Revista E - março/2024

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Revista E | março de 2024 nº 9 | ano 30

Inéditos Leia texto de Noemi Jaffe ilustrado por Flora Rebollo

Fernanda Takai Cantora e compositora celebra três décadas de Pato Fu

Economia criativa Iniciativas que valorizam territórios e a coletividade

Calibã e a bruxa Entrevista com a filósofa italiana Silvia Federici

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20 A 27 DE MARÇO DE 2024

A mostra de cinema ressalta a diversidade, a criatividade e a importância histórica de pessoas negras no audiovisual brasileiro.

11 longas e 14 curtas-metragens, além de encontros, oficinas, cursos e apresentações artísticas em 14 unidades da capital, interior e litoral.

Acesse a programação completa em sescsp.org.br/oju

24 DE MAIO | BELENZINHO | CAMPO LIMPO | CINESESC | INTERLAGOS | SANTO AMARO | VILA MARIANA |
BIRIGUI | CAMPINAS | PRESIDENTE PRUDENTE | SANTO ANDRÉ | SANTOS | SÃO CARLOS | SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

CAPA: Instalação O fotógrafo, 2001 (lâmpadas fluorescentes e cavaletes metálicos, 700 x 550 x 130 cm), da artista Carmela Gross, que integra a exposição Quase circo, com abertura no dia 26/3, às 19h, e visitação a partir de 27/3, às 10h, no Sesc Pompeia. Com curadoria de Paulo Miyada, a mostra faz uma leitura panorâmica das obras da artista paulistana, que realiza trabalhos em grande escala inseridos no espaço urbano, assinalando um olhar crítico sobre a arquitetura e a cidade. Obras luminosas, projeções, vídeos e outras intervenções e instalações ocupam a área de convivência da unidade até julho.

Crédito: Adam Šakový́

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Lugar de trocas e encontros

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Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

O Sesc – Serviço Social do Comércio atua com o compromisso de promover o bem-estar dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, bem como de seus familiares. A ampla ação educativa e emancipadora da entidade expande e se espalha para além desse público prioritário, beneficiando, deste modo, toda a comunidade onde está inserida.

Criado em 1946, por iniciativa do empresariado do setor, o Sesc está presente na vida da sociedade por meio de centros culturais e esportivos que oferecem uma diversificada programação nos campos da cultura, dos esportes, do lazer, do turismo, da saúde e da alimentação. No estado de São Paulo, são 42 unidades que oferecem inúmeras atividades, como apresentações de música, teatro, dança, circo e outras expressividades artísticas; cursos, oficinas e vivências esportivas; ações voltadas à educação ambiental e à valorização da diversidade de saberes e vozes, dentre outras.

São espaços construídos a partir de parâmetros da sustentabilidade em sua infraestrutura de funcionamento e gestão, e de acessibilidade universal, garantindo, assim, o acolhimento de públicos diversos, para convivência, crescimento e desenvolvimento individual e coletivo.

A força da coletividade

Inúmeras são as razões que levam trabalhadores a empreender. A necessidade de gerar renda para o sustento da família, a busca pela emancipação financeira, o desejo de oferecer para a sociedade um talento que se desdobra em produtos ou serviços diferenciados. Não faltam criatividade e empenho por parte desses profissionais, que se reinventam para contribuir, com seus esforços, para fazer girar a economia.

Um movimento que ganha força e projeção quando realizado numa perspectiva coletiva e colaborativa. É o que mostram iniciativas que brotam em âmbito local, transformando a realidade dos territórios e das pessoas que se beneficiam dessa mudança. Ao investirem no chamado empreendedorismo social, construindo redes produtivas, esses indivíduos não apenas se fortalecem, como também organizam outros modelos possíveis de economia.

É o que trata reportagem desta edição da Revista E. O texto apresenta relatos de pessoas que viram suas vidas se transformarem a partir dessa união de esforços e ao se engajarem nos princípios de uma economia criativa, que envolvem, antes de tudo, valores como cidadania, biodiversidade, sustentabilidade, ancestralidade, inovação e inclusão produtiva, com foco no bem-viver. Convidamos você a conhecer essas histórias inspiradoras. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Marco Antonio Melchior, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adriano Ladeira Vannucchi, Alessandro Souza Santos, Alexandre da Silva, Amanda Cristina da Silva, Ana Carolina Padua Machado, Andreia

Pereira Lima, Angelica Cristine de Paula, Barbara Cristina Roncati Guirado, Carlos Alberto Silva, Caroline da Silva Mariano, Caroline Figueira Zeferino, Caroline Souza de Freitas, Cecilia Ferreira de Nichile, Chiara Regina Peixe, Cinthya De Rezende Martins, Claudio Eduardo Rodrigues, Corina de Assis Maria, Dalmir Ribeiro Lima, Danilo Cava Pereira, Danilo Cymrot, Deise Lima Moreira, Denise Ramos da Fonseca, Diana Gama Santos, Diego Polezel Zebele, Diego Vinicius Teixeira Ferreira, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Edson Cardozo da Cruz, Eduardo Santana Freitas, Enio Rodrigo Barbosa Silva, Fabia Lopez Uccelli dos Santos, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Gehrke, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernando Andrade de Oliveira, Flavia Teixeira S Coelho, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriel Alarcon Madureira, Geraldo Soares Ramos Junior, Giulia Maria de Campos Manocchi, Ilana Priscilla Marques, Ivy Granata Delalibera, João Paulo Gabriel de Sena, Juranir Maria de Oliveira, Karen Cristine Pimentel dos Santos, Leandro Henrique da Silva Vicente, Leila Yuri Ichikawa, Leticia do Carmo Dalla Valle, Lilian Vieira Ambar, Lizandra Magalhães, Lucas Geraldo Andrade Costa, Marcel Antonio Verrumo, Marcela Oliveira Fonseca, Marcelo Paulino de Souza, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Maria Magalhães, Marina Reis, Matheus José Maria, Mauricio Lemos, Natalia de Souza Freitas, Olivia Tamie Botosso Okasima, Patricia Maciel da Silva, Paulo Henrique Vilela Arid, Perola Nunes Braz, Priscila dos Santos Dias, Rachel Scire, Rafael Nicolas da Silva, Rafaela Ometto Berto, Rafaela Queiroz de Sena, Rejane Pereira da Silva, Renan Cantuario Pereira, Renato Diego Alves de Jesus, Ricardo Carrero da Costa, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Ricardo Ponzio Scardoelli, Romeu Marinho C. Ubeda, Ronaldo Domingues de Araujo, Sidnei de Carvalho Martins, Silvia Cristina Garcia, Sofia Calabria Y Carnero, Tamara Demuner, Tatiana Fujimori, Teresa Maria da Ponte Gutierrez, Thais Cristina Kruse, Thaisa Novaes de Senne, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Vinicius Pereira de Oliveira, Vitor Penteado Franciscon, Vitoria Roman de Camargo, Vivian Marina Redi Pontin, Zeno Lucio dos Santos Prazeres Filho

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira, Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Gabriela Amorim, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero, Cesar Albornoz, Humberto Mota, Ian Herman e Leandro Henrique da Silva • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita

Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

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Filósofa e autora do livro Calibã e a bruxa, a italiana Silvia Federici reflete sobre a atualidade dessa obra que completa 20 anos Confira os destaques da programação, como a mostra

OJU – Roda Sesc de Cinemas Negros, que conta com exibição de filmes, oficinas e outras atividades

Como a potência empreendedora da economia criativa se faz presente em iniciativas fundamentadas em valores como coletividade e cidadania

O reconhecimento de saberes e fazeres artísticos do Brasil para valorizar suas histórias e o aprendizado de novas gerações

Um passeio visual por obras selecionadas do Acervo Sesc de Arte para o projeto Trocas e Olhares, que propõe diálogos entre educadores e estudantes

dossiê entrevista valorização social bio gráfica artes visuais

As várias dimensões da vida do jornalista, contista e romancista Graciliano Ramos, referência na literatura brasileira

p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40 Divulgação
SUMÁRIO
(Dossiê); Detalhe da obra Lagoa Rodrigo de Freitas (2000), de Waldomiro de Deus. Acrílica sobre tela. Foto: Everton Ballardin (Gráfica)

Artigos de Raquel Franzim e Natacha Costa refletem sobre a relação entre educação integral e território

Fernanda Takai

Noemi Jaffe (texto) e Flora Rebollo (arte)

Escritor e roteirista Jeferson Tenório fala sobre processo criativo, adaptações de suas obras e da primavera literária negra

Conheça cinco opções de lugares na região metropolitana de São Paulo para fazer trilhas e mergulhar na natureza

Aline Pessoa

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82
em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.
p.60
Matheus José Maria (Encontros); Trilha da Cachoeira. Foto: Divulgação / Urbia Parques (Almanaque)

LANÇAMENTO SELO SESC

mestre manelim
‘deixa a viola me levar’

Registro inédito de ponteios, cantigas e músicas do violeiro Manoel de Oliveira (1939–2020), o Mestre Manelim

/selosesc

Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja
EM
DISPONÍVEL

No palco do Sesc Bom Retiro, a cantora e compositora Teresa Cristina apresentou, em fevereiro, o espetáculo Um sorriso negro, dando voz a canções inesquecíveis de artistas pretos. Com uma banda formada exclusivamente por mulheres e direção musical da própria Teresa Cristina, o show foi embalado por sambas de artistas como Candeia (1935-1978), Cartola (1908-1980), Leci Brandão, Jovelina Peróla Negra (1944-1998), Dona Ivone Lara (1922-2018) e Wilson Moreira (1936-2018).

Léu Britto 9 | e
em cena

16–24 de março de 2024

Ações para valorização do trabalho de pessoas e grupos, com foco na geração de renda e desenvolvimento comunitário.

feiras oficinas cursos passeios rodas de conversa apresentações

Em 22 unidades do Sesc da capital, grande São Paulo, interior e litoral. sescsp.org.br/nos

Produção audiovisual negra

De 20 a 27 de março, o Sesc São Paulo realiza a OJU – Roda Sesc de Cinemas Negros, com exibição de filmes, oficinas e outras atividades que celebram a cinematografia negra

Apartir de uma seleção de filmes como Mussum – o Filmis, Nosso Sonho, Chic Show e Othelo, O Grande, todos lançados em 2023, e de atividades que celebram o fazer cinematográfico por pessoas negras, o Sesc São Paulo realiza a terceira edição de OJU – Roda Sesc de Cinemas Negros. A mostra, cujo nome "ojú” significa “olho”, em yorubá, é composta por filmes que trazem a presença negra não apenas na direção, mas em toda a equipe, evidenciando o caráter de arte coletiva do cinema. Também se dedica a promover a diversidade de criadoras e criadores brasileiros, a destacar a importância histórica do audiovisual em sua potência poética e política e a contribuir para a decolonização do olhar.

A programação é composta por sessões presenciais, seguidas de bate-papos, além de oficinas, rodas de conversas e apresentações realizadas em 14 unidades da capital, interior e litoral. A abertura da Mostra, no CineSesc, contará com a exibição de Othelo, O Grande, documentário sobre Grande Otelo (1915-1993), com a presença do produtor do filme Ailton Franco e da neta do ator e comediante, Marília Prata. No Sesc Vila Mariana, haverá a exibição do filme Nosso Sonho, uma cinebiografia da dupla Claudinho e Buchecha, enquanto o Sesc Belenzinho recebe a sessão de Chic Show, documentário sobre os 50 anos do baile black na capital paulista, frequentado por importantes artistas como Jorge

Ben Jor e o estadunidense James Brown (1933- 2006). Também será realizada a oficina Cinema de gaveta: contando histórias através dos arquivos pessoais, no Sesc 24 de Maio, com o pesquisador e documentarista Caio Franco.

Segundo a equipe curatorial dessa edição, o objetivo é apresentar narrativas afirmativas que possam assegurar pluralidade e representatividade, bem como compartilhar e fomentar imaginários positivos, marcados pelo afeto, pelas conquistas e pela alegria. Ao ressaltar a produção audiovisual negra, a OJU ainda pretende destacar a importância do fazer coletivo, respeitando a singularidade dos diferentes sujeitos, corpos e formas de contar histórias.

Para Luiz Galina, diretor do Sesc São Paulo, "é preciso colocar em perspectiva as singularidades e as complexidades das representações – e o momento é propício, a ver pela significativa produção recente selecionada".

Confira a programação completa: sescsp.org.br/oju

É preciso colocar em perspectiva as singularidades e as complexidades das representações – e o momento é propício, a ver pela significativa produção recente selecionada

Luiz Galina, diretor do Sesc São Paulo

Os atores Aílton Graça e Neusa Borges em cena do longa-metragem Mussum – o Filmis (2023), dirigido por Sílvio Guindane.
Desireé do Valle
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DJIN SGANZERLA NA DIREÇÃO

Neste mês, a atriz e diretora Djin Sganzerla estará na programação do SescTV com dois filmes. No dia 7/3, às 22h, o curta-metragem Antes do Amanhã (2022), dirigido em parceria com o marido André Guerreiro Lopes, traz o que poderia ser o relato do bebê da cineasta, questionando a própria existência e o futuro da humanidade. Já no dia 9/3, às 22h, será exibido Mulher Oceano (2020), seu primeiro longa-metragem na direção, que narra a história de uma escritora brasileira, instigada por suas experiências no Japão e por uma das últimas cenas que presenciou no Rio de Janeiro: uma nadadora de travessia oceânica rasgando o horizonte, em mar aberto. Ambos estarão disponíveis sob demanda. Assista: sesctv.org. br/protagonismofeminino

Reflexos da ditadura

Mulheres pela agroecologia

No mês em que o golpe militar de 1964 completa 60 anos, o Sesc São Paulo realiza uma série de programações para refletir sobre um dos períodos mais sombrios da história no Brasil. A partir da importância da memória e da verdade para a democracia, contra a negação e a exaltação dos crimes da ditadura, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc recebe a professora Cleonice Elias da Silva, mestra e doutora em História Social pela PUC-SP, na palestra A Cinematografia de Lúcia Murat sobre a Ditadura Civil-Militar Brasileira, no dia 13/3. Já o Sesc Pinheiros organiza, de 1º a 22/3, o ciclo de filmes 60 anos de 64, seguido de bate-papo e que investiga, em quatro encontros, as linguagens do cinema e da literatura em memória do golpe. A atividade tem curadoria de Renan Quinalha. Conheça a programação e inscreva-se: sescsp.org.br/cpf e sescsp.org.br/pinheiros

O Sesc Santana convida Maria Alves, uma das lideranças da Comuna da Terra Irmã Alberta, ocupação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Perus, bem como Vilma Martins e Joelma Marcelino, integrantes do coletivo Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana), que atua em São Miguel Paulista, para a roda de conversa Mulheres no movimento agroecológico, dia 10/3. A partir dessas experiências urbanas e periféricas, a ideia é refletir sobre como a agroecologia é uma ferramenta poderosa de transformação, não apenas como uma técnica agrícola sustentável, mas como oportunidade concreta de autonomia econômica para as mulheres – permitindo-lhes exercer controle sobre suas vidas, seus meios de subsistência e contribuindo ativamente para a economia local e sustentável. Quer participar desta conversa? Saiba mais: sescsp.org.br/santana

A atriz e diretora Djin Sganzerla no filme Mulher Oceano (2020), em exibição no SescTV.
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André Guerreiro Lopes
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Lázaro Roberto (Bienal na estrada) e Taba Benedicto (Pessoas diferentes, Direitos iguais)

PESSOAS DIFERENTES, DIREITOS IGUAIS

De 7 a 17 de março, a ação Direitos humanos para todas as pessoas: da palavra ao movimento realiza debates, ações artísticas, cursos, oficinas e feiras em diversas unidades do Sesc São Paulo. A programação pretende reforçar o quanto é fundamental que a cidadania deixe de ser um termo abstrato e restrito a um grupo específico para ser uma experiência comum a todas as pessoas. A abertura, dia 7/3, no Sesc 24 de Maio, terá uma conversa sobre dignidade humana, justiça e equidade social, com o padre Júlio Lancellotti e o jornalista Leonardo Sakamoto. Já nos dias 9/3, no Sesc Santo Amaro, e 16/3, no Sesc Araraquara, o Coral Cênico Cidadãos Cantantes apresenta seu repertório misturando sonoridades e histórias. E no dia 17/3, o Sesc Campinas recebe a feira Trabalhos do Mundo, promovendo o desenvolvimento e a valorização social das pessoas migrantes e em situação de refúgio. Saiba mais em sescsp.org.br/direitoshumanos

Na programação, apresentação do Coral Cênico Cidadãos Cantantes no Sesc Araraquara.

