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ARTIGO

Um Olhar de Cuidado para quem Carrega o Brasil, Mara Gabrilli

ENTREVISTA

Walter Firmo

Envelhecemos

Envelhecer inédita

Elisa Lucinda

Sesc São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991

03331-000 São Paulo - SP

Tel.: +55 11 2607-8000

sescsp.org.br

a

ESTUDOS SOBRE ENVELHECIMENTO

Produção técnica editada pelo Sesc – Serviço Social do Comércio

Sesc – Serviço Social do Comércio

Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do conselho Regional

Abram Szajman

Diretor do Departamento Regional

Luiz Deoclecio Massaro Galina

Superintendentes

Técnico-social

Rosana Paulo da Cunha

Comunicação Social

Ricardo Gentil

Administração

Jackson Andrade de Matos

Assessoria Técnica e de Planejamento

Marta Raquel Colabone

Assessoria Jurídica

Carla Bertucci Barbieri

Gerentes

Estudos e Programas Sociais Flávia Andréa Carvalho

Artes Gráficas Rogério Ianelli

Comissão Editorial

André Dias e Rosângela Barbalacco (coordenação), André Venancio da Silva, Adriana Reis Paulics, Adriano Alves Pinto Campos, Danilo Cymrot, Fabrício Leonardo

Ribeiro, Fernanda Andrade Fava, Flavia Rejane

Prando, Gabriela da Silva Neves, Gustavo Nogueira de Paula, Jair de Souza Moreira

Júnior, Juliana Viana Barbosa, Octávio Weber Neto

Editoração e Produção Digital Lourdes Teixeira Benedan

Fotografias capa, pág. 5, 8, 102, 104, 105, 107, 108 e 109: Walter Firmo/IMS; pág. 13: Jaciara Aires; pág. 29 e 31, trabalho de campo, maio 2023; pág. 43 e 44: banco de imagens da equipe do Sesc-SC; pág. 94, 97, 98, 100, 111 e 113: Ricardo Ferreira

Revisão Samantha Arana

Projeto Gráfico Marcio Freitas e Renato Essenfelder

Artigos para publicação podem ser enviados para avaliação da comissão editorial no seguinte endereço: revistamais60@sescsp.org.br

Mais 60: estudos sobre envelhecimento / Edição do Serviço Social do Comércio. –São Paulo: Sesc São Paulo, v. 34, n. 87, Abril 2024 –. Quadrimestral.

ISSN 2358-6362

Continuação de A Terceira Idade: Estudos sobre Envelhecimento, ano 1, n. 1, set. 19882014. ISSN 1676-0336.

1. Gerontologia. 2. Terceira idade. 3. Idosos. 4. Envelhecimento. 4. Periódico. I. Título. II. Subtítulo. III. Serviço Social do Comércio. CDD 362.604

A revista Mais 60 – Estudos sobre Envelhecimento é uma publicação do Trabalho Social com Pessoas Idosas (TSPI) do Sesc São Paulo. Voltada aos aspectos sociais, culturais e educacionais que impactam a qualidade e os diferentes modos do viver, promove reflexões, experiências, conhecimentos e inspirações que contribuem para uma longevidade fundamentada na dignidade, respeito, participação, saúde física e mental. Com conteúdos diversos, estabelece conexões com variadas áreas do saber, relacionadas à ciência, educação, arte, sociedade, diversidade e cidadania. A Mais 60 é produzida pela equipe do Sesc São Paulo e, a cada edição, conta com a participação de pessoas especializadas, profissionais de diversos campos e colaboradores convidados. Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores.

Walter Firmo

Fotojornalista, 86 anos, 70 anos de carreira

sumário

páginas de 8 a 13

Destaque da edição

Um Olhar de Cuidado para Quem Carrega o Brasil por Mara Gabrilli

páginas de 14 a 35

Um Estudo sobre Cuidadoras Familiares de Pessoas Idosas por Priscila Vieira, Florbela Ribeiro e Juliana Shiraishi

páginas de 36 a 54

Programa Mente Ativa do Sesc Santa Catarina Confirma Evidências sobre a Importância da Estimulação Cognitiva para o Envelhecimento

Ativo e Autônomo por André Junqueira Xavier e Cristiani Jacobus Vieira

páginas de 55 a 71

Envelhecimento, Família e Cuidados: o que Nos Revelam os Dados da Pesquisa Perseu Abramo/SescSP Sobre a Capacidade de Cuidar por Solange Maria Teixeira

páginas de 72 a 93

A Relação dos Municípios Gaúchos com as Instituições de Longa Permanência para Idosos por Priscilla Lunardelli, Elisete Ribeiro Lopes e Priscila Nunes

páginas de 94 a 101

Entrevista: Walter Firmo

páginas de 102 a 109

Fotografia: Walter Firmo

páginas de 110 a 119

Envelhecemos: Envelhecer Inédita por Elisa Lucinda

páginas de 120 a 129

Painel de Experiência: Especial América Latina. Cuidados e o Programa Nacional de Atenção ao Idoso (PNAAM) em Cuba por Eduardo Alfredo Triana Alvarez e Teresa Reyes Camejo

páginas de 130 a 132

Resenha: O que eu Gostaria que as Pessoas

Soubessem sobre Demência por Valmir Moratelli

CAPA
Pixinguinha, RJ, 1967

A Importância de Cuidar de Quem Cuida

•O advento da pandemia de covid-19, no já histórico ano de 2020, chamou a atenção do mundo para as práticas do cuidar, em perspectiva ampliada. Desde então, ficou mais do que evidenciada a importância dos cuidados diários para o bem-estar e a sobrevivência humana. Exercidos na maior parte dos casos por mulheres, essas diligências capitais são injustamente invisibilizadas, situação que a crise sanitária – em que pese suas agruras – concorreu para escancarar. Como parte dos esforços de reversão desse quadro, há que se olhar não somente para as necessidades de quem precisa de cuidados, mas também para as condições de quem os fornece, cujos direitos são muitas vezes negligenciados. O trabalho de cuidar pode ser remunerado, como no caso dos cuidadores profissionais, ou não pago, como no das mães e pais dedicados à criação de seus filhos, o que também se aplica quando pessoas idosas e pessoas com deficiência requerem cuidados familiares.

Além dos cuidados informais ou remunerados, é mister observar que o Estado também tem responsabilidades no suporte àqueles que carecem de auxílios específicos para a manutenção da qualidade de vida. O crescimento demográfico da parcela idosa da população tem se mostrado um desafio para um número cada vez maior de famílias e para a sociedade como um todo, ao mesmo tempo que atesta a premência de políticas públicas para o devido respaldo a essas pessoas.

Apesar da demanda, a responsabilidade pelo provimento de cuidados é desigualmente distribuída na população brasileira, delegando às famílias, sobretudo ao segmento feminino, maior responsabilidade pelo trabalho de cuidar. As mulheres, principalmente negras e pobres, assumem a parte majoritária das tarefas de cuidado. A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua do IBGE apontou, em 2022, que mulheres dedicaram em média 21,3 horas semanais aos cuidados domésticos não remunerados, enquanto homens destinaram 11,7 horas.

Em atenção à multiplicidade e à urgência dos temas relacionados à questão do cuidar, a Revista Mais 60 – Estudos sobre Envelhecimento abre espaço para a discussão de problemáticas que – por entrelaçarem dedicação ao outro, responsabilidade compartilhada e ocupação social do tempo – dizem respeito ao conjunto da sociedade, sem distinção, apresentando pesquisas e ações que ora atravessam, ora tangenciam o assunto, descortinando sua complexidade.

No artigo de abertura desta edição, a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) argumenta em favor da existência de um quarto elemento na configuração da seguridade social, a saber, o de cuidados, somado aos de saúde, previdência e assistência social, já reconhecidos nesse âmbito.

A pesquisa Envelhecimento e Cuidado: Estudo sobre Cuidadoras Familiares de Pessoas Idosas, por sua vez, reflete sondagem qualitativa realizada no município de São Paulo pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A investigação revela como o ato de cuidar de um parente idoso, sem o respaldo necessário, impacta na vida das mulheres.

Integram a publicação, ainda, contribuições sobre o envelhecer na contemporaneidade, como a editoria Envelhecemos, com texto da atriz, poetisa e cantora Elisa Lucinda, 66 anos, em uma narrativa sobre envelhecer marcada por vitalidade e esperança. O entrevistado desta edição é o fotógrafo Walter Firmo, 87 anos de vida e 72 de carreira, conhecido como mestre da cor na fotografia e expoente na formação da consciência negra no Brasil.

Com esse conjunto, a Revista Mais 60 participa de forma propositiva de um debate que, felizmente, tem logrado alavancar movimentos capazes de retirar das sombras práticas essenciais para a vida em comunidade, com vistas à equidade, conferindo-lhes o devido destaque e abrangência.

8 b – Estudos sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87 | Abril de 2024

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Artigo da capa

Um Olhar de Cuidado para Quem Carrega o Brasil

[Artigo 1, páginas de 8 a 13]

Estudos sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87

Abril de 2024

Mara Gabrilli

Tem 56 anos, é publicitária, psicóloga e senadora pelo Partido Social Democrático de São Paulo (PSD/SP). Aos 26 anos, sofreu um acidente e perdeu todos os movimentos do pescoço para baixo. Em 1997, fundou o Instituto Mara Gabrilli, organização que promove projetos esportivos, culturais e presta atendimento em comunidades carentes de São Paulo e outras capitais. Foi secretária municipal de São Paulo, vereadora – a mais votada da capital paulista – e deputada federal por dois mandatos consecutivos. Em 2018, foi eleita para integrar o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência na Organização das Nações Unidas (ONU) e em 2023 foi reeleita.

maragabrilli@maragabrilli. com.br

Família Materna, Walter Firmo, PA, 1956

sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87

Abril de 2024

Muita gente não sabe, mas antes de me tornar uma pessoa que depende do serviço de um cuidador, eu já cuidei de um idoso e de uma moça que, assim como eu, era tetraplégica. À época, sem imaginar que um dia estaria nas mesmas condições, tentei levar a eles um pouco mais de saúde, incorporando movimentos e produtividade em suas vidas. Foi uma experiência enriquecedora e que me proporcionou know how para hoje entender, em todas as dimensões, a importância desse profissional na vida de pessoas idosas, com deficiência ou doenças raras. Sem a parceria e a dedicação de uma cuidadora, eu não poderia sair da cama. Não chegaria nem perto de lugares e postos que conquistei ao longo da vida, mesmo depois de quebrar o pescoço e perder os movimentos de braços e pernas. Ser psicóloga, fundadora de ONG, secretária municipal, vereadora, deputada por duas vezes, representante em um comitê na ONU e senadora. Tudo isso só foi possível porque tive o apoio de um profissional cuidador – mais especificamente, tive o apoio de uma outra mulher.

A verdade é que quando um ente querido precisa do apoio diário de um cuidador, são as mulheres – a maioria mães mais pobres – que são obrigadas a abandonar o mercado de trabalho para se dedicar a quem mais precisa. Esse é o retrato de milhares de brasileiras cujo papel de cuidar é invisibilizado. Falamos de mulheres que em sua maioria esmagadora carregam filhos sozinhas, carregam seus pais e seus avós, porque na vida delas não existem redes de apoio, seja familiar ou governamental.

Os homens, salvo honrosas exceções, costumam abandonar a casa quando se deparam com um diagnóstico de deficiência na família. São as mulheres, a maioria pobre, que pagam a conta de viver em uma sociedade machista em um país que ainda engatinha na oferta de políticas públicas de reabilitação e que delega apenas às famílias a responsabilidade quanto aos cuidados na vida diária.

Sem a parceria e a dedicação de uma cuidadora, eu não poderia sair da cama. Não chegaria nem perto de lugares e postos que conquistei ao longo da vida, mesmo depois de quebrar o pescoço e perder os movimentos de braços e pernas.

Tal cenário desanimador ganhou holofotes em novembro do ano passado, quando a redação do Enem propôs que estudantes discorressem sobre “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Abordar novamente esse tema, agora na Revista Mais 60, é uma grande oportunidade para que ele não caia na invisibilidade e as mulheres, em geral as principais cuidadoras, não sejam esquecidas.

Além dos cuidados com a casa, os trabalhos domésticos e familiares, cuja carga é quase sempre delegada apenas ao sexo feminino, falamos também de milhares de mulheres que carregam nas costas uma nação invisível de crianças, adolescentes, adultos com deficiência e de pessoas idosas que dependem completamente de terceiros para manter um mínimo de vida digna. São geralmente pessoas com deficiências severas, doenças raras ou neurodegenerativas.

A situação mais comum é: a mãe para de trabalhar para cuidar do filho com deficiência, as despesas da família só aumentam e a renda familiar diminui drasticamente. Ou ainda, quando um familiar idoso, seja pelo envelhecimento natural ou pelo susto de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou Alzheimer, necessita de cuidados, geralmente é a mulher – uma filha ou nora ou neta – que para de trabalhar para assumir essa responsabilidade. Todas essas mulheres não têm nenhum tipo de apoio do Estado brasileiro, tornam-se invisíveis aos olhos públicos. Não se realizam profissionalmente e, com frequência, adoecem.

A invisibilidade ou a falta de valorização do trabalho de cuidado é um problema a ser enfrentado porque contribui para o aprofundamento da desigualdade de renda, além de ocasionar estresse, depressão e ansiedade. Ocupadas com o “invisível”, as mulheres ficam privadas de tempo e recursos necessários para conquistar autonomia financeira, permanecendo presas em um ciclo de exploração. A ausência de uma política pública de cuidados leva famílias inteiras ao abandono e à exclusão social.

Diante da urgência de um quarto elemento na configuração da seguridade social – o de cuidados –, além da saúde, previdência e a assistência social, três senadores se uniram há cerca de quatro anos para criar um projeto de lei com a proposta de uma Política Nacional do Cuidado. Os senadores Eduardo Gomes, Flávio Arns e eu nos debruçamos sobre o tema e realizamos duas pesquisas em parceria com o DataSenado com pessoas cuidadas e cuidadores.

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São as mulheres, a maioria pobre, que pagam a conta de viver em uma sociedade machista em um país que ainda engatinha na oferta de políticas públicas de reabilitação e que delega apenas às famílias a responsabilidade quanto aos cuidados na vida diária.

Os resultados estão contemplados no Projeto de Lei 2.797, que protocolamos em novembro de 2022, buscando apresentar respostas aos anseios da sociedade e estipulando uma legislação que dê aos cuidadores familiares e profissionais apoio no desenvolvimento de seu trabalho e uma rede de suporte. Sob relatoria do senador Paulo Paim, visamos garantir uma política de Estado que regulamente e promova ações estratégicas para assegurar o bem-estar físico, psicológico e social de pessoas em situação de dependência e seus cuidadores familiares ou profissionais.

No projeto propomos que o governo forneça cuidadores custeados pela assistência social. Julgamos de extrema importância a criação de um plano de inclusão previdenciária dos familiares, em sua ampla maioria mulheres, que ficam impossibilitados de trabalhar, dedicando-se exclusivamente a parentes que têm impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, do intelecto e da mente, e que têm limitações para exercer as atividades básicas do dia a dia.

O texto institui o auxílio-assistência para todos os segurados da Previdência Social, com adicional de 25% para trabalhadores e aposentados com deficiências que dependam de cuidados de terceiros para auxiliá-los na manutenção de condições dignas de vida, saúde e segurança.

Não podemos esquecer que o nosso país caminha para mudança demográfica, está envelhecendo, o que revela um quadro futuro de alteração no desenho econômico nacional.

Segundo projeções baseadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), se as atividades de cuidados fossem consideradas no cálculo que estima a geração de renda no país, equivaleria a cerca de 11% do Produto Interno Bruto (PIB). O número de pessoas idosas tende a dobrar nas próximas décadas. Além disso, o número de pessoas que tem como profissão serem cuidadores de idosos saltou entre os anos de 2004 e 2017, de 4.313 para 34.051.

A economia do cuidado é essencial para a humanidade. Todos nós precisamos de cuidados para existir. E, se hoje você é uma pessoa adulta, alfabetizada, lendo este texto é porque alguém desempenhou horas de trabalho de cuidado com alimentação, vacina, remédios, limpeza e higiene, educação, entre diversas outras funções por horas a fio para cuidar de você. Pessoas cuidadas e pessoas que cuidam devem ser apoiadas.

Passou da hora de o Brasil ter uma política de cuidados e regulamentar a profissão de cuidador que, vale dizer, também pode – e deve – ser exercida por homens. Essa é uma responsabilidade do Estado, não da condição feminina.

Com uma política de cuidados em nosso país, ampliaremos muito mais nossa mão de obra trabalhadora, deixando de onerar a saúde pública em vários setores e proporcionando a muita gente qualidade de vida e participação ativa na sociedade. Só assim tornaremos um privilégio de poucos em um direito para todos.

Com uma política de cuidados em nosso país, ampliaremos muito mais nossa mão de obra trabalhadora, deixando de onerar a saúde pública em vários setores e proporcionando a muita gente qualidade de vida e participação ativa na sociedade. Só assim tornaremos um privilégio de poucos em um direito para todos.

Senadora Mara Gabrilli e cuidadora Késia Souza

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Um Estudo sobre Cuidadoras Familiares de Pessoas Idosas1

[Artigo 2, páginas de 14 a 35]

Priscila Vieira

Socióloga, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenadora do estudo. priscilav@cebrap.org.br

Florbela Ribeiro

Antropóloga, pesquisadora do Cebrap e integrante da equipe do estudo. florbelaribeiro@cebrap.org.br

Juliana Shiraishi

Socióloga, pesquisadora do Cebrap e integrante da equipe do estudo. juliana.shiraishi@cebrap.org.br

Estudos sobre Envelhecimento Volume 34 | Número 87 Abril de 2024

1 Esse artigo apresenta uma síntese dos resultados de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Desenvolvimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) com financiamento do Itaú Viver Mais (IVM). Para o relatório completo acesse: https://cebrap.org.br/wpcontent/uploads/2023/07/ Envelhecimento_Cuidado_ Estudo_Sobre_CuidadorasFamiliares_CEBRAP.pdf.

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sobre Envelhecimento

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Resumo

O aumento da expectativa de vida dos brasileiros tem como uma de suas consequências a intensificação das demandas de cuidado de pessoas idosas. As políticas públicas nacionais do cuidado de pessoas idosas são escassas e a responsabilidade recai quase exclusivamente sobre as famílias, especialmente sobre as mulheres. Contudo, a atividade não é reconhecida como trabalho, o que conduz a uma desvalorização das cuidadoras familiares e a uma invisibilidade dessa função. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa qualitativa exploratória com cuidadoras familiares de pessoas idosas a partir de entrevistas em profundidade realizadas em seus domicílios, localizados na cidade de São Paulo. Os resultados indicam que a responsabilidade do cuidado de um familiar idoso impacta a vida profissional, social e emocional dessas mulheres. A alta demanda de atividades voltadas ao cuidado caracteriza a rotina exaustiva dessas cuidadoras familiares e produz falta de autonomia financeira, dificulta a realização profissional e pessoal e atividades que promovam saúde e bem-estar físico e mental. Via de regra, essa forma de trabalho envolve afeto e é vista como obrigação ou missão. Mas, pela ótica da cidadania, o cuidado de pessoas idosas é uma demanda pública e uma responsabilidade de toda a sociedade. Com efeito, é fundamental avançar na construção de políticas públicas e iniciativas corporativas voltadas às cuidadoras familiares para a construção de uma sociedade que acolhe o envelhecimento e promove igualdade e equidade.

palavras-chave: envelhecimento; cuidado; gênero; pessoas idosas.

abstract

The increase in life expectancy among Brazilians has as one of its consequences the intensification of demands for the care of elderly people. National public policies for the care of elderly people are scarce and responsibility falls almost exclusively on families, especially women. However, this activity is not recognized as work, leading to a devaluation of family caregivers and invisibility of this role. This article presents results from exploratory qualitative research with family caregivers of elderly people based on in-depth interviews conducted in their homes, located in the city of São Paulo. The results indicate that the responsibility of caring for an elderly family member impacts the professional, social, and emotional lives of these women. The high demand for carerelated activities characterizes the exhausting routine of these family caregivers and results in a lack of financial autonomy, hinders professional and personal fulfillment, and activities that promote well-being and physical and mental health. Generally, this form of work involves affection and is perceived as an obligation or mission. However, from the perspective of citizenship, caring for elderly people is a public demand and a responsibility of whole society. Thus, it is essential to advance in the construction of public policies and corporate initiatives aimed at family caregivers to build a society that embraces aging and promotes equality and equity.

keywords: aging; caretaking; gender; elderly people.

introdução

A população brasileira está vivendo cada vez mais e uma das consequências desse novo padrão de longevidade é a intensificação das demandas de cuidado de pessoas idosas. No Brasil, a responsabilidade por essa forma de trabalho recai quase exclusivamente sobre as famílias. O grupo familiar geralmente atribui a função do cuidado às mulheres2 como consequência de uma divisão sexual do trabalho (GUIMARÃES, HIRATA e SUGITA, 2008; HIRATA e KERGOAT, 2007; SORJ, 2008). Muitas delas veem o cuidado familiar como obrigação ou missão (SOUSA et al., 2021), o que envolve questões morais e sentimento de gratidão pela pessoa idosa.

Como cuidadora familiar seu papel é essencial à manutenção da vida da pessoa idosa que demanda cuidado e envolve tarefas vitais como gestão de remédios, higiene pessoal, alimentação, deslocamento e até administração financeira.

Geralmente, o cuidado familiar não é visto como trabalho e sim como uma “ajuda” (GUIMARÃES e VIEIRA, 2020) e é desvalorizado pela família e pela sociedade. A alta demanda do trabalho de cuidado3 dificulta a realização de atividades remuneradas e conduz à falta de autonomia financeira. As limitações de realização profissional e pessoal afetam o bem-estar físico e mental e podem gerar uma carga emocional negativa de obrigação e privação de liberdade (MINAYO e FIGUEIREDO, 2018).

Embora existam algumas iniciativas interessantes em contextos estaduais e municipais, há uma enorme escassez de políticas e serviços públicos para pessoas idosas. Só recentemente o tema começou a ganhar espaço na agenda pública. Destaca-se a criação de um grupo de trabalho interministerial (decreto nº 11.460, de 30 de março de 2023), coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pelo Ministério das Mulheres para elaborar a Política Nacional de Cuidados e o Plano Nacional de Cuidados.

A produção acadêmica sobre o tema do cuidado também vem crescendo nos últimos anos, mas o cuidado exercido no âmbito domiciliar de maneira informal por familiares ainda é pouco investigado. Há dificuldade em quantificar a demanda de cuidado de idosos no Brasil (CAMARANO, 2021), dimensionar o cuidado profissional remunerado (GUIMARÃES e PINHEIRO, 2023) e ainda maior é o desafio de medir o cuidado familiar exercido nos domicílios sem remuneração (MENEZES, 2021). Assim, o cuidado familiar é a dimensão mais invisível de um fenômeno já caracterizado pela invisibilidade.

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2 Mulheres passam o dobro do tempo dos homens em jornada dupla, ou seja, conciliando trabalho remunerado com trabalhos domésticos e cuidados com crianças e/ou idosos. (Pnad-c) IBGE, 2019: em média, as mulheres dedicam 21,7 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado para 11 horas dos homens.

3 Segundo dados da pesquisa Cuida-Covid Fiocruz, mais de 70% das cuidadoras familiares realizam tarefas de cuidado todos os dias da semana e 60% têm jornadas de 12 horas ou mais.

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Este artigo apresenta uma síntese dos resultados de uma pesquisa-piloto que buscou identificar os impactos do cuidado de um familiar idoso na vida profissional, social e emocional dessas mulheres. Almeja-se contribuir para a produção acadêmica sobre o tema, qualificar o debate público e sensibilizar a sociedade.

metodologia

Este é um estudo qualitativo exploratório com mulheres que exercem o trabalho não remunerado do cuidado de um familiar idoso. Em maio de 2023, realizamos entrevistas em profundidade nas residências de 11 cuidadoras familiares residentes no município de São Paulo.

O estudo contemplou uma diversidade de perfis. Das 11 entrevistadas, seis mantinham outra atividade profissional; cinco eram de classe AB e seis eram CD; seis delas tinham entre 18 e 45 anos e cinco tinham mais de 60 anos; cinco entrevistadas eram negras e seis brancas. Além disso, quatro cuidavam de pessoas idosas que apresentavam algum tipo de deficiência física e/ou cognitiva. Os nomes foram preservados e as entrevistadas serão referidas por números, de acordo com a ordem de realização das entrevistas.

O roteiro de entrevistas investigou aspectos sobre a cuidadora, a pessoa cuidada e sua família, buscando diferentes ângulos da experiência do cuidado. Buscamos entender:

• Rotina e atividades desempenhadas;

• Arranjos financeiros que viabilizam o cuidado;

• Existência e composição de uma rede de apoio;

• Possibilidade de conciliar o cuidado com outras atividades pessoais e profissionais; Impactos emocionais;

• Conhecimento e acesso a serviços e equipamentos públicos voltados ao cuidado da pessoa idosa.

As visitas domiciliares permitiram a realização de observações etnográficas que complementaram informações sobre a casa, a dinâmica familiar e os aspectos da rotina de cuidado e trabalho remunerado, além da relação entre cuidadoras e familiares idosos.

resultados

Este tópico sistematiza os principais achados da pesquisa através da análise do material qualitativo.

O primeiro eixo de investigação do estudo analisou as trajetórias das cuidadoras e de suas famílias, buscando entender os caminhos e as decisões que as levaram a assumir o cuidado de um parente idoso. As entrevistadas são mulheres de locais variados da cidade de São Paulo, com histórias familiares e situações financeiras diversas, mas que compartilham desafios comuns em torno do cuidado, que vão desde a rotina até problemas físicos e emocionais. Vejamos algumas dessas trajetórias.

“Eu sempre soube que ia cuidar da minha mãe.” Assim a primeira entrevistada expressou a consciência de que seria responsável pelo cuidado da mãe, refletindo a expectativa social de que o gênero feminino assuma esse papel, já que ela é a única mulher entre os irmãos. Sua rotina é inteiramente dedicada ao cuidado, seja da mãe idosa, que sofre de demência senil, seja de seus filhos. A rápida progressão da doença não permitiu um planejamento para lidar com as crescentes demandas de cuidado. Ela abraçou o papel de cuidadora em tempo integral, rejeitando alternativas fora da família. Essa escolha é motivada não apenas por questões financeiras, mas também por laços afetivos e um senso de obrigação familiar.

Envelhecimento Volume 34 | Número 87 Abril de 2024

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Estudos sobre Envelhecimento

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Artigo 2

Se existir uma mulher na jogada é ela que vai assumir esse tipo de cuidado. Infelizmente não é uma coisa dividida, isso não é perguntado, não te dão chance nem de você falar nada. É uma coisa que já fica estabelecida, [se] você tem pai e mãe que necessitam de cuidados, é a filha que vai assumir. Isso é reflexo da nossa sociedade machista (cuidadora 1).

Algumas das cuidadoras entrevistadas, como a citada acima, demonstram um vínculo afetivo muito forte com a mãe e entendem o cuidado da familiar idosa como missão de vida. Outra entrevistada (60 anos) também tem irmãos, mas assumiu a tarefa de cuidar integralmente de sua mãe de 92 anos. Ela afirma que houve uma inversão de papéis: “Agora eu sou a mãe e ela é minha filhinha. Eu cuido com todo o amor do mundo, ela merece. É minha rainha. Ela cuidou tanto de mim, agora é minha vez”. Apesar de lamentar a ausência dos irmãos no cuidado e de se sentir constantemente cansada, outra cuidadora (62 anos) acredita que cumpre sua obrigação, pois sua mãe cuidou de suas filhas enquanto ela trabalhava fora. A mãe sempre foi dona de casa, cuidou dos filhos, netos e marido quando o Alzheimer chegou. O cuidado sempre foi central em sua vida e, aos 84 anos, ela que precisa de cuidados. A filha se sente em dívida e cumpre sua obrigação.

É minha responsabilidade. Porque ela é minha mãe, me ajudou muito a minha vida inteira, sempre foi uma pessoa presente em todos os momentos. Ela levava minhas filhas ao médico, porque eu tinha que trabalhar, então eu devo muito a ela. Muito carinhosa com as minhas filhas, muito preocupada sempre. Jamais vou deixar, é minha responsabilidade (cuidadora 11).

A pesquisa identificou que o cuidado da pessoa idosa fica centralizado em uma figura, a cuidadora principal, e é recorrente a falta de suporte consistente do grupo familiar nessa tarefa. É o caso de uma entrevistada de 39 anos que planejava dividir os cuidados dos pais com outros familiares, mas acabou assumindo toda a responsabilidade e deixando seu emprego por não conseguir conciliar as atividades. A única pessoa que lhe ajuda esporadicamente é a sobrinha. A família atribuiu a ela esse papel por ser solteira e não ter filhos. Ela também acredita que é sua obrigação por morar com os pais idosos e ter forte vínculo afetivo com eles.

A pesquisa identificou casos de netas que cuidam de suas avós sem esse vínculo afetivo tão forte, já que não tiveram tanta convivência ao

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A decisão de cuidar no seio familiar se dá pela falta de planejamento e ausência de políticas públicas, sendo fortemente influenciada por elementos subjetivos – como proximidade, vínculo e confiança – e morais – como obrigação e missão.

longo da vida. Contudo, elas precisaram ajudar suas mães idosas que não conseguiam mais exercer papéis de cuidadoras das avós. Nesses casos, são mulheres jovens que deixaram estudo e mercado de trabalho e assumiram o papel de cuidadoras de suas avós por falta de outra solução. Assim, percebe-se que as filhas se sentem responsáveis pela mãe, seja ela pessoa cuidada ou cuidadora. Uma das entrevistadas (33 anos) cuida em tempo integral de sua avó de 86 anos, pois a mãe não consegue mais executar as atividades. Começou como um arranjo temporário que se tornou permanente. Ela se sente sobrecarregada e isolada, lamentando a falta de apoio da família e a perda de sua própria liberdade e vida pessoal.

