CENTRO DE PESQUISA
TEATRAL DO SESCAPRESENT
A
DEANTUNES FILHO BASEADO NO POEMA ÉPICO BABILÔNICO "GILGAMESH"
COMLUIS MELO E GRUPO DE TEATRO MACUNAíMA
CENOGRAFIA EFIGURINOS J.C.SERRONI ILUMINAÇÃO DAVIDEBRITO DIREÇÃO ANTUNES FILHO
A EMPRESA E O DESENVOLVIMENTO SOCIAL
o
desenvolvimento de uma sociedade consiste em que a atividade econômica, como um todo, consiga suprir as necessidades biológicas dos cidadãos, de tal modo que todos alcancem níveis aceitáveis quanto à alimentação, saúde, transporte e moradia. Essa base material da sociedade é visivel e mensurável e não se construirá sem o crescimento econômico e a abertura de oportunidades para todos, através do emprego, do salário e da liberdade para empreender. Mas o desenvolvimento se constitui também de uma face menos visível, dotada de aspectos mais qualitativos e pouco mensuráveis. São as formas de vida, onde o que importa é muito mais o que o indivíduo sente, pensa, a satisfação que ele tem de participar da vida social. Nesse sentido, todo cidadão pode ter um modo de vida mais enriquecedor, onde pode ver satisfeitas suas necessidades de aprender sempre mais, desenvolver sua imaginação e senso estético, encontrar relacionamentos agradáveis e compensadores e se sentir adaptado aos avanços e mudanças do mundo moderno. É evidente que o fator fundamental dessa adequação entre as expectativas do indivíduo e o ritmo da
vida social é a educação. Cada vez mais ela será necessária para compreender uma vida social sempre mais complexa. No futuro o individuo deseducado seguramente corresponderá ao indivíduo marginalizado, pois os requisitos para a compreensão dos papéis sociais de cada um serão progressivamente maiores e mais exigentes. Mas como o cidadão não poderá frequentar os bancos escolares o tempo todo, esse papel de inclusão do indivíduo na sociedade será desempenhado pela cultura, que fará a vez de uma educação mais informal e continuada, capaz de estar no cotidiano do indivíduo pela vida toda. Uma sociedade evoluída, organizada através da participação consciente de individuos-cidadãos será uma sociedade com alto grau de desenvolvimento social, onde ao mesmo tempo estarão garantidas tanto as necessidades materiais como aquelas necessidades mais espirituais dos indivíduos. E não restam dúvidas de que uma sociedade fundamentada nessas bases é .um excelente meio ambiente da atividade econômica empresarial, com vantagens significativas para consumidores e empreendedores.
ABRAM SZAJMAN PRESIDENTE DO CONSELHO
REGIONAL DO SESC
DE ACÃO , CULTURAL
o teatro
é um campo da cultura que contém uma contradição interna: ao mesmo tempo em que é a arte mais desejada por todos, permite o acesso de poucos. Ao mesmo tempo em que o teatro permite jogar com a vida no ato de representar, o cotidiano da vida tem negado a essas pessoas esta possibilidade. Ano após ano, estudos de aspirações têm revelado que atores potenciais se escondem sob percentuais estatísticos altíssímos, sem nunca terem conseguido aproximar seus desejos de auto-expressão e realidade cotidiana. Na tentativa de eliminar as distâncias e facilitar o acesso de um maior número de pessoas, tanto ao fazer teatral como à apreciação de espetáculos de boa qualidade, desde muito o SESC desenvolveu uma ampla política quanto a esta manifestação da cultura, construindo espaços adequados para apresentações em seus centros de atividades, valorizan, do grupos através de festivais e encontros, promovendo debates sobre a dramaturgia nacional, realizando treinamentos para a formação de grupos de teatro em empresas, incentivando a formação de platéias através da produção de espetáculos próprios e trazendo ao público os melhores trabalhos de âmbito nacional e internacional. A criação e manutenção do CPT foi, e continua sendo, o marco mais importante desta ação do SESC para reduzir as desigualdades de oportunidades em um campo da cultura ainda bastante elirizado. Assumiu desde o início, uma função
cultural - a de interferir nos rumos da dramaturgia nacional, através de propostas estéticas de qualidade, e uma função social - a de proporcionar um desenvolvimento cultural a extensas camadas da população alijadas da criação cultural mais elaborada, através de preços compatíveis com seu poder aquisitivo e de uma pedagogia para usufruir dos espetáculos. Para responder a esses dois grandes desafios, 'o CPT coordenado pelo diretor Antunes Filho, se organizou como um modelo de ação cultural, dotado de idéias próprias quanto à pesquisa de textos e montagem, quanto ao desenvol- vimento de pessoal da área e quanto à organização do processo de criação e produção das encenações. Quanto à pesquisa, o CPT se constitui num centro de contínua investigação, discussão e criação de textos, que revelem valores fundamentais do espírito humano, preferencialmente produzidos no contexto de uma realidade brasileira como as obras fundamentadas em Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e outros. No trabalho de formação do ator fica mais evidente a característica de modelo de ação cultural que conceitua a. atuação do CPT. Para Antunes Filho, o teatro é mais missão do que profissão e, portanto, o trabalho de ator está mais na evolução do ser em auto formação do que na detenção de técnicas específicas. a fazer teatral é orgânico e não um produto de aquisição pelo treino. Para isso, os DANILO SANTOS DE MIRANDA
atores discutem continuamente um conjunto de idéias e vivências advindas do orientalismo, da física quântica, da holografia e da ecologia, que desenvolvem uma percepção holística do mundo, com ênfase contínua nas inter-relações globais das realidades cósmicas e planetárias. Trata-se de uma abertura para o ser e não apenas para o ser-ator. a trabalho de produção das peças realiza-se num processo de oficinas permanentes, tanto de encenação como de montagem. Para manter a qualidade de todo o processo, o CPT criou também os núcleos de cenografia e iluminação, com aulas e oficinas, ajudando também a formar quadros que interfiram na qualidade de outros trabalhos que estão no mercado. Com este modelo de ação cultural, o CPT já produziu doze trabalhos de grande significado para as artes cênicas, reconhecidos em âmbito mundial. Agora apresenta GILGAMESH, baseado num poema épico sumério de 4.000 anos atrás, no limiar da História, instituída pela escrita cuneiforme. Neste poema, Antunes Filho e o CPT foram descobrir a ambição humana, o desejo de imortalidade, a busca do autoconhecimento e a amizade, valores fundamentais e permanentes do espírito humano em todas as sociedades. Trata-se de um trabalho de intensa pesquisa e vivência para os atores, um desafio para outros profissionais da área e um momento de reflexão para todo um grande público sedento deste auto conhecimento. DIRETOR REGIONAL DO SESC DE SÃO PAULO
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AENCENACAO I
Longe de modismos que infestam a cena, mas sintonizado com a vanguarda internacional contemporânea, Antunes Filho conduz seus jovens atores/discípulos num processo de investigaçâo dramática onde a conquista e o domínio da técnica é o ponto de partida para a criação. A técnica a serviço da idéia e não de formalismo estéril, ou dos jogos de efeito tão em moda aqui e agora. A forma é decorrente das relações intrínsecas do drama e traduz a idéia. De modo que não há forma mais conteúdo e sim forma do conteúdo. Ou seja, no teatro de Antunes a estética não é embalagem nem moldura, é o fundamento. Isto fica claro na encenação da epopéia de
Gilgamesh. Não é possível isolar Gilgamesh das criações anteriores do encenador. O seu estilo elegante, com todos os elementos do seu discurso poético, está presente. Mas estilo é só a maneira peculiar do artista, sua característica, O que interessa está além do estilo, no caso, constitui o cerne do pensamento estético que materializa em cena a epopéia de Gilgamesh, não para nos entreter com uma aventura ou tentar reconstítuír dados arqueológicos, mas para que possamos refletir sobre a condição humana tendo por base o pensamento arcaico'. Neste sentido, o trabalho traz amadurecidos dois aspectos da pesquisa levada a efeito por Antunes em realizações anteriores: o rituallitúrgico como meio de expressão dramática e o uso de conceitos junguianos como instrumentos criativos. 6
Lembro de A Hora e Ve~ de (1986). Antunes interpretava a obra de Guimarães Rosa na ótica zen-budista e via-se tentado a realizá-Ia como um ritual. Queria um círculo de monges em meditação para a abertura do espetáculo. Terminou abstraindo a presença física dos monges e a representando por um círculo de luz que abria e fechava o espetáculo. Plantava, então, a semente que germinou e que floresce em Gilgamesh: toda a epopéia é narrada por monges, num espaço atemporal e não identificado. É o eterno espaço do homem na eterna busca do conhecimento que lhe restitua a porção divina. Aos atores, Antunes solicita que não representem monges: sejam eles mesmos com a espiritualidade dos monges. Assim, configura-se ritual litúrgico a cada apresentação do espetáculo. No que diz respeito aos conceitos junguianos, todo o processo criativo de Antunes está baseado neles. Anima/ animus, persona, sombra, self são conceitos trabalhados na rotina do CPT, desde os exercícios técnicos até a elaboração dramática. A análise do texto, a criação dos personagens, as relações cênicas, tudo se remete às imanências arquetípicas. Mas,
