a classificar as falas dos leitores
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também nessa tipologia, pela sua inserção numa discussão que diz respeito a um fato atual de interesse público tratado no âmbito de um veículo de comunicação reconhecido. Tudo isso num contexto em que as antes rígidas fronteiras da atividade têm sido postas em xeque pelo surgimento de novos meios que dificultam as classificações e os juízos definitivos. Quanto ao gênero, investimos na ideia de que pertencem ao gênero opinativo, enquanto o material produzido pelos jornalistas de O Globo será classificado como uma notícia internacional. Para Maingueneau, tão ou mais importante do que chegar a uma classificação discursiva é estar atento às competências de decodificação que um texto mobiliza: a competência enciclopédica, a competência genérica e a interação dessas duas competências. A competência enciclopédica de um indivíduo, também chamada de associativa, permite que ele mobilize um conjunto de conhecimentos fundamentais sobre o mundo. Conhecimentos que vão além dos da língua e que são básicos para a decodificação dos textos que acessa. A leitura da notícia sobre o terremoto pressupõe, por exemplo, o conhecimento do que seja um terremoto, bem como conhecimentos mínimos sobre o Haiti e os personagens envolvidos na história. Um pressuposto básico do jornalismo é que o leitor não tem obrigação de ter conhecimentos prévios sobre nenhum assunto tratado; ainda assim, há certo nível mínimo de conhecimentos para além do conhecimento da língua que é esperado para que uma matéria possa ser assimilada. Nos textos da internet, a realização desse tipo de associação tem ajuda do recurso tecnológico dos hiperlinks. Como explica Marcos Palácios (2002), a hipertextualidade é uma das principais características do texto da web 29. Permite que o leitor navegue facilmente em busca das informações de que necessita para a compreensão plena de um texto, que mobilize saberes anteriores dos quais não está seguro ou simplesmente não dispõe. Na matéria em questão há nove hiperlinks; só que todos eles para outras matérias de O Globo (o leitor pode complementar seus conhecimentos dentro do próprio site). Já a competência genérica, ou comunicativa, consiste em se comportar como convém nos múltiplos gêneros de discursos. Ele expli29 As outras características são instantaneidade, interatividade, memória, multimidialidade e personalização.
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ca que, mesmo não dominando certos gêneros, somos capazes de identificá-los e ter um comportamento adequado em relação a eles, desempenhando os papéis esperados. Aprendemos, em Maingueneau, que os enunciados são sustentados pela voz de um sujeito que está para além do texto – no caso da matéria em questão, não um jornalista em particular, mas uma voz que sustenta o próprio ethos jornalístico em seu compromisso de informar a sociedade sobre fatos de interesse público. A personalidade do enunciador revela-se por meio da própria enunciação. O texto de O Globo respeita seu contrato genérico e adota o ethos distanciado do jornalismo tradicional. Isso fica claro a partir do uso de recursos narrativos como a citação de fontes qualificadas como responsáveis por dados da matéria, como dissemos, o apagamento do narrador, e o uso das aspas e do recurso indireto para dar maior credibilidade a essas informações. Enfim, um conjunto de recursos que cumprem a finalidade de assegurar uma narrativa ao mesmo tempo objetiva e embasada dos fatos, sustentando a própria credibilidade jornalística. Quanto mais duvidosa uma informação, normalmente maiores são as chances de ela vir atribuída a uma fonte específica. Veja no trecho abaixo: (...) O governo haitiano estima que até 50 mil pessoas morreram no país. – Espero que isso não se confirme, porque espero que as pessoas tenham tido tempo de se salvar – disse o primeiro-ministro Jean-Max Bellerive. A primeira-dama, Elisabeth Debrosse Delatour, relatou que “a maior parte de Porto Príncipe está destruída” e que muitos prédios do governo desabaram (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010).
Nos textos dos leitores surge um comportamento radicalmente oposto – engajado e crítico. O leitor exerce plenamente seu direito a expressar opinião no espaço de comentários. Nesse caso, credibilidade não importa tanto quanto o próprio exercício da dobradinha crítica e opinião. O leitor não compete com o jornalismo em sua função de levar opinião imparcial ao público, mas o complementa ao ser capaz de promover um debate público que também é função pressuposta do jornalismo. E, nessa função, quem diz e como diz importa menos do que o que é dito.
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Algumas vezes, o nome que um leitor escolhe para assinar seus comentários acaba ajudando a compreendê-los. Por exemplo, o leitor “ByeByeBrasil”, cujo nome sugere disposição de deixar o país, praticamente só faz comentários críticos ao governo. De certo modo, seu nome ajuda a construir um ethos próprio, uma personalidade esperada. Já o leitor que assina “Anti-PSDB” (partido de oposição ao governo) costuma entrar em cena para defender a administração federal. E o leitor “direitaço” brinca com a própria inclinação política, também antigovernista. É curioso observar que os próprios leitores cobram uns dos outros certa coerência em relação aos personagens que criaram. Ao rebater um comentário em que o leitor “Coppernico” diz que o Japão não viveria consequências tão catastróficas se fosse palco de um terremoto das mesmas proporções, o leitor “Cardoso2009” diz, assim em caixa alta, como quem grita: “COPPERNICO, MUDE DE PSEUDÔNIMO. NÃO ENVERGONHE O CIENTISTA QUE TEVE ESTE NOME, ELE NÃO MERECE. VÁ SE TRATAR!” CoNSiDERAÇÕES FiNAiS Como pontuaremos a seguir, a análise da notícia do terremoto no Haiti no site de O Globo e do conjunto de comentários que ela despertou nos leva a ver as áreas de comentários como um espaço relevante do jornalismo na atualidade. Ali, no esforço por exprimir a própria opinião sobre um assunto e tomar contato com outros pontos de vista, os leitores têm a possibilidade de (re)elaborar o que leram e exercer sua capacidade crítica. • Mais da metade (51%) dos comentários analisados é marcada por algum tipo de crítica, seja ao governo (23%), à imprensa (6%), a outros leitores (16%) e até à Pastoral da Criança (6%) – que não costuma ter sua ação contestada na grande imprensa. • Do ponto de vista da linguagem utilizada, os leitores são bastante veementes, chegando muitas vezes a ferir as regras de polidez. • Os principais princípios narrativos do jornalismo, tais como objetividade e neutralidade, estão presentes na matéria analisada, mas não nos comentários dos leitores. Ao contrário, as falas deles são eminentemente opinativas e emotivas. Os leitores estão ali
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para dizer o que acharam e, ao fazer isso, abusam de uma série de elementos terminantemente proibidos na narrativa jornalística convencional, tais como: adjetivos, pontos de exclamação e interrogação, caixa alta (que por convenção, na internet, representa o grito), ironias e até mesmo xingamentos brandos (como “mauricinho de pijama” e “sabichão”), já que os pesados não passam pelo filtro censor do site. Fica claro que o leitor não assimila, no discurso que produz, o modo de narrar do jornalismo convencional. • Diferenças no uso desses recursos textuais explicitam que jornalistas e leitores seguem regras diferentes, nos diferentes espaços de enunciação em que estão inscritos. Do mesmo modo, assumem diferentes ethos para legitimar seus discursos. • Os papéis que exercem também são muito distintos. Os leitores podem até criticar os jornalistas, mas não fazem de sua participação uma forma de concorrência. Não estão ali para informar nada a ninguém, mas para opinar e debater. Seu papel é complementar. Essa disposição ao debate fica clara pelo grande número de comentários tecidos a partir das falas de outros leitores. • A emoção dos leitores aparece também nas muitas falas lamentando o terremoto e a morte de Zilda Arns (em 37% do total são o mote principal do comentário). Houve uma forte demonstração de solidariedade em relação ao acontecimento. Por outro lado, esse grande número de comentários pode ser resultado também da “heroicização” da personagem, detectada na notícia de O Globo. • A imagem do Haiti como nação fraca e desestruturada, que necessita ser acudida pelos esforços do Brasil e da ONU, aparece tanto na reportagem de O Globo, como nas falas dos leitores. Ela aparece mesmo nas falas dos nove leitores que se mostraram contrários à ação brasileira no país. Para cinco deles o argumento central da inadequação é a falta de sentido de ajudar outro país, quando internamente há tantos problemas (trechos de comentários: “o que o Brasil foi fazer lá com tanta miséria por aqui”; “vai fazer caridade com o imposto dos outros”). Três leitores associam a ação do governo no Haiti à intenção brasileira de conseguir um assento no Conselho de Segurança da ONU (trechos de comentários: “Quer assento no conselho da ONU? Constrói uns 400 mísseis que eles abrem lugar na mesa rapidinho”).
