estratégias
legitimação
eixo 4
Educadoris/Mediadoris 20 de outubro de 2020
Mediadores: Jordana Braz e Kelly Santos Relatoria crítica: Amanda Carneiro
autocrítica
¹ Criado em 2016 pelas programadoras Suelen Calonga e Hugo Cabral Carneiro, a mediação
educativa em artes visuais que compõe o projeto Escola e Artes permite que uma mesma equipe seja recontratada a cada novo ciclo de exposições para atendimento de uma mesma diretoria pública de ensino, na zona norte da cidade de São Paulo. Já passaram pelo projeto os estagiários de programação Guilherme Lebarais, Isabella Giacont, Lais Matias e Guilherme Blanco. Em sua formação inicial, contou com a gestão de Marcela Tiboni e atuação das educadoras Marina Xisto e Thaís Sabbadini. Atualmente a equipe é composta por Bruno Makia, Caio Araújo, Jucélia Da Silva, Juliana Biscalquin, Paula Garrefa e Raylander Mártis dos Anjos, com o acompanhamento horizontal de Graziela Kunsch.
² No momento em que escrevo essa relatória crítica, após demissões em diferentes educativos, recebi um
email institucional de um museu da cidade de São Paulo pedindo doação do imposto de renda de pessoas físicas como forma de incentivar o espaço. Notadamente, em negrito, se afirma que o apoio incentiva os 50 mil atendimentos anuais através do programa educativo.
³ As publicações do Drops de Mediação estão no @sescsantana
e podem ser encontradas pela tag #dropsdemediação ou pelo link https://www.instagram.com/explore/tags/dropsdemedia%C3%A7%C3%A3o/
No chão da exposição e além “Métodos possíveis e fazeres educativos: o chão das exposições como território de ocupação e disputas” foi o tema do quarto de seis encontros do projeto Sala Zero de Mediação, promovido pela equipe educativa do programa Escola e Artes, do Sesc Santana1 e ocorrido na terça-feira, dia 20 de outubro de 2020 com a presença de 53 pessoas numa plataforma de reuniões virtuais, e que tinha como palavras-chave estratégia, legitimação e autocrítica. O encontro era um convite para que “firmemos nossos olhares, para que estes novamente se encontrem, se recepcionem e se cumprimentem apesar e para além da interface dessas nossas já tão cotidianas e cansadas telas”, nas palavras da educadora Jucélia da Silva. Em meio a pandemia do coronavírus, uma reconfiguração da vida social se impôs junto a demissões em larga escala de equipes mediadoras em instituições culturais de todo o Brasil. Embora não seja novidade, a crise iluminou uma visão instrumental e protocolar do papel da educação nas mostras de artes2 . Sem público, sua atividade seria supérflua. Talvez por essa razão, o caráter continuado do projeto Escola e Artes, tenha sido afirmado. No chão da exposição a rotatividade é alta e acompanhada da denúncia da impossibilidade de estabelecer vínculos, pesquisa, registro e reflexão, algo que o projeto Sala Zero de Mediação vem colocando em debate nesta série de encontros virtuais que agora se apresenta para um público mais amplo. No entanto, ele resulta de reuniões semanais entre a equipe, em busca de novos métodos e sentidos para um trabalho impactado pela acronia e atopia desse período de quarentena. Também foi acompanhado pelo Drops de Mediação3, uma série de postagens para as mídias sociais do Sesc Santana que, segundo Jucélia da Silva, respondia a “uma necessidade de dialogar com o agora das coisas, mas estando vinculados ao trabalho que já tinha sido desenvolvido”. Assim, o Drops de Mediação reapresenta trabalhos de mostras passadas com focos em tópicos que perpassam a crise atual tais como aglomeração, precarização do trabalho, discriminação racial e de gênero, direito à vida, à terra e à cidade.