Augusto Matraga
ó
Gilgamesh vai além ao propor o percurso do herói como processo de individuação. Não se trata, é verdade, de uma escolha e sim de correta leitura do texto original. No plano simbólico, a experiência de Gilgamesh é a busca de integração do self, o arquétipo da totalidade. Enkidu seria a sombra que, uma vez integrada na personalidade, confere ao herói a consciência social e o afasta do egocentrismo com que se conduzira até então. Integrando esse arquétipo positivo, eleva-se moralmente e localiza em Humbaba a sombra terrível, demoníaca, contra a qual devia lutar. Ao desafiar Humbaba, adentrou as densas camadas inferiores do inconsciente coletivo, vendo-se face a face com o selJ. Essa leitura junguiana ordena e determina os acontecimentos cênicos. Nisto reside o avanço e a originalidade da encenação. Lidando com o processo de individuação, Antunes recorreu ao arsenal de símbolos oníricos para materializar o comple xio oppositorum de que fala ]ung. Ajudouo no objetivo a concepção cenográfica de]. C. Serroni, que possibilita a introdução das entidades arquetípicas em deslumbrantes caixas. Com tal recurso projetam-se símbolos da totalidade, como o quadrado, o retângulo, o círculo. A linguagem geométrica per-
faz a manifestação do inconsciente através dos seus códigos naturais. Gilgamesh aparece em "caixas simbólicas" na caminhada ao encontro de Utnapishtim, denotando seu corpo-acorpo com o self. A solução encontrada por Antunes para descrever a travessia das doze léguas nas montanhas de Maslru; onde reinam as trevas, emociona pela simplicidade: na caixa envolta por panos negros, Gilgamesh continua a maratona rumo ao oceano da morte sem perceber que não comanda o destino, é um joguete dos deuses. Desta maneira, as caixas instituem o terceiro plano da narrativa: o primeiro, é o ambiente dos monges que evocam' Gilgamesh; o segundo, o ambiente histórico do herói; o terceiro, o ambiente arquetípico, do inconsciente coletivo. Na relação entre os planos se estabelece a leitura junguiana da obra. No processo de individuação, Gilgamesh confronta oself, o seu "deus interior", numa atmosfera numinosa ao mesmo tempo irradiada e absorvida pela comunidade monástica que narra o processo. Fecha-se o círculo. Preocupa-se Antunes com novos paradigmas na sociedade, na universidade, na arte, e propõe Gilgamesh como novo paradigma para o teatro brasileiro. Na verdade, de há muito sua obra constitui novo paradigma em nosso teatro. Mas a decantação do processo evidenciada emGilgamesh, que possibilita extraordinária economia de recursos cênico-interpretativos numa encenação onde tudo é significativo, altamente poético e preciso nos conceitos, indica realmente um novo modelo brasileiro para a criação dramática. SEBASTIÃO MlLARÉ
Placa em pedra com relevo do Rei Enannatum, Rei de Lagash
DE IL AME H A
epopéia de Gilgamesh
humanidade
é considerada
a primeira
das grandes
literárias
da
tanto por sua cronologia, como por seu conteúdo eforça poética. Em torno do sumério
Gilgamesh, rei de Uruh, (cidade da antiga Mesopotâmia), foi-se forjando
que viveu cerca de 2700 antes de Cristo,
um conjunto de poemas míticos, estruturados
em doze tábuas de argila, escritas em
cuneiforme - a primeira escrita do mundo, criada pelos sumérios, inquietações que sempre perseguiram da imortalidade
onde são questionadas as grandes
o homem: o Significado da vida, o problema da morte, a busca
e a resignação diante do destino. Gilgamesh é o único personagem
estatura heróica que chegou a nossos dias.
8
epopéias
humano
de
Estatueta de carneiro em ouro, prata e lápis-Iazúli, proveniente dos sepulcros reais de Ur
J
r
1 .(
A
o
herói Gilgamesh é descrito no começo do poema. Ele é dois terços deus e um terço homem, pois sua mãe é uma deusa. Dela, Gilgamesh herdou grande beleza, força e inquietude. De seu pai, herdou a mortalidade. A história tem muitos desdobramentos, mas eis sua tragédia: o conflito entre os desejos dos deuses e o destino do homem. Percebe-se de antemão no caráter de Gilgamesh uma preocupação dominante com a fama e a reputação, assim como a revolta do homem mortal contra as leis da separação e da morte. O poema é dividido em episódios: um encontro de amigos, uma jornada pela floresta, o insulto a uma deusa caprichosa, a morte do companheiro e a busca da sabedoria ancestral e da imortalidade.
Quando a história começa, Gilgamesh já é um homem maduro e supera todos os outros em beleza, força e nos desejos insatisfeitos de sua natureza semi-divina, uma natureza que não lhe deixa rivais no amor ou na guerra;
ao mesmo tempo, é possuidor de uma energia demoníaca que exaure seus súditos, obrigados a invocar a ajuda dos deuses. O primeiro episódio descreve como conseguem arranjar um companheiro para Gilgamesh, que é seu oposto. Trata-se de Enkidu, o "homem natural", criado entre os animais selvagens e rápido como uma gazela. Enkidu acaba sendo seduzido por uma prostituta sagrada e a perda da inocência provoca a rejeição dos animais; ele se deixa civilizar, até finalmente chegar à cidade de Uruk. A grande amizade entre Gilgamesh e Enkidu, que tem início com uma luta corpo a corpo em Uruk, é o elo que liga todos os episódios da história. Até mesmo em sonhos, antes de vir a conhecer Enkidu, Gilgamesh sabia da sua existência e da sua chegada a Uruk.
É Enkidu quem traz notícias sobre a Floresta de Cedros e seu terrível sentinela, com quem eles se verão face a face num conflito, de onde os dois companheiros saem vitoriosos. A deusa lshtar apaixona-se pelo herói Gilgamesh e tenta seduzi-lo. mas ele rejeita-a, com insultos e acusações sobre o miserável destino reservado a seus antigos amantes. lshtar invoca o Touro Celestial contra os homens como castigo por ter sido rejeitada por Gilgamesh, mas os dois companheiros novamente saem vitoriosos, exterminado o Touro.
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Os deuses decidem então que um dos dois, Gilgamesh ou Enkidu, deve morrer. Enkidu é o escolhido. Com a morte de Enkidu, Gilgamesh fica sozinho e conscientiza-se de que sua morte também será inevitável. No meio da crise, ele lembra-se que um único antepassado, Utnapishtim, havia alcançado a vida eterna, sobrevivendo ao dilúvio enviado pelos deuses para destruir os homens. Gilgamesh sai em busca de Utnapishtim e, após uma longa peregrinação, descobre que a imortalidade foi dada a Utnapishtim por vontade dos deuses e que tal destino não foi de~~retado para ele. Utnapish~ tim, tentando consolar Gil\) (-"gamesh, ainda conta-lhe o segredo da planta da eterna juventude. Gilgamesh consegue resgatá-Ia do fundo mar, mas, num descuido, uma serpente rouba-a dele. Convencido da futilidade de lutar por algo que não se pode ter, não há mais nada a fazer a não ser voltar para casa. O herói, ao fracassar, deixa entrever que as possibilidades do homem com respeito a temas vitais têm sempre limites. Que a condição humana é sempre dramática, pois está definida pela inexorabilidade da morte.
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Relevo esculpido de um herói semelhante a Gilgamesh, portando filhote de leão
A PE
Jorge Luis Borges narra uma contenda entre dois reis, em que o primeiro, senhor da Babilônia, aprisiona o segundo, um rei árabe, em um labirinto reputado como intransponivet.
O árabe, por graça
divina, escapa. Mais tarde, como vingança, abandona seu inimigo no deserto, de onde jamais sairá vivo. Mais fatal e mais perverso é este labirinto da natureza, porque "a confusão e o maravilhoso são obras de Deus, e não dos homens".
A PEREGRINAÇAO (CONTlNUAÇAO)
Para Borges, as figuras da natureza, imensuráveis e atemporais, seriam a escritura de Deus. Seriam, além da aparência, símbolos ímgualados pelas obras ou pela ficção dos homens. No entanto, todo o esforço 'das poéticas essencialistas na arte contemporânea é o de, senão igualar, pelo menos aproximar-se dessa realidade imperturbada pela circunscrição do tempo e do espaço, da natureza como matéria portadora de significado. O mundo não é o que parece; quer nos dizer alguma coisa, e é preciso colar o ouvido no chão para ouvir seu murmúrio cheio de sentido. O teatro que Antunes Filho vem fazendo desde 1978 segue essa vereda essencialista, procurando, cada vez mais, desfazer-se dos labirintos de bronze e mármore para chegar ao deserto de onde se originam todos os símbolos. Como toda a arte na história, o teatro acumulou camadas sedimentares de artifícios.