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Retomando nossa indagação inicial, sobre se a participação do leitor contribui para uma compreensão mais abrangente do noticiário online, parece-nos que, mesmo nos casos em que o leitor registra opiniões superficiais ou aparentemente pouco relevantes nas áreas de comentários de notícias, há uma inclinação favorável nesse sentido. Sabemos que nem todos os leitores acessam as áreas de comentários e, entre os que acessam, nem todos participam. A análise desses espaços também indica que há os que registram suas falas sem muita preocupação em ler e/ou interagir com as demais. Por outro lado, é perceptível que há um número relevante de leitores engajados em participar do processo interativo por meio do diálogo. Acreditamos que o próprio movimento de, após concluir a leitura de uma notícia – e tendo tido a possibilidade de navegar nos hiperlinks indicados consultando arquivos de memória e conteúdos multimídia –, iniciar uma segunda leitura sobre o que pensam os outros internautas tende a aprofundar a relação estabelecida com o texto inicial e com o próprio veículo. Esse aprofundamento tende a ser maior nos casos em que há diálogo e contraposição de opinões bem fundamentadas e menor nos casos em que os comentários deixados se limitam aos registros mais simplórios (no caso analisado, aqueles que apenas lamentam a morte de Zilda Arns). Isso não quer dizer que mesmo os mais despretensiosos não tenham relevância do ponto de vista dessa relação travada com a notícia. Aprendemos com autores como Eco (1976) e Barthes (2004) que é no processo de leitura que se dá a significação de um texto, variável conforme o repertório de cada um, como nos lembra também Maingueneau (2008). A observação dos comentários de leitores explicita essas diferenças no modo como uma mesma notícia é interpretada por indivíduos distintos e, ao mesmo tempo, aponta para os diversos modos de se lidar com ela. Essa pluralidade tende a contribuir, a nosso ver, para fazer do jornalismo da internet um espaço público potencialmente ampliado, em relação ao estabelecido em veículos da mídia impressa que, até por impossibilidade tecnológica, não têm como acolher do mesmo modo a participação do leitor contemporâneo, cada vez mais ávido por participar ativamente do processo comunicativo.
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ANEXoS 1 CLASSiFiCAÇÃo DE ComENtÁRioS – tAbULAÇÃo E EXEmPLoS Classificações
Quantidade total de participações
Exemplos (textos literais dos leitores, sem correções)
Leitores lamentam o terremoto e/ou a morte de zilda Arns
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Crítica ao governo, sua ação no Haiti ou à política em geral
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Críticas a (comentários de) outros leitores
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Comentários (não críticos) a respeito de comentários de outros leitores
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“Foram numa missão preparados para um inimigo e tombaram por outro inimigo da humanidade. Sem chances de defesa. Que suas famílias possam superar logo essa dor e seguir suas vidas em paz. brasil. Acima de tudo!” (Enviado por “orcca”) “zilda Arns é realmente uma grande perda para o país. Fará muita falta.” (Enviado por “ViVAobRASiL”) “Pergunta o que não quer calar. o que diabos o brasil esta fazendo naquele fim de mundo? Se quer combater a violência ou fazer lindas obras sociais pode fazer aqui mesmo. Pois o que não no brasil é miséria e violência.” (Enviado por “Arcanjo13”) “zilda Arns.....? que perda! E em brasilia nenhum tremorzinho?” (Enviado por “Carmendebizet”) “Querer comparar a milenar cultura japonesa com a violentada cultura haitiana é de uma ingenuidade ainda maior meu caro dionísio.” (Enviado por “bixudepe”) “Geraldo da Silva Vilas boas 13/01/2010 - 11h 49m Concordo com você, vivemos um mundo que tecnologicamente é capaz de prever e defender-se bem de desastres naturais como os terremotos. mas para isto é preciso investimento e respeito político pelo povo. isto não existe no Haiti e em vários lugares do mundo. É a pobreza e a corrupção que potencializa tragédias de todos os tipos.” (Enviado por “Ricardo badini Serodio”)
(37%)
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Crítica à matéria ou à imprensa
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Críticas à Pastoral da Criança
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“Eu não sabia que o Haiti e um pais vizinho do brasil. Acho que nao estudei, direito, geografia. Caramba, como sou burro!!! ou e o repórter????” (Enviado por “olivio pafuncio”) “a desgraça vende jornal!” (Enviado por “Lidia Soares Cardoso”) “Segundo relatório da Pastoral, cerca de 71% dos recursos sai do ministério da Saúde (leia-se, dinheiro de impostos). o que a Pastoral faz (como quase todas as obras pilantrópicas) é dar esmola com o dinheiro dos outros. Não sou contra projetos que reduzam a miséria. mas sou contra o governo bancar projetos de instituições religiosas que só servem como propaganda destas multimilionárias intituições.” (Enviado por “Daniel barbosa Reynaldo”) “Espero que o mundo olhe para o Haiti de forma efetiva e tome como exemplo o papel que o brasil já vem desempenhando naquele país.” (Enviado por “Loya”) “E AiNDA tEm GENtE QUE NÃo ACRDitA No AQUECimENto GLobAL, PoiS AS FoRÇAS DA NAtUREzA EStÃo ALtERADAS...” (Enviado por “roberto de carvalho”)
2 A ÍNtEGRA DA NotÍCiA ANALiSADA TRAGÉDIA Zilda Arns e ao menos 11 militares brasileiros morrem após terremoto no Haiti; há muitos soldados desaparecidos Publicada em 13/01/2010 às 20h23m O Globo Agências internacionais RIO e BRASÍLIA – A fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns Neumann, de 75 anos, morreu no terremoto que atingiu
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na noite de terça-feira os arredores de Porto Príncipe, capital do Haiti. De acordo com o Ministério da Defesa, onze militares brasileiros morreram e vários outros ficaram feridos em decorrência do tremor de 7 graus na escala Richter. Em coletiva de imprensa, o chanceler Celso Amorim disse que trata como desaparecido o brasileiro Luiz Carlos da Costa, que ocupa o segundo maior cargo da representação da ONU (Minustah) no Haiti. Costa é atualmente o brasileiro com posto mais alto nas Nações Unidas. O presidente do Haiti, Rene Preval, afirmou que o chefe da missão de paz da ONU no país, o tunisiano Hedi Annabi, morreu no terremoto, mas a ONU ainda não confirma. Mais cedo, o governo haitiano chegou a divulgar que os mortos poderiam chegar a centenas de milhares. Mais tarde, no entanto, o presidente do Haiti afirmou que as vítimas do terremoto devem ficar entre 30 e 50 mil. (Prédios do governo e de organizações internacionais no Haiti não resistiram aos tremores) O Brasil vai enviar até quinta-feira aviões com ajuda humanitária, carregados de alimentos, roupas e medicamentos. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, embarcou nesta quarta-feira. As aeronaves deverão aterrissar na República Dominicana, já que as condições do aeroporto de Porto Príncipe são péssimas, e seguir por terra ao Haiti. O governo haitiano estima que até 50 mil pessoas morreram no país. – Espero que isso não se confirme, porque espero que as pessoas tenham tido tempo de se salvar – disse o primeiro-ministro Jean-Max Bellerive. A primeira-dama, Elisabeth Debrosse Delatour, relatou que “a maior parte de Porto Príncipe está destruída” e que muitos prédios do governo desabaram. Leia também: A repercussão internacional da crise no Haiti Necessidades são infinitas, diz embaixador haitiano Terremoto no Haiti pode ter matado centenas de milhares de pessoas A médica pediatra e sanitarista viajara para o Haiti no último domingo a fim de realizar uma palestra na Conferência Nacional dos Religiosos do Caribe. Na quinta-feira, a brasileira teria um encontro com representantes de ONGs e, no dia seguinte, com o arcebispo de Porto Príncipe. No momento do tremor, Zilda estava fazendo uma vistoria, acompanhada de um tenente, em uma área da capital.