BIENAL NA ESTRADA

A 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, que esteve em cartaz na capital em 2023, começou sua itinerância por outras regiões e espaços culturais do estado, neste ano, levando um recorte curatorial. Em março, a partir do dia 5/3, é a vez do Sesc São José do Rio Preto expor obras de Aurora Cursino dos Santos, Carmézia Emiliano, Colectivo Ayllu, Frente 3 de Fevereiro,

Januario Jano, Katherine Dunhan, Luana Vitra, Maya Deren, Rommulo Vieira Conceição, Ubirajara Ferreira Braga e Zumvi - Arquivo Afro Fotográfico. Com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, a itinerância seguirá na unidade até o mês de maio, quando na sequência será recebida pelo Sesc Campinas. Confira: sescsp.org.br/riopreto e bienal.org.br

Carnaval em Salvador, desfile do Afoxé Kori Efan (2019). Zumví, arquivo afrofotográfico.
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DOSSIÊ

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Acesse o texto Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc

Faça a sua Credencial Plena online! Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

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Ricardo Ferreira

7 A 17 DE MARÇO DE 2024

Debates, apresentações artísticas, cursos e oficinas unem reflexão e ação para promover a dignidade humana.

NAS UNIDADES DO SESC NA CAPITAL, GRANDE SÃO PAULO, INTERIOR E LITORAL

14 Bis | 24 de maio | Av. Paulista | Araraquara | Campinas | Catanduva | Carmo | Centro de Pesquisa e Formação | Florêncio de Abreu | Jundiaí | Mogi das Cruzes | Osasco | Pinheiros | Piracicaba | Rio Preto | Santo Amaro | Santos | Santo André | São Carlos | Vila Mariana

SESCSP.ORG.BR/

DIREITOSHUMANOS

Nos anos 1970, Silvia Federici foi uma das pioneiras em campanha que reivindicava salário para o trabalho doméstico.

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Incorporar mudanças

Autora de Calibã e a bruxa, filósofa italiana Silvia Federici reflete sobre atualidade da obra, a caça às bruxas contemporâneas e o papel da nova geração como agente de transformações

Em 2024, completam-se duas décadas do lançamento de Calibã e a bruxa, considerada obra-prima da filósofa italiana Silvia Federici, professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York, Estados Unidos. Sua atualidade e popularidade atravessa gerações, uma vez que o livro coloca em debate duas questões históricas: por que milhares de mulheres foram condenadas à fogueira por “bruxaria” no começo da Era Moderna, e por que o nascimento do capitalismo coincide com o que a autora chama de “guerra contra as mulheres”?

“O livro traça uma perspectiva expandida de interpretação e de análise da história da mulher no capitalismo. Temos uma história de exploração do trabalho e dos trabalhadores, que eram maltratados, todavia, não há uma história da mulher e do processo de exploração do trabalho de reprodução. Então, eu acho que esse livro é um dos primeiros a mostrar um quadro amplo dessa história”, disse a autora em entrevista à Revista E, após debate no Sesc Avenida Paulista, em dezembro do ano passado. Na ocasião, Federici lançou seu mais recente livro, Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo (Elefante, 2023), uma compilação de artigos da autora.

Além da análise histórica em Calibã e a bruxa, Federici alerta para uma caça às bruxas na contemporaneidade, principalmente de lideranças femininas no campo e nas cidades. Cofundadora do Coletivo Feminista Internacional, nos anos 1960, e participante ativa da Wages for Housework Campaign (Campanha pelo salário para o trabalho doméstico) na década seguinte, nos Estados Unidos, a filósofa acredita, aos 81 anos, que as novas gerações não podem baixar a guarda e devem encabeçar lutas por uma sociedade equânime e justa.

“Nossas formas de organização devem estimular nosso desejo, nos nutrir, estimular nossa afetividade e solidariedade a fim de começarmos a mudar a vida do dia a dia – romper o individualismo, nos juntar, compartilhar conhecimento e projetos comuns. Não enfrentar a crise sozinha, mas com outros. Eu acho que tudo isso pode começar hoje mesmo, e muitos já o estão fazendo”, observa. Nesta Entrevista, Silvia Federici fala sobre as bruxas do século 16 aos dias de hoje, comenta o papel da arte como agente de mudanças sociais e reflete sobre o que é uma militância alegre.

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A caça às bruxas é a perseguição histórica mais esquecida e deturpada. Tanto que transformaram a bruxa numa caricatura, num personagem grotesco e ridículo.

Vinte anos após a publicação da primeira edição de Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, esta obra segue presente em debates nos campos da sociologia, filosofia e economia, entre outros. Na sua opinião, quais motivos levaram à popularidade desse livro entre diferentes gerações de leitoras e leitores?

Eu creio que há várias razões. Uma razão fundamental é que o livro traça uma perspectiva expandida de interpretação e de análise da história da mulher no capitalismo. Temos uma história de exploração do trabalho e dos trabalhadores, que eram maltratados, todavia, não há uma história da mulher e do processo de exploração do trabalho de reprodução. Então, eu acho que esse livro é um dos primeiros a mostrar um quadro amplo dessa história. Ao fazer isso, ele conecta a exploração das mulheres com toda a exploração, por exemplo, dos camponeses, com o colonialismo, com a escravização. Isso nos permite colocar a questão de gênero, e a questão de uma discriminação específica que as mulheres sofreram na história do capitalismo, num contexto mais amplo. E, como eu sempre destaco, não se trata de agregar um capítulo ao que já foi escrito por Karl Marx [filósofo alemão cujos trabalhos influenciaram diversas áreas do saber, como a sociologia e a economia (1818-1883)]. Mas, mudar a ótica. Por exemplo, de fato, na história do capital que Marx escreveu [O capital (1867)] não há menção à caça de bruxas, não há uma análise da transformação do processo de reprodução. Então, é uma história de desenvolvimento do trabalhador salarial, é uma história que olha para a criação da fábrica. Por isso, eu creio que essa seja uma das razões para [esse livro] ser importante. Compreendo que hoje

somos testemunhas do processo de expansão da relação capitalista que se reproduz em contextos diferentes e que ainda evoca os processos de acumulação original. Essa é outra razão pela qual o livro é muito atual. E lembro que ele foi escrito no ano em que imperava uma filosofia pós-moderna, que celebrava a micro-história, algo que eu rechacei e creio que, para mim, isso foi crucial.

No livro, você também mostra como o conhecimento que essas mulheres detinham, tanto sobre o próprio corpo quanto sobre ervas medicinais e outros saberes, motivou perseguição e extermínio delas nos séculos 16, 17 e ainda hoje. Por quê?

Esse livro permite compreender quais são as raízes históricas da forma específica de exploração, e da forma específica de luta das mulheres na história do capitalismo. Nos dá uma análise de porque e como se diferencia a exploração das mulheres da exploração, por exemplo, do trabalhador industrial, assalariado, e isso segue sendo fundamental para compreender também o que necessitamos mudar. Por exemplo, toda a análise da caça às bruxas, a análise da forma como o capitalismo penalizou de maneira atroz, com fogueiras, toda a luta das mulheres para controlarem o corpo, para não serem obrigadas a parir, essa apropriação capitalista do corpo, tudo isso abriu um terreno diferente de luta, e mudou nossa visão sobre o capitalismo, sobre como ele se impõe e se desenvolve, como ele acumula sua riqueza. E, por fim – se é que podemos falar em um fim –, neste ano [2023] fomos testemunhas de uma nova caça às bruxas, o que me parece ser muito importante. Uma caça que se expande em muitas partes do mundo, África, Índia,

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parte da Ásia, na Oceania, como em Papua-Nova Guiné, e está conectada ao processo de expansão e da relação capitalista, como a privatização e comercialização da terra. Hoje se expande, também, pela América Latina. No Brasil, por exemplo, a liderança Guarani Sebastiana Gauto, assassinada queimada com seu companheiro Rufino Velasque [ambos rezadores Guarani e Kaiowá, mortos em setembro de 2023, na aldeia Guassuty, em Mato Grosso do Sul]. O extrativismo acompanhado, lado a lado, da chegada de seitas religiosas que são cúmplices da expropriação [de povos indígenas] e cúmplices da acusação de “bruxaria”, sobretudo contra mulheres na comunidade, acusadas de todos os males e mortes. Quando as pessoas adoecem, logo dizem: “São essas bruxas”.

Atualmente, essa caça às bruxas se volta também para quais outros segmentos da população?

Há todo um mundo de mulheres dissidentes que hoje são acusadas de ser “bruxas”. Quando uma mulher luta e rompe com uma norma imposta sempre a acusam de bruxaria. É por isso que muitas vezes dizemos: “Quando lutamos, dizem que somos bruxas”. A caça às bruxas e a imagem da bruxa, de uma mulher má, demonizada. É uma imagem que não tem fim e que nunca desapareceu. Por isso, junto a mulheres da Espanha e de outros países, realizamos um projeto de recuperação da memória das bruxas dos séculos 16 e 17, chegando aos arquivos e conectando esse material a todas as formas de feminicídio que acontecem hoje. Não somente pelo uso da violência física contra a mulher, mas da violência financeira e da violência da expropriação. E não se pode falar de violência física sem falar que ela é parte integrante e de apoio da violência econômica e da violência política.

Neste último livro, Além da pele (Elefante, 2023), você também fala sobre como o capitalismo se apropria da luta feminista sob alegação de que hoje, enfim, as mulheres recuperaram o controle de seus corpos. Como você avalia essa afirmação? Essa é uma ilusão. A primeira coisa é que há um mundo governado por uma lógica de exploração, de criação de escassez, de guerra, de militarização. Neste mundo, nunca podemos dormir e pensar: “Agora, somos exitosas”. Veja o que aconteceu com o aborto nos Estados Unidos. O direito ao aborto parecia intocável há alguns anos, mas depois de todo um investimento no movimento pró-vida, em muitos estados do país, o aborto foi criminalizado. Então, sempre devemos seguir lutando, porque o capital nunca deixa de se apropriar seletivamente da ideologia feminista. Mesmo com a aparência de compreender, como vemos nos Democratas [partido político dos EUA], que não são trumpistas, que não parecem misóginos e que, mesmo assim, fizeram nada para fortalecer os direitos conquistados pelas lutas das mulheres. Por isso, acredito que hoje o movimento feminista não pode pensar em depositar esperanças nas instituições. Claro que devemos negociar e também lutar, mas o objetivo final deve ser a criação de uma sociedade completamente diferente, a partir do presente. Nunca pensar que está garantido aquilo que já foi conquistado.

Uma frase recorrente nos seus seminários aborda a importância de conhecermos uma História no plural, para saber de onde viemos e para onde queremos ir. Não podemos compreender o que vivemos hoje, as experiências de hoje e aquilo que somos se não

Me dá muito otimismo o fato de haver toda uma geração de artistas jovens que estão lutando por concepções muito diferentes da arte, que estão recuperando uma visão popular da arte
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conhecermos a História. Claro que a História é um terreno de combate. Não há uma [única] História. Há uma história capitalista, colonial, racista e há histórias que tentamos recuperar, descobrir e resgatar. Por isso que o trabalho histórico é tão importante. Porque, se não conhecemos a História, podemos pensar que a exploração [do ser humano] é uma coisa natural. Assim como houve a naturalização do racismo. Não saber de onde vêm tais ideias faz com que elas pareçam naturais. Então, conhecer a História é fundamental. Por isso esse projeto que estou fazendo, de recuperar a história das bruxas desde lá atrás, criando grupos que vão visitar os arquivos e compreender quem eram aquelas mulheres, por que foram torturadas e queimadas e, assim, conectar a história delas à nossa história. Qual foi o impacto da caça às bruxas naquele tempo e hoje? Qual a diferença entre a caça às bruxas dos séculos 16 e 17 e a caça às bruxas que acontece hoje? Já levamos três anos fazendo essa pesquisa que se mostrou muito impactante, nos revelando outra perspectiva. E já começamos toda uma produção de material para as escolas, para jovens que muitas vezes escutam essa ideia da bruxaria como se fosse uma lenda.

Aliás, essa “lenda”, ainda é reforçada por produções audiovisuais e animações internacionais, além de ter se tornado uma data festiva, caso do Dia das Bruxas, celebrado em diversos países como os Estados Unidos. Por que essa concepção permanece? A caça às bruxas é a perseguição histórica mais esquecida e deturpada. Tanto que transformaram a bruxa numa caricatura, num personagem grotesco e

ridículo. É um absurdo. Não se pode pensar em outro tipo de perseguição onde as vítimas tenham sido tão ridicularizadas quanto na perseguição às bruxas. Transformaram em lugares turísticos cidades onde mulheres foram queimadas durante a caça às bruxas, onde vendem-se bonecas de bruxas, que reproduzem essa imagem misógina e perversa. É um escândalo que essas pobres mulheres, depois de muitas torturas, tenham sido queimadas vivas. Milhares passaram por isso. Então, você vai a esses lugares e pensa: “Que ódio é esse contra as mulheres?”. Nos livros, dizem que as mulheres são mais suscetíveis a ser seduzidas pelo demônio porque não são seres totalmente humanos, são criaturas instintivas, passionais. Assim, criou-se uma lenda, e ao final de outubro, nos Estados Unidos há a festa das bruxas, as crianças se vestem de bruxas e não se dão conta – ninguém lhes contou essa história.

Hoje na literatura, nas artes visuais, no cinema, no teatro, na música e em outras expressões artísticas, você observa uma reflexão maior sobre personagens e histórias que sofreram tentativas de apagamento em séculos passados?

Mudar o mundo é o trabalho mais criativo e produtivo que podemos realizar

Sim. É como a história: hoje, a arte é um terreno de luta. Aliás, a arte e a cultura. Como resposta a esse crescente interesse pelos movimentos feministas, pela caça às bruxas do passado e do presente, há hoje um conhecimento, e acho que o livro Calibã e a bruxa contribuiu. A caça às bruxas não foi como se contava há 50 anos com toda uma reprodução de filmes horrendos que mostravam a bruxa como uma figura má e satânica, e uma vez mais reproduzia o ódio às mulheres, àquelas que estão sempre tramando destruir a vida dos outros. Me dá muito otimismo o fato de haver toda uma geração de artistas jovens que estão lutando por concepções muito diferentes da arte, que estão recuperando uma visão popular da arte, como algo que não é para um museu nem para um pequeno mundo de privilegiados, mas algo que deve ser parte de qualquer momento da nossa vida. Temos necessidade de arte assim como temos necessidade do verde, das árvores, do azul do céu, do sol. A arte é a beleza. E as mulheres sabem disso. Em qualquer casa, por mais humilde que seja, a mulher tenta colocar a arte com seu bordado, com suas plantas etc. Espero que cada vez mais, hoje, se entenda uma arte fora da galeria. Arte não é só uma expressão individual, mas coletiva. Vejo isso em São Paulo – acho que é a cidade mais artística do mundo. Nova York tem muitos murais, mas os murais de São Paulo são os mais criativos e expressivos ao contar a história do povo.

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Em seminário realizado no Sesc Avenida Paulista, em dezembro de 2023, a filósofa reforçou a importância da coletividade e da solidariedade na luta por uma sociedade mais justa e equânime.

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Quando as pessoas me aplaudem eu digo que há mil coisas que eu disse que aprendi com outras mulheres. Não são coisas somente da minha cabeça.