Para a equipe educativa, o Sala Zero é um espaço de troca, com protagonismo nas figuras que atuam em mediação e que tem como foco criar um lugar seguro para compartilhar experiências, estabelecer articulações, refletir sobre as condições de trabalho, e trocar idéias e práticas de atuação que fortaleçam redes de organização coletivas. O que parece estar em jogo é como compreender os educativos para além de um programa de exposições, ainda que carregue seus debates. As duas convidadas, Kelly Santos e Jordana Braz, partiram de suas trajetórias profissionais em diferentes instituições de arte e cultura para relatar experiências pessoais, marcadas por suas biografias e memórias e que, ao mesmo tempo, se referem as disputas políticas, materiais e simbólicas envolvidas no trabalho de mediação. Kelly Santos, educadora formada em história e teatro, com 9 anos de experiência no campo, começou com uma pergunta: o que seria uma exposição senão um chão de ocupação e disputas? Para ela, esse é um dado inerente e diz respeito aos vários interesses ali projetados, seja dos artistas ou da instituição, seja do educativo ou do público visitante. Quando esses diferentes grupos — heteregêneos entre si, com forças e posições variadas — são colocados em relação, não parece possível fazer do espaço expositivo um lugar de conciliação acrítica. Se é certo que parte significativa dos trabalhadores e trabalhadoras estão abertas às contradições, será possível afirmar o mesmo sobre as instituições? Um exemplo trazido pela Kelly é bastante elucidativo. Atuando como supervisora numa exposição com 40 educadores estagiários⁴, ela identificou a necessidade de criar uma espécie de zona especial dentro da dinâmica de trabalho. O objetivo era garantir que as percepções da equipe fossem devidamente consideradas como parte do processo de mediação, mais que seguir, era necessário criar um roteiro condizente
⁴ Aqui acho que vale uma nota: não abordamos o que significa um educador estagiário, algo que olhando
retrospectivamente gostaria de ter perguntado. Na minha experiência com mediação nunca trabalhei com educadores estagiários e, posso estar errada, mas me parece que mesmo na condição de estágio, essa equipe desempenha a mesma função e com a mesma responsabilidade de educadores já graduados, algo que mereceria mais nossa atenção e que pode corroborar esse processo paulatino de desvalorização.
às particularidades dos diferentes profissionais ali implicados. Para tanto, Kelly adotou um método que nomeou como “escuta ativa” e que consiste em compreender quem são os educadores, suas áreas de formação, vivências, interesses e experiências plurais. A partir dessa base é que ela desenvolve a aproximação da equipe educativa com o trabalho dos artistas, compreendendo que ambos tem o mesmo peso, nas palavras de Kelly: “em parceria com a instituição abrir espaços para que os educadores atuassem”. Diante de uma exposição em que, antes mesmo do público, a própria equipe educativa tinha questões a serem ampliadas — buscando formas de reconhecerem a si mesma nos trabalhos de arte apresentados—, foram realizadas oficinas com base nas propostas de pessoas da equipe, primeiro internamente e depois com visitantes. Assim, parece que os incômodos e contradições encontraram um lugar de expressão naquela experiência de trabalho, mas seria consenso ou acomodação, ou os dois? A questão torna-se ainda mais intricada quando se considera o cargo da supervisão, algo entre a instituição e educadores. Para Kelly, se por um lado a supervisão “precisa lidar com o espaço do sensível, elaborar com o educador o conhecimento”, é igualmente a função que “administra burocracias que também desgastam”. Ao que ela pergunta: “se a supervisão é essa que acolhe, quem acolhe a supervisão?” A pergunta mobilizou debate no bate-papo escrito da plataforma de encontro virtual, a primeira resposta foi: “acho que muitas vezes quem nos acolhe são os educadores”, seguida de pontos ligados as hierarquias das posições, a troca da função de coordenação por supervisão, e as expectativas geradas tanto de quem está abaixo, quanto de quem está acima. Para alguns, ocupar a supervisão é impeditivo de uma relação de parceria com a equipe educativa, as vezes tão traumática e solitária que mesmo a remuneração maior não parece ser o suficiente. Para outros, era preciso entender como ser o mais horizontal possível dentro de uma estrutura que reforça a verticalização. Segundo o Bruno Makia, a supervisão “exige um corpo político” em que os educadores podem (e devem) ser companheiros de luta. Já de acordo com outra participante, é necessário compreender porque a coordenação