Descobrir, sobre esse pesado revestimento, os elementos essenciais à comunicação implica um lento trabalho de decantação. Nas encenações criadas para o CPT, é visível o processo de abstrair o peso concreto dos elementos de composição. Nada é acessório e cada cena, ou objeto de cena, exige do espectador um trabalho analógico para captar o significado. Em Macurratma, a fonte era uma moça carregando um pequeno recipiente de água. Fazendo as vezes da célebre sacada da casa de Julieta, havia uma escada portátil. Inúmeros outros exemplos de redução pontuam as encenações de Antunes Filho. Depois que o valor simbólico se consolída, tornando coerente a narrativa, a matéria de que é feito se desvanece. Em vez da ênfase, há a leveza e a rapidez, porque a função de cada coisa é repercutir, criar um eco depois que a imagem desaparece de cena.
Também Gilgamesh, assevera Antunes Filho, não será uma transcrição etriográfica da civilização babilônica. Sua ambientação é a proto-história e o tema, o desejo da imortalidade, deverá sobrepor-se à toda a localização. Da mesma forma que os campos mineiros, em A hora e vez de Augusto Matraga, são uma paisagem espiritual, de ardente secura, a epopéia babilônica terá o perfil de um trajeto metafísico. Mantendo um parentesco com a poética simbolista, Antunes teme a forma pesada abafando a idéia leve. Ao lado, pois, do procedimento de abstração, há a repulsa ao formalismo. Podese dizer que esta é uma reação de natureza histórica a uma tendência contemporânea. Tanto quanto aprecia o Vazio meta físico - repouso do ser -, Antunes Filho opõe-se ao vazio da forma, ou seja, ao ar~ ranjo que preenche a cena sem outra função a não ser tornáIa mais atraente aos sentidos. Em Xica da Silva, ironizava explicitamente a precariedade das formas que recobrem um poder ilusório e efêrnero. Em Nova velha história, afirmava o poder do significado sobre a matéria através da eliminação. Nem bem a palavra articulada encontrou lugar na cena, havia um sistema primordial de comunicação em que as intenções dispensavam a convenção da língua. Direta ou indiretamente, esses dois espetáculos comentam um outro teatro ocupado em preencher todos os espaços da cena e todos os sentidos do especta-
Máscara de Humbaba, .sentinela do Bosque de Cedros
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Dança Ritual da Ordem dos Derviches
dor com uma cascata de estímulos de toda a ordem: visuais, auditivos e emocionais. Quando o texto em que se baseia o espetáculo contém algum elemento de crise psicológica, como é o caso das peças de Nelson Rodrigues, a encenação se encarrega de desbastar e alargar o campo. O realismo psicológico, os dramas de consciência, a ética do cotidiano e, enfim, a esfera do sujeito, são o que menos interessa a esse teatro que almeja o universal. A caracterização das personagens no teatro do CPT é invariavelmente super-dimensionada para que se possa compreender que o que interessa não é o sujeito exemplar, mas a crise exemplar, comum a todos os seres humanos. "Transcender" é um termo recorrente nos textos produzidos pelo CPT. A figura do pai em Os sete gatinhos, por exemplo, transcende o recalque social ou o tabu do incesto. Antunes faz do pai uma espécie de deus arcaico que, como Cronos, será assassinado ritualmente.
Mais além da psicologia ou da caracterização social, as encenações enveredam por vezes para o nível antropológico, na representação dos totens e tabus da cultura brasileira. e da civilização ocidental. O lobo de Nova velha história será, assim, o desejo uivando para a lua, eternamente insaciado e condenado à repetição. Poderíamos também alinhavar uma série de personagens com esse tratamento. Não são comoventes por identificação - não se parecem conosco -, mas porque representam um motivo na sua manifestação mais descarnada. O mesmo acontece com os temas brasileiros. Macunaíma, Xica da Silva e Ioaquim (Vereda da Salvação) não dizem respeito a um momento histórico do país, mas são motivos permanentes da nossa cultura onde, sob diferentes roupagens, se manifestam a malandragem, o fanatismo e o misticismo. Trata-se, como escreve Antunes, do Homem Brasileiro, todo em maiúscula. Para o ator do CPT, resta
a tarefa, nada fácil, de trabalhar com totalidades e não com a mimese, mais fácil de executar, porque calcada sobre a verossimilhança. A ênfase no tratamento simbólico da personagem vem se refinando ao longo de vários espetáculos, mas, pode-se dizer que o ator tem uma idéia precisa da personagem e procura externa-Ia através de uma dinãmica de movimentos mais condizente com o caráter volátil do símbolo do que com uma criatura de carne e osso. Cria a ilusão de que não está sujeito à lei da gravidade. Em cada personagem, o caráter ancora-se em uma energia que permanece imutável sob o impacto das ações. Macbeth (Luis Melo) é, desde a sua primeira aparição, um signo da tristeza assolando os que são demasiadamente vorazes e a quem coisa alguma satisfará. Em A falecida, a personagem Zulmira (Flávia Pucci) nem por um segundo lembra a dona de casa suburbana. Emerge com uma face irreal, contorcida, em que reconhecemos a máscara rnortuária e, nela, o desejo pungente da grandeza póstuma. Gravar o seu nome na memória da vizinhança é uma ânsia faraônica. Isso quer dizer que as açôes das peças confirmam alguma coisa prefigurada no
A PEREGR1NAÇAO (FINAL)
trabalho do intérprete. Há uma totalidade anunciada pelo ator e para ela convergem todas as partes do espetáculo. O fundo será sempre arquetípico, embora o procedimento lembre as alegorias medievais, quando abstráções como a alma, o vício e a virtude moviam-se como personagens. Contudo, uma herança milenar do teatro ocidental é preservada e acarinhada nas encenações de Antunes Filho: a estrutura narrativa. Eliminando muitas vezes o característico e o circunstancial, as encenações mantêm intacta a lógica, encadeando os episódios. Estírnu16 e reação, encadeamento e desenlaces apropriados são traços nítidos em todas as adaptações realizadas pelo CPT. O modelo ibseniano, ao que parece, preside à operações sobre a narrativa. Não há, neste conjunto de trabalhos, exemplos de posturas contemporâneas de fragmentação da personagem ou da ação. Embora o tempo das histórias seja um tempo "fora da história", as narrativas chegam a uni lugar. Mesmo que o lugar seja um ponto suspenso no espaço, indicando o recomeço. Quer o tema seja a transcendência ou amesquinhamento, há uma perfeita concordância, na dramaturgia do CPT, entre o caráter e o destino das personagens. "No meu fim está o meu começo", dirá a Mary Stuart criada por Schiller. Inversamente, no teatro de Antunes Filho, o fim está no começo. Os desdobramentos se sucedem a partir e
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em concordância com um plano narrativo. Ao encenar Gilgamesh, o CPT reafirma a sua vocação de celebrar a potencialidade da narrativa no teatro. Sendo também esta a primeira epopéia registrada pela escrita, estará mais próxima, temporalmente, desse enigma que é a escrita do mundo. O tema, a busca da imortalidade, é tão universal quanto possível. E há também, a considerar, o lugar de origem dessa epo-
Adornos de uma Rainha da Corte, encontrados no cemitério real de Ur
péia, em um ponto de interseção entre dois hemisférios culturais. Nada pode ser mais adequado a uma poética que procura sempre desfazer-se dos localismos, das situações particularizadas da história e, de um modo geral, dos destinos individuais. Buscando primeiro o renome e depois a vida eterna, o gigantesco herói sumeriano simboliza a peregrinação de toda a existência. Diferem os feitos, mas o desejo é o mesmo. Mas Gilgamesh é, além de uma obra, um eco. Levanos ao território da ancestralidade e da permanência. Os nomes de reis e de cidades antiqüíssimas, as maravilhas monstruosas, os mitos arcaicos, como o de Noé e o da serpente, a paisagem edênica e a flor da vida eterna têm o encanto e a beleza das coisas insubstanciais. Nem tudo é razão e motivo, como nos diz Guimarães Rosa: "Sargon Assarhaddon Assurbanipai Teglattphalasar, Salmanassar Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor Belsazar Senanherib. E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas riçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa dos nomes". MARIANGELA
=csittco
AL VES DE LIMA *
TEATRAL
OMU[ A EPOr
A Mesopotãmia de urbanização, 3100-2900
subsistência
assistiu, em meados do IV milênio antes da nossa era, a um processo paulatino
que culminou,
neolitica,
que concentrava
trabalhando
as terras
tornaram-se
nas famílias
artesãos,
de alimento. e cuidando
escribas,
da criação
sacerdotes
uma classe privilegiada.
pelo ano 3000 a.Ci, o personagem
Enquanto
Nasr (ca.