Desde os anos 1960, você faz parte do movimento feminista e pode observar novas gerações a participar também das causas feministas. No entanto, hoje vemos adolescentes e jovens falar que perderam o otimismo, que não acreditam ser capazes de fazer alguma mudança. O que você diria para essas jovens? Podemos dizer que o pessimismo é um luxo. Quando você vê nas ruas todas as crianças que nascem no mundo, o que vamos dizer? Que o mundo não vale a pena? Que o mundo é injusto? Não. Devemos lutar. A primeira derrota é a luta que não se trava. Tanto que falo de uma “militância alegre”. Não podemos pensar numa mudança que se coloca exclusivamente no futuro e nos condenar a pensar que nossa vida vai ser miséria, miséria, miséria. Não. Vai ser de luta e também de alegria. Como podemos viver num mundo onde há tanta miséria nos separando? Como nos tornamos cegos ao que acontece à nossa volta, e pensamos que isso não nos diz respeito? Então, mudar o mundo é o trabalho mais criativo e produtivo que podemos realizar. Mas, a luta necessita também de formas de reprodução. Não podemos reproduzir lutas se não temos energia, comida, desejo, afetividade. Então, nossas formas de organização devem estimular nosso desejo, nos nutrir, estimular nossa afetividade e solidariedade a fim de começarmos a mudar a vida do dia a dia – romper o individualismo, nos juntar, compartilhar conhecimento e projetos comuns. Não enfrentar a crise sozinha, mas com outros. Eu acho que tudo isso pode começar hoje

mesmo, e muitos já o estão fazendo. Isso é reproduzir a luta. A luta não deve ser somente um sofrimento ou outra carga de trabalho. Deve ser algo que inclui afetividade, alegria, cantar, comer, dançar e, também, escrever histórias, compartilhar estudos e formação política. Eu acredito que tudo isso pode gerar uma vida criativa.

É assim que você também se mantém disposta a pesquisar, escrever e viajar pelo mundo realizando seus seminários?

Sim. É isso que me mantém viva. Se não, eu estaria deprimida e tomando remédios como milhares de mulheres já fazem. Mas elas não estão sozinhas, há muitas mulheres que estão lutando e que me inspiram. É com elas que estou aprendendo. Quando as pessoas me aplaudem, digo que há mil coisas que eu disse que aprendi com outras mulheres. Não são coisas somente da minha cabeça. E creio que valem algo porque expressam alguma coisa muito maior que eu.

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com a filósofa e escritora Silvia Federici, realizada no Sesc Avenida Paulista, em dezembro de 2023.

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Escrito pela historiadora Tereza Freire, Dos Escombros de Pagu: um recorte biográ co de Patrícia Galvão retoma a história de uma mulher apaixonadamente transgressora, tendo como ponto de partida a reunião de suas correspondências, poemas e artigos de jornal.

saiba mais em:

economias QUE TRANSFORMAM

Iniciativas em São Paulo evidenciam a potência empreendedora da economia criativa, fundamentada na coletividade e na valorização de territórios

Simone Oliveira orgulha-se do êxito da sua marca Sih Oliveira Afrostyle, criada no Jardim Ibirapuera, zona Sul de São Paulo.

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Adriana Vichi

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Em meio a um divórcio turbulento durante a pandemia, a paulistana Simone Oliveira se viu sem trabalho nem renda, na cidade de Jacareí (SP). Tinha apenas oito reais na carteira e zero rede de apoio. Foi então que resolveu fazer tranças em casa e, por acaso, uma das clientes gostou do brinco que Oliveira usava. “Havia feito aquele acessório para mim mesma, num momento de tristeza, com caixa de leite, anzol e um tecido colorido de estampa afro. Ela pediu logo quatro, para presentear algumas amigas. Eu não sabia nem cobrar, fiz a dez reais cada e dei o prazo de uma semana para entrega. Mas, antes, tirei algumas fotos, postei nas redes sociais e outras pessoas se interessaram pelos produtos”, lembra hoje a empresária da marca Sih Oliveira Afrostyle, que vende brincos, colares, anéis, bolsas, carteiras, cintos, viseiras e pochetes para todo o Brasil, pela internet.

Com a demanda concentrada na capital paulista, Oliveira decidiu se estabelecer no Jardim Ibirapuera, periferia da zona Sul. Recebeu dicas para melhorar o acabamento dos itens, ganhou tecidos com iconografias africanas e buscou inspirações criativas online, além de fazer cursos de gestão de moda, design de acessórios e desenvolvimento de pessoas. “Por meio do meu negócio, fortaleço elos ancestrais da cultura afro e da trajetória do povo negro, que foram tão apagados”, conta a artesã.

No dia a dia, Oliveira é cercada por mulheres que a ajudam e que são ajudadas por ela. Em casa, as filhas adultas compartilham suas postagens, enquanto a neta de nove anos diz que deseja ser igual à avó quando crescer. O público consumidor da marca Sih Oliveira também é predominantemente feminino, formado por mulheres na faixa dos 30 anos, das classes B e C. “Além disso, produzo feiras e eventos junto a outras artesãs, muitas delas em situação de violência doméstica e/ou vulnerabilidade social, para que haja giro financeiro coletivo. Busco elevar a autoestima dessas mulheres e lhes dar forças para que consigam dar a volta por cima, assim como eu consegui”, afirma a empreendedora, que sonha com uma loja física e pretende oferecer cursos gratuitos.

A história de Simone Oliveira é um dos inúmeros exemplos de empreendedorismo por necessidade, nascidos nas periferias das grandes cidades do país. Com muito trabalho e criatividade, indivíduos integram redes produtivas, se fortalecem, organizam

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No calçadão do Largo de São João Clímaco, na zona Sul de São Paulo, a Feira Empreendedora Divas do Sol Heliópolis, realizada no segundo sábado de cada mês, apresenta produtos e serviços de aproximadamente 70 expositores, como Sonia Garcia da marca Ponto & Cia.

juntos e viabilizam outros modelos de economia para o desenvolvimento local dos territórios e a geração de emprego e renda. Dessa forma, pessoas e coletivos conquistam autonomia, dignidade, cidadania e exploram seus potenciais criativos.

Segundo Cláudia Leitão, doutora em sociologia pela Universidade Sorbonne, em Paris, e ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (2011-2013), os empreendedores precisam agir em rede. “Não apenas nas redes sociais, mas em rede ao reagregar as relações sociais, a promover a humanização e a sobrevivência comunitária. Muitos desses empreendimentos são realizados por coletivos que trabalham nos setores criativos e culturais para encontrar seu lugar no mundo e também transformá-lo. Essas iniciativas contra-hegemônicas, sejam de economias criativas, circulares, solidárias ou verdes, são uma saída para a emancipação financeira

e social”, explica a autora do livro Criatividade e emancipação nas comunidades-rede: Contribuições para uma economia criativa brasileira (Martins Fontes, 2023).

Consultora nessa área para a Organização Mundial do Comércio (OMC) e para a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), há mais de dez anos, Cláudia Leitão conheceu de perto a realidade da Austrália, primeiro país a tratar do tema, na década de 1990. Ela observa que há no Brasil toda uma economia submersa, desconhecida e imensurável. “São milhões de negócios informais, invisíveis e pouco compreendidos, mas com uma força enorme”, analisa. Em seu mais recente trabalho, ela lista sete princípios para uma economia criativa forte: cidadania e democracia; biodiversidade cultural e tecnodiversidade; sustentabilidade (econômica, ambiental, social, cultural e política); inovação; inclusão produtiva; bem-comum; e bem-viver.

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Leitão se inspira no pensamento do economista Celso Furtado (1920-2004), autor de Criatividade e dependência (Companhia das Letras, 2008) –que acreditava na criatividade como um insumo fundamental para o desenvolvimento brasileiro –, e nas ideias do geógrafo Milton Santos (1926-2001), que falava em “territórios usados”, um conceito que envolve a relação das comunidades com os lugares onde habitam, seus usos cotidianos, as formas de viver e produzir, os modos de ser e estar no mundo. “Precisamos de grupos colaborativos, cooperativos e não competitivos. A força e a potência dessas iniciativas estão no agir e no fazer comunitário, nos territórios, nas ações em rede”, pontua. “São estratégias de resistência, resiliência e pertencimento, além de estabelecerem um diálogo das juventudes com o passado. Como diz o líder indígena Ailton Krenak, o futuro é ancestral. Portanto, temos que compreender

e salvaguardar saberes para projetarmos nossa existência daqui para a frente”, complementa.

VALORIZAR A PERIFERIA

Foi a ideia de juntar empreendedorismo e periferia, em 2018, que formalizou a criação da empresa Emperifa, com atuação na zona Leste da capital paulista. Segundo Márcio Cardoso Santos, um dos sócios-fundadores, o negócio é voltado para pessoas que residem e atuam em territórios periféricos e querem começar a empreender ou já colocaram a mão na massa. “Oferecemos serviços de capacitação, mentoria e assessoria para profissionais da economia criativa em áreas como: moda, artesanato, audiovisual, gastronomia e estética. Mais de 90% do nosso público é formado por mulheres pretas e pardas, muitas

Jeff Marques / TV Doc Capão e | 28

PRECISAMOS DE GRUPOS COLABORATIVOS, COOPERATIVOS E NÃO COMPETITIVOS. A FORÇA E A POTÊNCIA DESSAS INICIATIVAS ESTÃO NO AGIR E NO FAZER COMUNITÁRIO, NOS TERRITÓRIOS, NAS AÇÕES EM REDE.

Cláudia Leitão, ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (2011-2013)

delas são microempreendedoras individuais (MEIs), mas também há pessoas que podem aproveitar essa oportunidade para se formalizar”, observa Santos.

Para o sócio-fundador da Emperifa, quem empreende não pode simplesmente dizer que não gosta de economia ou política. “É preciso compreender que uma ação do governo local ou federal é capaz de impactar diretamente o orçamento familiar. Além disso, um(a) pequeno(a) empreendedor(a) deve pensar no planejamento do negócio, na sua estruturação e gestão, no público-alvo, nos recursos financeiros disponíveis. Entender sobre matéria-prima, pagamento de fornecedores, precificação. Muita gente chega até nós sem esses conceitos, apenas com conhecimentos empíricos, baseados na experiência e na observação”, aponta Santos, que é mestre em administração de empresas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-professor do Senac São Paulo.

O acompanhamento feito pela Emperifa inclui duas fases distintas, que podem durar até um ano e meio. As primeiras reuniões são semanais, com dores e soluções compartilhadas em grupo pelos profissionais que passam pela capacitação. “Essa troca ajuda a melhorar os negócios, tem uma força extraordinária. A gente não faz nada sozinho: vai conversando e juntando pessoas em torno de ideias, projetos e ações”, ressalta Santos. Já a segunda etapa inclui o aporte de um capital-semente (que varia de 3 mil reais a 10 mil reais) para ser aplicado em negócios selecionados, com patrocínio de instituições e fundações atuantes nesses locais.

A Emperifa, sediada na zona Leste da capital paulista, é um negócio que oferece serviços de capacitação, mentoria e assessoria para pessoas que residem e atuam em diferentes áreas da economia criativa em territórios periféricos.

O monitoramento, então, torna-se mensal ou bimestral. Ainda de acordo com Santos, a Emperifa procura dialogar com os territórios geográficos onde se faz presente, fortalecê-los e levar atores locais para conversar com os mentorados. “Resgatar a história e os patrimônios dos nossos bairros, a exemplo do Memorial Penha de França, pode nos ajudar a trazer clientes e a comercializar produtos e serviços. Além disso, desde a pandemia, nos digitalizamos mais e incentivamos que todos usem a tecnologia a seu favor: as redes sociais para enviar orçamentos e divulgar informações, com boas fotos e vídeos de apresentação”, recomenda.

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ESSA TROCA AJUDA A MELHORAR OS NEGÓCIOS, TEM UMA FORÇA EXTRAORDINÁRIA. A GENTE NÃO FAZ NADA SOZINHO: VAI

CONVERSANDO E JUNTANDO PESSOAS EM TORNO DE IDEIAS, PROJETOS E AÇÕES.

Márcio Cardoso Santos, um dos sócios-fundadores do Emperifa

ABRAÇAR A DIVERSIDADE

Criada em 2021, com dez inscritas, a Feira Cultural Mulher Empreendedora Heliópolis se expandiu para incluir a comunidade LGBTQIA+ e hoje se chama Feira Empreendedora Divas do Sol Heliópolis. A articuladora territorial, produtora de eventos e empreendedora Elaine Vital, que integra a equipe, à frente do evento (realizado no segundo sábado de cada mês), revela que o projeto ganhou fôlego nos últimos anos, com cerca de 70 participantes ocupando o calçadão do Largo de São João Clímaco, na zona Sul de São Paulo. “Temos barracas de artesanato, moda, gastronomia e diversos serviços, como massagem, acupuntura e leitura de tarô. Nossa maior potência é essa união, nos juntamos para nos completarmos. O que cada pessoa tem de melhor pode servir de ajuda para outra que está defasada”, acredita Vital, que também coordena encontros mensais sobre empreendedorismo no espaço TEIA Heliópolis, dentro do Centro Educacional Unificado (CEU) do bairro.

Nessas reuniões, cada participante fala sobre o próprio negócio, suas habilidades, necessidades, dificuldades e o que está fazendo para driblá-las. “Há quem cuide das redes sociais de colegas por terem mais facilidade no ambiente digital. Além disso, no fim de 2022, dois empreendimentos de bem-estar se uniram para criar um terceiro, que comercializa produtos e serviços de beleza e saúde para empresas”, exemplifica Elaine Vital. A empreendedora também atende a pedidos das(os) alunas(os) para falar sobre temas como marketing digital, mídias sociais e aplicativos de negócios, convidando parceiros que ministram cursos, palestras e oficinas.

“Empreender costuma ser muito solitário, você tem que fazer tudo (ou quase tudo) sozinho(a), ser todos os departamentos de uma empresa: RH, financeiro, produção, marketing, comercial. Então, trabalhamos juntos(as) para não ficar tão pesado para ninguém”, conta Vital. Ela própria, mãe de um rapaz de 21 anos, divide-se entre inúmeras funções: é também cofundadora da Editora Gráfica Heliópolis,

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Na comunidade Vila da Mata, próxima ao Parque Estadual Restinga de Bertioga, no litoral paulista, vivem cerca de 140 famílias onde é realizado um trabalho de turismo de base comunitária a partir do qual é possível se conectar à identidade cultural local: na foto, colheita de araçá vermelho na casa da Dona Laura, moradora da região.

apresentadora do podcast PodEmpreender Helipa, coordenadora do Slam do Helipa e integrante do projeto Mudas de Ideias, que realiza intervenções artísticas voltadas a temáticas socioambientais.

LADO A LADO

Empreendimentos que priorizam territórios e a coletividade vão muito além da capital paulista e se estendem por várias regiões do estado. Um deles fica na Vila da Mata, uma das comunidades próximas ao Parque Estadual Restinga de Bertioga, no litoral norte de São Paulo. No local onde vivem, há mais de 60 anos, cerca de 140 famílias (formadas, sobretudo, por pescadores caiçaras e imigrantes nordestinos), é feito um trabalho de turismo de base comunitária, observação de aves e horta comunitária, com cultivo de Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs). A Vila da Mata também tem um espaço cultural multiuso, no qual o público pode ver apresentações de teatro e cinema.

Por falar em sétima arte, segundo a pedagoga, educadora socioambiental e monitora de trilhas Maura Pereira, a comunidade se assemelha à retratada no filme Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por não aparecer oficialmente nos mapas. “Inclusive, exibimos esse longa-metragem na praça, ao ar livre. É contraditório estarmos localizados numa área de proteção ambiental integral, mas sermos apenas um pontinho que quase não se vê, perto de enormes condomínios na Riviera de São Lourenço e na praia de Boraceia. Após muitos anos, finalmente nossas ruas ganharam nomes – de pássaros. Eu moro na Rua Sabiá. Também tem a Tucanos, Beija-flor, Bem-te-vi, Sanhaço”, revela Pereira, que atualmente preside a Associação Vila da Mata.

