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Chronology
Final da Copa Sesc de Futsal, em março de 2018. Foto: Arquivo Sesc Sesc Futsal Cup Finals, on March 2018. Photo: Sesc Archive
Foi uma unidade aberta, permeável, um respiro bem no meio da cidade, o contato com a dura e caótica natureza urbana, com as coisas boas e as coisas ruins, o ônus e o bônus, a dor e a delícia de ser o que é. Os ônus da chuva, do frio, de ventos intensos e principalmente do calor, da poluição, do barulho. Mas também o bônus de poder experimentar as mais diferentes propostas artísticas, esportivas e socioeducativas, o bônus dos encontros, dos sorrisos, dos olhares e das trocas com artistas, grupos e companhias, com as crianças, jovens e famílias que passaram a assumir e se apropriar do novo espaço como seu, fazendo da unidade o seu pedaço, o bônus das aproximações e afetividades que se estabeleciam com os trabalhadores do território, com os transeuntes, com os moradores vizinhos, com os “noias”, com os camelôs, com os ambulantes, com as pessoas em situações precarizadas que momentaneamente viviam nas ruas. E que se sentiam acolhidos e convidados a participarem dos shows, das apresentações, dos cursos e das oficinas, desta programação que causava encantamento e também estranhamento.
Uma programação pensada, construída, tecida por várias mãos, com o desejo de mostrar essa diversidade que o Sesc tem em suas unidades, apresentando, na medida do que nos era possível, essa diversidade de possibilidades de ações. Conscientes de ocuparmos um lugar privilegiado, de termos a Cultura e a Educação como nossos valores, disponibilizando e compartilhando nossa expertise para o usufruto dos diferentes públicos, da coletividade. A programação entendida também como elemento de mediação e negociação com ações propositivas, para contribuir com o processo de formação e ampliação das possibilidades da vida cultural dos diferentes públicos, por meio de atividades como porta de entrada para outros saberes mais específicos, aproveitando a vivência de situações de sociabilidade despretensiosas como as que são experienciadas e vividas no tempo-espaço-momento do Lazer, e que permitem a troca de informações e conhecimentos entre as pessoas, a criação de uma rede básica de sociabilidade mais as possibilidades de expressão e realização de cada pessoa.
Esse era o nosso espaço de ação, de permitir que os públicos pudessem se apropriar da Unidade como seu espaço de lazer e sociabilidade, rompendo algumas barreiras simbólicas, barreiras de estranhamento – seja pela mediação a partir de um espaço aberto, cuja arquitetura e disposição dos espaços físicos contribuíam para essa chegada, seja pelo acolhimento e formação de redes sociais, que ofereciam a coexistência de espaços que permitiam a transição para diferentes possibilidades de fruição de vivências e atividades.
A unidade funcionava como mediadora, entendendo-se que o espaço não é passivo, mas se constitui como um sistema de signos e significados dinâmicos, estabelecendo uma política de relacionamento com o público. Também funcionava pela mediação por meio da escuta ativa e da relação dialógica que estabelecemos com as pessoas. Não menos importante, pela mediação que acontecia de forma espontânea no encontro com amigos e conhecidos deste novo pedaço, que gerou uma relação de apropriação não só do espaço físico, da unidade, mas também das atividades propostas e de uma relação mais íntima entre esses públicos diversos.