está desaparecendo. Em seu entendimento, mesmo que por ventura as coordenações ocupem lugares mais formais que políticos, elas têm (ou ja tiveram ou deveriam ter) o potencial de negociar uma quantidade mínima de educadores, um salário pertinente ao desempenho da função e outras negociações que tem diminuído muito significativamente nesses processos de substituição de cargos e funções. Para o Caio Araújo, a terceirização transformou supervisores “numa peça solta dentro dessa tabuleiro [institucional]” ao que Raylander Mártis complementa: “a hierarquia é produto do capital (…) é preciso reconhecer que essas assimetrias existem e são impostas antes mesmo da gente chegar”. Mais que negar, é preciso revelar as posições de poder, decisão ou reprodução em suas diversas camadas e operações. Ao final, para a Kelly, a contradição em relação a hierarquia acompanha o trabalho da supervisão e também pode ser usada de forma estratégica, como motor de discussões sobre condições de atuação e, mais ainda, diante desse novo cenário que se desenha, ela se pergunta: “qual a supervisão que a gente vislumbra? Quais são as novas estratégias a serem descobertas juntas?” Para a Jordana Braz, educadora formada em Letras e atuante desde 2014, o chão das exposições remete as condições de trabalho, mas também dizem respeito às interações entre ela, educadora, e o público com o qual já interagiu. Sua fala foi permeada pela pergunta: o que permanece no corpo e na mente após as exposições? Se elas acabam como espaço e instalação, tem vários outros elementos e dimensões que ficam e foi sobre eles que Jordana decidiu se debruçar. Primeiro, ela ressaltou o quanto o corpo do educador ou da educadora é um corpo em constante mediação, “não só dos conteúdos de exposição como das relações humanas que os espaços geram”. Utilizando imagens do cotidiano dos seus diferentes empregos, ela foi retomando suas práticas. Em seu primeiro trabalho em uma exposição, foi educadora estagiária que morava, trabalhava e estudava em regiões bastante distantes entre si da cidade. A despeito da exigência que tais condições lhe impunham, para Jordana, deslumbrada com o novo ofício, era um prazer imenso “porque a cada dia era uma
experiência diferente”. Ali, compreendeu que nas exposições se falava sobre arte, mas que “meu olhar ficou um pouco mais aguçado para as outras relações” que várias experiências “eram mais impactantes que as próprias obras”. Para exemplificar, relatou uma situação em que, no prédio onde atuava (que já era impactante por si só), duas crianças de um grupo atendido ouviram pessoas da equipe da exposição conversando em inglês e não apenas perguntou se a Jordana falava o idioma como pediu para ver isso acontecer ao vivo. Embora não soubesse se deveria interromper o diálogo alheio, para ela não dava “para deixar essa menina passar vontade” e então a levou para se aproximar e escutar a conversa. A situação, anedótica, corrobora o argumento da educadora: para aquela criança, talvez mais que a exposição, o fato marcante foi ouvir duas pessoas falando em inglês. Ao compartilhar a experiência com outros colegas, o evento ganhou pouca atenção. Para Jordana, sua compreensão e empatia pela requisição daquelas crianças tem respaldo biográfico: sua trajetória de vida podia fazê-la entender de onde vinha o pedido. Essa relação afetiva da Jordana com o público se revela no seu ato de preservação de resultados de oficinas e ateliês e que faz pensar o que acontece numa visita que mobiliza tanto as pessoas que dela participam. Se a interação é curta, não impede que os impactos seja duradouros. Em uma exposição com operação de apenas duas semanas⁵, em diferentes espaços públicos da cidade, os desafios se relacionavam a compreender que “a rua tem outras urgências” e as obras eram mais tratadas como elemento curioso que efetivamente reveladoras da “proposta do artista”. Se a fala da Kelly abordava a escuta da supervisão em relação aos anseios da equipe educativa, a Jordana pensava na escuta dela em relação a histórias, gestos e comportamentos das pessoas que visitam exposições. De um lado há o conteúdo, de outro há trocas humanas, desde pegar na mão de uma criança, até falar de um jeito próximo e pessoal, algo que, segundo ela, é inerente ao trabalho educativo.
⁵ Aqui a Jordana relata outra função que mereceria mais atenção: além dos educadores, havia também o educador-produtor.