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A embaixatriz Roseana Teresa Aben-Athar, mulher do embaixador do Brasil no Haiti, foi quem encontrou o corpo de Zilda Arns. Ela localizou o corpo na manhã desta quarta-feira soterrado entre escombros de um prédio onde funcionava um serviço de ajuda humanitária. O corpo deve chegar ao Brasil nesta quinta-feira. Na terça-feira, Zilda teria deixado a embaixada em companhia de um militar e da assessora e ido até o prédio que desabou. Com o terromoto, uma laje do edifício caiu e atingiu a coordenadora da Pastoral da Criança. Ela não resistiu e morreu. O arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, disse que sua irmã “está no coração de Deus”, segundo a secretária pessoal do arcebispo, irmã Devanir. Míriam Leitão: ‘Zilda Arns combateu o bom combate pelas crianças’ (Pastoral de luto após morte de Zilda Arns) Entre os mortos – sete deles de um batalhão de Lorena (SP) – estão também: o primeiro-tenente Bruno Ribeiro Mário, o segundo-sargento Davi Ramos de Lima, o soldado Antonio José Anacleto, o soldado Tiago Anaya Detimermani, segundo-sargento Leonardo de Castro Carvalho, cabo Douglas Pedrotti Neckel, cabo Washington Luis de Souza Seraphin, cabo Arí Dirceu Fernandes Júnior, soldado Kleber da Silva Santos, subtenente Raniel Batista de Camargos e coronel Emilio Carlos Torres do Santos. Segundo o chanceler Celso Amorim disse que trata como desaparecido o brasileiro Luiz Carlos da Costa, que ocupa o segundo maior cargo da representação da ONU (Minustah) no Haiti. (Veja as imagens da destruição) Leia mais: Crises políticas e naturais assolam Haiti Os feridos confirmados até o momento são: o tenente-coronel Alexandre José Santos, da 1ª Brigada de Infantaria de Selva de Boa Vista, Roraima; o capitão Renan Rodrigues de Oliveira, do 6º Batalhão de Infantarias Leves de Caçapaba, São Paulo; o terceiro-sargento Danilo do Nascimento de Oliveira, do 29º Batalhão de Infantarias Leves de Campinas, São Paulo; o cabo Eugênio Pesaresi Netoiane, do 29º Batalhão de Infantarias Leves; e o cabo Welington Sopares Magalhães, do 5º Batalhão de Infantarias Leves. Militares brasileiros que servem na missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti estão desaparecidos. O ministério informa ainda que
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os brasileiros que participam da Minustah, como é conhecida a missão da ONU, passaram a madrugada desta quarta-feira no trabalho de resgate aos soterrados e ajuda à população local e autoridades haitianas. Ainda não se sabe quantas pessoas morreram, mas estima-se que milhares de pessoas não tenham resistido ao forte tremor. Prédio da ONU ruiu A sede da missão da ONU na capital ficou totalmente destruída com o abalo sísmico. De acordo com a entidade, pelo menos 14 pessoas morreram nas ruínas do prédio de cinco andares, 56 ficaram feridas e 150 ainda estão desaparecidas. Inicialmente, temia-se que todos que estavam no local estivessem mortos. O chefe da missão das Nações Unidas no Haiti, Hedi Annabi, ainda está desaparecido. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, viajou nesta quarta-feira para Porto Príncipe com militares e o embaixador do Brasil no Haiti, Ygor Kipman. Eles vão avaliar os danos causados pelo terremoto. O governo brasileiro está enfrentando dificuldades para obter informações, uma vez que os sistemas de telefonia fixa e móvel, além do abastecimento de energia elétrica, estão comprometidos. Por determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva serão enviados US$ 10 milhões como ajuda humanitária para o Haiti. (Sede da missão da ONU no Haiti sofreu graves danos; funcionários estão desaparecidos) Soldados de outros países também estão desaparecidos O Brasil, que lidera as tropas de paz da ONU no Haiti, participa da Minustah com 1.266 militares. O contingente total da missão é de 9.065 pessoas, sendo 7.031 militares, segundo dados de novembro. Segundo a mídia estatal da China, 8 soldados chineses da missão de paz morreram e outros 10 estão desaparecidos, depois que um prédio de cinco andares usado pela organização desabou. Soldados filipinos também estariam desaparecidos. A informação é do coronel Romeo Brawner Jr., das Forças Armadas das Filipinas. Mulher registra de cima o momento do terremoto. Assista! http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2010/01/13/zilda-arns-ao-menos-11militares-brasileiros-morrem-apos-terremoto-no-haiti-ha-muitos-soldadosdesaparecidos-915516437.asp
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obSERVAÇÕES SobRE A CHAmADA ‘MORTE DO AUTOR’ Paulo Cesar Duque-Estrada
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O presente artigo pretende desenvolver algumas considerações em torno de certos pressupostos básicos que dão sustentação ou justificam o tema da “morte do autor”. Tendo em vista a atualidade desse tema e as várias formas de resistência crítica manifestadas contra esse mesmo tema, as observações aqui desenvolvidas se desdobram em uma dupla direção: por um lado, elas procuram pôr em evidência um conjunto de pressupostos e procedimentos teóricos que configuram um certo ambiente intelectual em que muitos pensadores, malgrado suas respectivas diferenças, encontram-se de acordo em relação ao tema da “morte do autor”. Por outro lado, tenta-se também mostrar a inconsistência das argumentações críticas endereçadas ao referido tema. Palavras-chave: filosofia, crítica, morte do autor This present article intends to develop some considerations concerning some of the basic presuppositions supporting or justifying the theme of the “death of the author”. In view of the current relevance of this subject matter and the various forms of critical resistance against this very subject, the observations elaborated here unfold in two directions. On one side, they are aimed to shed some light on a certain number of assumptions and theoretical practices that shape a certain intellectual environment where many thinkers, despite their different backgrounds, find themselves in agreement regarding the theme of the “death of the author”. On the other side, they address the inconsistencies of critical arguments aimed at that same subject matter. Keywords: philosophy, critical, death of the author
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iNtRoDUÇÃo Proponho apresentar neste artigo algumas observações a respeito do que se convencionou chamar, a partir de certa linha ou, melhor, de certo ambiente de pensamento, de “morte do autor”. Trata-se de um tema cada vez mais presente, direta ou indiretamente, nas reflexões atuais sobre a produção de textos – com implicações que incidem diretamente sobre questões relacionadas ao problema do sentido, às diferentes formas de leitura, atravessadas pela já clássica oposição entre “relativismo” e “universalismo”, entre o paradigma da interpretação e o paradigma do método etc. – notadamente nos âmbitos da filosofia e da teoria literária. Talvez seja legítimo afirmar que o tema da “morte do autor” foi tratado pela primeira vez, enquanto tal, no âmbito da teoria literária, mais especificamente em um pequeno texto de Roland Barthes chamado “A morte do autor”. Pode-se dizer que esse texto, publicado em 1968 na revista Manteia, deve ser lido mais como uma espécie de manifesto, devido não somente à novidade que ele apresenta, como também à brevidade de sua argumentação. Vejamos como Barthes apresenta esse tema logo no início do seu texto: Na sua novela Sarrasine, Balzac, falando de um castrado disfarçado de mulher, escreve esta frase: “Era a mulher, com os seus medos súbitos, os seus caprichos sem razão, as suas perturbações instintivas, as suas audácias sem causa, as suas bravatas e a sua deliciosa delicadeza de sentimentos”. Quem fala assim? Será o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? Será o indivíduo Balzac, provido pela sua experiência pessoal de uma filosofia da mulher? Será o autor Balzac, professando ideias “literárias” sobre a feminilidade? Será a sabedoria universal? A psicologia romântica? Será para sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita é destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve (BARTHES, 1984, p. 49).