A criação da cidade exigiu da-sociedade
social. Não era mais possível continuar
da aldeia. O processo de urbanização e produtores
conhecido como Uruh. 111 ou jemdet
da cidade- estado suméria.
uma crescente estratijicação
especialistas ceramistas,
no período comumente
a.C.'), com afundação
mesopotãmica da aldeia
ESH
'a produção
a antiga estrutura
de tudo que nec,essitava
provoca logo uma divisão da população estes últimos de animais,
etc., estabeleceram-se
continuaram
para
a
ativa em
a viver nas aldeias,
os especialistas,
constituídos
nos centros urbanos
pelos
e, aos poucos,
E, entre eles, o escriba torna-se, a partir da invenção da escrita principal
da administração
central da cidade.
o MUNDO
SUM~RIO
E A EPOP~IA
DE GILGAMESH
(CONTlNUAÇAO)
Com a predominância do centro urbano sobre a aldeia, as antigas comunidades aldeâs perderam sua autosuficiência e sua homogeneidade. Elas tornaram-se tributárias e dependentes do centro urbano. O processo de urbanização trouxe consigo, também, uma significativa mudança na própria tipologia da sociedade. Os pólos decisóríos da antiga comunidade aldeã, baseados na autoridade paritária dos chefes' das famílias da aldeia neolítica, não eram mais suficientes para gerir o governo de uma cidade-estado. A nova estrutura estatal, com um centro urbano e diversas aldeias dependentes desse centro, exigia um governo centralizado para poder resolver os complexos problemas de irrigação artificial, de defesa da cidade, de solução de conflitos internos e externos, de comércio a longa distância etc... que surgiram com a criação da cidadeestado. O assiriólogo A.L. Oppenheim denominou esses novos pólos sócio-políticos e ecoriôrní.co s, baseados nos templos e no palácio, as Grandes Organizações. O governante da cidade-estado recebia diferentes títulos, de acordo com a cidade em questão ..
O título mais comum era o de ÉNSI, mas, em Uruk, os primeiros governantes são chamados EN e, em Ur, LUGAL. Uma das primeiras localidades neolíticas a tornar-se cidade foi Uruk. Descobertas arqueológicas nesta cidadeestado mostram que o centro urbano estava construído em função do complexo templario da cidade. E, como se pode deduzir de arquivos p résargõnicos, o templo era, nesta época, não apenas um centro cúltico-relígíoso, mas também um centro político e econõmico. Os templos eram proprietários de grandes extensões de terras produtivas. A população ativa da cidadeestado dependia, de alguma maneira, da economia templária. Grande parte dessa população trabalhava no cultivo dos campos classificados, nos textos da época, como GÁNA.EN (campos do EN), cuja produção destinava-se às necessidades da administração central e ao mecanismo distributivo. Os funcionários mais graduados participavam do processo produtivo, enquanto trabalhavam os GÁNA.vSUKU (campos de sustento), recebidos da administração central a título de pagamento pelos serviços
prestados. Além disso, os templos alugavam boa parte de' suas propriedades fundiárias, 05 GÁNA.APIN.LÁ (campos de aluguel), empregando, destarte, a mão-de-obra de pequenos e médios produtores na exploração de parte de suas terras. O tipo de economia exercido pelo templo e pelo palácio continuava, contudo, na linha de uma economia familiar tipo oikos. Tratava-se, porém, de um grande oikos, cuja produção estava destinada, dentro do mecanismo de redistribuição, à subsistência da população da cidade-estado. O templo ou o palácio era, outrossim, o lugar onde se estocavam os excedentes necessários para alimentar os especialistas, que não produziam seu próprio alimento, e para a semeadura da próxima safra, bem como para armazenagem da matéria-prima e de outros produtos da indústria têxtil e do artesanato da cidade-estado, essenciais para o mecanismo de trocas no comercio a longa distância. Não se pode, contudo, classificar a cidade-estado suméria como uma cidade teocrática e nem definir a sua economia como uma economia estatal. Ao lado do grande oikos, representado pelo templo ou pelo palácio, que, cer-
tamente, dominava a economia da cidade-estado surnéria, continuavam a existir os outros oikos privados constituídos pelas diversas famílias de pequenos e médios produtores, como comprovam os inúmeros contratos de compra e venda de campos produtivos conservados na abundante documentação dessa época. Essa mesma documentação mostra-nos, também, que os campos cerealíferos, negociados nos contratos da época proto-dinástica (ca. 2900-2340 a.c.) eram mais extensos no norte e nas áreas vizinhas do norte do que no sul da Baixa Mesopotâmia, o que poderia sugerir a conclusão de que a propriedade privada de campos produtivos era mais espalhada no norte do que no sul. Baseados nestes indícios, alguns autores lançaram a hipótese de que a instituição da propriedade privada teria suas origens no
norte da Baixa Mesopotâmia, onde predominavam as camadas semitas. O exame da documentação existente não parece, contudo, confirmar esta hipótese. Por outro lado, porém, a análise da documentação proveniente de arquivos de templos do sul da Baixa Mesopotâmia sugere concluir que a economia templária, com seu modo próprio de produção e seu sistema de propriedade de terras, foi um fenômeno típico, originário do sul e que, embora tenha se alastrado para o norte, não conseguiu nunca superar a importância da economia pala tina ou anular a economia familiar.
Uruk permaneceu, desde o período conhecido como ]emdet-Nasr ou Uruk 111, e durante todo o período protodinástico, um dos mais importantes centros urbanos de cultura suméria. Aqui foram encontrados os textos mais antigos redigidos logo após a criação da escrita cuneiforme. Um texto do período palcobabilônico, redigido durante a primeira dinastia de Isin (2017-1794 a.C.') e conhecido como a Lista de Reissumérios, situa na época pós-diluvíana a primeira dinastia de Uruk, que é geralmente datada no período prato-dinástico 111 (ca. 2700-2500 a.c.). Como quinto rei desta dinastia, é mencionado um certo dgis.bil.ga.mes com um reinado de 127 anos. Trata-se, certamente, de Gilgamesh, herói da epopéia. Em um texto conhecido como Gilgarneah e Agga de Kish, ele é apresentado em luta contra Agga, filho de Enmebaragesi, rei de Kish (ca. 2700 a.Cv).
o MUNDO
SUMERlO E A EPOpEIA DE GILGAMESH (CONTINUAÇÃO)
Embora Enmebaragesi e Agga sejam, provavelmente, personagens históricos, a existência histórica de Gilgamesh é, contudo, muito questionada. A figura de Gilgamesh aparece na documentação hoje conhecida envolta em traços mitológicos, principalmente na epopéia que leva seu nome. A epopéia de Gilgamesh está, indubitavelmente, entre as obras mais importantes da literatura sumero-acadiana. O célebre assiriólogo alemão B. Landsberger considerava-a como a epopéia nacional babilônica. Para o conhecido especialista do mundo grego, G.5. Kirk, a epopéia de Gilgamesh é um poema extraordinário, que deve ser lido e estudado com cuidado por todos os estudiosos do mundo clássico. Pode-se, pois, dizer que, com esta obra, os babilônios criaram, muito antes da epopéia grega Ilíada, uma composição poética de inestimável valor literário e sem comparação em nenhuma outra cultura do Oriente Antigo. Tratase, sem dúvida, de uma obra literária de grande importância para todo homem de cultura. A epopéia de Gilgamesh não é, porém, uma obra de interesse puramente literário. Bem interpretada, ela é, certamente, uma fonte historiográfica de valor inestimável para o estudo das idéias e das concepçôes do homem da Baixa Mesopotâmia já desde o 3º milênio antes da nossa era, quando apareceram os primeiros textos sumérios da saga de Gilgamesh. A recensão mais completa e mais conhecida da epopéia de Gilgamesh foi encon-
trada na biblioteca do célebre rei neo-asstrío Assurbanipal (668-627 a.C.'), que colecionou em sua biblioteca cópias das grandes obras babilônícaso A recensão ninivita é, porém, anterior ao período neoassírio. Um catálogo de textos neo-asstríos, encontrado, também, na biblioteca de Assurbanipal, atribui esta obra ao sacerdote-exorcísta babilônico Sinleqiunnini, que teria vivido na Babilônia entre os séc. XIII-XII a.c., portanto, no período médiobabilônico, no fim 'da dominação cassita na Babilônia. As tábuas cuneiformes com o texto da recensão de Sinleqiunnini foram encontradas nas escavações inglesas de Henry Layard e de seu colaborador H. Rassan em TeU Kouyunjík, no lugar onde estava situada a antiga Nínive, a partir do ano de 1853, entre outras tábuas da biblioteca de
Sumérios conduzindo
um touro,
Detalhe do estandarte de Ur,
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Assurbanipal. O mundo só teve conhecimento dessa descoberta em 1872, quando, durante uma assembléia da Sociedade de Arqueologia Bíblica, G. Smith anunciou que tinha descoberto o relato caldeu do dilúvio. A metade de uma tábua cuneiforme decifrada por Smith continha, realmente, uma parte do rela-. to do dilúvio narrado na tábua XI da versão ninivita de Gilgamesh. Smith, entusiasmado pelos resultados obtidos, continuou seu árduo trabalho de decifração do texto de outras tábuas da biblioteca, e, pelo estudo dos colofões das tábuas examinadas, concluiu que a versão ninivita da epopéia devia conter doze tábuas. Em 1875, G. Smith e H. Rawlinson publicaram o volume N do The Cuneiform Inscriptions ofW estern Asia com a reconstrução das tábuas VI e XI da epopéia. Os tra-
balhos de reconstrução do texto da versão ninivita continuaram mesmo depois da morte de G. Smith. Assim, em 1884, P. Haupt editou a obra Das babylonische Nimrodepos com a cópia de todos os textos cuneiformes das 10 primeiras tábuas então conhecidas. Os trabalhos de decifração e publicação dos textos da epopéia continuaram e, em 1930, aparecia a edição considerada clássica de R. Carnpbell Thompson com a publicação de todos os fragmentos de Nínive já decifrados e.conservados no British Museum. No final do século passado, o assiriólogo B. Meissner comprou de um antiquário de Bagdá, para o museu de Berlim, a metade de uma tábua de argila, escrita com caracteres cuneiformes típicos do período páleo-babilônico (2000-1594 a.C.'). Meissner estudou o texto dessa tábua e identificou o material estudado como pertencendo à epopéia de Gilgamesh. A outra metade foi vendida, pelo mesmo antiquário, ao Prof. j.N. Loftus para o British Museum. O texto de Meissner foi publicado dois anos após a compra; o texto do British Museum, contudo, só foi publicado, por A.R. Millard, em 1964. Cons.tatou-se, então, que as duas partes constituíam uma mesma tábua proveniente da cidade babilônica de Sippar, um centro importante de culto ao deus solar Sarnas. Um outro antiquário iraquiano vendeu duas tábuas provenientes de' Uruk, uma ao museu da Pennsylvania e outra à Universidade Yale. A tábua da Pennsylvania, publicada em 1917 por St.