As trajetórias dessa e de outras participantes do estudo revelam a percepção equivocada de que o cuidado da pessoa idosa seria temporário, mas torna-se uma sobrecarga permanente e crescente. A falta de planejamento para lidar com as demandas do envelhecimento leva a soluções improvisadas na hora de uma emergência. Via de regra, a solução mais fácil é atribuir a responsabilidade às mulheres desempregadas, em trabalhos flexíveis e/ou com forte vínculo afetivo com a pessoa idosa, que sinta uma obrigação moral de retribuir cuidados.

A decisão de cuidar no seio familiar se dá pela falta de planejamento e ausência de políticas públicas, sendo fortemente influenciada por elementos subjetivos – como proximidade, vínculo e confiança – e morais – como obrigação e missão.

O segundo eixo de análise da pesquisa buscou compreender a rotina do cuidado familiar. Para as entrevistadas, o cuidado é uma ocupação em tempo integral, sem horário, sem distinção entre dias úteis e fins de semana e sem perspectiva de que a jornada diminua com o tempo. Pelo contrário, as demandas de cuidado da pessoa idosa tendem a aumentar. Uma cuidadora descreveu a rotina de cuidados com sua mãe como uma inversão dos cuidados com um bebê: em vez de se desenvolver, adquirir novos conhecimentos e conquistar autonomia, a pessoa

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idosa se torna cada vez mais dependente com o passar do tempo. Isso faz com que essa cuidadora se sinta sobrecarregada, uma vez que precisa estar sempre disponível para a mãe. As cuidadoras precisam oferecer disponibilidade constante para as necessidades de seus familiares idosos, o que significa sacrificar suas próprias atividades e necessidades.

A rotina de cuidado de uma pessoa idosa envolve uma série de atividades básicas e complexas: alimentação, higiene pessoal, deslocamento, administração de medicamentos, realização de procedimentos, acompanhamento a consultas médicas e tratamentos. As cuidadoras são responsáveis por planejar e executar todas essas tarefas, muitas vezes sem ajuda externa. Os relatos destacaram a rigidez da rotina do cuidado, que demanda organização e planejamento meticulosos para ser mantida. Qualquer alteração pode representar um desafio significativo para as cuidadoras, que preferem manter a estabilidade e a previsibilidade. As entrevistadas também relataram os desafios para obtenção de conhecimentos básicos para o exercício do cuidado domiciliar. Elas precisam aprender na prática, com auxílio de pesquisas na internet e/ ou trocas em grupos virtuais de cuidadoras. Algumas conseguem fazer cursos especializados para adquirir conhecimentos técnicos como, por exemplo, medir saturação, glicemia, pressão arterial, identificar sintomas e alterações no quadro de saúde, administrar injeções etc. Algumas tarefas são muito desafiadoras e desgastantes. A mais citada nesse sentido foi o banho, devido às dificuldades práticas, o medo de acidentes e a exposição da intimidade e vulnerabilidade dos idosos. A execução do banho requer habilidade e, em alguns casos, adaptações estruturais nos domicílios. Em situações precárias, onde as instalações são limitadas, as cuidadoras enfrentam ainda mais desafios, como o transporte manual dos idosos.

Foi com meu pai que eu comecei [a dar banho]. Você imagina eu dando banho no meu pai, um militar. Não imagine, porque foi triste. Fiz porque precisava, não tinha quem fizesse (cuidadora 11).

Eu pesquisava assim “como ajudar um idoso a tomar banho” [no Google], aí aparece um monte de vídeo. Eu vi o que dava mais certo para mim e ia lá e fazia. Foi assim que eu fui aprendendo (cuidadora 4).

Além dessas atividades diárias há também as tarefas domésticas, como limpeza, compras e cuidados com as roupas que são pouco compartilhadas com outros familiares. Portanto, há um acúmulo de responsabilidades e uma multiplicidade de tarefas que tornam a rotina muito exaustiva no ambiente doméstico. Inicialmente, as atividades podem parecer simples, como preparar refeições, oferecer companhia e gerenciar a administração de medicamentos. Mas, surgem tarefas mais complexas que requerem conhecimentos que, muitas vezes, as cuidadoras não possuem.

O terceiro eixo da pesquisa investigou as (im)possibilidades de articulação do cuidado familiar com outras atividades de trabalho. Explorou as tentativas de conciliar o cuidado com outras formas de trabalho remunerado, descrevendo os obstáculos enfrentados e os arranjos feitos para lidar com esse desafio.

Algumas cuidadoras tiveram que deixar seus empregos ou antecipar a aposentadoria para dar assistência a um parente idoso. Por exemplo, uma delas precisou se aposentar mais cedo do que o planejado para cuidar de sua sogra, que enfrentava problemas de saúde e não podia mais ficar sozinha. Embora muitas dessas mulheres gostassem de seus empregos, a necessidade de cuidado do familiar idoso se tornou prioritária.

Das 11 participantes, seis realizavam algum tipo de trabalho remunerado no momento da pesquisa, embora informais e/ou esporádicos, sem uma rotina fixa de horários ou demandas. Muitas expressaram satisfação com suas atividades de trabalho e desejavam realizá-las com mais frequência, seja para aumentar a renda ou para alcançar realização pessoal. As entrevistas também revelaram que, para conciliar o cuidado com outras atividades produtivas, são necessários alguns acordos e arranjos, como trabalho remoto, jornadas parciais e horários flexíveis. No entanto, esses arranjos costumam ser instáveis e limitados, não permitindo mais do que algumas oportunidades de trabalho temporário. Vejamos alguns exemplos.

A cuidadora 2 vende roupas pelo WhatsApp e procura um emprego flexível próximo de casa para cuidar de sua avó. A cuidadora 5 faz bicos em atendimento ao consumidor por mensagens de texto, o trabalho pode ser feito em casa e assim consegue cuidar de sua mãe. A cuidadora 7 realiza trabalhos domésticos remunerados, como lavar e passar roupa, e faz peças de crochê para ajudar nas finanças e ter um tempo para si mesma. A cuidadora 8, que tinha uma escola infantil, agora ajuda a irmã em um negócio de venda de marmitas, equilibrando isso com

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A dedicação ao trabalho de cuidado familiar tem impactos financeiros substantivos na vida das cuidadoras. A maioria

das entrevistadas tem pouca autonomia financeira.

o cuidado da avó. A cuidadora 10 deixou seu trabalho para cuidar da mãe e começou a fazer cursos de corte e costura, conseguindo se organizar, com ajuda da família, para frequentar as aulas.

A dedicação ao trabalho de cuidado familiar tem impactos financeiros substantivos na vida das cuidadoras. A maioria das entrevistadas tem pouca autonomia financeira. Assim, a dimensão material e financeira da vida das cuidadoras foi o quarto eixo de análise da pesquisa. O estudo revelou que, além de aposentadorias, pensões e possíveis ganhos de trabalhos esporádicos, as cuidadoras dependem principalmente de dois tipos de recursos: os rendimentos do próprio familiar idoso que precisa de cuidados e doações e/ou recursos fornecidos pela família como ajuda financeira simbólica.

Quando trabalhava ganhava mais de um salário. A gente teve que cortar, eu arrumava meu cabelo direto, fazia a unha, fazer esse tipo de coisa não dá mais. Agora só quando ganho um dinheirinho extra. Falta dinheiro para cuidar de mim (cuidadora 10).

Com mais ou menos dificuldade, boa parte das entrevistadas contou que consegue pagar as contas. No entanto, a maioria delas não possui recursos para gastos pessoais e nem uma reserva financeira. Elas explicam que não conseguem guardar, seja para um objetivo específico, seja para uma emergência.

A pesquisa revelou também que há uma diferença significativa na natureza dos rendimentos das cuidadoras mais velhas e das mais jovens. As mais velhas, geralmente aposentadas ou pensionistas, têm uma fonte de renda estável, embora muitas vezes limitada a um salário-mínimo. Já as mais jovens têm maior necessidade de buscar atividades remuneradas, o que pode ser ainda mais desafiador para aquelas com filhos pequenos.

O estudo identificou que as aposentadorias e pensões dos idosos beneficiários do cuidado são fundamentais para os arranjos financeiros das famílias, independentemente da classe social. As cuidadoras familiares dependem muito desses arranjos familiares, o que limita sua

autonomia e a capacidade de investir em si mesmas com educação ou bens pessoais. Além disso, esses acordos familiares geralmente são instáveis e envolvem compensações financeiras simbólicas, bem abaixo dos valores do mercado para cuidadoras profissionais.

As contas da casa, então, é tudo com elas. Com o salário da minha vó, minha mãe paga as contas fixas, aluguel, água, luz da casa. A minha irmã paga alimentação. O mercado tá na conta dela. Aí se precisa comprar roupa, alguma coisa, a minha tia deposita um valor para minha mãe, minha tia também ajuda com um valor mensal (cuidadora 8).

O quinto eixo de análise diz respeito aos aspectos emocionais envolvidos na tarefa do cuidado familiar de parente idoso . A relação entre a cuidadora e a pessoa cuidada é complexa, repleta de emoções, memórias e preocupações. O trabalho de cuidado familiar envolve demandas emocionais, especialmente ao lidar com doenças e vulnerabilidades dos entes queridos. Muitas vezes, essa tarefa envolve um profundo sofrimento e até mesmo um luto antecipado. Algumas cuidadoras verbalizam essa dor e a falta de preparo e suporte psicológico para enfrentar essa situação.

Você tem que se preparar para isso. Eu assumi, mas eu não tive nenhum suporte inicial para me preparar para o que viria. Eu tive que ir atrás disso depois que o dano já começou a chegar para mim. Eu acho que isso tem que ser estabelecido, se é um familiar que vai cuidar, ele tem que ter um suporte, ele tem que ter uma ajuda, porque ele vai ver muitas coisas difíceis, ele vai ter que lidar com isso, entendeu? E é diário (cuidadora 1).

Apesar das dificuldades, aquelas que têm uma relação próxima com a pessoa idosa que cuidam encaram a atividade como uma demonstração de amor e cumplicidade, como uma forma de aproveitar o tempo com suas mães e avós, pois reconhecem que sentirão falta delas no futuro.

Eu aprendi a fazer muita coisa que eu não sabia, aprendi muitas histórias sobre a minha vida, sobre a minha ancestralidade que eu não sabia. Então, não foi de todo ruim, né? Vamos colocar, parece que eu falei só os pontos negativos, mas também teve muitos pontos positivos. Aprendi a cozinhar melhor, aprendi uma técnica de como lavar roupa, aprendi a fazer sabão caseiro, aprendi a fazer biscoito de polvilho. Conheci

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um pouco mais sobre a minha ancestralidade. Soube que a avó da minha avó era escrava, que eles trabalhavam em Engenho, que eles faziam cachaça. A minha avó me ensinou a fazer um remédio para cólica com arruda. Aprendi um monte de coisa que, de repente, se eu não tivesse esse contato mais direto com ela, eu não teria aprendido, porque eu tô numa geração e ela tá em outra. A dela não vale menos do que a minha, muito pelo contrário, o valor vem vindo, passado de geração em geração e a gente vai aprendendo (cuidadora 4).

O trabalho emocional das cuidadoras familiares é intenso, pois estão ligadas afetivamente às pessoas idosas que cuidam. Mães, filhas, avós e netas têm memórias e laços afetivos construídos ao longo da vida com aquelas que agora necessitam de cuidados. Embora reafirmem o passado ativo e admirável dessas pessoas, testemunham de perto a progressão das doenças, a perda de autonomia e a diminuição da capacidade cognitiva. Esse processo, marcado por tristeza e preparação para a despedida, é particularmente difícil quando enfrentam condições como Alzheimer e demência senil, levando-as a sentir falta da pessoa como ela era antes. Enquanto a cuidadora profissional não tem uma história anterior com a pessoa idosa e já a conhece nesse estágio de sua vida, a cuidadora familiar tem um vínculo carregado de memórias afetivas e tem de lidar com a mudança na relação.

Na parte da pessoa que cuida, eu acho que quando existe um vínculo familiar tem que ter um cuidado muito grande, porque quando você é um cuidador profissional, você vê a pessoa tendo certo tipo de comportamento e aquilo não te atinge, é um paciente, você tá vendo várias pessoas agirem daquela forma. Mas quando você vê seu pai, sua mãe, alguém que é tão importante para você, uma figura tão importante para você, agindo de uma forma totalmente diferente daquilo que você conheceu um dia, é extremamente chocante. É como se você tivesse que se reorganizar também, você vai buscar nas suas memórias o que a pessoa era e o que ela é hoje, o que ela tá se transformando (cuidadora 1).

Outro aspecto que influencia a dimensão emocional da vida das cuidadoras familiares é a alta e constante demanda de trabalho. Como vimos, a rotina exaustiva de cuidado com o familiar idoso, com os filhos e com a casa impede que as cuidadoras se dediquem a si mesmas e às atividades pessoais, como lazer, bem-estar, sociabilidade, estudo e trabalho. Como dito, a rotina de cuidado requer disponibilidade e

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Foi frequente a percepção de solidão e abandono e relatos de desestímulo e falta de planos ou sonhos. Isso impacta principalmente as entrevistadas que têm uma rede de apoio mais frágil.

prontidão a todo momento, até mesmo durante a noite ou a madrugada, e as atividades geralmente se sobrepõem à rotina de trabalho doméstico. Foi frequente a percepção de solidão e abandono e relatos de desestímulo e falta de planos ou sonhos. Isso impacta principalmente as entrevistadas que têm uma rede de apoio mais frágil. Assumir tantas tarefas dentro do universo doméstico e familiar gera sentimentos como estresse e esgotamento emocional.

Outro problema enfrentado por essas mulheres, que impacta na questão emocional, é o isolamento social. Esse é um problema que atinge tanto as pessoas cuidadas como as cuidadoras. A entrevistada que cuida da avó e não conta com uma rede de apoio efetiva, contou que se sente em um “subsolo”, sem autonomia, enquanto seus familiares já têm suas vidas “formadas”. Ela não conseguiu construir a vida que desejava, já que seu tempo está integralmente voltado para o cuidado da sua avó. Ela disse que perdeu o protagonismo de sua vida e não se identifica com a que vive hoje.

Embora reconheçam o desgaste emocional do cuidado, nenhuma das participantes do estudo tem acesso a atendimento psicológico profissional. Algumas procuraram apoio on-line, em redes sociais ou grupos de cuidadores para troca de experiências, diálogo e desabafo.

Por fim, o sexto eixo de análise do estudo se dedicou às políticas e serviços públicos voltados ao envelhecimento e ao cuidado de idosos pelo olhar das cuidadoras familiares. Ou seja, mapeou as percepções das entrevistadas a respeito do que existe em termos de política pública para elas e para as pessoas idosas. A pesquisa também buscou entender as necessidades das cuidadoras familiares e suas visões sobre as políticas públicas voltadas para o cuidado e o envelhecimento. No geral, elas demonstraram desconhecimento sobre políticas e serviços públicos destinados ao cuidado e aos idosos. Poucas tinham conhecimento sobre algumas iniciativas, como as “creches”4 para idosos, mas percebiam que esses recursos eram limitados e pouco acessíveis. Duas entrevistadas mencionaram um direito para cuidadoras familia-

4 Também conhecidas como centros dia, podem ser públicas ou particulares. Caracterizamse por ser um espaço para atender pessoas idosas que possuem limitações para realização das atividades de vida diária (AVD) que convivem com suas famílias, porém não dispõem de atendimento em tempo integral no domicílio. Fonte: https://www.prefeitura. sp.gov.br

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res de pessoas idosas aposentadas por invalidez, que consiste em um aumento de 25% no valor da aposentadoria da pessoa cuidada caso seja comprovada sua dependência ou necessidade de cuidados. No entanto, elas relataram dificuldades de acesso e entendimento sobre as regras desse benefício.

Embora haja uma percepção de escassez de ações governamentais, especialmente no contexto brasileiro, há alguns programas e serviços municipais voltados para idosos que poderiam contribuir para melhorar sua qualidade de vida e reduzir as demandas de cuidado familiar se fossem disponibilizados em maior número e fossem mais conhecidos pela população.

No município de São Paulo existem os Centros Dia da Assistência Social que fornecem cuidados especializados a idosos e/ou pessoas com deficiência e algum grau de dependência. Esses centros proporcionam um ambiente de convivência durante o dia, permitindo que os idosos retornem às suas casas após participarem de atividades programadas. Além disso, a Assistência Social oferece serviços de acompanhamento domiciliar para idosos que estão em situação de isolamento, dependência e necessidade de cuidados. Também são disponibilizadas atividades sociais e culturais em outros locais, como nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), destinados a idosos com autonomia e mobilidade. Na área da saúde, há programas que oferecem acompanhamento domiciliar para pessoas idosas e/ou com deficiência, além de serviços de transporte especial para aqueles com mobilidade reduzida. No âmbito cultural, há equipamentos da cidade que promovem programas específicos para o público da terceira idade.

Embora essas iniciativas não sejam suficientes para suprir as demandas de cuidado, podem servir como opções para aliviar a carga de responsabilidade da família e proporcionar benefícios às pessoas

Embora haja uma percepção de escassez de ações governamentais, especialmente no contexto brasileiro, há alguns programas e serviços municipais voltados para idosos que poderiam contribuir para melhorar sua qualidade de vida e reduzir as demandas de cuidado familiar se fossem disponibilizados em maior número e fossem mais conhecidos pela população.

idosas, como atendimento especializado, momentos de lazer e interação social. Porém, a falta de conhecimento, acesso e uso desses recursos e programas pelas famílias revela uma lacuna entre as iniciativas governamentais e aqueles que poderiam se beneficiar delas.

Também foi perguntado às cuidadoras familiares que tipo de programas e serviços elas demandariam para o poder público visando o envelhecimento digno e o cuidado da pessoa idosa. O estudo revelou que elas não atribuem ao Estado a responsabilidade pelo cuidado, pois veem essa função como uma obrigação moral da família, baseada no afeto e no vínculo. Muitas defendem que o cuidado é uma prerrogativa exclusiva da família, relutando em considerar formas de compartilhá-lo com outros atores e instituições. Qualquer alternativa que não envolva o elemento afetivo remete à negligência ou ao descaso com o familiar idoso. Há uma certa resistência e desconfiança em relação aos serviços públicos voltados ao cuidado da pessoa idosa. Políticas e serviços governamentais, como Instituições de Longa Permanência (ILPI), seriam uma alternativa para casos excepcionais, como idosos sem família ou cujas famílias não têm condições financeiras para cuidar.

Ninguém tem culpa da pessoa ficar bem velhinha mesmo. Quem tem que cuidar é a família. Tem que ter mais amor, mais compreensão com os idosos. Porque é difícil. Se eu falar para você que é fácil, não é. Você tem que ter muito amor para pessoa poder estar cuidando (cuidadora 10).

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Sofá feito pela cuidadora
Cadeira no quintal para tomar sol Controle de remédios e medições

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Porém, ainda que vejam as instituições provedoras de cuidado com ressalvas, as cuidadoras reconhecem a importância de proporcionar maior sociabilidade e atividades fora de casa para os idosos visando combater o isolamento social. Elas demandam mais serviços de interação e lazer e acessibilidade facilitada aos centros de convivência, onde os idosos possam participar de atividades culturais, de lazer e esportivas. Também ressaltaram a necessidade de transporte público acessível para garantir o deslocamento seguro, especialmente para aqueles com mobilidade reduzida.

Na área da saúde, sugerem a implementação de equipamentos e programas específicos para idosos, incluindo fornecimento de remédios. Também falaram sobre a importância da adaptação das residências para atender às necessidades de mobilidade dos idosos, com recursos fornecidos pelo governo para facilitar essas modificações.

Principalmente adaptação da casa. A gente não consegue por causa do salário, eu parei com tudo, então a gente só ganha um salário. Seria isso, adaptação da casa, se é uma casa difícil para poder estar locomovendo. Que nem eu, eu também não sou mais criança, já tenho 62 anos, vou fazer 63. Eu cuido da minha mãe que tem 91 anos. Então eu tenho que ficar andando com ela para lá e para cá por causa da minha casa que não tá adaptada. Isso com certeza eu acho que o governo deveria ajudar (cuidadora 10).

Por fim, a pesquisa explorou as necessidades e expectativas das cuidadoras em relação às políticas e aos serviços destinados às pessoas que exercem o cuidado de pessoas idosas. Elas sugeriram a criação de um auxílio financeiro – como uma “bolsa cuidadora” – para proporcionar alguma autonomia financeira e reconhecimento pelo trabalho realizado. As cuidadoras também destacaram a necessidade de serviços de apoio emocional e psicológico direcionados a elas. Reconhecendo o peso emocional do cuidado familiar, elas manifestaram o desejo por programas que ofereçam suporte psicológico e oportunidades para compartilhar experiências com outras cuidadoras.

Um último ponto trazido pelas participantes foi a respeito do acesso a informações e conhecimentos técnicos sobre o cuidado de idosos. Como já mencionado, elas tiveram que buscar aprendizado por conta própria, geralmente na internet ou conversando com outras pessoas que enfrentaram situações semelhantes. As entrevistadas sugeriram que iniciativas governamentais de formação para cuidadoras seriam

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muito úteis. Foi proposta também a criação de espaços públicos ou canais de comunicação para troca de experiências e informações sobre o cuidado de idosos. Sentindo-se inseguras nesse aprendizado solitário, acreditam que orientação especializada seria valiosa tanto para elas como para quem se beneficia do cuidado.

Discussão e Considerações Finais

Após a breve exposição dos principais resultados do estudo, segue nesta sessão uma apresentação dos principais destaques analíticos da pesquisa Envelhecimento e Cuidado: Estudo sobre Cuidadoras Familiares de Pessoas Idosas:

• A decisão pelo cuidado familiar: vínculo, moralidade e falta de opções acessíveis e confiáveis. Há uma recusa a qualquer arranjo de cuidado que não aquele internalizado pela família. Prevalece uma visão de que é obrigação da família cuidar de seus idosos e outros arranjos de cuidado (governamentais ou mercantis) tendem a ser malvistos e interpretados como displicência e negligência. É uma decisão pautada pela moralidade, mas, além da questão moral, as famílias não conseguem visualizar muitas opções acessíveis e confiáveis. Primeiro, não há conhecimento sobre serviços públicos, que são, de fato, escassos. Por outro lado, há um estigma grande sobre serviços

Registro da afetividade entre a cuidadora 5 e sua mãe
Cadeira de banho
Adaptações improvisadas

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privados. A exceção são serviços de luxo, fora do alcance financeiro da maior parte das pessoas. Predomina uma recusa muito forte em relação às ILPI. Assim, cuidar em casa é quase sempre considerada a melhor opção. Mas, a contratação de cuidadoras profissionais domiciliares também é vista com ressalvas, há receio e desconfiança: “É uma desconhecida”. Então, responsabilizar alguém da família é considerado o arranjo mais fácil, barato e que garante que o cuidado será desempenhado por alguém conhecido, de confiança e que tem vínculo com a pessoa cuidada. A dimensão do vínculo – seja de afeto, seja só de parentalidade – é muito valorizada nas decisões que constroem os arranjos de cuidado das pessoas idosas.

• A demanda de cuidado se impõe: as famílias não estão preparadas e lidam com a situação no improviso. Embora o cuidado de idosos seja uma responsabilidade absorvida pelas famílias na sociedade brasileira, elas não se organizam e nem se planejam para esse momento. O tema é tabu e quando a necessidade surge – após algum evento drástico como diagnóstico de doença grave e/ou perda de mobilidade da pessoa idosa – a família tende a lidar com o fato de modo improvisado e como se fosse uma situação passageira. Não há planejamento financeiro e nem conversas abertas sobre os melhores arranjos para enfrentá-la coletivamente. Não há nenhum tipo de preparo para aprender habilidades técnicas básicas para o cuidado de uma pessoa idosa. Perdura o suposto de que cuidar é natural. O arranjo provisório acaba se tornando duradouro e nem sempre é a melhor situação para as pessoas implicadas nele.

• O cuidado familiar é feminino. Via de regra, a responsabilidade recai sobre uma mulher da família, que geralmente está sem trabalho, ou tem um trabalho mais flexível, e/ou é responsável pelo cuidado de outras pessoas da família (crianças, doentes etc.).

• O cuidado familiar é centralizado em uma figura, não é distribuído no grupo familiar. Assim que uma pessoa se torna a principal responsável por esse trabalho, alguns outros membros da família podem (ou não) assumir papéis complementares. Mas, geralmente, são arranjos desequilibrados, em que a principal carga de trabalho recai sobre uma pessoa e os personagens coadjuvantes assumem tarefas esporádicas.

• A rotina de cuidado familiar é implacável e afasta as cuidadoras de outras atividades. O cuidado de uma pessoa idosa envolve demandas constantes e urgentes. A cuidadora fica totalmente absorvida por esse trabalho e renuncia a outras atividades. Pequenas tarefas até chegam a ser compartilhadas com outros familiares, mas os cuidados de maior intimidade ou complexidade são realizados exclusivamente pela cuidadora principal. Assim, ela não consegue ter dias de folga. Os fins de semana são iguais aos dias de semana. Para que a rotina dos cuidados funcione precisa haver planejamento e sair da rotina é muito desafiador para as cuidadoras.

• O cuidado demanda habilidades e conhecimentos técnicos específicos, nem sempre fáceis de serem obtidos. As mulheres que se tornam cuidadoras familiares desenvolvem as habilidades por meio de experiências práticas, pela observação do trabalho de outrem, na realização de pesquisas na internet ou fazendo um curso de cuidadora.

• O cuidado não é visto como trabalho, a cuidadora familiar não é remunerada. Em alguns casos ela até recebe alguma remuneração, mas simbólica, pois não configura um salário. Trata-se de um arranjo precário feito com a família, definido como ajuda: ou ela recebe uma parte da aposentadoria da pessoa cuidada, ou outros parentes pagam as contas dela – que se confundem com as despesas da casa, pois seu gasto pessoal é mínimo.

• A conciliação entre o cuidado familiar e outras atividades produtivas é desafiadora. A falta de compartilhamento dos cuidados com outras pessoas aumenta a dificuldade da cuidadora em buscar uma fonte de renda ou ter metas profissionais, apesar do desejo manifestado por elas de alcançar essa dimensão laboral. Assim, as possibilidades de conciliar o cuidado com outros trabalhos são limitadas a atividades irregulares e/ou que possam ser feitas em casa, durante os pequenos momentos de folga do cuidado, como por exemplo, quando a pessoa idosa dorme. As mulheres cuidadoras ficam de fora do mercado de trabalho e não têm esse tempo do trabalho de cuidado familiar contabilizado para sua aposentadoria, mesmo trabalhando em jornadas exaustivas.

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• As cuidadoras familiares não possuem autonomia financeira. Elas dependem muito da renda da pessoa idosa cuidada, além de outros arranjos financeiros familiares que as remuneram com um valor simbólico, abaixo do valor de mercado. Elas não conseguem guardar dinheiro ou mesmo custear consumos próprios e de realização pessoal.

• A renda da pessoa idosa é central nos arranjos financeiros e de cuidado das famílias. As pessoas idosas recebem aposentadorias e/ou pensões por morte, além de outros rendimentos como aluguéis e aplicações financeiras que cobrem seus custos pessoais, pagam parte substantiva das contas domiciliares e ainda financiam a retribuição simbólica das cuidadoras familiares. O estudo observou que, independentemente da classe social da família, os recursos financeiros dos idosos são fundamentais nos arranjos que provêm o cuidado familiar e têm uma participação financeira importante nos domicílios onde moram. Por fim, são os recursos dos próprios idosos que são parcialmente destinados para uma colaboração financeira simbólica visando compensar a dedicação das cuidadoras familiares.

• A dedicação ao trabalho de cuidado familiar de idosos traz impactos emocionais negativos. Acompanhar o envelhecimento e o processo de fragilização física e cognitiva de um familiar com quem se tem laços afetivos envolve sofrimento e sensação de luto antecipado. Além disso, a rotina rígida e exaustiva associada a uma rede de apoio frágil provoca estresse e leva ao esgotamento emocional das cuidadoras familiares.

• Distância, desconhecimento e desconfiança em relação às políticas governamentais destinadas ao envelhecimento e ao cuidado. Os serviços oferecidos pelo poder público para o cuidado das pessoas idosas são poucos e desconhecidos. Algumas entrevistadas até já ouviram falar de serviços desse tipo, mas não têm conhecimentos aprofundados e não sabem como acessá-los. A decisão de internalizar o cuidado na família também está pautada na percepção negativa e na desconfiança nos serviços públicos ou privados que oferecem cuidado às pessoas idosas.

• As cuidadoras familiares demandam ações governamentais para exercer a tarefa de cuidado contando com auxílio financeiro, suporte psicológico e acesso a conhecimento técnico.

