Revista Sinais Sociais

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Alessandro André Leme

Sesc | Serviço Social do Comércio ISSN 1809-9815 v.10 n.30 | janeiro - abril 2016

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Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 9-39 | jan.-abr. 2016

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Sesc | Serviço Social do ComÊrcio Departamento Nacional

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ISSN 1809-9815 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p.1-164 | jan.-abr. 2016


Sesc | Serviço Social do Comércio PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL

Antonio Oliveira Santos DEPARTAMENTO NACIONAL Diretor-Geral

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CONSELHO EDITORIAL

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© Sesc Departamento Nacional, 2016. Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 Distribuição gratuita. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)-  . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2006 -  . v.; 30 cm.

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.

Quadrimestral. ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. Sesc. Departamento Nacional.


SUMÁRIO

Apresentação

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Editorial

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Crise e reformas no Brasil: trajetória em prol das reformas orientadas para o mercado nos anos 1990 Alessandro André Leme

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Nuno Ramos e suas metamorfoses Júlia Studart

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A autorreação entre arte e vida social Lucyane De Moraes

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A filosofia e seus conteúdos desprezados: filosofia pop em questão Marcia Tiburi

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Abstração e desfiguração: a crise da representação na pintura moderna Marco Casanova

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APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos ao seu progresso. Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a ampliação permanente dessa compreensão. Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar coletivo. antonio oliveira santos

Presidente do Conselho Nacional

O Serviço Social do Comércio não teria alcançado, ao longo de seus 70 anos, um papel tão relevante e definitivo para a sociedade brasileira, não fosse pela valorização da reflexão sobre a ação social e pela compreensão aprofundada das contradições do mundo contemporâneo. A preocupação com o rigor e com a coerência do pensamento e a valorização conceitual se concretiza nos mais diferentes recortes da ação do Sesc, mas está expressa em sua plenitude em produções como a revista Sinais Sociais. Publicada pela primeira vez há 10 anos, Sinais Sociais encontrou seu lugar no campo da produção reflexiva acadêmica. Progressivamente chamou a atenção dos centros de pesquisa e dos pensadores que hoje referenciam o pensamento social brasileiro, com edições corajosas, provocações intelectuais instigantes e, sobretudo, com a preocupação genuína em iluminar pela produção do conhecimento os rumos da sociedade brasileira e do complexo mundo em que vivemos. carlos artexes simões

Diretor-Geral do Departamento Nacional


Os desafios subjacentes ao combate das iniquidades sociais, na perspectiva de conquista dos direitos básicos de cidadania, requerem das organizações sociais a reflexão consciente, o posicionamento político e a consolidação de ambientes criativos e humanizados, lócus privilegiados de produção cultural. A revista Sinais Sociais busca não somente contribuir com a produção social do conhecimento, oriunda das pesquisas elaboradas nos centros de excelência acadêmica, como também se propõe a aguçar sentidos numa perspectiva civilizatória, consolidando as bases para formulação de programas e projetos que visam o bem-estar integral dos cidadãos. Com esse propósito, traz na presente edição uma diversidade de temas, convocando-nos a decifrar o entrelaçamento entre eles, na medida em que entendemos que a realidade social é única, composta pelas várias perspectivas sociais, econômicas e culturais. Alessandro Leme, no artigo Crise e reformas no Brasil: trajetória em prol das reformas orientadas para o mercado nos anos 1990, se debruça sobre as estratégias adotadas para o desenvolvimento na contemporaneidade, analisando, em especial, o caso das privatizações e as reformas ocorridas no setor elétrico brasileiro na década de 1990. No artigo Abstração e desfiguração: a crise da representação na pintura moderna, o professor Marco Casanova traz à reflexão os principais aspectos dessa crise de representação entremeada pela articulação entre história da arte e filosofia.

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Júlia Studart, no texto Nuno Ramos e suas metamorfoses, descreve o trabalho do artista plástico, escritor e cineasta, como um “terreno movediço entre literatura e as artes visuais”, a partir de suas pesquisas sobre narrativa e arte contem­ porânea no Brasil, produção de texto e imaginação crítica e estudos da materialidade do texto. O artigo de Lucyane De Moraes, intitulado A autorreação entre arte e vida social, traz a compreensão de que nenhuma reflexão estética pode desconhecer o problema da relação entre a arte, filosofia e a vida social. Nas palavras da autora, a própria relação entre filosofia e arte se dá a partir do entendimento de que esta última atua como forma de apreensão crítica da realidade, ainda que, mesmo convergindo genuinamente, são ambas fiéis ao seu próprio conteúdo por meio de uma oposição recíproca. E afirma, arte é conhecimento! Marcia Tiburi discute o tema “filosofia pop”, tendo como referência principal a obra de Siegfried Kracauer, em consonância com estudos realizados pelo filósofo brasileiro Charles Feitosa. A tese da autora é a de que a “‘filosofia pop’ é herdeira da tradição da estética filosófica compreendida enquanto filosofia dos conteúdos desprezados pela forma tradicional da teoria”. Por fim, salientamos que nesta edição apresentamos textos que nos induzem a refletir sobre o ato de conhecer, a arte como conhecimento, destituída de sua função no que se denomina “indústria cultural” e de consumo, para se pensar que tipo de sociedade queremos construir. Vamos à leitura!

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Alessandro André Leme Possui graduação em Ciências Sociais, bacharelado pela Universidade Federal de São Carlos (2000) e mestrado em Ciências Sociais (área de concentração: Relações Sociais, Poder e Cultura) pela Universidade Federal de São Carlos (2002). É doutor em Ciência Política pela Unicamp. Fez Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp na área de Sociologia do Desenvolvimento. Foi professor bolsista do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, de 2003 a 2006, e professor da PUC-Campinas no primeiro semestre de 2007. Atualmente é professor adjunto do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem experiência na área de Sociologia e Ciência Política, com ênfase em Sociologia, Sociologia do Desenvolvimento, Sociologia Política e Ciência Política, atuando principalmente nos seguintes temas: estratégias para o desenvolvimento, pensamento sociopolítico brasileiro e cultura, reformas do Estado, privatização, Estado e transformação e reestruturação do setor elétrico.

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Resumo Com a crise dos Estados desenvolvimentistas na América Latina e no Brasil em particular, nos anos 1990, há na esfera internacional (BIRD, FMI) forte pressão para incorporação de uma agenda privatista e, na esfera interna, um conjunto de atores/classes alinhados politicamente com esta agenda. Estaria em derrocada o Estado desenvolvimentista, segundo alguns atores/classes e instituições, e a saída da crise, assim como a readequação dos países (Brasil em particular) aos “novos tempos”, imporiam a adoção de medidas e ações orientadas para o mercado. Mediante isto, vamos analisar o conjunto de mudanças e reformas ocorridas no setor elétrico brasileiro nos anos 1990 como marcadores deste processo de construção de hegemonia em torno das reformas orientadas para o mercado, pactuada no plano interno e externo. Palavras-chave: Reformas orientadas para o mercado. Estratégias para o desenvolvimento. Privatizações. Setor elétrico brasileiro.

Abstract With the crisis of Developmental States in Latin America and particularly in Brazil in the 1990s, there is a strong pressure on the international level (World Bank, IMF) for the incorporation of a privatizing agenda and, in the internal sphere, a set of actors/ classes politically aligned with this agenda. According to some actors/classes and institutions, the developmental state would be in collapse, and the exit from the crisis, as well as the readjustment of countries (particularly Brazil) to the “new times”, would impose the adoption of market-oriented measures and actions. Therefore, we will analyze the set of changes and reforms that have taken place in the Brazilian electricity sector in the 1990s as markers of this hegemony construction process around the market-oriented reforms, agreed on the internal and external level. Keywords: Market-oriented reforms. Strategies for development. Privatization. Brazilian electric sector.

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Crise e reformas no Brasil: trajetória em prol das reformas orientadas para o mercado nos anos 1990

Introdução A recente história do Brasil apresenta fatores relevantes para uma análise das reformas orientadas para o mercado, qual seja: o país passou por um processo de redemocratização do Estado durante a década de 1980, com inúmeras manifestações populares e com a culminação da Constituinte de 1988. Ou seja, a proclamação da nova Constituição brasileira é, consequentemente, um dos principais marcos políticos do processo de redemocratização no Brasil. A Constituição de 1988 marcou a redemocratização do país, criou novas bases institucionais à luz das questões postas pelos atores e pelo processo de reabertura democrática (processo eleitoral, estrutura de partidos etc.), e restabeleceu as bases da democracia representativa liberal. Por outro lado, ratificou certas bases que alguns anos depois se configurariam fatores de conflitos, principalmente nos aspectos econômicos. Isto porque a Constituição de 1988 deu ênfase ao capitalismo de Estado (manteve elementos e fatores que valorizam um tipo de desenvolvimento onde a presença do Estado é central) e os governos subsequentes (Collor, Itamar e FHC) engendraram movimentos voltados para a economia de mercado.2 As mudanças institucionais na Constituição representaram um processo fundamental e necessário para realização das reformas liberalizantes,3 dentre elas as privatizações das empresas de serviços públicos (telecomunicações e energia elétrica, por exemplo). As reformas engendradas no Brasil a partir da década de 1990, que tiveram como principais transformações o processo de privatização, principalmente das empresas vinculadas aos serviços públicos (energia e telecomunicações) foram influenciadas por um conjunto de processos históricos, econômicos e políticos, em âmbito nacional e internacional. Este artigo se propõe a uma interpretação da existência de um conjunto de características patrimoniais e autoritárias presentes no Estado brasileiro, sobretudo na administração pública (sendo que esta última não se configurou estritamente segundo as proposições weberianas da burocracia, como padrão racional, objetivo e neutro da organização do Estado moderno).

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O diagnóstico da crise do modelo nacional-desenvolvimentista – associada à ascensão do desenvolvimento dependente, por um lado e, por outro, à forte visão e influência dos organismos financeiros internacionais e do Consenso de Washington – contribuiu significativamente para a redefinição do setor elétrico brasileiro. Isto porque a eletricidade é um insumo fundamental para a dinâmica capitalista. A seguir, passamos a problematizar, ainda que modestamente, a questão do patrimonialismo brasileiro e das influências das agências multilaterais em prol das reformas orientadas para o mercado.

Estado, patrimonialismo e reformas do Estado A herança patrimonial no Brasil, embora date sua origem ainda no período colonial (FREYRE, 1998; PRADO JÚNIOR, 1994; FAORO, 1995; SCHWARTZMAN, 1982; HOLANDA, 1986), somente a partir do primeiro governo Vargas começa a se caracterizar de forma híbrida, associada ao início de profissionalização dos serviços públicos e de constituição de uma burocracia estatal. Essa herança marcou profundamente duas dimensões da administração pública do Estado brasileiro. Primeiro pela caracterização e grande permeabilidade da burocracia do Estado pelos interesses privados (pessoais). Em segundo lugar, pela centralização do poder e pelo autoritarismo do poder público na tomada de decisões e/ou na implantação de políticas públicas (HOLANDA, 1986; FAORO, 1995; LAFER, 1975; MARTINS, 1999; DINIZ, 1997). Como os autores citados evidenciam, as características patrimoniais no Estado brasileiro não foram impedimentos para a constituição de uma burocracia estatal (com particularidades) e a profissionalização dos serviços públicos. Em 1933 foi criado o Departamento de Administração do Serviço Público (DASP)4 e, em 1934, o Código de Águas, entre outros feitos que começaram a identificar esse modelo de Estado com uma configuração moderna marcada pela presença de uma burocracia pública técnica. No período de 1945 até o golpe de 1964 houve algumas tentativas de fortalecimento da burocracia estatal por meio da busca de fortalecimento Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 9-39 | jan.-abr. 2016

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da meritocracia e da profissionalização dos burocratas. Todavia, a principal característica do Estado neste período (com fortes traços populistas) foi o hibridismo entre a manutenção dos traços da cultura política patrimonial e a presença de nichos de eficiência administrativa. Uma das dificuldades em alterar este quadro era a forte influência de forças políticas que davam sustentação ao governo, o que por sua vez gerava uma acomodação entre um sistema de mérito coexistindo com o favor político. Já no período de 1964 a 1985, houve maior profissionalização da “máquina” pública e, consequentemente, pode-se observar uma melhora no funcionamento da administração pública, marcada pelo fortalecimento da técnica e da racionalização do Estado. Por outro lado, este processo consolidou uma tecnocracia estatal monopolista sob uma gestão autoritária do governo (militar). É justamente desse processo, ou da combinação entre a dominação patrimonial tradicional e a dominação burocrática, que se originou o patrimonialismo burocrático brasileiro, como é chamado por muitos especialistas. Segundo Paula (2003), a história da administração pública brasileira e a constituição do Estado foram caracterizadas pela presença de condições políticas autoritárias e patrimoniais (em sua dimensão tradicional, burocrática e política). Já a influência dos modelos e ideologias desenvolvimentistas sobre o Estado e, mais precisamente, sobre a administração pública brasileira também foram significativas para definir sua forma e, em consequência, influir na gestão do Estado (BIELSCHOWSKY, 1995; TOLEDO, 2005). Por outro lado, a incorporação de um modelo de desenvolvimento a ser adotado pelo país marcou uma série de disputas político-ideológicas e econômicas entre intelectuais e economistas. As disputas ocorreram entre os seguintes atores, a saber: a) Os liberais não desenvolvimentistas e não industrialistas – Eugênio Gudin e Octávio Bulhões, vinculados à FGV, ao Conselho Nacional de Economia (CNE) e à Associação Comercial do Estado de São Paulo. b) Os liberais desenvolvimentistas não nacionalistas – Roberto Campos, Lucas Lopes, Glycon de Paiva, vinculados ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e à Comissão Mista Brasil-EUA.

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c) Os desenvolvimentistas privatistas – Roberto Simonsen, João Paulo de Magalhães, Nuno Figueiredo e Hélio Jaguaribe, dentre outros atores vinculados ao Conselho Nacional da Indústria (CNI) e à Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP). d) O s desenvolvimentistas nacionalistas – Celso Furtado, Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida, Evaldo de C. Lima, Guerreiro Ramos e alguns membros do BNDE e de instituições como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). e) Os socialistas – Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr e Alberto Passos Guimarães, dentre outros membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB). (PAULA, 2003). Muitos foram os autores que buscaram estudar o processo de desenvolvimento e modernização do Brasil. Eram focos desse estudo: a herança patrimonial e autoritária do Estado e em que condições e quais foram as opções realizadas pelo Estado brasileiro sobre a política econômica e formação da administração pública (FIORI, 1995; GOLDSTEIN, 1994; FURTADO, 1974; CARDOSO; FALETO, 1970; O’DONNELL, 1990; IANNI, 1968; IANNI, 1986; SCHWARTZMAN, 1982; VELASCO E CRUZ, 1997, entre outros). Após a Segunda Guerra Mundial, enquanto os países centrais experimentavam uma época de ouro (que chegou a ser chamada de “trinta anos gloriosos”), os países latino-americanos, particularmente o Brasil, consolidaram dois processos importantes no âmbito do Estado. O primeiro foi a constituição de uma burocracia estatal híbrida de heranças patrimoniais e autoritárias, com um modelo racional legal na forma de organizar e no funcionamento da administração pública do Estado. O segundo foi o projeto nacional desenvolvimentista que, no Brasil, durou até praticamente o final dos anos 1980. Uma das principais características deste projeto foi a forte presença do Estado para promoção do desenvolvimento. Todavia, após o “milagre econômico” e as subsequentes crises do petróleo, associadas ao crescente endividamento externo, revigoraram-se as críticas e os questionamentos acerca da eficiência do planejamento estatal e da gestão burocrática pública no Brasil. A forte recessão econômica dos anos 1980 também contribuiu para pôr em pauta a necessidade de reforma do Estado. Neste sentido, foi por

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decorrência de um conjunto de fatores exógenos e endógenos vinculados a diversas pressões e atuações de diversos atores (nacionais e internacionais) que as reformas do Estado brasileiro e as privatizações, como um componente fundamental destas reformas, entraram na agenda governamental e midiática. Deste processo de disputas por um modelo de reformas do Estado, duas dimensões se polarizavam. De um lado os liberais vinculados às orientações de reformas para o mercado e, de outro, os intervencionistas marcadamente influenciados pelo nacional-desenvolvimentismo, que já dava sinais de esgotamento ou, no mínimo, apresentava limites à sua continuidade enquanto modelo a ser adotado. Porém alguns autores buscaram superar tal polarização apresentando um conjunto de desafios que o país precisaria enfrentar para superar os estrangulamentos presentes na economia, em particular, e no Estado, de forma geral. Schwartzman (1982) é um dos autores que vai apresentar, como desafio ao Estado brasileiro, a seguinte transição: a) Superar a herança patrimonialista, os nichos de ineficiência e os traços de autoritarismo e burocratismo presentes no Estado brasileiro. O resultado seria a construção de um Estado democrático, moderno e responsivo para com a sociedade em suas diversas demandas. b) Superar o liberalismo identificado como sinônimo de privatismo e, ao mesmo tempo, criar novos canais de representação e de participação no sistema político (SCHWARTZMAN, 1982). Embora houvesse diversos autores empenhados em propor novos caminhos e novos projetos à realidade brasileira frente aos acontecimentos nacionais e internacionais do final do século XX, a polarização (liberalismo privatista e intervencionismo nacional desenvolvimentista) foi a principal marca no processo de reformas do Estado no Brasil nos anos 1990. As características do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e a constituição de um tipo particular do Estado e da administração pública estatal, associadas a um conjunto de organismos multilaterais internacionais, influíram decisivamente no tipo de orientação e de reforma a

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ser realizada, principalmente as ocorridas a partir da década de 1990, no governo do presidente Fernando Collor de Mello. Um dos marcos neste processo foi o chamado Consenso de Washington, cuja meta principal era a de redefinir e reconstruir os países em desenvolvimento (emergentes), dada a crise em que estavam (principalmente os latino-americanos). Participaram do Consenso o FMI, o BIRD e o BID, que tiveram significativa relevância para a construção de novos modelos de reformas do Estado e de gestão pública a serem incorporados e implantados pelas economias emergentes. Além de representantes do governo dos Estados Unidos, destacaram-se como atores, naquele momento, altos funcionários dos organismos financeiros internacionais e economistas de diversos países, inclusive expoentes latino-americanos (desde que alinhados ao pensamento econômico proposto). Portanto, as crises de financiamento do final dos anos 1970 e da primeira metade dos anos 1980 contribuíram para a mudança de estratégia e para o estabelecimento de novas relações dos organismos de financiamento internacional com os países em desenvolvimento (na América Latina, em particular). A principal alteração neste processo foi o estabelecimento de novas condições e mudanças nas regras de empréstimos e de refinanciamento das dívidas dos países latino-americanos (LICHTENSZTEJN; BAER, 1987; ARAÚJO, 2001). Tais mudanças tiveram como marco os relatórios sobre o desenvolvimento mundial, elaborados pelo BIRD a partir de 1989. O eixo central das mudanças consistia em recomendar reformas do Estado orientadas para o mercado, defesa de uma lógica de desenvolvimento dependente e associado, e mudança do modelo de gestão da administração pública, de burocrática para gerencial (BANCO MUNDIAL, 1989). O ponto de partida objetivo do relatório do Banco Mundial (1989) foram as análises das crises e as inúmeras tentativas de ajustes estruturais ocorridos nos países em desenvolvimento (destacando-se os latino-americanos) desde o final da década de 1970. Nesse período, marcado pela segunda crise do petróleo, crise da dívida e crise de financiamento internacional, as recomendações para superação de tais estrangulamentos estavam baseadas, sobretudo, na constituição de um sistema financeiro mais aberto e liberal voltado para as reformas orientadas para o mercado (WORLD BANK, 1987; FISCHER; TRAY; SHAH, 1990). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 9-39 | jan.-abr. 2016

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Mais detalhadamente, houve avaliação das reformas realizadas no Chile e no México, que seriam utilizadas quase como modelos para justificar a necessidade de mudança na orientação econômica dos países em desenvolvimento (emergentes). Desta forma chegavam ao fim as orientações político-econômicas da social-democracia, por um lado e, do desenvolvimentismo, por outro. Em substituição a ambas, entravam na cena internacional e rapidamente ganhariam hegemonia as políticas econômicas orientadas para o mercado. O Consenso de Washington ganhava peso e importância. Essa nova orientação econômica marcada pela volta do mercado nasceu e se consolidou com grande influência dos debates intelectuais e acadêmicos que criticavam as políticas de substituição das importações realizadas praticamente em toda a América Latina nas décadas de 1960 e 1970.5 Para esses críticos, as economias desses países apresentariam melhores índices e taxas de crescimento se a lógica da economia e do Estado fosse outra, ou seja, se houvesse fortalecimento dos mecanismos de mercado e reforma da administração pública (KRUGMAN, 1996). Por outro lado, as reformas realizadas entre o final dos anos 1970 e a década de 1980 foram significativas para o fortalecimento do Consenso. Entre as mais importantes estão as experiências do Reino Unido e dos Estados Unidos, dentre outros países desenvolvidos que adotaram reformas orientadas para o mercado. As principais recomendações advindas dos organismos de financiamento internacional (FMI, BIRB e BIB, por exemplo) e demarcadas como pontos fundamentais pelo Consenso de Washington foram: a) Ajuste estrutural do déficit público. b) Redução do tamanho do Estado. c) Privatização das empresas estatais (especialmente nos setores mais atrativos ao capital). d) Abertura ao comercial internacional (economia de mercado – concorrência). e) Fim das restrições ao capital externo e abertura financeira às instituições internacionais (economia de mercado – desregulamentação).

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f) Desregulamentação da economia (economia de mercado – flexibilização). g) Reestruturação do sistema previdenciário (reformas do Estado). h) Investimento em infraestrutura básica (condições necessárias para o mercado). i) Fiscalização dos gastos públicos (reformas do Estado) (BATISTA, 1995). Para alcançar tais propósitos, o Banco Mundial começa a incluir em seus relatórios os passos necessários a serem seguidos pelos países em desenvolvimento (emergentes), especificamente os latino-americanos. Estes países eram orientados para realizar a transição de um modelo nacional-desenvolvimentista para um modelo voltado para o mercado e, simultaneamente, adotar novas formas de gestão em lugar da estrutura burocrática da administração pública. No relatório do Banco Mundial (1991),6 verifica-se a construção de uma confluência da perspectiva de maior abertura da economia ao mercado e das mudanças na administração pública do Estado, com as proposições do desenvolvimento dependente e associado. Portanto, o Estado deveria atuar somente onde fosse necessário, deixando para o mercado a regulação dos setores propícios à reprodução do capital. Teria que ser mais aberto à economia em escala global e constituir uma nova forma de administração pública (gerencialismo), gerando mais eficiência e eficácia no atendimento das demandas da sociedade civil (BANCO MUNDIAL, 1991). No relatório do Banco Mundial (1994),7 há o fortalecimento das propostas anteriores e maior cobrança para implantação das mesmas pelos países em desenvolvimento. Do ponto de vista da administração pública, tiveram destaque a gestão das empresas públicas em bases comerciais (gerencial), a entrada do capital privado na provisão da infraestrutura e uma maior participação da sociedade na prestação dos serviços públicos. O relatório ainda recomenda a um conjunto de setores (energia elétrica, telecomunicações e transporte, por exemplo), essenciais ao funcionamento das economias desses países, mais eficiência por meio da provisão e da gestão privada, ou seja, vinculando-se à lógica de mercado. Já o relatório do Banco Mundial (1997)8 propõe o fortalecimento da hegemonia da gestão pública (gerencial) e das reformas estruturais necessárias (diminuição do papel do Estado). O Estado não deveria ser encarado

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como o único provedor (produtor), mas sim como o aparato institucional e político que cria condições para o livre jogo de mercado. Dessa forma, seria mais eficiente na sua administração pública e ao mesmo tempo criaria condições e espaço para entrada da concorrência onde possível. O Banco Mundial (1997) estabelece como meta a ser cumprida pelos países em desenvolvimento a incorporação de uma nova política econômica marcada por um ‘ajustamento econômico’ para melhorar o desempenho econômico. Neste processo, as reformas macroeconômicas vinculadas à taxa de câmbio, à política fiscal e à política comercial foram implantadas mais rapidamente por não exigirem uma redefinição de instituições e/ou novos desenhos institucionais no Estado. Ou seja, são instaladas por meio de decisões política e tecnocrática. É com base neste contexto histórico, político-econômico e institucional, envolvendo atores locais/nacionais e internacionais vinculados aos organismos multilaterais de financiamento e propositores de modelos para a condução político-econômica, que o Brasil vai realizar sua reforma do Estado, principalmente a partir da década de 1990. Ou seja, as reformas iniciadas no governo do presidente Fernando Collor de Melo, e que se estenderam nos governos seguintes, preconizavam: abertura comercial (1990); Plano Nacional de Desestatização (1990); renegociação da dívida externa (assinada em 1992); Plano Real (1994); quebra dos monopólios e restrição ao capital estrangeiro (1995) e Lei de Concessão de Serviços Públicos (1995). As orientações do Banco Mundial viriam a ser fundamentais para realização das reformas orientadas para o mercado. As condições necessárias à renegociação da dívida imposta pelo FMI e pelo Banco Mundial (1987, 1989, 1991, 1994 e 1999) aos países endividados foram a implantação de abertura comercial e da realização de um conjunto de reformas segundo suas proposições. Com isto, as privatizações, realizadas em atendimento das proposições citadas acima, seriam o único caminho para o retorno do desenvolvimento. Ou seja, neste ‘olhar’ do Banco Mundial, as privatizações seriam a melhor estratégia para o desenvolvimento, seja no leste europeu (antigos países socialistas), nos países asiáticos ou nos latino-americanos.

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As privatizações no governo FHC: um processo histórico, uma questão política e econômica nos anos 1990 As discussões sobre as privatizações, especialmente as ocorridas nos setores de infraestrutura, anteriormente geridos por empresas públicas em diversos países em desenvolvimento e mesmo em alguns desenvolvidos, nos remetem a questões de natureza e de práticas políticas e econômicas. Isto porque, para o quadro conceitual do liberalismo econômico, as empresas públicas seriam portadoras de algumas contradições, sendo uma, em particular, bastante significativa: a de que a empresa pública, ao mesmo tempo em que se apresentava como fator de acumulação de capital, também representava um instrumento de política de governo – fato inconcebível para esta linhagem teórica, por contrariar as possibilidades de tomada de decisões no livre jogo do mercado. Embora indesejadas pelo liberalismo econômico, as empresas públicas ocuparam um lugar de destaque, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, principalmente a partir do pós-Segunda Guerra Mundial. Os setores mais visados e mais facilmente transformados em empresas públicas foram os voltados para os serviços de utilidade pública ou os necessários à implantação de indústrias de base nos países em desenvolvimento. Onde havia necessidade de romper com os estrangulamentos econômicos, esses setores passavam por uma estratégia de substituição das importações como verificamos no caso brasileiro, por exemplo. Outro fator presente nos países em desenvolvimento era a baixa capacidade dos grupos locais em darem respostas rápidas e efetivas à necessidade de se implantar uma indústria em um processo que exige grandes mobilizações de capital num tempo relativamente curto de maturação e, ao mesmo tempo, sem atrativos para o capital internacional. Tal quadro é verificado no caso do setor elétrico brasileiro, principalmente a partir da década de 1950, seja sob um governo democrático (Getúlio Vargas, em seu segundo mandato, Juscelino Kubitschek e João Goulart) ou sob governos autoritários (governos militares pós-1964). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 9-39 | jan.-abr. 2016

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Mesmo oriunda das motivações já expostas, a empresa pública sofreu fortes ataques dos defensores da liberalização econômica, desde o início. Ou seja, para esta abordagem teórica, a interferência do Estado nas questões econômicas estaria criando muito mais problemas (por mais que estes somente aparecessem em médio prazo) do que soluções para suas respectivas economias. Ou porque o Estado seria ineficiente na condução econômica, ou porque geraria déficit público, a solução que sempre se apresentava era a transferência do controle dessas empresas para o setor privado. No contexto da construção histórico-econômica da privatização como única alternativa para adoção de políticas econômicas voltadas para o mercado nos países em desenvolvimento, embora com algumas especificidades de país para país,9 podemos afirmar que as privatizações tiveram papel central no debate sobre as reformas do Estado na década de 1990, principalmente nos países latino-americanos, especialmente o caso argentino e o brasileiro, respectivamente os países que mais privatizaram na América Latina. A Argentina privatizou suas empresas entre os anos de 1990 e 1999 a uma média anual de US$ 4,46 bilhões, 1,51% de seu PIB em 1999. Já o Brasil privatizou a soma de US$ 6,98 bilhões, equivalente a 0,93% do seu PIB naquele mesmo ano, embora o ano anterior, 1998, tenha sido aquele em que o país mais privatizou: US$ 33,427 bilhões (VELASCO E CRUZ, 2004, p. 99). Como evidenciado até o momento, as privatizações se assentaram numa lógica de entregar ao mercado os setores da economia mais atrativos aos grupos econômicos nacionais e internacionais. Todavia, essa tomada de decisão não é meramente técnica, ou seja, marcada por uma escolha simplesmente técnico-burocrática. Ela passa também por uma decisão política, ou seja, sobre que tipo de atuação compete a este novo Estado, centrado muito mais na fiscalização e regulação dos setores rentáveis da economia por meio de agências reguladoras. Tal qual veremos no caso brasileiro com a criação na Aneel para o setor elétrico; da Anatel para o setor de telecomunicações e da ANP para o petróleo, entre outras. Todavia, as tomadas de decisão do plano governamental para realização de tais reformas privatistas também não foram fáceis, por envolverem um conjunto muito grande de atores participando de forma direta ou indireta deste processo.