Landdon, consta de 6 colunas da I e II tábuas da epopéia; o texto da tábua de Yale, publicado em 1920 por M. jastrow e A.T. Clay, pertence à II e III tábuas de Gilgamesh. Em 1935, durante as escavações em Nerebtum (Ischkali) em um templo de Sarnas, foi encontrada uma tábua cuneíforme páleo-babilõriica, ídentífícada por Th. Bauer como correspondente à tábua V de Gilgamesh. Nas escavações de TeU Harmal foram encontrados, também, fragmentos das tábuas IV e V. Com isto, confirmou-se a antiga hipótese, já levantada por Smith, de que devia existir uma recensão pãleo-babilôriica da epopéia de Gilgamesh. Uma comparação entre os textos paleobabilônicos da epopéia e a recensão de Sinleqiunnini mostrou, contudo, que esta não' é uma simples tradução da versão páleo-babilônica. O sacerdote babilônico Sinleqiunnini parece ter sido, realmente, o autor de uma recensão independente da saga de Gilgamesh com elementos novos e características próprias. Desde cedo, os pesquisadores da epopéia de Gilgamesh indagaram-se, também, sobre a possibilidade da existência de uma recensão surnéria da epopéia. já em 1931, M. Witzel publicava a tradução de uma tábua cuneiforme com um poema sobre Gilgamesh e o Touro Celeste, um episódio assumido pela recensão ninivita. Foi, contudo, o conhecido sumerólogo S.N. Kramer quem mais contribuiu, com o seu incansável trabalho de pesquisa nos museus dos EUA, da Europa e da
(jILGAMESH DEANTUNES
FILHO
BASEADO NO POEMA tPICO BABILÓNICO "GILGAMESH" CENOGRAFIA E FIGURINOSJ.C. SERRONI ILUMINAÇÃO
DAVI DE BRITO
DIREÇÃOANTUNES
FILHO
Rei sumério em uma festa de celebraçdo. Detalhe do Estandarte de Ur.
ELENCO LUIS MELO -
Gilgamesh
COM LUIZ FURLANETTO Anu, Utnapishtim Homem-Escorpião, Cidadão de Uruk RAQUEL ANASTÁSIA Ninsun, Aruru, Cidadão de Uruk ROBERTO AUDIO Narrador, Cidadão de Uruk ROSANE
BONAPARTE Ishtar Mulher de Utnapishtim, Cidadão de Uruk SANDRA BABETO Prostituta Sagrada Narrador, Cidadão de Uruk E ADRIANO COSTA Caçador, Cidadão deUruk ALFREDO PENTEADO Enlil, Caçador (pai) Homem-Escorpião, Cidadão de Uruk BRUNO COSTA Enkidu EDSON MONTENEGRO Shamash, Cidadão de Uruk GERALDO MÁRIO Cidadão de Uruk LlANNA MATEUS Cidadão de Uruk
o MUNDO
SUMÉRIO E A EPOPÉIA DE GILGAMESH (FINAL)
Ásia, em que se Conservam tábuas cuneiformes de textos sumérios, para a decifração e o conhecimento dos escritos sumérios relativos à saga de Gilgamesh. Pelo que se conhece hoje do corpo de textos sumérios publicados, pode-se, certamente, concluir, com boa margem de segurança, que a literatura suméria não conheceu uma epopéia de Gilgamesh, mas, apenas, vários poemas menores independentes sobre o herói de Uruk. Alguns temas desses poemas sumérios foram incorporados à epopéia clássica. Kramer identificou, pelo menos, 5 poemas que tratam de temas relacionados com Gilgamesh:
Gilgamesh e Agga, rei de Kish b) Gilgamesh e Humbaba c) Gilgamesh e o Touro Celeste, d) Gilgamesh e a Árvore Huluppu e) A Morte de Gilgamesh. a)
A desco berta de fragmentos da epopéia de Gilgamesh em Megiddo, na Palestina, e em Emar, na Síria, mostra bem a força de penetração e a aceitação da epopéia em regiões fora da Baixa Mesopotâmia. Mesmo fora do murido sernita, a influência da saga do herói Gilgamesh parece ter sido considerável, como comprovam as versões hitita,
Modelo de uma casa mostrando um carneiro no topo do telhado. Proveniente do norte de Mesopotâmia.
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elamita e hurrita da epopeia de Gilgamesh. Ainda hoje, o interesse pela figura apaíxonante de Gilgamesh e pela mensagem sempre atual da epopéia continua vivo. As inúmeras novas edições e traduções da epopéia nas línguas modernas, publicadas nos últimos anos, são, sem dúvida, a melhor comprovação deste interesse sempre renovado pela imortal obra literária, que a antiga cultura surnerobabilõnica legou à nossa civilização.
PROF. EMANUEL BOUZON * ESPECIALISTA EM ASSIRIOLOGIA E HISTÓRIA ANTIGA
- PUC/RIO
A Tabuinha IX da epopéia de Gilgamés, "A Lousa do Dilúvio"
Um curto prólogo, com uma descrição de Gílgamesh, rei de Uruk, "dois terços deus e um terço homem". O poema começa com as queixas do povo pela tirania exercida pelo rei. Estes lamentos são levados ao deus Anu, que pede a deusa Aruru, que havia criado Gilgamesh, que crie outro ser igual para enfrentá-lo e a cidade de Uruk reencontrar a paz. Aruru cria, a partir da argila, um selvagem, Enkidu, que iguala-se em força a Gilgamesh e vive com ós animais, protegendo-os das armadilhas dos caçadores. Um dia, Enkidu destrói as armadilhas de um caçador, que queixa-se a seu pai e, mais tarde, ao próprio Gilgamesh. Gilgamesh envia uma prostituta sagrada para seduzir Enkidu e convencê-lo a ir até Uruk. Enkidu, seduzido, é logo rejeitado pelos animais. A prostituta lhe fala da existência de Gilgamesh e ele aceita ir até Uruk. Por sua vez, Gilgamesh já sabia da existência de Enkidu através de dois sonhos, que haviam sido interpretados por sua mãe, a deusa Ninsun. Ambos os sonhos mostravam que Enkidu estava destinado a ser seu companheiro, não seu rival. E então e então
Ele será seduzido E então e então Ela será possuída. Gilgamesh
Descobre teus seios Que ele possua tua beleza Desnuda tua juventude Que ele penetre teu corpo Ensina ao grande animal o prazer de uma mulher. Caçador
Esta tábua narra a adaptação de Enkidu à vida urbana, à civilização.
No caminho em .direção a Uruk, Enkidu encontra um homem que lhe revela as atitudes tirânicas de Gilgamesh contra seu povo; Enkidu, impressionado, deseja enfrentar Gilgamesh e conter seus desrnandos. Quando Enkidu chega a Uruk, encontra Gilgamesh e os dois enfrentam-se numa luta. De repente, a fúria se acalma e nasce aí uma forte amizade entre os dois. Leva-me ao sábio e poderoso Gilgamesh Touro selvagem que a todos domina Eu o desafiarei Eu o provocarei Gritarei em Uruk das grandes muralhas: Sou o mais forte Posso com minha força tudo mudar Tremenda é a energia que das montanhas vem! Enkidu
Durante a jornada em direção ao Bosque de Cedros, Gilgamesh narra a Enkidu uma série de sonhos que são interpretados como favoráveis à vitória. Gilgamesh invoca novamente o deus Shamash pedindo-lhe proteção. Logo depois, Enkidu fica doente, talvez como castigo por não ter demonstrado interesse em acompanhar Gilgamesh na expedição contra Humbaba. Gilgamesh consegue reanimá-lo e os dois partem resolutos em direção ao Bosque de Cedros. A imolação e o sacrifício não são para mim! Não vou descer na barca dos mortos rio abaixo Meu povo não vai conhecer a desolação A pira fúnebre não será acesa em minha casa Só preciso da tua ajuda Dá-me tua ajuda hoje Que eu te darei ajuda amanhã Queima a indecisão, se teu coração está indeciso! Queima o medo, se teu coração está com medo! Queima o terror, se teu coração está com terror! Vamos, armas firmes nas mãos e atacar e atacar! Quem foje da luta nunca mais dormirá em paz! Gilgamesh revela a Enkidu seu projeto de conquistar o Bosque de Cedros, a Terra da Vida, e derrotar seu temido guardião, Humbaba. Enkidu, aflito e desanimado, alerta Gilgamesh dos perigos de tal empreendimento, más este convence-o a acompanhá10. Os conselheiros de Uruk também tentam persuadir Gilgamesh a desistir, mas ele decide partire pede proteção ao deus Shamash e à sua mãe Ninsun.