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referências

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Programa Mente Ativa do Sesc

Santa Catarina Confirma

Evidências sobre a Importância da Estimulação Cognitiva para o Envelhecimento

Ativo e Autônomo

[Artigo 3, páginas de 36 a 54]

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André Junqueira Xavier

Médico geriatra, doutor em ciências da saúde e informática, fundador e coordenador do Serviço Ambulatorial de Memória (Memo) da Faculdade de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina e assessor do Programa Mente Ativa do Sesc-SC. drandrejxavier@gmail.com

Cristiani Jacobus Vieira

Analista de Programação Social do Sesc-SC, responsável pela coordenação estadual do Trabalho Social com Pessoas Idosas do Sesc-SC. cristiani.7161@sesc-sc.com.br

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Artigo 3

Programa Mente Ativa do Sesc Santa Catarina Confirma Evidências sobre a Importância da Estimulação Cognitiva para o Envelhecimento Ativo e Autônomo

Resumo

Acumulam-se evidências sobre a efetividade de metodologias de estimulação cognitiva na prevenção e melhoria de vários aspectos da memória, diminuição de sintomas depressivos e manutenção da capacidade funcional. Em função disso, aqui estão apresentados os resultados do programa de estimulação e reabilitação cognitiva Mente Ativa, realizado no ano de 2023 em 27 unidades do Sesc Santa Catarina. Metodologia: Análise longitudinal univariada, bivariada e multivariada, do tipo antes e depois da primeira turma do Programa Mente Ativa (PMA), uma coorte aberta de participantes com 40 anos ou mais de ambos os sexos, com tempo de acompanhamento entre seis e dez meses. Foram coletados, mediante consentimento informado, dados sobre memória, capacidade funcional, sintomas depressivos, fatores de risco e proteção e um questionário aprofundado sobre motivações, preferências e expectativas dos participantes. Resultados: 27 equipes do Sesc Santa Catarina, 501 participantes, 89% de mulheres com idade média de 70,4 anos e escolaridade média de 11,2 anos. Conclusão: Houve uma significativa melhoria do estado cognitivo ao final do primeiro ciclo do programa, acompanhada de significativa diminuição de sintomas depressivos com manutenção da capacidade funcional e velocidade da marcha. A melhoria cognitiva foi proporcional à melhora nos sintomas depressivos e ambas se relacionaram a um maior número de sessões frequentadas. As melhorias cognitivas e nos sintomas depressivos ocorreram em toda a turma, independentemente do estado cognitivo inicial. Os sintomas depressivos melhoraram entre aqueles que relataram ter depressão e também entre aqueles que não relataram depressão.

palavras-chave: estimulação cognitiva; reabilitação cognitiva; humanização; grupos; prevenção; sintomas depressivos.

abstract

There is mounting evidence about the effectiveness of cognitive stimulation methodologies in preventing and improving various aspects of memory, reducing depressive symptoms and maintaining functional capacity. To address that, here are the results of the “Mente Ativa” cognitive stimulation and rehabilitation program. Methodology: Univariate, bivariate and multivariate longitudinal analysis, before and after the intervention in the first group of the Mente Ativa Program (PMA). The participants are aged 40 or over, both sexes, with follow-up time between 6 months and 10 months. Data on memory, functional capacity, depressive symptoms, risk and protective factors and an in-depth questionnaire on participants’ motivation and preferences and expectations were collected through informed consent. Results: 27 Sesc Santa Catarina teams, 501 participants, 89% women, average age of 70.4 years, average education of 11.2 years. Conclusion: There was a significant improvement in cognitive status at the end of the first cycle of the program, accompanied by a significant reduction in depressive symptoms with maintenance of functional capacity and gait speed. The cognitive improvement was proportional to the improvement in depressive symptoms and both were related to a greater number of sessions attended. Cognitive improvements and improvements in depressive symptoms occurred across the entire class, regardless of initial cognitive status. Depressive symptoms improved among those who reported having

keywords: cognitive stimulation; cognitive reabilitation; humanization; groups; prevention; depressive symptoms.

Artigo 3

Programa Mente Ativa do Sesc Santa Catarina Confirma Evidências sobre a Importância da Estimulação Cognitiva para o Envelhecimento Ativo e Autônomo

Introdução

As Demências, uma Mudança de Paradigma

Os vários problemas de memória que afetam a população adulta de todo o mundo são e continuarão sendo uma enorme preocupação para todos. As demências e, especificamente, a doença de Alzheimer, trazem um cenário de aumento progressivo dos casos que chegarão a cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, com piora inexorável e poucas perspectivas de cura (THIES e BLEILER, 2011).

Por outro lado, evidências se acumulam indicando que a cada geração que chega aos 60 anos de idade ocorre a diminuição significativa da incidência das demências, ou seja, há menos demência para o mesmo grupo etário (SCHRIJVERS et al. 2012; MATTHEWS et al. 2016; ROCCA et al. 2011). Esse processo foi detectado inicialmente em países e regiões mais envelhecidos e com níveis educacionais e de saúde pública progressivamente melhores e vem se mantendo desde então. Análises na população de Santa Catarina também detectaram essa mudança (d’ORSI E. et al., 2010; DANIELEWICZ et al., 2016). Desta forma, a alta prevalência de problemas de memória encontrados nesses locais provavelmente se deve ao melhor tratamento/cuidado e à maior estabilização dos quadros de perda de memória, fazendo com que essas pessoas vivam mais do que a incidência de novos casos, que vêm decrescendo (A. J. XAVIER et al., 2014; PRINCE et al., 2012). Estes achados abrem novos horizontes de prevenção e promoção da saúde cognitiva da nossa população adulta e idosa.

De alguma forma o próprio progresso da nossa sociedade, com melhoria do padrão socioeconômico, está se demonstrando uma poderosa ferramenta de prevenção das demências (SCHELTENS et al., 2016; FLETCHER, 2023) e reforça a importância de programas de estimulação e reabilitação cognitiva para a otimização deste fenômeno.

Estes fatos ganham especial importância diante do esgotamento das teorias atuais sobre as causas das principais demências e os sucessivos fracassos terapêuticos (BERMEJO-PAREJA e DEL SER, 2024). Isso abre caminho para novas teorias e tratamentos (RICHARD, DEN BROK e VAN GOOL, 2021). Para as pessoas que vivem na comunidade, os processos que podem levar a problemas de memória são na verdade múltiplos e indistinguíveis (SCHNEIDER et al., 2007).

Se avolumam evidências em favor de medidas preventivas e reabilitadoras, dentre elas a Estimulação Cognitiva (EC) (SPECTOR et al., 2003; SARAGIH et al., 2022; LOK, BULDUKOGLU e BARCIN, 2020;

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AGUIRRE et al., 2010). Atualmente, sabe-se que a estimulação e reabilitação cognitiva é útil para pessoas com demência leve ou moderada para torná-las mais capazes de lidar com suas atividades. As evidências sugerem que a EC é uma valiosa ferramenta para atender pessoas com demência a superar barreiras no seu cotidiano (BAHAR-FUCHS et al., 2019). Muitas metodologias de estimulação cognitivas são efetivas, especificamente se atuam nos eixos de atividade cognitiva, atividade física e atividade social. Isso também ocorre com a metodologia da Oficina da Lembrança, desenvolvida no Brasil e utilizada há cerca de 20 anos na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (QUIALHEIRO et al., 2022; KRUG et al., 2017; XAVIER et al., 2010; KRUG et al., 2015; XAVIER et al., 2010; VALSECHI et al., 2023) e que funciona como base metodológica para o Programa Mente Ativa (PMA) do Sesc Santa Catarina.

Possivelmente estamos chegando a um novo equilíbrio entre estes paradigmas que, sem se anularem, poderão agir de forma sinérgica, caracterizando-se em uma cognição suficiente para sustentar um curso de vida humanizado e legítimo.

Desde o começo do século XXI, estudos mostraram a possibilidade de prevenção da demência culminando em dois artigos da Lancet Commission (Livingston et al. 2017; 2020), que divulgaram evidências sobre fatores modificáveis com potencial de prevenção em cerca de 40% dos casos: tratar o diabetes, a depressão, parar de fumar, controlar o peso, estudar, ser fisicamente ativo, consumir pouco álcool, controlar a hipertensão, evitar o isolamento social, respirar ar não poluído, evitar traumatismo craniano e evitar e minorar perdas auditivas. Logo, a demência atualmente é uma síndrome fortemente prevenível. O termo Síndrome Demencial (SD) é mais cabível do que declínio cognitivo e demências, salvo raras exceções, já que são multifatoriais. Especificamente, esta metodologia de fatores de risco modificáveis foi pesquisada no Brasil, verificando-se que o potencial de prevenção de SD no Brasil é maior do que em países mais ricos (48,2%), sem diferença entre brancos e negros, e que as regiões mais pobres do Brasil possuem um potencial de prevenção ainda maior (54%) e, ainda, de acordo com esse estudo, os fatores mais importantes foram escolaridade, hipertensão arterial e perda auditiva (SUEMOTO et al., 2023). Esse cenário mais favorável provavelmente se deve a uma população um pouco mais jovem e passível de intervenções mais precoces.

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As atividades realizadas estimulam o desenvolvimento cognitivo, tendo como base interação social, vivências, jogos, dinâmicas, exercícios e ferramentas na internet, sendo sempre mediadas pelo processo grupal.

Desta forma, a perda cognitiva se mostra modificável, especificamente a incidência de síndromes demenciais, que vem diminuindo em locais onde há melhor acesso à educação, à saúde e à proteção social.

Sobre o Programa Mente Ativa (PMA) do Sesc Santa Catarina

Em março de 2023, o Sesc Santa Catarina implantou o Programa de Estimulação Cognitiva – Mente Ativa (PMA) em 27 unidades no estado. Uma atividade que faz parte do portfólio dos serviços da área de Trabalho Social com Pessoas Idosas/Programa Assistência. Essa proposta é uma evolução do projeto anterior realizado há quase dez anos pelo Sesc Santa Catarina, o Grupo da Memória. E surgiu da necessidade de aprimoramento e alinhamento metodológico, atualização e qualificação dos serviços prestados ao público 60+.

O PMA é um programa de intervenção multimodal para estimulação cognitiva, manutenção e recuperação da independência, autonomia e melhoria da performance funcional e cognitiva. Tem como objetivo a promoção do envelhecimento ativo e saudável dos participantes, realizado por meio de atividades semanais em grupos nas unidades do Sesc Santa Catarina, com duração anual (10-11 meses). O programa tem a humanização e o convívio social como fenômenos centrais para o pleno funcionamento da cognição.

O PMA é voltado para pessoas a partir dos 60 anos com queixas, dificuldades cognitivas ou intenção de ganho de capacidade cognitiva, que apresentam fatores de risco para déficit de memória e/ou com déficits cognitivos iniciais ou que querem focar na prevenção. Também há possibilidade de atendimento de pessoas a partir dos 40 anos que já apresentam dificuldades cognitivas.

O PMA conta com uma metodologia própria, baseado em evidências e na Oficina da Lembrança (Unisul) para melhorar o desempenho da atenção, da memória, do humor, do raciocínio, da concentração e das atividades básicas de vida diária. Desta forma, previne futuros declínios cognitivos, contribuindo para um envelhecimento ativo e saudável, com mais autonomia, consciência e independência.

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As atividades realizadas estimulam o desenvolvimento cognitivo, tendo como base interação social, vivências, jogos, dinâmicas, exercícios e ferramentas na internet, sendo sempre mediadas pelo processo grupal. As intervenções visam proporcionar mais autonomia funcional, mais independência e mais qualidade de vida aos participantes.

O acompanhamento é uma característica básica do programa: os participantes são avaliados com testes validados e um questionário multidimensional detalhado sobre saúde, autopercepção de memória e motivação para analisar o desempenho individual. A partir dos resultados, é possível direcionar as atividades de acordo com o perfil e a necessidades de cada grupo. Ao final do ano, cada participante recebe uma devolutiva individual das equipes do Sesc Santa Catarina, apresentando os dados do seu desempenho no programa. Cada grupo também recebe uma devolutiva geral sobre o desempenho do coletivo.

A construção dessa proposta começou em 2022, com o processo de criação metodológica, construção de materiais técnicos e início dos treinamentos virtuais das equipes do Sesc Santa Catarina. Todo o processo de trabalho contou com a assessoria técnica do dr. André Junqueira Xavier, médico geriatra, doutor em informática em saúde e pós-doutorado em estimulação cognitiva, que atua nas áreas de ensino médico, epidemiologia do envelhecimento e reabilitação da memória. Ele é coordenador do Ambulatório da Memória e da Oficina da Lembrança da Unisul Grande Florianópolis, além de ser criador e coordenador da disciplina de telemedicina do curso de medicina da Unisul.

Durante o ano de 2023, realizamos o treinamento presencial da nova metodologia para as equipes que atuam com programa no estado, com um total de 41 colaboradores envolvidos. E para o suporte técnico, estudo de casos e supervisão da implementação do programa ocorreram reuniões mensais virtuais durante todo ano, conduzidas pelo dr. André e pela analista responsável pelo programa no estado.

RESULTADOS POSITIVOS NO PRIMEIRO ANO DE REALIZAÇÃO

Metodologia

Foi realizada a análise univariada, bivariada e multivariada. A bivariada utilizou o qui-quadrado, o teste T de student para amostras independentes e para analisar a evolução dos escores foi usado o teste T para amostras pareadas. Para comparação de medidas contínuas a regressão linear, e para análise multivariada com regressão logística para medidas discretas foi admitido como padrão o P valor menor ou igual a 0,005. Algumas análises foram de coorte e outras levaram em

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conta a característica longitudinal e prospectiva de uma coorte aberta. Foram estudadas as características sociodemográficas, de motivação, problemas e qualidades cognitivas, comorbidades/fatores de risco, avaliação cognitiva, de sintomas depressivos, capacidade funcional e marcha simples e com dupla tarefa. Foram utilizados os seguintes instrumentos validados no Brasil: MoCA Teste, BOMFAQ/OARS, GDS-15 e Timed up and Go (TUG) dupla tarefa.

Resultados

Foram estudadas 501 pessoas com tempo de participação entre 5 e 11 meses, com as duas coletas de testes completos. Idade média de 70,4 anos; escolaridade média de 11,2 anos; sendo que 45% possuem alguma ocupação não vinculada a emprego formal; 84% são aposentadas; 33% vivem sozinhas; há 1,83 pessoas em média em cada residência; e 31% estão vivenciando situações de luto ou perda significativa.

Em relação aos motivos apontados para participar do programa, 82% querem melhorar a memória, 74% prevenir problemas de memória/saúde, 63% ficar/permanecer atualizadas, 50% querem ficar junto aos amigos e 41% aumentar sua vida social.

Em termos de dificuldades de memória no dia a dia, 68% possuem esquecimento/desatenção em situações de memória operacional de curto prazo como, por exemplo, “ir do quarto para a sala e esquecer o que iria fazer lá”; 57% esquecem onde colocaram objetos; e 36% se esquecem de recados.

Banco de imagens da equipe do Sesc-SC

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Em termos de comorbidades relatadas e fatores de risco reconhecidos para problemas de memória, se destacam: ansiedade (51%); hipertensão arterial (46%); covid (41%); deficiência visual (49%); deficiência auditiva (26%); medicações para dormir (27%); desequilíbrio (24%); dor crônica (21%); e diabetes (20%). Em termos de preferências em relação a atividades de lazer e estimulação, 75% gostam de caminhada, 59% de dança, 60% de leitura e filmes e 46% de jogos.

Perfil das primeiras turmas a partir da coleta de dados dos instrumentos de avaliação funcional, cognitiva, de dupla tarefa e de sintomas depressivos

População de 501 pessoas, em média com 4,9 sintomas depressivos pelo GDS (ponto de corte de 5 pontos), capacidade funcional de 13,3 (relativamente independentes), MoCA teste de 22,2 (normal baixo para a escolaridade). Em relação aos testes de marcha Timed Up and go Dual Task (TUG); TUG simples foi de 9,87±2,7 segundos, o TUG cognitivo foi de 12,0±4,3 segundos e o TUG motor foi de 12,0±4,2 segundos. A maior escolaridade foi associada à maior pontuação no MoCA Teste, p=0,046. Não foram encontradas diferenças significativas entre as categorias sexo, etnia/cor e aposentadoria em termos dos benefícios proporcionados pelo PMA. População com boa capacidade funcional, sintomas depressivos proeminentes e capacidade cognitiva na faixa normal/ baixa podem melhorar.

Houve ganho cognitivo independentemente do estado cognitivo inicial e esse ganho ocorreu de forma semelhante em todas as equipes regionais. Homens chegam mais velhos, mais comprometidos cognitiva-

Banco de imagens da equipe do Sesc-SC

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mente e funcionalmente, mais lentificados e com mais comorbidades, e ainda se encontram sub-representado nesta amostra. As pessoas diabéticas tiveram maior comprometimento funcional. Os hipertensos são mais velhos, mais comprometidos cognitivamente e funcionalmente, mais lentificados e com mais comorbidades. Os deprimidos são significativamente mais comprometidos cognitivamente e funcionalmente, mais lentificados e com mais comorbidades. A ansiedade é a maior queixa autorreferida e fica mais presente quanto mais jovens são os participantes.

Análise das mudanças cognitivas ocorridas entre o início e o fim do primeiro ano de atividades das primeiras turmas do PMA

A variação percentual do MoCA Teste, como está representada no gráfico abaixo, mostra que houve ganho significativo de capacidade cognitiva em todos os grupos, independentemente da pontuação inicial.

Gráfico 1: Percentual de melhoria cognitiva medida pelo MoCA Teste ao final do programa, independentemente da intensidade das dificuldades cognitivas iniciais Sesc-SC, 2021-1 (n=501)

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No gráfico abaixo se encontram as mudanças de categoria de acordo com critérios de alteração clinicamente significativa no MoCA Teste (perda ou ganho cognitivo de 4 pontos ou mais pelo MoCA Teste) e os critérios de suspeita de Demência e Comprometimento Cognitivo Leve pelos pontos de corte de Brucki et al. (CESAR et al., 2019).

Gráfico 2: Mudanças na proporção de participantes em cada grupo pelo estado cognitivo por pontos de corte do MoCA Teste

Observações:

• Critério para Síndrome Demencial (SD) inicial: MoCA Teste de 14 pontos ou menos.

• Critério para saída da SD: MoCA Teste de 15 ou mais pontos na segunda coleta e ganho de pelo menos 4 pontos em relação à primeira coleta.

• Critério para entrada em SD: MoCA Teste de 14 pontos ou menos na segunda coleta e perda de pelo menos 4 pontos em relação à primeira coleta.

• O conceito de SD não é igual ao diagnóstico de demência e sim uma suspeita a partir de um instrumento de rastreio.

Desta forma, no início do PMA, 45 participantes preenchiam o critério para SD, provavelmente leve/moderada, pois os mais graves têm mais dificuldades de estar na comunidade de forma mais independen-

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te, destes, 18/45 (40%) saíram do critério de SD. Por outro lado, dentre aqueles que não apresentavam critérios para nenhum tipo de déficit cognitivo apenas 3/235 (1,2%) entraram na categoria de SD, também houve uma entrada de 4/221 (1,8%) em SD daqueles que preenchiam um critério de Comprometimento Cognitivo Leve (que não compromete de forma significativa as funções do dia a dia). Esta mudança foi estatisticamente significativa com P valor de 0,000 (análise bivariada por meio do qui quadrado de Pearson). Verificou-se que a mudança para melhor continuou significativa de forma independente p=0,000 na análise multivariada por meio de regressão logística, sendo que a escolaridade mais alta foi também foi positiva de forma independente p=0,019.

Gráfico 3: Mudança de estado cognitivo em relação ao critério de Comprometimento Cognitivo Leve (CCL)

N total = 443

Observação:

• Critério para CCL: MoCA Teste de 15 até 23 pontos.

• Critério para saída da CCL: MoCA Teste de 24 ou mais pontos na segunda coleta.

• Critério para entrada em CCL: MoCA Teste de 15 até 23 pontos na segunda coleta.

• O conceito de CCL utilizado representa uma suspeita a partir de um instrumento de rastreio e não é diagnóstico.

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Antes
Depois
Hígidos

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Diminuição percentual dos sintomas depressivos pelo GDS-15

Após análise por meio de regressão logística, ajustada para idade, sexo, escolaridade, cor autodeclarada e estado cognitivo no início do PMA, verificou-se que a mudança para melhor continuou significativa de forma independente p=0,000, sendo que a escolaridade mais alta foi protetora p=0,032 e ser mulher p=0,008 foi fator de risco significativo de forma independente para piora.

Após o final do ciclo de atividades do PMA houve forte diminuição do número de pessoas que se enquadravam inicialmente nas categorias SD e CCL e também um aumento significativo daqueles que se enquadraram inicialmente como sem déficit cognitivo (saudáveis). Isso ocorreu independentemente da idade, escolaridade, sexo, cor, fatores de risco, morbidades e queixas de memória. Análise por meio de modelo bivariado e multivariado com regressão logística (p=0.000).

Análise das mudanças nos sintomas depressivos ocorridas entre o início e o final do primeiro ano de atividades das primeiras turmas do PMA

Gráfico 4: Relação inversa significativa entre a diminuição dos sintomas depressivos medidos pelo GDS-15 e o número de sessões realizadas pelos participantes, p=0,020. (32), mostrando a importância da participação assídua no programa

Número de sessões atendidas

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Gráfico 5: Alta prevalência de sintomas depressivos na população das primeiras turmas do PMA e mudanças ao fim do ciclo de atividades, classificação por pontos de corte do GDS-15

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Mudança percentual nas categorias de depressão (GDS-15) antes e depois do Mente Ativa, primeira turma - Sesc-SC (n=501)

Este gráfico mostra uma importante mudança nos critérios de depressão pela diminuição dos sintomas depressivos antes e depois da participação no programa, e esse efeito ocorreu também entre aqueles que não relataram ter depressão.

Gráfico 6: Relação direta entre a melhoria cognitiva e a melhoria concomitante nos sintomas depressivos

Associação significativa entre a melhora da memória e a diminuição dos sintomas para aqueles com autorrelato de depressão

Melhora da memória

Piora da memória

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Houve associação entre a melhoria dos sintomas depressivos e a melhoria da cognição, especialmente entre aqueles que já tinham um diagnóstico prévio (autorrelatado) de depressão. A depressão é uma das principais causas reversíveis de problemas de memória. Análise por meio de modelo bivariado com regressão linear (P=0,037).

Conclusões

Pelo que a equipe tem notícia, este é o primeiro programa de estimulação cognitiva implementado com a abrangência de todo um estado no Brasil. É pioneira também a metodologia de construção de questionário apropriado, criação de um Manual Técnico do Programa Mente Ativa com orientações e procedimentos, formação continuada das equipes, acompanhamento, discussão e supervisão dos casos, presença de um serviço de telemedicina (cooperação técnica com a Unisul) prestando apoio ao programa, análise epidemiológica e devolutiva estruturada para todos os participantes. É importante frisar que os vários talentos e capacidades técnicas em função do background de cada técnico responsável pelo PMA nas unidades (enfermagem, serviço social, educação física, educação, pedagogia, música, arte, dança, informática, filosofia, administração e psicologia, entre outros). Também ocorre a junção pioneira de aspectos qualitativos e quantitativos na avaliação, acompanhamento e devolutivas aos participantes, em termos de evolução individual e em grupo.

A escolaridade, a idade, o sexo, a cor/etnia e a aposentadoria não representaram obstáculos para as melhorias percebidas com o programa, mostrando seu caráter inclusivo. Ao contrário, a maior escolaridade foi um importante fator protetor contra perdas cognitivas, conforme já encontrado em outros trabalhos científicos. O autorrelato de ansiedade foi o fator de risco mais prevalente nesta população, mas não se relacionou à perda de memória.

Em relação a problemas de saúde prévios, se destacou a covid, que atingiu 41% da população da primeira turma, sendo que 8% desenvolveram covid longa, que se caracteriza por sintomas de longa duração, tais como fadiga, dores e problemas de memória.

Houve marcante melhoria da pontuação (e percentagem) no escore cognitivo MoCA Teste após a intervenção. Essa melhora foi independente de outros fatores, tais como idade, escolaridade, gênero, comorbidades, fatores de risco, capacidade cognitiva, funcional, velocidade da marcha e sintomas depressivos.

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Possivelmente essa melhoria se associou à melhora de sintomas depressivos medidos pelo GDS-15, (ANDRÉ XAVIER et al., 2011) especialmente entre aqueles com autorrelato de depressão. O maior número de presenças se associou aos bons efeitos encontrados (efeito dose –resposta). Os escores relativos à marcha e dupla tarefa (TUG) ficaram estáveis, o que leva à possibilidade de se intensificar atividades físicas no futuro. A capacidade funcional sofreu leve melhoria, pois já se encontrava em patamar relativamente alto.

Ocorreram vários encaminhamentos de casos mais complexos que foram atendidos pela rede local em parceria com o atendimento de telemedicina do curso de medicina da Unisul. Ocorreu uma excelente aceitação do programa, marcada pelo baixo perfil de desistências, de apenas 12%, sendo que a maior fração se deveu a problemas de saúde apresentados pelos participantes e suas respectivas famílias.

Houve associação da melhoria cognitiva e de sintomas depressivos com a maior participação no programa. As pessoas com 75 anos ou mais a idade não sofreram impedimento de melhorias, confirmando o efeito benéfico também em população mais velha.

O Programa Mente Ativa obteve resultados em concordância com as evidências encontradas na literatura científica atual.

Limitações

Perdas de informação acima de 20% em algumas variáveis impediram análises mais aprofundadas.

Diagnósticos autorrelatados são menos precisos. A alta escolaridade encontrada dificulta a generalização dos resultados para outras populações. Apesar do treinamento e capacitação prévios com as equipes, podem ter ocorrido variações no padrão de aplicação dos testes em função da abrangência da atuação e pessoas envolvidas. Possivelmente algumas pessoas mais frágeis e comprometidas desistiram.

Este é um relatório técnico que não pretende apresentar evidências científicas nem relações de causa e efeito, apenas mostrar que os resultados encontrados concordam com as evidências científicas já estabelecidas para este tipo de trabalho de estimulação cognitiva.

Os critérios utilizados para as categorias de cognição e de depressão foram obtidos por meio de escores padronizados no Brasil e não pelo exame clínico, que é o padrão-ouro.

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referências

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Programa Mente Ativa do Sesc Santa Catarina Confirma Evidências sobre a Importância da Estimulação Cognitiva para o Envelhecimento Ativo e Autônomo 54 b

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Abramo/Sesc-SP sobre a Capacidade de Cuidar1

[Artigo 6, páginas de 55 a 71]

Solange Maria Teixeira

Docente da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Assistente social e doutora em políticas públicas, com estudos sobre envelhecimento e políticas sociais para pessoas idosas. solangeufpi@gmail.com

1 Uma versão ampliada deste artigo, compõe a obra Velhices: perspectivas e cenário atual na Pesquisa Idosos no Brasil. São Paulo: edições Sesc: FPA, p. 46-63, 2023.

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Envelhecimento, Família e Cuidados: o que nos Revelam os Dados da Pesquisa Perseu Abramo/Sesc-SP sobre a Capacidade de Cuidar

Resumo

O objetivo deste artigo é problematizar o lugar-comum posto pelas estruturas de gênero de que o cuidado de idosos(as) é atribuição exclusiva das mulheres das famílias e apontar que o reforço do familismo pelas políticas sociais deve ser superado, considerando que o cuidado é um direito social. É preciso levar em conta as mudanças na composição das famílias, o crescimento dos grupos de idosos(as) de mais idade e as dificuldades de cuidado pela família. Trata-se de um estudo teórico de base bibliográfica e com dados secundários da pesquisa realizada em 2020, pela Perseu Abramo em parceria com o Sesc São Paulo. Conclui-se que os(as) idosos(as) entrevistados(as) contam, a cada levantamento de dados, com menos apoio, ajuda e cuidados dos familiares, além de ocorrer um crescimento de pessoas idosas que moram sozinhos sem redes informais de apoio, o que remete para o reforço da necessidade de políticas públicas de cuidados.

Palavras-chave: envelhecimento; família; cuidados.

abstract

The objective of this article is to problematize the commonplace posited by gender structures that caring for the elderly is the exclusive responsibility of women in families and to point out that the reinforcement of familism through social policies must be overcome, considering that care is a right social situation, changes in the composition of families, growth in groups of older people, difficulties in family care. This is a theoretical study with a bibliographic basis and with secondary data from research carried out in 2020, by Perseu Abramo in partnership with Sesc São Paulo. It is concluded that the elderly interviewed count on each data collection with less support, help and care from family members, in addition to the increase in elderly people living alone without informal support networks, which leads to reinforcing the need for public policies of care.

Keywords: aging; family; care.

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Introdução

A gerontologia internacional é uma das responsáveis pela difusão da ideia de que o melhor lugar para envelhecer é em família ao propagar o pacto intergeracional como saída para o atendimento das necessidades das pessoas idosas, da assistência e dos cuidados das políticas públicas em domicílio e em parceria com as famílias, como forma de evitar a institucionalização e garantir uma qualidade de vida na velhice.

Esses ideais quase sempre mascararam que a família é contraditória e ambígua; que uma parte considerável de pessoas idosas não tem suporte familiar próximo para contar; que as famílias estão em processo acelerado de mudanças e que a luta por sobrevivência domina seu tempo de existência; e que as políticas sociais têm traços familistas que sobrecarregam as mulheres e as famílias, principalmente na periferia do sistema capitalista.

Essas constatações nos levam a problematizar: quais mudanças podem ser observadas na família contemporânea, especialmente nas famílias de ou com idosos(as)? Qual o lugar das relações familiares nas fontes de apoio para os(as) idosos(as) brasileiros(as)? O que o estado civil, a quantidade de membros familiares no domicílio, as pessoas mais próximas, o acolhimento familiar e as ajudas recebidas nos dizem sobre a capacidade de suporte das famílias às pessoas idosas?

Para responder a essas problematizações, o texto utilizou os dados da pesquisa Idosos no Brasil II: Vivências, Desafios e Expectativas na Terceira Idade, realizada em parceria entre o Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc/SP) e a Fundação Perseu Abramo, em 2020, e que se fundamentou numa revisão da literatura sobre envelhecimento, velhice e família. Nessa perspectiva, o objetivo do capítulo é analisar, a partir dos dados empíricos da referida pesquisa, as mudanças na família, especialmente a de idosos(as) e com idosos(as), e o lugar das relações familiares no envelhecimento e na velhice dos brasileiros.

Envelhecimento Humano e Diferentes Velhices: Processo

Biopsicossocial Marcado por Heterogeneidades e Homogeneidades

Como destaca Beauvoir (1990, p. 17), “a velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo”. Enquanto etapa da vida, parte do ciclo vital, ela é o período que condensa, expressa e torna visíveis os efeitos de um processo mais longo, que atravessa a existência humana, que é o envelhecimento.