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Além do Estado nacional, representado por suas diversas forças e instâncias – executivo, legislativo, judiciário; oposição política; movimentos sociais; ONGs e capital econômico nacional/regional e local –, marcando um conjunto de negociações e debates endógenos, havia também os fatores exógenos, caracterizando por um lado, as recomendações de diversas agências multilaterais e de fomento (FMI, Banco Mundial etc.) e, por outro, as fortes pressões das imensas massas de capital transnacional requerentes de novos mercados para investimentos e para a continuidade de seus processos de acumulação e concentração. As reformas estatais orientadas no sentido da privatização são uma característica da década de 1990. Essa proposição reformista tem como principais metas a estabilidade dos preços, a privatização, a abertura ao exterior (em termos comercias e também de captação de recursos) e a regulação (também do setor financeiro). O primeiro decreto que deu legalidade à privatização (no caso brasileiro) foi o de nº 86.215, no governo Figueiredo, que fixava as primeiras diretrizes para a transferência e desestatização de empresas controladas pelo governo federal. Isso ainda durante o governo militar, porém em consonância com proposições semelhantes que estavam ocorrendo na mesma época na Argentina e no Chile, ambos também sob ditaduras militares. Já o Programa Nacional de Desestatização pode ser dividido em quatro fases, a saber: a primeira, que se inicia em 1981, marca a desestatização ou reprivatização das empresas que foram estatizadas por se encontrarem em situação falimentar ainda durante o governo militar. Podemos citar o caso da Aracruz Celulose. As empresas privatizadas até 1989 eram pequenas e, consequentemente, os resultados financeiros obtidos foram bem modestos, atingindo a cifra total de 735 milhões de dólares, correspondente a 39 empresas privatizadas. A segunda fase se iniciou em 1990 e foi um processo de privatização focado nas estatais produtoras de bens, com ênfase nos setores siderúrgicos, petroquímicos e de fertilizantes. Das 20 empresas privatizadas até 1992, o total financeiro arrecadado foi de 5,4 bilhões de dólares entre a receita das vendas e as transferências de dívidas (CYSNE, 2000). Na terceira fase, a partir de 1993, há mudanças de cunho institucional nas regras das privatizações. Entre as principais alterações destacamos a Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 9-39 | jan.-abr. 2016

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ampliação dos créditos contra o Tesouro (o aceite das chamadas ‘moedas podres’) para fins de privatização e a eliminação de restrições aos investidores estrangeiros, permitindo na maioria dos casos a participação de até 100% do capital votante. Na quarta e última fase, cujo início data de 1995, verificamos a entrada das concessões dos serviços públicos no processo. Nessa fase, o governo estaria preocupado em deslocar os investimentos realizados em infraestrutura para o setor privado, a fim de evitar futuros estrangulamentos no crescimento econômico. Porém, o governo teria se descuidado na questão da regulação, que é criada já com o processo em andamento. A seguir vamos apresentar de forma mais detalhada este processo de construção da privatização como elemento central da reforma do Estado e como principal estratégia para o desenvolvimento econômico do Brasil nos anos 1990. As privatizações brasileiras, enquanto um dos elementos fundamentais para as reformas do Estado, tiveram como marco o Programa Nacional de Desestatização – PND, instituído pela Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, que colocou as privatizações no centro das reformas econômicas iniciadas pelo governo Collor e que foram aprofundadas no decorrer da década de 1990. Durante os mandatos dos presidentes Collor e Itamar Franco (de 1990 a 1994), foram desestatizadas 33 empresas pelo governo federal, sendo 18 controladas e 15 participações minoritárias da Petroquisa e Petrofértil. Ainda foram realizados mais oito leilões de participações minoritárias no âmbito do Decreto nº 1.068 (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002a). Deste processo de privatização o governo obteve uma receita de aproximadamente US$ 8,6 bilhões,10 que, acrescida de US$ 3,3 bilhões de dívidas transferidas ao setor privado, somaria US$ 11,9 bilhões (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002a). As moedas utilizadas neste processo de privatização foram as mais diversas, destacando-se entre elas os Títulos da Dívida Pública Federal – “moedas da privatização” – que responderam por aproximadamente 81% da receita obtida com a venda das empresas no período de 1990 a 1994, para atender à prioridade dada pelo governo ao ajuste fiscal.11

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Outro fator importante neste processo foi a pequena participação dos investidores estrangeiros no âmbito do PND neste período (1990/1994), caracterizando-se eminentemente pela presença das empresas nacionais, das instituições financeiras, das pessoas físicas e dos fundos de pensão. Como veremos a seguir, a participação dos investimentos estrangeiros a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso passa a ser a mais significativa, ocupando grande destaque no cenário econômico. Com a eleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi dada maior prioridade às privatizações. Para tal, alguns ajustes institucionais foram realizados no âmbito do PND, caracterizado ainda mais como um dos principais instrumentos da reforma do Estado (como parte constituinte do programa de governo). Com esta maior ênfase nas privatizações a partir de 1995, o governo do presidente FHC cria o Conselho Nacional de Desestatização (CND), em substituição à Comissão Diretora. A partir do CND inicia-se uma nova fase da transferência dos serviços públicos começam a ser transferidos ao setor privado, dentre os quais destacamos os setores elétrico, financeiro, de telecomunicações, rodovias, saneamento, portos e as concessões das áreas de transportes. No período anterior (1990/1994) haviam sido utilizadas principalmente as chamadas “moedas da privatização”, como já exposto, ao passo que, no período de 1995 a 2002 (primeiro e segundo mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso) houve um aumento significativo da arrecadação de moeda corrente nacional, resultado dos leilões de privatizações (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002a).12 Das privatizações brasileiras realizadas no período de 1995 a 2002, os setores de infraestrutura/serviços responderam por cerca de 80% da receita de venda, sendo o restante dividido entre 14% para os setores industriais e 6% para participações minoritárias (que envolvem o Decreto nº 106813 e privatizações estaduais). Os setores de energia elétrica e de telecomunicações foram os mais representativos nesse processo, representando cada um aproximadamente 31% da participação setorial nas privatizações. Ou seja, juntos, responderam por aproximadamente 62% das participações setoriais (privatizações realizadas nas esferas federal e estadual). No caso do setor elétrico,

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os estados tiveram grande participação para o resultado final, por exemplo, o estado de São Paulo realizou um conjunto grande de privatizações no setor (na geração e distribuição, principalmente). GRÁFICO 1

– Participação setorial nas privatizações de 1990 a 2002* 7%

6%

4%

2% 1%

1%

8%

31%

8%

31%

Energia Elétrica

Telecomunicações

Mineração

Siderúrgico

Petróleo e Gás

Financeiro

Petroquímico

Transportes

Decreto 1.068 Outros

Fonte: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2002a. * Total arrecadado de US$ 105,30 bilhões (receita de venda mais dívidas transferidas). O período 1990-1994 respondeu por 11,2% e o período 1995/2002 por 88,8%.

As privatizações no setor elétrico começaram a ser efetivadas, primeiramente, no âmbito federal, com o processo de desestatização a partir da venda da empresa Espírito Santo Centrais Elétricas S.A. – Escelsa. Empresa concessionária que atuava no serviço público de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, a Escelsa foi privatizada em 11 de julho de 1995. Posteriormente foram privatizadas a Light Serviços de Eletricidade S.A., empresa concessionária de serviço público na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, e a Gerasul, empresa de geração de energia elétrica oriunda da cisão da Eletrosul. A Light foi privatizada em 21 de maio de 1996 e, a Gerasul, em 15 de setembro de 1998. Na esfera estadual, as privatizações começaram um pouco depois e foram marcadas, entre outros problemas, pelos conflitos político-institucionais que tiveram que se ajustar à estrutura federativa do país. Foi

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privatizado um total de 20 empresas do setor elétrico, sendo 17 distribuidoras e 3 geradoras. Seguem abaixo dois quadros: um, apresentando as empresas estaduais geradoras de energia elétrica privatizadas e, o outro, as empresas estaduais distribuidoras de energia elétrica privatizadas. QUADRO 1

– Empresas geradoras de energia elétrica privatizadas em esfera estadual (1995/2002).

Empresa geradora

Data da oferta - privatização

Estado

Cachoeira Dourada

05/09/1997

Goiás

CESP – Paranapanema

28/07/1999

São Paulo

CESP – Tietê

27/10/1999

São Paulo

Fonte: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2002a.

QUADRO 2 – Empresas distribuidoras de energia elétrica privatizadas em esfera estadual

(1995/2002). Empresas distribuidoras

Data da oferta - privatização

Estado

Cerj

20/11/1996

Rio de Janeiro

Coelba

31/07/1997

Bahia

CEEE – Centro-Oeste

21/07/1997

Rio Grande do Sul

CEEE – Norte – NE

21/10/1997

Rio Grande do Sul

CPFL

05/11/1997

São Paulo

Enersul

19/11/1997

Mato Grosso do Sul

Cemat

27/11/1997

Mato Grosso

Energipe

03/12/1997

Sergipe

Cosern

12/12/1997

Rio Grande do Norte

Coelce

02/04/1998

Ceará

Eletropaulo Metropolitana

15/04/1998

São Paulo

Celpa

09/07/1998

Pará

Elektro

16/07/1998

São Paulo

EBE

17/09/1998

São Paulo

Celpe

17/02/2000

Pernambuco

Cemar

15/06/2000

Maranhão

Saelpa

30/11/2000

Paraíba

Fonte: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2002a.

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Além das privatizações supramencionadas, ainda houve no âmbito do PND, entre 1995 e 2002, a realização de 23 leilões de participações minoritárias incluídas no PND pelo Decreto nº 1.068 que também contou com uma predominância no setor elétrico brasileiro. Já nos programas estaduais de privatização, entre 1997 e 2002, foram realizados 16 leilões de participações minoritárias. A partir de 1996, com a instituição da Lei nº 9.427/96 foi criada a Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, com a finalidade de regular e fiscalizar a produção (geração), transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, segundo as políticas e diretrizes do governo federal. Além da criação da Aneel, também foi inserido no PND um conjunto de aproveitamentos hidrelétricos e de linhas de transmissão para tentar aumentar a capacidade de produção e de transmissão em alta tensão de energia elétrica. No caso da geração, as licitações para exploração de aproveitamentos hidrelétricos ocorreram de 1996 a 2002, tendo uma maior concentração nos anos de 2000 e 2001.14 Já as novas concessões de transmissão de energia elétrica marcaram o período de 2000/2002, sendo que nestas licitações não havia pagamento pela concessão, pois os vencedores eram aqueles que ofereciam a menor tarifa de transmissão. Segue-se abaixo um quadro resumido dos resultados dos leilões de linhas de transmissão. Resultado dos leilões de linhas de transmissão (2000/2002) – em números de linhas, Km e US$ milhões.

QUADRO 3 –

Ano

Linhas licitadas

Extensão da linha

Investimento previsto

Km

US$

2000

6

2.498

1.018,6

2001

8

3.666

824,8

2002

11

1.859

285,4

Total

24

7.808

2.196,8

Fonte: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2002a.

As privatizações, tanto na esfera federal como na esfera estadual, concentraram-se mais nos anos de 1997 e 1998, sendo que o setor elétrico foi um dos principais responsáveis por este resultado.

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Considerações finais A análise do setor elétrico brasileiro em sua íntima relação com o Estado e com a forma que o capitalismo assume no Brasil foi de suma importância para o tratamento do setor elétrico neste artigo. Isto porque nos propiciou, a partir de uma abordagem sociológica, que integrou na análise a história, evidenciar um pouco da trajetória do setor no Brasil. Como vimos, o entendimento do setor elétrico, da sua dinâmica e da ampliação feita a partir da atuação direta do Estado no setor foi central para a trajetória urbana e industrial brasileira. Neste sentido, pode-se dizer que o setor elétrico acabou por mediar Estado e capitalismo, por um lado e, por outro, incidiu diretamente sobre múltiplos aspectos da vida social, política, econômica, jurídica e mesmo técnica no país. Desde o seu surgimento na iniciativa privada, em empreendimentos localizados e de baixa escala, passando por sua integração ao Estado – quando tornou-se dinâmico e ganhou escala nacional, enfrentando as crises políticas e econômicas do final dos anos 1970 – até chegar às transformações e reestruturações iniciadas na década de 1990, evidencia-se a importância dos fatores estruturais e históricos na história do setor elétrico brasileiro. Aos fatores estruturais do capitalismo ou do próprio setor, integra-se a dinâmica dos atores, classes e instituições, em uma trajetória de conflitos e relações de poder, marcada pela construção e alteração de hegemonias nas orientações técnico-econômica e política, que impactou o Estado e o capitalismo no país. A compreensão (interpretação) sociológica crítica, em diálogo com o saber de outras áreas das humanidades (história), nos dão as condições científicas e intelectuais para desvendar o fenômeno em referência, isto é, entender a relação entre o Estado, o capital (transnacional ou nacional) e a sociedade no processo de estruturação e reestruturação do setor elétrico. Não se trata apenas de uma simples relação dicotômica. mas sim uma construção, a partir de relações de poder, propiciada por atores, regras jurídicas e políticas institucionais específicas, nas quais se fazem pertinentes o movimento geral da economia e sua relação com o Estado brasileiro.

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Neste sentido, a reconstrução histórica, político-institucional e, acima de tudo, sociológica acerca do setor elétrico (especialmente o brasileiro) , na sua íntima relação com o desenvolvimento do capitalismo e das sociedades urbano-industriais, nos mostrou como a constituição do setor foi marcada por relações de poder, influenciadas inclusive por especificidades locais (nacionais), que também entram na trama. É mediante esta conexão, esta dialética entre o movimento geral e as particularidades locais, que o setor elétrico se constituiu e se afirmou como um elemento estruturador e estruturante, presente na formação do Estado e do capitalismo no país. Por outro lado, o processo de reformas que o Estado brasileiro vivenciou durante a década de 1990 foi constituído por um conjunto de alterações que passaram pela reforma da própria administração pública e pela elaboração de um programa de estabilização da moeda, por reformas constitucionais que redefiniram as formas de atuação do governo na economia e pelo estabelecimento de um novo padrão de tratamento ao capital (nacional e estrangeiro), além da entrada das empresas vinculadas aos serviços públicos no programa de privatização. Neste sentido, os processos de reformas do Estado, notadamente na privatização dos setores infraestruturais e estratégicos – tais como telecomunicações e energia – envolveram múltiplos aspectos (econômicos, políticos, culturais, sociais e simbólicos) e diferentes atores e interesses (de corporações, de classes, de elites políticas e econômicas) tanto nacionais quanto internacionais. Ou seja, foi um processo que, embora tivesse como centro das transformações e mudanças os Estados nacionais e suas respectivas estratégias para o desenvolvimento, para a ruptura dos estrangulamentos políticos e econômicos, teve sua pauta definida e executada mediante a influência de atores e agências internacionais pactuadas com interesses locais e regionais da elite política e econômica, assim como de diferentes poderes no âmbito do Estado – executivo, legislativo e judiciário – inclusive nos governos estaduais. Com isto não podemos falar de imposição de um modelo de fora para dentro, mas sim de um pacto, uma confluência, uma sintonia entre múltiplos atores nacionais e globalizados (internacionais), embora não houvesse, entre esses atores, igualdade de condições quanto ao poder e à capacidade de influência. E também um pacto de diferentes interesses 30

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econômicos, políticos e socioculturais, ainda que somente uma parcela hegemônica da sociedade civil tenha participado desse processo de definição e redefinição de modelos e estratégias.

Notas

1 Esta pesquisa contou com apoio financeiro do CNPq, Faperj. 2 Para maiores detalhes dos atores e dos conflitos nesta dimensão

constitucional, perpassando pela Revisão Constitucional de 1993 e pelo Plebiscito no mesmo ano, ver REGO; PEIXOTO (1998). 3 Para o debate sobre direito constitucional comparado e processo de reformas do Estado, ver SILVA (2004). 4 Este departamento, na prática, acabou por organizar o Estado na dimensão do planejamento, do orçamento e da administração de pessoal, mesmo que ainda vulnerável à influência patrimonial. 5 Ulteriormente também contribuíram para o fortalecimento da volta do mercado as crises econômicas dos países desenvolvidos (capitalismo industrial avançado – central) e a derrocada das economias planificadas (centralização econômica – símbolo do socialismo). 6 BANCO MUNDIAL (1991). 7 BANCO MUNDIAL (1994). 8 BANCO MUNDIAL (1997). 9 O caso que mais se diferenciou dos demais, segundo Velasco e Cruz, foi o coreano que, a partir do pós-guerra, construiu uma indústria já assentada na lógica do mercado, ou seja, a Coreia, ao contrário dos demais países, não conferiu um papel importante à empresa pública. Quando todos os países discutiam privatizações, a Coreia direcionava suas reformas para o estabelecimento de fronteiras mais transparentes entre os interesses privados e o poder público, na tentativa de evitar os vícios dos grupos monopolistas – independentemente de serem privados ou públicos (VELASCO E CRUZ, 2004, p. 98-99). 10 O setor siderúrgico apresentou uma receita de venda de US$ 5,562 bilhões,

seguido do petroquímico, com receita de venda de US$ 1,882; o setor de

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fertilizantes apresentou uma receita de venda de US$ 418 milhões; no âmbito do Decreto nº 1068, a receita de venda foi de US$ 396 milhões e, por fim, outros setores representaram aproximadamente US$ 350 milhões. (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002a). 11 Outras moedas aceitas foram: dívidas securitizadas (débitos internos do

governo); debêntures Siderbrás; Certificados da Privatização; Obrigações do Fundo Nacional de Desenvolvimento; Títulos da Dívida Agrária (TDA), dentre outras (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002a). 12 As empresas nacionais responderam por aproximadamente 26% da receita

da venda; as pessoas físicas, cerca de 8%; o setor financeiro nacional, cerca de 7% e as entidades de previdência privada, cerca de 6% (Ministério do Planejamento; BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002a). 13 Este decreto inclui no Programa Nacional de Desestatização “as

participações societárias minoritárias de que são titulares as fundações, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e quaisquer outras entidades controladas, direta e indiretamente, pela União” (BRASIL 1994). 14 Do total de 55 novas usinas licitadas no período de 1996/2002, os anos de

2000 e de 2001 responderam por 33 novas usinas (BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL, 2002b).

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Júlia Studart Poeta e professora efetiva, em regime de dedicação exclusiva, da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutora em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – bolsista CNPq –, com estágio na Universidade Nova de Lisboa (UNL) – bolsista Capes, 2011 –, com pesquisa sobre narrativa e poesia portuguesa contemporâneas. Mestre em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas (UFSC) – bolsista CNPq –, com pesquisa sobre narrativa e arte contemporânea no Brasil. Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado na Unicamp, entre arte visual e literatura, a partir do trabalho de Nuno Ramos – bolsista Fapesp, 2013 –. Atua nos seguintes temas: poesia e narrativa brasileira e portuguesa contemporânea, oficina de produção de texto e imaginação crítica, estudos da materialidade do texto, teoria da dança e artes visuais. Publicou Wittgenstein & Will Eisner – se numa cidade suas formas de vida (Lumme Editor, 2006), Livro Segredo e Infâmia (Editora da Casa, 2007), Arquivo debilitado, o gesto de Evandro Affonso Ferreira (Editora Dobra, 2012) e Nuno Ramos (EdUERJ, 2014 - Coleção Ciranda da Poesia). Mais recentemente, publicou o livro de poemas Logomaquia (Editora 7Letras, 2015).

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Resumo Uma questão fundamental que gira em torno do trabalho do artista visual e escritor Nuno Ramos, produzido nesse lugar movediço entre a literatura e as artes visuais, tem a ver com as metamorfoses. Assim, esse texto se propõe a discutir o quanto é possível construir um procedimento que pensa a questão da forma entre “a forma difícil” e uma “recusa das formas fáceis e impositivas”, e o que também se pode projetar como um encontro das formas e um encontro com as formas, quando Nuno Ramos procura engendrar corpos eróticos e políticos que se expandem até produzir uma ideia de limite: uma espécie de desejo para dar forma ao informe e inventar interferências no espaço. Palavras-chave: Arte. Literatura. Forma. Corpo. Metamorfoses.

Abstract A fundamental question that surrounds the work of the visual artist and writer Nuno Ramos, which is done in such a slippery place between literature and visual arts, concerns metamorphoses. Thus, this text aims to discuss how much is possible to build a procedure that thinks the question about form between “the difficult form” and a “refusal of the easy and authoritative forms” and what also may be projected as a meeting of forms and a meeting with the forms, when Nuno Ramos seeks to engender erotical and political bodies which are expanded until they produce an idea of limit: a kind of desire to give form to the formless and to create interferences in the space. Keywords: Art. Literature. Form. Body. Metamorphoses.

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Nuno Ramos e suas metamorfoses

Introdução Goethe, ao escrever sobre Luke Howard, um cientista inglês interessado nas modulações da meteorologia, por volta de 1820, fala do quanto toda obra humana deve ser apreciada de um ponto de vista ético diante dos movimentos de toda uma vida e, mais, de como a natureza consegue se abrir a certos espíritos, de como ela comunga íntima e ininterrupta com certas almas. Ao mesmo tempo, escreve muito sobre o seu desejo de “dar forma ao informe, de encontrar um princípio que possa reger a infinita mutação das formas”, e do quanto isso está, diz ele, “igualmente patente em todos os meus esforços no âmbito científico e artístico” (GOETHE, 2012, p. 29). Goethe se concentra, a partir disso, no que ele mesmo toma como diversão: tentar perceber a mutação das formas, as suas metamorfoses. Por isso, principia um projeto de inscrição do mundo a partir da metamorfose das plantas ou do jogo das nuvens, por exemplo, o que o leva também à construção de seus personagens entre a observação da viagem e da pintura de paisagens. Goethe está impondo um pensamento sobre o conceito de limite, o que só é possível de ser tocado a partir e através da imaginação. O limite tem a ver com uma leitura das proporções entre coisas dissemelhantes, “uma mistura indiscernível entre o acaso e lei” e aí, segundo Maria Filomena Molder, está “o incalculável e o incomensurável da história universal” que Goethe perseguia tanto em suas observações tanto do mundo natural quando da máquina do mundo dos homens. São as suas morfologias das leis descontínuas ou “o que você quer no final de contas com a história?”, pergunta Goethe (GOETHE apud MOLDER, 2014, p. 49). No ano 2000, o artista visual e escritor Nuno Ramos monta uma instalação permanente, Minuano, na Barra do Quaraí, Rio Grande do Sul – um município na fronteira entre Brasil, Uruguai e Argentina –, dentro do projeto Fronteiras do Itaú Cultural. A instalação é composta de cinco blocos de mármore branco, que pesam entre quinze e trinta toneladas cada, com espelhos incrustados no interior de uma de suas faces. É importante considerar uma pequena anotação do diário desse trabalho, quando ele diz: “Não é a natureza, não é o pampa. É apenas um pasto. Cercas, porteiras, vacas, alamedas artificiosas de eucaliptos, barragens, sulcos encharcados onde brota o arroz tornam aquilo

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um lugar, imensidão domesticada, infiltram finalidade na paisagem” (RAMOS, 2007, p. 222). Ou seja, entre a paisagem domesticada, o pasto e as alamedas capciosas, Nuno não apenas observa e monta um trabalho, mas principalmente toma nota das modulações de certos fenômenos: do sol oblíquo, da lonjura plana (já que, por contraste, aparece um céu que fica mais curvo), de um estranho jogo de nuvens e, principalmente, do que ele considera como uma desproporção, gerada “entre perto e longe quando algo passa por você, além do silvo constante do vento (minuano ou sul) e a possibilidade de ver, simultaneamente no horizonte, à esquerda o Uruguai e à direita a Argentina” (RAMOS, 2007, p. 222), e é isto que, segundo ele, devolve ao pasto a sua condição de natureza. O que se tem aí, entre o trabalho e a anotação do diário de trabalho, é o quanto Minuano hesita, como limite, entre os gestos de composição do lugar e de interferência no espaço, diante do frágil e instável duo que ele sugere: natureza-pasto.1 FIGURA 1:

Minuano

Fonte: Ramos (2007)

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FIGURA 2:

Minuano

Fonte: Ramos (2007)

Importante sabermos que o vento minuano é também conhecido como um vento pampeiro. E que deve seu nome aos Minuanos, um povo indígena que tem origem na Patagônia, assim como os Charruas e os Guenoas, antigos habitantes do planalto médio do Rio Grande do Sul, do pampa gaúcho, e das fronteiras do Rio Grande do Sul com Argentina e o Uruguai. É um vento frio, de origem polar com orientação sudoeste, e que tipicamente avança como um grande e prolongado assovio pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Quase sempre cortante, ele surge depois da passagem das frentes frias de outono e inverno, geralmente depois das chuvas. Um corte no espaço, um estado para uma composição de lugar.

A duração geológica Assim, numa expansão da anotação ou de uma ideia em torno do limite, Nuno também nos apresenta as vacas – este animal plural que Leminski (1983, p. 76) já nos apresentara quando escreve num pequeno poema de seu Caprichos & Relaxos que “a vida é as vacas / que você põe no rio / para atrair as piranhas / enquanto a boiada passa”. Nuno, por sua vez, diz que As vacas serão as companheiras de minhas pedras-espelho. Vão se coçar no mármore, sujá-lo com seu pelo. Vão ver sua imagem refletida. Será a

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primeira vez que uma vaca verá sua imagem num espelho vertical (os horizontais são água). Talvez evoluam a partir disso, tornando-se bípedes, os úberes na frente (RAMOS, 2007, p. 222).

A tentativa de Nuno, que não é contrária à de Leminski, mas sim uma deriva, é a de tocar a experiência do processo de reconhecimento da natureza como uma articulação de seu processo de trabalho, algo mais perto do arqueólogo malcomportado, como sugere Flávio de Carvalho, o que oscila entre a coleção e a classificação das formas. O que Goethe já chamara, de outro modo, de uma Urplanze, ou seja, um encontro com a forma, uma intuição da forma, uma antecipação da forma viva (eis as vacas, por exemplo). É interessante perceber que, para Goethe, intuir a natureza é também um modo de intuir a si próprio. É possível, numa anotação desdobrada ainda desse diário em torno de Minuano, observar que enquanto Nuno Ramos sugere, por exemplo, alguns relevos sobre o peso das formas, está a dizer, ao mesmo tempo, algo sobre o revelo de sua/nossa própria circunstância no tempo da vida, o peso como uma espécie de valor liminar entre o ser e o aparecer. Diz ele: O peso da pedra, seus veios azuis e verdes, o embriagado do mármore, a palavra mármore, a palavra pedra, o silêncio dela (o granito é ainda mais calado), o espelho que cava o céu no buraco da pedra, o espelho que cava o pasto no buraco do mármore, a palavra buraco, o espelho como um farol, o reflexo que cega, o reflexo do sol que cega batendo no espelho dentro do mármore.

[...] O peso e o bojo do mármore parecem expulsos pelos espelhos. Matacões não se relacionam, apenas duram, ensimesmados. Espelhos trazem o que é transitório para dentro deles, afrouxando aquela concentração que as pedras parecem ter, aquela obstinação de permanecer iguais a si mesmas. (RAMOS, 2007, p. 227-232)

Anota ele a dimensão da perspectiva do peso (a partir do mármore, a pedra) que trata de fincar num ambiente natural, enquanto, numa dobra do instante, o que se tem é um artifício fincado no mundo natural: os espelhos. E são os espelhos – que se comportam numa releitura das formas de Amílcar de Castro entre o corte e a dobra, por exemplo – que incorporam e sugam o espaço, que dão potência ao espaço, às fronteiras e aos limites entre Uruguai e Argentina que se refletem e se apagam nesse

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espelho que as alarga ao também duplicá-las. As vacas, que se detêm ali como a vida, traçam uma companhia ao trabalho, ao artifício, como uma presença fabulosa e natural de toda inocente crueldade. Esse trabalho se compõe como uma espécie de “forma difícil”, como define o crítico de arte Rodrigo Naves, numa tentativa de ler num conjunto algo da nossa produção de arte moderna (de tradição irregular e esparsa), para além de sua timidez formal, que tem, por exemplo, artistas que são muito importantes para Nuno Ramos, como Iberê Camargo, Mira Schendel e o próprio Amílcar de Castro. Artistas que trabalham com formas agudas (porque há muitas dobras impensadas nas formas que constroem) mas, ao mesmo tempo, formas instáveis e frágeis. Em Amílcar, por exemplo, há uma “resistência do ferro ao rigor formal”, ou seja, a matéria não se conforma. Rodrigo Naves escreve que “o ferro que se mostra rijo na superfície da direita ganha outra consistência na dobra” ou, ainda, “o ferro revela uma articulação interna. Não é mais apenas o campo passivo em que se realizam certas operações. Tem regiões, movimentos, toda uma topografia a ser explorada” (NAVES, 2011, p. 233). O exemplo do trabalho de Amílcar de Castro é pertinente porque tudo nele tem a ver com a “recusa das formas fáceis e impositivas”, como se sugerisse que é preciso retirar as coisas do repouso e da convenção, dar a ver a dobra, o corte, o desvio – o que quase sempre parece atenuar o peso do aço corten – e colocam o trabalho em uma comunicação direta com o espaço numa espécie de equilíbrio tênue e circular. Tanto que muitas peças, ou quase todas, apontam para uma penetração do espaço, quando o espaço penetra a dobra com sua paisagem e gera um corte natural do artifício no corte que ele já fizera antes. É assim que o espaço, como um diverso, invade o seu trabalho através do corte ou da dobra, como uma exterioridade da chapa de ferro, ou o que ele define ainda como “o espaço conquistado na dobra”. Ou seja, como fazer a forma interferir no espaço? Assim, com algumas obras desse conjunto de artistas, é possível pensar o quanto a ideia de obra permanente é, quase sempre, uma exibição de desgaste, logo, de fracasso – como podemos ver no caso específico do trabalho de Nuno Ramos que circula em torno da ideia de “forma fraca”, que é, por sua vez, numa ambivalência, num limite, a sua grande potência. Isto tem muito a ver quando o trabalho da e com arte escapa a qualquer ideia de forma assentida historicamente (logo, um tanto branda 48

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e conformada), e lança-se como um projétil até a forma difícil; o traço singular, a goma frágil, impossível de se moldar às estruturas muitas vezes impositivas e instituídas pelo circuito oficial da arte. Ou seja, tanto a forma difícil quanto a forma fraca procuram escapar à linha institucional da história da arte e ao seu empenho meramente hierárquico: tudo o que tende ao monumento, à forma fixa, enrijecida, moldada, pouco flexível e com limites muito bem definidos e quase sempre conformados.2 Interessante perceber o que esses artistas já inseridos no circuito da arte conseguem provocar nesse circuito ao desviar o trabalho para uma faixa de terra distante do centro dessa oficialidade, como um pasto com barragens e sulcos encharcados: “O trabalho não vai ficar num lugar público. Não há lugar público em Quaraí, só uma rua asfaltada, cheia de lojas mal-iluminadas, e duas paralelas de terra, o esgoto aberto à frente das casas” (RAMOS, 2007, p. 223). Tem aí um lance de dados que é fazer o circuito implodir e quebrar-se um pouco, ao menos torcer o pescoço pro lado para olhar o que se faz longe dos centros nervosos do próprio circuito e, ao mesmo tempo, inserir nele outras perspectivas – para fazer com que circuito e trabalho hesitem: “às vezes espaço, às vezes lugar”, natureza e pasto, o céu mais curvo e as porteiras, o silvo do vento e finalidade, os limites entre Brasil, Argentina e Uruguai. Ou ainda algo como “O esquecimento dá à vida uma espécie de duração geológica” (RAMOS, 2007, p. 230).

A lama, o abjeto Numa outra dobra e noutro corte da história, como se sabe, em 1929, Georges Bataille decide combater diretamente todo tipo de idealismo com a criação da revista Documents. No início, com alguma reserva – que o impedia de ir mais longe na sua declaração de guerra –, mas foi a partir do nº 4, que definitivamente fez da Documents uma poderosa máquina de ação política contra o idealismo, bem como contra o surrealismo, disfarçado de maravilhoso. É como se o amor ao maravilhoso (próprio dos surrealistas, de certa forma) dissesse um NÃO profundo à existência e, sabemos, seguindo as pistas de Nietzsche, que todo empenho de Bataille foi em consolidar um movimento do SIM em direção a todas as coisas, principalmente àquilo que o mundo tem e que nos enoja. Uma espécie de caráter destrutivo, como propõe Walter Benjamin, mas que de alguma Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 41-65 | jan.-abr. 2016

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forma já estava em Nietzsche: “Eu conheço o prazer de destruir em um grau conforme a minha força para destruir – em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer Sim do fazer Não. Eu sou o primeiro imoralista: e com isso sou o destruidor par excellence” (NIETZSCHE, 2008, p. 103). Ou ainda, quando escreve que a guerra nos leva à condição de guerreiros: “Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte dos meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo – isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo caso condição de toda natureza forte” (NIETZSCHE, 2008, p. 29). A revista Documents surge, então, como uma natureza dionisíaca, um instrumento do monstruoso, uma máquina de guerra no seu empenho em ofender o gosto e a razão.3 E para isso emprega tantas vezes o termo materialismo que o transforma ainda em um dos verbetes de seu dicionário crítico, espalhado pelos números da revista. Segundo Bataille, a maior parte dos materialistas chegou a descrever uma ordem de coisas que relações hierárquicas caracterizam como especificamente idealista, e que cediam quase sempre à obsessão por uma forma ideal da matéria que se aproximaria do que a matéria deveria ser – “o deve ser de todas as aparências” (BATAILLE, 1994, p. 103). Segundo ele, quando empregamos a palavra materialismo, é tempo de designar a interpretação direta dos fenômenos brutos, “e não um sistema baseado nos elementos fragmentários de uma análise ideológica elaborada sob o signo das relações religiosas” (BATAILLE, 1994, p. 104). O baixo materialismo, tão caro ao pensador francês, é justamente o que toca a lama, o mais baixo, o abjeto e o indigno, uma espécie de bestialidade – é como pensar o impensável. Por isso foi tão importante para Nietzsche, quase como um permanente exercício de subversão, fazer frente aos modelos estabelecidos e, ao mesmo tempo, propor uma declaração de guerra, um direito à estupidez, uma retradução do homem de volta à natureza, uma compreensão do corpo e uma imposição da doença como saúde numa arte de transfiguração para prolongar a dança terrestre. Não por acaso, segundo ele, é preciso nomear a terra, centro de atração, também como “a leve”.4 Nietzsche (1992, p. 129) diz que o sentido histórico tem a ver com a capacidade de percepção da hierarquia de valorações entre homem, povo e sociedade; e que este sentido histórico é semibárbaro e se projeta sobre nós, almas modernas, porque nossos instintos correm para trás e porque

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somos uma espécie de caos. É mediante nossa semibarbárie de corpo e desejo que temos trânsito para toda parte, a cultura humana sempre foi semibárbara, por isso é que sentido histórico significa, para ele, um gosto e uma língua para tudo. Peter Sloterdijk, um belo leitor do filósofo alemão, crava que “A história universal do ressentimento cristão é, para Nietzsche, a história de uma desvalorização do mundo e da vida com consequências incomensuráveis” (SLOTERDIJK, 2002, p. 115-116). E que por isso ele ensinava um direito natural dionisíaco para que a vida pudesse seguir outras motivações que não apenas as morais.