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Essa passagem do texto de Barthes sintetiza vários argumentos que, por um lado, irão contribuir decisivamente para a configuração de certo ambiente intelectual no qual várias linhas de pensamento, ainda que diferentes entre si, não deixarão de guardar uma afinidade em torno do tema da “morte do autor”; ao mesmo tempo em que, por outro lado, irão, igualmente, contribuir para a reunião de diferentes linhas de pensamento que se aglutinarão em torno de uma rejeição comum a, precisamente, esse mesmo tema da “morte do autor”. Podemos enumerar os vários argumentos implicados nesse embate intelectual como aqueles que versam, basicamente, sobre os seguintes temas: o desaparecimento do escritor; a autonomia do processo da escrita em relação à própria subjetividade do escritor, portanto, o desapossamento de si nas malhas da textualidade; o poder da linguagem de se organizar sem nenhuma intervenção subjetiva; a intertextualidade em lugar da subjetividade do sujeito no processo de produção de todo texto. Todos esses temas se desdobram a partir de uma linha divisória entre as argumentações afirmadoras ou contrárias à “morte do autor”, linha essa que se estende através de certas questões paradigmáticas como, por exemplo, as que são indicadas por Seán Burke: Quando um autor escreve ou pensa estar escrevendo, estaria ele, simultaneamente, sendo também escrito? (...) O autor é o produtor do texto ou o seu produto? Falamos a linguagem ou somos falados por ela? O autor reflete a cultura e a história ou, antes, é construído na e através da cultura e da história? (BURKE, 1995, p. xv)30.
No que se refere à crítica que se volta contra essa argumentação centrada na ideia de “morte do autor”, pode-se dizer que ela parece comportar um pressuposto humanista. Aqui e ali, trata-se sempre de algum tipo de defesa do Homem, já que a “morte do autor”, o seu desaparecimento ou a sua dissolução na ordem autônoma da escrita, vai significar, também e necessariamente, a morte do próprio valor “Homem”; o que é o caso, aliás, não só nos textos de Roland Barthes, mas também nos de Foucault, Derrida e muitos outros. A célebre e 30
Todas as traduções são minhas.
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polêmica frase que encerra o livro As palavras e as coisas, de Foucault, é emblemática a esse respeito: “...então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 2000, p. 536). De todo modo, tais autores, ainda nas palavras de Burke, estariam de acordo quanto ao seguinte fato: (...) o conhecimento e a consciência surgem como metáforas ou efeitos intralinguísticos, como subprodutos de uma ordem linguística que teria evoluído por milhares de anos antes que qualquer sujeito viesse a falar. O homem já não pode mais ser conhecido como o sujeito de sua obra, já que ser o sujeito de um texto ou de um conhecimento significa ocupar um lugar que é idealmente exterior à linguagem (BURKE, 1998, p. 15).
Sendo assim, em resposta a tal afirmação de um processo anônimo e autônomo de escrita, seria preciso defender, resgatar, ressituar ou reformular os conceitos de autor, de sujeito e, em primeira instância, o próprio conceito de Homem. No que se refere ao autor, o empreendimento a seu favor, no sentido de sua defesa e resgate, irá sempre associá-lo à ideia, humanista por excelência, de criatividade. Pierre Macherey sintetiza com muita precisão a lógica humanista na qual o valor “Homem” e o ideal de criatividade encontram-se intimamente relacionados: A afirmação de que o escritor ou o artista é um criador pertence a uma ideologia humanista. Nesta ideologia, o homem é libertado da função que ocupa em uma ordem que lhe é exterior e restaurado para as suas assim chamadas capacidades. Circunscrito apenas aos recursos de sua própria natureza, ele se torna o realizador de suas próprias leis. Ele cria. E o que ele cria? O homem. O pensamento humanista (tudo feito pelo e para o homem) é circular, tautológico, inteiramente dedicado à repetição de uma única imagem. “O homem faz o homem” (neste sentido Aristóteles é o teórico do humanismo): através de uma contínua e ininterrupta investigação, ele liberta, a partir dele mesmo, o que já existe; criação é automultiplicação (MACHEREY apud BURKE, 1975, p. 230).
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Seria interessante, abrindo aqui um parêntese, situar possíveis contrastes e afinidades entre essa perspectiva crítica do pensamento francês com o modo em que a interseção entre indivíduo e linguagem foi pensada, e por um viés humanista, pela tradição alemã da hermenêutica31. Em seu livro Verdade e método, Gadamer (1998) se refere ao esforço de Dilthey em estabelecer o elemento de sustentação para a universalidade própria às ciências humanas a partir do modelo das vivências intrínsecas à manifestação da vida dos indivíduos. O esforço de Dilthey será emblemático para situar o indivíduo – e, por extensão, o autor-sujeito – a partir de uma singularidade32 que escapa ao que se encontra simplesmente “fora” ou “dentro” de si mesmo. Nas palavras de Gadamer: (...) uma estrutura psíquica, como por exemplo um indivíduo, forma a sua individualidade na medida em que desenvolve suas tendências naturais ao mesmo tempo em que sofre o efeito condicionador das circunstâncias. O que daí resultará, a própria “individualidade”, isto é, o caráter do indivíduo, não é uma mera consequência dos fatores causais, nem pode ser entendida meramente a partir dessa causalidade, mas representa uma unidade compreensível em si mesma, uma unidade vital que se expressa em cada uma de suas manifestações33 e que pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma delas. Independentemente da ordem das relações de causa e efeito, algo se integra aqui em uma configuração única (GADAMER, 1998, pp. 344345; ligeiramente modificado). 31 Tradição essa que tem Heidegger como um de seus herdeiros; autor de uma importância indiscutível na configuração do pensamento francês contemporâneo. Que Heidegger, contudo, tenha sido um crítico do humanismo, isto não impediu que Derrida, por exemplo, situasse o seu pensamento como a mais potente forma de insistência no valor “Homem”, para além do próprio humanismo. Não sendo possível entrar aqui nessa questão, remeto o leitor ao texto de Derrida (1991) “Os fins do homem”. Tento situar essa discussão de Derrida, a propósito de Heidegger e o humanismo, em “Derrida e a crítica heideggeriana do humanismo” (NASCIMENTO, 2005). 32 Poderíamos chamá-la de singularidade hermenêutica. 33 Ou seja, tendo em vista a nossa presente discussão em torno do tema do autor, em cada um de seus textos, de seus documentos, em cada uma de suas obras.