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O homem não vive em estado natural, mas ao contrário, é sempre um ser social, que constrói suas condições de existência e reprodução social. Envelhecer, nessas circunstâncias, implica considerar não apenas como contexto ou pano de fundo a realidade social em que se vive, constrói e reproduz, portanto, em que se envelhece.

O envelhecimento é um processo biopsicossocial dinâmico, gradativo, acumulativo, histórico-social. É da “natureza” social dos homens e não meramente um fenômeno natural, como se características biológicas não fossem afetadas pelas condições psicossociais, macrossociais e culturais de cada época histórica e tipo de sociedade. Basta ver que os cortes etários que definem os diferentes momentos do ciclo de vida são construções sociais e que esse ciclo é vivido de formas diferenciadas pelos indivíduos.

Todavia, a forma como a gerontologia social se desenvolveu enquanto campo científico hegemônico tem aproximações com a geriatria, com os referenciais positivistas e biomédicos, o que, na maioria das vezes, isolou os elementos do fenômeno do envelhecimento e hipervalorizou as dimensões biológica e fisiológica do processo, naturalizando um fenômeno determinado socialmente.

Porém, entre essas mediações determinantes do processo do envelhecimento (biológico, psicológico e social) há interdependências, imbricamentos, circularidade e dialética que o torna um fenômeno sui generis, formando uma totalidade que não é resultado da junção ou soma das partes. Logo, “não basta, portanto, descrever de maneira analítica os diversos aspectos da velhice: cada um deles reage sobre os outros e é afetado por eles; é no movimento indefinido desta circularidade que é preciso apreendê-la” (BEAUVOIR, 1990, p. 16).

O homem não vive em estado natural, mas ao contrário, é sempre um ser social, que constrói suas condições de existência e reprodução social. Envelhecer, nessas circunstâncias, implica considerar não apenas como contexto ou pano de fundo a realidade social em que se vive, constrói e reproduz, portanto, em que se envelhece. A influência dos fatores socioeconômicos e socioculturais indica os limites da gerontologia tradicional, quando ela define biologicamente a senescência individual, pois, como destaca Beauvoir (1990, p. 47), “a involução senil de um homem produz-se sempre no seio de uma sociedade; ela depen-

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de estreitamente da natureza dessa sociedade e do lugar que nele ocupa o indivíduo em questão”.

Concordamos com a autora quando nos diz que “se a velhice, enquanto destino biológico, é uma realidade que transcende a história, não é menos verdade que este destino é vivido de maneira variável segundo o contexto social (...)” (BEAUVOIR, 1990, p. 16). Essas vivências variadas ocorrem entre diferentes sociedades e também dentro de uma mesma sociedade.

Segundo Haddad (2017), a produção do conhecimento sobre o envelhecimento e a velhice na perspectiva positivista é também ideológica ao propagar uma visão de mundo que mascara a realidade concreta. Ao popularizarem uma visão generalizante que mascara a velhice trágica da classe trabalhadora, apagam e invisibilizam os efeitos deletérios do envelhecimento de quem só possui sua força de trabalho. É comum, segundo a autora, “a velhice ser considerada independente das condições materiais de existência dos seus protagonistas, possuindo, portanto, suas representações, o caráter de pseudoconcreticidade (...)” (HADDAD, 2017, p. 85).

A vida em sociedade e na sociedade capitalista é estruturada por relações sociais que têm peso de relações de produção pela sua capacidade de determinação das formas de existência – classe, gênero e raça/ etnia – que não apenas são demarcadoras de diferenças sociais, mas se transformam em reprodução de desigualdades, de hierarquias e assimetrias de poder, em que se soma a exploração com as diferentes formas de opressão, gerando imbricações em que é maior a incidência de desigualdades sociais, o que Safiotti (2004) denomina de nós simbióticos.

Beauvoir (1990) já destacava uma das mediações fundamentais, o lugar dos indivíduos nas estruturas produtivas que criam as classes sociais: “Tanto ao longo da história como hoje em dia, a luta de classes determina a maneira pela qual um homem é surpreendido pela velhice; um abismo separa o velho escravo e o velho eupátrida, um antigo operário que vive de pensão miserável e um Onassis” (p. 16). A maneira como os homens envelhecem tem a marca de classe, o que interdita visões homogeneizantes, generalistas, ainda que ancoradas na biologia.

Teixeira (2021) aponta que a vivência de classe também é diferenciada no interior de cada classe fundamental e antagônica, composta de frações de classes. Neste artigo, a autora analisa as diferenças dentro da classe trabalhadora, apontando maiores desigualdades no envelhecimento dos trabalhadores que compõem o excedente de força de

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trabalho, que vivem da informalidade, dos bicos, na pobreza relativa ou absoluta que incide de formas variadas no envelhecimento intraclasse. Mas, a autora destaca ainda que as classes têm sexo, sexualidade, cor da pele e origem étnica, decorrentes das inserções socioculturais das pessoas.

Nas sociedades capitalistas, o envelhecimento e a velhice não podem estar dissociados das estruturas socioculturais e socioeconômicas que geram diferenças nas formas de envelhecer. Mas essas heterogeneidades nas formas de envelhecer devem superar o singularismo, a pseudoconcreticidade, como se cada forma de envelhecer e de velhice fossem únicas, ancoradas em trajetórias de vida, comportamentos e hábitos, comuns nas visões gerontológicas comportamentalistas. Assim, os demarcadores estruturais também promovem homogeneidades, porque há relações do envelhecimento singular e individual com a totalidade dos modos de envelhecer e a totalidade social da formação daquela sociedade.

As estruturas geradoras de opressões, de subalternidades são o capitalismo, o patriarcado moderno e o racismo estrutural. Nessa perspectiva, os estudos interseccionais, ou parte considerável deles, são importantes para desvendar a aparência singular do fenômeno envelhecimento nas sociedades burguesas.

Essa perspectiva interseccional é compreendida por Crenshaw (2002, p. 180) como interseccionalidade que se refere a “uma conceituação problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação de dois ou mais eixos de subordinação”. Essas intersecções, mais do que se somarem, se atravessam, formando os nós.

A divisão sexual do trabalho, o patriarcado, a dualidade entre o público e o privado produzem o gênero. Mas ele também é vivido de forma variada entre as mulheres, tanto por sua posição de classe, como também pela raça e etnia. Assim, não se pode falar de mulheres no sentido abstrato, mas de mulheres reais, como “mulheres trabalhadoras”, A divisão sexual do trabalho, o patriarcado, a dualidade entre o público e o privado produzem o gênero. Mas ele também é vivido de forma variada entre as mulheres, tanto por sua posição de classe, como também pela raça e etnia.

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“mulheres negras”, “mulheres imigrantes”, “mulheres velhas, negras e trabalhadoras ou donas de casa” – diferenças que desnudam e põem em xeque os privilégios e as hierarquias.

Concordamos com Biroli (2018, p. 14, grifos da autora) quando afirma: “ela [divisão sexual do trabalho] é determinante da posição desigual de mulheres e homens, mas seu efeito só poderá ser compreendido se levarmos em conta que ela produz o gênero – no entanto, o produz de modos diferenciados, em conjunto com outras variáveis (...)”, ou seja, com outras mediações determinantes, como classe e raça.

Para Biroli e Miguel (2018, p. 41), “a convergência entre essas variáveis estabelece uma pirâmide na qual a base é formada por mulheres negras, com o posicionamento em sequência de homens negros, mulheres brancas e, por fim, no topo, homens brancos”. Com base nessa premissa, Teixeira (2022) afirma que renda, escolaridade, postos de trabalho, condição de saúde, mas também a inserção nos espaços, o respeito, os contatos são diferenciados por essa pirâmide. As classes, o gênero e a raça/etnia não incidem da mesma forma sobre todos os indivíduos sociais.

A divisão sexual do trabalho se imbrica com a divisão racial do trabalho, como denuncia Gonzalez (2020, p. 34), decorrente do racismo enquanto construção ideológica e conjunto de práticas, que “denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas (...)”, promovendo subalternizações e opressões cruzadas, difundindo formas de vidas estigmatizadas e utilizadas pelo capitalismo para superexploração ou para excluir pessoas ao acesso a bens e serviços produzidos socialmente. Essas condições objetivas e subjetivas de vida incidirão no processo do envelhecimento, interagindo e se imbricando com os determinantes biológicos e psicológicos.

As velhices são diferenciadas, inclusive se elas são vividas com boa saúde ou não, em contexto familiar ou não, com apoios formais das políticas públicas e/ou informais da família, vizinhança e amigos, sendo essas variáveis condicionadas pelas diferenças de classe, gênero e raça/etnia.

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Família e Relações Familiares: Ambiguidades e Contradições Adentrar no universo da família implica superar as visões do senso comum e de parte da ciência, que a naturaliza, e desvendar ou trazer à tona sua “natureza” social. Como destaca Bruschini (1993, p. 50), “o primeiro passo para estudar a família deve ser o de dissolver sua aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável”.

Para Teixeira (2016, p. 30), “a família não é uma instituição natural, mas social e histórica, podendo assumir configurações diversificadas em sociedades ou no interior de uma mesma sociedade, conforme as classes e grupos sociais heterogêneos”. Como os estudos de Engels (2002) demonstraram, o matriarcado e o patriarcado deram origem a diferentes tipos de família, cuja mediação fundamental foi a propriedade privada. A família moderna passou por novas mudanças com a sociedade burguesa, que comportou modelos tomados como ideais, determinados pelas novas relações sociais, e outros decorrentes das diferenças de classe, gênero e raça. Essas outras formas de vida familiar foram por muito tempo invisibilizadas, consideradas desestruturadas e estigmatizadas.

Segundo a definição de Biroli (2018, p. 91), “família toma forma em instituições, normas, valores e práticas cotidianas. Sua realidade não é da ordem do espontâneo, mas, sim, dos processos sociais, da interação entre o institucional, simbólico e o material”. E essa interação nos diferentes estágios do capitalismo a transforma em um espaço de ambiguidades e de contradições, porque instituições como a família, por exemplo, geram, mantêm e reproduzem a ordem ao difundir valores, ideologias, normas e modos de vidas atravessado pelas hierarquias e assimetrias, especialmente as de gênero.

Mas a família é espaço de movimento, de práticas que também criam resistências, instituem o diferente da norma, fazendo-a conviver com as diferenças, torna-se reduto contra o mundo externo, gera sentimento de pertencimento, convivência grupal. Logo, uma instituição social contraditória e ambivalente. De um lado, como destaca Biroli (2018, p. 91), “o universo das relações familiares é feito de afetos, cuidado e apoio (...)”, de outro lado, “de exploração do trabalho, do exercício da autoridade e da violência”.

Isso porque as desigualdades de gênero são reproduzidas pelas famílias, que não atuam desconectadas da realidade social e cultural de determinada época histórica e social, como já destacado anteriormente, apesar de não serem apenas espaço de conformismo. Elas são

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analisadas em conexão também com o Estado, as políticas públicas e as leis que atuam normativamente, produzindo as desigualdades ou minimizando-as.

Os ideais normativos dos papéis sexistas, da maternidade, de cuidadoras e administradoras do lar sensíveis e frágeis serviram historicamente para controlar e domesticar, manter as mulheres no mundo privado e explorar seu trabalho gratuito na reprodução social. Mas, como destaca Biroli (2018, p. 100), “não existe posição nem vivência comum entre todas as mulheres”. As mulheres negras não vivenciam a proteção e o tratamento especial nos ideais de domesticidade e nos estereótipos da fragilidade, como mostram os estudos sobre escravidão no Brasil, e a composição da população negra livre, como classe trabalhadora, da realidade de trabalhos fora de casa e no lar dessas mulheres negras e de periferia para garantir a sobrevivência do grupo familiar. O trabalho doméstico e de cuidados familiares, na reprodução social, ainda é definido como atribuição de mulheres na família, ainda que elas também trabalhem fora de casa, sobrecarregando-as e restringindo sua participação em outras esferas da vida, enquanto libera os homens dessas responsabilidades, podendo se dedicar integralmente ao trabalho remunerado e pago. Isso, segundo Biroli (2018), se transforma em fator de vulnerabilidade para as mulheres, gerando empobrecimento, dependência econômica dos companheiros, levando a não denunciarem maus tratos e violências sofridos pelos seus filhos, dentre outros.

Evidentemente que a família é espaço de pertencimento, logo, de inclusão social, de apoios, autoajudas, afetos, solidariedade. Quando o indivíduo é excluído das relações de trabalho e ainda tem a família, ele pode ter uma âncora, uma fonte de apoio, quando ele não tem mais laços de família, a exclusão é ainda maior, ele fica em situação de risco social. Mas visões idílicas e romantizadas das famílias podem ocultar formas de dominação e opressão, como a violência e o autoritarismo machista sobre os mais vulneráveis, geralmente mulheres, crianças e pessoas idosas.

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Quando o indivíduo é excluído das relações de trabalho e ainda tem a família, ele pode ter uma âncora, uma fonte de apoio, quando ele não tem mais laços de família, a exclusão é ainda maior, ele fica em situação de risco social.

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Mas visões idílicas e romantizadas das famílias podem ocultar formas de dominação e opressão, como a violência e o autoritarismo machista sobre os mais vulneráveis, geralmente mulheres, crianças e pessoas idosas.

Porém, as famílias estão em constante processo de mudanças, gradativamente incorporadas pelas leis e políticas públicas. No Brasil, essas mudanças apontam para a diminuição das famílias do tipo nuclear tradicional – do casal heterossexual com filhos – que ainda é predominante, mas convive com outros tipos de organizações familiares. Por exemplo, o Censo de 2010 já apontava o crescimento das famílias monoparentais (em 2000, 13,1%; e, em 2010, 14%), domicílios unipessoais (em 2000, com 9,2%, atingindo, em 2010, 12,1%), casais sem filhos (em 2000 com 13%; em 2010, 17,7%) e famílias recombinadas (2010 com 16,3%) (IBGE/CENSO, 2012).

Dados do Observatório Nacional da Família, do Governo Federal, apontam também mudanças no tamanho dos grupos familiares. Em 2018, o tamanho médio das famílias chegou a 3 membros; em 2008, eram 3,3; em 2002, 3,62. Isso expressa as alterações nas taxas de fecundidade. Conforme dados do Observatório Nacional da Família, a taxa de fecundidade no Brasil decaiu de 6,28 para 1,87 em 50 anos (1960 a 2010) e deve chegar ao patamar de 1,5 em 2030. Essas médias escondem as diferenças. Segundo Biroli (2018), de 2003 a 2013, os 20% mais pobres da população ainda mantinham taxas elevadas de fecundidade, porém também em queda, pois a mudança foi de 2,73 para 2,01.

A inserção da mulher no mercado de trabalho, o aumento da sua escolaridade e os casamentos mais tardios são apontados como determinantes das mudanças. Mulheres com mais de oito anos de estudo têm, em média, metade do número de filhos das que têm até três anos de estudo, segundo Observatório Nacional da Família.

Em relação à predominância do tipo de família, na fase do ciclo da vida em que é composta de idosos(as), muitos trabalhos acadêmicos reforçaram a tese dos “ninhos vazios” – termo utilizado para referir-se à família de idosos que vivem sozinhos ou em casal com a saída dos filhos de casa para constituírem novas famílias. Essas famílias são representadas por um casal de idosos, sendo que eles ou não tiveram filhos ou se os têm não vivem com eles.

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Os estudos de Camaraño e Ghouri (2003) caracterizam as famílias de idosos em dois grupos: família de idosos – é aquela em que o idoso é o chefe do domicílio; e família com idosos – aquela em que os idosos moram na condição de parentes do chefe ou do cônjuge da família. Os autores rediscutem as teses de dependência dos idosos em relação às gerações mais novas e reforçam a ideia de interdependência. Assim, comprovam que houve uma diminuição no período de 1981 a 1999 nas famílias com idosos e que houve um crescimento da família de idosos e deles como chefes do domicílio.

Não obstante os conflitos, a família é única em seu papel no desenvolvimento da sociabilidade, da afetividade e do bem-estar físico e psíquico dos indivíduos, sobretudo durante os períodos da infância, da adolescência e da velhice (PRADO, 1981). Por essa razão, contrapomo-nos à institucionalização como modelo hegemônico de resposta às refrações da questão social que atravessam as velhices da classe trabalhadora e defendemos um modelo de políticas públicas que ofereça assistência e cuidados sob a perspectiva do direito à convivência familiar e comunitária da pessoa idosa, cuidados em domicílios e serviços diurnos para atendê-los e a suas famílias.

Mas o que os estudos da pesquisa Idosos no Brasil II: Vivências, Desafios e Expectativas na Terceira Idade, idealizada e realizada pela parceria

Fundação Perseu Abramo e Sesc São Paulo, apontam acerca das relações familiares dos idosos(as) entrevistados(as)?

Relações Familiares de Idosos no Brasil: Dados Recentes da Pesquisa da Fundação Perseu Abramo e Sesc São Paulo

A pesquisa de opinião pública da parceria Sesc São Paulo e Fundação Perseu Abramo, realizada em 2020, entrevistou 4.144 pessoas em diferentes municípios brasileiros, sendo 1.775 pessoas não idosas, de diferentes faixas etárias, correspondendo a 19%; e 2369 pessoas idosas a partir de 60 anos de idade, correspondendo a 81% dos entrevistados.

A pesquisa apontou mudanças na composição das famílias brasileiras, já que elas estão menores, sendo que a média da quantidade de moradores por domicílio foi de 3,5 pessoas; dentre os que moram sozinhos foi de 8%, mas, entre as pessoas idosas, o percentual foi de 17%. Os dados agregados indicam que essas taxas são maiores entre idosos do sexo masculino e pretos, chegando a 21%. Os domicílios com duas pessoas são maiores para os homens idosos brancos (37%) do que os pretos (26%); os com três pessoas também são maiores entre os idosos

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brancos (20%) do que os pretos (18%); os com quatro pessoas, entretanto, são maiores entre os idosos pretos (21%) do que os brancos (13%).

O crescimento dos percentuais de pessoas idosas sozinhas está relacionado à etapa do ciclo de vida das famílias e das pessoas na velhice, sendo comum a saída dos filhos de casa para a composição de novos núcleos familiares e a morte do(a) cônjuge. O acesso à renda, via política pública, tem permitido que essas pessoas se mantenham em suas casas e vivam com certa autonomia e independência. Mas o percentual de homens idosos negros sozinhos tem implicações sociais, especialmente pelas características familistas das políticas sociais brasileiras, o que pode significar desproteção social quando precisarem de assistência e cuidados. Esse dado é preocupante em termos de arranjos de proteção social, especialmente porque o percentual de homens idosos solteiros pretos é de 14%, enquanto o total da amostra é de apenas 9%; e dos idosos brancos de 7%. Entre as mulheres idosas, a taxa é de 11%.

Estudos denominados Saúde e Bem-Estar e Envelhecimento (Sabe), com dados colhidos em 2000, 2006 e 2010 com idosos(as) do município de São Paulo, também apontaram resultados similares, ou seja, maior proporção de solteiros entre os pretos idosos do sexo masculino, maior proporção dos que não tiveram filhos, dos divorciados ou viúvos, o que Silva et al. (2018) denominam de maior condição de vulnerabilidade no que concerne à rede de apoio social, pois cônjuges e filhos são figuras essenciais no apoio às necessidades das pessoas idosas, fazendo com que os solteiros fiquem em desvantagem.

Os autores destacam que as pesquisas que conseguem incluir as informações de gênero e raça (cor) têm ajudado muito nos desvelamentos das desigualdades sociais que demarcam o envelhecer das pessoas e apontam que a população negra (pretos e pardos) tem piores indicadores de escolaridade, inserções nos piores postos de trabalho, menor acesso aos bens e serviços sociais e menores expectativas de vida, logo, atuam diretamente sobre a sua longevidade e qualidade de vida ao envelhecer.

Esses dados agregados têm sido instrumentos para comprovar as teses da heterogeneidade das formas de envelhecer e das aproximações entre diferentes grupos de pessoas idosas que a ideia de população idosa como um todo esconde, pois as velhices são atravessadas por diferenças de classe, gênero e raça/etnia.

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo e Sesc São Paulo de 2020 apontou que a maioria da amostra é de casados (67%). Aqui a desigualdade de gênero é gritante, pois 67% dos homens idosos brancos e 60% dos homens idosos pretos são casados, porém, apenas 40% entre

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as mulheres brancas estão nessa condição e com taxas menores estão as mulheres idosas pretas (32%). A situação de viuvez também é maior entre as mulheres, 40% entre as mulheres idosas brancas e 52% entre as idosas pretas. Homens idosos brancos e pretos são, respectivamente, 18% e 14%.

Assim, as mulheres vivem mais por terem expectativa de vida maior que os homens, mas vivem essa etapa na viuvez, pois ainda é comum os homens conseguirem se casar novamente ou ter uma nova companheira mesmo na velhice (69% dos homens idosos moram com cônjuge), situação interditada para a maioria das mulheres, por serem consideradas assexuais, desinteressantes e velhas demais para novos relacionamentos. O ageísmo ou etarismo tem maior incidência sobre as pessoas idosas do sexo feminino do que a do sexo masculino, em que os cabelos brancos são considerados um charme para eles e desleixo para elas.

Sobre composição familiar e pessoas residentes no domicílio, 53% são maridos/esposas ou companheiros/companheiras ou filhos(as), sendo maior a incidência de mulheres idosas que moram com netos (31%), e, para os homens idosos, o parente é geralmente a esposa ou a companheira (69%). Nesses modelos familiares, geralmente a pessoa idosa é a principal responsável pelo domicílio, mas considerando as diferenças de gênero associadas à trajetória de vida das mulheres, especialmente o acesso ao trabalho estável e formal, à escola, à formação profissional e aos traços patriarcais e sexistas em que há papéis normativos nos quais o homem é provedor e a mulher é cuidadora, elas são chefes do seu domicílio em apenas 40%, contra 63% dos homens idosos.

Entre as pessoas mais próximas, com as quais a família pode contar no seu cotidiano, para 60% dos homens idosos é a esposa/companheira; para as mulheres, o cônjuge refere-se a apenas 28%, devido ao alto percentual de solteiras, viúvas, separadas/desquitadas. Para 42% das mulheres idosas pretas, essa pessoa é o(a) filho(a); já para as mulheres idosas brancas, o percentual é de 37%; e, para os homens, apenas 14% dessas pessoas é um(a) filho(a).

Essas composições familiares dizem muito sobre a capacidade de troca, de apoios mútuos, das fontes de ajuda e cuidados com quem as pessoas idosas podem contar ou não. Em relação ao sentimento de família, de acolhimento e amparo, eles variam quanto ao nível de escolaridade e de renda. Em geral, 79% dos(as) idosos(as) entrevistados(as) se sentem acolhidos(as) pelas suas famílias. Esses percentuais são maiores entre os que têm escolaridade de nível superior (87%) e entre os que têm renda entre 2 e 5 salários-mínimos (86%), mas 21% se sentem mais

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O lugar que a pessoa idosa ocupa na família, sua participação nas decisões coletivas do grupo, visitas que faz ou recebe, lugar dos encontros com amigos diz muitos das relações interpessoais construídas, mas também das determinações sociais e do lugar que pessoas idosas ocupam na sociedade capitalista.

ou menos acolhidos, têm queixas sobre esse acolhimento, ou são pouco acolhidos e/ou se sentem um fardo para a família.

As razões para a maioria se sentir acolhida são de ordem afetuosa, destacada por 55% dos entrevistados, tais como sentimentos de carinho, amor, atenção, cuidados, preocupação com a saúde, dentre outros. Outros 43% ressaltaram também harmonia e união na família; 11% destacaram respeito. Os mais ou menos a poucos acolhidos destacaram como razões exatamente a falta de união e harmonia e o desrespeito. Esses dados apontam exatamente para o fato de que a família não pode ser visualizada como necessariamente harmoniosa, numa perspectiva idílica, sem conflitos, mágoas e desavenças; que essas famílias são ambíguas e contraditórias, mas que podem ser fonte de suporte e amor, como aponta a maioria dos entrevistados.

O lugar que a pessoa idosa ocupa na família, sua participação nas decisões coletivas do grupo, visitas que faz ou recebe, lugar dos encontros com amigos diz muitos das relações interpessoais construídas, mas também das determinações sociais e do lugar que pessoas idosas ocupam na sociedade capitalista. Os dados da pesquisa Perseu Abramo/Sesc São Paulo, em 2006, apontaram que apenas 39% dos(as) idosos(as) entrevistados(as) são sempre ouvidos(as) ou convidados(as) a dar opinião nos assuntos familiares, recebem visitas esporadicamente e a maioria dos encontros ou visitas eram em sua própria casa, o que significa a reprodução das visões e representações dominantes sobre a velhice. Considerando que as relações familiares são importantes nas fontes disponíveis de apoio e de ajuda, elas também vêm acompanhando as mudanças nos modelos de famílias e modos de viver na sociedade contemporânea. Com o aumento de idosos(as) que vivem sozinhos(as) ou apenas em casal (ninho vazio), dos estados de viuvez, da redução da quantidade de pessoas no domicílio, que varia conforme o gênero e a raça, diminuem também as fontes de ajuda e suporte com que os(as) idosos(as) podem contar. A comparação entre a pesquisa realizada em 2006 e a de 2020 denota redução geral nas fontes de atendimento de

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necessidades das pessoas idosas, desde as tarefas domésticas – lavar, cozinhar – a ir ao médico, tomar remédios, manter-se financeiramente, resolver problemas em bancos, documentos e em órgãos públicos, dentre outras. Em muitas dessas ajudas, a queda foi de quase 30%, conforme demonstra o gráfico a seguir:

problemas em bancos, órgãos

Fonte: Pesquisas Perseu Abramo/Sesc São Paulo de 2006 e 2020. oferece ajuda (ajuda alguém) recebe ajuda (não faz sozinho)

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Gráfico 1 – Fontes de apoio entre os(as) idosos(as) em 2006 e 2020

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Isso pode estar relacionado não apenas à quantidade de membros familiares no domicílio, mas às necessidades de sobrevivência dos mais jovens, à inserção das mulheres no mundo do trabalho e à falta de cuidadores(as) em tempo integral, além de laços intergeracionais mais fluidos e com pouca reciprocidade, o que aponta para a necessidade de políticas públicas protetivas e inclusivas, seja para os(as) idosos(as) independentes como para os(as) dependentes de cuidados em seus domicílios ou em unidades públicas de atendimento nos períodos diurno ou noturno.

Considerações Finais

O envelhecimento, as velhices e as famílias são fenômenos sociais que sofrem determinações da estrutura social de específicos tipos de sociedade. O tratamento generalizante – independentemente das variações postas pelos determinantes socioeconômicos e socioculturais ou sua individualização excessiva, desconectada das estruturas que geram vivências comuns (capitalismo, patriarcado e racismo) – incorre em erros metodológicos na apreensão dos fenômenos na sua totalidade, como no caso do envelhecimento.

Entretanto, o mesmo se pode dizer da família, pois a a-historicidade abstrata com que vem sendo tratada e abordada leva a representações idealizadas e estigmatizadoras de outros modelos fora do ideal. A família real é contraditória, o que não significa que não seja fonte de apoio, de ajudas, de amor incondicional, de reciprocidades.

Os dados da pesquisa analisados neste texto apontaram que há uma parte considerável de idosos(as), geralmente negros(as), que têm menor possibilidade de contar com os apoios das redes informais, por serem viúvos(as), solteiros(as) ou separados(as), e que essas diferenças têm marcas de gênero e raça (cor), e que mesmo os(as) casados(as) e com filhos têm contado cada vez menos com as fontes de apoio das famílias, o que está relacionado a mudanças demográficas, familiares e no mundo do trabalho.

Todavia, a maioria dos(as) idosos(a) se sente acolhida por sua família, e destaca desde motivos afetivos a instrumentais nas ajudas que necessita, embora um número considerável de idosos(as) aponte a desarmonia, os conflitos e a falta de respeito como entrave nesse acolhimento, o que comprova a tese das contradições e ambiguidades da família e a necessidade de políticas públicas de suporte nos domicílios, com prioridade para os que não contam com suporte familiar e, para os que contam com esse suporte, uma política para apoiar os familiares, com serviços e benefícios.

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A Relação dos Municípios Gaúchos com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI)*

[Artigo 6, páginas de 72 a 93]

Priscilla Lunardelli

Docente da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/ RS) e discente da Escola do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). priscilla-lunardelli@ saude.rs.gov.br

Elisete Ribeiro Lopes

Assessora técnica da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs). elisete@famurs.com.br

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Priscila Nunes

Secretária de assistência social do município de Santo Antônio das Missões e gestora do Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas/RS). assistenciasocial@ santoantoniodasmissoes. rs.gov.br

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Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar parcialmente a pesquisa intitulada A Relação dos Municípios Gaúchos com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), que foi realizada no estado do Rio Grande do Sul por meio de uma parceria entre três instituições. O objetivo da pesquisa foi mapear estratégias públicas ou conveniadas ao ente público municipal, organizadas para a garantia do acolhimento institucional de pessoas idosas em situação de vulnerabilidade e risco social no Rio Grande do Sul. A pesquisa transversal teve caráter quanti-qualitativo exploratório e foi realizada com a coleta de dados por meio de formulário eletrônico específico, enviado via e-mail para as Secretarias Municipais de Assistência Social após ampla divulgação. Os achados indicam problemas diversificados para a consecução adequada e regular da política pública de acolhimento institucional de pessoas idosas no estado.

abstract

The present article aims to partially present the research entitled The Relationship of the Municipalities of Rio Grande do Sul with the Long-Term Care Institutions for the Elderly which was carried out in the State of Rio Grande do Sul through a partnership between 3 institutions. The objective of the research was to map public strategies or strategies contracted to the municipal public entity organized to guarantee the institutional reception of elderly people in situations of vulnerability and social risk. The cross-sectional research had a quantitativequalitative exploratory character and was carried out through data collection through a specific electronic form, sent via e-mail to the Municipal Secretariats of Social Assistance, after wide dissemination. The findings indicate diversified problems for the adequate and regular implementation of the public policy of institutional care for elderly people in the state.