A metamorfose, o material proteico Nuno Ramos escreve numa outra anotação de seu diário do trabalho Minuano: “Gosto de poças e pantanais, animais apodrecendo, sólidos que afundam, tudo o que logo desaba – mas, estranhamente, queria fixar isto” (RAMOS, 2007, p. 227). Isto é como se desenhasse sua hesitação entre o gosto pelo baixo materialismo e o monumento, o espaço e o lugar, o mundo natural e o artifício, e quais as possibilidades para um enfrentamento do limite. E nesse ‘hesito, logo sou’, persegue de muito perto o fato de que “somos seduzidos baixamente”, de que é preciso provocar um desvio ou cultivar uma religião que deixe amar a morte. Para Bataille (1994), só os moralistas dizem que o horror deve ser combatido (e muitas vezes é diante disso que Nuno Ramos nos coloca) ao armar um contínuo jogo com o monstruoso, este “jogo do homem e da sua própria podridão”. É o que vamos ler em Kafka o tempo inteiro, principalmente na expressão que se entorta na frase-denúncia do estado do homem moderno diante da lei: “O estado atual de Gregor”. Gregor Samsa, o monstro, agora girado num inseto, este animalsingular que não presta para o sacrifício e que perdeu, de vez, toda a sua inocente crueldade. Um dos verbetes de Bataille, publicado na revista Documents, é exatamente “Metamorfose”. E a certa altura ele anota: Com tantos animais no mundo só perdemos isto: a inocente crueldade, a monstruosidade opaca dos olhos que mal se diferenciam de pequenas bolhas formadas à superfície da lama, o horror ligado à vida como uma árvore à luz. Restam os gabinetes, os bilhetes de identidade, uma vida de criados biliosos e, no entanto, sei lá que estridente loucura chega a parecer-se, durante certos desatinos, com a metamorfose (BATAILLE, 1994, p. 105).

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Numa entrevista que foi concedida a Rodrigo Naves, em 1996, Nuno Ramos ajusta-se à questão: “Trabalho com uma noção de forma fraca, o que me obriga a uma movimentação constante, como se o chão estivesse quente sob os meus pés” e diz não ter à disposição um coração formal mas, ao contrário, que a “ideia de forma é a de uma goma, sempre em potência e nunca completamente determinada”. É muito evidente a sua opção por trabalhos que mudam de forma e que revelam a sua potência precisamente no ponto em que derretem, quebram, queimam ou são inundados. E essa mudança de forma nunca é uma mudança de uma forma prevista para outra também prevista, mas sim para uma forma imprevista, como uma “estridente loucura”. De uma forma maleável, tênue, insustentável, inconsistente, fraca, para uma forma acidental, impensada, imparável. Isto é, desejo de dar forma ao informe. E poderíamos dizer ainda com Bataille que toda a […] obsessão da metamorfose como uma violenta necessidade que aliás se confunde com cada uma das nossas necessidades animais, que arrastam um homem a afastar-se de repente dos gestos e das atitudes exigidas pela natureza humana: por exemplo, um homem no meio dos outros, num apartamento, deitar-se de barriga para baixo e começar a comer a comida do cão (BATAILLE, 1994, p. 105).

O seu projeto de escrita também é elaborado, de certo modo, nessa direção, até porque todo trabalho solicita a anotação que, num jogo com as formas, se lança numa operação com o inacabado da palavra e na fração de fracasso da frase – o que é, ao mesmo tempo, todo o seu mesmo projeto como artista visual: constituir formas fracas, informes, instáveis, “nunca determinadas, sempre em potência”. É isto o que talvez ele defina como “material proteico” numa pequena anotação que vem no início do seu primeiro livro, Cujo (1993), ao descrever um procedimento que acena sempre para uma escultura sem forma e sem durabilidade, numa contínua mudança de elementos como o jogo das nuvens ou o constante rocio da vaca no mármore exposto: Pus o vidro derretido sobre o breu, que dava uma forma côncava ao feltro. O problema era o que fazer com o vidro agora, já que se ele prevalecesse eu teria uma escultura de vidro. Bem, poderia derretê-lo novamente, ou lançar asfalto frio para recobri-lo, mas neste caso teria uma escultura de asfalto frio. Seria preciso, então, que os materiais se transformassem uns nos outros ininterruptamente e, o que é mais difícil, encontrar um nome

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para este material proteico, um nome que tivesse as mesmas propriedades dele (RAMOS, 1993, p. 9).

A proximidade dessa composição anotada com o vento minuano que corta o tempo, numa apreensão do transitório, é o que provoca uma espécie de interpelação da catástrofe ou ao menos de um desejo de interpelação da catástrofe. Como trazer para dentro da matéria pronta o transitório? Como reaproximar o homem da natureza, como insistiu, por exemplo, a artista Maria Martins (Nietzsche e Bataille, de uma outra maneira)? A escritora e curadora de arte Veronica Stigger escreve na apresentação do catálogo da exposição Metamorfoses, de Maria Martins (2013), que a metamorfose quase sempre está a serviço do desejo, mas que ela representa, antes de qualquer coisa, uma “abertura à liberdade, uma recusa aos padrões estabelecidos. Sair da própria pele é o princípio mesmo desta liberdade” (MARTINS, 2013, p. 33). Basta lembrar das esculturas de Maria Martins e no quanto a mudança de forma é importante, a metamorfose – alterar a forma por dentro, e o quanto e o tanto que o seu trabalho torna indistintos os limites da separação entre homem e animal, entre homem e vegetal etc.5

Juncos moles, o cheiro de água parada Mas é na pequena narrativa que passa quase desapercebida, “Minha fantasma”, que, me parece, todo esse projeto de Nuno Ramos em torno da metamorfose ou das morfologias se expande.6 Escrita entre 1998 e 1999, essa narrativa é, segundo ele mesmo, entre outras coisas, o diário de uma convivência dolorosa com a doença de Sandra, sua mulher, que toma como uma forma de coragem: tocar a morte de muito perto ou como tocar o corpo impuro quando ele oscila permanentemente suas formas enquanto se insinua ao espaço: “O seu corpo banhado carrega o cheiro da água parada, da toalha úmida” (RAMOS, 2007, p. 382), “seu corpo articulado em longos juncos moles” (RAMOS, 2007, p. 377) e “a sua doença pode durar para sempre” (RAMOS, 2007, p. 378). Nuno Ramos anota: Tiraram algumas nesgas do alto das pernas dela, um lanho ou um tufo de pelos. Magra, ela ainda está quente, como um corpo vivo. Seu peso, é mais um peso do que alguém, respira [...] Ela fenece, isso sim, lenta, não um bicho mas um caule murcho, tombado, quase a terra onde o tronco vai beber novamente (RAMOS, 2007, p. 368).

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e Eu desejo os seus ossos porque lembro da carne que havia neles. Lembro do desenho em 8 das ancas antigas. Lembro da flacidez da bunda. Ela se mexe quando eu penetro, o vai e vem de antes. Eu sou a fonte da vida quando ela geme. Amar na doença é quase querer que a doença continue (RAMOS, 2007, p. 370).

Paul Ricoeur descreve essa relação exatamente como limite em seu Vivo até a morte, ao narrar os últimos cuidados amorosos e insuportáveis diante da doença terminal da mulher com quem viveu 63 anos: o problema não é o que é a morte, mas sim o que é o morto, o que conseguimos fazer com o cadáver, porque a morte não é uma experiência vivida. Certo dia anota numa margem da página de seu caderno dois versos de César Vallejo: “No mueras, te amo tanto! / Pero el cadáver ai! siguió muriendo”. Depois escreve: “A morte é verdadeiramente o fim da vida no tempo comum a mim, vivo, e aos que sobreviverão a mim. A sobrevivência são os outros” (RICOEUR, 2012, p. 39). Leminski (1983), mais contundente, brinca à sério quando escreve que “de morrer ninguém tem experiência”. No mesmo ano da experiência com Minuano, Nuno Ramos fez uma tiragem de autor dessa narrativa: 105 exemplares numerados e assinados, que foram distribuídos entre alguns amigos. Em 2007, a readaptou e publicou no livro Ensaio Geral de uma outra forma, desenformada. Além do texto, há fotografias feitas por Eduardo Ortega, onde se pode ver um apartamento vazio e também Nuno deitado no chão, nu. De fato, é uma projeção de um corpo cansado, desgosto e desgaste, exaurido pela doença do outro, pelo tempo de ausência que a doença traz. Há quase sempre, em todas essas fotografias, janelas grandes, basculantes, redes de proteção, feixes de luz que figuram uma espécie de entrada de ar ou, às avessas, sufoco. Uma porta cerrada, um lustre, as paredes vazias e o plano quase fechado de uma tomada elétrica. Em uma das fotografias ele aparece mais longe, noutra seu corpo nu se aproxima do olho e em outra está sobre um tapete de areia preta e parcialmente coberto por ela; e anota: O curioso é que ninguém sabe como estou cansado. Ela não sabe (eu sei). Olha pra mim como me olhava antes, me pede coisas, e acho estranho que me tome pelo que ainda consigo fazer. Não vê que é só minha carcaça? Que vou cair fulminado antes de chegar à cozinha? Ninguém vê, nem vou embora, nem me espatifo para sempre no chão. Para isto se tem corpo, a lava congelada que ainda se parece conosco. É por ele que

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nos tomam. A tarde chega, a pior hora do dia. Fico como um caranguejo espatifado na areia. Durmo por dentro. Primeiro o pulmão, depois o estômago, depois a paralisia das pernas e da fala – por último meus olhos que ficam se mexendo, sonhando. O nome disso é torpor. No calor é bem pior. Preguiça. Vontade sem vontade dentro. Automatismos insurretos (bocejar, peidar). O suor grudado na camisa. No calor é bem pior. Ele dá espessura à transparência radiosa do lugar, tira das minhas pernas a certeza cilíndrica de estarem envolvidas num vácuo (RAMOS, 2007, p. 389).

FIGURA 3:

Minha fantasma

Fonte: Ramos (2007)

FIGURA 4:

Minha fantasma

Fonte: Ramos (2007)

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FIGURA 5:

Minha fantasma

Fonte: Ramos (2007)

Estamos diante das metamorfoses entre natureza e artifício provocadas no corpo do doente e daquele que observa e anota a doença, uma bulimia anorética: Sua boca, profilática, não saliva diante de um bom bife. E se nós insistimos ela vomita. E se vomita, bem, então é melhor acarinhá-la e começar tudo novamente. É um amor imenso e cansativo, que deve dizer bem alto: eu quero você mesmo assim (RAMOS, 2007, p. 370).

Agamben (2010) lembra que Plutarco fala em uma festa ancestral chamada de boulimou exelasis, uma expulsão da bulimia. Boulimou, em grego, significa “fome de boi”. A festa que acontecia em Esmirna, segundo o relato de Plutarco, era para saciar a boubrosis (o comer como um boi). A questão dessa fome é tentar saciar uma fome insaciável, o que só se pode dar, segundo Agamben (2010), diante da festa da vida ao se comer à procura do estado ocioso, da ociosidade. Diz ele que a bulimia anorética, nervosa, uma perturbação alimentar que observada melhor no século XX acaba por receber o caráter de epidemia, tem a ver, pois, com os jejuns rituais da idade média e com o seu contrário, os banquetes sempre ligados às festas. E completa dizendo que o bulímico é “o inútil bode expiatório da impossibilidade de um autêntico comportamento festivo

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no nosso tempo, o resíduo imprestável de uma cerimônia purificadora cuja significação as sociedades contemporâneas perderam” (AGAMBEN, 2010, p. 124-125). Entre a voracidade animal e o jejum humano a catarse é o vômito, o vômito é a catarse, ou melhor, isto é o limite sacrificial do que agora se lê como promiscuidade entre o animal e o humano. Goethe (2012) diz que uma metamorfose é praticamente uma dádiva, que nos vem de cima, que é ao mesmo tempo uma dignidade e algo muito perigoso. Porque é isto que leva ao informe, que destrói todo saber, que dissolve as coisas ao redor. É uma vis centrifuga que se perderia no infinito se não encontrássemos um peso para ela. O peso, para Goethe (2012), tem a ver com nossa persistência inesgotável de perseguir a natureza, de tocar uma forma-limite entre a poesia e o pensamento. A poesia é o pensamento, o pensamento é a poesia. Essa, diz Goethe (2012), é a potência de nossa experiência entre história e metamorfose: saber e ciência, a experiência da crise. Molder (1993), enquanto lê Goethe, diz que se a natureza é a totalidade das formas, a única maneira que temos para tocá-la é através da experiência com o aparecimento e o desaparecimento das formas, ou seja, com a simultaneidade e a transitoriedade que impomos às narrativas que construímos para elaborar possíveis desenhos no espaço, como alteração, limite, alquimia e eclosão. E afirma que “aquele que quer conhecer uma forma deve procurar tornar compreensível e partilhável esta reconciliação, esta aprovação entre o que está de passagem e o que permanece” (MOLDER, 1993, p. 27).

Sermões, outras metamorfoses Numa outra ponta da conversa, um bom exemplo para desdobrarmos ainda toda essa questão está no último trabalho de Nuno Ramos, o seu livro Sermões, publicado em 2015, quando ficamos diante de uma expe‑ riência informe entre autor, narrador e texto, mas também de uma forma clássica, a do sermão que dá título e anuncia o jogo, porque também é muito próxima de algumas invenções da retórica. Há uma recuperação da ideia do sermão como uma arquitetura da vida e não apenas da obra em estado fixo ou movente, ou do gênero em prenúncio de apagamento, e o que vem de fato é uma queda. Tanto que Nuno Ramos escreve em duas linhas, dando voz ao seu narrador cansado das coisas do mundo,

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um velho professor de filosofia, uma espécie de movimento contrário ao próprio texto: “Cansei de avisar / cansei de fazer sermão” (RAMOS, 2015, p. 162). No livro de Nuno o sermão, em queda e despedaçado, deixa de ser uma busca de sentido e da forma entre um lugar para Deus na História e a salvação do homem em sua luta com o infinito da existência. Se há no sermão aquele que prega, o que se compromete em torno de um dizer com a força política do corpo para tocar um outro, através do gesto de Nuno podemos lembrar de Emmanuel Levinas propondo uma responsabilidade pelo outro. Um “para-o-outro desinteressado” (LEVINAS, 2014, p. 29), que é quando o homem importa ao outro homem. Isso pode ser lido como sacrifício ou, de outro modo, como sacramento, que seria uma projeção de Deus sobre o mundo – mesmo quando Deus não há mais. O que remonta a ideia do sermão para uma autofagia, dar a ver a carne e, ao mesmo tempo, comer a própria carne, e nos deixa também pensá-lo como uma segunda projeção mais simples, a daquele que ora. Se projetar é também transformar as coisas e as substâncias, uma “oração, toda inteira, não é por si”, como nos diz Levinas (2014, p. 43). Dividido em sete partes – Tenda, (Parêntese. Moenda. Minha mãe nascendo.), Prédio, Sermões, Rosário, Há, Alguém e Laje – e perseguindo a construção de uma ontologia entre o divino, o humano e o animal, o livro segue um procedimento que já é muito caro a Nuno em seus livros anteriores, principalmente em Minha fantasma: o de uma arqueo‑ logia mal comportada com o corpo, algo que vem do pensamento de Flávio de Carvalho, por exemplo. Tanto que na segunda parte o narrador relata a morte da mãe, numa comiseração recuperada das cenas da Série Trágica de Flávio, e depois desenha uma agonia final dessa grande mãe como uma circularidade elíptica da história de cada um de nós. Um grande lance de dados de Nuno nesse Sermões está no seu narrador, um velho professor de filosofia que projeta seu corpo sobre um tapete com a imagem de um tigre atacando ovelhas, como uma metamorfose: Não há ovelhas balindo longe não guardo lã nem bosta verde não ouço

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o latido do meu cão. Não há montes aqui, e nem é dia. Estou dentro de um hotel barato acasalando lentam ente, tartaruga sob o casco. O vidro embaçado da fumaça dos cigarros esconde a cúpula, céu privado e citadino que assombra e vela nossos gritos (ela grita, mas eu não – trepo quieto, os olhos bem abertos, como quem vê um filme). Não guardo ovelhas nem palavras não guardo nada. Sou a pobre máquina do meu pau entrando, saindo, já despido de ambição e de memória. Não sou velho, mas seria. Tirei com a camisa tudo o que foi guizo, v eneno. Nada dói em minha pele e meus músculos perenes, superc ordas, hastes moles vibram em harmonia. Soltam gotículas do suor leitoso de um recém nascido. Não conto ovelhas (só preciso uma) e rio nenhum banha as minhas terras. Não há flores, relva, Tejo só tapetes onde deito e minha ovelha nunca está sozinha.           (RAMOS, 2015, p. 22-23)

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É uma fome, um apetite voraz, que nos é apresentada, como exemplo, por Bataille, ao dizer da violenta significação da boca, sempre conservada em estado latente: “a boca é o começo”, “a proa dos animais”, “a parte mais viva” ou “a que mais aterroriza os animais vizinhos” (BATAILLE, 1994, p. 91) e que, entre os homens, ela é “a cólera que faz ranger os dentes”, “o órgão dos gritos dilacerantes”, “orifício dos impulsos físicos profundos” e, muito mais, “um estado latente” de fome; tanto é que é como “boca de fogo” que se aplica “aos canhões que ajudam os homens a matarem-se uns aos outros” (BATAILLE, 1994, p. 91); e depois, por Carvalho (1973), quando diz que pela boca, o ato de devorar, ou a fome, aparecem como a primeira religião do homem e o seu primeiro instinto de propriedade. E que um primeiro teatro, por sua vez, seria a execução de um bailado mímico que produz uma humanidade unânime porque liberta o homem da fome, ou seja, do desejo de desejar e das imagens dos desejos que conduzem magicamente a nossa sobrevivência. Raúl Antelo nos lembra que o artista contemporâneo, de fato, “não mais produz sobre uma cena vazia – sur le vide papier mallarmaico – mas sua intervenção se dá agora numa cena esvaziada, desértica, noturna” (ANTELO, 2005, p. 7), e que “o informe agora é conceitual, ao passo que todo conceito, daqui por diante, sintetiza (não mais harmoniza) multiplicidades irreconciliáveis” (ANTELO, 2005, p. 11). O ponto aqui, se pensamos com Raúl Antelo, é o argumento de Bataille (1994): não só a boca, mas também o olho devora. O esforço de invenção deste Sermões de Nuno Ramos vai um pouco em direção a um intervalo propositivo da boca e da fome, uma loucura, como descanso e fúria, entre aquilo que vem de uma memória grafada no corpo com a obstinada violência da vida, do mundo, da existência etc. Mais ou menos como propunha Flávio de Carvalho ao dizer que essa memória do e com o corpo trazem “um espetáculo exuberante onde a fantasmagoria primária de um mundo interior é a nota dominante” (CARVALHO, 1973, p. 24). Ao mesmo tempo, Nuno procura desmantelar a matriz sacramental do sermão, sempre apta à formulação de hipóteses com essa dilatação de uma memória do e com o corpo para ameaçar o próprio homem: Memória não me serve só a ponta comida por tabaco e dente do meu dedo.

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Com ela acho a vulva, uva pisada. Com ela toco a câimbra dilatada do meu pau.           (RAMOS, 2015, p. 20)

e Já é quase manhã e o frio fez uma coisa importante. Eriçou meus pelos e deixou meu pinto menor. Pobre clown. Todo enforcado tem uma ereção ouvi dizer. Então. Cadê?”           (RAMOS, 2015, p. 108)

É o percurso às avessas do sermão que se amalgama ao corpo do velho professor de filosofia, como um cão morto numa beira de estrada (imagem recorrente armada em seu livro Junco, de 2011, enquanto se pergunta e se responde a esmo: “Aguentem também, senhores / minha resposta – não quer dizer nada” (RAMOS, 2011). E, repetindo o gesto equívoco de Sócrates, pensa que vai morrer pessoalmente, apenas, numa reiteração da sua obscenidade ora muito bem-comportada ora demasiado lacerada. Sermões pode ser lido como uma linha esticada e convulsa da ex-timidade de uma voz abafada, ou como a aventura mais radical dos trabalhos em livro de Nuno Ramos e, também, como aquilo que persegue um desejo de (ainda) dar à forma algum informe.

Notas 1 Ainda em 2000, dois trabalhos também podem ser lidos nessa mesma clave, nessa hesitação entre espaço e lugar, natureza e artifício, o que comprova ser essa uma questão insistente, quase impertinente, para o trabalho de Nuno Ramos naquele momento; são eles Marécaixão e Marémobília. 2 Richard Serra, o escultor americano (1939), é outro artista que exerce uma forte influência sobre o trabalho de Nuno Ramos. Isto por causa de seus imensos trabalhos em aço (o aço corten, mesmo material usado por Amilcar de Castro, que não se deixa oxidar completamente, preservando assim parte de sua dimensão de fracasso).

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3 Sabe-se que, mais tarde, em 1936, Bataille cria a revista Acéphale – que teve apenas cinco números, entre 1936 e 1939 – onde aparece a assertiva de Nietzsche, como uma espécie de norte: “O que empreendemos é uma guerra”. Ou seja, reivindicar Nietzsche, naquele momento, era, antes de mais nada, um gesto político, mostrar também como era grosseira a apropriação que faziam do seu pensamento. 4 Interessante pensar que existem dois procedimentos distintos de

materialização do pensamento que parecem tocar esse pêndulo que Bataille (1994) nos apresenta entre idealismo e materialismo: “o homem, que tem a cabeça leve, ou seja, levantada em direção ao céu e às coisas do céu”, mas que também mantém o “pé na lama”. Ou seja, entre a leveza (aquilo que se eleva) e o peso (aquilo que se afunda): os procedimentos do escritor Italo Calvino e do artista Richard Serra. Em Seis propostas para o próximo milênio – Lições americanas, livro-resultado do convite que Calvino recebe em 1984 para participar das Norton Poetry Lectures – importante ciclo de conferências que existe desde 1926 –, na Universidade de Harvard, em Cambridge. As seis conferências se realizariam no ano letivo de 1985-86 e, segundo Calvino, dariam destaque para “alguns valores literários que mereciam ser preservados no curso do próximo milênio”, uma espécie de testamento artístico. Calvino morre em 1985, deixando apenas cinco conferências escritas. São seis qualidades que apenas a literatura pode “salvar”: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência (esta última não chegou a ser escrita). Não podemos esquecer que Calvino está diretamente vinculado à tradição da literatura oral, à fábula, mais especificamente, em que o voo para um outro mundo é uma situação que se repete com frequência. Ele escreve que cada vez que o reino do humano parece condenado ao peso, pensa que “devia voar para outro espaço”; é como mudar de ponto de observação, perceber o infinitamente minúsculo, móvel e leve, pulverizar a realidade (CALVINO, 1990, p. 19-21). E Calvino completa: “Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertencente ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados” (CALVINO, 1990, p. 24). Interessante perceber, quando lemos com Bataille, que seria exatamente neste reino que estaria a grande vitalidade da vida, o baixo materialismo como potência transformadora. E, neste jogo de certa hesitação, Richard Serra relembra uma das cenas mais antigas e que, de certa forma, é definitiva na sua opção pelo peso. Aos quatro anos de idade, ao atravessar com o pai a ponte Golden Gate de carro, em direção ao Marine Shipyard (onde o pai trabalhava como encanador) assistiriam à inauguração de um navio. Ele escreve: “Quando chegamos, o cargueiro coberto de aço preto, azul e laranja, estava equilibrado num poleiro. Ele era desproporcionalmente horizontal e, para um menino de quatro anos como eu, tinhas as laterais grandes como um arranha-céu. (...) Então, numa lufada repentina de atividade, as estacas, as vigas, as placas, os postes, as barras, os blocos da quilha, toda a proteção foi removida; os cabos foram cortados, as correntes foram soltas, as travas foram abertas. Houve uma total incongruência entre o deslocamento dessa enorme tonelagem e a velocidade e a agilidade com que a tarefa foi executada. (...) O navio havia

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passado por uma transformação: de um enorme peso morto para uma estrutura brilhante, livre, flutuante e à deriva. O espanto e a admiração que eu senti naquele momento permaneceram. Toda matéria-prima de que eu necessitava está contida no reservatório dessa lembrança” (SERRA, 2014, p. 147). E completa, categórico: “O peso é um valor para mim”. 5 Principalmente a partir da série Amazônia – uma sequência de poemas em prosa, que narram alguns mitos, publicada no catálogo da exposição Maria: Novas esculturas (1943), em Nova Iorque. Do desejo de representar a Amazônia, veio a concretização de poemas em prosa e ainda oito esculturas, personagensmitos batizados de Amazônia, Cobra Grande, Boiuna, Yara, Yemanjá, Aiokâ, Iacy e Boto. Essas esculturas de formas enredadas marcam uma mudança decisiva no seu trabalho: a saída da representação mais tradicional da figura humana, de contornos quase sempre bem definidos para os contornos móveis, imparáveis, que se fundem a um emaranhado de folhas e galhos, a floresta tropical e monstruosa, numa permanente devoração do homem pelas forças vitais da natureza dionisíaca. Ou basta lembrar da conhecida escultura Não se esqueça que eu venho dos trópicos, de 1945, uma espécie de flagrante, uma metamorfose em ato, do humano em vegetal ou do vegetal em humano. E tudo isso também tem a ver com recuperar o laço perdido entre o homem e o animal, o que Nuno Ramos persegue de muito perto numa série de trabalhos, ora nos livros ora nos trabalhos e instalações. Uma metamorfose que se dá de muitas maneiras, entre os materiais e no próprio corpo de quem escreve, numa permanente troca de peles em processo circular até a aniquilação: “A pele do conteúdo cai. Depois de muitas peles, o próprio conteúdo cai. Depois o caído cai. Até a aniquilação” (RAMOS, 1993, p. 59). Um corpo que se insinua ao ambiente, corpo provisório, fluido, desconhecido porque sempre outra coisa: “Quando foi que amei o intermediário, corpo viscoso e provisório, nem fome nem alimento? Quando foi que virei um cão sarnento e me tornei um lobo, quando foi que me tornei a praia?” (RAMOS, 2001, p. 19), ou ainda: “Vem mais uma noite e entre todos os animais que sou eu sou aquele animal que dorme, nunca lembro do sonho mais sei que durei mais um dia. Toco então o elemento em que me transformo, às vezes porque quero, às vezes não. Bem, pra mim não vai haver morte, é provável que me transforme no meu verme ou na madeira do caixão” (RAMOS, 2001, p. 22). 6 Toda essa relação parece ainda muito evidente em Junco, livro de Nuno Ramos (2010) composto por um poema aparente que, numa primeira leitura, pode ser visto como um único e longo poema, em 43 fragmentos numerados, num jogo contínuo com algumas imagens incisivas de morte, parada e passagem. O livro é também composto de imagens de corpos de cães expostos à beira da estrada engendradas com imagens de troncos soltos e apodrecidos abandonados na praia. São fotografias que perseguem os poemas e que, num movimento às avessas, são perseguidas pelos poemas numa contaminação incessante. E há entre as imagens (poemas e fotografias) uma espécie de coincidência de formas, ou um deslimite das formas. O que se constitui aí, como projeto de pensamento, é uma tensão entre um e outro, o quanto de UM há no OUTRO, quase numa transparência.

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Nuno Ramos e suas metamorfoses

Referências AGAMBEN, G. Nudez. Lisboa: Relógio D’Água, 2010. ANTELO, R. Atrás das imagens. Florianópolis: Caderno 1, 2005. BATAILLE, G. A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh. Lisboa: Hiena, 1994. CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARVALHO, F. A origem animal de Deus e o bailado do Deus morto. São Paulo: Difusão Europeia, 1973. GOETHE, J. W. O jogo das nuvens. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012. LEMINSKI, P. Caprichos & relaxos. São Paulo: Círculo do Livro, 1983. LEVINAS, E. Violência do rosto. São Paulo: Loyola, 2014. MARTINS, M. Metamorfoses: catálogo de exposição. Curadoria e texto de Veronica Stigger. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2013. MOLDER, M. F. Introdução. In: GOETHE, J. W. A metamorfose das plantas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993. MOLDER, M. F. As nuvens e o vaso sagrado: Kant e Goethe: leituras. Lisboa: Relógio D’ Água, 2014. NAVES, R. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. NIETZSCHE, W. F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. NIETZSCHE, W. F. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. RAMOS, N. Cujo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. RAMOS, N. Ensaio geral: projetos, roteiros, ensaios, memória. São Paulo: Globo, 2007. RAMOS, N. Junco. São Paulo: Iluminuras, 2011. RAMOS, N. O Pão do corvo. São Paulo: Editora 34, 2001. RAMOS, N. Sermões. São Paulo: Iluminuras, 2015.

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RAMOS, N. Transformando desmesura em liberdade. Veredas: Revista do Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro: CCBB, ano 1, n. 7, jul. 1996. Entrevista concedida a Rodrigo Naves. RICOEUR, P. Vivo até a morte: seguido de fragmentos. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SERRA, R. Escritos e entrevistas: 1967-2013. São Paulo: IMS, 2014. SLOTERDIJK, P. A mobilização infinita: para uma crítica da cinética política. Lisboa: Relógio D’Água, 2002.

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Lucyane De Moraes Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também possui mestrado e graduação em Filosofia, na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), com títulos de especialização lato sensu em: Ensino da Arte pela Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ) e Direção Cinematográfica pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro (ECDR-RJ). Atua nas áreas de Estética e Filosofia Social, principalmente nos seguintes temas: indústria cultural, cultura imaterial, recepção de novas mídias da imagem, teoria marxista e teoria crítica da sociedade, com ênfase na obra de Theodor Adorno. Atualmente desenvolve pesquisas com temas relacionados às apropriações e práticas artísticas em contextos diversos, tendo como foco os aspectos ligados à historiografia e ao pensamento social, trabalhando na investigação, recolha e seleção documental de manifestações tradicionais da cultura através da elaboração de textos e de filme documentário sobre a oralidade no Brasil.

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Resumo Esse artigo aborda a inter-relação entre filosofia e arte a partir da compreensão de que esta última atua como forma de conhecimento e, portanto, de apreensão crítica da realidade. Enquanto ato ligado à reflexão e criação artística, a filosofia também contém em si uma dimensão prática, o que remete à fidelidade de uma ideia: a de que tanto a filosofia quanto a arte devem contribuir para a construção de um modelo mais igualitário de organização social, sendo isso o que resume um importante instrumento de análise aplicado às condições histórico-econômicas e aos fenômenos psicológicos de nosso tempo, contrapostos ao cientificismo filosófico e a qualquer sistema metafísico, constituindo-se enquanto contributo à interpretação de outra realidade social que ainda se espera vir. Desta feita é que filosofia e arte convergem genuinamente sendo ambas, ainda assim, fiéis ao seu próprio conteúdo por meio de uma oposição recíproca. Palavras-chave: Arte. Cultura. Vida Social.

Abstract This paper discusses the interrelationship between philosophy and art from the standpoint that art denotes a form of knowledge and therefore of critical apprehension of reality. As an act linked to reflection and artistic creation, philosophy also contains in itself a practical dimension, which refers to the accuracy of an idea: both philosophy and art should contribute to conceive an egalitarian model of social organization, consisting of an important analytical tool applied to historical and economic conditions and psychological phenomena of our era opposing the philosophical scientism and any metaphysical system, aiming to contribute to the interpretation of another social reality that still is expected. In this sense, philosophy and art truly converge being both still consistent with their own content through a mutual opposition. Keywords: Art. Culture. Social life.

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Devemos examinar nosso modo de vida, nossa estrutura social, nossos métodos de produção e distribuição, o acúmulo de capital e a incidência da tributação para decidir se não é nesses fatores que deveríamos procurar uma explicação para nossa impotência estética. READ, 1968

Introdução Com o objetivo de dimensionar a influência que novas formas de experiência estética vêm exercendo sobre o pensamento no mundo contemporâneo, necessário se faz a apreensão das questões éticas subjacentes à análise crítica dos fenômenos sociais e das formas da racionalidade instrumental. Como é notório, Marx e Freud foram os primeiros a identificar os fenômenos que influenciaram o pensamento ocidental e serviram de base para diferentes teorias, abrindo espaço para uma nova percepção de homem e sociedade: o primeiro formula as bases críticas ao desenvolvimento capitalista e o segundo elabora as bases teóricas que irão culminar na descoberta do inconsciente, apresentando ao mundo a alma reprimida, a subversão da consciência humana e o homem sujeito aos seus impulsos. Mais tarde, o pensamento crítico-social de Durkheim, Weber, Simmel e Kracauer favoreceu estudos temáticos propiciando uma ampla crítica das formas de organização da sociedade ocidental e das estruturas epistemológicas contemporâneas. Do mesmo modo, reunido em torno daquilo que se denominou como Escola de Frankfurt, o conhecido Institut für Sozialforschung, formado por um conjunto de pesquisadores que incluía, além de Adorno, Horkheimer, Benjamin, Fromm, Marcuse, Pollock, Löwenthal, Wittfogel e Neumann, entre outros, teve como embasamento a teoria crítica, ou seja, o “materialismo interdisciplinar”,1 que procurou integrar a filosofia a outras diferentes áreas do conhecimento humano, desenvolvendo conceitos basilares que serviram de instrumento fundamental para o entendimento da arte, da cultura e das sociedades modernas, interpretando as novas realidades surgidas no século XX com o desenvolvimento da sociedade industrial avançada.