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Gilgamesh
Ao chegarem ao Bosque de Cedros, Enkidu e Gilgamesh admiram maravilhados o portão de entrada. Eles preparam o ataque e lançam-se contra Humbaba. Enkidu dá o golpe mortal e o Bosque chora a morte de seu guardião. Vitoriosos, os dois cortam alguns cedros e retornam a Uruk.
Qual dos heróis é o mais glorioso dos heróis? Qual dos homens é o mais notável dos homens? Gilgamesh
Dos heróis, Gilgamesh é o mais glorioso dos heróis! Dos homens, Gilgamesh é o mais notável dos homens! Povo de Vruk
,,;:"Gilgamesh veste-se com mantos reais e a deusa Ishtar é atraída por sua beleza. Ela tenta seduzi-lo e corivencê-lo a ser seu amante com inúmeras promessas de vantagens que ele teria. Gilgamesh, consciente do destino infeliz que Ishtar havia decretado a seus antigos amantes, rejeita-a, provocando sua cólera. Ishtar pede ao deus Anu, seu pai, que crie e envie à Terra o Touro Celestial para destruir Uruk, como castigo pela recusa de Gilgamesh. Centenas de .hornens são mortos, mas Enkidu consegue dominar e matar o Touro, provocando ainda mais Ishtar ao lançar contra ela despojos do animal. Com os cornos do Touro, Gilgamesh ordena a confecção de oferendas para seu pai e deus pessoal, Lugalbanda. . Nessa noite, Enkidu tem um sonho.
Origem e desenvolvimento do sistema de escrita cuneiforme. Uma placa que mostra as formas de dezoito caracteres representativos de cerca de3.000a.c. até cerca de 600 a. C.
Enkidu conta a Gilgamesh que, através de um sonho, os deuses o condenaram pela morte de Humbaba e do Touro Celestial, e pelo insulto à deusa Ishtar, Enkidu fica enfermo e, após 12 dias, morre.
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Houve época em que lutei por ti Houve época em que lutei pela água da vida Agora, nada mais tem sentido tudo é vazio Ah! Como invejo aqueles que morrem no campo de batalha! Mas eu mereço, mereço morrer humilhado, longe da luta Vacilei tantas e tantas vezes na vida! Enkidu
Gilgamesh chora desesperado a morte de seu amigo e ordena a construção de uma estátua em homenagem a Enkidu.
o destino
cruel conseguiu nos separar Oh! Meu querido irmão, meu mais querido amigo, Que sono é este que te envolveu? Mas já estás dissolvido no escuro E não podes mais me ouvir
o destino humano é fatal: Eu também, coberto de terra, pó serei! Gilgamesh 28
Estatuetas de terracota encontradas no átrio tto templo do deus Abu em Tell Asmar
Diante do cadáver de Enkidu, Gilgamcsh lamenta-se do terrível destino que também o aguarda. Tomado de temor e inconformado, decide partir em busca da imortalidade, em busca de Utnapishtim, seu antepassado, a quem os deuses concederam a vida eterna. No caminho, Gilgamesh encontra dois homens-escorpiões, guardiães da Porta do Sol, que o advertem de que nenhum mortal jamais havia atravessado aquele caminho antes. Gilgamesh ousadamente abriu e passou pelo portão do mundo Em busca do conhecimento Em busca da imortalidade Em busca de Utnapishtim.
Gilgamesh continua sua peregrinação; finalmente encontra 5hamash e pede-lhe ajuda para a travessia das "águas da morte'< Convencido, 5hamash orienta Gilgamesh a procurar Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim. Urshanabi co n co r d a em ir até Utnapishtim levando Gilgamesh, o qual decepciona-se quando este revela que a imortalidade lhe havia sido decretada pelos deuses, e que tal não seria o destino de Gilgamesh. Gilgamesh então correu através do deserto Correu depois pelos campos e pastos Numa longa jornada em busca de Utnapishtim, o distante Utnapishtim foi o único sobrevivente Salvo pelos deuses do dilúvio Utnapishtim [oi o único sobrevivente Que os deuses acolheram e instalaram na terra de Dilmun Somente a ele, entre todos os homens, os deuses concederam a vida eterna.
Utnapishtim conta a Gilgamesh que, graças ao deus Ea, foi o único mortal a escapar do Dilúvio enviado pelos deuses para destruir a Humanidade. Derrotado, Gilgamesh decide voltar, mas Utnapishtim e sua mulher lhe revelam o segredo de uma planta milagrosa, capaz de proporcionar a eterna juventude. Gilgamesh consegue resgatá-Ia do fundo do mar, mas, num descuido, uma serpente rouba-lhe a planta. Lamentando-se de sua desgraça, Gilgamesh conscientiza-se da inutilidade da sua viagem e decide voltar para Uruk. Por seis dias e seis noites sopraram os ventos A tempestade e o dilúvio explodiam em fúria Como dois exércitos em guerra Na alvorada do sétimo dia, o temporal vindo do sul amainou E o dilúvio se detive e os mares se acalmaram Eu percebi que havia um grande silêncio no ar E que tudo estava quieto E que ninguém, nenhum ser humano, poderia estar vivo Ao lodo, ao barro haviam retornado Pois as águas haviam de fato coberto o mundo inteiro. Utnapishtim
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Embora seja incompatível com eventos descritos antes, esta tábua foi acrescentada posteriormente e não pertence à versão original da epopéia clássica. Contudo, a versão riiriivita informa que Gilgamesh derruba uma árvore que servia de morada a uma serpente e a uma águia, e cuja madeira entrega a Ishtar jInana para que construa um trono e um leito; mas a deusa muda de opinião e, com aquela madeira, fabrica para Gilgamesh um instrumento musical (um tambor e sua baqueta). Sem se conhecer bem as causas, tambor e baqueta caem no Mundo Inferior. Gilgamesh desespera-se diante desse acontecimento, mas Enkidu (que em tábuas anteriores havia morrido!) se oferece para ir busca-los. Gilgamesh conta a seu amigo o que é preciso fazer para não irritar os espíritos do mundo dos mortos, conselhos que, ao não serem cumpridos, acarretam a Enkidu um grave problema: não poder retornar ao mundo dos vivos. Gilgamesh vai de deus em deus implorando ajuda, até que Nergal, o deus do Mundo Inferior, permite ao espírito de Enkidu sair por um buraco aberto na terra durante uns breves instantes para conversar com seu amigo. Ambos os heróis podem assim se falar. Gilgamesh pergunta a Enkidu a condição dos mortos no mundo subterrãneo. Enkidu faz uma triste descrição para Gilgamesh.
Só os deuses vivem eternamente ao lado do glorioso Shamash Nós, homens, pobres mortais Temos nossos dias bem contados Só podemos falar vento Só podemos agir vento Só podemos empreender ventos! Por mais alto que seja um homem Ele nunca alcançará o céu Por mais compridos que sejam seus bi Ele nunca abraçará a Terra.
N
os níveis arcaicos da cultura, a religião mantém a "abertura" para um Mundo sobre-humano, o mundo dos valores axíológicos. Esses valores são "transcendentes", tendo sido revelados pelos Entes Divinos ou Ancestrais míticos. Constituem, portanto, valores absolutos, paradigmas de' todas as atividades
humanas. Esses modelos são veiculados pelos mitos, aos quais compete, acima de tudo, despertar e manter a consciência de um outro mundo, do além, - mundo divino ou mundo dos Ancestrais. Esse "outro mundo" representa um plano sobre-humano, "transcendente", o plano das realidades absolutas. É através da experiência do sagrado, do encontro com uma realidade transumana, que nasce a idéia de que alguma coisa existe realmente, de que existem valores absolutos, capazes de guiar o homem e de conferir uma significação à existência humana. É através da experiência do sagrado, portanto, que despontam as idéias de realidade, verdade e significação, que serão ulteriormente elaboradas e sistematizadas pelas especulações metafísicas. ( ...)
Lousa de pedra calcá ria, encimada pela cabeça de um demônio, utilizada para
afastar os espíritos do mal, vários dos quais aparecem no outro lado. Os registros superiores mostram símbolos de deuses celestiais e demônios ameaçando o homem doente no terceiro registro. O inferno fica na parte de baixo.