De acordo com a pedagoga, a comunidade se une para lutar por seus direitos, preservar o território e garantir a subsistência diária. “Vejo o impacto positivo que causamos na vida das pessoas pela forma como elas saem transformadas daqui. Mostramos nosso modo de vida a visitantes do mundo inteiro, para que nos

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conheçam, experimentem o que produzimos (geleias, chás, açafrão, mandioca, banana, amora, abóbora) e caminhem, literalmente, ao nosso lado”, afirma. Desde o início do projeto, que inclui ainda experiências culinárias e rodas de contação de histórias, a Vila da Mata tem recebido públicos diversos, de crianças a idosos, além de estudantes, monitores ambientais autônomos e grupos do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).

Outro exemplo de iniciativa, dessa vez no interior de São Paulo, é a Rede de Apoio a Mulheres Agroflorestoras (Rama) de Barra do Turvo, a cerca de 140 quilômetros de Registro, no Vale do Ribeira. Em atividade, desde 2015, a Rama reúne mais de 70 agricultoras familiares e quilombolas que se juntam para realizar mutirões, limpar roças e fazer plantios e colheitas de orgânicos. Segundo a integrante Jane Aparecida Santos, quando se unem, as mulheres também têm maior liberdade e intimidade para conversar sobre diferentes assuntos, dos domésticos aos profissionais. “Plantamos banana, mandioca, milho, batata-doce, conforme a época. Entre março e abril, é tempo de verduras

como couve e alface. Também entregamos cestas de consumo consciente e mandioca chips em cidades como Registro e na capital”, conta a agricultora, que integra a diretoria da Associação de Remanescentes de Quilombo dos Bairros Ribeirão Grande e Terra Seca, além de ser artista nas horas vagas, escrevendo e declamando poemas e letras de música.

Jane Santos também é fundadora do coletivo de mulheres Perobas, atualmente com nove participantes. O nome vem da madeira que seu avô cortava para construir casas e canoas. “Fazemos arrecadações de alimentos, levantamos fundos para ajudar quem precisa. Se alguém estiver doente e não puder ir à roça, damos uma força. Também produzimos banana e mandioca chips, açúcar mascavo, rapadura, cuscuz, farinha de milho, geleias e conservas”, enumera. Esses coletivos, segundo a quilombola, são importantes para se manter economicamente ativa, cultivar a própria terra e produzir alimentos mais saudáveis. “As pessoas que compram da gente também comem melhor. Todos ganham”, finaliza.

Baseado na coletividade, o empreendedorismo social se fortalece a partir de valores como relacionamento, cuidado, comunicação, autonomia, confiança e corresponsabilidade.
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Wagner Pinho

para ver no sesc / valorização social

REDES CRIATIVAS

De 16 a 24 de março, 22 unidades do Sesc São Paulo promovem a ação Nós: criação, trabalho e cidadania

A cada dois anos, o Sesc São Paulo realiza a ação em rede Nós: criação, trabalho e cidadania, que em 2024 ocorre de 16 a 24 de março, em 22 unidades da instituição na capital, Grande São Paulo, interior e litoral. Com o tema “Fomento e fortalecimento de redes locais”, essa terceira edição do projeto dialoga com experiências solidárias, olhando para os territórios, o desenvolvimento comunitário, a inserção no mundo do trabalho, a geração de emprego e renda, o fomento à inclusão produtiva e o intercâmbio de conhecimentos. Compõem a programação, coletivos, cooperativas, associações, organizações sociais e empreendimentos periféricos e de povos tradicionais, que inclui cursos, feiras, debates, apresentações de música e dança entre outras atividades.

Segundo Cristina Fongaro

Peres, que integra a Gerência de Educação para a Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo, essa ação em rede é um momento importante de valorização de diversas formas de criação, trabalho e geração de renda, que refletem aprendizados e articulações nos territórios. “O propósito é incentivar conexões entre coletivos, iniciativas e pessoas, tendo como pano de fundo a inclusão produtiva e o

desenvolvimento comunitário. Um convite para apreciar e reconhecer a força dos que estão por perto, aplicando seu potencial criativo em busca de autonomia e cidadania”, destaca. Confira alguns destaques da programação:

POMPEIA

Autonomias coletivas – Economias que transformam

O empreendedorismo por necessidade é uma realidade nas periferias. Por isso, a conversa discute estratégias, iniciativas e redes produtivas voltadas à geração de trabalho e renda em cenários de desemprego e necessidades crescentes. Com Claudia Leitão e Joaquim Melo. Dia 16/3, sábado, às 19h. GRÁTIS.

SANTANA

Feira de artesanato e economia sustentável Oportunidade de conhecer mestras, mestres, processos e produtos de diferentes técnicas de artesanato, desde as tradicionais - como bordado, cerâmica, trançado em fibras diversas e entalhe em madeira -, até as mais inovadoras, como moldagem em PET, torção de cápsulas, fusing/

vidro, azulejo/mosaico.

De 16 a 24/3, sábados e domingos, das 11h às 16h. GRÁTIS.

GUARULHOS

Feira de brechós

Casa de Vó

A feira destaca empreendimentos femininos de moda sustentável, celebrando a diversidade de produtos elaborados por mulheres empreendedoras, além de convidar visitantes conhecer mais sobre as iniciativas locais. Dia 17/3, domingo, das 11h às 17h. GRÁTIS.

PIRACICABA

Mobiliza: festa cultural da periferia

Da capoeira ao hip-hop, passando pelo teatro ao ritmo cururu, diferentes atividades refletem a diversidade cultural e artística dessa região do estado de SP. O evento ainda destaca a efervescência cultural que permeia territórios periféricos, valorizando e engajando ações coletivas. Dia 17/3, domingo, das 10h às 17h. GRÁTIS.

Mais informações em sescsp.org.br/nos

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verso A EXATIDÃO DO

O rigor lírico que permeia as diferentes facetas e definiu o fazer literário

de Graciliano Ramos

Algo chama a atenção quando se passeia pelas fotografias do escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953): o semblante sério, circunspecto, contido. É assim que ele aparece em seu retrato, pintado pelo artista plástico Cândido Portinari (1903-1962). Na iconografia do autor do antológico romance Vidas Secas (1938), é possível antever, portanto, as características que se estenderiam, também, às várias dimensões de sua vida – seja como jornalista, contista e romancista ou na atuação como político e administrador público. A dureza e retidão eram direcionadas, ainda, a si mesmo. Em carta ao tradutor argentino Raúl Navarro (1899-1959), um dos responsáveis pela difusão da obra do brasileiro em outros países da América Latina, Ramos escreveu: “Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas, e escrevi uns relatórios que me desgraçaram”, relatou em correspondência assinada em novembro de 1938.

Os tais relatórios foram produzidos depois que, aos 35 anos, Graciliano Ramos foi eleito gestor do município de Palmeira dos Índios (AL). A renúncia ao mandato veio dois anos depois, mas seus escritos, carregados de ironia e acidez, mudaram a trajetória do autor e redefiniram os rumos da chamada Geração de 1930. De tão valiosas, as duas prestações de contas, de 1929 e 1930, em que analisava minúcias e detalhava os gastos e investimentos da curta gestão, são consideradas as primeiras expressões do enorme talento do escritor e seu início literário. Em uma delas, redigiu: “A prefeitura foi injuriada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram às escuras (...). Pagamos até a luz que a lua nos dá”.

OLHARES REALISTAS

Em outra passagem memorável, declarou: “Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado, restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles”. Aquela improvável porta de entrada na literatura brasileira foi impressa somente nas páginas do Diário Oficial de Alagoas. Mesmo assim, sua visão austera repercutiu rapidamente por um Brasil ainda provinciano,

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O escritor na Livraria José Olympio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), em 1947.
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Divulgação / Grupo Editorial Record

“como uma anedota vinda do sertão em linguagem antibacharelista e abusada, com inesperado teor de retidão administrativa, moderna e positivista”, conforme avaliou o pesquisador Marcos Falchero Falleiros, em artigo publicado no Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), em 2008.

“Os dois textos provocaram o convite de Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) para a publicação de um romance, que adivinhava o poeta-editor ter o prefeito já construído com aquele estilo”, reflete o estudioso na mesma publicação. A atuação de Graciliano Ramos como administrador revela, contudo, um viés progressista e antirracista, perspectivas que se enredam às tramas e aos personagens de sua literatura a partir de Caetés (1933), sua ficção de estreia. É o que aponta o livro Graciliano: romancista, homem público, antirracista, do pesquisador Edilson Dias de Moura, lançamento das Edições Sesc São Paulo [leia mais em Inquietudes de um literato].

MEMÓRIAS DO PRINCÍPIO

Primeiro de 16 irmãos, Graciliano Ramos cresceu em um lar modesto, com pai e mãe pouco afetuosos. A família residiu em várias cidades, solução encontrada para seguir buscando trabalho no sertão nordestino de então. Após finalizar os estudos em Maceió (AL), passou um tempo no Rio de Janeiro (RJ) trabalhando como jornalista – embora já colaborasse com a imprensa da época desde os 14 anos, em publicações como o diário carioca O Malho e o Jornal de Alagoas. A morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo, e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica de 1914, representou um duro golpe para o jovem, que voltou para o estado natal no ano seguinte.

Pouco depois de retornar para o Nordeste, mudou-se para Palmeira dos Índios, onde tocou uma loja de tecidos fundada pelo pai. Seguia assinando colunas nos periódicos locais sob os pseudônimos de J. Calisto e Anastácio

Acervo UH / Folhapress
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O escritor com a neta Elizabeth, em outubro de 1952: um raro momento de registro fotográfico em família.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.

Graciliano Ramos, em Vidas secas (1938)

Anacleto. Autodidata, era poliglota e gostava de estudar dicionários. Na cidade, a família aumentou: do casamento com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, nasceram quatro filhos do escritor. Da união com Heloísa

Leite de Medeiros vieram mais quatro herdeiros. Quando partiu novamente para Maceió, em 1930, Graciliano foi nomeado diretor da Imprensa Oficial de Alagoas. Também atuou como professor e diretor da Instrução Pública do Estado, órgão que administrava a educação pública.

TEMPO SEM HORAS

Neste último cargo, implantou um ousado conjunto de ações voltadas para o acesso de crianças negras à escola pública e à promoção de professoras negras a cargos escolares diretivos, entre outras iniciativas de caráter inclusivo. As medidas sofreram forte reação de setores conservadores da Igreja Católica e de opositores políticos. Simpatizantes pró-Estado Novo (1937-1945), e uma ditadura prestes a ser instaurada pelo presidente Getúlio Vargas (1882-1945), aumentaram o clima de hostilidade que o escritor enfrentou, o que provocou o seu desligamento da função. Acusado de ter ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de participar da Intentona Comunista de 1935, Graciliano Ramos foi preso e levado para a Colônia Correcional de Dois Rios, em Ilha Grande (RJ) – sem acusação formal, sem responder a processo, sem provas ou julgamento.

A detenção durou 11 meses e representou uma passagem de intenso sofrimento para o escritor, que era periodicamente torturado. Na Ilha Grande, tornou-se amigo de outra presa

política: a médica Nise da Silveira (1905-1999), com quem jogava cartas para passar o tempo. Conterrâneos, ambos conheciam bem as paisagens sertanejas e conversavam nos momentos de aflição. Em homenagem, escreveu um personagem inspirado na amiga para um dos contos do livro A terra dos meninos pelados (1939). As experiências na Colônia resultaram na publicação de Memórias do cárcere (1953), obra póstuma em que narra o período e transita da ficção para uma produção de caráter mais confessional.

SÓBRIO LIRISMO

Sobre a detenção, escreveu: “Chegamos ao quartel do 20º Batalhão. Estivera ali em 1930, envolvera-me estupidamente numa conspiração besta com um coronel, um major e um comandante da polícia e, vinte e quatro horas depois, achava-me preso e só. Pensando nessas coisas, desci do automóvel, atravessei o pátio que, em 1930, via cheio de entusiastas enfeitados com braçadeiras vermelhas (...). Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento”.

Os maus-tratos e as condições extremas do encarceramento também ganharam tom de reflexão nas linhas do autor.

“Vemos um sujeito sem as unhas dos pés, sabemos que elas foram arrancadas a torquês, e a nossa curiosidade não vai além; os sofrimentos findaram, as unhas renascerão, a memória da vítima se embotou; horrível é imaginarmos a redução de uma criatura com tenazes quando pensamos nela, exatamente quando pensamos nela.”

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E ainda que, de fato, as características íntimas do autor (seu estilo e sua personalidade)

singularizem

sua escrita, o caráter coletivo das ideias adotadas na sua prática literária o universaliza

pelo compromisso

Edilson Dias de Moura, em Graciliano Ramos: romancista, homem público, antirracista (Edições Sesc São Paulo, 2024)

A desesperança de um tempo incerto o perseguia – longe dos filhos e da esposa Heloísa, com quem se correspondia com frequência, sentia saudades de casa e enfrentava constantes náuseas, que o impediam de se alimentar. “Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas ideias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido”, narrou em Memórias do cárcere

ESPINHO E FLOR

Apesar de pouco afável, Graciliano Ramos era bem-humorado e sabia cultivar as amizades. Não gostava de música ou cinema, e considerava o futebol “uma roupa de empréstimo que não nos serve, costume intruso, coisa estrangeira e exótica”. No fim da vida, morando no Rio de Janeiro, traduziu para o português A peste (1947), do escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Gostava,

em especial, do romance Anna Karenina (1878), do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910). Ao lado dos também escritores Érico Veríssimo (1905-1975), Rachel de Queiroz (1910-2003), Jorge Amado (1912-2001) e José Lins do Rego (1901-1957), formou o grupo de romancistas regionalistas de grande destaque na segunda fase do modernismo brasileiro.

Preso no mesmo dia em que entregou o manuscrito do romance Angústia (1936) para ser datilografado, Graciliano Ramos soube, em Ilha Grande, que a obra tinha sido publicada graças ao esforço conjunto de alguns desses amigos. Para a geração de artistas que deu forma à Semana de Arte Moderna de 1922, destinou críticas mordazes. Ainda assim, dizia que admirava o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) – mas repudiava o epíteto de modernista da segunda geração. “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”, afirmou sarcástico, em dezembro de 1948, em depoimento ao jornalista Homero Senna (1919-2004), naquela que seria sua última entrevista.

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para ver no sesc / bio

INQUIETUDES DE UM LITERATO

Recém-lançado, livro examina questões urgentes abordadas na obra do autor alagoano, como a luta antirracista

Graciliano Ramos: romancista, homem público, antirracista (2024), das Edições Sesc São Paulo, teve origem na pesquisa de doutorado do autor, o pesquisador Edilson Dias de Moura, na Universidade de São Paulo (USP). Ao mesclar análise literária, consulta documental e história, Moura fez descobertas sobre o escritor que o levaram a realizar um estudo inédito sobre como a postura política de Graciliano, em sua vida pública, teve influência direta na produção de seus romances – além de Caetés (1933), Moura investiga outras obras fundamentais publicadas pelo alagoano na década de 1930: São Bernardo (1935), Angústia (1936) e Vidas secas (1938).

O tecido social e o cenário da educação no Brasil à época, especialmente na região Nordeste, aparecem com frequência na literatura do alagoano – e coube ao pesquisador lançar olhares sobre como essa presença é reflexo das relações entre o trabalho de criação literária e a atuação inovadora do autor de Infância (1945) como administrador público. “Para além de um romancista dito regional, o que se evidencia é a universalidade de suas tramas, ao tratar de maneira contundente as condições existenciais e estruturais da sociedade, alicerçadas em problemáticas raciais, de classe e de gênero e suas marginalizações, muitas destas respaldadas

em suas experiências práticas pessoais”, descreveu o sociólogo, filósofo e ex-diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda (1943-2023), no texto de apresentação da obra.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Graciliano Ramos: romancista, homem público, antirracista (2024) Edilson Dias de Moura

Acesse o site das Edições Sesc São Paulo para adquirir o livro

Dani Sandrini
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ESTÉTICA VIVÊNCIA

Projeto Trocas e Olhares instiga reflexões e diálogos entre educadores e estudantes sobre 30 obras selecionadas do Acervo Sesc de Arte

Fazenda (1992), de Gerardo Luís de Souza. Acrílica sobre tela.
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Everton Ballardin

Unir artes visuais, educação e formação de professores, a fim de estimular a experiência estética como disparadora de processos de transformação individual e social. Essa é a proposta do projeto Trocas e Olhares, idealizado pelo Sesc São Paulo, e lançado em 2018, a partir de uma seleção de obras do Acervo Sesc de Arte. A ação inclui a distribuição de uma publicação, com imagens e informações sobre obras artísticas, a partir de uma curadoria temática, e a formação de profissionais da educação que replicam os conhecimentos com estudantes e outros profissionais da área. Em abril deste ano, o Sesc lança, em Piracicaba (SP), a segunda edição do projeto. Assim como na primeira vez, tanto o conteúdo quanto a dinâmica dos encontros baseiam-se na abordagem triangular – fundamentada nos eixos: apreciação artística, fazer artístico e contextualização histórica – da arteeducadora e pesquisadora Ana Mae Barbosa, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP.