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Concepção materialista da história da cultura e os problemas da arte Tendo como fundamento uma ideia de emancipação do homem, a teoria crítica pode ser entendida hoje como uma das mais realistas e estimulantes para a compreensão das origens da alienação nas sociedades modernas e da situação de barbárie e violência que decorre dos sistemas totalitários. Sob uma ótica de emancipação do homem contrária àquela do projeto da Ilustração, os citados teóricos demonstram em suas obras interesse pela compreensão do problema da dominação que se esconde por detrás da ideologia, abordando analiticamente não só o estudo das artes, da cultura e da psicanálise, mas também aqueles de caráter socioeconômico, desvelando a inconsciência dos homens e da sociedade à luz de uma perspectiva social da história. Assim é que, objetivando problematizar as questões de nosso tempo, é desenvolvido um pensamento crítico sobre a especialização dos saberes instrumentalizados e burocráticos e as relações intrínsecas entre teoria e práxis nas sociedades modernas, refletindo ainda sobre a incapacidade de esses saberes, desvinculados da práxis, transformarem a sociedade, vista a impossibilidade de uma dada inter-relação entre ambos. Nessa perspectiva, tais pensadores se opuseram à cultura vigente, tida como responsável pela promoção de um suposto ideal de felicidade através do qual a humanidade alcançaria um estágio tal que possibilitaria organizar a sociedade em outros termos, resistindo à valorização de uma forma de tecnicismo apoiada em uma razão lógica que, sob o pretexto de uma neutralidade científica, se distanciava dos interesses humanos e das urgentes e reais necessidades da vida. Como aferiu Herbert Marcuse, a superação de tal estágio só seria possível pela “coação da superfluidade”, ou seja, por força de resguardo das necessidades do humano em detrimento das adversidades que o impelem a condições contrárias a si próprio, recuperando a “liberdade de ser o que deve ser”.2 Sob outro prisma, de acordo com Erich Fromm, a dominação do humano sob a natureza se daria em termos de alienação, para muito além de suas capacidades naturais. Sob a dependência instrumental da “megamáquina”, o homem, impossibilitado de saber por relação simbiótica, se tornaria um meio em detrimento de sua finalidade potencial.3 Analogamente, para esses pensadores que atuaram no âmbito da formação de consciência através da crítica aos proSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 67-93 | jan.-abr. 2016

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cessos complexos de mercantilização da sociedade, também o conteú‑ do da arte foi reduzido a formas de dominação sempre dependentes da ordem econômica. Sob formas totalmente planejadas, a relação do indivíduo com a arte adquire então sentido para além daquele implícito, sendo as obras transformadas em objetos aferidos por valores de troca. Neste sentido, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade da própria dominação,4 sendo que tal procedimento implica na própria normatização das relações humanas e dos indivíduos consigo mesmos, objetivando reações convencionais em detrimento das subjetividades. Se por um lado a produção industrial da arte absolutiza comportamentos enquanto normas naturais, aferindo a estes feições únicas em termos de racionalidade, por outro, a reprodução em série de produtos culturais, exemplo mais destacado de tal relação, desvirtua o próprio sentido de unicidade que caracteriza a obra de arte em nome de simples simulacros tecnológicos sobrevalorizados em termos quantitativos para uma sociedade igualmente quantificada. Abordando a questão da hegemonia econômica e do domínio das leis de mercado, entende-se que, por meio da radicalização de ideias globais, a sociedade moderna se beneficia com a técnica e com a tecnologia, mas perde em experiência humana. Em outras palavras, as técnicas de reprodução, ao visarem à produção em série e à homogeneização, sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra de arte e o sistema social, passando a exercer imenso poder sobre a sociedade, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitetadas de forma hegemônica sobre a própria sociedade. Sem ignorar a importância dos recursos tecnológicos de reprodução para o atendimento das demandas da vida atual, há que se lembrar das implicações éticas resultantes da exacerbação desse processo, analisadas por Walter Benjamim, especialmente aquela referente à “perda da aura” artística que disso decorre, resultando em um procedimento radicalizado pela maximização de suportes físicos em detrimento dos próprios conteúdos neles impressos, determinando que, no âmbito de uma sociedade dominada pela estetização da realidade, as cópias se tornem até mesmo mais valorizadas do que os próprios originais. À mais perfeita reprodução falta sempre alguma coisa: o hic et nunc da obra de arte, a unicidade de sua presença no próprio lugar onde ela se

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encontra. É a essa presença única, no entanto, e somente a ela, que se acha ligada toda a sua história [...] Pode ser que as novas condições assim criadas pelas técnicas de reprodução conservem intacto o conteúdo mesmo da obra de arte – de qualquer modo elas desvalorizam o seu hic et nunc [...] O que faz a autenticidade de uma coisa é tudo que ela contém de originalmente transmissível, desde a sua duração material ao seu poder de testemunho histórico [...] Seria possível resumir todas essas faltas, recorrendo-se à noção de aura, e dizer-se: no tempo das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a sua aura. Esse processo tem o valor de um sintoma, sua significação ultrapassa o domínio da arte. Poder-se-ia dizer, de maneira geral, que as técnicas de reprodução desprendem o objeto reproduzido do domínio da tradição. Multiplicando os exemplares, elas substituem um acontecimento que só se reproduziu uma vez por um fenômeno de massa. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão ou à audição em qualquer circunstância, elas lhe conferem uma atualidade. Esses dois processos conduzem a um abalo da tradição, o que é a contrapartida da crise que a humanidade atravessa hoje e da sua renovação atual. Eles são uma correlação estreita com os movimentos de massa que se produzem atualmente5 (BENJAMIN, 1969, p. 18-20).

Não coincidentemente, no mundo contemporâneo se criou uma ideia de democracia baseada na possibilidade do acesso a uma totalidade de bens de consumo através da produção em massa, sendo esta ideia supostamente capaz de construir uma sociedade igualitária.6 Tal possibilidade se viabiliza por meio de procedimentos igualmente massivos de propaganda, que abarcam tudo o que respeita também à subjetividade humana, incluindo as artes, através de intricados mecanismos pelos quais a publicidade, como elemento propulsor de um processo que se estabelece pela criação de necessidades, constrói uma concepção aparente de realidade devidamente estetizada. O que resulta disso para as artes é aquilo que a filosofia determina como a autônoma exterioridade estética, substituída por algo somente de natureza aparente, um exato fragmento de realidade destinado às relações de troca. Conformada enquanto produto e isenta de qualquer sentido de destinação social, a imagem da arte passa a ser a da própria divisão do trabalho inerente aos processos de produção industrial. Soma-se a isso a grande velocidade com que mudanças culturais são implementadas, o que dificulta ainda mais a compreensão das relações entre arte e sociedade. Tal discussão na contemporaneidade deve assumir contornos mais amplos, considerando a falência de todos

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os sistemas que entendem o mundo e a sociedade como uma totalidade coerente. Como a hegemonia do universo tecnológico nas sociedades modernas determina modos diversos de apreensão da realidade, obrigatório se faz uma reflexão de sentido necessariamente social acerca da relação entre este universo e a cultura, entendendo que a tecnologia, enquanto um meio, não dá conta por si só de elaborar novas formas de subjetividade, e que somente o pensamento crítico pode contribuir para o processo de emancipação dos indivíduos em uma perspectiva realista e social. Em suma, para além da evidente importância da tecnologia na vida contemporânea, pensada como base para a superação das necessidades do homem moderno, fruto das enormes desigualdades sociais que ainda persistem, necessário se faz o estabelecimento de novas relações modelares entre arte, sociedade e tecnologia, que possam redimensonar valores hegemônicos num plano crítico e mais amplo de natureza ética, evocando, em termos de realização plena, os antigos ideais de liberdade e igualdade apenas enunciados outrora.

O caráter desigual do capitalismo e a universalização da cultura industrial No âmbito da teoria crítica, Adorno, em produção conjunta com Horkheimer, analisou o desenvolvimento do esclarecimento na sociedade ocidental desde os seus primórdios, situando-o no momento da passagem da mitologia para a narrativa da epopeia, com o propósito de deslindar as origens do que teria sido a principal característica do esclarecimento, para além da mera ilustração e das revoluções modernas. Tendo em vista a construção de um conceito mais amplo e profundo de esclarecimento, ambos os pensadores lançam mão do conceito de ‘desencantamento do mundo’ (Entzauberung der Welt) desenvolvido por Weber a partir do que primeiramente havia sido cunhado por Schiller em seu poema Os deuses da Grécia (Die Götter Griechenlands), de 1788. Ainda, em seu ensaio A ciência como vocação (Wissenschaft als Beruf), Weber, tratando da ideia inicial de sociologia como um conhecimento de sentido subjetivo da ação social, analisa o desenvolvimento da economia capitalista na modernidade. Nessa análise ele aborda, sob a ótica do desencantamento da religião e

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da ciência, as contradições inerentes ao adiantado processo de racionalização em curso. Tal abordagem irá subsidiar as contribuições de Adorno e Horkheimer, para quem a crítica ao conceito originário de ciência lógica haveria de determinar a diferenciação qualitativa entre esta e as ciências humanas e sociais, tendo como objetivo o desenvolvimento de uma compreensão de sociedade e cultura em termos de emancipação. Para ambos, este processo de desencantar o mundo da obscuridade da magia, dos mitos e da imaginação, substituindo-o pela razão e o saber, praticou uma violência contra a natureza, dominando-a, para, de acordo com seu próprio programa, intentar libertar os homens. No entanto, neste processo de dominação da natureza em prol de uma libertação do sujeito, ocorreu também um processo de dominação do próprio sujeito, processo este que não encontrou nenhum obstáculo para a não racionalização da própria humanidade esclarecida. Desta forma o mundo contemporâneo definiu-se com uma lógica própria, na qual não se pode discernir nem mesmo diferençar cultura e economia, estabelecendo relações sistêmicas onde o homem se vê comprometido com tarefas inerentes à manutenção do próprio sistema econômico. Sob esta ótica, relaciona-se uma diversidade de questões que compromete tanto os processos civilizatórios na era da técnica quanto a arte e a vida cotidiana nas sociedades modernas. Com o viés de uma crítica radical da sociedade industrial avançada, alude Adorno aos meios tecnológicos e à contribuição desses meios para o aspecto regressivo da arte, na medida em que manipulam arbitrariamente a produção e a difusão daquilo que se produz em cultura. Ao entender o desenvolvimento do capitalismo sob as bases de um sistema de dominação constituído enquanto algo imune a sua própria superação, Horkheimer e Adorno identificam como um desses mecanismos de controle um complexo sistema incrementado pela totalidade dos mass media disponíveis. E é nesse contexto que surge a noção de Kulturindustrie,7 criada nos anos 1940, noção esta que estabelece as bases para o entendimento da cultura como um produto de mercado.8 Entende-se, pois, que o termo indústria cultural significou a conjugação de dois vocábulos que até então conotavam sentidos absolutamente contrários, resumindo o colossal distanciamento que a objetividade do processo industrial guardava do processo cultural subjetivo. Ou seja,

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enquanto à indústria dizia respeito uma totalidade de processos práticos objetivados à produção de mercadorias, à cultura concernia tudo aquilo ligado ao âmbito do espírito, da essência reflexiva, da criação e de tudo o mais que resumia caráter não funcional. Aproximados com a exata intenção de revelar o sentido desnaturado que adquiria tal consórcio, este recurso se deveu à constatação de que o próprio processo avançado de industrialização do capitalismo havia determinado, como consequência, um processo de industrialização da cultura, alçada à condição de mercadoria. No entanto, é curioso notar que aquilo que conotara sentido de estranhamento à época, nos dias de hoje a lógica do desenvolvimento capitalista cuidou de transformar em um simples resumo de sentido comum, dando ao termo uma acepção mais positiva do que negativa, ao contrário do que intencionaram seus formuladores. Isto se deve ao fato de que, apartado do contexto negativo que originou o conceito, à indústria da cultura hoje são atribuídas em termos generalizados as funções de desenvolvimento e difusão daquilo que se produz culturalmente, favorecendo inclusive a formação artística profissional e oportunidades de trabalho em virtude da ampliação de mercado para o produto cultural. Em verdade, a atuação da indústria cultural resume, de uma forma ou de outra, práticas de consumo de produtos que visam atender expectativas de ordem comportamental, comprometidas com o mero entretenimento. Apresenta, como condição, conteúdos irrisórios vocacionados para o universo vazio da diversão e do passatempo. E atua sempre no plano da passividade, sendo esta a sua própria razão de existência. Nesse sentido, por serem a explícita representação de um complexo aparato econômico, os produtos da indústria da cultura, ainda que consumidos de forma ingênua e descompromissada, são engendrados e mantidos sob um planejado esquema de controle que intencionalmente não desassocia trabalho de lazer. Por conseguinte, a cultura de mercado, por oferecer uma espécie de satisfação do idêntico, de reconforto do que já é conhecido, opera sob uma forma de ilusão narcísica, reprimindo qualquer tipo de relação com as singularidades do outro não idêntico, e reproduz no sujeito uma forma de conduta conformista na qual ele se sente, por assim dizer, protegido. Diferente dessa cultura-produto, a obra de arte deve ser entendida como uma forma de saber inteiramente diverso do saber instrumental da racionalidade administrada, capaz de recuperar, através da experiência

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estética, aquilo que no sujeito foi oprimido pela razão tecnicista. Compreende-se que a experiência estética, embora situada no campo da reflexão, não se define enquanto uma experiência de sentido lógico formal, mas sim sob uma forma lógica paradoxal que se identifica com ela mesma. Apesar de sua implícita condição social, tal experiência pressupõe a supremacia do individual sobre o coletivo, sendo esta a sua única possibilidade de universalizar-se para além de qualquer sentido comum, tendo em vista o seu caráter subjetivo imanente. Dotada da capacidade de se opor àquilo que está estabelecido no mundo real, é atribuída à experiência estética também a capacidade de transformar a experiência real na medida em que a primeira exerce uma crítica à segunda, percebendo as coisas do real para além do que elas são e, ao mesmo tempo, dimensionando-as em termos do que poderiam vir a ser através de uma relação que se estabelece com o não idêntico. Não obstante, a cultura de mercado, por sua função implícita, não permite qualquer possibilidade de experiência singular na medida em que busca estabelecer falsas relações de identidade estética objetivando um sentido de coletivo mercadológico. Tal dimensão da cultura, atrelada a valores tecnicistas e econômicos, se opõe à arte enquanto autônoma, apresentando-se com uma forma artificial aculturada no mundo da mercadoria. Construída sob a égide do idêntico, essa realidade artificial se opõe de forma radical a qualquer experiência estética, criando uma familiaridade coletivamente reconhecível entre o sujeito e o objeto, e dessa forma estabelecendo uma identidade de formato único que irá tornar igual cada indivíduo. Ungida para o simples divertimento, a cultura-produto cresce e se dissemina sob o signo do recalque, da repressão de parte dos desejos e ideais do sujeito, induzindo a aceitação passiva de uma realidade de falsas satisfações impostas e alterando o próprio sentido de realidade. É nessa ótica que aludem Horkheimer e Adorno à condição de objeto que se impõe ao sujeito, “eterno consumidor” de necessidades criadas planejadamente por uma estrutura industrial inteiramente organizada para atendê-las.9 O que resulta disso resume o fato de que falar em cultura passa a conotar, em sentido contrário, tudo aquilo que se subordina ao universo da produção em série, mais ligado a padrões de comportamento coletivo do que de um presumido caráter cultural. Este fato justifica ainda hoje a observação de Adorno e Horkheimer (1985) ao

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afirmarem que falar em cultura sempre foi contrário à cultura. Aliás, a própria ideia de cultura enquanto um bem já traz consigo um sentido de ambiguidade, enquanto algo originado da experiência vivida e de explícito caráter subjetivo. Na medida em que a cultura, quando transformada em um bem, revela indubitavelmente a sua função de mercadoria, a relação de posse que advém a partir daí subverte o próprio sentido de seu significado. É nestes termos que semelhante uso da palavra “cultura” já traz consigo uma ideia de abordagem estatística para aferição de mercado, inserindo a produção cultural em um âmbito administrado que resulta no controle social de todas as instâncias da vida humana. Considerando, pois, que os mass media, enquanto universo simbólico-ideológico, criam forçosamente uma ideia de realidade camuflando os efeitos do mundo mercadológico, entende-se que os mesmos monopolizam também a esfera pública através da hegemonia dos meios de comunicação. São estes meios os responsáveis pela legitimação da cultura de mercado, inclusive regulando regimes políticos e atuando no âmbito da formação social, em detrimento da realização da autonomia e da alteridade dos indivíduos. Em outras palavras, os media modernos, o racionalismo e o cientificismo, estão sob a égide da construção de um universo simbólico-ideológico que se coloca como centro de formação entre a subjetividade e a sociabilidade, impedindo o sujeito, em sua singularidade, de qualquer tipo de experiência desatrelada de seus esquemas imperativos. Nesse sentido, é esclarecedora a argumentação sobre as formas de difusão em massa dessa mercadoria, especialmente aquelas que se encontram intrinsecamente ligadas aos veículos de comunicação industriais, iniciadas pelas transmissões radiofônicas, culminando com o advento da difusão consecutiva de imagem e som no pós-guerra pelos aparelhos televisivos. Enquanto estabelecido nos moldes capitalistas, vale assinalar que em termos prospectivos tal processo de industrialização previu não somente a reprodução de objetos culturais por meio dos aparatos tecnológicos, mas também interferiu diretamente no processo de produção da cultura, formatando e garantindo os conteúdos necessários destinados ao fomento do próprio processo reprodutivo. É a partir daí que o esquema de difusão serial da cultura em âmbito privado se objetiva de forma mais consistente, para além do próprio advento do cinema desde os anos 1920, conjugando a dependência da cultura enquanto

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mercadoria aos avanços tecnológicos advindos do processo de expansão da comunicação industrial. Assim é que tais meios tornaram-se, de forma absoluta, elementos básicos da vida social elevados ao status de gêneros de primeira necessidade, tendo na padronização de produtos artísticos e comportamentos culturais a atuação ampla e qualificada dos media modernos. Tanto é que Adorno, em sua conferência intitulada Prólogo sobre a televisão,10 analisando os efeitos que o veículo produz, refere-se à incapacidade dos indivíduos para superarem a si próprios, e pressupõe um real imaginário construído em um mundo que não é o deles, muito embora se apresente como perfeita aparência. Assim é que tal medium, tendo como mola propulsora a ideia de cultura industrial, se manifesta como uma imposição social, determinando uma nova espécie de fetichismo: o da arte como mercadoria. Ora, se originariamente o conceito de fetichismo da mercadoria desenvolvido por Marx em O Capital se referia exclusivamente às instâncias do econômico, o alargamento de tal conceito, a partir do século XX, passa a representar dialeticamente uma possibilidade de análise crítica das instâncias culturais impetradas pelo capitalismo tardio, possibilitando uma correlação entre o contexto de superestrutura e o conceito de fetichismo da mercadoria cultural. Esse último, dividido em duas categorias interligadas de forma mútua, considera dialeticamente a produção da cultura como objetiva e o seu consumo enquanto dimensão subjetiva, sendo a primeira constituída como valor de uso e a segunda como valor de troca sob uma ótica fetichista, e, portanto, isenta de sentido social. Não por outra, a investigação das antinomias sociais se torna uma condição sine qua non ao método dialético, entendido como elemento fundamental para o desenvolvimento do sentido crítico. Tal senso crítico é vital para o entendimento da arbitrariedade da cultura oficial e do regulador mercado da cultura que leva o público a um não discernimento da pressão gerada pela produção em série, transformando-o em consumidor passivo. Assim, as formas da racionalidade técnica legitimam a dominação nas sociedades modernas, nas quais também a produção da cultura é dominada pela ação dos mass media através da utilização das novas tecnologias da informação, forjando uma suposta segurança de “reconhecimento oficial”, o que compromete o senso crítico e os valores éticos de sentido social.

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Por ser designada a cumprir um papel que se distancia cada vez mais de sua própria natureza, a obra de arte na sociedade de consumo se torna um produto reduzido e inteiramente dominado pelo detalhe técnico, entendendo, ainda, que padrões de gosto engendrados em termos de senso comum são construções que visam a garantir o processo de reificação planificada em que se apoia a produção em massa da cultura, forjados em sentido coletivo em detrimento da relação de individuação do sujeito com a singularidade inerente a cada obra. Compreende-se, pois, que o comportamento econômico que rege hegemonicamente as ações dos mass media, fundamentado na forma como se organiza a sociedade, emblematicamente transforma o consumo de necessidades em necessidades de consumo. Sendo assim, a obra de arte se torna mais um “bem de consumo”, reduzido a mero objeto transitório caracterizado pela obsolescência planificada.

Transfiguração da realidade social Sob essa égide, as tendências manifestas pelo excesso de racionalidade na arte se apresentam enquanto um processo de reificação,11 implicando uma espécie de caráter regressivo que a torna um produto de entretenimento manipulado. Sabe-se que o conceito de reificação, enquanto forma de alienação das relações de produção no capitalismo, pressupõe o predomínio do objeto sobre o sujeito, invertendo o sentido relacional de ambos os conceitos conforme estabelecido em termos originais. Portanto, no âmbito das relações sociais esse processo, interpretado no sentido da sua “coisificação”, substitui, por assim dizer, relações pessoais por relações de troca, transforma ideias abstratas em objetos concretos e torna o sujeito também um objeto. Elaborado por Marx em O capital e desenvolvido por Lukács em seus livros Teoria do romance e História e consciência de classe,12 tal conceito é analisado pelo primeiro a partir das ideias de alienação e fetichismo da mercadoria e, pelo segundo, como expressão da decadência do processo histórico, determinando a totalidade das formas de objetivação da realidade social. A isto se deve o caráter de fetiche que adquire a obra de arte enquanto produto, o que resulta em um quid pro quo no qual à subjetividade artística é conferido um valor de troca, sendo o caráter fetichista aquilo que se determina pelo destaque dado a qualquer objeto

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inerte que adquire o emblema de valor de troca, alienado de seu processo de produção, em substituição àquilo que caracteriza a arte enquanto algo vivo e de sentido imaterial. Tal mecanismo implica o fato de que o sujeito, “enfeitiçado” pelo sentimento de posse daquilo que é essencialmente material, é impossibilitado de se relacionar com a arte naquilo que ela tem de imaterial e somente adquirido por relação experiencial, preterindo-a por uma mercadoria ou mesmo até por um valor despendido em sua aquisição. O que procede disso é um tipo de consciência falsa baseada em elementos parciais de uma realidade fragmentada, que impossibilita ao indivíduo, submetido, uma percepção das mediações entre ele e a totalidade social, sendo tal perda da consciência subjetiva aquilo que corresponde à racionalização de todas as esferas da vida. Neste sentido, a estrutura da consciência reificada se torna um elemento constitutivo da dialética, instituída, no entanto, como forma de sua própria superação. Objetivada, então, enquanto tentativa de superação, ainda em consonância com o pensamento marxista, surge nova tentativa de promover uma crítica sobre a apologia do formalismo e do racionalismo na modernidade, contribuindo efetivamente para o desenvolvimento da reflexão dialética em um sentido histórico-materialista. Assim é que a teoria crítica se volta contra uma falsa realidade que somente possibilitava um conhecimento restrito da realidade e, portanto, incapaz de restituir a racionalidade no mundo moderno, tendo em vista que somente por meio da compreensão da realidade social torna-se possível ao indivíduo constituir-se como sujeito-histórico, superando tal realidade reificada. Entende-se, pois, que essa consciência reificada reprime os coletivos sociais, instaurando o poder da mecanização sobre o homem e criando condições cada vez mais favoráveis para a implantação de um sistema no qual os cidadãos-consumidores são continuamente não atendidos em relação ao que lhes é prometido. Destarte é que tal sistema busca otimizar resultados da vida social em todos os níveis, consequência direta daquilo que ficou amplamente conhecido como “sociedade administrada”. A expressão desta “administração” se apresenta como forma de dominação, eliminando as peculiaridades das diferentes esferas da vida social através do mecanismo das relações de troca, bem como do consumo estético massificado. É dessa forma que o produto cultural criado para o mercado – sem uma imediata determinação social, mas pleno de

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utilidade por meio de sua funcionalidade externa, valorado em si e para si mesmo – reproduz em sua relação de produção o caráter radical da estrutura racionalista a que o sujeito está submetido nos sistemas de troca, fruto direto das relações econômicas. Como consequência, essa “arte-produto” é hoje parte intrínseca do cotidiano do homem comum, legitimada em termos absolutos. Anteriormente veículo de ideias subjetivas, a obra de arte vai sendo aos poucos substituída por um objeto inteiramente dominado pelo tecnicismo, constituído por uma fórmula adaptada a produtos idênticos a serem consumidos por cidadãos-consumidores igualmente idênticos, reproduzindo socialmente modelos de valor ideológicos da mesma forma idênticos, que determinam a totalidade do comportamento social. Sob um prisma mais amplo, são emblemáticas as implicações éticas concernentes a tais fenômenos, conforme bem observa o sociólogo João Pissarra Esteves: A relação estreita dos media com o espaço público merece uma atenção especial por parte da ética, incidindo tanto na vertente político-institucional dos media como na sua vertente discursiva. Atendendo às audiências praticamente ilimitadas que alcançam, os media são responsáveis hoje em dia pela disseminação generalizada de tensões éticas: as redes mediáticas promovem tanto a participação e a intervenção cívica como a gestão e o controle, polarizando assim inúmeros conflitos morais que opõem agentes sociais uns contra outros. Como a comunicação mediática não existe de forma isolada, mas está inter-relacionada com os outros processos simbólicos da vida quotidiana, os seus efeitos veem-se disseminados no tecido social e nos diferentes contextos da vida coletiva (ESTEVES, 2007, p. 33-34).

Dimensionando tal questão também no âmbito da subjetividade cultural, entende-se que o principal objetivo da filosofia em relação à arte talvez seja a apreensão do seu conceito de verdade, uma vez que, a exemplo da filosofia, ela deve apresentar um caráter eminentemente crítico em relação à sociedade. Significa dizer que diferentemente da “arte-produto”, uma obra de arte autônoma, por assim dizer, deve se apresentar de forma crítica em relação às coisas da realidade reificada, essencialmente libertadora do sujeito, oposta à racionalidade da vida econômica e, portanto, antagônica aos valores expressos pela sociedade administrada. E no que respeita a tal potencial, a arte como promesse de bonheur, uma possível experiência de liberdade, deve refletir seu aspecto crítico também em relação à “arte-produto” e sua natureza funcional ideológica 82

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dominante. É justamente por seu caráter não cognitivo, conceitualmente não inteligível, que uma arte autônoma, somente submetida a regras imanentes a ela mesma, se encontra fora de alcance do universo artificial e reificado da “arte-produto” do mundo administrado, apresentando valores eminentemente críticos que possibilitam experiências de sentidos diferenciados. Por conseguinte, aquilo que encerra a imanência da obra de arte não deve ser visto em sentido estrito, pois sua aparência estética emana dela mesmo e não apenas da ilusão que suscita. Com isso, o que distingue o caráter de verdade da arte em sua singularidade é aquilo que concretamente aproxima o sujeito e o objeto em seu aspecto relacional não idêntico, ao contrário da “arte-produto” que parece promover uma espécie de separação entre sujeito e objeto, através da própria relação mercadológica que tende a estabelecer processos de diluição da arte em sua função estética. Refletindo, pois, sobre a possibilidade de superação entre o que os sentidos percebem e o que a razão pensa, se reconhece na arte autônoma o seu sentido potencial emancipador, porquanto capaz de estabelecer mediações entre o homem e o mundo prático, vinculando-os um ao outro e alterando as relações de submissão do sujeito a realidades predeterminadas. Sendo assim, a obra de arte – mesmo não sendo assimilável conceitualmente – ainda se apresenta mais verdadeira do que o conhecimento discursivo, vista a sua capacidade de alterar aquilo que foi imposto ao sujeito pela razão instrumentalizada. Em sentido contrário, a fábrica da cultura, voltada para a produção de valores cognitivos que se compram e se vendem, atua no sentido de uma totalidade que se prevalece do efeito e do detalhe técnico em substituição àquilo que é a ideia subjetiva de arte, destituída de uma função social.

Perspectivas da ética na estética Dialeticamente, a arte autônoma, de caráter social, concebida a partir de si mesma em seu caráter único, somente alcança um significado de universalidade a partir de uma experiência estética singular, ou seja, aquela em que cada sujeito, em sua individuação, pode fruir indiretamente algo de sentido particular, por ser impossível à arte, em sua subjetividade, comunicar-se socialmente de forma direta. Ao ressaltar o caráter subjetivo da arte, deve-se atentar para o fato de que esta, em sua forma

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implícita de comunicação não direta, é um “estar por vir” que se relaciona com aquilo que ainda não foi dito nem visto e que, portanto, não existe.13 Por assim dizer, entende-se que a arte se torna uma representação da natureza no mundo dos artefatos, remetendo analogamente o sujeito também à sua dimensão natural como forma de superação daquilo que a racionalidade administrada tenta validar. Depreende-se com isso que o conteúdo de verdade implícito nas obras de arte é também a sua verdade social, que condiciona uma experiência estética mais afeita ao mundo das vivências e das expressões da espontaneidade, oposta àquela da razão instrumentalizada. Desse modo, a reflexão estética vai além das relações que se estabelecem entre arte, conhecimento e natureza, analisando a obra de arte como parte constitutiva das sociedades modernas sob uma ótica crítica. Somente a partir do momento em que a arte historicamente alcança uma condição autônoma é que ela pode, dialeticamente, revelar de forma clara as contradições da sociedade, uma vez que seu desenvolvimento se dá através das relações que se estabelecem entre sujeito e objeto. Nesse sentido, entende-se que o artista estabelece uma relação dialogal com o estado de desenvolvimento do controle sobre a natureza, sendo a obra artística, enquanto trabalho social, aquilo que decorre da sua relação com o mundo racionalizado. Como é notório, tal processo de busca pela autonomia da arte irá atingir seu ponto máximo de efervescência com o advento da chamada arte pela arte, desencadeado pelos movimentos de vanguarda na década de 20 – concebido como forma de reação ao estado de coisas estabelecido – culminando na tentativa de atingir um estágio de emancipação absoluta da arte caracterizado pela isenção de qualquer vínculo desta com a sociedade. Ocorre que o isolamento da arte é um fenômeno que contraditoriamente se dá enquanto consequência do próprio sentido de autonomia que a arte sempre buscou, sendo tal contradição caracterizada pelo fato de que o artista em um contexto de plena liberdade de expressão parece incapaz de exercê-la pela simples impossibilidade de ter o que expressar. Sob outra ótica, tendo o artista o que comunicar com sua obra, ainda que distanciada da realidade do público, infere-se que a arte perde o seu caráter de verdade ao abrir mão daquilo que a caracteriza em sua dupla função de ser ao mesmo tempo autônoma e social. Em outras palavras,

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significa dizer que a arte não pode prescindir daquilo que lhe é imanente enquanto subjetividade, o seu ser-em-si que é a sua verdade artística, ao mesmo tempo em que deve responder em sua verdade social às questões problematizadas pela sociedade, sendo isto o que irá caracterizá-la como arte e produto social do trabalho. Assim, a interação entre subjetividade artística e objetividade dos meios se dá fundamentalmente através de uma relação dialética, sendo tal procedimento aquilo que irá determinar o coeficiente de liberdade do artista, não em um sentido individualizado, mas sim social. Porquanto disposto a responder artisticamente ao conjunto de problemas colocados por sua época, o grande artista não será somente aquele que produz obras “bem-feitas”, mas sim aquele capaz de pensar e resolver os dilemas artísticos inerentes ao seu tempo nas diversas sociedades, reafirmando a condição da arte enquanto aquilo que resulta do embate da subjetividade, que é artística, com a objetividade dos meios, que é a história. Ainda, sendo implícito à subjetividade tudo aquilo que o artista vê, ouve e pensa sobre arte, incorporado e organizado por ele em uma obra, entende-se que o aspecto da objetividade da arte já se encontra necessariamente perpassado de subjetividade, como resultado deste entrelaçamento histórico. Desta forma, pensar a arte significa pensar sob a ótica de uma história da arte, considerando que em cada época a arte se desenvolveu a partir de um dado contexto histórico e social, determinada por uma série de pressupostos diferenciados, tanto artísticos quanto estéticos, o que nos permite afirmar que as formas, as técnicas e até mesmo a própria subjetividade da arte encontra-se permeada de historicidade.14 Daí o entendimento de que a arte é uma história das várias formas de desenvolvimento do pensamento subjetivo construído em diversos contextos sociais, sendo cada um de seus momentos o reflexo da expressividade característica de um próprio tempo histórico. Analogamente, pensar a filosofia também significa pensar sobre uma história da filosofia, e em cada um de seus momentos os filósofos de seu tempo encontraram na arte uma possibilidade de pensar tanto a estética quanto a política de determinada época sob a ótica de um determinado contexto histórico e social. Ocorre que na história da filosofia, diversamente de outras disciplinas do pensamento, o entendimento sobre a questão estética não se desen-

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volveu em um sentido único, apresentando-se em diferentes formas e perspectivas, apesar da unanimidade quanto à importância da arte para a filosofia atribuída como expressão do conhecimento, distinguida em uma totalidade de teorias que contemplaram tanto o aspecto da experiência sensível quanto a formulação de intrincados sistemas calcados na racionalidade. Se em uma determinada perspectiva postulava-se enquanto essência a beleza natural da obra de arte, em outra as reflexões recaíam sobre a relação empírica do gosto ou mesmo de uma metafísica do belo, constituindo modelos de pensamento sobre a dimensão estética da arte, enquanto forma singular de expressão do conhecimento, e influenciando as diversas instâncias da vida social. Enquanto esfera reflexiva de sentido artístico, a estética adquire a sua mais ampla acepção exatamente naquilo que a caracteriza como conceitualmente indeterminada, porquanto garantia de noção aos limites da razão. Entendendo que pensar a relação entre arte e filosofia significa pensar dialeticamente, e não de forma abstrata, a arte e a filosofia, percebe-se o seu sentido histórico e social de modo a apreender a historicidade intrínseca de ambos os conceitos. Contudo, a questão da arte está muito além da reflexão estética, adquire relevância no âmbito de uma perspectiva crítica da razão instrumental, articula a discussão estética com um pensamento crítico formulado enquanto teoria e desempenha importante função no processo cognitivo. Sendo assim, é mister a adoção da teoria crítica e do materialismo histórico, tidos como instrumentos fundamentais para o pensamento estético.