A "realidade" se desvenda e se deixa construir a partir de um nível "transcendente", mas de um "transcendente" que pode ser vivido ritualmente e que acaba por fazer parte integrante da vida humana. Esse mundo "transcendente" dos Deuses, dos Heróis e dos Ancestrais míticos é acessível porque o homem arcaico não aceita a irreversibilidade do Tempo sagrado do mito. Torna o homem coritemporãneo das façanhas que os Deuses efetuaram in illo tempore. A revolta contra a irreversibilidade do Tempo ajuda o homem a "construir a realidade" e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar o seu mundo. A imitação dos gestos paradigmáticos dos Deuses, dos Heróis e Ancestrais rníticos não se traduz numa "eterna repetição da mesma coisa", numa total imobilidade cultural. A Etnologia não conhece um único povo que não se tenha modificado no curso dos tempos, que não tenha tido uma "história". A primeira vista, o homem das sociedades arcaicas parece repetir indefinidamente o mesmo gesto arquetípico. Na realidade, ele conquista infatigavelmente o mundo, organiza-o, transforma a paisagem natural em meio cultural. Graças ao modelo exemplar revelado pelo mito cosmogônico, o homem se torna, por sua vez, criador. Embora pareçam destinados a paralisar a iniciativa humana, por se apresentarem como modelos intangíveis, os mitos, na realidade, incitam o
<'Ohomem pól1e chegar a ser imortal ao consctennznr-se de suas reais possibÜidades de realizar feitos e:obras totalmente perfeitas, bem executadas,
tomando
a escala humana como homem a criar, e abrem continuamente novas perspectivas para o seu espírito inventivo. O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já [oi feito, e ajudao a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu empreendimento. ( ...) O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente vive num mundo "aberto", embora "cifrado" e misterioso. O mundo "fala" ao homem e, para compreender e~sa linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os símbolos. ( ... ) O homem não se encontra num mundo inerte e opaco e, por outro lado, ao decifrar a linguagem do Mundo, ele se confronta com o mistério. Pois a "Natureza" desvenda e camufla, simultaneamente, o "sobrenatural", e é nisso que reside para o homem arcaico o mistério fundamental e írredutível do Mundo. ( ...) O mito, em si mesmo, não é uma garantia de "bondade" nem de moral. Sua função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao Mundo e à existência humana. Graças ao mito, como já foi dito, despontam lentamente as idéias
.
base de orientação. .• A faf!lapqr .,-
tais feitos
.
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há~de trãnsánder,
" nenhuma sem
dúvida,
própria descendência, ou seja, a mem~iia. se projeta sobre os filhos e,~a partir-deles e seus descendentes, à histõria.
o homem
poderá alcançar
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mas não a possibilidade f
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de "realidade", de "valor", de "transcendêncía". Graças ao mito, o Mundo pode ser discernido como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo. Ao narrar como as coisas foram feitas, os mitos revelam por quem e por que o foram, e quais circunstâncias. Todas essas "revelações" engajam o homem mais ou menos diretamente, pois constituem uma "história sagrada". ( ...)
Os mitos, em suma, recordam continuamente que eventos grandiosos tiveram lugar sobre a Terra, e que esse "passado glorioso" é em parte recuperável. A imitação dos gestos paradigmáticos
tem igualmente um aspecto positivo: o rito força o homem a transcender os seus limites, obriga-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles. Direta ou indiretamente, o mito "eleva" o homem. ( ...) As experiências religiosas privilegiadas, quando são comunicadas através de um enredo fantástico e impressionante, conseguem impor a toda a comunidade ·os modelos ou as fontes de inspiração. Nas socie- dades arcaiem todas as
graças às experiências criadoras de alguns indivíduos. Mas, como a cultura arcaica gravita em torno dos mitos, e como estes últimos são continuamente reinterpretados e aprofundados pelos especialistas do sagrado, a sociedade, em seu conjunto, é conduzida para os valores e as significações descobertas e veiculadas por esses poucos indivíduos. Nesse sentido, o mito ajuda ohomem a ultrapassar os seus próprios limites e condicionamentos, e incita-o a elevarse para "onde estão os maiores". Trechos do livro "Mito e Realidade" de Mircea Eliade Editora Perspectiva
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Anel de arreio, em ouro e prata. Proveniente de Ur.
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ANU -o AN sumério; pai dos deuses, deus do firmamento e deus da cidade de Uruk. Segundo os sumérios, quando os grandes deuses estabeleceram as respectivas responsabilidades sobre o mundo, a Anu atribuiu-se o céu. SHAMASH - Correspondente ao deus sumério UTU. O sol, juiz, legislador e intérprete dos sonhos para os surnéríos; para os semitas, é um guerreiro vitorioso, o deus da sabedoria, o filho de SIN e um deus "mais poderoso do que seu pai". ISHTAR - A INANA suméria. Deusa do amor e da fertilidade, mas também da guerra e da morte; era chamada a rainha do céu. Filha de Anu, com quem divide a proteção da cidade de Uruk. NINSUN - Divindade feminina. Segundo 'a tradição surnéria, mãe de Gilgamesh e mulher do divino rei de Uruk, Lugalbanda. Também chamadaRIMAT-NINSUN, a vaca selvagem. ENLIL - Deus da terra, do vento e do ar; essencialmente Espírito. Filho de Anu e conselheiro dos grandes deuses. Foi gradualmente ganhando mais importância no panteão sumério, passando a proferir os destinos, como sinal de sua autoridade. Foi responsável 36
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pelo envio do Dilúvio para destruir a humanidade.
ADAD - Deus da chuva e da tempestade.
ARURU - Deusa da criação; criou Enkidu da argila à imagem de Anu.
SUMUQAN - Deus do gado.
EA - O ENKI sumerio; deus dos rios, da sabedoria, patrono das artes e um dos criadores da humanidade, de quem é protetor. Revelou, através de um sonho, a proximidade do Dilúvio a Utnapishtim e aconselhou-o a construir o barco com que se salvou, à sua família, e a cada par de seres vivos. ERESHKIGAL- A Rainha do mundo inferior, também chamada de IRKALLA.Deusa do Inferno e das Trevas, segundo a cosmogonia suméria, ela foi raptada para o mundo inferior após a separação do céu e da terra. Tem uma filha, Ninazu.
BELIT-SHERI - Escriba dos deuses do mundo inferior. ....
NERGAL - Deus do mundo inferior, algumas vezes descrito como marido de Ereshkigal. É o tema central de um poema acadiano que descreve seu traslado do céu para o mundo inferior. A ele atribuise a disseminação das pragas. TAMMUZ - O DUMUZI sumério, o deus da vegetação. Foi marido e vítima de Ishtar, responsável pela sua ida ao mundo inferior, por causa de seu orgulho e para que servisse de garantia do retorno seguro da deusa ao céu.
AYA - A aurora, esposa do deus-sol Shamash.
ANUNNAKI - Em geral, deuses do mundo inferior; eram os juízes dos mortos e filhos de Anu.
IRNINI - Esposa do deus Anu, provavelmente uma deusa da guerra associada a Ishtar.
MAMMETUM- Deusa ancestral responsável pelos destinos.
LUGALBANDA- Divino pai de Gilgamesh. Terceiro rei da dinastia pós-diluviana de Uruk, é deus, pastor e herói de um ciclo sumério de poemas.
NINURTA - Forma posterior do deus Ningirsu. Deus das nascentes e da irrigação, era também guerreiro e deus da guerra, arauto e o vento sul. Segundo um poema, no passado, ele represou as águas amargas do mundo inferior e venceu vários monstros.
SIN - O NANNA surnerro, a lua. Principal divindade astral suméria.
ENNUGI dos canais.
Divino
inspetor
SHULLATE HANISH - Arautos divinos da tempestade e do mau-tempo. NINGAL - Esposa do deuslua e mãe do sol. NAMTAR - Deus da peste, da ruína, o destino em seu aspecto funesto, representado como um demônio do mundo inferior e também como o mensageiro e principal ministro de Ereshkigal.
LOCALIDADES URUK - A Erech bíblica, atualmente conhecida como Warka, situada ao sul da Babilôrria, entre Fara (Shurupak) e Ur. As escavaçôes mostram que, desde muito cedo, Uruk já era uma cidade importante, possuindo grandes templos consagrados aos deuses Anu e Ishtar. Tradicionalmente, a cidade era rival e inimiga de Kish e, após o Dilúvio, tornou-se a sede de uma dinastia de reis, entre os quais incluíase Gilgamesh. DILMUN -O paraíso sumério, talvez o Golfo Pérsico, algumas vezes descrito como "o lugar onde nasce o sol" e "a Terra-dos Vivos"; o cenário de um mito sumério da criação, e o lugar para onde Ziusudra/ Utnapishtim, o herói deificado da versão suméria do Dilúvio, foi levado para viver eternamente. MASHU - A palavra significa "gêmeos" na língua acadiana. Uma montanha com dois picos onde o sol se põe ao cair da noite e de onde ele torna a aparecer na alvorada. Algumas vezes identificada como Líbano e Antilíbano. KISH - Cidade da Mesopotâmia Central, cujo rei foi Agga.