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Dito isso, e sem podermos nos deter aqui no tratamento de possíveis contrastes e afinidades com a tradição do pensamento hermenêutico34, voltemos a nossa atenção para o texto de Barthes. Em verdade, o tema da “morte do autor” não se destina, como parece supor a crítica humanista, ao extermínio ou aniquilamento de nada35. Ele não pretende “matar” o autor ou o sujeito e, muito menos, o Homem, mas sim desfazer a ilusão de sua posição central, privilegiada, a partir da qual ele se encontraria – propriamente, essencialmente, quer dizer, inserido em sua suposta natureza, como na passagem de Macherey anteriormente referida – em condições de imprimir movimento e ordem à escrita. Em outras palavras, o que Barthes faz é apontar para algo que sempre disse respeito à experiência que se faz em toda língua – mesmo a língua do sujeito, dos autores, dos humanismos –, mas que, no entanto, não pode ser pensado através desses conceitos de autor, sujeito ou homem. Sem dúvida, diz Barthes, foi sempre assim, (...) desde o momento em que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfazimento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita começa (ibid.).
34 Uma importante iniciativa feita nesse sentido, ainda que restrita às obras de Derrida, pelo lado francês, e Gadamer, pelo lado alemão, encontra-se em Michelfelder; Palmer, 1989. 35 A crítica humanista pode ser, aliás, por vezes feroz, como retrata John Johnston, a propósito da reação de “marxistas e humanistas liberais”, ao voltarem suas baterias contra o chamado “pós-estruturalismo” – entenda-se, Nietzsche, Heidegger, Barthes, Lacan, Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard etc.; enfim, todo um universo de autores que, apesar de suas singularidades e de suas múltiplas diferenças, não teriam problema em aceitar o tema da “morte do autor” e, por isso, se comprimem sob o selo de “pós-estruturalistas”. Uma amostra dessa crítica: “O pós-estruturalismo parece não fornecer, afinal, nenhuma crítica; em vez de articular novos pontos de resistência em torno dos quais, possivelmente, um sujeito crítico possa emergir (...), o pós-estruturalismo dissolve o sujeito ainda mais completamente nas aporias sem fim da textualidade (...), e celebra essa dissolução com insolência e risada nietzscheanas como se fossem gestos de transgressão” (JOHNSTON, 1990, pp. 68-69).
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De acordo com Barthes, essa situação varia em cada cultura. Assim, por exemplo, “nas sociedades etnográficas, não há nunca uma pessoa encarregada da narrativa, mas um mediador, xamã ou recitador, de que podemos em rigor admirar a ‘prestação’ [quer dizer, admirar o domínio do código narrativo], mas nunca o ‘gênio’ (ibid., é meu o acréscimo entre colchetes). Ainda segundo Barthes, o autor é uma produção da nossa sociedade que, por meio de várias determinações, como o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, acaba por levar ao prestígio pessoal do indivíduo ou, “como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’”. Nesse sentido, é tão somente através de um não reconhecimento sistemático de seu caráter de construção que o autor acaba por se afirmar como figura dominante e organizadora que, no dizer de Barthes, (...) reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário íntimo, a sua pessoa e a sua obra: a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões... (ibid.).
Portanto, é a obra mesma que sofre, não propriamente um aniquilamento, mas um obscurecimento pela figura do autor. Figura essa que, pretensamente unitária e idêntica a si mesma, origem de sua criação – no sentido antes referido por Macherey –, se impõe como princípio de explicação36 da obra, em detrimento da própria autonomia da mesma A propósito de uma possível comparação com a tradição da hermenêutica, sugerida antes, seria o caso de interrogar se aquilo a que chamamos de “singularidade hermenêutica”, ou seja, a singularidade do indivíduo – o sujeitoautor – tal como pensada por Dilthey, mesmo não sendo um sujeito pontual, auto-idêntico, não convergiria do mesmo modo para um esvaziamento, por assim dizer, da própria obra, justo por se afirmar como o seu princípio de explicação. Afinal, como lemos na passagem citada de Verdade e método, o indivíduo constitui “uma unidade compreensível em si mesma, (...) que se expressa em cada uma de suas manifestações e que pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma delas”. Entendida como sua expressão, a obra deverá então ser reduzida à individualidade do autor. 36
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enquanto obra. Quanto ao texto, o autor-sujeito encarnaria, portanto, o seu horizonte de sentido, estabelecendo-se, assim, o seu “quererdizer” como um mecanismo de segurança, uma orientação obrigatória de leitura, que impediria a abertura do texto a outras e inesperadas – poder-se-ia dizer, impróprias – re-significações. Desse modo, a figura do autor viria a determinar, sempre de antemão, a devida compreensão do texto. Numa palavra, toda obra e todo texto reduz-se, pois, ao seu autor. É, portanto, nesse sentido que se o tema da “morte do autor” pretende matar alguma coisa, trata-se única e exclusivamente da dominação tirânica desse império da figura do autor. Tal semântica, aliás, do extermínio, do aniquilamento, que pretende se apropriar do tema da “morte do autor”, foi energicamente refutada por Jacques Derrida naquilo que diz respeito à sua pretensão de referência a um suposto fato, neutra e objetivamente verificável; ou seja, a liquidação do sujeito: (...) não sei a que conceito filosófico pode corresponder esta palavra [“liquidação” do sujeito] que eu compreendo melhor em outros códigos: finanças, banditismo, terrorismo, criminalidade civil ou política; e não se fala, portanto, em liquidação senão que se colocando na posição da lei e mesmo da polícia (DERRIDA, 1992, p. 270, é meu o acréscimo entre colchetes).
Tal liquidação, como se alega, teria sido executada por certa vertente do pensamento contemporâneo, e principalmente na França. Contra tal pretensão, Derrida é enfático: Se no curso dos últimos vinte e cinco anos, na França, as mais notórias destas estratégias37 procederam, de fato, a um tipo de explicação com “a questão do sujeito”, nenhuma delas procurou “liquidar” o quer que seja (ibid.).
Essa discussão em torno da ideia e mesmo de uma semântica da “liquidação” do sujeito se inscreve no contexto de uma iniciativa de 37 Derrida se refere às estratégias discursivas de autores como Barthes, Lacan, Althusser, Foucault, Deleuze e dele próprio em que a centralidade reivindicada pelo conceito de sujeito é posta em questão.