Considerações finais Constituído no sentido de uma teoria do conhecimento, um dos suportes fundamentais que norteiam o pensamento do mundo moderno reside no contributo filosófico legado por Marx, de cuja leitura um grupo de pensadores apreendeu o estrito teor materialista e dialético que serviria de base teórica para a construção de suas próprias obras. Ao que tudo indica, o primeiro contato efetivo com a obra de Marx pelos pensadores que desenvolveram a Teoria Crítica se dá ainda em fins dos anos vinte do século XX, através de uma cópia fotostática dos Manuscritos econômico-filosóficos, enviada ao Instituto de Pesquisas Sociais pelo então diretor do

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Instituto Marx-Engels de Moscou, David Ryazanov, obra essa considerada como marco da superação do idealismo hegeliano por Marx, em prol da elaboração de seu materialismo dialético. Esse grupo de intelectuais, reunidos em torno de objetivos comuns, determina para si a tarefa de aprofundar questões ligadas à arte, filosofia, economia e política sob a ótica da teoria social, tendo como método o materialismo dialético de Marx. Nesse sentido, devem ter sido objeto de grande interesse desse grupo de intelectuais as passagens em que Marx se refere à subjetividade como força essencial humana. Mais especificamente: ... [É] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se tornam sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas, em parte recém-cultivados, em parte recém-engendrados. Pois não só os cinco sentidos, mas também os assim chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), numa palavra o sentido humano, a humanidade dos sentidos, vem a ser primeiramente pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada (MARX, 2004, p. 110).

Da mesma forma que Marx elabora a sua concepção materialista de dialética a partir do princípio dialético de Hegel, pode-se dizer que analogamente os criadores da Teoria Crítica desenvolvem, partindo das conquistas de ambos e da crítica às manifestações ideológicas hegemônicas de seu próprio tempo, o conceito de dialética – em síntese responsável pela elaboração de um corpus teórico estético alternativo ao pensamento filosófico tradicional. Em outras palavras, significa dizer que ao transpor os fundamentos econômicos, sociológicos, filosóficos e antropológicos do pensamento marxista para o campo da estética, tal grupo de pensadores não o fez de forma direta, mas sim a partir de uma relação de sequência e superação, partindo das teses elaboradas por Marx sobre as condições históricas e sociais que explicam o desenvolvimento dos modos de produção baseados no capital. De forma consequente a essa reflexão e tendo em vista que as condições sociais de cada época determinam quais tipos de ação e procedimentos técnicos serão considerados artísticos, imprescindíveis de investigação filosófica, compreende-se que nenhuma discussão estética pode ignorar o problema da relação entre a arte e a vida social. Não por acaso, vale

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assinalar que em seu ethos essa concepção em muito se assemelha e nada deixa a dever àquela de Marx que conclui a passagem referente à subjetividade como força essencial humana, no citado Manuscritos econômico-filosóficos: “O homem carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo espetáculo” (MARX, 2004, p. 110). Sob essa ótica, torna-se importante refletir sobre a relevância do pensamento estético no âmbito das mudanças nas relações que se estabelecem entre arte e sociedade, pois talvez seja tarefa da própria obra de arte desmascarar falsas relações nesta área. É nesse sentido que a filosofia necessita da arte assim como a arte necessita do pensamento para poder ser experimentada em sua totalidade, significando dizer que a arte somente pode alcançar sua dimensão social quando vinculada à crítica e à filosofia. Daí a compreensão da arte como forma de conhecimento.

Notas 1 Ideia atribuída a Horkheimer, que estabelece conexões dialéticas entre elementos filosóficos da teoria marxista com o conhecimento empírico na filosofia, criando um nexo inextricável entre o domínio do pensamento e o domínio da ação. 2 Cf. MARCUSE (1968, p. 168). 3 Cf. FROMM (1992, p. 135). 4 Atenta-se para o fato de que o conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta, pois, também este possui uma origem histórica e, portanto, pode transformar-se e, até mesmo, desaparecer. 5 O hic et nunc do original de uma obra de arte constitui o que Walter Benjamin

chama de sua autenticidade. 6 Segundo Löwenthal (apud AY, 2008, p. 229), a cultura de massa é a psicanálise às avessas. 7 Importante atentar para o fato de que a noção de indústria cultural é um pressuposto da dialética e como tal não se define em termos conceituais, sendo a dialética aquilo que acompanha o movimento do sentido dos conceitos na história.

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8 Conforme Adorno mesmo explica em seu ensaio Breves considerações acerca da indústria da cultura. Transcrito para o português com tradução de Maria Antônia Amarante, inicialmente o ensaio Resumé über Kulturindustrie foi uma conferência radiofônica proferida por Adorno em abril de 1963: “Parece que a expressão ‘indústria cultural’ foi empregada pela primeira vez na Dialética do Esclarecimento, que Horkheimer e eu publicamos em 1947, em Amsterdam. Em nossos esboços se falava em ‘cultura de massas’. Substituímos esta expressão por ‘indústria cultural’, para desligá-la desde o início do sentido cômodo dado por seus defensores: o de que se trata de algo como uma cultura que brota espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria atualmente a arte popular. Dela, a indústria se diferencia de modo mais extremo. Ela combina o consuetudinário com uma nova qualidade. Em todos os seus setores são fabricados, de modo mais ou menos planejado, produtos talhados para o consumo de massas e este consumo é determinado em grande medida por estes próprios produtos. Setores que são entre si analogamente estruturados ou pelo menos reciprocamente adaptados. Quase sem lacunas, constituem um sistema. Isto lhes é permitido, tanto pelos hodiernos instrumentos da técnica, como pela concentração econômica e administrativa. Indústria cultural é a integração deliberada, pelo alto, de seus consumidores [...] O conceito de técnica na indústria cultural tem somente o termo em comum com seu correspondente na obra de arte. Aqui a técnica se refere à organização da coisa em si, à sua lógica interna. A técnica da indústria cultural, pelo contrário, sendo a priori uma técnica de distribuição e de reprodução mecânica, permanece sempre externa à própria coisa. A indústria cultural encontra um suporte ideológico precisamente no fato de que cuida em bem aplicar, com total consequência, suas técnicas aos produtos. Ela vive por assim dizer como parasita de uma técnica extra-artística, da técnica de produção de bens materiais, sem dar-se conta do que a objetividade desta comporta para a forma intra-artística, e, além disso, para a lei formal da autonomia estética [...]. A satisfação substitutiva que a indústria cultural procura, com o sentimento confortante, que o mundo seja ordenado precisamente do modo que ela sugere, engana os homens em relação à felicidade de que ela lhes simula. O efeito global da indústria cultural é o de um anti-iluminismo; nela o iluminismo (Aufklärung), como Horkheimer e eu tomamos o progressivo domínio técnico da natureza, torna-se engano das massas, meio para sujeitar as consciências. Impede a formação dos indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. Pois bem, esses seriam os pressupostos de uma sociedade democrática que somente indivíduos emancipados podem manter e desenvolver. Se se engana as massas, se pelo alto se as insulta como tal, a responsabilidade não cabe por último à indústria cultural; é a indústria cultural que despreza as massas e as impede da emancipação pela qual os indivíduos seriam maduros como permitem as forças produtivas da época.” Cf. ADORNO (2003, p. 97-106). 9 Cf. ADORNO; HORKHEIMER (1985, p. 180). 10 Conferência transcrita e traduzida para o português: “Os aspectos sociais,

técnicos e artísticos da televisão não podem ser tratados isoladamente. Em grande medida, estão dependentes uns dos outros: a condição artística, por exemplo, depende da inibidora atenção às massas do público, que só uma

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impotente ingenuidade presumirá que pode ignorar; os seus efeitos sociais, da estrutura técnica, e inclusive da própria novidade da mesma técnica, que na América foi seguramente decisiva na fase de lançamento, mas também das imagens manifestas e ocultas que as produções de televisão transmitem ao espectador. O medium propriamente dito, no entanto, insere-se no esquema abrangente da indústria da cultura e, como associação que é entre o cinema e o rádio, leva mais longe a tendência daquele a sitiar e capturar a consciência do público. Com a televisão, o antigo objetivo de conseguir uma imagem de conjunto do mundo sensível que atinja todos os órgãos, o sonho sem sonhos, torna-se mais próximo, permitindo ao mesmo tempo infiltrar sub-repticiamente no duplicado do mundo aquilo que sempre nos propiciou como real. As margens de manobra de que a vida privada ainda dispunha em face da indústria da cultura, na medida em que esta não dominava ubiquamente todas as dimensões do visível, são eliminadas. Tal como praticamente já não se pode dar um passo fora do tempo de trabalho sem tropeçar nas manifestações da indústria da cultura, assim também os seus media se adaptaram tão bem uns aos outros que não deixam espaço onde uma consciência possa respirar e perceber que o mundo deles não é o mundo [...] É por isso que os sociólogos sentem tantas dificuldades em dizer what television does to people. De fato, as técnicas mais avançadas da investigação social exigem que se isolem os ‘fatores’ que são próximos da televisão; ora, estes fatores recebem a sua força exclusivamente do sistema no seu todo. Os seres humanos preferem ficar fixados no inevitável a modificarem-se. É de supor que a televisão os faz ser, o que de qualquer maneira são, ainda mais do que o seriam sem ela. Tal corresponderia a uma tendência geral de raiz econômica que se faz sentir na sociedade atual: nas suas formas de consciência, já não se superar a si próprio, indo para além do status quo, antes o confirmar constantemente e, quando alguma ameaça o espreita, reconstituí-lo. A pressão que os seres humanos vivem tornou-se tão forte que não a aguentariam sem constantemente enfrentarem e repetirem interiormente os precários esforços de adaptação que já despenderam. Freud ensinou que o recalcamento das pulsões nunca é totalmente bem-sucedido e nem dura tanto tempo, pelo que as energias psíquicas inconscientes do indivíduo são incansavelmente despendidas para manter no inconsciente aquilo que não pode aceder à consciência. Este trabalho de Sísifo da economia pulsional individual parece hoje “socializado”, tomado a cargo pelas instituições da indústria da cultura, que o gere para seu benefício, e dos poderosos interesses que estão por trás delas. A televisão, tal como é hoje, contribui para isso com a sua parte. Quanto mais perfeitamente o mundo é aparência, mais impenetrável é a aparência como ideologia.” Cf. ADORNO (2003, p. 162-163). 11 Etimologicamente o termo guarda uma tradução do latim RES, entendido

como coisificação. Em alemão Verdinglichung implica na decomposição abstrata das ideias, transformadas em coisas, em objetos. De acordo com Marx (2004), considerar, por exemplo, o trabalho como mercadoria explica a condição reificada do ser humano. 12 Diante das reflexões de Marx em O Capital, Lukács (2003) desenvolve o

conceito de reificação, caracterizando-o como uma constrição, que leva à assimilação das relações intersubjetivas a um mundo objetivo. Segundo o

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filósofo húngaro, isso acontece quando as relações sociais são expressas não pelo entendimento linguístico, valores ou normas morais, mas, pelo medium valor de troca (pela mercadoria), aludindo a uma coisificação das ações sociais em que, através da relação fetichista entre objetos, subtrai a condição de subjetividade, ou seja, do humano. Significando dizer que o indivíduo passava a ser representado como um mero objeto de consumo, desprovido de atributos pessoais e individualidade. 13 Esta seria uma pretensão de verdade que resulta na experiência de algo novo oposto

à verdade racionalizada da arte de mercado. 14 Conforme Lukács (1970, p. 167) “a estrutura da obra de arte e a peculiaridade

do comportamento estético formam, naturalmente, o objeto de posteriores e mais concretas investigações estéticas, que também, em grande parte, não podem se limitar ao exame estético-materialista, exigindo recurso aos instrumentos do materialismo histórico”.

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Marcia Tiburi

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Convenções de qualidade e a inserção da agricultura familiar na cadeia produtiva do leite na região de Imperatriz/MA

Marcia Tiburi Graduada em Filosofia pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), em 1991, e em Artes Plásticas pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em 1996. Mestre em Filosofia pela PUC-RS, em 1994, e doutora em Filosofia pela UFRGS, em 1999, com ênfase em Filosofia Contemporânea. Pós-doutorado em Artes pelo Instituto de Artes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Professora de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Colunista da revista Cult.

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Marcelo Sampaio Carneiro

Resumo A expressão “filosofia pop” vem sendo usada em esferas sociais e acadêmicas de maneiras diversas. Em artigo que se tornou importante na área, o filósofo brasileiro Charles Feitosa conseguiu defender de modo coerente e instigante, um conceito do fenômeno filosofia pop, merecedor de análise. A tese que surge a partir da leitura e do diálogo com Feitosa é a de que a filosofia pop é herdeira da tradição da estética filosófica compreendida enquanto filosofia dos conteúdos desprezados pela forma tradicional da teoria. Daí a sua afinidade com a filosofia da cultura. A filosofia pop se apresenta como um outro método, um campo com metodologia própria, diante do que podemos definir como “desprezo metódico” próprio da história tradicional da filosofia. Nessa linha, buscando a filosofia dos conteúdos desprezados, tentamos mostrar um aspecto da obra do filósofo Siegfried Kracauer, situado no que podemos chamar de pré-história da filosofia pop. Nesta linha surge a leitura da filosofia pop como expansão dos horizontes da filosofia em diálogo com outras áreas. Palavras-chave: Arte pop. Conteúdos desprezados. Indústria Cultural. Andy Warhol. Siegfried Kracauer.

Abstract The expression “pop philosophy” has being used in social and academic fields in different ways. The Brazilian philosopher Charles Feitosa defended, in a coherent and instigating way, a concept of the pop philosophy phenomenon that should be considered. From the reading and dialogue with Feitosa emerges the thesis that pop philosophy is heir to the philosophical aesthetics understood as the philosophy of the content neglected by the traditional form of theory; hence, its affinity with the philosophy of culture. Pop philosophy is presented as another method, a field with its own methodology; in the face of it, we can define as “methodical contempt” characteristic of the traditional history of philosophy. In this line, seeking the philosophy of the neglected contents, we try to show an aspect of the work of the philosopher Siegfried Kracauer situated in what we call pre-history of pop philosophy. In this line comes the reading of pop philosophy as an expansion of the philosophy horizons in dialogue with other areas. Keywords: Pop Art. Neglected Contents. Cultural Industry. Andy Warhol. Siegfried Kracauer. Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 29 | p. 129-149 | jan.-abr. 2016

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Introdução1 Impossível falar de filosofia pop ou de pop filosofia no Brasil sem partir do texto inaugural de Charles Feitosa publicado em 2001 e intitulado O que é Isto – Filosofia Pop? (FEITOSA, 2001, p. 95). Desejo levantar alguns dos principais argumentos que Feitosa apresenta no trabalho citado como tentativa de conceituar, e fundamentar, esse fenômeno. Seguindo-o de perto, pretendo, contudo, acrescentar argumentos que permitam pensar em sentido histórico e crítico a chamada ‘filosofia pop’. A análise é urgente tendo em vista, de um lado, certa maledicência acadêmica em relação ao tema que escapa à crítica concreta, e de outro, a falta de reflexão característica da ordem midiática publicitária que atinge a imagem que se faz da filosofia em nossos dias. Ambos os campos (academia e mídia) apoderaram-se do sentido da filosofia que, hoje, precisa, digamos assim, ser “filosoficamente” liberto. Apertada entre a academia e o senso comum midiático (sem falar da histórica e insuficientemente abordada relação da filosofia com a ditadura militar) realmente não precisa de aspas, não haveria mais chance para a criação filosófica – praticada, a propósito, por séculos e séculos, por filósofos. Se a reverência acadêmica a uma tradição eurocêntrica tornou-se a regra de qualquer investigação no cenário brasileiro, no âmbito midiá­ tico desse cenário a filosofia é tratada nos termos do que se denomina “popularização da filosofia” como se “filosofia” fosse apenas um conteúdo ou área dominada por autoridades (acadêmicas) que detêm um saber e que poderiam transmitir tal suposto saber. O acordo ideológico entre academia e mídia oculta-se sob uma cena de antipatia totalmente falsa. Neste contexto, o potencial criativo, crítico e irônico da filosofia como tal corre o risco de desaparecer. O que pretendo sustentar é que o que chamamos hoje de filosofia pop surge como resposta ao estado atual da filosofia acadêmica que, apesar de sua importância, falha em um aspecto, justamente aquele no qual a filosofia pop passa a atuar. Refiro-me ao método que recupera a criatividade, a crítica e a ironia próprias da filosofia. A filosofia pop é a prova de que, em seu processo histórico, o procedimento reflexivo e autocrítico da filosofia faz surgir perspectivas críticas ao seu próprio enrijecimento.

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Estética e filosofia pop Não se trata, portanto, quando usamos a expressão ‘filosofia pop’, de falar da existência de uma corrente filosófica – ou antifilosófica – nova que seria capaz de fundar uma nova moda. É verdade que se trata de algo novo. Certamente é algo novo no sentido de que não poderia ter surgido em outra época, pois em épocas anteriores o próprio fenômeno “pop” não havia entrado em cena, de modo que não afetava a filosofia. Neste caso, trata-se de pensar a filosofia pop como um efeito da cultura. E, sem dúvida, também da indústria cultural, no momento em que ela se torna objeto de crítica, mas ao mesmo tempo, como silicone introduzido entre músculos, passa a fazer parte de um corpo. Além disso, como reflexão, como experiência reflexiva de pensamento, ao mesmo tempo a filosofia pop é, de certo modo, filosofia da cultura. Mais ainda, não uma filosofia que apenas metateoriza a cultura, mas teoriza a si mesma junto com a cultura. Portanto, estamos diante de uma filosofia em jogo com a cultura. É este “jogo” que se trata de pensar quando falamos de filosofia pop: o jogo da filosofia com o pop, um jogo perigoso e, ao mesmo tempo curioso e que, bem analisado e compreendido, torna-se relevante em termos de reflexão sobre nossa época. Trata-se de verificar a pertinência possível da filosofia enquanto método ligado a conteúdos que não seriam tradicionais em se tratando de filosofia. Trata-se de pensar se, de algum modo, o ato filosófico, que historicamente esteve em tensão com o ser concreto, poderia estar presente na discussão sobre o campo cultural, os temas e os conteúdos do “pop”. E mais, se, nessa discussão, a filosofia se mancharia de sua experiência. Se seria capaz de, ao mesmo tempo, sustentar alguma distância crítica em relação a tudo isso e, assim, garantir sua própria autocrítica. Pensar a filosofia enquanto questão cultural, eis o desafio ao qual nos reporta a filosofia pop. Ao mesmo tempo, trata-se de investigar se a filosofia pop não seria herdeira da estética “tradicional” em um sentido específico. A estética como área da filosofia tratou dos conteúdos desprezados pela razão e pela teorização tradicionais. Digamos que, contra um “desprezo metódico” característico da racionalidade tradicional que operou na história da filosofia, a filosofia pop participasse de um processo de “recolhimento” de tudo aquilo que se despreza em filosofia.

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Uma filosofia de catador de lixo (lembremo-nos do “trapeiro” de Walter Benjamin), como em certo sentido a história também se tornou desde a escola dos Annales (investigando temas pouco pesquisados e buscando contato com outras áreas e disciplinas). Assim, o próprio conceito de desprezo e o sentido dessa “recolha”, no âmbito de uma outra atenção filosófica às coisas, é o que se propõe pensar aqui. Assim como um dia, no século 18, a criação da estética como disciplina ampliou as fronteiras da filosofia, diante de nosso contexto sócio-histórico brasileiro e mundial, o próprio conceito de filosofia se amplia hoje ao considerar a relação entre a filosofia e o pop repropondo seu sentido na ordem da cultura.

A filosofia pop em Charles Feitosa No texto citado, Feitosa (2001), que fez seu doutorado sobre Hegel e é autor de um belo livro paradidático chamado Explicando a Filosofia com Arte (FEITOSA, 2004), nos conta de seu encontro com a expressão ‘filosofia pop’ presente nos Diálogos de Deleuze com Claire Parnet (DELEUZE; PARNET, 1998). O uso que Feitosa faz do termo é tão rico quanto a proposição de Deleuze que deu ensejo ao seu texto. Por isso, podemos dizer que Deleuze torna-se um interlocutor de Feitosa como eram certos interlocutores de Sócrates nos diálogos platônicos, alguém que, em sua posição secundária, ajuda a marcar o lugar especial do protagonista. Deleuzianamente, Feitosa “rouba” Deleuze provando ser seu amigo no mais contundente sentido filosófico, o daquele que pensa “junto”, seja contra ou a favor. Ele dialoga. Já de início, gostaria de tratar de um aspecto problemático relativamente à resistência acadêmica à filosofia pop. Ele diz respeito à questão da autoridade com a qual nos acostumamos a lidar quando se fala em filosofia e em ciências em geral. Ora, hoje em dia, Deleuze é justamente a grife de autoridade que permite ao filósofo brasileiro – enfatize-se que em um contexto brasileiro – inventar seus conceitos sem ser apedrejado por aqueles que podemos chamar de “fundamentalistas”, ou seja, os que reduzem as potencialidades da filosofia ao comentário de textos ditos canônicos no âmbito da “história da filosofia”. Levemos em conta para o que será dito a seguir que, no futuro, o texto de Charles Feitosa é que 100

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poderá tornar-se o texto “canônico”. As aspas aqui servem para destacar questões que não poderemos abordar no âmbito deste texto por falta de espaço. Em suspenso elas alimentam uma salutar desconfiança quanto aos padrões do fazer filosófico em nosso contexto em que os referenciais estrangeiros (europeus e americanos) tomam o lugar de figuras da autoridade e da verdade. Quero dizer com isso que a filosofia pop de Charles Feitosa dialoga muito bem com essas figuras de autoridade e, por isso, corresponde a todos os critérios de distinção e nobreza intelectual exigidos na filosofia acadêmica brasileira. Podemos, por isso mesmo, nos perguntar se Charles Feitosa poderia falar de algo como filosofia pop sem citar pelo menos o nome de um filósofo estrangeiro tal como Deleuze e sem ser apedrejado por isso. E se o fato de que ele cite Hegel, filósofo da esfera dita canônica, não torna seu texto infinitamente mais “respeitável”. Nietzsche, também citado por Feitosa, já ajudaria neste aspecto que é um verdadeiro quesito para a garantia de que um texto seja “filosófico” no sentido acadêmico (de que existam autores – filósofos – citados, mesmo que o texto não tenha questionamentos filosóficos), mas sobre Nietzsche ainda pesam desconfianças no campo do capital filosófico acadêmico. Poderíamos pensar que filosofia não é algo que combine com a erudição vazia. No entanto, em muitos casos, a ameaça que paira sobre a área é exatamente esta. Mais adiante, quando chegarmos no trecho dos “conteúdos desprezados” retomarei a questão nestes termos. Por enquanto, aproveitemos com a máxima atenção o texto que instaura entre nós o problema filosófico da chamada filosofia pop. Feitosa (2001) cita, pois, em seu texto, um trecho de Deleuze, a partir do qual irá criar seus próprios argumentos: “Os conceitos são como sons, cores ou imagens, são intensidades que vos convêm ou não, que passam ou não passam. Pop Philosophie”. Ao comentar o texto de Deleuze, o filósofo brasileiro nota que a expressão aparece sem aspas, ou seja, segundo ele, sem ressalvas. Podemos dizer que todo o esforço de texto de Feitosa será, a partir daí, justamente o de colocar e tirar as aspas/ressalvas da expressão ‘filosofia pop’. Feitosa explica que, à primeira vista, o termo não lhe agradou. E justifica-se levando em conta o termo “pop”: “talvez minha má vontade venha do fato de que hoje em dia o termo ‘pop’ (abreviação do termo ‘popular’) tenha um significado pejorativo: pop é comercial, pop é superSinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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ficial, pop é fácil” (FEITOSA, 2004, p. 95). O pop de que ele fala é abreviação de popular, mas ao mesmo tempo não esgota o significado do popular. Percebendo a multiplicidade do termo, Feitosa segue, na intenção de desenhar o significado de pop com uma menção ao pop na música: “a música pop é uma música produzida e vendida para uma grande audiência”. Coloca em cena, neste momento, o problema das “massas”, com que nos ocuparemos mais adiante. Ele afirma que “um código estético não explícito diz que suas canções têm que ser simples, facilmente memorizáveis, emocionalmente apelativas” (FEITOSA, 2004, p. 95). O pop aparece, então, como algo fácil, cuja facilidade tem por função capturar a sensibilidade das massas. Não é precipitado dizer que aquilo que Feitosa diz não difere, neste ponto, do conteúdo do texto da indústria cultural, quando na década de 1940, Adorno e Horkheimer, no ensaio que deu origem à expressão, levantavam a questão das popular songs, comentando o termo americano fad, modas que surgiam como epidemias (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 155). Já naquela época se percebia a função difusora da “facilitação” que teria como consequência última a “mistificação” das massas proposta como questão no texto dos frankfurtianos. O cerne da questão da indústria cultural musical é a regressão da audição que é concomitante à regressão da reflexão.1 Pergunta que precisamos nos fazer, neste ponto e logo de uma vez, é se filosofia é algo que poderia ser feito para as massas, ou seja, para grandes audiências naturalmente desafeitas da reflexão cuidadosa. À medida que aquilo que foi feito como filosofia sempre se posicionou historicamente, de um modo ou de outro, contra a mistificação que, em nossos dias, culmina na publicidade, vale perguntar se permaneceria sendo filosofia o que fosse feito na direção das massas. O cuidado com que Feitosa toma as formas de fazer filosofia em seu texto tem a ver com a chance de evitar que algo como a filosofia entre em contradição colocando-se nessa direção da publicidade.

O nome e o sentido do pop: autoproblematização e apresentação da filosofia Precisamos sublinhar aspectos antes de seguir adiante. O primeiro deles diz respeito à questão que a filosofia pop nos coloca, que é, justamente, 102

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relativa ao sentido da filosofia exposto na forma de sua apresentação. Não apenas a um sentido tido como tarefa cognitiva, política ou social, mas a sua própria potencialidade enquanto “método”. Por isso é que Charles Feitosa, o autor brasileiro mais ocupado com a questão da filosofia pop, usará a expressão entre aspas, do mesmo modo que entendo que devemos usá-la em nosso tempo histórico atual até que se esclareça seu sentido propriamente filosófico, ou o que queremos dizer desde que podemos colocar entre aspas algo como “propriamente filosófico”. A proposta aqui é que mantenhamos a própria expressão “filosofia” entre aspas, mantendo-a, assim, saudavelmente suspensa, longe da naturalização antifilosófica à qual ela é condenada pelo senso comum geral e acadêmico. Importante, portanto, manter a ressalva tanto para a filosofia pop, apesar da “auto‑ ridade” deleuziana que no texto de Feitosa vem proteger a questão – e sempre pode surgir como um atalho para o conceito que se quer construir –, quanto para a “filosofia” em seu sentido mais geral. Tudo isso precisa ser dito desde que se torna fácil pensar, em um primeiro momento, que filosofia pop seja justamente “coisa fácil”, ou que, como reza o senso comum (também acadêmico), seria facilitação contra as dificuldades históricas dos problemas no campo filosófico. Falar em facilitação neste contexto é já mistificação do que significa fácil ou difícil em filosofia. “Campo filosófico”, por sua vez, é um termo que substitui “Filosofia” com F maiúsculo e amplia os horizontes da questão da filosofia enquanto tal. A questão que surge diz respeito à validade da própria ideia de filosofia pop, enquanto metafilosofia ou filosofia que questiona a filosofia eu seu contexto tradicional. Este questionamento vem inscrito ao nível desse nome provocativo que é filosofia pop. Se por um lado, a nomeação – e caracterização – da filosofia se torna uma questão, por outro lado parece sugerir um atalho que economiza de modo fácil aquilo que se quer apreender. Daí que o próprio Feitosa perceba o incômodo com a expressão. Ao mesmo tempo, não é possível deixar de ponderar que algo nela pode fazer mais sentido do que se pode pensar à primeira vista. A questão da nomeação nos leva a outra: quando dizemos filosofia deleuziana ou filosofia aristotélica, filosofia hegeliana, marxista, ou pós-moderna, mudamos o sentido da “filosofia”? Não estamos apenas participando do modo de dizer “filosofia” desde seus constituintes históricos, Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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objetivos e também subjetivos? O que significa, portanto, dizer ‘filosofia pop’? Em outras palavras: com o termo ‘filosofia pop’ atingimos de fato aquilo que se pode pretender em termos de “avanço” nos modos de produzir e realizar algo como filosofia? O que realmente se alcança fazendo e escrevendo filosofia pop? A provocação nela contida é suficiente para transformar o cenário da filosofia atual? O que seja “filosofia” no contexto da filosofia pop é a pergunta que devemos nos fazer ao mesmo tempo em que é inevitável perguntar pelo significado do “pop” que a ela adere. De que se trata nessa junção conceitual? Ao dizer ou fazer filosofia pop se está, na verdade, a fazer algo ainda mais complicado do que parece. Talvez essa iniciativa merecesse muito mais a designação de “ciência sem nome”.2 Inaugura-se de fato um modo de fazer filosofia que vai na contramão e até mesmo debocha incisivamente da tradição com a qual nos contentamos ao definir filosofia em nosso tempo? Neste aspecto, está em jogo também o sentido histórico da filosofia que a coloca como questão histórica da filosofia: o que a filosofia é e o que ela pode vir a ser. A ressalva feita nas aspas colocadas por Feitosa traduz-se, assim, como intenção de um cuidado conceitual, pois que a filosofia pop é coisa filosoficamente muito séria. Feitosa pergunta, ao pôr em cena aquele tema da facilitação da música pop, a possível facilitação que está em jogo em todo “pop”: “Nesse contexto”, diz ele, “o que seria isso: a pop-filosofia?” – para nos responder sem medo: “certamente uma filosofia que faz sucesso, tanto de mídia como de público. A filosofia pop é aquela que promove best-sellers, dá ibope e lota congressos” (FEITOSA, 2004, p. 96). Aqui temos um conceito interessante a explorar. Devemos dizer que é impossível pensar que o pop não faça sucesso, pois que pop é justamente o que faz sucesso, como Sócrates fazia sucesso em Atenas, como Elvis Presley, sob novas condições, fez sucesso nos anos 60 e 70 do século 20. “Pop” é justamente a característica do que tem sucesso, público, “audiência”, em um contexto onde há meios de comunicação que possibilitem difusão. Podemos dizer que o sucesso é, em si mesmo, raso, enquanto característica da exposição de alguma coisa. As coisas de sucesso podem ser rasas comparadas com coisas “profundas” que não fazem sucesso. Mas o que está em jogo no sucesso não é a coisa, e sim o sucesso. Isso não quer dizer que o sucesso venha necessariamente de um caráter raso daquilo 104

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que faz sucesso. A coisa em questão não perde necessariamente sua profundidade em função do sucesso, embora, enquanto algo de sucesso, seja apreendida apenas pelo lado mais simples. Afinal, aquele lado que permite que seja apreendida é o que, provavelmente, lhe permite ser apreendida por muitos e, neste sentido, fazer sucesso. Sempre podemos nos colocar a questão da diferença entre o raso e o profundo. Se um livro mais lido ou menos lido seria mais raso ou mais profundo, por exemplo. E, neste caso, vale perguntar se o pop poderia ser profundo, considerando também que “profundo” é um termo problemático, além de um clichê. A questão não se resolve rapidamente, pois são problemas filosóficos que implicam um questionamento sobre o sentido do raso e do profundo, assim como do fácil e do difícil.