A coordenação editorial do novo projeto ficou a cargo do coletivo mineiro JA.CA. Para compor a publicação – que nesta edição celebra os trabalhos da Bienal Naïfs do Brasil, promovida pelo Sesc desde 1986 – foram analisadas mais de 240 obras do Acervo Sesc de Arte e, ao final, feito um recorte de 30 trabalhos criados entre 1986 e 2019, por 29 artistas de todas as regiões do Brasil, a exemplo de J. Borges (PE), João Pereira de Oliveira (AM), Shila Joaquim (SP) e Carlos Alberto de Oliveira (RS).

A curadoria estabeleceu seis grandes eixos temáticos –Natureza, Corpos, Ritos, Cotidianos, Trabalhos e Lutas. “Concebemos esse material dentro de um ambiente

macro da cultura popular, com muitos artistas ainda vivos e produzindo. Também nos debruçamos em criar camadas de ferramentas para os professores, com foco na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)”, destaca Francisca Caporalli, integrante do coletivo JA.CA. Para ela, essas propostas podem ser levadas à sala de aula, como reflexões e subsídios em atividades práticas de diferentes disciplinas. “As obras e os temas apresentados podem servir para tratar de muitos assuntos, como: ancestralidade, diversidade de corpos, festas, rituais, lugares que ocupamos e profissões que desapareceram”, avalia.

Samantha Moreira, também curadora, complementa: “Convidamos seis nomes de fora do meio acadêmico (Ailton Krenak, Lua Cavalcante, Dione Carlos, Iguatemy da Silva Carvalho, Antônio Bispo dos Santos [1959-2023] e Naine Terena de Jesus) para escrever sobre cada um dos eixos e dialogar com os leitores-participantes”, explica. Moreira acrescenta que o coletivo buscou levantar uma discussão atual, política, social e humana, para se pensar o Brasil e suas questões a partir de pautas atuais e urgentes, como as mudanças climáticas.

A pedagoga Daniela Farto, da rede municipal de Piracicaba, participou do processo de construção do primeiro Trocas e Olhares e confirma a importância do projeto. “Há uma lacuna enorme em lidar com as artes visuais na educação, pois os professores passam muito tempo na prática e carecem de formações como essa para trabalhar com as crianças e adolescentes. Arte não é reprodução, é criação, fruição. Quanto mais os professores estiverem capacitados, melhor será para eles e para os alunos”, ressalta. Nas páginas a seguir, algumas das obras presentes na publicação.

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Os Artesãos (sem data), de J. Miguel. Xilogravura sobre papel.
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João Paulino e Maria Angu (1994), de José Carlos Monteiro. Acrílica sobre tela. Fome Zero (2004), de Deraldo Clemente. Acrílica sobre tela.
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Brasileiras e brasileiros (2014), de Augusto Japiá. Acrílica sobre caixas de fósforo.

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Sementes, plantio e colheita (2014), de Denise Costa. Acrílica sobre tela.

Brincadeira de sacis (1994), de Lenice Lopes da Silva. Acrílica sobre tela.

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O Martírio de Nossa Senhora do Brasil (2019), de Shila Joaquim. Acrílica sobre tela.

Isabella Matheus
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Festa de Orixás (1998), de Ivan da Silva Moraes. Óleo sobre tela.

para ver no sesc / gráfica

A ARTE DAS TROCAS

Em sua segunda edição, projeto Trocas e Olhares marca os mais de 30 anos da Bienal Naïfs do Brasil, promovida pelo Sesc São Paulo

Em celebração à Bienal Naïfs do Brasil, realizada desde 1986, a segunda edição do projeto Trocas e Olhares dá continuidade à proposta de aprofundar as colaborações do Sesc com instituições formais de ensino, propondo um recorte do Acervo Sesc de Arte sobre poéticas oriundas de diversos contextos e de espaços para aprendizado de arte. Desenvolvido prioritariamente para uso em encontros presenciais de formação de professores e educadores em artes visuais, realizados nas unidades do Sesc, o material gráfico, com textos de mediação e propostas pedagógicas, foi produzido para que os participantes possam aplicá-lo em ações educativas.

A publicação reúne obras de artistas provenientes de diferentes territórios, com distintos repertórios e perspectivas, que, em diálogo, dão a ver a pluralidade da produção nacional em artes visuais. Segundo Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, Trocas e Olhares une a perspectiva da ação educativa da instituição ao Acervo Sesc de

Arte, uma importante coleção de artes visuais, com mais de 70 anos de existência, e um olhar voltado principalmente à produção contemporânea brasileira. “Com uma nova curadoria de obras de artes – todas derivadas da longeva Bienal Naïfs do Brasil –, esta segunda edição do material vem refrescar e fortalecer o nosso diálogo com educadoras e educadores, a fim de contribuir com a sensibilização artística praticada em escolas e outras instituições com viés educativo”, destaca.

SESC.DIGITAL

Trocas e Olhares (2024, 2ª edição)

Publicação do Sesc São Paulo

Coordenação editorial: JA.CA 78 páginas

Disponível no Sesc Digital:

Everton Ballardin
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Formada em moda, figurino e cenografia, a educadora Gabriela Cherubin se apaixonou pela renda de bilro ensinada por mestras no Piauí.

À MÃO feitos

Preservar as singularidades dos saberes e fazeres artísticos no Brasil também significa valorizar histórias e fomentar aprendizados POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Adriana Vichi

Talvez o sabor e o cheiro deste prato tipicamente brasileiro fosse outro. Quem sabe a receita tivesse que ser modificada. Suposições à parte, o fato é que a panela de barro na qual é preparada e servida a tradicional moqueca capixaba, feita pelas mãos de paneleiras do bairro de Goiabeiras, em Vitória (ES), é única. Por isso mesmo, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras foi o primeiro saber manual reconhecido em 2000, como Patrimônio Imaterial, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A partir de então, outros saberes ou “conhecimentos tradicionais associados a atividades desenvolvidas por atores sociais reconhecidos como grandes conhecedores de técnicas, ofícios e matérias-primas que identifiquem um grupo social ou uma localidade” – definição empregada pelo Iphan – passaram a ser, finalmente, considerados tesouros da cultura brasileira.

Atualmente, são aproximadamente 50 os que integram o Livro do Registro dos Saberes, que permite não só uma divulgação ampla desses patrimônios, mas também a proteção aos mestres e mestras de qualquer apropriação indevida dos fazeres que atravessam gerações.

“Já foram inscritas as bonecas Karajá, de cerâmica; as cuias de Santarém, no Pará (documentadas inclusive por Mário de Andrade); a viola de cocho no Mato Grosso e a renda irlandesa em Divina Pastora, no Sergipe”, exemplifica a historiadora Adélia Borges, autora do livro Design + artesanato: o caminho brasileiro (Editora Terceiro Nome, 2011).

Nas esferas estaduais e municipais também há movimentos no sentido de preservar, reconhecer e valorizar

aqueles e aquelas que mantêm vivas diferentes artes sobre o barro, o tecido, a gravura, a madeira e outros materiais que fazem parte do território onde estão inseridos. Em Bariri, no interior do estado de São Paulo, por exemplo, ativistas do design têxtil conseguiram reconhecer um patrimônio. “Desde o início do século 20, há uma técnica peculiar, chamada amarrio, de desfiar tecidos e com os fios fazer nós, compondo motivos geométricos. Em 2020, o modo de fazer amarrio foi reconhecido por lei municipal como patrimônio cultural imaterial de Bariri”, destaca Borges, curadora da exposição EntreMeadas, realizada nas unidades do Sesc de Vila Mariana, Guarulhos e Bauru, entre 2019 e 2023. A mostra, aliás, reuniu trabalhos de mulheres paulistas que usam o suporte têxtil como meio de autoexpressão e de manifestação de cidadania.

Tramas, pontos, desenhos, materiais, formas de preparo... Muitos já ganharam visibilidade nas últimas duas décadas. No entanto, ainda há um longo caminho pela frente para que outros saberes manuais nos rincões do país, e mesmo nas grandes metrópoles, sejam conhecidos e reconhecidos. “O Brasil tem dimensões continentais com diferenças enormes não só entre as regiões, como entre as localidades. Às vezes, num raio de 100 quilômetros, a gente vê diferentes linguagens e técnicas numa mesma tipologia. Essa diversidade é muito rica, é um patrimônio nosso! Então, melhor falar de algo típico de uma localidade, de uma cultura específica, saindo das generalizações”, alerta.

Além do cuidado com as peculiaridades que habitam cada patrimônio imaterial, ampliar o número de aprendizes

desses saberes é essencial para a longevidade dessa teia tão rica e diversa que forma a cultura do país. Incentivar o aprendizado em oficinas e cursos voltados a diferentes públicos, por exemplo, é um caminho para que os saberes e fazeres manuais sejam, como já escreveu a historiadora, “agentes de mudanças no século 21”.

Conheça o trabalho de quatro arte-educadores que pesquisam e ensinam, cada qual, artes que carregam nas mãos um punhado de sabedoria.

ENREDAR TRADIÇÕES

O ateliê é uma extensão do corpo da artista têxtil e educadora Gabriela Cherubin. Desde a infância, esse espaço criativo, habitado pela mãe figurinista e pelo pai médico e artista, influenciou a jovem que caiu nas tramas do universo têxtil, graduando-se em moda na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo (SP), e em cenografia e figurino na SP Escola de Teatro. Depois de formada, Cherubin aceitou o convite de uma amiga e partiu para o Piauí, em 2011, a fim de aprender e trocar conhecimentos com as mestras da renda de bilro da Associação das Rendeiras dos Morros da Mariana. “A renda de bilro é uma técnica têxtil onde os urdumes e as tramas caminham soltos a partir dos desenhos e gestos das mãos que a conduzem para sua formação”, explica a artista, que mergulhou, desde então, em pesquisas sobre a origem dessa arte.

Desenvolvida a partir de processos distintos, a renda de bilro tem sua história entre os países árabes, e também Egito, Peru, China,

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Inglaterra, Itália, Bélgica e a região da Escandinávia. Mas, aquela que vemos hoje foi desenvolvida a partir do século 15, em Flandres e na Itália. Pelo bilro, fios de ouro e prata para fazer vestidos, toalhas e outras peças da nobreza, até que, no século seguinte, as fibras naturais passaram a ser utilizadas. Ainda são as mulheres, predominantemente, as detentoras desse conhecimento que chegou ao Brasil por influência de portugueses e holandeses, durante a colonização – expandindo-se por diferentes regiões, como Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do país.

Adaptadas às localidades onde estão inseridas, tanto as cabeças das duas agulhas – feitas de coquinho tucum, buriti ou miçangas –, quanto o estofado das almofadas de chita – bagaço de arroz ou folhas secas de bananeira –, que servem

de apoio ao desenho feito em pedaços de papelão e fixado com agulhas de mandacaru, podem ser encontrados entre as rendeiras dos Morros da Mariana. Após um ano aprendendo a rendar e ensinando a desenhar, Gabriela Cherubin vem passando adiante o conhecimento das rendeiras. De lembrança, guarda a imagem de mulheres de diferentes gerações, sentadas em roda, as mãos como se cortassem o ar, a contar histórias a fio.

IMPRIMIR HISTÓRIAS

A gravura desembarcou no país, no século 19, com os colonizadores portugueses –mais especificamente com o príncipe regente D. João, que implantou a imprensa, até então proibida. Na época, as primeiras tipografias serviam apenas às

Nas gravuras criadas pela artista e educadora Bruna Kim, somam-se técnicas manuais e digitais.

demandas da corte e do império. Apenas no século seguinte é que a gravura artística começa a ser feita. “Isso foi após o país ter se tornado República, quando o ensino e a prática livre da gravura foram permitidos”, conta a artista e educadora Bruna Kim. Desde então, essa linguagem que abraça diferentes técnicas de impressão a partir de uma matriz – xilogravura, gravura em metal, litografia e serigrafia –, vem ganhando novos contornos.

O encontro da artista com a gravura foi no tradicional Centro Universitário Belas Artes, no bairro Vila Mariana, zona Sul da capital paulista. Sua grande referência foi a professora Helena Freddi, por quem logo foi convidada a trabalhar em seu ateliê. Com a professora, Bruna Kim aprendeu não só a gravura tradicional, como a possibilidade de experimentar outras propostas. “O raciocínio da gravura tradicional é de que se obtenha o máximo de cópias – é assim que nasce a gravura. Mas, quando se trabalha experimentalmente, a gente gosta do resultado gráfico, dos processos”, conta a artista, que ensina, em seus cursos, como usar embalagens de caixas de leite como matriz de gravuras.

Assim como em outros saberes manuais, a tecnologia digital pode, sim, caminhar lado a lado, sem competir espaço com técnicas manuais. No caso da gravura, Bruna Kim alia tanto o desenho gravado numa matriz para novas criações, quanto a fotocópia de uma fotografia digital

Kim
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impressa em tecido para dar vida a suas propostas. Gravuras de mãos segurando ferramentas tornaram-se tema recorrente da artista, que acredita nessa miscelânea de técnicas. “Penso que é da nossa cultura essa adaptação de materiais para criar. Na xilogravura, por exemplo, às vezes nem se usa madeira maciça, usa-se compensado, que são lâminas de madeira prensadas, ou MDF e até linóleo, que são materiais mais acessíveis. A escassez de alguns materiais também fez com que a gente fosse se adaptando aos recursos que existem aqui”, observa.

LAPIDAR CONHECIMENTOS

Ao ler uma matéria sobre marchetaria, o então psicólogo Thiago Endrigo acenou para os saberes manuais. De maneira autodidata, e com poucas ferramentas – um estilete, uma régua de metal e algumas lâminas de madeira –, a marchetaria, ou a arte de ornamentar superfícies planas, chegou primeiro como um hobby, em 2005. Em seguida, um amigo luthier foi, de fato, seu primeiro mestre, ensinando Endrigo a construir guitarras elétricas usando máquinas estacionárias e ferramentas técnicas. “Por anos, restaurei órgãos de tubos e construí cravos. Trabalhei com Maren Gehrts, alemã radicada em São Roque (SP), e em restauros importantes de instrumentos históricos, em São Paulo (SP) e Diamantina (MG). Restauros que estavam a cargo de ateliês estrangeiros. Eu pude trabalhar com mestres e mestras que me deram

Na marcenaria, o arte-educador Thiago Endrigo aplica conhecimentos sobre matéria-prima e técnicas, como a marchetaria.

a chance de aprender e praticar técnicas tradicionais”, recorda.

Em paralelo, a marcenaria foi a última peça – pelo menos por enquanto – a se encaixar no dia a dia de Endrigo, que passou a se dedicar profissionalmente a esses ofícios em 2012. “Eu demorei até conseguir encontrar os velhos mestres que trabalhavam com mobiliário. Às vezes, quem é portador ou portadora de um conhecimento não se autodenomina mestre ou mestra. Você chega a pensar que essas pessoas não estão mais por aí, mas tem muita gente se dedicando aos saberes manuais: alguns trabalhando de forma bastante tradicional, outros trabalhando com outras tecnologias”, observa.