C arta recebida por Jordana pรณs-visita, 2014
Isso não quer dizer que os trabalhos de arte sejam menores, ambas afirmaram ser possível aprender muito em exposições, inclusive ser transformada por elas. Entretanto, se o trabalho educativo não se refere a transmissão de informações, Jordana reafirma que é preciso estar atento a todas as outras esferas envolvidas. O chão da exposição, pode ser, por exemplo, um lugar de violência simbólica. Se para as elites intelectuais e/ou econômicas visitar um museu é uma atividade regular, não se pode afirmar o mesmo para uma parcela significativa da população. Nesse sentido, Bruno Makia sublinha que no Sesc Santana, em geral, “as melhores conversas [com os visitantes] não necessariamente acontecem junto com os trabalhos, mas quando estamos caminhando”. Segundo o Caio Araújo, isso talvez seja um reflexo do quanto os espaços expositivos “são pensados para os artistas, curadores e, em último lugar, para o trabalho da equipe educativa” que, por sua vez, encontra uma maneira de atuar dentro daquele espaço já pré-determinado. Para Jordana, é no trabalho educativo que as instituições se tornam podem se tornar mais acolhedoras e mais próximas: “as relações humanas estão em primeiro lugar e a exposição é um motivo”. O objetivo, assim, não seria chegar no trabalho de arte, “mas partir dele para olhar para as muitas outras coisas que fazem parte da vivência e da experiência das pessoas”. Para Arthur Doomer, posicionar a relação não necessariamente com as obras, mas com as pessoas em primeiro lugar é também permitir que barreiras sejam rompidas para visitantes que se julgam “sem sensibilidade para entender arte”. Centrar nas experiências pessoais, biográficas, é um caminho para retirar essa aura que distancia mais do que aproxima. Para a Kelly, “qualquer pessoa, com seus conhecimentos construídos na sua trajetória, tem condições de adentrar qualquer um desses espaços”. Se, de acordo com outra participante do encontro, “a arte não serve para legitimar, ensinar ou alguma outra coisa que não seja a própria experiência”, então devemos refletir hierarquias de saberes nos espaços expositivos. Para a Juliana Biscalquin, na mediação, educadores “parecem estar o tempo todo dizendo: eu vejo você”. A estratégia para isso, segundo as duas mediadoras, vem justamente desse o
acolhimento, como se não houvesse mediação possível sem esse estágio de reconhecimento. Conhecer o visitante para saber de onde partir e de como adentrar a exposição porque, segundo a Jordana, “nos enxergamos o mundo a partir das nossas experiências”. Os exemplos de práticas e reflexões compartilhadas pela Kelly e pela Jordana, junto a tantos e tantas participantes, alicerçadas e além do chão das exposições, nos provocam para pensar o que fica — das relações de trabalho e das troca com os grupos visitantes, nas instituições e nos educadores, mas sobretudo no público —, quando uma mostra acaba. Ou o que acontece quando o chão da exposição se desmaterializa, quando deixa de ser o espaço físico e passa a ser memória? por Amanda Carneiro
Kelly Santos 29 anos. Há nove anos atua como educadora e supervisora de ações educativas em instituições culturais de São Paulo. Formada em História pela Universidade Nove de Julho e em Arte/Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp, Kelly esteve presente como educadora em espaços como o CCBB-SP, OCA, Sesc, dentre outros. Mais recentemente, atuou na supervisão da ação educativa das exposições William Forsythe: Objetos Coreográficos e Entrevendo – Cildo Meireles, onde aprendeu o desafio e a potência de estar junto a um corpo educativo composto por tantas dezenas de pessoas. Desde 2015 atua como fotógrafa no projeto autoral 4º aberto, no qual pesquisa, através do retrato, a relação entre corpo, gênero, casa e memória. Jordana Braz educadora, fotógrafa e pesquisadora. Pós-graduada em Gestão de Projetos Culturais pelo CELACC-USP e graduada em Letras pela Unifesp. Integrou o projeto VISURB da Unifesp e recebeu menção honrosa no concurso fotográfico no Festival de Avanca em Portugal, realizado com o suporte da UNESCO (2012). Atua em educativos desde 2014 e desde 2017 é educadora-pesquisadora do Instituto Tomie Ohtake. Em 2018 iniciou uma pesquisa em relações étnico-raciais na educação e práticas de mediação em arte. Amanda Carneiro é pesquisadora graduada em ciências sociais e mestre em história social, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Foi bolsista da Fundação Cultural Prussiana no Museu Etnológico de Berlim. Trabalhou como educadora e auxiliar de coordenação no Museu Afro Brasil. Foi uma das idealizadoras do projeto ÍRÈTÍ – Formação em Cultura Negra para Educadorxs. É fellow do Programa da ONU para a Década Internacional dos Afrodescendentes. Participou do BBX - Crit Sessions, da 10° Bienal de Berlim e do Tate Intensive, da Tate Modern, em Londres. Tem ensaios publicados em catálogos e revistas de arte e, atualmente, é curadora assistente no MASP, e pesquisadora do “Arte e descolonização”, um projeto em parceria com o Afterall, centro de pesquisa e publicação da University of the Arts de Londres, onde também é editora da revista. No MASP, curou as exposições Sonia Gomes: ainda assim me levanto, em 2018, e Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas, em 2019.
Sala Zero de Mediação Proposta e curadoria Bruno Makia, Caio Oliveira, Jucelia da Silva, Juliana Biscalquin, Paula Garrefa e Raylander Mártis Acompanhamento horizontal Graziela Kunsch Equipe Sesc Santana André Martins, Caroline Freitas, Guilherme Guimarães, Jacqueline de Oliveria Souza, Leonardo Borges, Natália Martins, Ricardo Ribeiro, Sidnei Martins, Suellen Barbosa, Wendell Vieira.
Sesc Santana Av. Luiz Dumont Villares, 579 São Paulo – SP Tel.: +55 11 2971-8700 /sescsantana sescsp.org.br/santana