Categorias Feitosianas Pop I e Pop II Preocupado com o caráter raso do que ele chama de “filosofia da moda”, em contraposição a uma filosofia que entra “na moda”, Feitosa coloca, portanto, a questão da possibilidade de algo ser pop sem ser raso. Parte então para uma distinção importante entre dois tipos de pop em filosofia. O que ele chama de Pop I e Pop II. A distinção entre um e outro é o que tentarei explorar nos próximos trechos deste texto. Podemos partir da ideia de que o Pop I, ligado à Pop Art, interessa à filo­ sofia enquanto maneira de fazer filosofia, ao passo que o Pop II, ligado ao sucesso puro e simples, não interessa como maneira de fazer filosofia, mas poderá nos interessar enquanto objeto de análise filosófica, como veremos mais adiante. Para explicar o pop em geral e poder chegar à distinção sugerida, em primeiro lugar, Feitosa distingue uma “maneira pop de ler filosofia” (FEITOSA, 2004, p. 96). Cita Nietzsche como exemplo de um pensador “popular” sobre o qual há uma verdadeira indústria. Salva Nietzsche, no entanto, citando um trecho de Humano, demasiado humano, em que o filósofo trágico alemão fala do perigo das frases agradáveis de um pensador. Criticando esta maneira de ler filosofia, ele diz que, na verdade, trata-se de uma “maneira de não ler”. Charles Feitosa está preocupado com o caráter de Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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sucesso do pensador Nietzsche, e por isso dirá que “mais vendido” não quer dizer “mais lido”, o que vem significar que o pop enquanto facilitação e difusão pura e simples, não é o pop da filosofia pop. “Popularização” e “adulação” das massas não são o que interessa em filosofia. Com isso, podemos dizer que o pop que caracteriza a filosofia pop seria um pop para além do sentido do sucesso que lhe é próprio. Feitosa, ao referir-se a Nietzsche, está tratando a leitura como uma experiência que escapa à “superfície”, a um certo sentido de superfície, por mais que, por outro lado, haja um outro tipo de superfície, e só possamos ler enquanto temos uma relação com certo tipo de superfície que é, afinal, a tela onde lemos ou o texto impresso em papel. Para compreender a crítica de Charles, temos que levar em conta a diferença dessas superfícies. A meu ver, este é um dos primeiros pontos que importam radicalmente no ato de ler filosofia em geral, e filosofia pop em particular, enquanto um tipo de filosofia que implica a relação com a vida e com conteúdos incomuns para certa ideia de filosofia. Igualmente a questão da relação com as superfícies – o problema estético enquanto é objeto filosófico, ou o problema estético que afeta a apresentação da filosofia – me parece fundamental no momento em que se trata de produzir filosofia. Considerando que o “superficial” – que é objeto de investigação filosófica em autores como Vilém Flusser (TIBURI, 2011) – não se confunde com o significado do “raso” em sua acepção corrente. Diante disso, temos que nos ocupar, como filósofos ou professores de filosofia voltados para certa ideia de filosofia, com o sentido da aparição desta filosofia pop em nosso meio acadêmico e social quando, no simples sentido da aparição da filosofia, ela se faz com imagens, além de textos. E também com performance. No fundo, vemos que o pop da música pop, o pop enquanto sucesso, não dá conta do que certa filosofia pop pretende, pois que o pop da filosofia é muito mais próximo do sentido do pop da irônica Pop Art americana. Neste sentido, é tranquilo dizer que o pop é “profundo”, por exigir uma compreensão que vai além do alcance comum que temos com o termo ao simplesmente caracterizá-lo como o “raso” e o “sucesso”. Nem por isso, no entanto, devemos simplesmente assimilar o pop da Arte Pop, pois que o pop da filosofia, me parece ainda mais complicado. O que veremos, por exemplo, em Andy Warhol – se levamos a sério que 106

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Warhol seja um filósofo como compreendeu Danto (2012) – diz respeito a este elemento filosófico nascido no contexto do pop, mas que de modo algum é simplesmente o pop da filosofia pop, ainda que tenha com ele várias associações. Isso implica o que Feitosa terá sinalizado ao final de seu texto: mais do que Pop I e Pop II, a própria filosofia pop pode ser ainda outra coisa, um Pop III ou IV. O pop será, neste sentido, lugar de um método. Isso leva a pensar se, no fundo, com o pop, a filosofia não estaria na verdade, reeditando aquilo que ela mesma tenta negar ao fazer-se pop. O olhar filosófico é necessariamente não pop, ou “impopular”, à medida que exige uma especialização em torno dos processos de pensamento e linguagem que é difícil de se tornar um sucesso, no sentido de interessante para todos. O que o artigo de Feitosa procura não é simplificação, nem facilitação, mas acaba por chegar a uma “complexificação” da questão. O elemento metateórico de um artigo como o que ora escrevo, por exemplo, coloca o problema de sua autorreferencialidade e nos faz perguntar: “que filósofo sério terá paciência de ler um artigo sobre filosofia pop?”. Este artigo mesmo, como o de Charles Feitosa, dificilmente será um sucesso, no sentido de uma entrada “na moda”. O artigo poderá até entrar na moda, mas dificilmente virará algo “da moda” e, muito menos ainda, as suas questões mais minuciosas que não se dão à grande audiência até porque serão publicadas em um espaço de especialistas. A filosofia pop pode ser a filosofia que conversa mais com a arte do que com o popular. Que se interessa mais por artistas como Andy Warhol ou Roy Lichtenstein, ou por Vic Muniz e Beatriz Milhazes, do que pela “obra” de cantores sertanejos que animam bailes pelo Brasil afora. Ou seja, a classificação entre Pop I e Pop II, usada por Charles, faz todo o sentido e, neste aspecto, podemos dizer que o Pop I não é pop da filosofia pop feitosiana. Porque a filosofia pop enquanto filosofia da cultura não pode manter distinção de conteúdo, antes precisa ser um método de análise que rompe com essa distinção e, assim, se torna ainda mais acurado. O que interessa, portanto, nesse novo método é justamente o que ainda é filosofia, mas também o que possa ser o pop. O pop que importa à filosofia implica, portanto, um problema metodológico e não um simples modo de ser recebida por algo como “massas”. A recepção dependerá do processo metodológico que pode incluir uma reflexão sobre as massas Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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ou um modo de atingi-las, mas isso será tão complexo quanto foi a retórica para os filósofos na Grécia antiga. Pergunta que devemos nos colocar: até que ponto não reeditamos o “efeito sofístico” (CASSIN, 2005), a reserva de mercado da “verdade”, com este extremo de separação entre uma coisa e outra? Assim, quando Charles Feitosa levanta a existência de um Pop I e outro Pop II, não está reeditando a “distinção” em filosofia, que ele mesmo critica? Ao mesmo tempo, seria possível eliminar essa distinção sem perder de vista a especificidade filosófica? Claro que não, e ele tem razão, mas isso vem mostrar que há um jogo de forças filosófico – ou antifilosófico – entre o que pode ser a filosofia pop I e uma filosofia pop II como havia entre filosofia e sofística na época dos gregos, coisa que Feitosa (2004, p. 97) não perde de vista. Mas, assim como filosofia e sofística tinham relações muito mais íntimas do que permitem ver as aparências, também o Pop I e o Pop II. Poderíamos pensar que é algo da “impopularidade” da filosofia, como elemento contido no Pop I, o que separa novamente joio e trigo, respectivamente o Pop I do Pop II. Mas na verdade, a diferença é de método. Uma filosofia crítica e criativa contra uma filosofia da facilitação que, de filosofia, não tem nada. Está em jogo também a relação da filosofia enquanto área de experiência e do trabalho intelectual que implica uma erudição específica e sua relação com a “cultura pop”, que dispensa aquela forma de erudição. O modo como a cultura é apreendida e vivida em contextos diferentes afeta o sentido da filosofia. Assim como o pop, que é vivido de modos diversos em culturas diferentes. Verdade que há similitudes entre as massas francesas, americanas, para citar exemplos, e brasileiras, mas mesmo assim há muitas diferenças, inclusive em função do modo como a educação afeta a cultura – em todos os seus aspectos – em cada um desses países. Além disso, o que era Pop II pode transformar-se, com o passar do tempo, em Pop I, como é o caso do jazz. Isso também nos permite voltar a pensar no caso de Nietzsche, um autor que é pop nos dois sentidos: no sentido da inventividade da Pop Art e no sentido de ser frequentemente vulgarizado como acontece em livros no estilo Nietzsche para estressados. Ele é pop e, ao mesmo tempo, mostra-se “antipop” quando começamos a lê-lo com cuidado e percebemos sua crítica à ideia e à prática da cultura de seu tempo.

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Urgente e essencial, esnobe e ruim A propósito da crítica de Deleuze aos “novos filósofos” que apresentam um tipo de pensamento marcado pelo marketing e pela propaganda de televisão – a quem podemos com outros termos chamar de funcionários do sistema econômico, social e político da tendência dominante –, e que estão a serviço da moda e à sua disposição, surge na elaboração feitosiana a diferença entre “urgente”, tomado como o imediato, e “essencial”, o que se contrapõe ao urgente. Ao definir essencial, Feitosa não se refere a “essências” no sentido de substâncias opostas às aparências sempre relacionadas ao raso, mas às “questões acerca das múltiplas relações de diferenças, singularidades e intensidades que permeiam implicitamente todo o campo das questões ditas urgentes” (FEITOSA, 2004, p. 97). Neste ponto, mais do que ir ao pop, Feitosa busca o que é propriamente filosófico na filosofia pop. Assim é que ele tratará do tema do “urgente” (Pop II) de modo declarado como “jornalismo e propaganda” no sentido daquilo que é antifilosófico por excelência. Outro autor que trabalha na mesma direção é Peter Sloterdijk (infelizmente, escapa ao objetivo deste artigo mostrar como este seria um exemplo de filósofo pop), para quem Spinoza, por exemplo, era o “antijornalista”, por excelência, aquele que “também não mente para o grande público” (FEITOSA, 2004, p. 97). Isso não prova, no entanto, que não possa haver alguma relação com um grande público sem ser jornalista. O jornalismo extremo seria o oposto da filosofia que, seguindo Nietzsche, Feitosa caracterizaria como algo que tem relação com o “inatual”, ou seja, não é a notícia do dia, não é o que interessa. Aquilo que chamei de “impopular” – o que não sai no jornal ou nele aparece não como notícia de hoje – refere-se justamente ao caráter também intempestivo, anacrônico e certamente inatual do que em filosofia não faz acordo, seja com o outro, seja com as massas, à medida que a crítica não é um processo que se faça mercadoria vendável. Feitosa perceberá que o caráter anacrônico, extemporâneo, que caracteriza a filosofia, também lhe dá certo tom de esnobismo. A filosofia teria sempre, segundo ele, má vontade com o fácil e o leve. A partir daquilo que Feitosa compreende como o “tom aristocrático, elitista ou mesmo esno­ be” da filosofia, podemos falar também de duas faces de uma filosofia Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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que, por um lado, se torna pedante por ser fundamentalista e tradicionalista, e uma outra filosofia possível que nunca poderá apagar de si o seu tom de “negação” ao que é dado como verdadeiro apenas porque foi dado como verdadeiro. Elencando a compreensão que alguns filósofos do cânone entendem como senso comum, ele colocará em questão a relação entre “popular” e “ruim”. “Certa imagem da filosofia” é o que está em jogo para Feitosa. O que se entende por filosofia é o problema desde o começo. Segundo ele, um “certo contrato de exclusividade com o abstrato, o elevado e o profundo” (FEITOSA, 2004, p. 98), um modo de “escrever, ler e pensar” que culminou em Hegel, um autor totalmente antipop e, no entanto, de muito sucesso no meio acadêmico onde é um pilar dos estudos filosóficos no mundo todo. Ora, Hegel não faz sucesso na televisão, mas sim na academia, a ponto de suplantar outros autores menos “famosos” ou que não tenham vantagens no mercado acadêmico. A fama é uma medida de sucesso também para o meio acadêmico que se pretende distinto do “meio midiático”. A filosofia “midiática” que, em um filósofo como Hegel, será a filosofia “popular”, terá um efeito nocivo na visão de Feitosa: segundo ele, Hegel “exclui do sistema todas as outras possibilidades de uma filosofia popular”. Em suas palavras, “tudo se passa como se não houvesse na filosofia sempre e cada vez um componente sensível, sensual e afetivo” (FEITOSA, 2004, p. 98). Essa sensualidade ou afetividade tiraria o prestígio do qual depende a filosofia para sustentar-se como garantia da verdade abstrata. Feitosa falará da intenção hegeliana de “recuperar o prestígio do pensamento conceitual”, coisa que todos nós fazemos até hoje como militantes da reflexão em um país avesso à filosofia como aos estudos em geral. Nesta busca por prestígio, segundo Charles (FEITOSA, 2001), “um pensamento que se deixasse contaminar, então, pelo colorido experimental da arte, estaria se rebaixando”, exatamente como nos sentimos ao nos envolvermos com conteúdos ou metodologias que não se orientem pela tendência dominante. Em resumo, o elemento “popular” seria, no Hegel de Charles Feitosa, próximo da arte e do corpo, do colorido e do sensível, e não combinaria, portanto, com a “imagem de pensamento” civilizado que seria mais apropriada à filosofia. Desde a Pop Philosophie deleuziana até uma possível e execrada “filosofia popular”, passando pela filosofia relacionada ao pop da cultura pop, 110

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estamos vendo a multiplicidade do pop. Em todos os casos o que parece estar em jogo é o alcance de algo que possa se chamar filosofia em nosso tempo, sem deixar de levar em conta o que foi a filosofia no passado. Vemos o confronto entre uma filosofia do passado (ligada a um esnobismo de distinção) e uma filosofia do presente e do futuro cujo caráter inovador é bastante malquisto pelos defensores da tradição. Mas Feitosa está mais interessado em enfrentar uma dicotomia mais crua, a que coloca o esnobismo e o pop (ligado ao concreto, ao vulgar e ao superficial) como extremos. É neste sentido que sua pergunta pela filosofia se coloca nos seguintes termos: “Esnobe ou pop, serão essas então as alternativas que nos restam?” Certamente esta alternativa resulta da hegemonia do pensamento de estilo hegeliano que configura o racionalismo ocidental enquanto tendência histórica da filosofia em geral: a tentativa de purificação da filosofia em relação ao mundo quando se constrói um conceito de filosofia ou de pensamento como “algo separado do mundo”. O pop no sentido do Pop II seria justamente uma má alternativa para a filosofia, porque não dialogaria com a própria filosofia e romperia com o método.

O método da filosofia pop desde a arte pop Charles Feitosa nos colocará, portanto, a distinção entre Pop I e Pop II, sendo o primeiro relacionado ao pop dos anos 1960, ligado à contracultura, a um “protesto contra uma certa tradição na arte e na cultura” (FEITOSA, 2004, p. 99). A meta da Pop Art, de Warhol a Lichtenstein, era “aproximar a arte e a vida”, dirá ele. Ainda segundo Feitosa (2004, p. 99), os artistas pop começaram a “trabalhar contra a distinção e a hierarquia entre o ‘inferior’ e o ‘superior’ na cultura”. Aqui começa o ponto a partir do qual eu gostaria de enfatizar que a “metodologia” da Arte Pop nos ensina a pensar um outro lugar para a leitura e a produção filosófica atual. Cito Feitosa: Através de técnicas de duplicação, reprodução, incorporação, reciclagem, superposição e colagem de elementos díspares nas telas, os integrantes do movimento ajudaram a consolidar o conceito de ‘pop’ como algo imaginativo, rebelde, original, irreverente, crítico e alegre. Era uma nova estética, uma nova sensibilidade, enfim, uma linha de fuga de dentro do

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sistema. Partindo da noção de Pop I (experimental, iconoclasta, irreverente), recoloca-se a pergunta, o que é isso, então, a filosofia pop? (FEITOSA, 2004, p. 99).

Na sequência de seu texto, nosso autor mostrará em que sentido Deleuze foi um filósofo pop. Seu senso de “onda”, a desterritorialização e o caráter criativo e experimental de sua filosofia compõem este cenário. Neste sentido, podemos dizer que há muitos filósofos pop na história. Veremos que a maior parte dos filósofos “famosos” e “canônicos” foi, em algum sentido, pop. Sócrates foi o primeiro deles, e todos os que ousaram pensar seu tempo colocando-se no centro dos debates foram pop, no sentido de “populares”, relativamente ao alcance de suas ideias num determinado tempo e lugar. Deixo, neste instante, esta quase paráfrase do texto de Charles Feitosa, pois não pretendo fazer uma avaliação da filosofia de Deleuze com a qual ele segue até o fim do seu texto, oferecendo-nos um excelente exemplo de pop filosofia, ou de sua interpretação dela. Gostaria de aproveitar alguns de seus tópicos como pressupostos do que tenho a dizer na sequência, a saber: (1) a relação entre a Pop Art e a filosofia que, a meu ver, pode ser amplamente explorada no sentido da criação da obra filosófica e da crítica a ela necessária; (2) a diferença entre Pop I e Pop II, dando espaço a um outro “pop” que, nos termos de Feitosa, sempre pode ser o Pop III, ou IV; (3) a ideia de que a pop filosofia trata o pop como seu elemento “arte”, por oposição à transformação da filosofia em qualquer tipo de barateamento. Neste sentido, gostaria de remontar a alguns outros autores que nos obrigam a pensar esta mudança metodológica em filosofia ou para a filosofia em nossa época, e que operam tal mudança em seus procedimentos produtivos. Com isso quero intensificar, no âmbito dos processos de construção da filosofia, o valor da experimentação, ao mesmo tempo que me parece fundamental afirmar, contra um mero e leviano experimentalismo, um compromisso de outra natureza do que chamo de filosofia com a prática crítica. A experimentação em filosofia não é experimentalismo descompromissado como era, em certa medida, em que pese a força de sua ironia, a Pop Art e, podemos dizer, a paródica pop filosofia de Andy Warhol.3 Verdade que o “descompromisso” de Warhol ajudou-o a libertar a arte e a percepção humana em relação ao seu lugar epistemológico e social, 112

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bem como sua conceituação em nosso tempo e, por isso, deve ser tomado como um posicionamento crítico. Neste sentido podemos dizer que a filosofia pop ou pop filosofia poderia ser chamada de “artefilosofia” e causar novas polêmicas. Uma filosofia que, mesmo não sendo do mesmo teor de uma obra de arte, assume certos de seus procedimentos. Uma filosofia que se expõe como arte. Charles Feitosa (2001) comenta em seu texto que os participantes da Pop Art americana usaram procedimentos de “duplicação, reprodução, incorporação, reciclagem, superposição e colagem de elementos díspares nas telas”, e que a partir daí teríamos que repensar a filosofia – como fez Deleuze. Podemos acrescentar o modelo da performance a tudo isso. Dela poderíamos derivar a ideia, por exemplo, de uma “dançafilosofia” ou de um “teatrofilosofia” (um bom exemplo seria o Tanztheater, de Pina Bauch), enfim, de formas artísticas que se mancham de – e se misturam a – pensamento, mas também de um pensamento que se forja a partir dos procedimentos tidos como artísticos. Daí a relação da pop filosofia com a estética, não apenas como herdeira de uma tradição, mas como um outro paradigma, um outro regime de pensamento que inclui a imagem e o texto em um mesmo processo. Proteger a filosofia de todos as “impurezas” da arte é o que está em questão, impurezas que a filosofia pop não teme.4 No entanto, a questão da filosofia pop, mesmo que relacionada à arte pop, impõe o problema da mercadoria. Se afirmamos, na linha de Feitosa, que a filosofia pode ser pop sem tornar-se mercadoria, devemos nos perguntar por que, afinal, ela não poderia tornar-se mercadoria. Andy Wahrol quis fazer de sua arte uma mercadoria acessível a muita gente. Um livro de Deleuze não é mercadoria? Qual a diferença de um xampu e um vídeo filosófico? Ou, ainda, qual a diferença entre um diploma que se adquire em uma universidade e a chance de participar de um concurso público? Apesar das diferenças, não há algo de “capital” em todos estes exemplos? São questões que precisamos nos colocar. Contudo, se a forma “mercadoria” é autoalienação social, é porque ela deriva da dominação de uns sobre outros, com o que a filosofia – se quer ser desmistificação inclusive de sua própria tradição – não pode compactuar. Verdade é que a filosofia não pode tornar-se mercadoria sob pena de trair sua própria liberdade e o descompromisso com o sistema. No entanto,

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sustentar sua base ética, aquela que faz buscar a desmontagem dos mecanismos de poder enquanto, ao mesmo tempo, dialoga com um mundo que não se pode abandonar, continua sendo o seu desafio. Com isso quero apenas mostrar que o problema da filosofia não é o de tornar-se uma mercadoria, pois ela sempre participou de um mundo no qual a mercadoria é também “meio”, ainda que devesse ser superado. Quero dizer que, de algum modo, a filosofia sempre foi mercadoria tornando-se “matéria” vendida em escolas (ainda que seja mais do que isso) e que o fato de que a filosofia se torne uma mercadoria barata não elimina o fato de que ela possa ser uma mercadoria luxuosa. Libertar a filosofia da forma mercadoria seria uma tarefa da filosofia Pop I (para usar a terminologia de Feitosa) enquanto, ao mesmo tempo, é o Pop II que a transforma em mercadoria. A filosofia tem em comum com a arte a crítica da cultura. E, com a arte pop, a crítica da cultura encastelada no conceito de “elite” que merece hoje em dia ser questionado. Parto da ideia de que a forma filosófica não é necessariamente o texto escrito, mas a pintura, o cinema, o teatro, e qualquer forma que elabore teoria, ideias, conceitos de modo crítico e expressivo. Penso no caso de Julio Cabrera com sua ideia de que o cinema é estrutura predicativa e se presta perfeitamente à filosofia (CABRERA, 2006). Algo que é preciso levar em conta neste sentido é que a grande questão da Pop Art foi colocar em dúvida o próprio sentido da arte. Artur Danto – filósofo para quem nem todo assunto é assunto filosófico – nos mostra em seu livro sobre Andy Wahrol (DANTO, 2005, p. 179)5 que o seu modo de ver e fazer arte chocou o mundo da arte americano nos anos 1960. Do mesmo modo que aqueles que fazem filosofia pop podem chocar certa filosofia atual. Se a arte pop criticou a arte pondo em dúvida o seu sentido, a filosofia pop põe em dúvida o sentido da filosofia. Levemos em conta o modo como Danto interpreta Warhol: Andy Warhol tinha uma mentalidade naturalmente filosófica. Muitos dos seus trabalhos mais importantes são respostas a questões filosóficas ou soluções de enigmas filosóficos. Muitos deixam de notar esse aspecto de seu trabalho, já que a filosofia não é muito cultivada fora das universidades. Todavia, a filosofia necessária para apreciar a admirável contribuição de Warhol não existia até ele criar sua arte. Muito da estética moderna é mais ou menos uma resposta aos desafios que ele propôs, de modo que

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sob importantes aspectos Warhol estava verdadeiramente fazendo filosofia ao fazer a arte que o tornou famoso. Isso significa que a maior parte da filosofia da arte anterior a ele tem pouquíssimo valor para analisar suas obras. Não foi escrita para dar conta de um trabalho como o dele, pois esse trabalho não foi pensado antes que ele o pensasse (DANTO, 2005, p. 179).

Do mesmo modo, podemos dizer, a filosofia pop não pode ser interpretada a partir de critérios da filosofia tradicional porque não foi pensada antes pela filosofia tradicional, ainda que possamos partir para uma investigação de sua pré-história. Precisamos, neste caso, ter em mente que a expressão ‘pop filosofia’ é tanto contracultural quanto “contraconsensual” em relação à filosofia tradicional. Convocada pelo pensamento criativo em filosofia, a filosofia pop usa o nome ‘filosofia’ por uma busca de coerência com o pensamento em sua fase de autoconstrução crítica e criativa. Partindo da hipótese de que filosofia não é um conhecimento pronto, mas algo a ser reinventado cada vez que algo acontece em seu nome, seja um evento ou um texto, a filosofia pop é a nova filosofia crítica, a filosofia crítica pós-indústria cultural.

Pré-história da filosofia pop e o problema dos “conteúdos desprezados” Não podemos deixar de levar em conta, para os fins deste estudo, que a filosofia pop refere-se ao que é desprezado na filosofia pela própria filosofia. Ao que foi desprezado enquanto conteúdo e enquanto forma. Corpos e linguagens, temas e metodologias que feneceram sob a função do desprezo metódico da filosofia tradicional. Porém, não é fácil avaliar o que há de desprezado na filosofia entendida de um modo geral. A função do “desprezo” serve, como na “distinção” de Bordieu, para definir espaços de poder. Ao mesmo tempo, o lugar da filosofia é ainda duvidoso, sobretudo na cultura pós-ditadura militar, e um círculo vicioso se torna evidente: a filosofia é também desprezada pelo mundo que ela mesma despreza. Se a filosofia pop implica uma mudança de método, ele diz respeito ao direcionamento de seu interesse para o que chamamos aqui de Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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conteúdos desprezados por ela mesma e pela sociedade. O que chamo de ‘conteúdos desprezados’ implica uma lista de aspectos que poderíamos classificar no campo que se estende entre o corpo, a arte e a loucura. Podemos buscar uma classificação, uma cartografia dos temas presentes nesse campo que se desenvolve entre essas três categorias. Falaríamos então de conteúdos “sombrios”. Eles são infinitos, não são estanques. Surgem a cada vez que a razão se projeta com base no princípio de identidade, nos esquemas da racionalidade instrumental, a que sustenta instituições. Neste contexto, a filosofia pop precisa levar em conta que seu interesse pelo desprezado aumenta o desprezo contra ela mesma, pois ela se marca com sua busca desprezada pela filosofia tradicional. A rejeição da filosofia pop não é questão de conteúdo apenas. O que está em jogo, portanto, é o procedimento próprio do método, no qual certa justaposição de imagens e palavras, gestos e performances a aproxima mais de Warburg do que de Hegel. No que concerne ao tema do método, a filosofia pop é como qualquer filosofia. Ela recupera conteúdos rejeitados pela filosofia enquanto o gesto de recuperar o rejeitado faz parte de seu método. O conteúdo limita o método. A filosofia neste momento se apresenta como “campo de dejetos”, “campo de rejeitos”. Bem antes da Pop Art ou da filosofia pop, Siegfried Kracauer – autor de um livro de 1934 chamado Das Ornament der Masse: essays,6 publicado no Brasil em 2009 – fazia filosofia nessa direção. No artigo que dá título ao livro, encontramos sinais de semelhança, aproximações genéticas com o que chamamos hoje de pop filosofia. Não se deve dizer aqui que Kracauer tivesse feito filosofia pop, mas certamente seu pensamento pertence à pré-história dessa forma de fazer filosofia. As palavras de Mirian Hansen na introdução da edição brasileira nos ajudam a entender [...] a mudança de enfoque teórico de Kracauer das grandes questões metafísicas da época para os fenômenos da vida cotidiana, para o efêmero, para espaços e mídias culturalmente marginais e desprezados, e para os rituais de uma cultura de massa emergente (HANSEN, 2009, p. 14).

Digno de nota é que a maior parte do que ele escreveu veio a ser publicada em jornais como o Frankfurter Zeitung nas décadas de 1920 e 1930. Mas o lugar pré-histórico do pop não está apenas no sentido do espaço 116

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de publicação formal (ainda que, se o compararmos com Vilém Flusser, que também escrevia em jornais, as coisas se tornem curiosas) e sim na atenção metodológica a um aspecto que cito a seguir. O lugar que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinado de modo muito mais pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície do que dos juízos da época sobre si mesma. Estes, enquanto expressão de tendências do tempo, não representam um testemunho conclusivo para a constituição conjunta da época. Aquelas, em razão de sua natureza inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo fundamental do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada sua interpretação. O conteúdo fundamental de uma época e seus impulsos desprezados se iluminam reciprocamente (KRACAUER, 2009, p. 91).

O que Kracauer chama de “discretas manifestações de superfície” são justamente o “conteúdo fundamental” e seus “impulsos desprezados”. Algo que devia ter ficado oculto e, no entanto, apareceu. A semelhança com a estranheza inquietante, o sinistro, de Freud (2010, p. 329), não é mera coincidência. Questão fundamental a ser levada a sério: Kracauer está lendo o livro do seu tempo. A superfície é o lugar onde o culturalmente esquecido – ou filosoficamente abandonado – vem se fazer presente. Uma das “manifestações de superfície” analisadas por Kracauer é a produção de um tipo de espetáculo de dança feito de uma quantidade imensa de corpos de mulheres, que constituem em seus movimentos grupais, organizados e ritmados, aquilo que ele chamou de “ornamento”. O ornamento é uma montagem, feita de desenhos regulares, em que os corpos funcionam como linhas de uma coreografia rigorosa e precisa. Conhecemos essas imagens dos filmes das primeiras décadas do século 20, em que as bailarinas de uma companhia de dança, as famosas Tillergirls, apresentavam-se com sucesso diante de públicos variados. Elas usavam seus corpos para fazerem desenhos muito organizados, verdadeiramente racionais. Leiamos o que diz o próprio Kracauer: O ornamento, separado de seus portadores, deve ser compreendido racionalmente. Ele se compõe de ângulos e círculos tal como aparecem nos manuais de geometria euclidiana; incorpora também componentes elementares da física, tais como ondas e espirais. Mas as excrescências de formas orgânicas e as emanações permanecem excluídas da vida psíquica.

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As tillergirls não podem mais ser recompostas em criaturas humanas e jamais os exercícios livres da massa são assumidos pelos corpos conservados, cujas contorções se negam à compreensão racional. Os braços, as coxas e as outras partes do corpo são os menores elementos constitutivos da composição (KRACAUER, 2009, p. 94).

O “ornamento da massa” é um “desenho” racional da massa. O conceito de ‘massa’ a que ele se refere é importante. Trata-se da massa no sentido de que as moças juntas causam um desenho, mas também da massa que as contemplava, fosse em um estádio, fosse no cinema. Kracauer notava que todo mundo seria informado já naquela época da existência desse tipo de espetáculo, assim como hoje é difícil escapar dos produtos ornamentais da indústria cultural (quem não será informado por meio de jornal, televisão, rádio ou internet, ou no boca a boca corriqueiro, sobre os personagens pop do momento?). A difusibilidade já era garantida naquela época pelos meios de comunicação, mais especificamente pelo cinejornal. Hoje a vida se tornou totalmente capturada por estes produtos em função de uma “difusibilidade total”. Não se pode dizer que a forma artística da dança ornamental desapareceu simplesmente, quando vemos que as massas continuam dançando (seja no carnaval, numa festa rave ou num baile funk); em torno de um “elemento”, temos uma prova de que alguma coisa permanece, mesmo que tenha sido muito modificada. O elemento é o ornamento. Neste sentido é que Kracauer dirá que “o elemento portador do ornamento é a massa” (KRACAUER, 2009, p. 92). O ornamento é como uma forma agregadora. Seu estatuto é o do conceito como um desenho próprio à coisa, mas apenas capturável pelo intelecto, no caso das massas, sem que haja, no entanto, consciência disso. Podemos dizer que o ornamento é um mínimo denominador de compreensão capaz de aglutinar a massa, Ora, como vimos, a massa de que fala Kracauer, neste texto complexo, é tanto o conjunto das moças quanto o dos espectadores que correm a vê-las. O ornamento é o desenho do movimento do grupo que oculta o indivíduo, oculta a particularidade no desenho de união abstrata entre as partes. Não há formulação melhor para o caráter amorfo da massa que depende da forma “ornamental” que, diante dela, a põe em lugar que lhe permite ser chamada de massa: “a regularidade de seus desenhos é aplaudida pela massa, disposta ordenadamente nas tribunas” (KRACAUER,

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2009, p. 92). O fato de o elemento portador do ornamento ser a massa significaria que o ornamento é uma espécie de isca ao mesmo tempo em que é conceito, ou seja, poderia ser melhor compreendido e não ficar apenas no nível “inconsciente”. A ligação entre a massa e o ornamento é, em Kracauer, orgânica. Fim em si, os ornamentos são vazios, não servem a outra coisa senão o encantamento mágico pela forma. Kracauer dirá que o sistema de produção do ornamento da massa é o mesmo do taylorismo, ou seja, há nele uma racionalidade, a mesma que vemos na repetibilidade da indústria – aquela que Andy Wahrol parece ter tornado irônica com as suas Brillo Box. Nas palavras de Kracauer (2009, p. 95): “o ornamento da massa é o reflexo estético da racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante”. Ao mesmo tempo, Kracauer (2009) reconhecerá a legitimidade “do prazer estético nos movimentos ornamentais da massa”. Isso porque esses movimentos são para ele “raras criações da época que dão forma ao existente”. O ornamental parece ser o elemento que, pertencendo à massa, vindo organizá-la, mostra algo que é significativo da realidade. Assim é que os movimentos ornamentais são vazios e podem soar como falsificação que levaria apenas à distração da multidão. Mas isso é, de certo modo, irrelevante diante do que ele mostra, do que ele traz à tona: as massas que se formam ao seu redor, ou melhor, que, por meio dele, ganham sua expressão. Por isso, Kracauer poderá dizer sobre a massa organizada e sua origem nas fábricas e escritórios: “O princípio formal, segundo o qual, é moldada, determina-a também na realidade” (KRACAUER, 2009, p. 95). É como se a massa encontrasse um lugar de expressão impossível em outro contexto. Segundo Kracauer: Se do horizonte do nosso mundo são subtraídos conteúdos significativos da realidade, a arte deve necessariamente trabalhar com os que restaram, pois uma representação estética é de fato tanto mais real quanto menos renuncia àquela realidade que se situa fora da esfera estética. A despeito do escasso valor que sempre se atribui ao ornamento da massa, segundo o seu grau de realidade, ele se situa acima das produções artísticas, que cultivam os sentimentos nobres obsoletos em formas passadas; também não quer ter em si nenhum significado ulterior (KRACAUER, 2009, p. 95).