No Brasil, a marcenaria abrange técnicas diferentes trazidas

por colonizadores europeus e um conhecimento sobre matérias-primas, principalmente, de povos indígenas e africanos. Graças à sabedoria dos povos originários, colonizadores aprenderam qual madeira seria mais adequada para se fazer uma canoa ou mesmo um instrumento musical. Esse saber, transmitido oralmente, não foi atribuído aos detentores desse conhecimento, sendo apenas incorporado anonimamente pela história. Hoje, ao falar da madeira como matéria-prima, um recurso natural ameaçado pelo extrativismo, Endrigo reforça a importância de uma consciência ambiental. O mesmo discernimento, para o educador, é necessário ao refletirmos sobre esse afastamento da natureza e dos saberes manuais. “Há quem acredite que o trabalho manual e o trabalho intelectual tenham

Guilherme Siqueira

valores diferentes. No entanto, estamos trabalhando o tempo todo com as mãos e com a cabeça, integralmente. Não dá para separar uma coisa da outra”, reforça.

POÉTICAS DO BARRO

Objetos de barro criados numa olaria ficaram na memória da ceramista Mariana Silva, que na infância viveu em São Lourenço, cidade ao sul de Minas Gerais. Até os 18 anos, ela acompanhava apenas de longe esse saber manual que remonta a pré-história da humanidade. Pouco depois, residindo em São Paulo e frequentando o Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), ela teve seu reencontro com a cerâmica. “Aquela era a minha linguagem. Eu até passei por muitas técnicas, como quem passa para aprender, mas não se envolve”, recorda. Também foi essa influência mineira – “Como

diz Carlos Drummond, Minas é dentro e fundo” – que a conduziu numa pesquisa pela região central do estado, onde ainda se faz uma cerâmica que remonta ao período colonial, ancestralmente realizada por mãos negras e indígenas.

“Fiz uma oficina e fui entender que o mestre, supernovo, tinha aprendido com um mestre mais velho e que esse tinha aprendido com outro… Ou seja, era uma linhagem de oleiros desde a colonização portuguesa, nas cidades de Ouro Preto e Ouro Branco”, lembra. A partir desse momento, a ceramista buscou entender como os povos originários se relacionavam com esse saber. “E o que seria uma cerâmica brasileira? Fui por esse caminho e, desde então, venho me envolvendo com comunidades artesãs”, explica Silva, que faz um doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde pesquisa os

modos de escrita da cerâmica marajoara, na Ilha do Marajó (PA).

Foi também a partir do contato com outras mestras e mestres do barro que Mariana Silva constatou que havia uma homogeneização da forma como aprendeu a fazer cerâmica desde a universidade. Na faculdade, primeiro se modelava a forma, deixava-se secar para fazer o “biscoito” (a queima de baixa temperatura, entre 800-900 graus Celsius). Após essa primeira queima, esmaltar (passar o vidrado cerâmico) e, só então, realizar a queima final, numa temperatura mais alta (acima de 1200 graus Celsius).

“Em Cunha (SP), por exemplo, sempre teve uma produção ceramista de paneleiras, mulheres caipiras, mulheres da roça. Com a chegada de povos asiáticos e europeus, a cidade virou a ‘capital da alta temperatura’. E os povos originários que faziam à baixa temperatura suas panelas foram ficando completamente esquecidos, e o fazer deles foi tido como algo menor. Uma negligência com os saberes dos povos tradicionais no Brasil”, destaca. A cerâmica à baixa temperatura pode resultar em um filtro de barro, num vaso de planta, numa cumbuca ou cuia. “A gente precisa olhar para a nossa cerâmica, sobretudo aquela feita pelos povos que estavam aqui ou que vieram forçadamente para cá, mas já tinham uma sabedoria, uma tecnologia para manejar a terra. Hoje, quando estou modelando um objeto, penso: ‘eu tenho um presente do tempo aqui nas minhas mãos’”, acrescenta.

Os saberes e fazeres de povos originários e africanos moldam as criações da ceramista Mariana Silva.

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Thaina Souza artes visuais

para ver no sesc / artes visuais

POLINIZAR SABERES

Que tal aprender e vivenciar diferentes fazeres manuais em cursos e oficinas nas unidades do Sesc São Paulo?

Lugar de encontro e de troca de saberes, os Espaços de Tecnologias e Artes (ETA), presentes nas unidades do Sesc na capital, interior e litoral do estado de São Paulo, contam com educadores e educadoras que orientam, em salas equipadas, atividades educativas nos universos das artes visuais, principalmente, e das tecnologias – digitais, analógicas, sociais e ancestrais. “Mensalmente, são oferecidas cerca de 400 atividades em todas as unidades, permitindo ampla troca de saberes entre nossos variados públicos e educadores artísticos”, explica Enio Rodrigo, assistente técnico na Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo.

Somam-se ao ETA as Oficinas de Criatividade, presentes em ateliês no Sesc Pompeia e, a partir deste mês, no Sesc Bertioga. Desenho, cerâmica, costura, fotografia, gravura, marcenaria, pintura e têxtil são algumas das técnicas que podem ser experimentadas pela primeira vez ou desenvolvidas nos ateliês. “A difusão do conhecimento teórico e prático é muito importante. Em palestras, seminários e ciclos de debates é possível discutir as

complexidades desses saberes, abrir espaço para os estudiosos apresentarem suas pesquisas. Em oficinas e cursos práticos, é possível transmitir as técnicas”, reforça a historiadora Adélia Borges.

Confira alguns destaques da programação deste mês:

BERTIOGA

Tapeçaria experimental Ministrado pela artista Sarah Lopes, o curso apresenta a técnica e mostra uma diversidade de aplicações. Dias 7, 14, 21 e 28/3; 4, 11, 18 e 25/4; 2, 9, 16 e 23/5, quintas, das 15h às 18h.

POMPEIA

Cerâmica e ancestralidade (intermediário)

O Curso ministrado pela ceramista Mariana Silva que aborda a prática em cerâmica a partir da cultura dos povos tradicionais do nosso território, investigando os saberes e fazeres de povos indígenas e afrodiaspóricos no Brasil.

De 20/3 a 26/6, quartas (exceto dia 1º/5), das 14h30 às 17h30.

14 BIS

Introdução à xilogravura

Ministrado por Rafael Kenji, do Atelier Piratininga, as aulas focam tanto em meios tradicionais quanto em meios alternativos de maior facilidade de acesso aos participantes. De 13/3 a 5/6, quartas, das 18h30 às 20h30.

BAURU

Arte em mosaico

Nas aulas ministradas pelo mosaicista Gé Coltré, serão abordados conceitos da técnica e seu contexto histórico.

De 19/3 a 3/4, terças e quartas, das 18h30 às 21h30. GRÁTIS.

As inscrições podem ser feitas pelo aplicativo Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento. sescsp.org.br

Na Oficina de Criatividade do Sesc Pompeia são realizados cursos de cerâmica, costura, gravura e pintura, entre outras técnicas. Rebeca
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Figueiredo

E TERRITÓRIO Educação integral

Oaprendizado é um movimento constante e presente em diferentes fases da vida humana. No entanto, por muitos séculos, a escola era representada como única responsável pelo ensino de áreas como matemática, ciências, história e literatura. A partir do século 20, o conceito de educação integral passou a incorporar outras instituições, cenários e uma diversidade de atores em coexistência para a formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Derrubada a ideia de que o território não tem importância nesse processo educacional contínuo, constatou-se que é a partir dele que se dão o processo de formação e o desenvolvimento de novos cidadãos.

Para a diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa, ao constatarmos que a relação escola-território é um elemento estruturante, “a Educação Integral entende que o reconhecimento da criança e do estudante – dos seus códigos, desafios e dos valores de sua comunidade – é algo fundamental para uma educação de qualidade”. Dessa maneira, “isso significa compreender nossa diversidade étni-

co-racial, territorial e cultural e o enfrentamento intencional do racismo, do sexismo, do capacitismo e da exclusão social como matérias-primas por excelência do nosso projeto de educação”, acrescenta Costa.

Neste cenário, a Coordenadora-Geral de Educação Integral e Tempo Integral na Diretoria de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica, na Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, Raquel Franzim, aponta o desafio às instituições de ensino: “reconhecer que outras instituições, recursos, pessoas e práticas têm seu papel, têm saberes próprios e somam esforços na garantia de direitos na infância e juventude, inclusive no direito à educação”. A esse quadro desdobra-se outro obstáculo, “vincular o currículo de maneira intencional e contextualizada aos agentes, saberes, fazeres e práticas do território”, destaca Franzim.

Neste Em Pauta, Natacha Costa e Raquel Franzim tecem suas reflexões sobre as implicações da educação – à luz de um processo formativo que inclui escolas, outras instituições e práticas sociais – vinculada ao território onde se faz presente.

Nortearia
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Para além dos muros da escola

Desde a década de 1930, há debates sobre reformas educacionais com a finalidade de promover o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes em suas diferentes fases de crescimento e, para tanto, a necessária democratização do direito à educação para todos. Nas décadas seguintes, experiências criadas por Anísio Teixeira (1900-1971), na Bahia, e Darcy Ribeiro (1922-1997), em Brasília e no Rio de Janeiro, buscaram materializar a compreensão de educação plena, cidadã e vinculada ao seu território. Estas constam também como as primeiras experiências que tentaram superar a curta jornada de tempo escolar para as classes socioeconomicamente desfavorecidas, o que se entendia, à época, como um dos motivos para os baixos resultados nas aprendizagens dos estudantes.

Os anos que seguiram à reabertura civil, à política do golpe de estado e à ditadura militar (1964-1985) foram marcados por debates internacionais e nacionais de reconhecimento de crianças e adolescentes como pessoas com direitos sociais, econômicos e culturais. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças de 1989 e a Constituição Federal de 1988 estabeleceram a doutrina de proteção integral e o princípio de solidariedade entre famílias, sociedade e Estado no que tange ao asseguramento da vida àqueles entre zero e 18 anos.

Em sua esteira, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina um conjunto de direitos a serem primados, como a alimentação, a saúde, o esporte, o lazer, a cultura e a convivência comunitária. A educação, em especial, contou, naquela efervescente década de retomada democrática, com a construção das diretrizes e bases da Educação Nacional – sancionada na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/1996 –, também chamada de Lei Darcy

Ribeiro, em face da liderança do antropólogo e senador, à época, no amplo debate que ganhou o país.

Já em seu Artigo 1º, a LDB define a educação como um processo formativo mais amplo do que o que ocorre nas escolas e em coexistência com outras instituições e práticas sociais. Adiante, ao focar na educação escolar, determina como princípio a devida conexão da escola com as práticas sociais, a valorização do extraescolar e a aprendizagem ao longo da vida. A LDB, no que tange a educação em nosso país, é explícita: a educação que se pretende formar para a integralidade da pessoa humana – para o intelecto, social, emoções, físico e para o simbólico e político – deverá ocorrer para além dos muros da escola.

Para alguns, essa pode ser uma afirmação óbvia. É sempre bom lembrar, todavia, que no imaginário social que se tem sobre os processos de ensino e de aprendizagem, a alegoria das quatro paredes da sala de aula, cadeiras e ambientes fechados são majoritários. Em uma concepção e prática de educação integral afirmada na LDB – a qual pressupõe como resultado o desenvolvimento pleno, a formação para a cidadania e o mundo do trabalho –, a comunidade a qual pertence a escola, os diversos territórios e a cidade, propriamente, são elementos essenciais para o alcance dessa finalidade.

Por esse motivo, parte o primeiro desafio às instituições de ensino: reconhecer que outras instituições, recursos, pessoas e práticas têm seu papel, têm saberes próprios e somam esforços na garantia de direitos na infância e juventude, inclusive no direito à educação. A isso, se desdobra outro obstáculo: vincular o currículo de maneira intencional e contextualizada aos agentes, saberes, fazeres e práticas do território. Tal perspectiva transforma a cultura escolar, deixa a escola mais atrativa, significativa e promove, entre estudantes e suas famílias, um sentimento de pertencimento.

É mais inclusiva e diversa ao impregnar o currículo do universo que tradicionalmente não o ocupa: as matrizes epistemológicas de comunidades, povos que nos constituem, como os povos africanos, afro-

O território é sempre o ponto de partida do desenvolvimento integral e da educação para a cidadania

-brasileiros e originários, como as diversas nações indígenas. A Educação Integral no e com o território (no, na perspectiva de ocupação e com, na perspectiva de mediado por) acorda processos de trabalho em equipe entre profissionais da educação e de outros setores, favorecendo arranjos criativos.

Não à toa, a educação integral exige muito mais do que as habituais quatro ou cinco horas diárias de jornada escolar. Diferentes espaços e saberes no currículo demandam a jornada de tempo integral, meta pactuada pela sociedade brasileira no último Plano Decenal de Educação e reafirmada na recente Conferência Nacional de Educação [em janeiro deste ano]. É mais tempo na escola para se aprender mais com, no e sobre o território em que vivemos.

A escola como parte de uma rede de instituições engajadas no desenvolvimento integral de crianças e adolescentes cumpre o papel contemporâneo de promoção dos direitos e na prevenção às violências. Se o ditado “é preciso de uma aldeia inteira para criar uma criança” diz tanto, e há tanto tempo, sobre a necessária integração e articulação da educação com outros setores, a fala do pensador italiano Francesco Tonucci fortalece que é preciso uma cidade inteira para a educação escolar, não apenas a escola.

Não são poucos os casos em todo o país de a escola ser o epicentro de transformações na vida de sua comunidade. Sobre isso, organizei publicação com experiências em todo o país há alguns anos em O ser e o agir transformador, para mudar a conversa sobre educação, disponível gratuitamente na internet. De lá para cá, o planeta passou a enfrentar novos desafios e ainda maior engajamento das escolas, por exemplo, na delicada situação socioambiental e climática que vivemos.

Em um país marcado por séculos de escravidão, racismo, violação ao direito de habitação com dignidade, saúde, entre outros, há que se entender também quando o território é uma ameaça, reconhecido como precário ou insuficiente. Aqui, o território também é um importante ponto de partida para se aprender sobre ele, para se entender sua história e, de maneira crítica, aprender a propor e agir coletivamente para transformá-lo. O território como conteúdo abordado de maneira crítica é um importante aspecto de uma educação cidadã e emancipadora.

Por isso, a política pública educacional e os demais setores da rede de proteção integral devem pensar na melhoria e no investimento em localidades mais vulneráveis com instituições, profissionais e práticas sociais diversas como o esporte, a cultura, as artes, as ciências e tecnologias, os direitos humanos e a participação social.

A pobreza multidimensional e a alta vulnerabilidade social que impacta infâncias e juventudes, juntamente com suas famílias, é fruto da ausência do Estado. Seu enfrentamento ocorrerá na presença deste, juntamente com movimentos sociais e de famílias – a isso se dá o nome de política intersetorial, um desafio para qualquer um que trabalhe com a política pública, seja na escola ou em gabinetes. O território é sempre o ponto de partida do desenvolvimento integral e da educação para a cidadania.

Raquel Franzim é pedagoga, atuou na rede pública de ensino e em organizações da sociedade civil. É Coordenadora-Geral de Educação Integral e Tempo Integral na Diretoria de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica, na Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação.

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O binômio escola e território como eixo estruturante da Educação Integral

É comum que a educação integral desperte uma dúvida: escola em tempo integral é equivalente à educação integral? Bem, ainda que a ampliação da jornada seja parte das aspirações da Educação Integral, há algo mais. Pelo menos para os educadores e educadoras que, à luz da obra, pensamento e trajetória de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, vêm formulando e implementando uma série de políticas públicas em todo o território nacional.

Estas políticas têm impulsionado experiências em escolas públicas e organizações sociais, assim como uma extensa produção acadêmica nas universidades brasileiras. Se destacarmos apenas o Programa Mais Educação do Ministério da Educação, tivemos milhares de escolas públicas alcançadas e milhões de estudantes atendidos. Todo esse movimento na primeira década dos anos 2000 pautou a Meta 6 do Plano Nacional de Educação (2014-2024) que aponta para a obrigatoriedade da oferta de educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos alunos e alunas da educação básica.

Ainda que desde 2017 essa agenda tenha sofrido graves retrocessos em nível federal, sua aposta seguiu viva nos municípios e escolas brasileiras. Por sua vez, o governo Lula retomou essa agenda em 2023 com o lançamento da política Escola em Tempo Integral do Ministério da Educação, que prevê a indução da oferta de um milhão de matrículas em tempo integral já em 2024.