Cabeça de touro de madeira polícromada, adornando um ínstrumento musícal. Encontrada na caíxa de ressonilncía de uma harpa da raínha Shubad de Ur.
SHURUPAK - A moderna Fara, que fica a noroeste de Uruk; uma das cidades mais antigas da Mesopotâmia e uma das cinco apontadas pelos sumérios como tendo existido antes do Dilúvio.
NISIR - Este nome provavelmente significa "Montanha da Salvação"; o topônimo é algumas vezes identificado com a cordilheira Pir Zab, ou com o Ararat, região montanhosa bíblica ao norte do Lago Van. ERIDU - Cidade da Mesopotâmia Meridional, sede de culto do deus Enkr/Ea. NIPPUR - Cidade da Mesopotâmia Central, sede de culto do deus Enlil. ANSHAN - Um dos distritos do Elam, no sudoeste da Pérsia; era provavelmente a fonte de suprimento de madeira para a fabricação de arcos. Gilgamesh tem um "arco de Anshan".
A n
Arabische
Wüste o I
I<m
Localidades da Antiga Mesopotdmia
PERSONAGENS GILGAMESH - O herói da epopéia. Quinto rei de Uruk depois do Dilúvio. Ficou famoso como grande construtor e como juiz dos mortos, do mundo inferior, a quem as pessoas dirigiam suas orações e que era invocado através de encantamentos e rituais. Seu perfil psicológico vai sendo traçado detalhadamente ao longo da narrativa. Às vezes tirânico, outras voluptuoso, colérico; enfim, aterrorizado diante da morte e também resignado pela crua realidade da natureza humana. 38
ENKIDU - Moldado em argila pela deusa da criaçâo Aruru, segundo a imagem e essência do deus do céu Anu, e de Ninurta, o deus da guerra. Enkidu, o companheiro de Gilgamesh, representa o homem selvagem e natural, que alcança, graças ao amor de uma prostituta sagrada, o estágio da civilizaçâo. Por terríveis ofensas à deusa Ishtar, é castigado com uma cruel enfermidade da qual finalmente morre.
UTNAPISHTIM - Utnapishtim para os antigos babilõnios, ZIUSUDRA para os sumérios. Aparece em outros poemas sumérios como sábio reisacerdote de Shurupak e filho de Ubar-Tutu, último rei antes do Dilúvio. Seu nome, em geral, é traduzido por "Aquele que viu a vida". Era o protegido do deus Ea, com a conivência de quem sobreviveu ao Dilúvio; depois, foi levado pelos deuses para viver para sempre "na foz dos rios", segundo fontes sumérias, em Dilmun, e recebeu o epíteto de "o Longínquo". PROSTITUTA SAGRADA Enviada por Gilgamesh, a esta mulher cabe a tarefa de elevar Enkidu do estado selvagem à civilização. SETE SÁBIOS - Os sábios que levaram a civilização às sete cidades mais antigas da Mesopotâmia.
FIGURAS MITICAS I
Não existe permanência Por acaso construímos nossas casas para sempre? Para sempre selamos um contrato? Irmãos mantêm unida uma herança para sempre Ou o período de cheia de um rio dura para todo o sempre? A crisálida da libélula solta sua larva E vê o sol em toda sua glória somente por um dia
Tudo passa, nada permanece As feições de um homem adormecido são diferentes das de um homem morto? Ou existe alguma diferença entre o servidor e seu amo Depois que ambos não vivem mais? (2::ando os Annunaki, HUMBABA - Sentinela do bosque de cedros que resiste a Gilgamesh e é morto por ele e por Enkidu. Uma divindade da natureza, talvez um deus anatólio, elamita ou sírio. TOURO CELESTE - Criado pelo deus Anu para satisfazer a vingança de Ishtar contra Gilgamesh. URSHANABI - Barqueiro de Utnapishtim, atravessa diariamente as águas da morte que dividem o jardim do sol do paraíso onde Utnapishtim vive eternamente.
juizes do mundo inferior,
Estão reunidos com a deusa Mammetum,
a mãe dos destinos,
Juntos eles decidem a sorte dos homens Mas, o dia da -morte de cada um, Eles não revelam. O rei se deitou Não despertará mais! Aquele que venceu o mal Não despertará mais! Aquele que tinha o braço forte e decidido Não despertará mais! Aquele que se [oi e na montanha
está
Não despertará mais! Aquele que jaz em seu leito fatal
HOMENS-ESCORPIÕES - Sentinelas dos montes Mashu, guardam a porta que atravessa diariamente o deus-sol Shamash.
Não despertará mais!
PUZUR-AMURRI - O timoneiro de Utnapishtim durante o Dilúvio.
Nenhum deixará às gerações futuras
Uma luz iluminará Pois na humanidade, Um monumento
Gilgamesh de todos que se conhece,
que se compare ao seu.
Agradttimmtos Emanud
Bóuzon / Mariangela
Fortuna / Lísete Abi-Ramia
Alva de Lima / Jacó Ginsburg (Editora Perspectiva) / Editora Martins Fontes / Runner - Health and Fitness / Fernando Lorrnz / Ordep J Trindade Madeira / Trina Krispin / Ricardo Riduer / Ivaldo Bertazzo / Ornar Naboulsi / Ibraim GabrieI Sowmy / Raberto Muylaert / Prof Roque Enrique
Ismerio
Severino (Sociedade Brasileira de Tai-Chi-Chuan)
/ Stbasliélo Milaré.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman Diretor do Departamento Regional: Danilo Santos de Miranda Gerente do SESC Consolação:José Menc:es Neto Gerente Adjunto: Mario Daminelli GILGAMESH Assístente de Direção: Beth Accioly I Cenografia e Figurinos:j.C. Serroni I Assistentes de Cmografia e Figurinos: Aby Cohen, Magé Viola, Muna Hauache e Telumi Helen IAdereços Cênicos, Pintura de Arte e Textumação:Núcleo de Cenografia do CPT-95, Trek Produções Anisticas, Drop Produções Anísticas, Aby Cohen, Adriana Yazbek, Aloisio Sales de Souza, Carolina Marques da Costa, Cassio Ricardo de Castro,lvan Gil de Oliveira, João Neto, Magé Viola, Maria Alice C. Gonzales, Mary de Fátima Faria, Muna Hauache, Mylene Goudet, Polise Moreira de Marchi, Roberta Paoliní e Telumi Helen I Costureira: Cida de Paula I Alfaiate: Washington L Ferreira I Efeitos Especiais - Pirotecnia: Piro An - Luis Tarandach lSerralheiro: Sebasüão Reis I Marceneiros: Aldivino José Maranini e Hudson Medeiros I Cmotécnico: Oswaldo Lisboa I Maqninistas de Montagem: Geraldo Servo de Almeida I Maqninista Operador: Aníbal Marques "Pelé" I Duminação: Davi de Brito IAssistente de Duminação: Hudson Rodrigues Gouveia I Operação de Lus: Davi de Bríto e Hudson Rodrigues Gouveia I Montagem de Lw:: Núcleo de Iluminação do CPT - SESC I Trilha Sonora e Operação de Lw:: Raul Teixeira I Estúdio de Som: Centro Experimental de Música do SESC I Criação Eletroacústica e Projeção: José Augusto Mannís/ Pesquisa Mnsical, Preparação de VO% e de Corpo: Antunes Filho I Assístentes de Interpretação: Sandra Babeto e Roberto Audio/ProP de Dança do Ventre: Fátima Fontes IProP de Tai-chi-chuan: Alice Hayashibara IProf. de Voga: Julio Femandes I Condicionamento Físico (Luis Melo): Claudio Assencio Rocha I Técnica Ctrcense: Marcos André Moissopoulos I Prodnção: Mário Damineli, Adilson de Abreu, Arlindo Tomino, Célia Moreira dos Santos, Gilberto de Almeida, Helena Yoshiko Matsui, Katia Verissimo Sato Acceto, Lídia Federszyn Parisi, Maria Tereza La Macchia, Marimar Chimenes Gil, Marlene Alves de Almeida, Sérgio Pinto, Silvestre Garcia jünior I Produção Execntiva e Divnlgação: Beth Accioly I Direção Geral: Antunes Filho. Cartas e Catálogo Superintendência Técnico-Social- Coordenação:jesus Vazquez Pereira I Produção Gráfica: Eron Silva I Equipe Cristlna Miras, Marilu Donadelli, Claudia Rezende, Cristina Tobias, Waldemar Bueno. I Arte: Criação dej.C.Serroni e Telumi Helen I Pesquisa e Seleção de Textos: Beth Accíoly. SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO I Administração Regional no Estado de São Paulo I Av. Paulista, 119 - Tel.: 284-2111- CEP 01311·903 - FAX. 288-6206 - São Paulo- SP SESC Consolação I Rua Dr. Vila Nova, 245 - Tel.: 256-2322 - CEP 01222-020 - FAX. 256-2223 - São Paulo - SP
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