Ele impõe uma tarefa para a arte que, a meu ver, cabe muito bem a esse campo que é, ao mesmo tempo, um método: arte-filosofia como filosofia Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 95-123 | jan.-abr. 2016

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pop. A atenção dos processos de criação e representação não pode se furtar à realidade. É neste sentido que ele será, como Benjamin, na boa comparação de Seligmann-Silva (2009), “um catador das ruínas da história”. A filosofia pop é herdeira desse processo. Na tentativa de construir a fundamentação da filosofia pop, gostaria de colocar no centro da cena os “conteúdos desprezados” comentados por Kracauer. No recolhimento do conteúdo desprezado está seu gesto fundacional, originário. A filosofia pop, em diálogo com a arte e a filosofia, é uma leitura do tempo, naquilo que ele tem de esquecido. Aquilo que Charles Feitosa anunciou como potência é o que temos como desafio: Pop III, IV, V, infinitamente. Cada objeto analisado pede essa reinvenção. Que essa reflexão valha para pensarmos em nossos destinos como estudiosos de filosofia, capazes de abrir caminhos para o conhecimento em nosso tempo, é o objetivo deste trabalho.

Notas 1 Os interlocutores de Charles Feitosa não são Adorno ou Horkheimer, mas, como dito antes, Gilles Deleuze, filósofo irônico que encontrou um jeito de pensar a filosofia de um modo mais próximo da vida sem descartar a história tradicional e que notou no pop uma riqueza reflexiva ímpar, sem, no entanto, cair na facilitação que simplesmente confundiria a filosofia com a indústria cultural. Algo que as iniciativas da filosofia mesma poderiam criticar à medida que, de um ponto de vista geral, chamamos filosofia a toda a reflexão que se opõe à mistificação na multiplicidade de suas manifestações. Neste sentido, os autores alemães também poderiam ser interlocutores de Feitosa, pois fizeram algo, pelo menos neste aspecto, muito parecido com Deleuze, sobretudo Adorno, que depois da Dialética do Esclarecimento, escrita junto com Horkheimer, escreveu um livro como Minima Moralia em 1951 e a Teoria Estética em 1969, textos que fogem aos formatos de apresentação da filosofia mais comumente aceitos. O interesse deste artigo não comporta um esgotamento do significado do pop nestas obras. 2 Giorgio Agamben ao expor o “método” de Aby Warburg usou a expressão “ciência sem nome” para designar o nascedouro do que tornou-se a grande área de investigação da “iconologia”. Ver Dossiê Warburg (2009).

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3 A filosofia pop constitui este questionamento do mesmo modo como o fez a Arte Pop de Warhol. Não há espaço neste artigo para uma elaboração a respeito da filosofia de Andy Warhol, que, afinal, foi sua arte, e da qual o livro A filosofia de Andy Warhol é apenas uma obra dentre tantas outras (WARHOL, 2008). 4 É o que a meu ver faz Virgínia Figueiredo em seu artigo “Isto é um cachimbo”, ao se propor uma reflexão sobre o sentido filosófico da imagem (FIGUEIREDO, 2005). 5 DANTO (2012, p. 179). Ver também DANTO (2004). 6 KRACAUER (2009).

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Marco Casanova Doutor em filosofia pela UFRJ/Universidade de Tübingen (1999). Pós-doutorado na Universidade de Freiburg (2005-2007). Professor Associado do Departamento de Filosofia da UERJ. Presidente da Sociedade Brasileira de Fenomenologia. Autor de O instante extraordinário: Vida, história e valor na obra de Friedrich Nietzsche (2003); Nada a caminho: Impessoalidade, niilismo e técnica no pensamento de Martin Heidegger (2006); Compreender Heidegger (2009); A eternidade frágil: Ensaio sobre temporalidade na arte (2013); e A falta que Marx nos faz (2016); além de tradutor de um grande conjunto de obras de pensadores alemães como Martin Heidegger, Max Scheler, Friedrich Nietzsche e Wilhelm Dilthey, entre outros.

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Resumo Obras de arte não são simples expressões de sentimentos estéticos particulares a um conjunto determinado de indivíduos dotados de um maior ou menor poder criativo. Ao contrário, elas concentram em si radicalmente uma vinculação ao tempo histórico que é o delas, assim como se perfazem em uma imensa solidariedade com os modos de relação constitutivos desse tempo. Com isso, os modos de tratamento do espaço, da forma, da matéria, do movimento, da figura etc. não se constroem em dissonância com o modo mesmo de determinação desses termos em uma época. Essa foi a intuição inicial de nosso texto, intuição que nos levou a tratar do problema da crise da representação na arte contemporânea a partir de uma reconstrução detalhada do surgimento da noção de arte como representação, do desenvolvimento dessa noção na Modernidade e da destruição do lugar privilegiado da representação no final do século XIX. O que procuramos mostrar aqui é em que medida a arte abstrata obedece a uma exigência dessa destruição e se estabelece como o modo paradigmático de nossa relação contemporânea com as coisas. Palavras-chave: Arte. História. Representação. Destruição. Abstração. Desfiguração.

Abstract Works of art are not simply expressions of aesthetic feelings, specific to a particular group of individuals endowed with more or less creative power. Rather, they radically concentrated in itself a link to the historical time that is their own, as well as make up in an immense solidarity with the ways of constitutive relation of this time. Thus, the modes of treatment of space, form, matter, motion, figure etc. do not built in dissonance with the same method of determining these terms at a time. That was the initial intuition of our text, intuition that led us to address the problem of the representation crisis in contemporary art from a detailed reconstruction of the emergence of the notion of art as representation, development of this notion in Modernity, and destruction of the privileged place of representation in the late nineteenth century. What we try to show here is to what extent abstract art follows a requirement of that destruction and establishes itself as the paradigmatic way of our contemporary relationship with things. Keywords: Art. History. Representation. Destruction. Abstraction. Defiguration.

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Introdução O acontecimento do poder-ser-humano total não está mais fundamentado apenas na semelhança imagética em relação a Deus, tal como na crença bíblica: ele também remete para a imagem e semelhança em relação ao mundo, imagem e semelhança essas com base nas quais o homem sofredor, ativo e reflexivo pode conceber a si mesmo como um espelho do todo e como oráculo cósmico. Aqui, o trem se põe em movimento, o trem que para uma vez mais na equação barroca entre Deus e natureza – com o homem como cópula e como signo vivo da igualdade. Para o sujeito da Modernidade, isso significa que ele se deixa conceber como um potencial ávido por realidade. Ser homem significa a partir de então empreender a si mesmo como oficina da autorrealização (SLOTERDIJK, 2012, p. 393).

Desde o seu despontar mais imediato com René Descartes (1596-1650), o pensamento moderno apresenta-nos uma virada singular em direção a uma redução da noção de sujeito, que considera única e exclusivamente o sujeito egoico humano. Se, para Aristóteles, todas as coisas capazes de receber predicados podiam ser, de maneira consequente, denominadas ‘sujeitos’ (noção gramatical de sujeito), o pensamento moderno se constituiu originariamente a partir de uma redução dessa categoria apenas ao eu humano (noção epistêmica de sujeito). Essa virada não se deve apenas a um traço peculiar do modo cartesiano de ver as coisas e não possui, por conseguinte, o caráter de uma descoberta individual. Ao contrário, ela se deve, antes de tudo, a uma mudança radical de horizonte hermenêutico, mudança essa provocada pelo fato de as coisas terem perdido repentinamente na Modernidade o seu lugar estável, a sua determinação dada e instituída, a sua obviedade mais intrínseca. Se na Idade Média, por exemplo, o ser dos entes em geral se achava desde o princípio marcado pela presença absolutamente consistente de Deus enquanto fundamento, a Modernidade se inicia justamente pela dissolução de tal presença e pela repentina sensação de que não era mais possível simplesmente confiar no fundamento divino, pois tornava-se indispensável buscar em si o caminho certo e seguro que levava às coisas mesmas. Essa mudança teve uma repercussão direta sobre a gênese do sujeito moderno. A princípio, tal como comentamos acima, tudo era sujeito porque tudo possuía uma presença em si mesma estabelecida, que tinha o seu fundamento na presença absoluta do Criador. Com a crise do fundamento do mundo medieval, exatamente essa presença em si das 128

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coisas se viu privada de sua consistência, uma vez que não havia mais como apelar para a simples vigência constante de Deus como o princípio e o fim de todas as coisas e alcançar por meio daí o conhecimento da verdade. Assim, o homem se vê diante da necessidade de buscar em si, não mais no mundo simplesmente, o caminho que leva propriamente às coisas mesmas. Pensar deixa de ser, a partir de então, colher na realidade a verdade e passa a ser uma investigação reflexiva do caminho, que pode levar a um posicionamento consistente dos entes em sua contraposição à nossa subjetividade. Esse é o segredo da expressão cartesiana criticada por Heidegger (2009) em vários momentos de sua obra: “todo ego cogito é cogito me cogitare” (todo ‘eu penso’ é um ‘eu penso’ que me pensa).1 Com o mundo do sujeito, então, nasce ao mesmo tempo o mundo dos objetos ligados de um modo ou de outro ao sujeito. Não há objetos sem sujeitos, na mesma medida em que o próprio sujeito conquista agora o seu lugar por meio do fato de que é ele o único responsável pelo posicionamento dos objetos. Ora, mas buscar em si o caminho que leva propriamente à verdade implica necessariamente romper com o acesso imediato às coisas por meio da sensibilidade e se restringir desde o início à ligação meramente imagética com as coisas, ou, dito na linguagem originária da filosofia moderna, aprender a se orientar exclusivamente pelas representações. A verdade, com isso, deixa de ser simplesmente adequação entre os enunciados e as coisas e passa a se mostrar antes como consistência na própria produção das representações, acurácia na concepção das imagens. Essa situação de gênese do pensamento moderno possui, por sua vez, consequências decisivas sobre o predomínio da imagem no mundo contemporâneo e mesmo sobre o fenômeno do vazio – sempre, uma vez mais, acentuado – das imagens hoje. Mas não é desse tema que trataremos aqui. O que está em questão para nós não é investigar simplesmente o caráter representacional da subjetividade moderna, nem os desdobramentos desse caráter num mundo onde as imagens são construídas circunstancialmente e jamais conseguem alcançar propriamente uma presença entre nós. O que nos interessa no presente texto é muito mais descrever em que medida as artes plásticas contemporâneas se determinam justamente pela crise da noção moderna de representação e pela conquista de um espaço de radical reestruturação da noção de imagem. O que desde o princípio está em jogo para nós é o surgimento do espaço Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 125-153 | jan.-abr. 2016

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pictórico como um espaço justamente marcado pela destruição do enquadramento racional das imagens e pela conquista de uma liberdade em relação a todos os cânones oriundos desse enquadramento. Para tanto, dividiremos o texto em três momentos específicos: 1) A perspectiva matemática e a pintura no espaço dos objetos ordenados; 2) A crise da representação e a estruturação afetiva do espaço; 3) Abstração e desfiguração.

A perspectiva matemática e a pintura no espaço dos objetos ordenados: o Renascimento no século XVI,2 o neoclássico e a estruturação perspectivística do espaço É praticamente um lugar comum associar a pintura renascentista do século XVI, marcada por nomes como o de Michelangelo, Rafael, Da Vinci, Tiziano e Giorgione, com a descoberta não da perspectiva pura e simples, algo que sempre acompanhou as artes plásticas de um modo ou de outro desde os egípcios, mas com a descoberta da lei matemática que descreve em que proporção os objetos precisam diminuir de tamanho para que se tenha uma sensação perceptiva de profundidade, uma ilusão de que a pintura não possui apenas duas dimensões – como acontece de fato –, mas de que ela teria três dimensões. Essa simples associação entre pintura renascentista e perspectiva matemática, no entanto, está longe de realmente dar conta do que de fato acontece no interior do campo pictórico aberto pelo Renascimento no século XVI. Em verdade, em meio ao surgimento da perspectiva matemática, o que tem lugar é muito mais do que a supressão da estranheza causada pela diminuição abrupta das figuras de fundo e a construção de um paralelismo mais real entre a experiência visual do quadro e as nossas experiências cotidianas dos objetos percebidos: toda uma nova compreensão do espaço ganha corpo aqui, uma compreensão que possui conexão direta com a noção que nasce na cosmologia do século XVI com Galileu Galilei e, mais ou menos um século depois, encontra na filosofia cartesiana a sua formulação conceitual plena: a noção de espaço ideal. Se olharmos, mesmo superficialmente, para o universo que aproxima a concepção galilaica do espaço e a posição cartesiana, alguns elementos chamam imediatamente a atenção. No caso de Galileu, a inserção da noção física de 130

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corpo é uma radical transformação dos pressupostos da física aristotélica. Enquanto para Aristóteles os tipos de movimento não tinham como ser descritos para além da materialidade dos corpos,3 Galileu estrutura a sua compreensão do movimento justamente por meio de um abandono da vinculação entre o corpo e a sua matéria primária. Para Galileu, corpo precisa ser considerado para além de sua matéria específica, pura e simplesmente a partir do peso de sua massa corpórea. Ao mesmo tempo, todo e qualquer corpo pode ser aqui fixado em puras estruturas espaço-temporais. São importantes para nós em tal definição, antes de tudo, a associação entre corpo e massa e o posicionamento dos corpos em puras estruturas espaço-temporais. Ao universalizar, por um lado, a noção de corpo, a materialidade deixa de ser importante e os corpos passam a ser visados de maneira completamente abstrata, desprovida de qualquer concretude. Ao falar sobre puras estruturas espaço-temporais, por outro lado, Galileu transforma o espaço e o tempo em assíntotas, nas quais é sempre possível demarcar pontualmente o lugar dos corpos no espaço e no tempo. Tempo e espaço transformam-se, com isso, em estruturas categoriais, em condições de possibilidade da realização de um posicionamento racional dos objetos. O que vemos a princípio em Galileu reaparece em seguida em Descartes. Para Descartes, o espaço é constituído essencialmente pela determinação da extensão. O espaço é literalmente res extensa, coisa extensa, coisa determinada substancialmente pela extensão. Isso acontece porque a extensão é a única propriedade das coisas que permanece quando todas as suas propriedades sensíveis se alteram. Bem, mas o que o espaço como extensão torna possível? Nada além de uma estruturação racional e quantitativa do espaço, o estabelecimento efetivo de proporções racionais no espaço. Na medida em que o espaço é reduzido essencialmente à extensão, ele aparece ao mesmo tempo como o campo no interior do qual a razão pode estabelecer relações ideais de proximidade, de distância, de angulação, de orientação etc. Ao dizer, por exemplo, que um objeto se encontra à direita, à frente, a 45 graus, a 100 metros de distância ou mesmo a duas horas de carro em um movimento retilíneo uniforme a 80 km por hora, o que estou dizendo agora é que o espaço pode ser pensado a partir de tais dimensões, uma vez que a extensão permite a localização Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 125-153 | jan.-abr. 2016

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ideal dos pontos (corpos) no interior da assíntota espacial. Essa compreensão, por outro lado, se encontra em uma repercussão direta com a experiência pictórica de uma série de pintores renascentistas do século XVI como Tizziano, Da Vinci, Rafael e Michelangelo, entre outros. E é isso que podemos observar de fato a partir da análise de um quadro como O julgamento de Salomão (Figura 1), de Giorgione Giorgio de Castelfranco, um pintor da escola renascentista veneziana marcado por toda uma aura de mistério em torno de sua produção. FIGURA 1 – O julgamento de Salomão

Fonte: Castelfranco (1500-1501)

Deixemos de lado aqui os elementos propriamente histórico-literários em jogo no quadro, a pergunta sobre os diversos significados em questão em cada um dos personagens presentes no quadro, a fim de nos concentrarmos fundamentalmente na experiência de espaço que ganha corpo no quadro. Se olharmos ainda que incidentalmente para o quadro, 132

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chama a atenção desde o início a sua estrutura planimétrica e a inserção do espectador em uma posição central que torna possível ver o quadro a partir do ponto de estruturação do espaço que segue do primeiro plano até o horizonte ao fundo. Não há qualquer contaminação entre um plano e outro e, com isso, eles vão se sucedendo a partir de um isolamento gradual e consequente. No primeiro plano, o plano de escorço, temos a cena propriamente dita do julgamento de Salomão, com as diversas figuras envolvidas no julgamento. No segundo plano, há a presença dos arbustos e de um conjunto pequeno de árvores. Mais ao fundo surge o plano do pastor com as suas ovelhas e do jovem ao seu lado. Em seguida, nós nos deparamos subsequentemente com o plano da rocha com o pequeno templo de arcadas, um pequeno morrinho, mais um arbusto, o castelo e assim por diante até a cadeia rochosa no último plano. Cada coisa no interior de cada plano se acha colocada em seu devido lugar. Não no lugar que cada coisa necessária e efetivamente possui em uma realidade dada e constituída. Seria difícil imaginar que Salomão, um rei hebreu que governou Israel entre os séculos XI e X a.C., estivesse julgando as duas mulheres em jogo na história bíblica com um palácio medieval ao fundo e com a presença de uma série de pessoas vestindo trajes típicos do século XVI na Itália. O que está em questão aqui não é apreender de fora o lugar de cada coisa em si mesma, mas confiar na razão e em sua capacidade de instituir o lugar de cada coisa, de colocar todas as coisas em uma posição no interior do espaço ideal. Da Vinci costumava dizer, por exemplo, que só se deveria pintar aquilo que se tinha visto exaustivamente. Essa advertência, porém, induz em erro, caso pensemos em Da Vinci como uma espécie de precursor do positivismo. A frase de Da Vinci precisa ser lida a partir da junção entre observação e esquematização. Não se olha aqui para descobrir determinações efetivas das coisas, mas para se chegar aos universais objetivos, às categorias da razão. O espectador, por sua vez, é convidado a se colocar justamente no lugar que lhe é atribuído idealmente pela subjetividade do pintor. Ele precisa ficar no meio do quadro, olhando para o quadro do primeiro plano em direção ao plano de fundo, acompanhando, assim, a perspectiva que abre uma experiência do espaço orientado, do espaço marcado por relações ideais entre os objetos. Essa compreensão do espaço é radicalizada ainda mais no interior do pensamento kantiano, de Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 125-153 | jan.-abr. 2016

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tal modo que a representação especial alcança em Kant o seu ápice moderno e, no neoclássico, o seu correlato mais absoluto. Bem, mas o que é o espaço para Kant? Dito de maneira direta e sem qualquer pretensão de tratamento exaustivo do problema do espaço na filosofia crítica kantiana, podemos dizer que o espaço em Kant é pensado como uma forma pura de nossa sensibilidade transcendental, como uma forma não derivada das coisas e indispensável como condição subjetiva para o posicionamento de objetos no espaço. Na medida em que esse espaço é completamente estruturado pela subjetividade antes de qualquer experiência efetiva de objetos, ele é um espaço ideal. Ao acolhermos fenômenos por meio de nossa sensibilidade, é isso que nos mostra Kant na passagem de sua Crítica da razão pura intitulada “Estética transcendental”: nós já sempre dotamos os fenômenos de uma roupagem subjetiva independente da experiência a posteriori dos objetos, uma vez que os representamos espaçotemporalmente. Representá-los em termos espaciais e temporais significa antes de tudo posicionar os objetos no interior do espaço ideal (à frente de, do lado de, a 45º, a dois quilômetros, a cinquenta passos etc.) e no interior da ordem interna dos fenômenos (um antes e um depois, estabelecidos exclusivamente por meio da ordem interna do tempo). Assim, Kant acrescenta um elemento importante à compreensão cartesiana do espaço, um elemento bastante condizente com o projeto kantiano do Esclarecimento, uma vez que calcado na máxima autonomia da subjetividade estruturadora de sua experiência, assim como claramente vinculado à atmosfera espiritual do século XVIII, uma atmosfera de luta contra toda e qualquer forma de jugo mítico da razão e de defesa irrestrita dos poderes propriamente ditos do racional. O espaço não é aqui pensado enquanto substância autônoma dotada de uma propriedade essencial, a extensão, e contraposto à outra substância existente, a substância pensante. Ao contrário, o espaço – tanto quanto o tempo – passa a ser pensado agora completamente a partir da estruturação subjetiva da relação dos objetos no espaço, a partir do movimento espacializante realizado passivamente pela sensibilidade a partir de uma de suas formas puras e a priori. Desse modo, o espaço deixa de ter toda e qualquer autonomia em relação às experiências do sujeito e se constitui imediatamente como o campo da sua experiência possível de objetos. A essa compreensão do espaço – estruturado 134

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racionalmente pela subjetividade transcendental, ou seja, pela subjetividade marcada por um conjunto de faculdades que tornam possível o conhecimento de objetos – corresponde radicalmente um aprofundamento da noção moderna de espaço no interior do neoclássico.4 Ao nos aproximarmos de uma obra do neoclássico em geral, uma coisa nos chama imediatamente a atenção. Enquanto acolhe o tratamento perspectivístico do espaço característico do Renascimento do século XVI, o neoclássico busca, por outro lado, escapar de um efeito indesejável que ganha corpo no interior das pinturas de tal Renascimento. Há algo facilmente constatável em pinturas do século XVI. Na medida em que nos apresenta uma estrutura planimétrica capaz de reter cada coisa no interior de seu plano e numa relação de proporções ideais com os outros planos, a perspectiva matemática aplicada ao espaço pictórico acaba trazendo, como consequência, uma falta de unidade orgânica entre os planos. Se voltarmos a observar o quadro de Giorgione (Figura 1), vamos notar que o isolamento dos planos permite, por um lado, uma consideração de cada plano em sua identidade propriamente dita, ao mesmo tempo em que a unidade entre os planos permanece bastante frágil. Qual é a ligação, por exemplo, entre o plano do julgamento e o plano dos arbustos, entre o plano dos arbustos e o plano dos pastores com suas ovelhas, e assim sucessivamente? A resposta a essa pergunta parece nos obrigar a dizer: a única ligação é a justaposição dos planos no campo de aprofundamento que conduz da cena de escorço ao plano de fundo. Para além dessa justaposição, não há qualquer unidade maior entre os planos. No interior do neoclássico, é justamente essa falta de unidade que será corrigida. Como o espaço aparece agora como projeto estruturado pela subjetividade posicionadora, o todo se abre não apenas a partir de relações ideais estabelecidas no interior da coisa extensa que é o mundo, mas o próprio mundo se revela agora muito mais como o campo experimental no qual figuras correlatas da consciência como um todo ganham corpo. O mundo como campo da experiência possível de objetos vem à tona em sua unidade enquanto campo, o que envolve ao mesmo tempo a constituição de um modo de relação entre os objetos no espaço, que os integra de maneira homogênea no movimento mesmo de espacialização. Os pressupostos subjetivos na determinação do espaço chegam, assim, ao seu ápice, na mesma medida em que a imagem projetada atinge a sua Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 125-153 | jan.-abr. 2016

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perfeição em termos formais. Tudo fala aqui uma linguagem clara, distinta, una, desprovida de desequilíbrios, mas, ao mesmo tempo, marcada por uma coesão muito maior do que no caso do Renascimento do século XVI. Uma vez que abandona definitivamente a ilusão de que o espaço teria uma constituição autônoma e leva às últimas consequências o seu caráter subjetivo, ele aparece agora em uma coerência orgânica, viva, que não tinha conquistado até então. É isso que podemos perceber em um quadro de um dos mais importantes nomes do neoclássico alemão: Karl Friedrich Schinckel (Figura 2).

FIGURA 2 – Igreja gótica sobre rocha junto ao mar

Fonte: Schinckel (1815)

Não é difícil notar como tudo nesse quadro fala uma língua diversa daquela presente no quadro de Giorgione que analisamos acima. Por um lado, o que vemos a princípio aponta para a manutenção da perspectiva matemática. Assim como a pintura renascentista do século XVI, Schinckel também se vale da lei que regula o tamanho dos objetos à medida que eles avançam em direção ao plano de fundo. Por outro lado, esse avanço não se dá a partir de algo como um isolamento possível de cada um dos planos em jogo na imagem. Há claramente vários planos aqui, exatamente como no caso de Giorgione. Todavia, eles se encontram

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antes integrados no acontecimento uno da cena. Bem, mas como se dá tal unidade? Alguns elementos do quadro são importantes para o surgimento da unidade cênica. Em primeiro lugar, há um movimento presente no quadro que não tem nenhum correlato na pintura renascentista por nós comentada. Os cavalos que acompanham a pequena carruagem, assim como a inclinação da estrada de terra pela qual passa a comitiva imprimem ao todo uma mobilidade particular. Ao mesmo tempo, o ponto a partir do qual se precisa ver o quadro não é a perspectiva do pintor frente à assim chamada golden section, mas sim a perspectiva do senhor sentado na carruagem que repentinamente aponta para a presença da igreja gótica junto ao mar. Trata-se de uma situação de admiração diante da grandiosidade da igreja, situação essa pensada justamente a partir da realidade una da cena. Em seguida, não podemos esquecer a ligação própria entre os elementos. Uma coisa que sempre chama a atenção nos quadros do Renascimento em geral é exatamente o quanto os planos não possuem nenhuma coerência interna propriamente dita. O pano de fundo, que aponta em muitos quadros do Renascimento italiano para a paisagem da Toscana, seria simplesmente impensável, caso se pudesse falar de algo assim como uma consciência histórica nessa época. Não há como pensar uma cena com o Cristo e a Madona com o pano de fundo de um castelo do século XII ou XIII d.C. Ao mesmo tempo, para além da falta de consciência histórica, há também a questão da ausência completa de ligação entre os planos. Cada plano parece ter uma realidade própria que só artificialmente se encontra articulada com a realidade dos outros planos. Essa situação aqui, porém, é radicalmente transformada. Há, na cena da igreja, toda uma ligação entre os elementos da paisagem: a vegetação, as rochas, a igreja gótica, as vestimentas daqueles que passam na comitiva, o mar, o rochedo, a casa de madeira à frente da igreja, o porto na ponta direita, a fortificação ao fundo, a luminosidade do céu, as nuvens etc. Tudo isso aliado ao equilíbrio: o equilíbrio alcançado no quadro também precisa ser considerado em seus caracteres peculiares. Não se trata agora de um equilíbrio matemático, estabelecido, por exemplo, por uma espécie de divisão do campo pictórico em duas partes exatamente iguais e por uma equação entre os volumes que se encontram embaixo e em cima em cada uma das duas partes da tela. Muito ao contrário, o equilíbrio se dá agora muito mais a partir da integração entre os elementos, a partir da capacidade de o centro vital

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do quadro não permitir o desgarramento de nenhum de seus pontos. É claro que alguém poderia ser tomado pela impressão ingênua de que o quadro é assim exatamente porque o artista copia fidedignamente a cena. Não é preciso seguir a miríade de exemplos fornecidos por Ernst Gombrich, por exemplo, em seu livro Arte e ilusão,5 um livro que trata exaustivamente de quadros realistas e mostra justamente o quanto as telas ressignificam invariavelmente as paisagens, aproximando, afastando, inserindo elementos que não se encontram na paisagem pintada etc., para se dar conta de que a nossa experiência perceptiva precisa ser completamente falseada para que possamos pensar algo assim como um espelhamento fotográfico – no pior sentido do termo – da realidade efetiva. Uma mera reflexão sobre os encurtamentos necessários provocados pelos posicionamentos perspectivísticos e o acompanhamento dos sombreamentos inexoráveis daí decorrentes já é suficiente para tanto. Não é, portanto, o fato de a paisagem trazer consigo efetivamente uma unidade que torna possível a experiência una do espaço, mas é antes o caráter projetivo do espaço subjetivamente estruturado que permite a constituição dessa unidade. Como o espaço se revela agora como campo das experiências propriamente ditas da razão, não há qualquer autonomia aqui do espaço enquanto substância, e, com isso, ele vem à tona desde o princípio em sua homogeneidade enquanto campo representativo e objetual. Temos, portanto, a unidade da imagem fundada no esquema racional que garante a projeção do campo de objetos e o posicionamento correlato desses objetos no campo. O ponto aqui, porém, é que justamente no momento em que o mundo exterior (enquanto lugar da experiência possível de objetos e enquanto projeção da subjetividade) alcança a sua máxima pujança e perfeição, em que se superam todos os entraves para a articulação plena do que se mostra, fica mais evidente a impossibilidade de a razão dar conta do que as coisas propriamente são e da posição que elas por si mesmas possuem. No ápice da filosofia da representação, revelam-se inexoravelmente as inconsistências da imagem representacional.