Nesse contexto, para além da questão da jornada escolar, a Educação Integral se apresenta como uma concepção que afirma ser direito de cada criança e de cada estudante brasileiro uma educação que garanta a aprendizagem e o desenvolvimento integral. Isso significa que para além da formação intelectual, é papel da educação garantir o desenvolvimento social, físico, emocional e cultural. Não é, portanto, o tempo que define uma educação integral. É o compromisso com o direito a uma formação integral.

Ainda, por reconhecer a diversidade de infâncias, adolescências e juventudes e as desigualdades sociais, raciais, de gênero e territoriais a que estão submetidas, a Educação Integral tem como eixo estruturante a relação escola-território. Essa compreensão parte do pressuposto de que para garantir a aprendizagem e o desenvolvimento integral de crianças e estudantes é fundamental ir além do que tradicionalmente o modelo escolar oferece (disciplinas, aulas, avaliações de desempenho), e contextualizar as práticas educativas.

Assim, ao afirmar que a relação escola-território é um elemento estruturante, a Educação Integral entende que o reconhecimento da criança e do estudante – dos seus códigos, desafios e dos valores de sua comunidade – é algo fundamental para uma educação de qualidade. Isso significa compreender nossa diversidade étnico-racial, territorial e cultural e o enfrentamento intencional do racismo, do sexismo, do capacitismo e da exclusão social como matérias-primas por excelência do nosso projeto de educação.

Nesse sentido, o território na Educação Integral vai além de sua noção espacial, em uma perspectiva alinhada àquela da geografia crítica de Milton Santos (1926-2001), que define que o território deve ser compreendido a partir do que ele chama de “território usado”, ou seja, de sua dimensão física associada à identidade. Desse modo, articular escola e território não se limita a deixar o espaço físico da sala de aula para aprender na praça ou embaixo da árvore de modo a tornar a experiência “mais divertida”. Trata-se de investigar, compreender e incorporar espaços, agentes e saberes dos estudantes, de

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A Educação Integral entende que o reconhecimento da criança e do estudante – dos seus códigos, desafios e dos valores de sua comunidade – é algo fundamental para uma educação de qualidade

suas famílias e comunidades para construir uma escola comprometida com a constituição crítica-reflexiva dos sujeitos.

As experiências orientadas por essa perspectiva de educação integral mostram que a articulação entre a escola e o território cria condições para quatro aspectos fundamentais: a ampliação e diversificação das interações educativas com a articulação de novos tempos, espaços, agentes e linguagens ao cotidiano formativo; o engajamento das famílias e das comunidades nos processos educativos de crianças e jovens; a aprendizagem em contexto, com enorme ganho em relação ao sentido do que se aprende; e a possibilidade da escola se articular a uma rede de proteção social (assistência social, saúde) que garanta direitos para além do que cabe a ela.

Desse modo, em síntese, a Educação Integral propõe além da ampliação da jornada também uma reorganização curricular que supere o “mais do mesmo”. Ou seja, não se trata de manter as aulas de 50 minutos de forma fragmentada e incluir no dia a dia atividades de contraturno. No lugar disso, trata-se de superar a “escola de turnos”, como denunciava Anísio Teixeira, e promover a integração das experiências dos estudantes e da comunidade – linguagens, território e agentes – às diferentes áreas do conhecimento.

Nesse sentido, a Educação Integral propõe um conceito de qualidade que reconhece a singularidade dos sujeitos e territórios, compreende o estudante como sujeito social, histórico, multidimensional e competente, suas famílias e comunidades como aliadas dos processos educativos, os professores como profissionais que pesquisam, desenvolvem suas práticas e conhecem seu contexto de atuação

melhor do que ninguém, e a escola como parte de um ecossistema educativo articulado e plural. A proposta da Educação Integral, portanto, é que cada escola vá além dos seus muros e se converta em um território educativo feito de aprendizagens significativas e transformadoras.

Jaqueline Moll, intelectual de referência no tema da Educação Integral, afirma que há muitos jeitos de ser escola e que o projeto de educação que orienta o modo de ser de cada escola reflete um projeto de sociedade. Os desafios sociais, econômicos, ambientais e políticos que se interseccionam no Brasil apontam para a persistência das desigualdades estruturais que desde sempre submetem uma grande parte de nossa população a uma condição de cidadania incompleta marcada pela violação de direitos. Esse contexto demonstra que efetivar uma educação integral, democrática, inclusiva e antirracista para todas as pessoas não é apenas um imperativo ético, mas também uma tarefa urgente.

Natacha Costa é diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz desde 2006. Psicóloga formada e licenciada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e mestranda na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é membro do Coletivo Articulador do Centro de Referências em Educação Integral, do Movimento de Inovação na Educação, do conselho consultivo do programa Escolas 2030 no Brasil e do Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227 – Prioridade Absoluta para Crianças e Adolescentes.

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TEMPO, mano velho

Vocalista da banda mineira Pato Fu, cantora e compositora Fernanda Takai comemora 30 anos de sucesso do grupo e 17 de carreira solo

Com ascendência japonesa por parte de pai e portuguesa por parte de mãe, Fernanda Takai nasceu no interior do Amapá, morou na Bahia e, aos nove anos, mudou-se para Minas Gerais, onde estabeleceu sua vida pessoal e artística. Antes de tornar-se cantora, compositora e multi-instrumentista, porém, cursou comunicação social na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com habilitação em relações públicas. O aprendizado acadêmico, além de todo o repertório de rock e música popular brasileira que ouvia em casa, com os pais, contribuiu para alçá-la a vocalista do grupo Pato Fu, há mais de três décadas. No início deste ano, a banda abriu a temporada do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, com três shows comemorativos.

Considerada pela revista Time, em 2001, como uma das dez melhores

bandas do mundo, o Pato Fu surgiu a partir do grupo Sustados por 1 Gesto, no início dos anos 1990. Recebeu esse nome em referência a uma tirinha do Garfield, que lutava “gato-fu”. O gato virou pato, animal que faria jus aos integrantes desajeitados – hoje, um quinteto formado por Takai, John Ulhoa (também seu marido), Ricardo Koctus, Xande Tamietti e Richard Neves. Além disso, Pato Fu soaria tão inusitado quanto o próprio som proposto pelos músicos, que não se fixam em um único gênero, alternando-se entre o rock pesado e o experimental, entre os hits de novelas e as faixas fofinhas.

Desde o primeiro álbum de estúdio, Rotomusic de Liquidificapum (1993), a banda já rodou o globo, conquistou discos de ouro e um Grammy Latino por Música de Brinquedo (2010), que reúne versões de clássicos de Tim Maia, Rita Lee, Titãs, Elvis Presley e Paul

McCartney, entre outros, tocadas apenas com instrumentos infantis. Além de integrar a banda mineira, em 2007, a vocalista iniciou um projeto paralelo, de carreira solo. Atendendo a uma provocação do jornalista e produtor Nelson Motta, Fernanda Takai gravou canções de Nara Leão (1942-1989) em Onde Brilhem os Olhos Seus, considerado o melhor disco de MPB daquele ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Em diferentes projetos, Takai já gravou com o guitarrista Andy Summers, ex-The Police, fez uma participação especial num show dos ingleses Duran Duran e cantou ao lado de Rita Lee (1947-2023), João Donato (1934-2023), Gilberto Gil e Erasmo Carlos (1941-2022).

A prolífica trajetória de Fernanda Takai – que totaliza 20 álbuns e nove DVDs lançados com e sem o Pato Fu – inclui, ainda, participação em trilhas de curtas

e longas-metragens de ficção e em documentários como cantora, compositora e dubladora. Além de ser mãe da Nina, de 20 anos, louca por videogame e ter um estúdio próprio com o marido em Belo Horizonte, desde 2002, a artista escreveu, por seis anos, em colunas semanais dos jornais O Estado de Minas e Correio Braziliense. Também lançou cinco livros nas últimas décadas, entre eles O cabelo da menina (Sesi-SP, 2020) – Prêmio Jabuti na categoria Infantil Digital. Neste Encontros, Takai fala sobre sua carreira musical, referências, inspirações, parcerias e literatura.

MARCA VOCAL

No começo da carreira, as pessoas me ouviam e ainda não sabiam quem estava cantando. Com o passar dos anos, eu e os fãs fomos nos familiarizando e entendendo qual era o meu registro pessoal. Já sofri muito com críticas, mas fui amadurecendo, ganhando paz de espírito e entendendo que tem gente que nunca vai gostar do jeito como eu canto, do meu timbre ou do fato de eu ser mais comedida, sem tantas firulas. Eu canto muito do jeito que falo. Já cantei de formas bem diferentes em algumas faixas, ficou interessante, mas, naturalmente, eu tenho um jeito muito próprio. Sou assim e vou fazer o meu melhor, sabendo escolher as canções e os arranjos certos para a minha voz.

VÁRIAS CARAS

Essa diversidade do Pato Fu é, ao mesmo tempo, o nosso maior trunfo e a nossa maior dificuldade, dentro de um grande mercado de música. Quando o Pato Fu surgiu,

Matheus José Maria
A artista em show do álbum Será que você vai acreditar, no Sesc Vila Mariana, em 2022: esse disco rendeu a indicação ao Grammy Latino 2021 na categoria Melhor Álbum de Música Pop Contemporânea.
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mostramos, pouco a pouco, vários lados. As pessoas diziam que éramos esquisitos, os metaleiros não nos escutavam porque não éramos metal o suficiente, e o público em geral não nos entendia. Em nosso segundo álbum, Gol de Quem? (1995), gravamos canções menos estranhas que no trabalho de estreia. A faixa Sobre o Tempo, por exemplo, logo virou um hino da banda. Esse álbum fez muita gente nos conhecer. Também viajamos o país inteiro, participamos de grandes festivais, gravamos clipes. Desde 2003, a gente voltou a ser independente. Somos, basicamente, uma banda de pop rock que tem momentos mais pesados, outros mais experimentais, e outros fofinhos. Fico feliz em ter sobrevivido com a banda desse jeito, com reviravoltas e muita mistura. Não conquistamos

somente prêmios, mas o coração das pessoas.

INQUIETAÇÃO CONSTANTE

Acho que o mais importante para a gente se sentir vivo é colocar a cabeça para funcionar. Não viver só do que já fez, isso é muito previsível. Claro que um fã, quando vai assistir a um show quer ouvir os sucessos, mas faz muito bem ver um artista lançando material novo. Hoje, há canções do álbum 30 (2023) que já “competem”, na preferência do público, com faixas dos anos 1990 e 2000. É uma inquietação permanente do Pato Fu. Sempre fomos uma banda que apresentou coisas novas a cada produção: formatos, sonoridades e/ou repertórios. Nosso disco mais recente, com nove canções, mostra

um pouco do que é o grupo ao longo do tempo, nossa estética sonora. Chegamos todos à casa dos 50 anos em ebulição, e querendo produzir por muito mais tempo. Somos uma banda que celebra o passado, mas que também olha para o futuro, tentando achar uma linguagem que ainda seja relevante e interessante.

REFERÊNCIAS E INSPIRAÇÕES

O ponto em comum que fez o Pato Fu pegar fogo no começo foi o rock dos anos 1980, tanto a música produzida no Brasil quanto nos Estados Unidos e na Inglaterra. São influências: The Cure, Duran Duran, Paralamas do Sucesso, Blitz. Foi muito importante termos como referências brasileiros fazendo rock, numa linguagem jovem, mostrando que era possível. Na minha carreira solo, recuperei também memórias de infância, do que ouvia com meus pais: Tom Jobim, Nara Leão, Chico Buarque. Depois dos 30 anos, passei a ouvir, ainda, o Clube da Esquina. Comecei a entender o valor das letras e harmonias deles, de como influenciavam artistas estrangeiros que eu admirava. O bom de ter uma carreira longa é entender de onde veio e compreender coisas que me afetaram a vida toda, mas que eu não tinha noção.

RELEITURAS ICÔNICAS

Quando o Pato Fu começou a fazer música, tínhamos um repertório autoral e também a vontade de incluir releituras nos nossos shows. Logo no primeiro disco, fizemos uma versão mais pesada de “Sítio do Picapau Amarelo”, de Gilberto Gil, e colocamos o tema de abertura dos Flintstones no meio do rock. Era um jeito de dizer: “Olha o que

Carolina Belizário
O baixista Ricardo Koctus e a cantora Fernanda Takai durante show de celebração dos 30 anos do grupo Pato Fu, no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, em janeiro deste ano.
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encontros

SOMOS UMA BANDA QUE

CELEBRA O PASSADO, MAS QUE TAMBÉM OLHA PARA O FUTURO

o Pato Fu é capaz de fazer!” E isso funciona muito bem quando você cria novos arranjos, apresenta as músicas de outra forma. Quando me perguntam do que gosto mais [se de cantar ou de compor], respondo que é de cantar, porque para mim tem muito valor cantar tanto as minhas próprias músicas quanto as de outros(as) artistas.

CARREIRA SOLO

Desde 2007, eu passei a seguir também em carreira solo. É muito gostoso ter essa autonomia de produção. Tudo começou com um e-mail do Nelson Motta, que dizia se lembrar de mim quando pensava na Nara Leão (1942-1989). Nelson me propôs escolher o repertório e gravar algo dela, mesmo sem gravadora nem patrocínio. Eu conhecia muita coisa da Nara porque meu pai a ouvia bastante. Logo nas primeiras três músicas, Nelson ficou completamente apaixonado. Na mesma época, num jantar com o estilista Ronaldo Fraga, ele falou que tinha um desfile inspirado em Nara e que queria lançá-lo na São Paulo Fashion Week seguinte, comigo cantando ao vivo. Quando acabou o desfile, todo mundo queria o disco, mas ele não existia. Aí resolvemos fazer uma edição caseira, que vendeu cinco mil cópias em uma

semana. Procuramos a gravadora Deckdisc, que fez uma tiragem maior, e batemos disco de ouro rapidinho. Foi algo completamente inesperado, fiz uma turnê gigante e, na sequência, o álbum ao vivo Luz Negra (2010). Mas nunca me passou pela cabeça deixar o Pato Fu. São duas empreitadas de sucesso simultâneas.

GRANDES MULHERES

Antes do Pato Fu, a gente já tinha mulheres líderes de bandas no Brasil, mas sempre foi mais difícil para a gente. Isso porque o rock e o pop rock sempre foram muito masculinos. No início, nem me dava conta de que abri caminho para outras garotas, que achavam legal eu tocar guitarra e cantar. Minha cabeça, naquela época, estava na Rita Lee (1947-2023), eu olhava para ela – e não para mim. Inclusive, o livro de contos e crônicas Nunca subestime uma mulherzinha (Panda Books, 2007) eu escrevi para mim mesma, pois, durante muito tempo, tinha várias dúvidas: “Será que vou conseguir? Será que minha banda vai dar certo?". E a primeira pessoa para quem a gente tem que falar isso é para a gente: não podemos nos subestimar. Fico muito feliz por viver num mundo em que há cada vez mais jovens artistas, compositoras, cantoras,

atrizes, bailarinas, produtoras e jornalistas com noção da sua própria importância, cobrando direitos e políticas públicas.

LETRA E CANÇÃO

Quando comecei a ser colunista de dois jornais de grande circulação, não sabia que seria capaz de escrever tanto assim, com tanta frequência. Eu tinha meia página toda semana e muita liberdade por parte dos editores. Passei seis anos escrevendo, e os últimos anos foram os melhores, o que comprova que a redação é como a leitura: quando mais você lê, melhor você escreve, e, quanto mais você escreve, melhor você comunica suas ideias no papel. Nesse período, produzi mais textos para jornais e revistas do que letras de música. Então pedi para deixar as colunas, porque precisava voltar a compor. Também voltei a ler como um momento de prazer, pois passo muito tempo em aeroportos e ônibus. É muito diferente escrever um texto em prosa e uma letra de música. A música tem um tempo de maturação maior que o prazo de uma crônica de jornal. É um tempo dilatado, que pode levar anos.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a cantora e compositora Fernanda Takai, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 17 de janeiro. A mediação do bate-papo é de Pérola Nunes Braz, integrante da equipe de música do Sesc Pinheiros.