Adorávamos ver ali, no dia a dia, as diferentes apropriações que eram feitas por cada um: o senhor que vinha para “ficar de boas”, o pai e o filho que pediam para jogar xadrez, “ou um daqueles desafios e jogos de estratégia que o professor apresentou outro dia”, a galera que diariamente vinha “bater uma bola”, as mulheres que trabalhavam nas lojas da zona cerealista e aproveitavam o horário do almoço para “ler um jornal, uma revista e dar uma mexida nos livros”, a família que aos finais de semana vinha
Semana Move: Handebol em cadeira de rodas, em setembro de 2017. Foto: Acervo Sesc Handball, at sport festival Move Week, on September, 2017. Photo: Sesc Collection “passear pela exposição”, os manos e as minas do Basquete que adotaram o novo espaço como seu, os vizinhos-alunos da Escola São Paulo que apareciam para jogar Basquete ou ensaiar alguns passos de uma coreografia de dança ou mesmo quando cabulavam as aulas e ficavam só trocando uma ideia, as senhoras que frequentavam a Igreja São Vito, que ficava bem próxima da unidade, e faziam as atividades de tecnologias e artes, ou, como elas mesmas diziam, as atividades de “internet e de computador”, além das aulas de costura, customização e design de roupas, os “boleiros e peladeiros” que fielmente, aos sábados e domingos, participavam dos torneios e campeonatos de futsal, os grupos de alunos de escolas do interior de São Paulo que vinham passear e conhecer os nossos outros vizinhos, o Museu Catavento e o Mercadão, e que invariavelmente passavam por dentro da Unidade e ficavam jogando Pingue-Pongue, Badminton, Xadrez, Futebol, Basquete – para desespero dos professores, que certamente tinham hora marcada não para estes momentos espontâneos, mas sim para os eventos oficiais; a multidão que chegava em grupos para os shows musicais, primeiro os fãs, que faziam questão de ficar grudados na boca do palco, e depois os outros 4.000, 5.000, 10.000 espectadores que lotavam a unidade, trazendo aquela tensão gostosa e positiva de tanta gente junta com o mesmo desejo de curtir um show ao vivo. Além de tanta gente que vinha participar de um bate-papo, de uma oficina artística, uma aula de expressão corporal, para andar e correr, ver um espetáculo ou simplesmente para sentar-se em uma cadeira e não fazer nada.
Nesse dia a dia é que se tecia a trama do cotidiano, em que estavam presentes também conflitos decorrentes dos diferentes arranjos dos próprios atores sociais no processo de usufruir dos serviços, atividades e equipamentos, bem como de estabelecer encontros e trocas. Eram as crianças que corriam e brincavam pelos espaços, empolgadas, e falavam alto, atrapalhando aqueles que estavam atentos às orientações do profissional que ministrava um curso; os boleiros do futebol que invariavelmente passavam do debate para o embate; os testes e as passagens de som antes dos shows, que invadiam todos os ambientes, causando interferência nas conversas e contemplações; os gritos de “pega ladrão” dos transeuntes que eram furtados nas calçadas e adentravam a unidade para que tomássemos providências sobre a situação; a mediação e a relação dialógica entre os diversos públicos para o entendimento do acolhimento das pessoas em situação de rua nas atividades.
Essa riqueza era a nossa realidade diária, conquistada pouco a pouco na relação que estabelecemos desde o início, no processo da chegança, de nos apresentar e convidar esses públicos para fazerem parte da nova experiência.
Há um ditado africano que diz: “Se quer ir mais rápido, vá sozinho, mas se quer ir mais longe, vá em grupo”. Pensar a programação do Sesc Parque Dom Pedro II foi tentar sempre juntar os diferentes pontos de vista, memórias, experiências, desejos, sonhos e necessidades, tanto dos profissionais que especificamente trabalham refletindo sobre a programação, como dos gestores, parceiros de trabalho das demais áreas, como Alimentação, Comunicação, Serviços e Infraestrutura; dos profissionais da cultura, como os criadores, pensadores, artistas, grupos, companhias e iniciativas sociais; além, claro, dos nossos públicos, num exercício cotidiano de escuta atenta. No nosso caso, por estarmos ali no espaço diariamente, imersos nas trocas e na potência de tudo o que acontecia no ambiente, o nosso fazer era quase um método de trabalho como prescreve a etnografia urbana – como gosta de dizer o professor José Guilherme Magnani, com o olhar de dentro e de perto, tentar compreender as dinâmicas culturais e as formas de sociabilidade dos nossos diferentes públicos, e, assim, pensar propostas para difundir experiências
artísticas e educativas, criando um conjunto de proposições e práticas de transformação dos nossos públicos de maneira aberta, crítica e plural.