* Relato parcial da Pesquisa da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS), realizada em parceria com a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e o Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas/RS)

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Introdução

A institucionalização de pessoas idosas no Brasil é prevista na política de seguridade social como medida excepcional, conforme a Lei nº 14.423, também conhecida como Estatuto da Pessoa Idosa, entretanto, frente à agudização da pauperização da população idosa e de suas famílias, a referida excepcionalidade torna-se necessidade premente, observada diuturnamente na execução das políticas públicas de saúde e assistência social. Para conhecer de que maneira os municípios gaúchos têm operacionalizado a política de acolhimento institucional para pessoas idosas, a Federação das Associações Municipais do Rio Grande do Sul (Famurs), o Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social (Coegemas/RS) e a Escola de Saúde Pública (ESP/RS) realizaram um estudo transversal sobre esta temática. Todos os 497 municípios do Rio Grande do Sul foram convidados a responder a um formulário eletrônico, hospedado em meio virtual pela gerência de pesquisa da Famurs, sobre a temática estudada, sendo que efetivamente 298 municípios participaram como respondentes do estudo. O tratamento estatístico da amostra evidenciou perfil heterogêneo, confiança dos achados maior que 90% e baixa margem de erro (menor que 3,5 pp).

Revisão Teórica

O município não está organizado para atender esta demanda do acolhimento de pessoas idosas.

(Município 24)1

As Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) vêm aos poucos ganhando espaço nas discussões teóricas e acadêmicas diante do fato de que a procura por esse tipo de serviço vem crescendo diuturnamente. Segundo Camarano e Kanso (2010), no surgimento das ILPI prevalecia apenas o caráter assistencial de garantir moradia para aqueles que não dispunham de condições financeiras de subsistência, mas com o aumento da população idosa e a alta prevalência de doenças crônico-degenerativas, surge para as ILPI uma nova função social relacionada ao suporte para pessoas idosas com problemas de saúde e perdas funcionais em geral.

O termo ILPI, convém destacar, foi proposto pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) em substituição ao uso da palavra “asilo”. Para a SBGG, as ILPI são:

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1 Nota das autoras: os 298 munícipios participantes da pesquisa receberam numerações aleatórias de identificação. O objetivo da numeração aleatória é proteger as informações prestadas aos pesquisadores. A lista final de munícipios respondentes por ordem alfabética pode ser consultada em: A_RELAO_DOS_ MUNICPIOS_GACHOS_ COM_AS_INSTITUIES_DE_ LONGA_PERMANNCIA_ PARA_IDOSOS___FINAL.pdf (famurs.com.br).

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(...) estabelecimentos que prestam atendimento integral institucional para pessoas com 60 anos ou mais, dependentes ou independentes, que não dispõem de condições para permanecer em seu domicílio ou com a família. São estabelecimentos que devem proporcionar serviços na área social, médica, de psicologia, de enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacional, odontologia e outras, a depender das necessidades do perfil dos pacientes.

Hoje, este tipo de estabelecimento/instituição é fiscalizado pela vigilância sanitária municipal e regulamentado pela Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa (RDC) nº 502, de maio de 2021, que dispõe sobre o funcionamento de ILPI no Brasil. Mas nem sempre foi assim, há duas décadas inexistiam normativas para o funcionamento desse tipo de instituição prestadora de serviços socialmente relevantes. Para Camarano e Kanso (2010):

(...) entende-se ILPI como uma residência coletiva, que atende tanto idosos independentes em situação de carência de renda e/ou de família quanto aqueles com dificuldades para o desempenho das atividades diárias, que necessitem de cuidados prolongados.

Debert (1994) aponta corretamente que a transformação do envelhecimento e da velhice em problemática social não pode ser compreendida unicamente como um resultado mecânico de modificações demográficas, pois um problema social é, antes de mais nada, uma construção social. Desta forma, devemos supor que existem mais variáveis que contribuíram no processo de transformação da velhice em um problema de visibilidade pública do que puramente o aumento do número de pessoas idosas na população.

A velhice, enquanto construção social, projeta-se como uma teia complexa que envolve aspectos relacionados ao envelhecimento da população, às políticas públicas existentes ou não e aos estereótipos e preconceitos relacionados à idade, entre outras questões.

É um fenômeno que ocorre em todo o mundo devido aos avanços na área da saúde, às melhores condições de vida e à queda na taxa de natalidade. Isso significa que cada vez mais pessoas estão vivendo por mais tempo, o que demanda uma reflexão sobre como a sociedade está preparada para lidar com essa realidade. Destacamos que as políticas públicas voltadas para a velhice são fundamentais para garantir os direitos e o bem-estar das pessoas idosas, e devem contemplar áreas como saúde,

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moradia, transporte, lazer, previdência social e inclusão social. Além disso, é importante que essas políticas sejam inclusivas e participativas, considerando a diversidade e as especificidades das pessoas idosas. Em verdade, a velhice deve ser encarada como uma fase da vida que traz desafios, mas também oportunidades. É preciso um compromisso para promover uma cultura que valorize a experiência e o conhecimento das pessoas idosas, inclusive das que vivem em ILPI, estimulando a participação e a autonomia, oferecendo oportunidades para que o acolhimento institucional da pessoa idosa não seja um fim em si mesmo.

Caracterização da Pesquisa

Objetivo

Mapear estratégias públicas ou conveniadas ao ente público municipal organizadas para a garantia do acolhimento institucional de pessoas idosas em situação de vulnerabilidade e risco social no Rio Grande do Sul.

Metodologia

O Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social do Rio Grande do Sul (Coegemas/RS) é o órgão de integração, representação e apoio aos municípios em assuntos da assistência social e está vinculado à Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs). O Coegemas se reúne mensalmente com a participação de representantes das 28 associações regionais que integram a Famurs para discutir as demandas relativas à política pública de assistência social que são trazidas pelas regiões, de acordo com a realidade dos municípios gaúchos.

A importância de realizar amplo debate sobre as ILPI é histórica e ganhou centralidade no debate do Coegemas/RS diante do aumento expressivo de pessoas idosas precisando de acolhimento em face às dificuldades financeiras das famílias em custear vagas nessas instituições pelo modo de compra de vaga direta. Cotidianamente, são os municípios que têm assumido os custos de institucionalização de pessoas idosas, sem coparticipação dos demais entes públicos, como estado e União.

Destacamos que o estado do Rio Grande do Sul, ainda em 2020, passou a ter mais pessoas idosas do que crianças de 0 a 14 anos, sendo um dos estados mais envelhecidos do país.

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Poucos são os estudos brasileiros em relação à proteção social da pessoa idosa, especialmente sobre a política pública de acolhimento institucional, antigamente denominada abrigamento/asilamento. Deste modo, a investida teórica nessa temática decorre de múltiplos fatores construídos no cotidiano laboral das secretarias municipais de assistência social gaúchas e fatores acadêmicos, tendo em vista que o Grupo de Trabalho das ILPI do Coegemas/RS convidou a Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS) para participar de suas ações de trabalho. Deste contexto surge a necessidade de realizar o estudo que ora apresentamos, cujo objetivo principal foi mapear a relação dos municípios do estado do Rio Grande do Sul com as ILPI a fim de apoiar a formulação de parâmetros adequados para o acolhimento institucional de pessoas idosas junto à política de proteção social especial.

A pesquisa transversal teve caráter quanti-qualitativo exploratório e foi realizada com a coleta de dados por meio de formulário eletrônico específico, enviado via e-mail para as Secretarias Municipais de Assistência Social, após ampla divulgação da pesquisa em reuniões do Coegemas/RS. Todos os 497 municípios do Rio Grande do Sul foram convidados a responder a um formulário eletrônico, hospedado em meio virtual pela gerência de pesquisa da Famurs sobre a temática estudada.

As variáveis coletadas na pesquisa estão sistematizadas e apresentadas na tabela abaixo:

Tipo de variável

Descrição

Quantitativa Pessoas idosas residentes no município 1

Quantitativa e qualitativa Existência de ILPI na sede do município 1

Quantidade de perguntas sobre a variável

Quantitativa Regularidade documental das ILPI sediadas no munícipio 3

Quantitativa e qualitativa Conveniamento com ILPI privadas 2

Quantitativa e qualitativa Financiamento de vagas 3

Qualitativa Protocolos de abrigamento/acolhimento 2

Qualitativa Protocolos pós-abrigamento/acolhimento 1

Tabela 1 – Sistematização das variáveis de estudo – 2022

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Resultados

Os dados da pesquisa foram coletados entre 15 de junho e 15 de agosto de 2022 e foram considerados respondentes 298 municípios (59,96%) dos 497 municípios do Rio Grande do Sul. Destes, utilizando metodologia referencial do IBGE 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 229 municípios (76,85%) são de pequeno porte I, 42 municípios (14,09%) são de pequeno porte II, 14 municípios (4,70%) são de médio porte e 13 municípios (4,36%) são de grande porte.

Quanto à qualificação da pessoa física que respondeu a pesquisa, observamos que o questionário foi respondido por cinco prefeitos, nove secretários de saúde, 15 secretários de saúde e assistência social, 28 secretários de assistência social e habitação, 225 secretários de assistência social ou desenvolvimento social (ou departamentos correlatos), cinco secretários de trabalho e assistência social e 11 secretários de outras políticas públicas. Os dados mostram que, na maioria dos casos, a assistência social está organizada administrativamente nos munícipios gaúchos, compartilhando sua pasta com outra política setorial (saúde, habitação, direitos humanos, entre outras).

Apresentado o arrazoado inicial sobre as fontes das informações coletadas na pesquisa, passamos agora a descrever as informações relacionadas à implantação e à gestão da oferta de acolhimento institucional para pessoas idosas nos municípios gaúchos respondentes do estudo. Assim, a primeira pergunta direcionada aos municípios participantes foi: “Qual o número de idosos residentes no município?”.

Os municípios respondentes contemplaram aproximadamente 890.903 (oitocentos e noventa mil e novecentos e três) pessoas idosas residentes (n= 212), 71,14% dos municípios souberam responder sobre a população idosa residente em suas municipalidades. Cerca de um terço dos municípios (28,86%), entretanto, não soube responder sobre a quantidade de idosos residentes em seu território e 3,69% dos municípios informaram um número de pessoas idosas residentes em seus territórios abaixo da expectativa média, estimada em 25% da população total local.

De acordo com dados do IBGE, a estimativa de pessoas idosas (com 60 anos ou mais) no Rio Grande do Sul em 2021 foi de aproximadamente 2,9 milhões de pessoas, o que representa cerca de 25% da população total do estado.

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O segundo bloco de perguntas dirigidas aos munícipios referiu-se à existência de ILPI sediadas na localidade pesquisada. A distribuição dos municípios está apresentada no gráfico 1:

Gráfico 1 – Existência de ILPI no município – Rio Grande do Sul, 2022

sim não não responderam

Dentre os respondentes, 94 municípios (31,54%) pesquisados informaram que possuem ILPI em sua sede territorial. Para os municípios que responderam que sim, existe ILPI em seu território, foi perguntado qual o número de ILPI sediadas na municipalidade. Nas respostas fornecidas observamos que o número de ILPI na sede está diretamente relacionado ao porte populacional do município respondente. Majoritariamente (78% dos respondentes), os municípios possuem apenas entre uma e cinco ILPI em sua sede e apenas 9% possuem de 21 até 50 ILPI.

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Quanto a regularidade documental2 das ILPI sediadas nos munícipios respondentes, observamos o resultado apresentado na tabela abaixo:

Tabela 2 – Distribuição percentual de indicadores de regularidade documental das ILPI – Rio Grande do Sul, 2022

Inscrição no Conselho

do Idoso

Inscrição no Conselho Municipal de Assistência

(CMAS)3

Alvará de Saúde para o funcionamento

Em relação à compra ou ao custeio por parte da prefeitura do município respondente de vagas em ILPI para acolhimento de idosos munícipes, apenas 32,2% dos participantes responderam validamente à pergunta do questionário, sendo que 21,1% informaram possuir convênio/parceria com entidades privadas com ou sem fins lucrativos; 10,1% não possuírem nenhum tipo de convênio; e 68,8% não responderam ou não souberam responder à questão. Esse resultado indica que o acolhimento de pessoas idosas em ILPI enquanto política pública de corresponsabilidade das áreas setoriais de saúde e assistência social não parece estar efetivado no Rio Grande do Sul de modo pleno.

Quanto à natureza jurídica das ILPI conveniadas e parceirizadas, é importante ressaltar que mais de 75% dos respondentes não souberam informar a natureza jurídica das instituições conveniadas pelo município.

Em relação ao número de vagas compradas pelos municípios junto às ILPI, seja por convênio ou termo de parceria, dos 298 municípios participantes da pesquisa apenas 62 municípios (20,81%) informaram sua situação em relação à compra das vagas. Deste total, oito municípios (12,9%) referem que compram vagas conforme a demanda e que não há compra permanente conveniada/parceirizada e um município (1,61%) informou que não compra vagas porque realiza um repasse

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2 As autoras caracterizam como regularidade documental a condição em que uma ILPI funciona e presta serviços tendo todos os documentos legais necessários para a atividade a que se destina.

3 A inscrição no CMAS é obrigatória para os estabelecimentos de fins sociais, ou seja, aqueles sem fins lucrativos.

Documento

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financeiro mensal às famílias de baixa renda destinado a apoiar o provimento de cuidados da pessoa idosa. A experiência descrita por esse munícipio pode ser interessante e inspiradora para locais menores e/ ou que não tem ILPI no território municipal.

Um bloco de 49 municípios (16,44% do total de respondentes; 79,03% dos que responderam a esta questão) informou que foram compradas 962 vagas em variadas ILPI para o acolhimento de pessoas idosas adscritas em suas municipalidades em 2022. Para 32 municípios (51,61%), as vagas compradas são suficientes para atender à demanda por acolhimento de pessoas idosas que necessitam e para 30 municípios (48,39%) as vagas compradas são insuficientes, o que demonstra estabilidade na distribuição das respostas por parte dos municípios e indica que as realidades dos munícipios gaúchos são amplamente variadas.

No que se refere ao cofinanciamento das vagas compradas pelos municípios junto às ILPI, 89% dos municípios que compram vagas informaram que não recebem valores de coparticipação do estado ou da União para custeio das vagas adquiridas. Três municípios informaram que recebem cofinanciamento federal através do Piso de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no valor aproximado de R$ 590,00 por pessoa idosa acolhida. Esses poucos municípios, referem que o recurso que recebem é importante para o financiamento do Acolhimento Institucional de Pessoas Idosas, mas que vem sendo repassado com atraso pelo governo federal e de modo incompleto, especialmente nos últimos dois anos (2020-2021). Adicionalmente, verificamos que nenhum município declarou receber cofinanciamento estadual para executar essa política pública.

O valor médio pago pelas prefeituras municipais pelas vagas conveniadas/parceirizadas nas ILPI foi de R$ 4.225,00 por pessoa idosa em 2022. Três prefeituras municipais informaram fazer um convênio de valor anual, independentemente da ocupação de vagas. Nesse caso, os valores pagos às ILPI, em parcela única anual variaram de R$ 60.000,00 a R$ 160.000,00 na amostra desta pesquisa.

Do total de prefeituras pesquisadas, 50 municípios (16,78%) utilizam recursos financeiros da política de Assistência Social para custear o acolhimento institucional de pessoas idosas, quatro municípios (1,34%) utilizam recursos “próprios livres” para o pagamento das vagas e um município (0,03%) utiliza recursos provenientes do Sistema Único de Saúde/Recurso da Saúde Pública. Registramos que 55% dos municípios pesquisados referiram que não custeiam todas as vagas que são solicitadas pela sua rede de saúde e assistência social.

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Já sobre como ocorrem os encaminhamentos para acolhimento das pessoas idosas, 64 municípios (21,48%) responderam. A distribuição percentual está apresentada no gráfico 5:

Gráfico 5 – Distribuição percentual do encaminhamento de acolhimentos das pessoas idosas para ILPI – Rio Grande do Sul, 2022

Creas Cras

Outros

Determinação judicial

Busca da família

Dos respondentes, 27 municípios (42,19%) informaram ser através do Creas4; 12 municípios (18,75%) através do Cras5; 16 municípios (25%) informaram ser por determinação judicial; um município (1,56%) por busca ativa da família; e sete municípios (10,84%) através de outros encaminhamentos, tais como Unidade de Saúde e Secretaria Municipal de Saúde.

Em relação aos critérios que o município utiliza para selecionar as famílias com pessoa idosa que terão prioridade de acolhimento, es-

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4 Cras - Centro de Referência da Assistência Social.

5 Creas - Centro de Referência Especializado de Assistência Social.

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As municipalidades pesquisadas destacaram uma diversidade de motivos pelos quais as famílias ou as próprias pessoas idosas buscam a vaga para acolhimento, seja por necessidade de abrigar quando a família não consegue atender às necessidades de cuidado da pessoa idosa ou se ela se encontra em situação de vulnerabilidade social.

tes são os dados: 34 municípios (53,13%) indicaram fluxos de acesso à vaga via Suas, considerando as normativas legais vigentes do Suas, sendo avaliados e encaminhados pelo Cras ou Creas. Dez municípios informaram fluxo de acesso à vaga por encaminhamento e determinação judicial, ou seja, apenas em casos judiciais; dois municípios por encaminhamento da política pública de saúde (SUS); um município informou que é a família que se responsabiliza pelo custeio da vaga do acolhimento; um município informou que não fornece acesso a acolhimento institucional para pessoas idosas; um município informou que tem lei própria municipal sobre acesso e relação jurídica com as ILPI; e três municípios informaram que o fluxo de acesso à vaga é feito pela família e/ou pela própria pessoa idosa que não dispõem de condições financeiras para tal, mas não informou a qual órgão ou setor da prefeitura os cidadãos devem se dirigir para efetivar o pedido da vaga.

As municipalidades pesquisadas destacaram uma diversidade de motivos pelos quais as famílias ou as próprias pessoas idosas buscam a vaga para acolhimento, seja por necessidade de abrigar quando a família não consegue atender às necessidades de cuidado da pessoa idosa ou se ela se encontra em situação de vulnerabilidade social. Já um município destacou que não seleciona famílias ou analisa os casos, apenas atende determinação judicial sem registro ou avaliação da motivação do acolhimento.

Evidenciamos que a maioria dos municípios pesquisados informou que o acolhimento institucional depende da realização de Avaliação Psicossocial pelos técnicos do Cras ou Creas (assistente social e/ou psicóloga), considerando as condições de vulnerabilidade social da pessoa

Artigo 5 A Relação dos Municípios Gaúchos com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI)

a ser acolhida e sua família, em conformidade com a lei do Suas. Destacamos, ainda, que algumas leis municipais preveem um modelo de “benefício eventual”, que operacionaliza o pagamento das despesas de acolhimento, via Secretaria de Assistência Social.

Após o acolhimento da pessoa idosa, em vaga custeada pelo poder público municipal, é necessário saber de que maneira é feito o acompanhamento desse acolhimento/abrigamento pelos municípios. Destacamos que o acolhimento não pode ser tratado como o fim de um processo, mas sim como uma parte da política pública de proteção às pessoas idosas.

Nesse sentido, perguntou-se aos municípios gaúchos se depois de o(a) idoso(a) ser abrigado(a)/acolhido(a) em vaga municipal, o município realiza algum acompanhamento deste acolhimento. Apenas três (1%) municípios informaram que mantêm acompanhamento da pessoa idosa após ingresso nas ILPI, o que demonstra que o abrigamento ainda é considerado como um fim em si mesmo. Para dois municípios do grupo de três respondentes, o acompanhamento é realizado por profissionais da política de assistência social, já para um município a equipe de saúde, vinculada ao SUS, mantém o acompanhamento da pessoa acolhida.

Nos três casos respondentes, o acompanhamento pós-acolhimento, é realizado de forma presencial (visitas regulares) e remota (telefonemas e e-mails). Dois municípios que referiram realizar o acompanhamento após abrigamento da pessoa idosa compraram uma vaga em outra cidade, localizada entre 50 km e 100 km de sua sede. O fato de realizarem monitoramento e acompanhamento dos abrigamentos em outra localidade denota o compromisso de manter o atendimento da pessoa idosa em situação de acolhimento em ILPI.

Das cidades participantes deste estudo, 48 (16%), além de comprarem vagas, mantêm também o custeio de outros itens para o atendimento da pessoa idosa acolhida, principalmente de medicamentos e fraldas, que são fornecidos majoritariamente através das secretarias municipais de saúde.

Perguntamos especificamente aos municípios que não compram vagas em ILPI como fazem quando existe a necessidade de abrigamento de uma pessoa idosa, já que não mantêm convênios ou similares com ILPI. As respostas apresentadas estão contidas na figura:

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Figura 1 – Respostas sobre como o município procede diante de uma demanda de acolhimento para pessoa idosa em ILPI – Rio Grande do Sul, 2022

Se não tem convênio/parceria municipal com ILPI, como o município procede quando um idoso tem que ser abrigado/acolhido?

Abre-se um chamamento público e define-se pelo menor preço. Desta forma o município cumpre com sua obrigação.

Até o momento, não tivemos casos de abrigo, pois conseguimos conversar e ajustar os cuidados dentro da família.

Através de acordo verbal.

Contratos pela forma da Lei 8.666/1993. Conversando com a instituição ou por medida judicial.

É acolhido no Lar Municipal de Idoso.

É realizado processo de contratação de vaga. No momento não temos idosos institucionalizados com apoio financeiro do município, mas temos histórico recente.

É solicitada à família para que os mesmos se organizem quanto a uma ILPI e que arquem com os custos. Quando os familiares não têm condições financeiras de custear uma ILPI para um idoso, a família encaminha uma solicitação judicial para que o município, através de ordem judicial, arque com os gastos ou complemente o valor.

Em casos específicos, por determinação judicial, o município realiza um contrato de prestação de serviço.

Encaminha para uma ILPI que possui filantropia.

Faz tomada de preços e encaminha para a que tiver menor valor. Judicial.

Localiza-se instituição que possui vaga.

Mediante acordo com familiares para custear. Em caso de não ter familiares ou eles não possuírem condições financeiras, recorre-se à administração municipal para arcar com os custos.

Na maioria das vezes as famílias buscam orientação no Departamento de Assistência Social, onde é orientado e em alguns casos realizamos a mediação entre as ILPI e a família, mas os custos são por conta da família. Em poucos casos, quando se faz necessário que o poder público cubra os custos, o acolhimento é realizado por meio de contrato de prestação de serviços.

Não temos esta demanda.

Normalmente é feito pelo salário que o idoso recebe.

O município faz convênio com a instituição conforme a necessidade da demanda.

Por dispensa de licitação.

Prefeito.

Fonte: as autoras, 2022.

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Observa-se, que uma grande parte das municipalidades realiza compra de “vaga determinada” por tomada de preço, o que é uma alternativa bastante interessante para comunidades pequenas e com pouca demanda por acolhimento/abrigamento de pessoas idosas. Alguns municípios têm utilizado o trabalho com as famílias visando que elas assumam o suporte que a pessoa idosa precisa. Não foi informado o que acontece nos casos em que a família não seja suficiente para atender a pessoa idosa.

Alguns municípios referem orientar que a família/responsável judicialize o pedido, tendo em vista não existir acesso administrativo às vagas em ILPI. Outra parcela de municípios conta com atendimento filantrópico (destacamos que filantrópico não significa gratuidade, embora tenha sido resposta informada por um respondente) ou pela renda da própria pessoa idosa. Em todo caso, deve-se observar que o disposto no Estatuto da Pessoa Idosa limita a 70% do valor recebido em aposentadoria/pensão ou similar pela pessoa idosa. Em um município respondente, é o prefeito quem resolve pessoalmente a situação de acolhimento quando ela é necessária/demandada.

Considerações

Os dados coletados evidenciam a responsabilidade da política de assistência social em relação aos direitos das pessoas idosas. Um dos objetivos desta política pública é a proteção social “que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção de incidência de riscos, especialmente: a proteção à família, à maternidade, à adolescência e à velhice” (Lei nº 8.742/1993, alterada pela Lei nº 12.435/2011, art. 2º).

Nesse sentido, é importante considerar os níveis de complexidade da política de assistência social, destacando que o acolhimento em ILPI está assentado licitamente na Proteção Social Especial (PSE) de Alta Complexidade. Frisamos alguns aspectos da Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Resolução CNAS nº 109/2009), que padroniza a oferta dos serviços, no que diz respeito ao Serviço de Acolhimento Institucional:

Para idosos, com 60 anos ou mais, de ambos os sexos, independentes e/ ou com diversos graus de dependência. A natureza do acolhimento deverá ser provisória e, excepcionalmente, de longa permanência quando esgotadas todas as possibilidades de autossustento e convívio com os familiares. É previsto para idosos que não dispõem de condições para

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permanecer com a família, com vivência de situações de violência e negligência, em situação de rua e de abandono, com vínculos familiares fragilizados ou rompidos (p. 45 e 46).

Isso demonstra que o acolhimento ofertado pela assistência social deve ser destinado para as pessoas idosas que não têm condições financeiras de subsistência ou de permanecer junto à família de origem, principalmente porque tiveram seus direitos violados.

Esta pesquisa possibilitou conhecer de que maneira os municípios gaúchos vêm construindo diuturnamente a política pública de acolhimento institucional/abrigamento para pessoas idosas. A demanda é referida como crescente e as estratégias públicas organizadas para atendimento da demanda são insuficientes, juridicamente instáveis e com pouco ou nenhuma participação dos demais entes públicos (estado e União), além do município. Ademais, é comum ouvir queixas dos gestores municipais acerca da judicialização em relação ao acolhimento institucional de pessoas idosas, mas foi corriqueiro ler relatos dos próprios municípios orientando seus demandantes para esse tipo de serviço ao buscarem justiça para encaminhar a situação, o que caracteriza um grande paradoxo.

É importante ressaltar que o aumento da expectativa de vida e o envelhecimento da população têm gerado uma demanda crescente por serviços de cuidados de longa duração e fica evidente que em alguns municípios – especialmente em regiões com maior concentração populacional – a compra desses serviços varia entre 50 e 200 vagas, gerando dificuldade para encontrar um local único com cuidados e serviços qualificados. Em alguns casos a demanda é tão grande que gera uma lista de espera, e essa escassez de instituições também impacta na judicialização existente para acesso às vagas de acolhimento institucional descritas pelos municípios como uma realidade regional.

Destaca-se a presença de relatos familistas com relação ao provimento de cuidados para as pessoas idosas em detrimento do reconhecimento de que a política pública é pouco estruturada, quando não ausente, e não se sabe ao certo a que agentes públicos compete fazer cumprir a implantação de política pública adequada, parametrizada e financiada de acolhimento institucional para pessoas idosas. Os municípios têm estado sozinhos na operacionalização de uma política pública que não existe na estrutura do estado do Rio Grande do Sul e da União.

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A professora Yeda Duarte, da Universidade de São Paulo (USP), refere que:

Tradicionalmente, na América Latina de um modo geral, nós temos uma coisa chamada familismo, nós damos à família a completa e total responsabilidade pelo cuidado das pessoas mais dependentes e, dentre elas, você coloca as pessoas idosas também. E as pessoas esquecem que é constitucional que a responsabilidade pelo cuidado das pessoas mais dependentes, incluindo crianças doentes, idosos, etc. é da família, da sociedade e do Estado. Mas só a família é criminalizada se não acontecer, então se o idoso está residindo sozinho alguém faz uma denúncia e vão atrás de um parente que ele não vê há 30 anos, essa pessoa vai ser acionada judicialmente para cuidar daquele que ele mal conhece, porque não conviveu com ele. Então o Estado passa para a família a responsabilidade absoluta por cuidar dos idosos e, quando isto não acontece, a única penalizada é a própria família. Ninguém penaliza o Estado por não ter política pública para os idosos, ninguém penaliza a sociedade porque não ajudou os idosos durante a pandemia, por exemplo (EPSJV/Fiocruz, 28 jan. 2022).

No Brasil, as políticas públicas foram construídas não por uma lógica garantista e sim por uma lógica extremamente dessemelhante. Existem vários grupos sociais e populacionais bastante vulneráveis, mas é tácito que a assistência e solidariedade recebidas por alguns grupos é invariavelmente distinta da recebida por outros, e na matéria de acolhimento institucional as pessoas idosas pertencem ao grupo que não recebe a necessária atenção pública.

Ainda que o ente público (União, estados e municípios) deva melhorar sua participação, gestão e financiamento do acolhimento institucional de pessoas idosas, ele precisa ser instado a fazê-lo. Isso pode ocorrer, inclusive, com algumas medidas triviais como, por exemplo, estruturando protocolos e diretrizes de Estado para acolhimento e pós-acolhimento de pessoas idosas em ILPI mediante financiamento público. Ainda assim seguiremos absolutamente distantes, nesse momento sócio-histórico, de responder a uma das questões centrais deste estudo “quem é a pessoa idosa, residente e domiciliada no Rio Grande do Sul, que tem direito a acessar uma vaga em ILPI através de financiamento público”?

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Outra questão que também precisará ser respondida nos próximos anos pelos entes públicos é: “Em qual(is) política(s) está(ão) a responsabilidade pelo financiamento do acolhimento às pessoas idosas”? Se, por um lado, a responsabilidade do acolhimento às pessoas idosas que não têm condições financeiras de subsistência ou que tiveram seus direitos violados está na política de assistência social, a responsabilidade de custeio e investimento, que demanda serviços de atendimento da política de saúde, no que se refere aos graus de dependência, não está clara no pacto federativo. Isso não tem levado em consideração que historicamente a assistência social não possui percentual definido em lei para oferta de serviços e que a demanda é crescente. Nesse sentido, como podemos implantar uma responsabilidade conjunta de ambas as políticas públicas no que se refere ao serviço de acolhimento institucional da pessoa idosa?