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Jean-Luc Nancy que enviou a 19 filósofos franceses a pergunta: “Quem vem após o sujeito?”38 A pergunta de Nancy motiva-se pelo fato de uma das principais características do pensamento contemporâneo consistir, justamente, em colocar em questão a instância do sujeito. Um tal questionamento, contudo, insiste Derrida em sua resposta, está longe de significar uma liquidação, abolição ou extermínio do sujeito. Trata-se, antes, de uma suspeita que se volta contra o pretenso centralismo do sujeito. Para aqueles que não admitem a ausência de referências fixas, isso será considerado, e mesmo denunciado, como uma falta grave, uma agressão à razão. O descentramento do sujeito lhes parecerá uma escandalosa liquidação do mesmo. Quanto a Barthes, em sua perspectiva de fazer frente39 ao centralismo tirânico do autor – em nossa cultura, como ele diz, a imagem da literatura “é tiranicamente centrada no autor” – e, assim, poder abrir um caminho para o que seria uma experiência moderna da linguagem, uma experiência não mais centrada na figura do autor, ele se refere a uma importante contribuição da linguística, para a qual: (...) a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem precisar ser preenchido pela pessoa dos interlocutores; linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquilo que escreve, tal como o Eu não é senão aquele que diz Eu: a linguagem conhece um ‘sujeito’ não uma ‘pessoa’, e esse sujeito [é vazio fora da própria escrita que o define]” (ibid., o texto entre colchetes está ligeiramente modificado). 38 Uma compilação das respostas dos 19 filósofos, incluindo a de Derrida, encontra-se em Cadava; Connor; Nancy, 1991. 39 E Mallarmé é, para ele, um autor exemplar neste sentido. Como diz: “Apesar de o império do Autor ser ainda muito poderoso (...), é evidente que certos escritores já há muito tempo que tentaram abalá-lo. Na França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de pôr a própria linguagem no lugar daquele que até então se supunha ser o seu proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia (...) atingir aquele ponto em que só a linguagem atua, “performa”, e não o “eu”: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (...)” (BARTHES, 1984, p. 51).
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Pode-se perceber aqui, a propósito desse processo vazio da enunciação, uma dupla ausência que é inerente à própria escrita: a ausência do sujeito – do sujeito enquanto tal, fora do processo da escrita – e a ausência do interlocutor. Essa dupla ausência não escapou à atenção de Jacques Derrida. Em Assinatura Acontecimento Contexto, ele tenta caracterizar essa dupla ausência que, como diz, “parece intervir de maneira específica no funcionamento da escrita” (DERRIDA, 1991, p. 356). De fato, quanto ao interlocutor, ou destinatário da enunciação, é absolutamente necessário que a compreensibilidade do enunciado, sua inteligibilidade ou legibilidade, independa da sua presença. Derrida, aliás, invalida a própria ideia de que a presença, mais ou menos determinável, do destinatário seja uma condição para que a estrutura mesma da escrita possa se constituir enquanto tal. Ele vai enfatizar, por contraste, que o decisivo – na constituição da estrutura da escrita – é o fato de a enunciação ter de ser repetível mesmo “na ausência absoluta do destinatário ou do conjunto empiricamente determinável dos destinatários” (ibid. o itálico é meu). Afinal, como diz, “uma escrita que não seja estruturalmente legível para além da morte do destinatário não seria uma escrita”. Em síntese Qualquer escrita deve, portanto, para ser o que é, poder funcionar na ausência radical de qualquer destinatário empiricamente determinado em geral. E essa ausência não é uma modificação contínua da presença [ou seja, digo eu, em acréscimo ao texto de Derrida, da presença modificada enquanto presença adiada; portanto, enquanto presença ausente do destinatário], é uma ruptura de presença, a “morte” ou a possibilidade da “morte” do destinatário inscrita na estrutura da marca [ou seja, da estrutura significante, do texto] (ibid., os textos entre colchetes são meus).
O mesmo ocorre do lado do emissor, isto é, do sujeito da enunciação. Também aqui, há que se levar em conta uma ausência estrutural ao funcionamento da escrita, já que, do mesmo modo, ela deve ser compreensível independentemente da presença daquele que a enuncia, independentemente, portanto, do querer dizer ou da intenção de significação do seu autor. Nas palavras de Derrida,
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Escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina por sua vez produtiva, que a minha desaparição futura não impedirá de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever. Quando digo “a minha desaparição futura”, é para tornar esta proposição mais imediatamente aceitável. Devo poder dizer a minha desaparição simplesmente, a minha não-presença em geral, e, por exemplo, a nãopresença do meu querer-dizer, da minha intenção-de-significação, do meu querer-comunicar-isto, na emissão ou na produção da marca. Para que um escrito seja um escrito, é necessário que continue a “agir” e a ser legível mesmo se o que se chama o autor do escrito não responde já pelo que escreveu, pelo que parece ter assinado, quer esteja provisoriamente ausente, quer esteja morto ou que em geral não tenha mantido a sua intenção ou atenção absolutamente atual e presente, a plenitude do seu querer-dizer, mesmo daquilo que parece ser escrito “em seu nome” (ibid., p. 357).
Voltando a Barthes, ele entende que o escritor moderno, ou seja, aquele que já não se encontra sob domínio do paradigma do autor, “nasce ao mesmo tempo que o seu texto”. Ele não se encontra em algum lugar anterior ao processo de sua escrita; ele não é, de modo algum, como diz o próprio Barthes, “o sujeito de que o seu livro seria o predicado” (BARTHES, 1984, p. 51). A esse respeito, Michel Foucault se refere ao autor como uma função que se constitui na configuração do modo de existência, circulação e funcionamento de alguns discursos dentro de um contexto social. Apenas para situarmos essa concepção funcional, na análise de Foucault, ele enfatiza que o autor não encarna um mesmo padrão de relação com o texto. Em O que é um autor? ele se refere ao fato de a figura do autor surgir historicamente – em contraste com os personagens míticos, com as grandes figuras sacralizadas e sacralizantes – no momento em que a escrita passa a ser passível de censura e o indivíduo de punição pelo que escreve. Ou seja, a figura do autor aparece a partir do momento em que os discursos passam a poder ser transgressores: Os textos, os livros, os discursos começam efetivamente a ter autores (outros que não personagens míticos ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser puni-
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do, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores (FOUCAULT, 1992, p. 47).
Nesse caso, diz Foucault, “a função-autor encontra-se ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos”. Por outro lado, diz ainda Foucault, (...) houve um tempo em que os textos que hoje chamaríamos “literários” (narrativas, contos, epopeias, tragédias, comédias) eram aceitos, postos em circulação, valorizados sem que fosse colocada a questão do seu autor; o anonimato não constituía dificuldade, sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era para eles garantia suficiente (ibid., p. 48).
Por contraste, prossegue Foucault, os discursos literários modernos não podem mais ser aceitos senão quando providos da função-autor: Perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe conferirmos [ao discurso literário], o estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como respondemos a estas questões. E se, na sequência de um acidente ou da vontade explícita do autor, um texto nos chega anônimo, imediatamente se inicia o jogo de encontrar o autor. O anonimato literário não nos é suportável; apenas o aceitamos a título de enigma (ibid., pp. 49-50, é meu o acréscimo entre colchetes).