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A crise da representação e a estruturação afetiva do espaço: a gênese do espaço pictórico como espaço vital e o lugar da deformação na pintura moderna A filosofia da representação chega a seu ápice no interior do idealismo absoluto, enquanto desdobramento radical e decisivo do kantismo. Esse ápice aponta imediatamente para a supressão de todo e qualquer resquício da possibilidade de se falar das coisas tal como elas são, para além do modo mesmo como elas são subjetivamente posicionadas. Neste sentido, a equação hegeliana entre formas de pensamento e determinação do ser dos objetos implica justamente essa supressão. Não há aqui qualquer determinação da realidade que não remonte já necessariamente a uma forma de pensamento, uma vez que as coisas não possuem nenhuma determinação em si e que todas as suas determinações nascem essencialmente da vida do espírito. O problema do idealismo absoluto, contudo, é justamente o fato de que, no momento em que se dissolve todo e qualquer critério objetivo capaz de balizar o próprio movimento do conhecimento, desaparece também qualquer possibilidade de escapar da suspeita sempre uma vez mais presente de que tudo pode não passar de uma ilusão subjetiva. Uma ilusão coerente, lógica, coesa, isenta de contradições, bem argumentada, bem sustentada, mas ainda assim uma ilusão. A essa impossibilidade de sustentação da estruturação subjetiva do espaço corresponde, então, uma radical transformação da experiência do espaço que acaba por seguir duas vias completamente diferentes. Por um lado, o espaço reaparece no final do século XIX como mapeável, ordenável, quantificável, territorializado empiricamente por uma ciência de fatos positivamente estabelecida. O espaço pensado agora como empírico passa a se mostrar como investigável segundo os princípios, por exemplo, de circulação das pessoas e de escoamento de produtos ou de urbanização em sintonia com as necessidades oriundas do aumento vertiginoso da população no interior das grandes cidades. A esse espaço, compreendido como um espaço dado e disponível para as manipulações técnicas, se contrapõe, por outro lado, o espaço em sua determinação afetiva mais própria. Em certo sentido, é possível dizer que a grande revolução na noção de espaço se dá justamente a partir da descoberta da sua abertura afetiva, algo que, até onde posso avaliar, ganha corpo pela primeira vez em um quadro revolucionário de Edgar Degas, chamado Melancolia (Figura 3). Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.10 n. 30 | p. 125-153 | jan.-abr. 2016

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FIGURA 3 – Melancolia

Fonte: Degas (1874)

Comecemos com uma pergunta em relação ao que dissemos acima: o que há de propriamente revolucionário no quadro de Degas? Em que medida ganha voz no quadro todo um novo modo de lidar com o espaço? A resposta a essa pergunta precisa ser dada a partir de uma consideração direta do que temos diante de nós. É verdade que a melancolia foi pintada muitas vezes na história da pintura ocidental. Neste sentido, não é por uma inovação temática que o quadro se mostra como um divisor de águas na história da pintura em geral e na compreensão do espaço em particular. Todavia, se é certo afirmar que a melancolia já tinha sido tema das artes plásticas em geral (pensemos na célebre escultura Lacoonte, de 40 d.C., atribuída por Plínio a Agesandro, Atenodoro e Polidoro, três escultores de Rhodes), não há como desconsiderar o fato de que Degas empreende aqui uma transformação radical da relação entre a melancolia e o espaço existencial do melancólico. Não temos mais no quadro simplesmente a presença do melancólico, com feições adequadas ao seu estado de espírito, em meio a um mundo que permanece o mesmo, independentemente de sua atmosfera existencial. Ao contrário, o que vemos no

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quadro é uma articulação radical entre a estruturação afetiva do espaço e a constituição da atmosfera da melancolia. O acontecimento da melancolia não deixa intacto o espaço, de tal modo que a pessoa melancólica aparece com um rosto desfigurado pela dor, mas o seu entorno permanece o mesmo. No momento mesmo em que a melancolia se abate sobre a pessoa, o seu espaço existencial se fecha e as relações espaciais como um todo se reestruturam. Degas fecha radicalmente o espaço do cômodo, de tal modo que a mulher aparece toda encolhida no divã, que toma praticamente todo o quadro. Isso não acontece porque Degas estaria tentando simplesmente nos confrontar com a mulher melancólica, ou porque a melancolia aqui seria uma espécie de filtro subjetivo. O quadro não vê o espaço a partir da perspectiva de algo assim como um sujeito melancólico, mas revela como o espaço se constitui a partir do acontecimento da melancolia. Bem, mas o que acontece aí afinal? O espaço se abre em se fechando. A melancolia encurta o espaço existencial, dificulta a expansão, amplia as distâncias, torna-nos mais refratários em relação aos outros, às coisas no mundo, inclusive a nós mesmos. Tudo se dá como se nada se oferecesse a nós, e é exatamente isso o que acontece. Nesse sentido, a mulher não cruza os braços junto ao corpo por uma resolução pessoal, mas antes pelo que poderíamos chamar de intencionalidade da abertura afetiva, exatamente isso que Martin Heidegger procurou pela primeira vez descrever por meio do caráter central desempenhado pelas tonalidades afetivas ao se falar em facticidade, em mundo fático e nas possibilidades propriamente ditas de nosso espaço existencial. Exatamente esse modo de apresentar a cena, porém, abre o espaço para uma transformação radical da própria suposição de que todo espaço estaria fundado em uma determinação racional de nossas representações subjetivas de objetos, assim como ele envolve uma mudança da própria pretensão de que as coisas se submeteriam radicalmente aos moldes estabelecidos pelo entendimento. Não há o espaço previamente dado e constituído fora de nós, do mesmo modo que não há uma estruturação subjetiva do espaço levada a termo a partir de categorias e de modos de construção de juízos posicionadores dos objetos. O espaço não é nem algo a priori presente fora de nós, nem um construto levado a termo a partir do nosso modo de estruturação do campo da experiência possível. Ao contrário, o espaço se assenta

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originariamente sobre a dinâmica de sua espacialização a partir do caráter atmosférico6 do existir. Essa descoberta, presente no quadro de Degas, constitui de certa forma a essência do expressionismo alemão. Diferentemente do impressionismo, que procura antes de tudo encontrar uma experiência da realidade anterior à formação e à homogeneização da imagem em nossa retina e que se volta consequentemente para os campos de intensidades pictóricas (as muitas granulações que se evidenciaram como presentes antes da composição final da imagem em meio às revelações das primeiras fotografias), o expressionismo é determinado muito mais pela clareza quanto ao fato de que o espaço pictórico precisa necessariamente ser configurado a partir da relação essencial entre atmosferas sentimentais e o modo de determinação do espaço. Neste sentido, o expressionismo dá voz, antes de tudo, a uma experiência que todos nós temos em nossos modos de ser no espaço. Não há, por exemplo, como pensar a metragem e a planta de uma casa como se o espaço aí em jogo jamais sofresse qualquer alteração independentemente das atmosferas que o atravessam. Todos nós sabemos que uma relação amorosa azedada torna os espaços mais gigantescos opressivos, assim como uma relação harmoniosa e apaixonada é capaz de transformar cubículos em áreas de uma imensidão impalpável. Ao mesmo tempo, não são apenas os espaços que se encurtam ou se expandem de acordo com as tonalidades afetivas, pois as possibilidades em geral de nosso existir também dependem dessas tonalidades. O que nós fazemos sem qualquer dificuldade quando a alegria permeia o campo existencial, jamais teríamos como fazer quando o tédio se abate profundamente sobre nós. Desse modo, é possível dizer que a principal contribuição do expressionismo para a nova determinação do espaço passa justamente pela experiência de que o espaço depende fundamentalmente do modo como acontece a dinâmica de espacialização do campo existencial. Essa contribuição, por sua vez, possui uma relação decisiva com o exagero e com a desfiguração que o acompanha. Consideremos uma obra central de um dos ícones do expressionismo alemão, o artista plástico Emil Nolde (Figura 4).

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FIGURA 4 – Pessoas nervosas

Fonte: Nolde (1932)

O quadro intitulado Pessoas nervosas traz consigo uma série de elementos paradigmáticos para a compreensão do que expusemos acima. Em primeiro lugar, temos aqui uma vez mais a concentração da cena nas três figuras em jogo. Não há como sair simplesmente da cena de escorço e avançar perspectivisticamente em direção ao fundo infinito, mas o espaço pictórico se fecha completamente na cena, de tal modo que somos obrigados a reter o olhar no plano de superfície. Acontece aqui o que se costumou chamar de “isolamento da figura”. Porém, à medida que nos restringimos à superfície, o que vemos é tudo, menos superficial. Todo o tratamento das figuras aponta para a quebra da mera representação fotográfica/naturalista dos personagens. A mulher, abraçada por trás pelo homem que se encontra entre ela e o menino, porta em seu rosto uma máscara animalesca. Temos a presença de algo assim como a cabeça de uma leoa. Ao mesmo tempo, a luminosidade que incide sobre a máscara não possui um paralelismo direto com a relação entre claro e escuro, mas apresenta antes duas dimensões, a princípio díspares. Enquanto

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o lado direito é marcado pela presença do vermelho sanguíneo, o que acirra sobremaneira a animalidade da imagem, o lado esquerdo, mais afilado, é de um verde musgo responsável antes por criar uma atmosfera de enigmaticidade quase diabólica. Sua boca atrai imediatamente a nossa atenção. Semiaberta, ela nos faz ver dois dentes espaçados em meio a lábios extremamente carnudos e vermelhos. O cabelo por detrás da máscara nos leva a duvidar de que se trate realmente de cabelos e a pensar que talvez sejam parte de uma barba, o que acentua sobremaneira uma vez mais a presença do grotesco, do primitivo. E a parte de cima da máscara nos leva em princípio a imaginar um coque, mas certamente tem uma relação com as orelhas do felino. Não há, portanto, qualquer dúvida: a máscara não diz respeito a uma cena de carnaval ou de um baile à fantasia, mas visa a acirrar exatamente o nervosismo da cena. Esse acirramento prossegue no abraço nada afetuoso da figura que se encontra no meio, entre a mulher e o menino, com um lenço que revela o fato de que ele está prestes a dopá-la. Por fim, o exagero marca completamente o menino, com sua boca escancarada e seus dentes irregulares, com seu rosto de um tom rosa que dialoga com o rosa da parte esquerda da máscara, com olhos esbugalhados e um cabelo loiro que contrasta com a blusa azul. Tudo na cena é exagerado e excessivo. E aqui voltamos ao problema da abertura atmosférica do espaço. As tonalidades afetivas não são responsáveis apenas por um recolhimento ou uma expansão no e do espaço, de tal modo que as figuras permaneceriam as mesmas apesar de tal recolhimento e de tal expansão. Ao contrário, elas também repercutem sobre as próprias figuras, na medida em que promovem um movimento necessariamente desfigurador. Em meio a uma atmosfera como a melancolia, o rosto se contrai em uma expressão de dor que não mantém os traços em sua intensidade mediana. Em meio a uma atmosfera nervosa de pavor, tudo se exagera e ganha uma latência própria. O que se dá, portanto, é sempre muito mais do que reestruturação do espaço: certas tonalidades trazem necessariamente consigo o exagero e a deformação. Tudo isso nos leva, então, à última parte de nosso texto.

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Abstração e desfiguração: a conquista da verdade propriamente dita das imagens ou a arte para além da imitação É possível olhar particularmente para o pós-impressionismo e para o expressionismo, de tal modo a considerar suas contribuições unicamente a partir de seus traços estilísticos e de seus projetos estéticos singulares. Ao fazermos isso, contudo, já perdemos de vista o campo de sentido que torna possível algo como o que descrevemos acima. Para que o espaço venha à tona em seu caráter afetivo originário, não é suficiente apenas um modo peculiar de ver as coisas. Antes de tudo é necessária uma mudança radical no próprio modo de determinação da essência do espaço. Essa mudança, por sua vez, só acontece a partir da constituição de um novo modo de relação com os entes espaciais, a partir de outro modo de ser interpelado originariamente por eles. Aqui, por sua vez, as artes plásticas são paradigmáticas. O que ocorre no interior do espaço pictórico não é apenas uma alteração no modo de ver as coisas, ou seja, o surgimento de uma nova perspectiva de exposição dos temas da pintura, da escultura e mesmo da arquitetura, mas antes a abertura do campo de realização de um novo modo que propicie a presença dos entes. Neste sentido, as artes plásticas não são paradigmáticas por exemplificarem de maneira mais fidedigna e audível a medida histórica do tempo, mas porque elas se determinam inversamente como o campo de um novo modo de vir à presença dos entes, um campo que possui uma relação de fundo com a historicidade de nosso tempo e de nosso espaço existencial. Ora, mas como é, afinal, que o ente vem agora ao nosso encontro no interior do campo pictórico? O que isso tem em comum com as noções de abstração e desfiguração? Como articular essas noções com a historicidade de nosso tempo? Essas são perguntas que apontam para o cerne do problema da representação, tal como nós estivemos apresentando desde o início do texto. O mundo moderno parte de um pressuposto hermenêutico estrutural. A partir da experiência da perda de consistência do fundamento do mundo medieval, da impossibilidade de se continuar pressupondo simplesmente a presença absoluta de Deus e da verdade revelada nas escrituras como a razão última de tudo o que é, o homem se viu diante da necessidade de buscar em si o caminho único da redenção e de se relacionar com os

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entes sempre a partir da intermediação de sua subjetividade e das representações subjetivas. Todas as relações com os entes se tornaram, com isso, relações mediadas pelas imagens que, por sua vez, passaram a ser pensadas como determinadas subjetivamente. A crise da representação, isto é, a impossibilidade de continuar se fiando no sujeito como fundamento de todo e qualquer conhecimento certo e seguro sobre os entes, libertou não apenas os entes de sua conversão em imagens, mas também liberou o próprio campo da imagem para que ele se tornasse o campo de gênese do próprio encontro do homem com os entes. A supressão da intermediação pela imagem não envolve a princípio uma recaída em uma espécie de realismo ingênuo, o que em última instância poderia pressupor algo como uma ontologia baseada em algum fundamento imanente, mas implica muito mais uma restrição ao modo de experiência dos entes, uma concentração da atenção no que se dá para nós em nossas experiências propriamente ditas. Dito de outro modo, o que está em questão agora é justamente acompanhar o modo de gênese dos fenômenos, a maneira como o ente sai do não-ser ao ser, para seguir a definição platônica presente em O sofista (Platão, 2012). A pergunta, com isso, é: como vem ao ser agora o ente que ganha a presença e se mostra? Essa pergunta possui uma relação direta com as noções de abstração e desfiguração. Em verdade, tanto a partir da compreensão do espaço como marcado por relações ideais no plano da substância extensa (Descartes) quanto a partir da determinação do espaço como forma pura da sensibilidade transcendental (Kant), os objetos se caracterizam justamente pelo movimento inicial de formatação da objetividade de acordo com critérios racionais previamente dados na experiência subjetiva. Isso implica dizer que, no interior do posicionamento subjetivo dos objetos, o que se mostra sempre vem à tona a partir de uma garantia prévia de que o que quer que apareça nunca aparecerá senão no interior dos moldes das imagens subjetivas. Sem que possamos nos delongar agora nessa afirmação, a consequência disso é a seguinte: o mundo dos objetos passa a se mostrar imediatamente projetado como imagem do sujeito. Uma imagem que é ao mesmo tempo produzida em moldes racionais. Esse movimento inicial interfere, então, nas duas pontas do processo: tanto o sujeito se assegura por meio do posicionamento dos objetos de sua essência a priori enquanto sujeito, quanto os objetos se veem circunscritos por meio de

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sua aparição ao quadro categorial da subjetividade posicionadora. Exatamente essas duas pontas, porém, implodem no momento em que vem à tona a estruturação afetivamente afinada dos espaços existenciais. Não há mais agora nenhum espaço previamente dado e constituído, que poderia ser pensado em suas determinações aprioristicamente ideais, mas todo espaço depende do modo como a dinâmica de espacialização e de temporalização da existência acontece. O que temos com isso, portanto, é uma saída da noção de espaço idealmente constituída pela subjetividade, para a compreensão do espaço como atmosfericamente determinado pelo modo de seu acontecimento. Essa compreensão, por sua vez, tem uma relação direta com dois elementos absolutamente decisivos para os interesses fundamentais do presente texto: o caráter desfigurador de certas tonalidades afetivas e o acompanhamento das transformações pelas quais passam as nossas percepções em meio a tais desfigurações. Como veremos agora, isso possui um lugar privilegiado na ideia mesma de arte abstrata. Não é possível imaginar que uma situação marcada pela tonalidade afetiva do desespero, do tédio, da melancolia, da ira propiciaria a mesma abertura do espaço que tonalidades afetivas medianas, como a aparente ausência de atmosferas que acompanha o cotidiano ou como a tonalidade que acompanha a distensão em meio a situações de um lazer pequeno burguês. Não há como imaginar aqui que duas pessoas marcadas por tonalidades afetivas tão díspares como a fúria e a lassidão se vissem jogados em campos existenciais constituídos da mesma forma. Não! A fúria e a ira trazem consigo a abertura de um espaço existencial marcado pelo turvamento da visão, pela desatenção geral em relação a tudo o que meramente se faz presente em uma circunstância e pela mobilidade corporal brusca em uma única direção. O tédio, a melancolia e o enfado, por sua vez, trazem consigo uma inação e uma dificuldade extrema de movimentação do corpo, de tal modo que a visão se fecha em si mesma e tudo cai em uma indiferença radical. O desespero, por fim, desestrutura o campo e faz com que nos vejamos em um mundo sem esteios e sem bases, de tal modo que, nessa situação, não sabemos mais para onde ir e o que fazer. Tudo isso, então, converge para um ponto comum: há atmosferas que não permitem que o espaço existencial se mantenha em sua dimensão cotidiana, mas que produzem literalmente uma desestruturação do espaço.

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O turvamento da visão na fúria e na ira implica desfiguração e exagero, na mesma medida em que o desespero caminha lado a lado com a desconstrução do campo existencial. Assim, o que tem lugar a partir do expressionismo envolve necessariamente o acontecimento da desfiguração. Não se tem mais aqui, como no caso do impressionismo, uma fragmentação da imagem anterior à formação da figura em nossa retina, mas, para além dessa fragmentação, um esfacelamento afetivo da imagem, e, mais do que da imagem, do próprio espaço correlato do existir. Essa experiência, então, libera a pintura para a busca de uma autonomia em relação a um modelo de racionalidade capaz de corrigir e formatar o campo pictórico a partir de categorias estabelecidas de maneira pura e a priori. É comum escutarmos que a pintura contemporânea é caracterizada por uma liberdade radical em relação a uma série de elementos que cerceavam até então as possibilidades criadoras em geral. Liberdade em relação à igreja e, antes de tudo, em relação à iconoclastia cristã; liberdade em relação ao mecenas e à aristocracia, fonte fundamental de encomendas de obras de arte até a primeira metade do século XIX; liberdade em relação à literatura e à tendência de pensar a pintura como se ela tivesse que se submeter aos temas das narrativas míticas e literárias tradicionais; liberdade em relação aos cânones vigentes na sua determinação não apenas do belo, mas também dos materiais nobres a serem utilizados pelos pintores (tinta a óleo), do que merece ser pintado e do que constitui um tema da pintura, assim como das técnicas a serem utilizadas pelos pintores; liberdade, por fim, em relação ao sentido e à presença da figura na tela. O espaço pictórico está na arte contemporânea livre de todos esses cerceamentos, de tal modo que é possível pensar uma obra voltada para o feio, para o nu desprovido de toda e qualquer sublimação, para a dissolução do tema central do quadro, para o isolamento da figura quanto ao pertencimento inicial a um ambiente, a uma época, a um espaço historicamente definido, para a massa, para a associação livre, ilógica, absurda, descomunal, inaudita etc. Tal liberdade, por sua vez, não nasce de uma predileção estética do tempo, nem tampouco a partir de uma decisão particular de certo conjunto de pintores. Ela provém, ao contrário, da experiência da abertura originária do campo pictórico, uma abertura que não obedece a princípio a nenhuma lei extrínseca, mas que depende fundamentalmente do modo mesmo de seu acontecimento. É isso,

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então, que podemos ver agora a partir da análise de um dos pintores com certeza mais centrais da arte moderna: Pablo Picasso. O que nos interessa em Picasso não é uma obra ou uma fase em específico. Não se trata aqui de apresentar nossas predileções ou inclinações estéticas em geral. O que está em questão para nós é antes de tudo acompanhar de maneira bastante sucinta um elemento chave da pintura de Picasso, justamente o elemento que dá título ao presente texto: a crise da representação. Esse elemento pode ser alcançado da melhor maneira possível se concentrarmos a nossa atenção em um ponto central do movimento de fragmentação que tem lugar no interior do cubismo analítico e sintético. Tomemos, assim, dois momentos dessas duas dimensões do projeto cubista de Pablo Picasso (Figuras 5 e 6).

FIGURA 5 – Moça com bandolim

Fonte: Picasso (1910)

FIGURA 6 – Casal dançando

Fonte: Picasso (1915)

Temos aqui duas realizações bastante significativas do período cubista de Picasso, uma do cubismo analítico, outra do cubismo sintético. De qualquer modo, para além de qualquer consideração mais detida do que constitui propriamente esses dois momentos do cubismo, há algo nos

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dois quadros que nos chama imediatamente a atenção: o quanto acabamos realmente reconhecendo uma moça com um bandolim e um casal dançando, por mais que as figuras nos dois quadros estejam completamente marcadas por um abandono imediato de toda e qualquer tentativa de reprodução fidedigna de uma cena de uma moça segurando e tocando um bandolim e de duas pessoas dançando abraçadas. Não há, se olharmos detidamente para os quadros, nada que legitime às últimas consequências falar de uma moça, de um bandolim e de dançarinos. No caso da moça, o esfacelamento da imagem faz com que ela apareça como um boneco de madeira composto por pequenos cubos de dimensões e formatos diversos. Não há boca, não há nariz e as mãos, por exemplo, são grosseiramente traçadas. O bandolim, por sua vez, parece estar com o tampo descolado da caixa de ressonância, de tal modo que não há como imaginar alguém tocando nele uma música. Bem, mas isso que já aponta para o esfacelamento da imagem em uma série de pontos de vista, depois reunidos em uma única cena, e para a retradução de todas as relações imagéticas a partir de uma linguagem pictórica estabelecida unicamente com retas e planos, ganha uma intensificação ainda maior na segunda imagem. Se no primeiro caso ainda temos como pensar a presença da figura de uma moça, por mais que essa figura não se constitua de acordo com critérios naturais de reprodução, o segundo quadro elimina toda a semelhança com corpos humanos. Não há como recompor aqui a figura, abstraindo-se dos elementos faltantes, mas todo o exercício aponta antes para uma junção de formas, que insinua exatamente a presença do casal dançando. A colagem é feita a partir de duas formas alongadas em um contato entrecruzado. Assim, por mais que não se possa pensar realmente em um casal e muito menos em dança, estranhamente não há como negar a presença de uma conjugação rítmica das figuras. O espaço pictórico, por outro lado, também possui nessa segunda imagem um interesse expresso para nós. Temos a porta, a abertura de um círculo nada arredondado e a constituição de uma margem no mesmo tom da porta. Por mais que seja possível ver aqui formas específicas, os princípios que regem o espaço desse quadro já são os princípios da arte abstrata. Eis aqui, então, uma questão central. Kandinski escreveu certa vez que tudo começava com um ponto. O que ele tinha em vista era que, ao inserir um ponto em um campo vazio, se iniciam diversas relações entre o

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campo e o ponto. O mesmo acontece quando, ao lado do ponto, se introduz uma reta. Não é apenas a reta e o ponto que entram em relação, mas todo o espaço pictórico com o ponto e a reta. E isso tem uma razão de ser. Em um campo determinado pelas relações, todo e qualquer novo elemento relacional acaba sempre por reestruturar as relações e por produzir novas zonas de tensão e interação. E é isso que passa a ser decisivo agora. É claro que alguém pode continuar olhando para os quadros à procura de um reconhecimento da identidade das figuras que aparentemente estão em jogo neles. Fazer isso, porém, significa irremediavelmente perder o que efetivamente importa agora. Se o campo pictórico se libertou completamente dos critérios naturalistas de imitação e reprodução, aquele que se encontra diante da obra de arte precisa aprender a ver a obra para além de tal procura. É preciso entrar no campo pictórico e acompanhar as leis que determinam agora o seu acontecimento, quer se trate de arte abstrata ou de arte figurativa. Essas leis são as leis do próprio diálogo entre formas, cores, volumes, luminosidades etc. Ora, mas esse acompanhamento diz respeito a algo assim como um sentimento estético de um sujeito chamado Pablo Picasso? O que procuramos mostrar até aqui foi principalmente que a constituição do campo pictórico obedece sempre a certos pressupostos relativos à própria estruturação epocal do espaço. Neste sentido, abstração e desfiguração não são traços estilísticos que apontariam para predileções de um tempo ou de um autor marcados antes de tudo pela degeneração e pela perda do clássico. Ao contrário, elas são consequências diretas da descoberta do espaço existencial e do caráter atmosférico que atravessa originariamente o modo de abertura desse espaço. É a existência mesma que, ao se descobrir ligada originariamente ao modo do acontecimento afetivo do espaço, faz com que se suprima a pretensão de que seria possível e mesmo desejável para a pintura reproduzir mimeticamente, de maneira naturalista, a realidade que só se mantém em seu caráter “fotográfico” a partir da experiência cotidiana de atmosferas medianas. Assim, a abstração e o exagero se revelam não como traços da sensibilidade estética de nossa época, nem como escolhas pessoais de um grupo de pintores, mas antes como uma necessidade oriunda da própria verdade do campo existencial. E é isso que podemos ouvir em uma frase do próprio Picasso, durante entrevista concedida por ele em 1960: “Outrora,

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o quadro era uma soma de adições. Comigo, um quadro é uma soma de destruições” (ZERVOS, 1978). O que precisamos acrescentar, porém, é que a toda destruição corresponde um rearranjo, uma recomposição, uma redefinição dos termos e das relações entre eles. É com isso, por fim, que precisam se haver hoje não apenas a pintura, mas cada existente enquanto tal. Abstração e desfiguração dão voz, em suma, à essência de nosso existir histórico.

Notas 1 Cf. HEIDEGGER (2009). 2 Uso aqui especificamente a expressão “Renascimento no século XVI” porque há algum tempo na história da arte não se fala mais de Renascimento, mas de Renascimentos. Como é consenso hoje, é possível falar de Renascimento pelo menos desde o século XII. Cf. PANAWSKI (1981). 3 Para Aristóteles, explicar, por exemplo, porque a pedra perde velocidade quando nós a atiramos para o alto e porque ela recupera a velocidade ao descer, tem uma relação direta com a materialidade da pedra que é a terra. Ela perderia, segundo ele, velocidade, porque ela precisaria vencer uma resistência cada vez maior quanto mais ela se afasta de seu elemento. Por outro lado, quando cai, como ela se aproxima de seu elemento, a resistência é cada vez menor e a força de atração cada vez maior. Cf. ARISTÓTELES (1987). 4 Compreendo aqui o neoclássico como um movimento de resistência e de contestação do barroco e do rococó que se inicia na segunda metade do século XVIII e avança no interior do século XIX e que se caracteriza fundamentalmente por um ideal de classicidade e racionalidade marcados por uma idealização da arte clássica que, com o tempo, se mostrou como questionável. Cf. HONOUR (1991). 5 Originalmente de 1956, esse é um livro chave de um dos ícones da história

da arte contemporânea. Gombrich é autor de uma grande quantidade de livros e artigos sobre arte em geral, e, em especial, autor da mais famosa história da arte que temos hoje. 6 O termo ‘atmosférico’ é pensado aqui, em sintonia com a compreensão heideggeriana das famosas tonalidades afetivas, não em termos físicos, mas em termos de nossas disposições afetivas. O que pretendemos acentuar com tal caráter, portanto, é o quanto nossa existência se encontra marcada por uma afinação afetiva do espaço, que se assemelha em muito ao nosso discurso cotidiano, quando dizemos: a atmosfera no trabalho estava ruim ou a atmosfera da reunião foi muito ruim.

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Referências ARISTÓTELES. Física B. Frankfurt: Meiner, 1987. CASTELFRANCO, G. G. de. O julgamento de Salomão. 1500-1501. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/The_Judgement_of_Solomon_%28Giorgione%29#/ media/File:Giorgione,_giudizio_di_salomone.jpg>. Acesso em: 21 set. 2015. DEGAS, E. Melancolia. 1874. Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/7/7a/Edgar_Degas_-_Melancholy_-_Google_Art_Project.jpg>. Acesso em: 23 set. 2015 GOMBRICH, E. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HEIDEGGER, M. Nietzsche II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. HONOUR, H. Neoclassicism: style and civilization. Nova York: Penguin Books, 1991. KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Kalouste Gulbenkian, 1988. NOLDE, E. Pessoas nervosas. 1932. Disponível em: <http://www.wikiart.org/en/ emil-nolde/excited-people?utm_source=returned&utm_medium=referral&utm_ campaign=referral>. Acesso em: 25 set. 2015. PANOWSKI, E. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Rio de Janeiro: Presença, 1981. PICASSO, P. Casal dançando. 1915. Disponível em: <https://upload.wikimedia. org/wikipedia/en/1/1c/Pablo_Picasso,_1910,_Girl_with_a_Mandolin_%28Fanny_ Tellier%29,_oil_on_canvas,_100.3_x_73.6_cm,_Museum_of_Modern_Art_New_York. jpg>. Acesso em: 01 out. 2015. PICASSO, P. Moça com bandolim. 1910. Disponível em: <http://www.wikiart. org/en/pablo-picasso/couple-of-dancers-1915?utm_source=returned&utm_ medium=referral&utm_campaign=referral>. Acesso em: 05 out. 2015. SCHINCKEL. K. F. Igreja gótica sobre rocha junto ao mar. 1815. Disponível em: <https:// upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c4/Karl_Friedrich_Schinkel_-_ Gotische_Kirche_auf_einem_Felsen_am_Meer_-_Google_Art_Project.jpg>. Acesso em: 21 set. 2015. SLOTERDIJK, P. Tu precisas mudar a tua vida. São Paulo: Estação Liberdade, 2016. ZERVOS, C. Catalogue raisonné des œuvres de Pablo Picasso. Paris: Cahiers d’art, 1978.

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EDIÇÃO 25 O Estado Novo e o debate sobre o populismo no Brasil Angela de Castro Gomes

Mundo desencantado e mundo desengajado Luis Carlos Fridman

Henrique Galvão entre os descompassos no império lusitano Rita Chaves

O marketing político no Brasil: da consolidação ao desafio das redes sociais Sérgio Ricardo Rodrigues Castilho

Exílio e linguagem: a escrita de Samuel Rawet Vera Lins

EDIÇÃO 26 DOSSIÊ Sustentabilidade Marta de Azevedo Irving (Organização)

Sustentabilidade e O futuro que não queremos: polissemias, controvérsias e a construção de sociedades sustentáveis Marta de Azevedo Irving

Sustentabilidade e educação ambiental: controvérsias e caminhos do caso brasileiro Carlos Frederico B. Loureiro

“Sustentabilidade líquida”: o consumo da natureza e a dimensão do capitalismo rizomático nos platôs da sociedade de controle Fred Tavares

Sustentabilidade e justiça social Maryane Vieira Saisse

Comunicação e sustentabilidade: reflexões sobre o papel da mídia na construção de novas práticas de cidadania Elizabeth Oliveira

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EDIÇÃO 27 Evolução do trabalho infantil no Brasil Ana Lúcia Kassouf

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K., relato de uma busca: autoficção e efeitos políticos Anna Faedrich, Renato Lima e Jacques Fux

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Contribuições da experiência internacional ao gerenciamento das rendas do petróleo do pré-sal brasileiro Beni Trojbicz

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Governo representativo e democratização: revendo o debate Fernando Limongi 93

Fome, pobreza e desenvolvimento: um convite à leitura de Josué de Castro Rosana Magalhães

EDIÇÃO 28 DOSSIÊ Florestan: 20 anos depois Gabriel Cohn (Organização)

A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes Gabriel Cohn

Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar Elide Rugai Bastos

Modos de explicar o Brasil: o estruturalismo sociológico de Florestan Fernandes e o construtivismo institucional de Mangabeira Unger Carlos Sávio Teixeira

Sobre cinema pago no contexto cultural pós-moderno. Três teses sobre arte, estética e sociedade Ronaldo Rosas Reis

A independência do poder judiciário em perspectiva comparada: Brasil e Argentina Luciléia Aparecida Colombo

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EDIÇÃO 29 Abrigamento de mulheres em situação de violência de gênero: um estudo comparativo Salvador-Madri Cândida Ribeiro Santos

Os Sertões, ainda e além Carolina Correia dos Santos

Uma análise sobre a economia étnica no Brasil Cláudia Lima Ayer de Noronha e Elaine Meire Vilela

Imprensa e esfera pública: retomando o debate Lippmann e Dewey Luiz Augusto Campos

Convenções de qualidade e a inserção da agricultura familiar na cadeia produtiva do leite na região de Imperatriz/MA Marcelo Sampaio Carneiro

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Política editorial A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Ser­viço Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão e o desenvolvimento da produção acadêmica e científica nas áreas das ciências humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a agenda pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac. A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está condicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à adequação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz respeito à qualidade das contribuições, garantido o duplo anonimato no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo por parte da Editoria são previamente acordadas com os autores. São vedados acréscimos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição.

Normas editoriais e de apresentação de artigos O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail pelos(s) autor(es), que devem se responsabilizar pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve indicar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho, para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica. A mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em caso de mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos. Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação acadêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome completo, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre 5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar no mesmo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor: nome, formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho, pesquisa, ensino e últimas publicações. Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail: sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD ao endereço a seguir: 160

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DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC Gerência de Estudos e Pesquisas Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004 Rio de Janeiro/RJ O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 caracteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha. A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem: a) Título (e subtítulo se houver). b) Nome(s) do(s) autor(es). c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 10, não repetido no corpo do texto). d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto). e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 10). f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto). g) Corpo do texto. h) Nota(s) explicativa(s). i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em uma única ordem alfabética). j) Glossário (opcional). l) Apêndice(s) (opcional). m) Anexo(s) (opcional). Anexos, tabelas, gráficos, fotos e desenhos, com suas respectivas legendas, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível, deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF ou JPEG). Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes à apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apresentação de citações em documentos utilizando sistema autor-data (NBR 10520) e numeração progressiva das seções de um documento (NBR 6024).

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Referências (exemplos): Artigos de periódicos DEMO, Pedro. Aprendizagem por problematização. Sinais Sociais, Rio de Janeiro, v. 5, n. 15, p. 112-137, jan. 2011. DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, p. 817-838, set. 2003.

Capítulos de livros CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.

Documentos eletrônicos IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores: 2002. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: < http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/ sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013. SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152582011000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2013. SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina. Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas. org.br/congresso/Trabalhos2011/I-002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

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Livro HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1936.

Trabalho acadêmico VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais (1945/1964): um estudo da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

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Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std e impressa em papel pรณlen 90g, na Rona Editora Ltda.



e suas metamorfoses - Júlia Studart • A autorreação entre arte e vida social - Lucyane De Moraes • A filosofia e seus conteúdos desprezados: filosofia pop em questão - Marcia Tiburi • Abstração e desfiguração: a

FINALIDADE SOCIAL A revista Sinais Sociais tem por objetivo enriquecer a agenda pública brasileira fomentando um diálogo amplo e consistente sobre suas principais questões. Coerentemente com a missão do Sesc de promover o bem-estar, a produção acadêmica é aqui veiculada tendo em vista sua contribuição à transformação social. PLURALIDADE A qualidade de vida é objeto de diversas áreas do conhecimento. Este é o motivo pelo qual a Sinais Sociais recebe a produção de múltiplas especialidades, reunidas sob a perspectiva de reconhecer e valorizar um pensamento crítico capaz de motivar o aprendizado e o desenvolvimento. ALCANCE Uma vez que a difusão do conhecimento exige manter e incorporar canais para garantir o acesso do leitor, esta publicação é distribuída regularmente a bibliotecas, universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais. A cada número lançado é realizado um seminário com a presença dos autores, para transmissão pela internet. Todas as edições são posteriormente disponibilizadas para acesso e leitura via web.

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crise da representação na pintura moderna - Marco Casanova

ISSN 1809-9815

para o mercado nos anos 1990 - Alessandro André Leme • Nuno Ramos

9 771809 981005

Crise e reformas no Brasil: trajetória em prol das reformas orientadas


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