Assim, de forma geral, a leitura que fazemos após a análise da pesquisa é que os municípios têm “feito o que podem” com a pouca ajuda estrutural que dispõem e são hoje o ente governamental que se responsabiliza técnica e financeiramente pelos acolhimentos das pessoas idosas que necessitam no Rio Grande do Sul. Mas “o que podem” não corresponde ao atendimento integral e universal das necessidades das pessoas idosas que demandam cuidados institucionais e que é preconizado inclusive legalmente.

Apêndice

Lista dos Municípios Participantes da Pesquisa

Aceguá Água Santa Ajuricaba Alegrete

Alegria Almirante

Tamandaré do Sul Alpestre Alto Alegre

Alto Feliz Amaral Ferrador Anta Gorda Arambaré

Aratiba Arroio do Meio Arroio do Padre Arroio do Sal

Arroio do Tigre Arroio dos Ratos Arvorezinha Áurea

Balneário Pinhal Barão de Cotegipe Barra Funda Barracão

Barros Cassal Benjamin Constant do Sul Bento Gonçalves Boa Vista do Buricá

Boa Vista do Cadeado Boa Vista do Sul Bom Jesus Bom Princípio

Bom Retiro do Sul Boqueirão do Leão Braga Brochier

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Caçapava do Sul Cacequi Cachoeira do Sul Cachoeirinha

Caibaté Camargo Cambará do Sul Campina das Missões

Campinas do Sul Campo Bom Candelária Cândido Godói

Canela Canguçu Canoas Canudos do Vale

Capão da Canoa Capão do Cipó Capão do Leão Capivari do Sul

Caraá Carazinho Carlos Barbosa Catuípe

Caxias do Sul Centenário Cerro Branco Cerro Grande

Cerro Grande do Sul Cerro Largo Chapada Charrua

Chuvisca Cidreira Ciríaco Colorado

Condor Constantina Coqueiro Baixo Coronel Barros

Coxilha Cristal do Sul

Dom Feliciano Dom Pedrito

Dilermando de Aguiar Dois Irmãos

Dom Pedro de Alcântara Dona Francisca

Doutor Ricardo Eldorado do Sul Engenho Velho Entre Ijuís

Erebango Erechim Ernestina Erval Grande

Erval Seco Estação Estância Velha Esteio

Estrela Estrela Velha Eugênio de Castro Fagundes Varela Farroupilha Fazenda Vilanova Feliz Flores da Cunha

Floriano Peixoto Formigueiro Forquetinha Fortaleza dos Valos

Frederico Westphalen Garibaldi Garruchos Gentil

Glorinha Gramado Guaíba Harmonia

Horizontina Hulha Negra Humaitá Ibarama

Ibiraiaras Ibirapuitã Ibirubá Ilópolis

Independência Ipiranga do Sul Iraí Itaara

Itapuca Itaqui Itati Itatiba do Sul

Jaboticaba Jacuizinho Jacutinga Jaguarão

Jaguari Jari Jóia

Lagoa dos Três Cantos

Lagoão Lajeado do Bugre Lindolfo Collor Mariano Moro

Marques de Souza Mato Leitão Maximiliano de Almeida Miraguaí

Montauri Monte Alegre dos Campos Montenegro Mormaço

Morrinhos do Sul Muçum Muliterno Não-Me-Toque

Nova Araçá Nova Bréscia Nova Candelária Nova Esperança do Sul

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A Relação dos Municípios Gaúchos com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI)

Nova Hartz Nova Pádua Nova Petrópolis Nova Roma do Sul

Nova Santa Rita Novo Hamburgo Novo Tiradentes Novo Xingu

Osório Palmares do Sul Palmeira das Missões Palmitinho

Panambi Pântano Grande Paraí Paraíso do Sul

Passa Sete Passo do Sobrado Passo Fundo Paverama

Pedro Osório Pelotas Picada Café Pinhal

Pinhal da Serra Pinhal Grande Pinheirinho do Vale Pirapó

Planalto Poço das Antas Pontão Portão

Porto Vera Cruz Protásio Alves Quatro Irmãos Quinze de Novembro

Redentora Relvado Restinga Seca Rio dos Índios

Rio Grande Riozinho Roca Sales Rodeio Bonito

Rolador Rolante Ronda Alta Sagrada Família

Saldanha Marinho Salvador das Missões Sananduva Santa Bárbara do Sul

Santa Clara do Sul Santa Cruz do Sul Santa Margarida do Sul Santa Maria

Santa Tereza Santa Vitória do Palmar Santiago Santo Ângelo

Santo Antônio das Missões Santo Antônio do Palma Santo Antônio do Planalto Santo Cristo

Santo Expedito do Sul São Borja

São João do Polêsine

São José das Missões

São Francisco de Paula São João da Urtiga

São José do Herval

São José do Hortêncio

São José do Inhacorá São José do Norte São José do Ouro São José do Sul

São José dos Ausentes São Leopoldo

São Miguel das Missões

São Paulo das Missões

São Sebastião do Caí São Valentim

Sarandi Seberi

São Lourenço do Sul São Martinho

São Pedro do Butiá São Pedro do Sul

São Valentim do Sul São Vicente do Sul

Sede Nova Segredo

Selbach Sentinela do Sul Sertão Silveira Martins

Sinimbu Tapejara Tapera Tapes

Taquaruçu do Sul Terra de Areia Tio Hugo Tiradentes do Sul

Toropi Torres Tramandaí Travesseiro

Três Arroios Três Cachoeiras Três Coroas Três de Maio

Três Forquilhas Três Passos Tupanci do Sul Tupanciretã

Artigo 5 A Relação dos Municípios Gaúchos com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI)

Tupandi Tuparendi Unistalda Uruguaiana

Vacaria Vale do Sol Venâncio Aires Vera Cruz

Veranópolis Victor Graeff Vila Flores Vila Lângaro

Vila Nova do Sul Vista Alegre do Prata Vitória das Missões Westfália

Xangri-lá

referências

BRASIL. Estatuto do Idoso: Lei Federal n. 10.741, de 1. de outubro de 2003. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004.

BRASIL. Lei n. 12.435, de 6 de julho de 2011. Altera a Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Diário Oficial da União, 2011.

BRASIL. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Resolução CNAS n. 109, de 11 de novembro de 2009. Disponível em https://www.mds.gov.br/ webarquivos/public/resolucao_CNAS_N109_%202009.pdf 109-2009-tipificacaonacional-de-servicos-socioassistenciais. Acesso em: 18 mar. 2024.

CAMARANO, Ana Amélia; KANSO, Solange. As Instituições de Longa Permanência para Idosos no Brasil. Revista Brasileira de Estudos de Populações, v. 27, p. 232-235, 2010.

CAMARANO, Ana Amélia; KANSO, Solange. Como as famílias brasileiras estão lidando com idosos que demandam cuidados e quais as perspectivas futuras? A visão mostrada pelas PNADs. In: Camarano (ed.). Cuidados de longa duração para a população idosa: um novo risco social a ser assumido. Rio de Janeiro: Ipea 2010, p. 93-122.

CHRISTOPHE Michelle, CAMARANO Ana Amélia. Dos asilos às instituições de longa permanência: uma história de mitos e preconceitos. In: Camarano (org.). Cuidados de longa duração para a população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea, 2010.

DEBERT, Guita Grin. Gênero e envelhecimento. Estudos feministas, v. 2, n. 3, p. 33, 1994.

RESOLUÇÃO DE DIRETORIA COLEGIADA – RDC n. 502, de 27 de maio de 2021. Dispõe sobre o funcionamento de Instituição de Longa Permanência para Idosos, de caráter residencial.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE GERIATRIA E GERONTOLOGIA – SBGG. Instituição de Longa Permanência para Idosos: manual de funcionamento. São Paulo, 2003.

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Entrevista WALTER FIRMO

Por que virei um colorista? Porque eu sou um apaixonado pela cor e a paixão se regula ou se desregula na intensidade, na força da paixão, na cor.

Nascido em 1937 no Rio de Janeiro, Walter Firmo ingressou no fotojornalismo em 1955, como aprendiz, no jornal Última Hora, e nunca mais parou de fotografar. Atualmente, com 86 anos, conversou com a Revista Mais 60 – Estudos sobre Envelhecimento sobre seus projetos profissionais e pessoais para o futuro, bem como sobre sua trajetória.

Fotos: Ricardo Ferreira

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RAIO–X

Wallter Firmo

Fotojornalista, 86 anos

sobre Envelhecimento

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Trabalhou em diversos jornais e revistas, como Jornal do Brasil, revista Manchete, Veja Rio, Isto É, entre outros. Construiu uma carreira longeva que completa 72 anos, reconhecida por diversos prêmios. Um deles foi o Esso de Reportagem, em 1963, conquistado por “Cem Dias na Amazônia de Ninguém”, matéria publicada no Jornal do Brasil com fotos e texto seus.

Sua carreira e seu olhar foram transformados por um episódio racista vivido em Nova York, mas que o fez ver com mais clareza o racismo em seu próprio país. Conheceu o bairro do Harlem, descobriu o jazz e decidiu ajudar, com sua fotografia, a formar uma consciência negra no Brasil.

Chamado de “mestre da cor”, é autor de retratos marcantes de ícones da música brasileira como Pixinguinha, Dona Ivone Lara e Cartola.

Outra vertente bastante conhecida de seu trabalho são as imagens de festas populares registradas por todo o Brasil, do Carnaval do Rio de Janeiro ao bumba meu boi do Maranhão.

Desde 2018, o Instituto Moreira Salles (IMS) abriga, em regime de comodato, aproximadamente 145 mil fotos feitas por Firmo ao longo de várias décadas.

Mais 60 Como foi o começo da sua carreira?

Walter Naquele tempo não tinha faculdade de jornalismo. Então você ficava seis meses em uma redação, e o chefe, vendo a sua vivência profissional, se você era categórico ou não, ele te cortava ou jogava água na sua plantinha. E dizia: “OK, esse vai trabalhar com a gente”. E aí eu sou jornalista na minha carteira de trabalho, porque o meu viés é por meio da fotografia. É um condicionamento do jornalismo, como fotógrafo. Então eu fui repórter fotográfico, jornalista.

Mais 60 De que modo o senhor desenvolveu seu olhar fotográfico?

Walter Eu via com 15, 16 anos, quando comecei, que no fotojornalismo faltava uma essencialidade em relação à amorosidade. Eu via o jornalismo não só como uma fábrica de tragédias. A vida era um inferno no fotojornalismo. O avião pegando fogo, o sujeito saltando do edifício em chamas, o outro correndo com um objeto perfurante atrás da sua vítima e por aí. Era só tragédia, era só fato, e eu queria alguma coisa de enternecimento, alguma coisa que dosasse, que mostrasse que a vida vale a pena ser vivida através do enfrentamento. E foi assim que me tornei fotógrafo, fotojornalista, tentando mudar essa maneira de ser, trazendo para os jornais uma espiritualidade na maneira de olhar, na maneira de sentir.

Mais 60 Um dos grandes preconceitos contra a pessoa que envelhece é achar que ela não tem futuro e, portanto, não tem planos para o futuro. Quais são seus projetos para o futuro?

Walter Bom, além do reconhecimento, não jogue flores sobre o caixão, mas bata palmas, aplauda quem durante sua vida viveu com dignidade, respeitando o outro e fez da sua atividade profissional um buquê de rosas. Eu me qualifico dessa maneira, mas concluindo sua pergunta, eu tenho planos com 86 anos de idade. Eu quero escrever um livro sobre o que senti, sobre o que vivi nesses anos. Tenho 72 anos de carreira de jornalista. Eu tenho muita história para contar sobre mim e as pessoas com quem convivi, não só na questão da esfera política e das artes em geral.

Mais 60 Como é possível, na sua opinião, ter uma trajetória de 71 anos ininterruptos dentro de uma área como o fotojornalismo?

Walter Você tem que sonhar, você tem que ter um entendimento de vida que vale a pena, a gente, através de um querer, de um objetivo, tenta

Quero trabalhar mais, agora, com outra questão, outro organismo, que é a natureza. Se a sorte me favorecer e eu viver mais uns cinco anos, mudar meu modo de fotografar e ver o mundo, trabalhar com árvores, com troncos, com coisas que o mar devolve e ficam soberanas na praia, e tolhidos sem nenhuma envolvência com o movimento.

fazer sempre mais e mais, você veio para viver não para dormir, mas para viver a essencialidade da vida em todo seu esplendor. Eu quero ainda mudar minha maneira de glorificar a fotografia depois de trabalhar com tantas pessoas, com tanta gente. Quero trabalhar mais, agora, com outra questão, outro organismo, que é a natureza. Se a sorte me favorecer e eu viver mais uns cinco anos, mudar meu modo de fotografar e ver o mundo, trabalhar com árvores, com troncos, com coisas que o mar devolve e ficam soberanas na praia, e tolhidos sem nenhuma envolvência com o movimento. Então, isso é um outro viés de ver a fotografia como arte. Eu estou tentando ver isso em versão preto & branco. Essa é uma das intenções. Vamos ver se de repente isso confabula com meu desejo e me faça viver mais. É aquilo que, respondendo ainda sua pergunta, entrando nesse túnel do tempo de querer fazer com que eu possa ser mais longevo.

Mais 60 O senhor sentiu o racismo quando foi trabalhar em Nova York no escritório de uma revista brasileira. Poderia nos contar o que aconteceu e como esse fato mudou seu olhar?

Walter Bom, eu trabalhava para a Bloch Editora, na revista Manchete, lá em 1968. Eu trabalhei nessa editora de 1966 a 1971. Virei, assim, um caixeiro viajante, o sujeito que conhecia o Brasil através da sua profissão. E convivi com muitos artistas ligados à musicalidade, Cartola, Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus e tantos outros. O Instituto Moreira Salles comprou minhas fotografias e fez uma identificação do meu trabalho através de uma exposição fantástica de 264 fotos que está rodando aí pelo Brasil. Já esteve em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, agora está em Salvador e, em 29 de junho, vai estrear em Poços de Caldas, onde começou o clã do Walter Moreira Salles. Mas [o que] você tinha me perguntado?

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Mais 60 Sobre um episódio de racismo que aconteceu em sua carreira.

Walter Minha mãe tinha o referencial, de Portugal, pele clara, meu pai tinha a pele escura por conta da miscigenação da pele indígena e da negritude e, dentro desse híbrido, eles se conheceram no Rio de Janeiro e fizeram essa coisinha fofa, que sempre contente viveu. Minha mãe me falou que quando ela me esperava, a vizinhança deixou de falar com ela porque ela esperava um filho de um homem negro. Qual a razão de qualificar uma pessoa pela cor da pele? E isso ficou na minha cabeça. Depois, eu nunca me senti vilipendiado dentro do meu país. Um pouco de inocência, né? Eu só fui perceber em Nova York, quando trabalhava na redação da revista Manchete. O diretor de lá, falou: “Walter, tem uma mensagem de uns colegas seus lá do Rio que não estão muito satisfeitos com sua vinda aqui”. Eu fui ver o fax, era a época do fax, tinha lá uma frase que foi mais um capítulo dentro dessa coisa de agonia em relação às pessoas e da cor da sua pele. O texto era mais ou menos assim: “Como vocês contrataram um fotógrafo tão ruim, analfabeto e negro?”. Eu levei um tapa na cara, porque não esperava isso de um colega meu. Fiquei lá mais um ano, depois voltei para o Rio, deixei meu cabelo crescer, politizei a minha fotografia de forma que dignificasse o negro, contextualizando-o numa condição quase impossível na época. As pessoas negras que fizeram este país no ombro, no calor, nas lágrimas, na dor, entende? E sendo vilipendiadas dessa forma. Então, eu comecei a traduzi-las numa forma encantada. Meus totens, pessoas amorosas, chefes de família, enfim, pessoas como todas as outras. Eles são o encantamento dentro de minha filosofia visual, porque eu sou um deles, olha aqui: pixaim, nariz chato, dizem que boca de negro carnuda é boa pra beijar, então...

Eu ando preferindo o silêncio cada vez mais, racionalizar tudo que eu fiz, é como se eu pusesse um farol alto não na frente do meu carro, mas lá atrás ((risos)), como se visualizasse meu passado. E para que isso aconteça eu preciso estar sozinho. Eu gosto muito de estar sozinho. Perdi um pouco do entusiasmo que eu tinha com as pessoas, de ser mais uma delas. Minha vida é simples.

Mais 60 Voltando um pouco para a questão do envelhecimento, o senhor consegue enxergar de que maneira a passagem do tempo o transformou? Se mudou, o que mudou?

Walter Muito mais de um ano para cá, eu vejo um sobrepeso que eu não tinha. A questão física de andar na rua por exemplo, eu já tenho que ter alguns cuidados. Eu andava todo dia uns 40 minutos. Em razão da covid, eu deixei. Perdi o entusiasmo, e quando era para andar eu já não me sentia à vontade. Não é difícil eu andar, mas sinto a minha dorsal, tenho um sobrepeso ventral, minha barriga ficou bem proeminente, embora eu tente através de dieta escolher os alimentos, mas com a idade, quem tem já oitenta e poucos anos, é difícil retroceder, mas de qualquer forma eu tento. Eu sinto, por exemplo, quando tenho que subir uma escada, pego no corrimão para evitar quedas, quando eu desço também.

Mais 60 Tem alguma coisa que melhorou do seu ponto de vista?

Walter Sim, eu ando preferindo o silêncio cada vez mais, racionalizar tudo que eu fiz, é como se eu pusesse um farol alto não na frente do meu carro, mas lá atrás ((risos)), como se visualizasse meu passado. E para que isso aconteça eu preciso estar sozinho. Eu gosto muito de estar sozinho. Perdi um pouco do entusiasmo que eu tinha com as pessoas, de ser mais uma delas. Minha vida é simples. Minha comida é simples, meu arroz com feijão, uma saladinha, carne, mas antes, uma branquinha mineira cheirosa, transparente. Que mais?

Mais 60 Outro preconceito contra quem envelhece é que a vida afetiva termina. O senhor poderia nos contar como conheceu sua atual companheira?

Walter Eu sou muito chorão. Eu trabalho com a emoção. Aconteceu. Há 16 anos conheci essa criatura, [mas] estamos longe. Fui fazer uma matéria, com mais de cem fotógrafos, de visualizar o país por meio dos estados e ela trabalha no Sesc, na cidade do Parnaíba, no pouco litoral do Piauí. Muito bem, eu escolhi o Pantanal, mas já tinha outro fotógrafo, e eu, “poxa, mas eu queria fazer um pouco de paisagem, mas vou ficar com a paisagem humana” e me lembrei de uma frase da revista Cruzeiro, que indagava: “O Piauí existe”?

E eu com todas as andanças pelo Brasil já tinha passado pelo Piauí, sabia que existia, foi como jogar “onde você vai passar suas férias?” Tá... caiu no Piauí e eu fui para lá. E lá conheci, nessa cidade, essa moça. Eu tinha 70 anos de idade e ela tinha 39. Ela se aposenta agora no segundo trimestre. Possivelmente, quase certo, nós ficaremos juntos, três meses lá e ela três meses aqui. Mas então eu conheci essa moça. Sabe aquele filme francês onde a heroína se vestia toda de rosa, ela usava um sapato alto, e eu pensei que ali estava a minha fada e queria namorar essa moça. E aconteceu. E estamos até hoje. Eu gosto de escrever, tenho um prêmio nacional que não é de foto, é de texto, Cem Dias de Amazônia, de 1963. Isso me faz um pouco trabalhar com as palavras, escolher as palavras, é de nós, embora eu seja um fotógrafo.

Mais 60 O senhor se lembra das pessoas idosas da sua infância? Qual a importância delas pra você?

Walter A minha avó Tereza, que me criou até os cinco anos. O casal preto e branco do subúrbio do Rio queria viver abraçado e não queria testemunha e a minha mãe me colocou para ser criado com a mãe dela, minha vó Tereza, querida. A melhor parte do frango era para mim. Ovos nevados eram para mim. Mas isso me encurra-

lou nos meus primeiros cinco anos e eu não ia brincar com as outras crianças. Talvez eu tenha sido feito poeta nessa época também, através dessa prisão, porque eu via a vida confinada de dentro para fora. Via como prisioneiro a vida lá fora, onde acontecia, e eu não podia brincar.

Mais 60 E Walter, dessas pessoas idosas que você fotografou, tem alguma foto que te marcou? Walter Pixinguinha. Essa foto virou um ícone na minha vida. Todo mundo quando vê essa foto reverencia sua imagem. Uma vez eu perguntei a uma senhora em uma exposição: “Mas por que vocês adoram essa foto?”. Daí uma das senhoras falou para mim: “Ah, porque ali existe a felicidade”.

Eu vou em alto e bom som dizer. Entre a classe social que representa os idosos, nós estamos no abandono do poder público. Abandono no sentido literal da palavra. E já, já, o Brasil será um país de envelhecimento. Eu nunca pensei nisso, mas alguma coisa terá que ser feita.

Mais 60 Através de seu olhar tão apurado para a questão social no Brasil, como o senhor analisa o que é envelhecer hoje em nosso país, pelo que se observa nas ruas?

Walter Eu vou em alto e bom som dizer. Entre a classe social que representa os idosos, nós estamos no abandono do poder público. Abandono no sentido literal da palavra. E já, já, o Brasil será um país de envelhecimento. Eu nunca pensei nisso, mas alguma coisa terá que ser feita. Eu não, mas sei que tem uma ordem de idosos como eu que não tem o que comer, que não tem onde morar, vive ao léu, ao abandono, dentro da sua família, que também não pode fazer nada por ele. Eu acho que devia ter procedimento correto de quem faz e de quem manda nesse país de melhorar a vida deles.

Mais 60 As pessoas falam que o senhor é o mestre da cor na fotografia. Conte um pouco para a gente sobre isso. Você trabalha conscientemente com a cor?

Walter Eu comecei no preto & branco como legítima defesa, naquela época de aprender fotografia não tinha cor com toda essa euforia. Só depois, com minha personalidade, percebi, uns cinco anos, uns dez anos depois, através de um americano chamado David Drew Zingg1, ele está

sepultado aí em São Paulo, ele se apaixonou pela luz solar tropical e vi nas fotos dele uma força invulgar em relação à vida, à constituição filosofal do poder de ver a natureza que eu não via em outras populações do país que não viam o sol. Tanto quanto a linguagem preta & branca, são poderosas nas questões ambientais. Por que virei um colorista? Porque eu sou um apaixonado pela cor e a paixão se regula ou se desregula na intensidade, na força da paixão, na cor. E a cor tem um semblante para mim. É um tal de respostas dessas atitudes, onde não se pensa muito, mas se sente. Já no preto & branco, que gosto de fazer também, eu procuro vestir outras roupagens.

Mais 60 O senhor tem alguma mensagem que gostaria de passar para as outras gerações? As que estão vindo depois da sua?

1 Nascido em Montclair, Nova Jersey, Estados Unidos, David Drew Zingg estudou na Columbia University, onde viria a lecionar jornalismo. Foi repórter e fotógrafo da revista Look e trabalhou para outras publicações de seu país, como Life, Esquire e Vogue. Em 1959, Zingg chegou ao Rio de Janeiro como membro da equipe do veleiro Ondine na corrida oceânica Buenos Aires-Rio de Janeiro. Encantado com o país, começou a viajar frequentemente entre Nova York e Brasil. Suas reportagens sobre acontecimentos nacionais, incluindo a construção de Brasília, foram publicadas em várias revistas americanas e britânicas.

Walter Eu tenho uma mensagem que é minha, não sei se eles vão adquirir esse contexto, porque tudo depende da maneira de ser de cada um, né. Por exemplo, da maneira que sou, tranquilo, eu sublimo, procuro sublimar tudo, uma façanha existencial, por que nós viemos, o que nós viemos fazer aqui? Eu acho que tentar um entendimento com o outro, construindo paz, exaltando uma filosofia para o bem-estar é a principal função de um existir. Penso sempre que a felicidade reside no entendimento, numa fração em que os poderes são equânimes, onde a balança não pende para nenhum dos lados, mas sim por uma razão filosofal, onde o sol nasce para todos, o beber de uma água também, e isso nos alimenta de uma forma universal. Eu nunca tive esses poderes e quereres, só quero ser, só, e viver na minha plenitude de entendimento com os outros. Mas sem nenhuma filosofia, acho que [isso] é estar com Deus. E é uma maneira de se contemplar, de nos contemplar no outro.

Fotografia

Cor e Paixão

/por Walter Firmo

RAIO–X

Wallter Firmo Fotojornalista, 86 anos

71 anos de trabalho. Autor de retratos memoráveis de ícones da música brasileira como Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Cartola. Outra vertente bastante conhecida de seu trabalho são as imagens de festas populares registradas por todo o Brasil, do Carnaval do Rio de Janeiro ao bumba meu boi no Maranhão.

Maestro Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho) no quintal de casa, Rio de Janeiro,

Estudos sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87 Abril de 2024

sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87

Abril de 2024

Mãe Olga do Alaketu, Salvador, BA, 2002
Cantor Cartola (Angenor de Oliveira) desfilando no Carnaval do Rio de Janeiro, RJ, déc. 1970

sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87

Abril de 2024

Festa de São Benedito, ES, c. 1989
Gaudêncio da Conceição durante Festa de São Benedito, Conceição da Barra, ES, c. 1989

Porque eu sou um apaixonado pela cor e a paixão se regula ou se desregula na intensidade, na força da paixão, na cor. E a cor tem um semblante para mim. É um tal de respostas dessas atitudes, onde não se pensa muito, mas se sente. Já no preto & branco, que gosto de fazer também, eu procuro vestir outras roupagens.

Cantor Jamelão (José Bispo Clementino dos Santos), São Paulo, SP, 2007
Chapada Diamantina, BA, 1967

Estudos sobre Envelhecimento

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Cantora Clementina de Jesus (Clementina de Jesus da Silva), Rio de Janeiro, RJ, c. 1977

Envelhecimento Volume 34 | Número 87 Abril de 2024

Família paterna de Walter Firmo, Loirá, PA
Família materna de Walter Firmo, Belém, PA, 1956

Envelhecemos

Envelhecer Inédita

/ por Elisa Lucinda

Atriz, cantora, escritora e poeta, Elisa Lucinda nasceu em Cariacica, na Grande Vitória (ES), em 1958. Cursou comunicação social na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), foi professora. Entre vários prêmios recebidos como atriz, em 2020 ganhou o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Gramado pelo conjunto da obra. Elisa Lucinda é considerada uma das figuras mais relevantes entre os poetas brasileiros do século XX, pela apresentação da poesia falada de forma popular e por se destacar como mulher negra, voz atuante nos debates sobre racismo e feminismo na sociedade brasileira atual.

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RAIO–X

Elisa Lucinda atriz, cantora e poeta, 66 anos

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Uma vez, numa exposição que vi no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, sobre a vida de Cora Coralina, fiquei um bom tempo em pé, vendo um vídeo dela já bem velhinha, com seus noventa e poucos anos e uma aguçada lucidez.

Fiquei mesmo impactada, como vos relato aqui, pois ao ouvir a aula de vida dessa hoje senhora, eterna Cora Coralina, ao ouvir lições que clareiam toda a vida, me senti beijada no centro de minha emoção. Há uma parte em que ela fala que do alto da sua lira dos 93 anos pôde afirmar que a melhor idade é a dos 50 anos, e vai nos explicando, como uma dedicada professora, de que modo e por quê.

Vou tentar contar com as minhas palavras o que acho que ela diz com as dela.

Entendi que algumas evidências, de tanto se exibirem em nossas cenas diárias nessa idade, já podem ser, enfim, reconhecidas como certezas, já atingiram a substância desse nome. “Olha lá, aquilo é uma certeza”! “Eu tenho certeza”, pensamos. Nessa, teoricamente falando, metade da vida, algumas ingenuidades não fazem mais tanto sucesso e vão caçar outro bobo. Ao redor dessa hora, já temos maior visibilidade da viagem, caímos com menos facilidade ou ainda facilmente despencamos, mas nos levantamos com esperta rapidez e maestria, diferente dos abismos extremos do começo da viagem. Os mesmos erros nos enganam menos e o que foi uma vez chama não se apaga mais, transmuta-se.

Tudo isso ela diz em sua aula, que assisti de pé no museu. E prossegue. Alada de uma segurança impressionante, a mestra rainha vai esclarecendo seus mistérios e nos distribuindo seus preciosos achados. Me comovia. Uma vez embarcados, nosso olhar já alcança a extensão dos mares avançados, já dá pra ver o estampado do tabuleiro. E aí é que Dona Cora Coralina vem bombástica: “Agora, tem uma coisa, os 50

anos duram 25 anos! Você leva 25 anos tendo 50 anos, ou seja, vai até os 75, exatamente a idade em que publiquei meu primeiro livro”, afirma Coralinda. Achei muito fundamental a lição, e então apurei melhor o ouvido, estiquei mais o tecido da mentalidade daquela poeta, abri o pensamento dela para ver, dentro, os detalhes.

De súbito, visualizei que, se entendi bem, essa é a hora na vida de pegarmos o “morto”, como num jogo de Buraco. Nossas jogadas estão encaminhadas e as cartas dispostas à mesa. Várias possibilidades começadas, armadas, faltando apenas o Ás de uma, o Sete de outra, um Valetezinho que chegue, um Três já resolve vários problemas. Como ninguém sabe o que veio no novo monte que a gente acabou de pegar, nos olham conferindo-nos alguma autoridade e temos 25 anos para limpar nossas canastras e inaugurar a nova etapa do jogo.

Foram essas minhas impressões daquela experiência no Museu da Língua Portuguesa, quando eu ainda nem tinha 50 anos. Voltei de lá vendo tais cartas como palavras. E, mais do que isso, aquilo era um farol muito nítido, apontando para o que eu sonhava desde criança: ter uma deliciosa velhice sem ter que abandonar obrigatoriamente o tesão de existir, sem ter que parar de sonhar. Não houve ninguém que veio antes de mim e que tenha dito, quando eu tinha 20 anos, ser bom envelhecer.