Nesse processo de construção coletiva da programação, lembro o educador Paulo Freire (2003, p. 61): “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”. Escolhemos contribuir para uma transformação social que considerasse a micropolítica de produção de subjetividades. Para o começo de uma história, acredito que escolhemos um dos possíveis bons caminhos. Assim fizemos. Assim fomos. E assim seguimos juntos, presencial ou virtualmente, neste exercício de despertar e provocar coisas nas pessoas, tentando contribuir para a confecção de um tecido urbano mais heterogêneo, mais integrado e mais afetivo.
REFERÊNCIAS
CANCLINI, Néstor García. 2008. Imaginários culturais da cidade: conhecimento / espetáculo / desconhecimento. In: COELHO, José Teixeira (org.). A cultura pela cidade. São Paulo: Iluminuras. FREIRE, Paulo. 2003. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. MAGNANI, José Guilherme Cantor. 1998. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo, Hucitec. [1ª ed. Brasiliense, 1984] _____ . 2002. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], 17, n. 49, p. 11-29. ISSN 1806-9053. https://doi.org/10.1590/S0102-6909200200020000 SANTOS, Milton. 2008. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp. SZYMBORSKA, Wislawa. 2011. Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras.
— Laudo Bonifácio Jr. é Coordenador de Programação do Sesc Parque Dom Pedro II, Especialista em Gestão Cultural pelo CPF/Sesc SP, Graduado em Educação Física pela UNESP.
Schedule: a close look, from the inside
Laudo Bonifácio Júnior, Parque Dom Pedro II Sesc schedule coordinator
When I pronounce the word Future, the first syllable already belongs to the past. When I pronounce the word Silence, I destroy it. When I pronounce the word Nothing, I make something no nonbeing can hold. Wislawa Szymborska
If social institutions are a product of imagination first, and after personal and collective efforts, the creation of Parque Dom Pedro II Sesc emerges, as prophesied by the Brazilian geographer Milton Santos (2008, p. 11) regarding the city, “doomed to be both the theater of growing conflicts and the geographical and political place of the possibility of solutions”.
Based on this principle, the schedule was prepared with the collective desire to contribute to its transformation in mind. For us, new territory, reshaping processes, thoughts, behaviors and visions of the world by establishing dialogues, connections and movements on the perceptions, experiences and understandings of the reality of different social players in this space: the people (workers, residents, passersby, children, young people, old people, street vendors, homeless people), institutions (School, Day Care Centers, Church, Cultural Center, OSCIPs) and companies (Stores, Bars, Restaurants, Wholesalers) located there, with their stories and potencies. We agree with the Argentinean anthropologist based in Mexico Néstor García Canclini (2008), for whom the city is not only what we see on maps or the GPS, but also varies according to the ways in which each person experiences social interactions through mental and emotional cartography. In this sense, architecture can be present in the city’s spaces not only through office or residential buildings, but as a “breathing” spot for people and communities where contemplating the space is important and necessary. Thus,westartedtothinkabouthowwe couldbecomethis“breathing”spotfor people and communities, about how to makeourselvescollectivelypresentinthe territory, already imagining the possible uses andwaysofmakingthisnewspaceused bythedifferentaudiencesthere.Inaspace that was the result of urban transformations caused by often divergent interests and needs between the government, the real estate market and the residents and workers of the city downtown, an area of 9,000 square meters inlaid between the Estado Avenue, Mercúrio Avenue and São Vito Square, a historic space in this region wheretwolow-incomeresidential buildings were built, and later demolished, São Vito and Mercúrio surrounded by railings, with an architecture from scratch without constructions, a space as an urban and sociocultural element. Entirely available for us to think about routes, sensations, emotions and the experience