Interessante notar que, semelhante aos textos literários modernos, os textos científicos na Idade Média só mantinham um valor de verdade se fossem devidamente marcados pelo nome do seu autor – “Hipócrates disse”; “Plínio conta” – como índices dos discursos aceitos como provados. Já a partir dos séculos XVII e XVIII eles, os textos científicos, passarão a ser aceitos por eles mesmos, ou seja, no anonimato de uma verdade estabelecida ou constantemente demonstrável; é a sua pertença a um conjunto sistemático que lhes confere garantias, e não a referência ao indivíduo que os produziu. Apaga-se a função do autor, o nome do inventor serve para pouco
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mais do que para batizar um teorema, uma proposição, um efeito notável, uma propriedade, um corpo, um conjunto de elementos, uma síndrome patológica (ibid., p. 49).
Há, portanto, que se pensar em uma série de operações específicas e complexas que entram em jogo na construção da função-autor, interditando, assim, a ideia de uma relação simples e direta entre o texto e o autor como um indivíduo real exterior e anterior ao texto. Afinal, como diz Foucault: “O nome do autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura certo grupo de discursos e o seu modo de ser singular”. Mais enfaticamente O que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz do indivíduo um autor) é apenas a projeção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos. Todas estas operações variam consoante as épocas e os tipos de discurso40 (ibid., p. 51). 40 A esse respeito, como propõe Foucault, a exegese cristã serviu em grande parte como paradigma para o modo em que a crítica literária moderna definiu, ou construiu, a figura do autor: de acordo com a De Viris Illustribus de São Jerônimo, “se entre vários livros atribuídos a um autor, houver um inferior aos restantes, deve-se então retirá-lo da lista das suas obras (o autor é assim definido como um certo nível constante de valor); do mesmo modo [deve-se igualmente retirar da lista das suas obras] se alguns textos estiverem em contradição de doutrina com as outras obras de um autor (o autor é assim definido como um certo campo de coerência conceitual ou teórica); deve-se igualmente excluir as obras que são escritas num estilo diferente, com palavras e maneiras que não se encontram habitualmente nas obras de um autor (trata-se aqui do autor como unidade estilística); finalmente, devem ser considerados como interpolados os textos que se referem a acontecimentos ou que citam personagens posteriores à morte do autor (aqui o autor é encarado como momento histórico definido e ponto de encontro de um certo número de acontecimentos). Ora, a crítica literária moderna, mesmo quando não tem a preocupação de autenticação (o que é a regra geral) não define o autor de outra maneira” (ibid., pp. 52-53, são meus o itálico e o acréscimo entre colchetes).
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Essas observações apontam para o fato de que, ao contrário do que alega a crítica humanista, o tema da “morte do autor” não inaugura nenhum pensamento inumano. Heidegger, aliás, apresenta com muita clareza a economia viciada de pensamento em que se apoia a queixa humanista. Ao esclarecer que quando se põe o humanismo em questão não se está bandeando com o pensamento para o lado oposto do humano, tampouco defendendo a desumanidade e degradando a dignidade do homem, ele denuncia a “lógica” simplista da argumentação humanista. Diz Heidegger: Porque se fala contra o “humanismo”, teme-se que se defenda o inumano e se glorifique a brutalidade e a barbaridade. Pois, o que é “mais lógico” do que isto: a quem nega o humanismo, não resta senão afirmar a desumanidade? Porque se fala contra a “lógica” crê-se que se pretenda renunciar ao rigor do pensamento, para entronizar em seu lugar a arbitrariedade dos impulsos e sentimentos, e, assim, proclamar, como o verdadeiro, o “irracionalismo”. Pois o que é “mais lógico” do que isto: quem fala contra o lógico, defende o ilógico? Porque se fala contra os “valores” surge uma indignação em face de uma filosofia que – assim se pretende – se atreve a desprezar os bens mais elevados da humanidade. Pois, o que é “mais lógico” do que isto: um pensamento que nega os valores, terá necessariamente que declarar tudo sem valor? (...) Porque, em tudo isso, sempre se fala contra o que é sagrado e elevado para a humanidade, tal filosofia ensina um niilismo irresponsável e destruidor. Pois, o que é “mais lógico” do que isto: quem, assim, sempre nega o ente verdadeiro, coloca-se do lado do não-ente e prega, com isso, que o simples Nada é o sentido da realidade? (HEIDEGGER, 1967, pp. 74-75).
Essas palavras de Heidegger, embora datem de 1947, poderiam se aplicar perfeitamente à resistência humanista, por assim dizer, de um autor como Alain Renaut, por exemplo. Para ele, a crítica da subjetividade constitui um niilismo paralisante, um entrave, como diz, a “uma reabilitação positiva da ação humana necessária para uma noção viá-
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vel de democracia” (RENAUT; FERRY in: PETERS, 2000, p. 78). Renaut defende, nesse sentido, o resgate da autonomia, intencionalidade e consciência do homem41. O que constitui a modernidade, afirma Renaut, “é a maneira pela qual o homem se pensa como fonte de suas representações e de seus atos, como o seu fundamento (sujeito) ou então como seu autor” (RENAUT, 1988, p. 56). As leis do homem moderno são, para ele, produto de sua razão. Ora, se, como querem os críticos do sujeito, o homem passa a ser apenas o produto resultante de forças sociais, históricas, psicológicas, pulsionais, ou mesmo da escrita, isso significa, nada “mais lógico”, diria Heidegger, que o homem se vê destituído de sua condição de ser racional, bem como de sua autonomia ético-moral e de sua responsabilidade por suas ações e decisões. Mas, ao contrário do que sustenta Renaut42 e tantos outros que ele tão exemplarmente representa, o que se pretende, com a crítica do humanismo e, por extensão, do sujeito e do autor, independentemente das várias orientações que tal crítica venha a tomar, é justamente liberar o “homem”, o “autor”, ou o “sujeito” – todos escritos entre aspas – para aquilo que ele sempre foi: um permanente devir, por vias hermenêuticas, arquivísticas, institucionais, pedagógicas etc., na e pela escrita. Assim, em todos os casos em que se trabalha na perspectiva da “morte do autor” – assim como do sujeito, ou do homem 41 Renaut se enquadra, nesse sentido, entre aqueles que, no dizer de Derrida, assumem uma postura moralista, e mesmo policial, de defensor da boa causa, contra um delito, uma ilusão ou uma falta: “quiseram ‘liquidar’ [o sujeito; portanto, também o autor; o “homem”], acreditaram poder fazê-lo, nós não o deixaremos. (...) Nós iremos fazer justiça, nós iremos salvar ou reabilitar o sujeito” (DERRIDA, 1992, p. 270). 42 Como se sabe, juntamente com Jean-Luc Ferry, Alain Renaut publicou um livro, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. O livro pretende analisar o pensamento representativo da filosofia francesa fundamentalmente comprometida com os eventos de maio de 68. Apesar de sua reconhecida diversidade, a análise aponta para a afirmação da individualidade contra a universalidade, a dissolução do Eu como vontade autônoma, a apologia da marginalidade, como algumas das características, dentre outras, que são comuns aos diferentes nomes que compõem esse ambiente de pensamento, como Foucault, Althusser, Lacan, Deleuze, Lyotard, Derrida etc.