Na infância da minha geração, as notícias dos velhos eram as piores: um cenário fixo, feito de cadeira de balanço, pijamas, chinelas nada sensuais, tristes tricôs e tristes crochês, sem contar uma mala de remédio ao lado e a falta de autonomia. Sim, porque velhice era sinônimo de falta de energia, de tesão, de vibração, uma espécie de morte em vida. Nada a esperar dos carecas, nada de ver senhoras como damas num salão de dança. Era um fim, uma espécie de ensaio da morte.

Não se gosta da vida até uma certa idade e pronto. Não se para de gostar do seu próprio corpo a partir de uma certa idade.

É isso. Era já uma morte, envelhecer. Observemos bem, crianças e moços esquecem coisas, todos nós nos dispersamos com tantos estímulos. E memória é afeto, foco, atenção. Habilidades essas sempre sujeitas aos apelos sensoriais, emocionais ou, melhor dizendo, sempre sujeitas a chuvas e a trovoadas fortes ou a sóis causticantes. Quantas vezes uma criança se perde sobre o que ia buscar num quarto por exemplo, porque achou outro objeto que a atraiu no caminho? Quantas vezes uma jovem apaixonada esquece tudo na prova, porque só sabe lembrar do bilhete que ele escreveu? No entanto, na minha infância, parecia que tinha uma plateia de pessoas mais jovens esperando um só vacilo desse para chamar o velho de caduco. Ao velho não era permitido esquecer e todos iam envelhecendo

antes da hora. Eles mesmos, os próprios velhos, viam em sua própria distração a inexorável chegada da velhice decadente. Não estou negando que o sol se põe, pelo contrário, estou, inclusive, dizendo que o crepúsculo é um grande exemplo de como morrer de um modo bonito.

Não se gosta da vida até uma certa idade e pronto. Não se para de gostar do seu próprio corpo a partir de uma certa idade. Não se está condenado ao saudosismo eterno, que impõe a lira dos 20 anos como um eterno país ideal do qual fomos exilados. Ora, não precisa ser assim. A inteligência humana fez coisas mais inteligentes do que a criação de fuzis e bombas atômicas. Descobriu que alimentos e outras substâncias fortalecem nossos ossos, nossas musculaturas e produzem um nível de saúde

Estou contando tudo isso porque venho envelhecendo inédita. Afinal, somos os mais jovens-velhos do mundo!

na chamada terceira idade, que inclui, hoje, exercícios, vida social e vida sexual ativas, ou seja, tudo aquilo que era, aos velhos de minha infância, vetado, proibido, desautorizado. Estou contando tudo isso porque venho envelhecendo inédita. Afinal, somos os mais jovens-velhos do mundo! Há 20 anos, uma amiga fez 60 anos e eu, 46. Estávamos em sua fazenda. Uma cachacinha ali, uma comidinha de fogão de lenha. Seu marido, 15 anos a mais que ela, cavalgava garboso pelo latifúndio, tratado com muito trabalho e dedicação, horas de amor à terra. Lindo, aquele homem portando uma vitalidade de um jovem senhor. Ainda à beira dessa minha pequena análise, sou interrompida pela vozinha de inocente veludo da netinha de minha anfitriã:

- Ô vó, vamo na piscina comigo, lá dentro, mergulhando?

- Claro, meu benzinho. Mas vamos primeiro ali na biblioteca com vovó pra pegar a seda, que vovó está doida pra fumar um baseadinho?

Aquela frase foi uma epifania na tarde. Deu uma porrada na vidraça do conceito que tinham me ensinado. A garotinha seguia de mãos dadas com sua grandmother, segura, protegida, de mãos dadas com a fazendeira, que era essa minha amiga, vovó maconheira. E assim foram as duas, a senhora e a menina, vestidas de biquíni azul, quase uma ancestralidade. Minha amiga é daquelas negras de Iemanjá, e que ao mesmo

tempo carrega uma Pomba Gira iluminada, leve. Seu biquínii fio-dental num corpo bonito de uma mãe de filhas adultas. Reluzia! Ainda exibia uma mecha prata saltando dos cabelos e cachos inquietos. Olhava para ela e pensava: “gostosa é a vovozinha”. Aquilo foi um ponto epistemológico de mudança, um dos primeiros que podiam representar uma fagulha do que eu sempre desejei que pudesse ser a vida madura, a vida futura que eu esperava.

Nesse sentido, ter vindo para o Rio de Janeiro foi definitivo. Esta cidade cabia no meu imaginário, ocupando o conceito de uma cidade grande. Foi aqui que pela primeira vez eu vi velhas de biquíni, velhos de sunga na praia. Nunca tinha visto rugas e óleo bronzeador ao mesmo tempo. Pela orla podia-se ver todo tipo de corpos se exercitando e, junto com eles, a liberdade. Senhoras com seus óculos escuros caminhando vigorosas pelas areias. Jovens, crianças, tudo misturado, como é o mundo e como deve ser. Todos vivendo ao mesmo tempo, todos no mesmo trem. O trem dos vivos. A imensa locomotiva. Me estarrecem, e enchem meus olhos de esperança, os times de vôlei com jogadores de cabeças brancas. Velhos bronzeados, que você tem certeza de terem programa pra noite.

Minha primeira vez no Rio de Janeiro foi com a família toda, e eu tinha 15, 16 anos. “Rio de Janeiro faz parte da educação, cultura”, dizia meu velho, bom e sábio pai, na época com 50 anos.

Ficamos todos os seis filhos hospedados no Hotel Apa, em Copa, perto da casa que moro hoje. Fomos aos pontos turísticos e, pasmem vocês, no Canecão! Uma radiante casa de shows que abrigou as pérolas da música popular brasileira por décadas e fez história com shows antológicos. Fomos ver “Brasileiro, Profissão Esperança” com o grande ator Paulo Gracindo, que já era um senhor para mim, e Clara Nunes. Ela cantava Dolores Duran, ele recitava poemas de Antônio Maria. Pirei com o show, pirei com a cidade. Nunca tinha visto velhos assim, lotando teatros. Uma senhora numa esquina de Copacabana, em pé num boteco, com saia midi verde-bandeira, uma blusa de bolas brancas e verdes e um brinco, combinando com a saia no mesmo tom. Cabelos curtos, ereta, levantava o copo de chopp e o olhar vivo de uns 70 anos. Estava ali, tinha amigas, programação. Pensei, como sempre pensei: como será que será Dona Elisa? Como envelhecerei? Estarei ainda de bicicleta como agora, cantando na orla, soltando os braços na ciclovia, cantando músicas, desafinando sem ninguém ver?

Tive um namorado, que era também um grande amigo, carioca, e que me mostrou o Rio de Janeiro, era parceiro. Um dia, entramos num carro com mais um amigo, que dirigia. Vidros fechados, alguém acendeu um cigarrinho magia e nosso amigo do volante disse, enquanto fumávamos: “Vou ter que passar lá em casa para pegar minha mochila, porque depois eu tenho ensaio com a banda. Ceis vão lá comigo? Tô muito doido. Minha avó parece que saca quando eu fumo. Ela não gosta. Vamo comigo?" Me ofereci, claro. “Imagine, Cesar, qual avó que vai gostar de erva, não é do tempo delas.” Entramos. Na sala, uma mesa para quatro pessoas. Uma senhora grande, negra, parecia ter quase dois metros. Tinha autoridade, estava de costas para mim. Com ela, dois senhores, cada um em suas cadeiras, com

seus respectivos copos em torno de uma garrafa de Cinzano:

- Bença vó!

- Taquipariu. “Beeença vó.” Lá vem meu neto com essa voz de babaca, só pode ter fumado maconha. Eu conheço.

Quando eu ia defendê-lo, dizer que ela estava enganada, como num plano sequência, a velha acaba de falar e atira a narina como um aspirador sobre o pó branco no prato. Foi um choque. Uma avó cheirando cocaína? E na cara do neto? Um dos homens da mesa portava um pandeiro e puxou uma música, que começava assim: “Deixa o menino brincar”. Saí de lá atordoada. Esse foi outro episódio que me apontou de novo para o mesmo lugar: o improvável. Precisamos respeitá-lo. Precisamos reconsiderar nossas conclusões sobre o improvável. Por que é improvável? Não se pode prová-lo? Ou simplesmente não foi conhecido até aqui? Tudo não acontece só até o dia de acontecer.

O certo é que havia em mim uma obstinação de não perder a minha criança interna, nem essa adolescente suspirante que mora em meu peito, chora com música romântica e cujo coração dispara quando recebe um poema de amor ou aquele telefonema. Tinha medo de que a propaganda que a velhice da minha infância anunciava como se propagasse um destino, ou melhor, uma praga, se confirmasse, e eu queria que fosse diferente. Queria não ter que ser assim. Minha própria mãe era uma jovem bonita, animada, soprano, artista de alma, tocava, cantava, datilografava, trabalhava fora, era moderna, gostosa, corpo bonito, bem feito, professora de ioga a partir dos 50, mas minha avó não era assim.

Minha avó materna foi uma vítima da violência psicológica que um homem sempre esteve autorizado a fazer a uma mulher. E a separação

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Abril de 2024

dos dois gerou nela uma obstinação por criar as filhas sem ele e um confinamento em si mesma. Dona Maria Antônia era, sobretudo, uma mulher machucada emocionalmente, sem esperança de ser feliz de novo no amor. Talvez tivesse amado o meu avô com toda a inocência e o patriarcalismo do romantismo da sua época. Acabou que a separação lhe deu uma espécie de viuvez e velhice precoces. Os seus vestidos discretos, os cabelos afroindígenas sempre fechados num austero coque atrás da cabeça. À noite, quando soltava os cabelos para dormir e eu via, era a hora que ela mais parecia uma mulher. No mais das vezes, era só uma avó, uma mulher depressiva, incomodada com alegrias e gargalhadas, embora também risse e fosse boa contadora de histórias, mas sua feminilidade estava aniquilada, parecia. Por causa das prisões que o patriarcado nos impôs, muitas mulheres, jovens viúvas, mães solteiras, separadas, se aposentam imediatamente após esses fatos, como uma punição, como autoflagelo, como um sacrifício. E desenvolvem uma vida da casa para a igreja, da igreja para a casa, tal qual minha avó, que ostentava no pescoço uma medalha do congregado mariano da Igreja Católica e me levava a procissões tristes, que me davam medo. Medo do Senhor morto, medo do sacrifício, a tragédia dos espinhos na testa do rapaz crucificado. Que triste, eu pensava. Pra que tanto sofrimento? Num desses rituais saí gritando, escalando minha mãe: “Eu tô com medo de Papai do Céu,

eu tô com medo de Papai do Céu.” Tinha cinco anos, me lembro até hoje. Eu estava desesperada com a imagem dele na sexta-feira da Paixão. Escultura em tamanho natural num corpo ensanguentado, envolto em cetim roxo. Eu ainda não sabia, mas aquilo era um elogio ao sacrifício. Por “coincidência”, na semana seguinte, ganhei da minha madrinha um crucifixo num cordãozinho de ouro, eu acho: “Não quero Papai do Céu todo machucado em mim não”, eu disse entre grossas lagriminhas. Ainda nem sabia que havia explicação secular para a tristeza da minha avó, para as milhares de mulheres do meu subúrbio, que eram mães com corpos abandonados por elas mesmas, soterradas de tarefas domésticas exaustivas como se vivessem sob uma grande ordem escravocrata. Uma mulher sozinha, limpando a sujeira de todos, da roupa, da sala, dos quartos, do banheiro, dos quintais. Aguentavam seus maridos violentos, transavam com medo de engravidar e, muitas vezes, sem um carinho preliminar que as deixassem lubrificadamente prontas para o amor. Era quase uma amargura ser mulher. Estudar, trabalhar fora, eram bandeiras daquelas pioneiras que conseguiam se rebelar.

Muitas prisões nos perseguem e uma delas é a eterna juventude, que também nos é imposta. Agora, faço parte do movimento antietarista, esse que exige que parem de querer de nós a juventude eterna como se beleza madura fosse só uma permissão ao masculino. Tanto que por

Agora, faço parte do movimento antietarista, esse que exige que parem de querer de nós a juventude eterna como se beleza madura fosse só uma permissão ao masculino.

muitos anos assistimos na TV brasileira a longa dinastia de galãs grisalhos numa proporção desleal em relação a personagens femininas maduras e igualmente atraentes. Tanto que o par do galã não é a “galoa”, mas é a “mocinha”, ou seja, a jovem, onde querem nos impor que toda beleza da vida inteira se detém. Não é verdade. Prova disso é que Dona Mocinha era uma moça velha, que conheci na minha infância, e que por ter sido mãe solteira muito nova e tendo tido o filho adotado pelos seus pais como seu irmão, foi envelhecendo como alguém que errou, pecou e virou uma moça sem mocidade, sem alegria. A velhice ou a jovialidade estão ligadas à potência e não à aparência. Estão ligadas ao lume de existir, tendo, nesse existir, alegria de viver. Por mim, estamos sempre na flor de cada idade.

Em metamorfose desde que nasci, sempre me sinto estreando novas belezas, novos jeitos, novas fases e, ao mesmo tempo, me reconheço nelas. Respeito a ciência da cirurgia estética e sei que resolve vários problemas de autoestima e, principalmente, relacionados a traumas, acidentes, mutilações, sequelas. No entanto, o aprisionamento à eterna juventude, incutido na cabeça feminina e nos olhos do mundo, em especial do Ocidental, obriga uma boa parte da humanidade a usar mil artifícios em busca do rosto “perfeito” em um corpo eternamente jovem. Impossível. O tempo passa pela gente e nos deixa suas marcas, vive conosco os enredos, é a nossa história, foi nosso companheiro na primeira noite de amor e está conosco também no sexo de agora. Nada existe fora do tempo. Não é à toa que na cultura do candomblé, Tempo é um orixá. Iroko, em iorubá. E nele, tudo, todas as horas, todos os segundos são preciosos. Ele é inteiro e dono do passado, presente, futuro. O ser humano também. Por isso, vejo com certo equívoco essa luta violenta pela dizimação de

todas as rugas, como se fosse um apagamento da história, quando tudo vive em mim. Se trago a menina, a moça e a mulher aqui dentro, estou sempre nova naquela idade que acabei de fazer. Tem um poema meu que diz assim:

Jardim da flor da idade

Tenho andado muito comigo

E estamos indo juntas para bons lugares.

Nem sempre foi assim.

Muitas vezes me atirando a loucos riscos

Nos expus a bravios mares.

Agora a liberdade respira

Com mais espaço e tranquilidade

Pelos caminhos da maturidade.

Nova daquele jeito, eu sei, nunca mais.

Mas agora

Que ninguém manda mais em mim

Posso ser jovem em paz.

Lembro de uma vez em que entrei num salão de beleza e uma mulher que eu já tinha visto lá, e sabia que era católica de ir à missa e tudo mais, exclamou bem alto ao me ver: “Nossa, que saia mais curta! Como é que você tem coragem?" E eu disse bem séria, falando baixo e olhando nos olhos dela: “Gostaria que a senhora respeitasse, porque isso é uma promessa que eu fiz. Passei a vida agradando a Deus e pedindo a ele para que eu pudesse usar, mesmo depois dos 50, minhas minissaias. Ele atendeu. Então respeita, tá? Porque isso é graça concedida”. Ficou um silêncio devoto no salão e eu, macumbeira, me acabando de rir por dentro.

Essa regulação dos nossos corpos, também por nós mesmas, tem que acabar. Nem sempre é o magro ou o jovem que é o sensual. Muitas vezes não é, ou é. Beleza é subjetiva, muitas coisas a compõem. Desenvolvi através do tempo um

Desenvolvi através do tempo um amor pela experiência de viver. É muito bom compreender e olhar para as mesmas coisas com um olhar diferente.

amor pela experiência de viver. É muito bom compreender e olhar para as mesmas coisas com um olhar diferente. Entender, hoje, abusos que o feminino sofreu antes de hoje pode ser doloroso, mas é uma libertação. Zanandré Avancini, médico psicanalista e pai do meu único filho, me disse uma vez, porque é um pouco mais velho que eu, que eu ia notar mais tarde como pessoas mais jovens gostam de pessoas mais velhas no sentido amoroso. Realmente, vi que ele tinha razão. Resultado: meu mercado emocional aumentou, posso namorar homens numa faixa etária mais ou menos de 24 a 80 anos. Por que não? Quem disse que não? O que se sabe do que acontece entre as almas que se encontram e se atraem? Às vezes uma frase define o laço. Aquilo era tudo que o outro procurou a vida inteira ouvir. Meu companheiro atual, Jonathan Estrella, é um jovem fotógrafo e tem 31 anos a menos que eu. Um dia, quando começamos o namoro, uma senhora, minha fã, nos parou na rua e disse: “Seu filho está lindo”. E eu: “Ele não é meu filho não, o que ele faz comigo, filho não faz com mãe não”. E dei um risinho safado, mandando pra ela o bilhete, a mensagem da sacanagem que todo ser humano conhece. Considero boa essa espécie de “pedagogia do constrangimento”, como dizia meu pai, que produz um desconforto nos pensamentos mais encaixotados.

Estou hoje envolvida mais do que nunca com mais essa pauta: a luta antietarismo. E o faço também em causa própria. Sou uma mulher de 66 anos que nunca fez um procedimento estético e me sinto bem assim, olhando para o espelho e

me reconhecendo, achando ali todas as minhas Elisas. É tudo que eu tenho e isso ninguém vai me tirar. Ainda mais agora que estou no maior templo de minha liberdade. Olho para o desenho da minha história, gosto do que vejo: a obra dos amigos, as compreensões da realidade, os entendimentos do mundo. Sempre haverá pessoas querendo pessoas. Nunca o amor do mundo vai se acabar. Se na hora da morte o que queremos é um beijo e um “eu te amo” ao invés de um milhão em dinheiro, é sinal de que o que vale na vida é o afeto. O que gostam em mim hoje, mesmo eu não tendo mais 20 anos, é de minha pessoa. Essa pessoa que está aqui desde que eu era criança e não morrerá enquanto eu existir. Que não tenhamos medo de que com o tempo se acabem os romances entre os seres. Para tanto, é necessário um autocuidado, um autorromance, cuidar da cabeça, viajar na linha do tempo sem lutar contra ele e sem se aposentar da vida, se amar, se acolher para dar exemplo para quem está vendo de fora. Amo muito as coisas que sei hoje, a qualidade de minha poesia, mais percepção do que é joio e do que é trigo.

Comecei essa reflexão por Cora Coralina, porque ela, sendo bem mais velha do que eu, e sendo de uma geração bem anterior a minha, me mostrara com a história das cartas do baralho e a duração das idades que o tempo é bem mais maleável do que pensamos, e que nos permite renovações, tal qual nos ensina o relógio das estações com primavera, verão, outono, inverno, onde temos tempo para viver, na plenitude, os processos. Esse assunto não tem fim, só sei dizer que,

quando fiz 50, não deixou de parecer um novo 20. Ganhei novas cartas para o jogo e já havia na mesa bons esboços do que eu previa e sonhava. Pouco antes dos 50, fiquei solteira. Nunca tinha sido solteira assim: respeitada pelo Brasil, cheia de fãs, considerada pelo meu país, com vários livros publicados, com os teatros lotados, sendo a artista que queria ser, quando deixei Vitória do Espírito Santo e vim para o Rio de Janeiro. Meu filho foi morar em outra casa quando foi o tempo, e isso não me deu a síndrome de ninho vazio não, me deu mais independência e liberdade. Liberdade, essa palavra que conhecemos desde sempre, mas que, quando somos muito jovens, não temos expertise e outros recursos para desfrutar dela na plenitude. Creiam-me jovens, a maturidade é boa, venham para cá. E nela, a saúde é fundamental. Há velhices milionárias que não podem desfrutar dos seus tesouros por motivo de doenças e suas limitações, por isso, é melhor não reduzirmos a um só aspecto as condições de bem-estar com a vida. Somos múltiplos e transformistas tal qual a natureza. Estamos aqui vivos à beira da mesa do mundo, onde se jogam as cartas das palavras e onde eu quero colocar as minhas mais belas. Sempre quis a revolução e não trair os sonhos de paz e amor da geração que veio antes de mim e me ensinou que era melhor fazer amor do que a guerra. Quando partir daqui, quero deixar um mundo melhor do que encontrei do ponto de vista racial, do ponto de vista da diversidade sexual e outras evoluções. Já se podem ver mudanças que nós provocamos. Valeu a pena a irreverência. O que me põe em conexão potente com a vida é a vitalidade do meu ser e o compromisso que fiz desde menina com as utopias.

Em 2002, com 44 anos, estreei uma peça, Parem de Falar Mal da Rotina, dirigida por Geovana Pires, e a primeira cena era eu pelada no palco, tomando banho. Só para pôr uma lente no coti-

diano e observar o ineditismo das ações. Só para que se veja o quanto de estreia há no viver seguindo as lições da natureza, que todo dia amanhece esplendidamente linda, e de um jeito diferente. O que eu não sabia é que ia ficar mais de duas décadas em cartaz, e agora, ao que tudo indica, vou fazer a peça sempre, enquanto tiver forças artísticas para executá-la com propriedade. Achei tão bonito ficar pelada no palco em todas essas idades e não mudar o começo da peça só porque o tempo passa. Quero viver, e bem mais de cem anos, e me pôr um dia como o sol. Em tudo há beleza, é só reparar. Nascemos nus e essa cena vai continuar. Pretendo envelhecer inédita, viva, nova de mim, de cada novo eu. Já repararam como é lindo o crepúsculo, suas cores, sua poesia desconcertante de tamanha luz e beleza?

Pois esses versos de Quintana são o que eu desejo um dia para mim: “morrer devia ser assim: um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim..". Caminhamos todo dia para o inédito. Em verdade não sabemos, não dominamos o que ainda não aconteceu, mas estar antenada com o agora e o grande improviso que a vida nos pede diante dos novos fatos exige amor e alegria no viver, sem as amarras do passado. Afinal, não estamos indo naquela direção. Não aguento mais gente nascida na minha geração, monotematicamente perturbando minha mente: “Porque no nosso tempo é que era bom”. Ora, nosso tempo é o carai! Vivi meus dias até aqui e meu tempo é hoje. Não tem essa de passado como prisão. Ou o que passou é estrutura de terra plantada e vivida, é semente viva da liberdade de agora, nesta altura da extensa lavoura da estrada, ou então não é nada! Por conta de inúteis nostalgias, certas epifanias do presente nos fogem. Felizmente, a maturidade tem me tornado mais jovem.

painel de experiências

Os Cuidados e o Programa Nacional de Assistência à Pessoa Idosa (PNAAM) em Cuba

/ por Eduardo Alfredo Triana Alvarez e Teresa Reyes Camejo

RAIO–X

Eduardo Alfredo Triana Alvarez

Psicólogo, professor auxiliar, mestre em longevidade satisfatória e em novas tecnologias para a educação. Diretor do projeto Fortalecimento das Capacidades Locais na Prevenção da Deficiência da Pessoa Idosa em Áreas Rurais (FortAM).

Teresa Reyes Camejo

Médica, professora auxiliar, especialista em medicina geral integral, mestra em longevidade satisfatória e poluição ambiental.

No início do confinamento devido à covid-19, tornou-se viral a resposta da antropóloga Margaret Mead a seus alunos sobre qual era o primeiro sinal de civilização na humanidade. Ela respondeu que era um fêmur quebrado e curado.

Mead explicou que, no reino animal, se você quebrar uma perna, morre. Não é possível fugir do perigo, ir ao rio beber água ou procurar comida para sobreviver, tornando-se uma presa dos animais que rondam o local. Ninguém sobrevive com uma perna quebrada tempo suficiente para o osso se curar (...). Um fêmur quebrado que foi curado evidencia que alguém dedicou seu tempo para ficar com a pessoa que o quebrou, enfaixou a ferida, a levou a um lugar seguro e a ajudou a se recuperar. Mead disse que ajudar alguém em dificuldades é início da civilização (PRIETO, 2020).

De fato, pesquisas arqueológicas sugerem práticas de cuidado em diferentes sociedades pré-históricas com base na descoberta de esqueletos humanos com várias ocorrências musculoesqueléticas – amputações ou lesões – que correspondem a pessoas com doenças ou patologias, simples ou graves, cuja sobrevivência durante anos não teria sido possível sem a ajuda de outras pessoas ou sem a “adaptação” do grupo – por exemplo, em sociedades nômades, cuidar de pessoas com dificuldades de locomoção (GORMAN, 2012).

Nos últimos anos, o estudo dos cuidados ganhou impulso, sendo constituindo de uma abordagem e uma proposta. No entanto, os termos “cuidados” e “assistência” têm sido criticados pelo movimento das pessoas com deficiência, pois leva a concebê-las como “objeto” passivo (de cuidado), o que as objetifica e as torna um “fardo” para a família e a sociedade, em vez de serem

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titulares ativas de direitos. Nesse sentido, propõe-se uma abordagem baseada em apoio como alternativa aos cuidados de longa duração. Essa abordagem vai além de uma diferença terminológica, sendo importante:

Criar consciência sobre os direitos das pessoas com deficiência, combater os estigmas, os estereótipos, os preconceitos, a segregação e todas as práticas prejudiciais que diminuem suas chances de usufruir plenamente de seus direitos humanos no âmbito da participação na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (ONU, 2020).

Também:

Os cuidados são atividades que regeneram de modo diário e geracional o bem-estar físico e emocional das pessoas. Incluem as tarefas cotidianas de administração da vida e sua subsistência, como: manutenção dos espaços e bens domésticos, cuidado com o corpo, educação/ formação das pessoas, manutenção das relações sociais ou apoio psicológico aos membros da família (ONU Mulheres/Cepal, 2020).

Um Sistema Integral de Cuidados pode ser definido como o conjunto de políticas destinado a concretizar uma nova organização social dos cuidados com o objetivo de cuidar, assistir e apoiar as pessoas que precisam dele, bem como reconhecer, reduzir e redistribuir o trabalho de cuidados – que atualmente é realizado principalmente por mulheres – a partir de uma perspectiva de direitos humanos e de gênero, interseccional e intercultural. Tais políticas devem ser implementadas com base na articulação interinstitucional,

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com um enfoque centrado nas pessoas, no qual o Estado garanta o acesso ao direito aos cuidados, estruturado em um modelo de corresponsabilidade social, envolvendo a sociedade civil, o setor privado, as famílias e o gênero (ONU Mulheres/Cepal, 2021).

A implementação desse sistema implica em uma gestão intersetorial para o desenvolvimento gradual de seus componentes – serviços, regulamentações, formação, gestão de informação e conhecimento, e comunicação para a promoção da mudança cultural – que atenda à diversidade cultural e territorial.

Os serviços devem se adaptar às necessidades das pessoas idosas, as quais requerem uma gestão muito mais eficaz para que não apenas melhorem sua sobrevivência, mas também maximizem suas capacidades funcionais e reduzam os anos de dependência de terceiros (FLORES, 2024).

Este programa exige o esforço coordenado de pesquisadores em gerontologia e geriatria para lidar com a ampla variedade de problemas sociais e de saúde que ocorrem no envelhecimento, incluindo aqueles que afetam a capacidade funcional, a participação social e as necessidades das pessoas idosas no contexto dos sistemas de assistência social e de saúde (MAÑAS e SÁNCHEZ, 2021). Cuidar e ser cuidado faz parte da nossa experiência humana. Todos precisam de ajuda, cuidado ou apoio de outras pessoas em algum momento ou até mesmo ao longo de toda a vida para subsistir, participar da sociedade e viver com dignidade (TRIANA, 2023).

A realidade demográfica atual e as previsões de envelhecimento populacional em Cuba merecem atenção especial. O envelhecimento da

população cubana é caracterizado pela velocidade de seu processo. Se em 2019, 20,8% dos cubanos pertenciam à faixa de 60 anos ou mais, no final de 2022 esse indicador era de 22,3%, um crescimento de quase dois pontos percentuais em apenas três anos, de acordo com o Escritório Nacional de Estatística e Informação (ONEI, 2023). Em seu recente relatório O Envelhecimento da População: Cuba e Seus Territórios, o Onei apontou que o rápido envelhecimento de sua população é precisamente o principal desafio de Cuba:

Esse processo teve como principais causas a rápida transição demográfica e a estabilização de baixos níveis de fertilidade e mortalidade, variáveis que, associadas ao fator migratório nos últimos anos, têm causado taxas de crescimento quase nulas ou negativas.

No final de 2022, o percentual de envelhecimento foi de 22,3%, com uma população de 60 anos ou mais de 2.478.087 pessoas. Ou seja, em apenas 20 anos o percentual de envelhecimento aumentou 7,7 pontos, consolidando o país como um dos mais envelhecidos da América Latina. Segundo a última projeção populacional realizada pelo Onei, prevê-se que em 2050 a população idosa alcance 3.343.520 pessoas, o que representaria uma taxa de envelhecimento de 35,9%. Ao analisarmos esse segmento por sexo, há um crescimento masculino de 35.565, uma taxa média anual de 32,3%; enquanto a população feminina cresce 44.411, uma taxa média anual de 34,3% (ONEI, 2023).

Considerando a realidade atual e futura do envelhecimento e o consequente aumento esperado de problemas de funcionalidade, os países da região precisam priorizar o tema da medição da capacidade funcional em suas populações.

Diante dessa necessidade de mudança, é necessário focar, em primeiro lugar, em contar com ferramentas que permitam a detecção precoce da perda de capacidade funcional e a capacidade preditiva da dependência (ECHEVERRÍA et al., 2022). Isso implica em criar instrumentos que priorizem a capacidade proativa em lugar de reativa do sistema sociossanitário com o intuito de promover a continuidade dos cuidados e, a partir daí, viabilizar a necessidade de focar na medição das Atividades da Vida Diária Instrumentalizadas (AVDI) como um primeiro sinal de alerta para o oferecimento de intervenções que busquem recuperar e prevenir a perda de funcionalidade no âmbito do Envelhecimento Saudável e da Década do Envelhecimento Saudável, recentemente lançados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização das Nações Unidas (ONU) (ECHEVERRÍA et al., 2022).

A alta prevalência de fragilidade, incapacidade e dependência em pessoas idosas leva a uma demanda crescente por assistência e proteção social. Os cuidados são hoje uma necessidade vital. A incapacidade em pessoas idosas, fator que mais contribui para a dependência, provoca uma crescente demanda, gerando sobrecarga econômica e estresse psicológico no cuidador (GARCÍA, 2019).

Quando uma pessoa se torna o principal cuidador de um membro da família, sua vida muda. Sua rotina diária e o tempo dedicado às suas atividades pessoais, ao descanso, ao lazer, à vida pessoal e até mesmo ao autocuidado são modificados: enfrentam conflitos de papéis que afetam sua harmonia e equilíbrio emocional (GARCÍA, 2019).

Reitera-se que as mulheres são as principais provedoras de cuidados. A partir das políticas públicas e dos programas sociais existentes em Cuba, poderiam ser articulados, de forma mais ampla, sistemas voltados para a comunidade que beneficiem famílias que não possuem recursos

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humanos e materiais suficientes para cuidar de pessoas idosas, com o objetivo de permitir que a pessoa dependente viva a maior parte do tempo em sua casa (GARCÍA, 2019). Essas premissas são reiteradas pelo diretor do Programa Nacional de Assistência à Pessoa Idosa (PNAAM, em espanhol) e pelo ministro da saúde pública em diversas entrevistas realizadas no site de notícias CubaDebate. O doutor Alberto E. Fernández Seco – diretor do PNAAM, Assistência Social e Saúde Mental do Ministério da Saúde Pública (Minsap) – considera importante fornecer cuidados na comunidade, pois o projeto de vida da maioria das pessoas idosas não implica na internação em uma instituição.

Antes, 80% das pessoas idosas em Instituições de Longa Permanência (ILPI) não precisavam de ajuda para realizar suas atividades cotidianas e 20% possuíam alguma deficiência. Agora, estamos tentando garantir que a maioria dos institucionalizados sejam pessoas com deficiência, para manter em seu ambiente aqueles que podem cuidar de si mesmos. Queremos que o envelhecimento seja uma oportunidade de desenvolvimento, não um problema a ser enfrentado, e com essa premissa realizamos todos os esforços em termos de assistência (FARIÑAS, 2022).

Já o doutor José Á. Portal Miranda, ministro da Saúde Pública, ao orientar as ações na comunidade, abordou a implementação do Programa Nacional de Envelhecimento Populacional para manter um número cada vez maior de pessoas saudáveis e funcionais nas comunidades (CubaDebate, 2024).

As deficiências e/ou síndromes geriátricas são importantes causas de dependência na população idosa, um risco que aumenta à medida que a idade avança, gerando diversos tipos de cuidados.

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Portanto, são muito importantes ações que contribuam para o envelhecimento saudável e ativo, com uma perspectiva de amplo envolvimento da sociedade em geral, apoiada em políticas públicas que promovam ações viáveis e sustentáveis. Em Cuba, desde 1996, entre os quatro programas prioritários do Minsap está o PNAAM. Esse programa contém três subprogramas: comunitário, institucional e hospitalar, integrados no propósito de contribuir para melhorar a saúde, a satisfação e a qualidade de vida da pessoa idosa por meio de ações de prevenção, promoção, assistência e reabilitação. Eles são realizados pelo Sistema Nacional de Saúde Pública em coordenação com outros órgãos e organizações do

Estado voltados para esse tipo de atendimento. O programa tem como protagonistas a família, a comunidade e a pessoa idosa na busca de soluções locais para seus problemas (MINSAP, 2019). Todos os subprogramas são importantes e integrados; no entanto, o comunitário se destaca porque atende mais de 95% da população idosa do país, sendo que uma de suas metas é a promoção da saúde e a prevenção de doenças (TRIANA, 2023). O gráfico 1 oferece uma visão da interação entre os subprogramas e como, por meio do Exame Periódico de Saúde (EPS), é possível contribuir para a vigilância da funcionalidade como indicador principal de saúde, de acordo com a teoria do envelhecimento saudável.

Gráfico 1: Integração dos três subprogramas de assistência relacionados ao Programa Nacional de Assistência ao Idoso e Vigilância Funcional Comunitária

SUBPROGRAMA INSTITUCIONAL

+ 95% de pessoas idosas vivem na comunidade

SUBPROGRAMA HOSPITALAR

PRIMÁRIA DE SAÚDE (APS)

EQUIPE BÁSICA DE SAÚDE (EBS)

Médico(a) e enfermeiro(a) da família no CMF

Realizam o Exame Periódico de Saúde (EPS)

SUBPROGRAMA COMUNITÁRIO

Só uma vez ao ano, se não houver mudança na condição de saúde

Pessoa Idosa Não Frágil

Fonte: elaboração própria.

22% - 25%

Pessoa Idosa Frágil

Pessoa Idosa Precisando de Cuidados

Programa Nacional de Assistência à Pessoa Idosa – 1996

Todos os subprogramas foram elaborados para que o programa contemple todo o tipo de pessoa idosa beneficiária desses serviços. No hospitalar, o cuidado é voltado para restaurar a saúde; no institucional, abrange as ILPI; e no comunitário, são oferecidas todas as possíveis respostas no nível da assistência primária à saúde, como o Consultório Médico da Família (CMF), em que estão localizadas as instituições sociais semi-internas – as casas de avós ou os centros dia, com o objetivo de promover a socialização. Além disso, existem outras modalidades comunitárias, como os serviços de assistência à família, especialmente orientados às necessidades de alimentação. Há também o serviço de assistentes sociais domiciliares ou cuidadores remunerados, financiados pelo Ministério do Trabalho e Segurança Social (MTSS). Esses são os serviços mais utilizados por idosos dependentes, juntamente com outros suportes de vários tipos que são oferecidos por diversos setores com partici-

pação majoritariamente estatal e também com participação de instituições religiosas e/ou com um incipiente aporte do setor privado.

No subprograma comunitário, o(a) médico(a) e o(a) enfermeiro(a) da família realizam o Exame Periódico de Saúde (EPS) em pessoas com 60 anos ou mais, baseado na avaliação funcional da pessoa idosa, detectando seus níveis de dependência e propondo a permanência na comunidade ou o encaminhamento para outro tipo de assistência, conforme for necessário. O EPS inclui questionário, exame físico, exames complementares e a Escala Geriátrica de Avaliação Funcional (Egaf), sendo que essa última auxilia na classificação da fragilidade e das necessidades e fornece informações básicas. Em treze itens, a Egaf aborda elementos funcionais, psicológicos, sociais e biomédicos que permitem realizar uma avaliação integral e criar uma estratégia de intervenção em colaboração com outros profissionais. As pessoas idosas frágeis ou que necessitam de uma assistência

Gloria Rodríguez Lugones, coordenadora do projeto Hilando Fino, se prepara lendo temas de autoajuda com o aplicativo “Cuidémonos” que faz parte do pacote tecnológico CuidAM

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específica são encaminhadas à Equipe Multidisciplinar de Assistência Gerontológica (Emag), composta de médico(a), enfermeiro(a), psicólogo(a) e assistente social, que realiza uma avaliação multidisciplinar e, após o diagnóstico realizado em grupo, decide o plano de intervenção de acordo com a complexidade e os serviços disponíveis, intra ou extrassetoriais. O diagnóstico sempre é repassado aos assistentes sociais do Ministério do Trabalho e Segurança Social (MTSS), assim, ampliam-se as possibilidades de suporte, especialmente quando são identificadas alterações na funcionalidade das Atividades da Vida Diária (AVD) básicas ou elaboradas, exigindo cuidados. Esses casos são encaminhados aos serviços mencionados anteriormente ou a outras modalidades de assistência, dependendo das particularidades da pessoa avaliada, já que ela faz parte de um grupo populacional que contempla diversas formas de envelhecimento.

Como parte do PNAAM, embora os processos de cuidado estejam presentes em muitas ações, podemos elencar tarefas no âmbito comunitário relacionados à assistência e aos cuidados, como:

a. Estimular o desenvolvimento de experiências não formais de assistência à pessoa idosa na comunidade, incentivando programas de autoajuda e ajuda mútua através das possibilidades locais e da participação das próprias pessoas idosas.

b. Criar redes de pessoas idosas voluntárias com intuito de preparar líderes comunitários que identifiquem precocemente necessidades de saúde e/ou sociais de seus pares, fomentando soluções criadas com o apoio e a participação deles próprios.

c. Criar fontes alternativas de assistência e cuidado às pessoas idosas com deficiência por meio de treinamento de cuidadores na própria população (MINSAP, 2019).

Equipe da Cruz Vermelha Cubana oferece informações a estudantes primários sobre diversas formas de mobilização para pessoas idosas dependentes na jornada CuidAM, nos dias internacionais de Cuidados e Apoio às pessoas idosas

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Atualmente, o processo de cuidados às pessoas idosas dependentes em Cuba é respaldado não apenas pelo Programa Nacional da Pessoa Idosa, mas também por leis recentemente aprovadas, como o novo Código de Famílias, a nova Lei de Saúde Pública e até mesmo a própria Constituição da República. Embora não haja, na legislação cubana, uma pasta que se encarregue permanente de questões populacionais e de desenvolvimento, destaca-se a Comissão Governamental para a Atenção à Dinâmica Demográfica – um mecanismo de coordenação institucional para implementação e acompanhamento do Consenso de Montevidéu –, criada em 2012 e atualmente regulamentada pelo Acordo 9.358 do Conselho de Ministros. Trata-se de um mecanismo permanente liderado pelo próprio Conselho de Ministros e presidido pelo primeiro-ministro, no qual se incorpora a pessoa idosa dependente no processo de assistência.

Para a formação de cuidadores, o Ministério da Saúde Pública emitiu a Resolução 38/2023, que visa realizar de forma uniforme ações formativas em todas as policlínicas do país, tendo como base as experiências do Centro de Pesquisas sobre Longevidade, Envelhecimento e Saúde (Cited).

Por meio das experiências do Centro Gerontológico de Colón e do projeto Fortalecimento das Capacidades Locais na Prevenção da Deficiência da Pessoa Idosa em Áreas Rurais (FortAM), com contribuições do Clube Jovem de Computação e da organização mediCuba_Suiza, foi desenvolvido o pacote tecnológico CuidAM, com o objetivo de apoiar a resolução 38/2023, que atualiza informações para professores das escolas de cuidadores e amplifica a cultura dos cuidados de pessoas idosas dependentes. O pacote FortAM, atualmente disponível on-line, oferece aplicativos, web, livros e publicações em revistas de grande impacto que fundamentam teórica e metodologicamente cursos e capacitações disponíveis.

Pessoas cuidadoras mostram, orgulhosas, cartilhas de conclusão do curso de formação de cuidadores, na província de Matanzas

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Recursos e publicações disponíveis on-line

CARTILLA de la persona cuidadora de adultos mayores dependientes. Disponível em: https://twitter.com/ TeresaReyesCam2/status/1668786644290265090 [código QR].

CuiDAM. Site. Disponível em: https://www.mtz. jovenclub.cu/sitios/cuidam/index.html.

CURSO NACIONAL virtual de autoaprendizaje. Aporte de las TICS al cuidado del adulto mayor dependiente. Na plataforma Joven Club de Computación y Electrónica (JCCE). Disponível em: https://cursad.jovenclub.cu/login/index. php. Acesso em: 24 mar. 2024. [Para acessar outros cursos é necessário baixar o aplicativo compatível com o sistema Android SharExam. FortAM.CuidAM versión 2.1, com autoavaliações por unidades, segundo o programa do curso. É possível fazer o registro como usuário no link Cursos, que está na página Outros Cursos. O curso permanecerá aberto entre janeiro e 15 de dezembro de 2024.]

TRIANA, E. A.; REYES, T. C.; TRIANA, E. R. Aportes de la educación 4.0 y la caja de herramientas tecnológicas a exigencias educativas actuales. Educación Médica Superior, 37(3), 2023. Disponível em: https://ems.sld.cu/index.php/ems/article/ view/3940. Acesso em: 26 mar. 2024.

VIDAL, M. L.; TRIANA, E. A.; REYES, T. C.; GONZÁLEZ, R. La educación 4.0 y su aplicación en la educación médica superior. Educación Médica Superior, 37(3), 2023. Disponível em: https://ems.sld.cu/index. php/ems/article/view/3972/1518. Acesso em: 26 mar. 2024.

Apesar da dificuldade de recursos no país, esta estrutura se sustenta com uma combinação de esforços: muita inciativa da equipe de assistência e das próprias pessoas idosas, que são protagonistas de sua história. São combinados ações e esforços para a promoção de uma aprendizagem permanente, uma vigilância sanitária de qualidade e a transformação e inclusão digital (coletivo de autores Redip, 2023). Por fim, deve-se sublinhar que neste novo cenário demográfico as necessidades e demandas da população idosa são de extrema importância e as respostas tradicionais não são ou serão suficientes.

Referências

COLECTIVO autores Redip. El envejecimiento poblacional es uno de los principales desafíos en América Latina y el Caribe. Revista Mais 60, ed. 86, Sesc, São Paulo. Brasil, 2024. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/ed-86-oenvelhecimento-populacional-e-um-dosprincipais-desafios-da-america-latina-e-docaribe/. Acesso em: 24 mar. 2024.

CUBADEBATE. Desde la dinámica demográfica proyectarnos al futuro. Cubadebate, 16 mar. 2024. Disponível em: http://www.cubadebate. cu/noticias/2024/03/16/desde-la-dinamicademografica-proyectarnos-al-futuro/. Acesso em: 24 mar. 2024.

ECHEVERRÍA, A. et al. Funcionalidad y personas mayores: ¿dónde estamos y hacia dónde ir? Rev. Panam. Salud. Publica, 2022;46:e34. Disponível em: https://iris.paho.org/ bitstream/handle/10665.2/55890/v46e342022. pdf?sequence=5&isAllowed=y. Acesso em: 24 mar. 2024.

FARIÑAS, A. L.; YILENA, H. R. Cuidados de la vida a largo plazo en Cuba: desafío urgente para una sociedad que envejece. CubaDebate, 21 oct. 2022. Disponível em: http://www.cubadebate. cu/noticias/2022/10/21/cuidados-de-la-vida-alargo-plazo-en-cuba-desafio-urgente-para-unasociedad-que-envejece/. Acesso em: 24 mar. 2024.

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PRIETO, R. Más allá de las pandemias. Rev. Colomb. Cir., 2020, n. 35, p.141-2, especial covid-19. Disponível em: https://doi.org/10.30944/20117582.606. Acesso em: 24 mar. 2024.

SÁNCHEZ, G. F.; MENDIOLA, G. R. F., AROS, E. L. A.; INFANTE, S. V. M. Envejecimiento, cuidados de largo plazo y políticas públicas: una mirada holística para América Latina. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales y Humanidades, 5(1), 16-35, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.56712/latam.v5i1.1569. Acesso em: 24 mar. 2024.

TRIANA, E. A.; REYES, T.; PÉREZ, E.; HERNÁNDEZ, Y.; PANEQUE, L. M.; HERRERA, I. Cartilla de la persona cuidadora. 1. La Habana: Editorial Joven Club, 23 abr. 2023. ISBN: 978-959-289-124-8.

TRIANA, E. A. et al. Mejora del examen periódico de salud. Basado en procesos y evaluación de tecnologías Londres: Editorial Académica Española, 2020. ISBN: 978-620-0-39029-5.

Volume 34 | Número 87 | Abril de 2024

resenha/livro

O que Eu Gostaria que as Pessoas Soubessem sobre Demência

Obra serve de manual de otimismo após diagnóstico de demência

/ por Valmir Moratelli

RAIO–X

Valmir Moratelli

É doutor em comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio) e autor do livro A Invenção da Velhice Masculina (Matrix). É colunista da revista Veja, professor de escrita criativa e diretor de cinema. Desenvolve pesquisas sobre envelhecimento e representação de gêneros. Entre seus filmes, estão Rosa – A Narradora de Outros Brasis (2023) e Prateados – A Vida em Tempos de Madureza (Globoplay, 2021), sobre temáticas do envelhecimento. vmoratelli@gmail.com

Mantendo na firmeza de seus relatos a exposição das limitações, escreveu o livro sete anos depois de receber o diagnóstico, mas ainda vivendo sozinha e de maneira independente.

Diagnosticada aos 58 anos com demência vascular precoce e Alzheimer, a escritora britânica

Wendy Mitchell passou, a partir da sentença médica, a contar sua realidade em obras que transitam entre o olhar particular sobre a doença e o apontamento de possibilidades para uma vida à beira do normal. Seus escritos logo se tornaram sucesso de venda. O último a sair no Brasil, no ano passado, foi O que Eu Gostaria que as Pessoas Soubessem sobre Demência (Best Seller, 270p). Mantendo na firmeza de seus relatos a exposição das limitações, escreveu o livro sete anos depois de receber o diagnóstico, mas ainda vivendo sozinha e de maneira independente.

Já na introdução, Wendy explica que o motivo para o escrever veio da vontade de partilhar o que aprendeu sobre a doença, na tentativa de inspirar outras pessoas a terem uma vida melhor. Assim, a obra é organizada em seis temas: sentidos, relacionamentos, comunicação, ambiente, emoções, atitudes. A cada capítulo, descrições sobre suas adaptações às demandas da doença. É na individualidade que Wendy traz suas dores incertas atravessadas por dicas que, por vezes, podem soar espirituosas.

“A única maneira de saber se comi algo no dia anterior é encontrar a louça no escorredor na manhã seguinte.”

A forma como adaptou sua cozinha e trocou o jogo de pratos e talheres para não ter que se perder com a comida a sua frente, o necessário

despertador que lhe avisa da chaleira posta no fogo há poucos minutos, os tênis com cadarço de elástico que facilitam o simples gesto de sair com calçados à rua, a escolha de tapetes de cores que não sejam as mesmas do piso da escada para que não caia a todo instante... São diversos os exemplos, aparentemente banais, que trazem percepções visando a um ambiente mais preparado para que se viva com dignidade.

Os relatos de Wendy não carecem de sutileza, eles transbordam de conquistas. “Fiquei saciada com o prazer de que a demência não havia roubado de mim”, diz ela ao relatar toda a operação que organizou para cozinhar um simples ovo. No final de cada capítulo, a autora propõe soluções práticas à gama de percalços a serem enfrentados pelo portador de demência. Tudo passa por enxergar o paciente de forma mais holística, já que o diagnóstico não altera apenas a vida de uma pessoa, e sim a de todos ao seu redor.

Não há fórmula pronta, mas diálogo a ser buscado, como Wendy frisa algumas vezes. Dado o envelhecimento populacional crescente, seria razoável concluir que vale a pena investir nestes cuidados que passam pelo preparo de especialistas capazes de lidar com uma doença degenerativa bastante individualizada em suas características. Aliás, em vários momentos, é possível também transpor esta busca por uma dignidade construída na independência

domiciliar no dia a dia de idosos ou portadores de alguma deficiência em diferentes sociedades. Eis o trunfo do livro.

Pensar na forma como a sociedade pode se organizar para atender a uma parcela da população que carece de determinado zelo não é subjugar esses grupos, mas dar a eles a possibilidade de manter uma vida ativa. Como complemento, o livro é permeado por declarações de outros pacientes – Wendy participou de vários grupos de pesquisa que traçam paralelos de experiências compartilhadas a fim de se chegar a soluções para essas vivências. A troca, ou mais uma vez o “diálogo”, permite ao leitor enxergar demandas que se tornam comuns em diferentes esferas.

Ao compartilhar detalhes autobiográficos, O que Eu Gostaria que as Pessoas Soubessem sobre Demência joga luz a um tema ainda carente de representações no audiovisual, tabu em mesas de jantar em família ou em debates públicos. Em 22 de fevereiro deste ano, a autora “comunicou” sua morte em seu site, com um texto que deveria ser publicado por suas duas filhas assim que ela partisse. “Se você está lendo isso, significa que provavelmente foi postado por minhas filhas, pois infelizmente morri”, escreveu. Aos 68 anos, Wendy saiu de cena como se propôs ao longo da última década: mantendo a autoria de sua vida com otimismo ao ensinar a grandeza das pequenas ações.

Pensar na forma como a sociedade pode se organizar para atender a uma parcela da população que carece de determinado zelo não é subjugar esses grupos, mas dar a eles a possibilidade de manter uma vida ativa.

Estudos sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87 Abril de 2024

b – Estudos sobre Envelhecimento

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS

Volume 34 | Número 87 | Abril de 2024

REVISTA MAIS 60: ESTUDOS SOBRE ENVELHECIMENTO

A revista Mais 60: Estudos sobre Envelhecimento é uma publicação multidisciplinar, editada desde 1988 pelo Sesc São Paulo, de periodicidade quadrimestral e dirigida a estudantes, especialistas e interessados na área do envelhecimento. Tem como propósito estimular a reflexão e a produção intelectual no campo da gerontologia e das áreas em que o envelhecimento e a longevidade são objetos de estudo. Seu objetivo é publicar artigos de divulgação técnicos e científicos que abordem os diversos aspectos da velhice (físico, psíquico, social, cultural, econômico etc.) e do processo de envelhecimento.

NORMAS GERAIS

Os artigos devem seguir rigorosamente as normas abaixo, caso contrário, não serão encaminhados para a comissão editorial.

• Os artigos devem ser enviados para o endereço eletrônico: revistamais60@sescsp.org.br.

• Os artigos não precisam ser inéditos, basta que se enquadrem nas normas para publicação que serão apresentadas a seguir. Quando o artigo já tiver sido publicado deve-se, obrigatoriamente, informar em nota à parte sob qual forma, onde e em qual data foi publicado (revista, palestra, comunicação em congresso etc.).

• Ao(s) autor(es) será(ão) solicitada a Cessão de Direitos Autorais – conforme modelo Sesc São Paulo – quando da aceitação de seu artigo. Os direitos de reprodução (copyright) serão de propriedade do Sesc São Paulo, podendo ser reproduzido novamente em outras publicações técnicas assim como no Portal Sesc São Paulo (sescsp.org.br), aplicativo e redes sociais desta instituição.

• Os dados, bem como as interpretações dos resultados emitidos no artigo são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo, obrigatoriamente, a opinião da comissão editorial da revista.

• Todos os artigos enviados que estiverem de acordo com as normas serão analisados pela comissão editorial, que opinará sobre a pertinência ou não de sua publicação. No caso de o artigo ser aceito o(s) autor(es) correspondente(s) será(ão) contatado(s) por e-mail e terá(ão) direito a receber 1 (um) exemplar da edição em que seu artigo foi publicado.

• Os artigos devem apresentar uma breve nota biográfica do(s) autor(es) contendo: nome(s); endereço completo; endereço eletrônico, telefone para contato; se for o caso, indicação da instituição principal à qual se vincula (ensino e/ou pesquisa) e cargo ou função que nela exerce.

• Os trabalhos aceitos serão enviados à revisão editorial e apenas modificações substanciais serão submetidas ao(s) autor(es) antes da publicação.

APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS

• Os artigos devem ser apresentados em extensão .doc ou .docx e devem conter entre 20.000 e 32.000 caracteres, sem espaço, no total. Isto é, incluindo resumo, abstract e referências bibliográficas.

• Categorias de artigos: resultados de pesquisa (empírica ou teórica), relatos de experiência e revisão de literatura.

• O resumo deve ser estruturado e conter, nesta ordem: introdução, materiais e métodos, resultados e conclusão. Deve conter cerca de 200 palavras e vir acompanhado por até cinco palavras que identifiquem o conteúdo do trabalho, as palavras-chave.

• O abstract deve conter cerca de 200 palavras, seguir a mesma ordem do resumo em português e vir acompanhado por até cinco palavras que identifiquem o conteúdo do trabalho, as keywords.

• O artigo deve conter: introdução; hipótese (opcional); materiais e métodos; resultados; discussão; e conclusão ou considerações finais.

• As referências bibliográficas, notas de rodapé e citações no texto deverão seguir as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)

• A quantidade máxima é de 30 (trinta) referências bibliográficas por trabalho. Revisões de literatura poderão conter mais referências. A autenticidade das referências bibliográficas é de responsabilidade única e exclusiva dos autores.

• Gráficos e figuras devem ser utilizados quando houver necessidade para entendimento do texto. Constar sob a denominação “Figura” ou “Gráfico” e possuir boa qualidade técnica e artística. Devem ser enviados separadamente e ter resolução mínima de 300 dpi, tamanho mínimo de 10cm x 15cm, no formato JPG ou PDF. As imagens devem ser numeradas no texto e trazer abaixo um título ou legenda, com indicação da fonte/autor. Em hipótese alguma devem ser incorporadas no próprio texto do artigo. Os gráficos devem ser enviados separadamente no formato XLS/XLSX (Microsoft Office Excel) ou PDF.

• Tabelas ou quadros: devem ser autoexplicativos, constar sob as denominações “Tabela” ou “Quadro” no arquivo eletrônico e ser numerados. A legenda deve acompanhar a tabela ou o quadro e ser posicionada abaixo deles. Siglas ou sinais apresentados devem estar traduzidos em nota colocada abaixo do corpo da tabela/quadro ou em sua legenda. Devem ser citados no corpo do texto, na ordem de sua numeração.

• Fotos: no caso de utilização de fotos (necessariamente em alta resolução, mínimo de 300 dpi), elas devem vir acompanhadas de autorização de veiculação de imagem do fotografado e com crédito e autorização de publicação do fotógrafo (segundo o modelo do Sesc São Paulo). Só devem ser utilizadas quando houver necessidade para entendimento do texto.

• A quantidade de imagens, tabelas e quadros deve ser limitada em 4 tabelas ou quadros e 2 imagens por artigo.

• Citações de referências bibliográficas: no texto incluir autor, data e página (quando necessário). Ex: Segundo Silva (2019). Se a citação for entre parênteses: (SILVA, 2019). Neste último caso utilizar a fonte Arial número 10.

• As referências devem ser organizadas em ordem alfabética, pelo sobrenome do autor. Devem aparecer alinhadas à margem esquerda e de forma a se identificar individualmente cada documento, em espaço simples e separadas entre si com espaço de 1,5.

• Materiais extras do artigo podem ser aceitos para a inclusão no aplicativo do Sesc São Paulo, onde a revista também está inserida. Estão incluídos fotos e vídeos em boa resolução e com as devidas autorizações de uso de imagem. Formato das imagens: JPEG, PNG, PDF e TIFF. Vídeos: MPEG4, MP4 e MOV. Áudios: MP3. Também são passíveis de aceitação conteúdos incorporados do YouTube, desde que haja autorização do responsável da conta para sua divulgação. Em caso de dúvida, entre em contato pelo e-mail: revistamais60@sescsp.org.br.

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Estudos sobre Envelhecimento

Volume 34 | Número 87 Abril de 2024

O Sesc – Serviço Social do Comércio é uma instituição de caráter privado, de âmbito nacional, criada em 1946 por iniciativa do empresariado do comércio, serviços e turismo, que a mantém e administra. Sua finalidade é a promoção do bem-estar social, a melhoria da qualidade de vida e o desenvolvimento cultural do trabalhador no comércio e serviços e de seus dependentes – seu público prioritário – bem como da comunidade em geral.

O Sesc de São Paulo coloca à disposição de seu público atividades e serviços em diversas áreas: cultura, lazer, esportes e práticas físicas, turismo social e férias, desenvolvimento infantil, educação ambiental, terceira idade, alimentação, saúde e odontologia. Os programas que realiza em cada um desses setores têm características eminentemente educativas.

Para desenvolvê-los, o Sesc São Paulo conta com uma rede de 42 unidades, disseminadas pela capital, grande São Paulo, litoral e interior do estado. São centros culturais e desportivos, centros campestres, centro de férias e centros especializados em odontologia e cinema.

Conselho Regional do Sesc – 2022-2026

Presidente Abram Szajman

Diretor do Departamento Regional Luiz Deoclecio Massaro Galina

Membros Efetivos  Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Membros Suplentes  Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

Representantes do Conselho Regional junto ao Conselho Nacional

Membros Efetivos Abram Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Membros Suplentes Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

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Volume 34 | Número 87 | Abril de 2024

Nesta eDiÇÃO:

No artigo principal Um Olhar de Cuidado para Quem Carrega o Brasil Mara Gabrilli apresenta o cenário brasileiro em relação às politicas de cuidado e expõe como o trabalho “invisível” de cuidar sobrecarrega mais as mulheres pobres.

Um Estudo sobre Cuidadoras Familiares de Pessoas Idosas expõe os resultados de pesquisa do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), com financiamento do Itaú Viver Mais, que entrevistou cuidadoras familiares de pessoas idosas em seus domicílios, localizados na cidade de São Paulo.

Artigos que também compõem esta edição:

Envelhecimento, Família e Cuidados: o que nos Revelam os Dados da Pesquisa Perseu Abramo/ Sesc-SP sobre a Capacidade de Cuidar problematiza o lugar-comum posto pelas estruturas de gênero de que o cuidado de idosos(as) é atribuição exclusiva das mulheres das famílias e aponta que o reforço do familismo pelas políticas sociais deve ser superado, considerando que o cuidado é um direito social.

Programa Mente Ativa do Sesc Santa Catarina Confirma Evidências sobre a Importância da Estimulação Cognitiva para o Envelhecimento Ativo e Autônomo apresenta um programa de intervenção multimodal para estimulação cognitiva, manutenção e recuperação da independência, autonomia e melhoria da performance funcional e cognitiva. Realizado por meio de atividades semanais em grupos nas unidades do Sesc Santa Catarina.

Em Envelhecer Inédita Elisa Lucinda reflete sobre o envelhecimento feminino a partir de referências pessoais e artísticas.

Os Cuidados e o Programa Nacional de Assistência à Pessoa Idosa (PNAAM) em Cuba traz a estratégia do país nos cuidados da população que envelhece que, por conta de fatores sociais, é uma das maiores das américas.

sescsp.org.br

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