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– o sujeito, como diz Derrida, “é talvez re-interpretado, re-situado, re-inscrito, mas certamente ele não é ‘liquidado’” (DERRIDA, 1991, p. 271). Nessa perspectiva, aliás, o sujeito nunca morre. Ele deixa de ocupar o centro da cena da escrita – esta sim, se tal situação ocorresse de fato, constituiria a sua morte – para se re-configurar e seguir no jogo de reconfiguração que é jogado pela própria escrita. Não que “o sujeito” se reconfigure por meio do jogo da escrita; ele não é outra coisa do que esta reconfiguração mesma. E Derrida avança uma questão interessante que não é sem afinidade com a problemática da construção do autor referida por Foucault. Se o sujeito é construído segundo múltiplas operações, é preciso questionar as investidas pretensamente neutras – por parte daqueles que não admitem pensar sem referências fixas – de defesa e resgate do autor, ou seja, do homem, do sujeito. É preciso indagar sobre “quem” investe dessa forma, com base em quais pressupostos e em vista de quais valores; é preciso indagar sobre “quem ou o que ‘responde’ à questão ‘quem’?” 43 (ibid., p. 273). E não apenas isso. Derrida lança também uma suspeita sobre a pretensa certeza a respeito do que se diz, quando, em muitos discursos, se afirma a necessidade de se defender, resgatar, retornar ao autor, ao homem ou ao sujeito: Não aceitaria entrar em uma discussão no curso da qual ter-se-ia a pretensão de saber o que é o sujeito, este “personagem” que se tomaria como o mesmo para Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, Lacan, Foucault, Althusser e alguns outros, e que todos estariam de acordo em “liquidar” (ibid., p. 273).
Desse modo, parece que encontramos aqui, numa reflexão sobre a escrita que se faz no cruzamento entre filosofia e literatura, uma implicação ética que se desdobra e acompanha, como uma sombra, as possibilidades do devir do autor – suas apropriações interpretativas, político-institucionais, jurídico-contratuais, editoriais etc. – para além dos mecanismos de controle e dominação dos textos que são intrínse43 Sobre a importância de se questionar o “quem” questiona, na perspectiva do pensamento de Derrida, remeto o leitor ao meu artigo “Alteridade, violência e justiça: trilhas da desconstrução” (DUQUE-ESTRADA, 2004).
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cos à figura clássica do autor como indivíduo real, exterior e anterior à escrita, e, nesse sentido, instância de controle do que nela, na escrita, encontra-se em curso. CoNSiDERAÇÕES FiNAiS Talvez fique claro que, afinal, o tema da “morte do autor” não traga nenhuma novidade ou, por outra, a sua novidade está em manifestar o que sempre ocorre: o movimento de arquivamento que, em todos os níveis, se põe em marcha; arquivamento do que nunca esteve lá e que, não obstante isso, ou, antes e por isso mesmo, exige sempre ser arquivado. A função-autor, numa palavra, arquiva-se e rearquiva-se, nisso consistindo o seu descentramento intrínseco, o seu deslocamento constitutivo, enfim, o seu porvir na e pela escrita. Finalmente, evoco mais uma vez Foucault para responder à indignação dos chamados Humanistas a respeito do tema da “morte” do Sujeito, do Homem, do Autor: Não se trata de afirmar que o homem está morto (ou que vai desaparecer, ou que será substituído pelo super-homem), trata-se, a partir deste tema, que não é meu e que não cessou de ser repetido desde o final do século XIX [i.e. desde Marx, Nietzsche e Freud, os grandes “mestres da suspeita”], de ver de que maneira e segundo que regras se formou e funcionou o conceito de homem. Fiz a mesma coisa para a noção de autor. Contenhamos, pois, as lágrimas (FOUCAULT, 1992, p. 81, é meu o acréscimo entre colchetes).
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NÚmERoS ANtERioRES EDiÇÃo 9 iNtELECtUAiS E EStRUtURA SoCiAL: UmA PRoPoStA tEÓRiCA Daniel de Pinho barreiros CULtURAS URbANAS E EDUCAÇÃo – Experimentações da cultura na educação Ecio Salles RELAÇÕES iNtERNACioNAiS – Uma introdução ao seu estudo Franklin trein A EVoLUÇÃo FAz SENtiDo. iNCLUSiVE NA AtiViDADE FÍSiCA? Hugo Rodolfo Lovisolo ‘DESiGNERS’, SUJEitoS PRoJEtiVoS oU PRoGRAmADoS? marco Antonio Esquef maciel EDiÇÃo 10 CiÊNCiA, SAÚDE E CiNEmA: tERRitÓRioS ComUNS Alexandre Palma CoNFiGURAÇÃo Do moVimENto SERiNGUEiRo NA AmAzÔNiA bRASiLEiRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 – Elementos para pensar políticas públicas sustentáveis Cláudia Conceição Cunha imAGENS obSESSiVAS Em AUGUSto DoS ANJoS ivan Cavalcanti Proença A LoNGEViDADE E SUAS CoNSEQUÊNCiAS PARA o mUNDo Do tRAbALHo Lucia França
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ESCoLAS DE SAmbA: CoNFoRmAÇÃo E RESiStÊNCiA máslova teixeira Valença EDiÇÃo 11 o SiGNiFiCADo AmbiENtAL Do QUADRo JURÍDiCo-iNStitUCioNAL DiANtE DA PRESENÇA DE ESPÉCiES EXÓtiCAS No bRASiL Anderson Eduardo Silva de oliveira mUSEUS: LimitES E PoSSibiLiDADES NA PRomoÇÃo DE UmA EDUCAÇÃo EmANCiPAtÓRiA Andréa F. Costa maria das mercês Navarro Vasconcellos PRotEÇÃo SoCiAL DoS iDoSoS No bRASiL E NA AmÉRiCA LAtiNA Graziela Ansiliero Rogério Nagamine Costanzi GLobALizAÇÃo E CoNVERGÊNCiA EDUCACioNAL Análise comparativa das ações recentes para a reforma dos sistemas educacionais no brasil e nos Estados Unidos Rafael Parente iNiCiAtiVAS DE PRomoÇÃo DA SAÚDE Em busca de abordagens avaliativas e de efetividade Regina bodstein EDiÇÃo 12 HomiCÍDio JUVENiL E SEUS DEtERmiNANtES SoCioECoNÔmiCoS Uma interpretação econométrica para o brasil Lisa biron A EDUCAÇÃo AmbiENtAL CRÍtiCA E o CoNCEito DE SoCiEDADE CiViL Em GRAmSCi Estratégias para o enfrentamento da crise socioambiental maria Jaqueline Girão Soares de Lima
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UmA ANÁLiSE DA EVoLUÇÃo RECENtE DA tAXA DE DESEmPREGo SEGUNDo DiFERENtES CLASSiFiCAÇÕES marina Ferreira Fortes Águas DESENVoLVimENto iNFANtiL Uma análise de eficiência Vívian Vicente de Almeida EDiÇÃo 13 bibLiotECA E CiDADANiA Ana Ligia Silva medeiros ESCoLA E SAmbA: SiLÊNCio DA bAtUCADA? Augusto César Gonçalves e Lima o bRASiL, A PobREzA E o SÉCULo XXi Celia Lessa Kerstenetzky o mERCADo DE tRAbALHo mEtRoPoLitANo bRASiLEiRo Em 2009 Lauro Ramos LiNGUAGEm, PENSAmENto E mUNDo Ludovic Soutif
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ISSN 1809-9815 ano 5 | setembro > dezembro | 2010
14 SESC | Serviço Social do Comércio
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EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO LICENCIAMENTO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES E POTENCIALIDADES Carlos Frederico B. Loureiro
A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de Souza Valle
A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937–1996) Ieda Magri
ano 5 | setembro > dezembro | 2010
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DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEITORES TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010 Larissa Morais
OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA ‘MORTE DO AUTOR’ Paulo Cesar Duque-Estrada
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