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UM HOMEM

POR NOEMI JAFFE

ILUSTRAÇÕES FLORA REBOLLO

Um homem, encurvado e enrugado depois de quarenta e três anos de trabalho pesado e diuturno, em cada segundo de cada minuto acreditando que saberia se o Deus de que tanto se falava era de pedra ou madeira, vento ou água, diamantes ou cristais, se a poltrona onde Ele se sentava era coberta de pedrarias ou se era só um banquinho de palha igual ao da casa dele, esse homem chamado Nng colocou o último tijolo na última fileira da Torre, depois de recebê-lo das mãos de Psl, como vinha acontecendo nos últimos sete meses, depois de terem passado pelas mãos de Nr, Kts, Rrr, Drdl e dos outros de quem ele já nem se lembrava, tantos coitados como ele, pobres crentes desgraçados que precisavam ver Deus para implorar que Ele os ajudasse, pois se Deus existia, por que eles sofriam tanto?

Esse homem, Nhg, olhou para baixo, coisa que ainda não tinha feito em todos esses anos. A Terra estava lá, quase tão invisível quanto a Lua quando vista de baixo. O que mais se via era ela, a Torre, Sua Torre, que ele tinha demorado quarenta e três anos para erguer. Em cada fileira dela havia, no mínimo, uns trinta tijolos só seus e

agora era Ela, Ela inteira em pé, subindo do tudo ao nada e no meio do nada, ele, Nhg, um nada de nada, Nhg Ngn.

Ele sorriu e disse para Psl, logo abaixo dele, também tonto: – Psl, psl!

– Nhg!

Mas logo eles se deram conta de que não conseguiam mais se entender.

Logo, nas outras partes da torre, nos degraus mais abaixo e ainda mais, começaram a ecoar os gritos dos trabalhadores, alguns Nhg reconhecia, Rdl, Mrscicia, a linda Mls, a velha Drd ainda bem lá embaixo, outros ele nunca tinha sequer visto, eram de outras gerações, meninos e meninas morenos como tâmaras, olhando para ele com curiosidade, como se perguntando, e então, viu alguma coisa ou algum Ser, pode nos confirmar se haverá um fio de esperança para nós? Seus rostos agora não diziam só esperança mas também espanto, os filhos e as mães não

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se entendiam mais, só tinham restado os nomes das pessoas. Todas as outras palavras saíam da boca em outras combinações, rsl tinha virado slr, e quando se balançava a cabeça para os lados, o que antes era não, agora era sim, e uns se abraçavam e outros já não podiam nem mais se encostar, uns davam três beijos e outros só apertavam as mãos, os que sorriam ficaram emburrados e os melancólicos começaram a dançar.

Nhg olhou para baixo e só viu balbúrdia, balabúrdia, balababúrdia, babelabúrdia e deu à Torre o nome de Babel.

Nhg, que sempre soube não saber de nada, agora entendia menos ainda e ficou com medo não só de olhar para baixo, mas também de olhar para cima, na direção onde Ele deveria estar, no lugar onde Nhg o imaginava, sentado num altar feito de luz, ele mesmo como um ser de luz que falava a língua da luz.

Essa confusão de línguas, Nhg pensou, seria um castigo ou uma recompensa? Como ele saberia?

Não, não poderia ser um castigo.

O ser de luz não castigaria um homem como Nhg, que tinha passado quarenta e três anos carregando tijolos só para vÊ-lo, um sacrifício como nem Abel nem Caim tinham Lhe oferecido, o sacrifício da sua e de milhares de outras vidas de mulheres, homens, velhas e velhos, meninos e meninas miseráveis que se reuniram para tomar a decisão de erguer a maior torre do universo, com dois quilômetros de altura e quatro quilômetros de diâmetro, construção que levaria mais de trinta anos, isso se a cidade inteira passasse todo o tempo disponível construindo e transportando tijolos para dispor no local escolhido, o centro de tudo, formando uma torre cujo topo coincidia com o centro do céu, “Shamaim”, mistura de água e fogo, no centro da qual estava Ele, o Deus único, ondas brilhantes de luzes coloridas distribuindo luz para os seres da Terra.

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Tudo para honrá-Lo, os melhores engenheiros, matemáticos do Egito – que andavam pensando até em pirâmides – medidores de terras e ventos, de umidade e peso, todas as economias de anos, fome, frio e sede, tudo para ele nos abençoar e perdoar por males que mal sabíamos.

Não, não podia ser.

Ele gritou de desespero, numa língua que nem ele conhecia, uma palavra que ele nem sabia o que era.

Ele jamais nos castigaria, Nhg pensou, enquanto olhava fixamente para aquele último tijolo da última fileira do último círculo da torre.

Noemi Jaffe é escritora, professora de literatura, escrita e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP, publicou O que os cegos estão sonhando (Editora 34, 2012), Irisz: as orquídeas (Companhia das Letras, 2015), Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras, 2017) e Escrita em movimento: sete princípios do fazer literário (Companhia das Letras, 2023), entre outros. Desde 2016, mantém, em São Paulo (SP), o Centro Cultural Literário Escrevedeira, em parceria com Luciana Gerbovic e João Bandeira.

Flora Rebollo é artista visual e utiliza o desenho como mídia principal de sua produção. Entre suas exposições individuais estão O primeiro dia de Dadá, na Galeria Quadra (RJ, 2022); 5 pontas, na Galeria Projeto Vênus (SP, 2021); BURUBU, na Galeria Pilar (SP, 2017); e meta-in-pro-produto-sin-forme, no Centro Cultural São Paulo (SP, 2016). Seu trabalho faz parte da coleção da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Centro Cultural Dannemann (São Félix-BA).

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depoimento

FRATURAS existenciais

Professor e escritor, Jeferson Tenório joga luz para relações familiares e rejeita colocar o racismo como protagonista

João tem apenas 11 anos quando se vê sozinho e obrigado a fantasiar o sentido da vida. O jovem Pedro enfrenta a perda do pai e sai de casa para resgatar o passado da família. A adolescente Estela se abriga no sonho de ser filósofa para fugir dos conflitos com a mãe e o irmão. Em comum, os três personagens vivem sob o mesmo teto do racismo e das desigualdades sociais nas periferias do Brasil. No entanto, a jornada de cada protagonista das obras O beijo na parede (2013), O avesso da pele (2020) e Estela sem Deus (2022), respectivamente, suscita questões, antes de tudo,

existenciais. Autor das obras, Jeferson Tenório também nasceu e morou na periferia – primeiro do Rio de Janeiro (RJ), sua cidade natal, depois em Porto Alegre (RS), onde se formou em letras.

A partir dessa vivência, somada à experiência como professor de literatura em escolas públicas, Tenório encontrou um terreno fértil para a sua escrita. “A sala de aula me trouxe um material biográfico muito importante, porque eu entendi que ela é uma espécie de microcosmo que imita a vida, ou tenta imitar a vida. É como se você estivesse ensaiando aqueles alunos para

Enquanto está escrevendo um roteiro para uma série de streaming, o escritor prepara-se para lançar, ainda neste ano, seu próximo romance pela Companhia das Letras.

a vida. Mas depois comecei a entender que, na verdade, não era um ensaio, já era a própria vida acontecendo, observou o escritor, que neste ano lança seu próximo livro, pela Companhia das Letras, e está escrevendo o roteiro para uma série da plataforma de streaming Netflix.

Descritos por Jeferson Tenório como romances de formação, seus livros narram a história de protagonistas que enfrentam percalços ao longo de um caminho de formação moral, física e psicológica. “Acho que tenho material e me sinto mais seguro falando de personagens

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mais jovens, justamente porque eu já tenho um distanciamento”, explica. Vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário de 2021, O avesso da pele já teve uma adaptação para o teatro pelo Coletivo Ocutá, que estreou em março de 2023, no Sesc Avenida Paulista. A mesma obra também vai se tornar um longa-metragem, cuja filmagem começa neste ano, sob direção de Silvio Guindane, que recentemente fez Mussum, O Filmis (2023). Confira, neste Depoimento, como foi o encontro do escritor com a literatura, de que forma o racismo atravessa seus enredos, e o que virá do que ele chama de "primavera literária negra".

encontro

O meu primeiro contato com o mundo dos livros se deu no início dos anos 2000, a partir do encontro que eu tive com um professor de literatura num cursinho pré-vestibular. Nas aulas, ele costumava falar de muitos livros de maneira apaixonada, entre eles, Feliz Ano Novo (1975), de Rubem Fonseca (1925-2020). Ele leu em voz alta o conto “Feliz Ano Novo”. Foi a primeira vez que vi a literatura se aproximar das minhas vivências, porque esse é um conto que fala da violência e de questões da periferia. A partir daí, fui atrás daquele livro e não parei mais. Isso foi aos 23 anos. Antes disso, eu não era um leitor

literário ou não me aproximava dos livros – eles tinham uma função decorativa, não me atraíam. Mesmo quando criança, eram objetos distantes que serviam para qualquer coisa, menos para ler. Sei que eles circulavam em casa. No entanto, acho que pelo fato de fabular muito, de criar histórias, isso acabou me aproximando, depois, da leitura.

professor

Quando eu entrei no curso de letras foi por influência daquele professor [do curso pré-vestibular]. Como eu me apaixonei pelos livros, pensei: “Tem algo melhor do que estar num curso em que você possa ler muitos livros?”. Mas, ser professor

Carlos Macedo
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e escritor eram coisas que estavam muito distantes. Até porque eu não tinha muita ideia do que se fazia no curso de letras. A ideia inicialmente era trabalhar com neurolinguística. Mas, quando eu entrei, percebi um mundo: eu podia ser tradutor, revisor, professor, escritor... A docência entrou sem querer na minha vida. Minha primeira experiência em sala de aula foi em 2002, quando fiz uma oficina numa escola municipal em Alvorada (RS). Ali eu comecei a me tornar um contador de histórias. Eu contava histórias e fui me apaixonando pela docência. Depois, prestei concurso público e entrei como professor do Estado, onde permaneci por quase 12 anos. Aí fui dar aulas em escolas particulares até 2021.

repertório

A sala de aula me trouxe um material biográfico muito importante porque eu entendi que ela é uma espécie de microcosmo

que imita a vida, ou tenta imitar a vida. É como se você estivesse ensaiando aqueles alunos para a vida. Mas depois comecei a entender que, na verdade, não era um ensaio, já era a própria vida acontecendo. O que acontece na sociedade é um reflexo do que acontece na sala de aula. Essa relação cotidiana com os alunos, com pessoas diferentes e de vários lugares, com as histórias que eles me contavam, com as soluções que eu tinha que encontrar cotidianamente para os problemas em sala de aula. Tudo isso me ajudou a compreender as relações humanas, a relação de poder na sala de aula, as relações de amizade, os conflitos. Acho que isso me ajudou a compreender a complexidade da própria criação literária. Ou seja, fazendo essa observação dessa relação com os alunos e da relação [deles] com os pais, eu acho que a sala de aula foi fundamental para

que eu me tornasse escritor e, talvez, um observador de como as coisas funcionam.

racismo

O racismo, para mim, não tem um valor estético e não é um tema, propriamente. Ele é um elemento que perpassa os meus personagens e a história, justamente porque meus personagens são negros, moram no Brasil e o racismo acontece. Eu venho trabalhando as questões das relações familiares, que é aquilo que me interessa discutir, enquanto as questões de gênero e as questões raciais vão atravessando esses personagens e servem mais como uma barreira para que eles possam existir enquanto seres humanos. É assim que eu vejo quando trago a discussão do racismo. Eu não quero colocar o racismo como protagonista, ele não é e não pode ser protagonista da literatura. Assim como o nazismo e o fascismo. O que tem que sobressair são, justamente, essas relações existenciais, humanas, profundas. É claro que cada leitor vai ter a sua chave de leitura. Há quem leia O avesso da pele e utilize essa chave do racismo. Outros vão usar a chave do luto ou da paternidade. Isso eu acho muito interessante. Mas, meu grande receio é que os livros que estão sendo produzidos por pessoas negras, como Conceição Evaristo, Eliane Alves Cruz e Itamar [Vieira Júnior] sofram uma redução. Ou seja, que a gente acabe reduzindo o valor dessas obras dizendo que são romances que falam sobre racismo. Falam também, mas não só.

Cena do espetáculo O avesso da pele, no Sesc Avenida Paulista, em 2023: no palco, adaptação do Coletivo Ocutá da obra homônima de Jeferson Tenório.

Matheus
Maria
José
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depoimento

TALVEZ, A GENTE TENHA QUE SE SENTIR UM POUCO MAIS CONFORTÁVEL DE NÃO SE SENTIR COBRADO: “AH, CADÊ O RACISMO QUE NA SUA HISTÓRIA NÃO APARECEU?”

primavera

Acho que a gente está vivendo uma primavera literária negra, um florescimento, uma constelação de grandes escritores com muita qualidade. É um momento de celebração, e o mercado editorial entendeu que as literaturas negras vendem, e vendem muito bem. As livrarias também têm colocado nos seus catálogos e como destaque. Dificilmente, hoje, ao entrar numa livraria, você não encontra livros de autores negros e negras. A produção acadêmica também está lá. Esse interesse se dá, também, pela entrada de pessoas negras nas universidades e que demandam outras literaturas. Acho que a questão agora é prestar muita atenção para os caminhos que a gente está indo. Talvez, a gente tenha que começar a pensar em um outro momento, não apenas no momento da reivindicação de humanidade nas histórias, mas pensar em outros aspectos da vida. Sempre me lembro de uma frase do Mano Brown – ele sempre quis falar sobre amor, mas como a vida era tão dura, ele tinha que fazer letras falando da violência. Talvez a gente devesse pensar em expandir. Não que a gente já não fale disso, a gente fala de amor, de amizade. Mas, talvez, a gente tenha que se sentir um pouco mais confortável

de não se sentir cobrado: “Ah, cadê o racismo que na sua história não apareceu?”. Quando vamos contar histórias de pessoas negras sem que o racismo seja esse “elemento”?

teatro

Eu não participei ativamente [da adaptação de O avesso da pele para o teatro], mas participei como uma espécie de consultor. Eventualmente, eles [o Coletivo Ocutá e a diretora Beatriz Barros] tinham alguma dúvida e eu respondia qual a intenção de determinada cena ou diálogo. Vi os primeiros ensaios, que aconteceram dentro do apartamento de um dos atores, porque não havia nenhum tipo de investimento – eles fizeram porque queriam fazer, só depois entraram os patrocínios. Foi bonito ter visto como nasceu até chegar ao palco do Theatro Municipal de São Paulo [em 20 de novembro de 2023, Dia da Consciência Negra]. Eu costumo dizer que eles melhoraram o meu livro. Eles fizeram conexões com alguns personagens que eu não tinha pensado, deixaram algumas cenas mais profundas e complexas, inseriram outros elementos, como a dança. Dei sorte de ter encontrado um grupo tão talentoso.

lançamento

Eu acho que meu próximo livro segue um pouco do que estou

perseguindo. É ainda um romance de formação – todos os meus livros são, de certo modo. Então, você tem aí O beijo na parede, Estela sem Deus e O avesso da pele, com personagens jovens e, de novo, agora, eu também escrevo sobre personagens jovens. Dessa vez, que entram na universidade, mas já têm instrumentos teóricos –são leitores, são da periferia e vão entrar num ambiente acadêmico branco e classista. Acho que [o novo livro] ainda segue esse aprendizado do mundo ao qual me proponho porque tenho 46 anos e acho que não tenho condições, ainda, de falar de personagens mais velhos. Acho que tenho material e me sinto mais seguro falando de personagens mais jovens, justamente porque eu já tenho um distanciamento.

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o escritor Jeferson Tenório, registrada durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em novembro de 2023.

77 | e depoimento

ALMANAQUE

Caminhos do mato

Aventure-se por cinco trilhas próximas a São Paulo para imergir na natureza e exercitar corpo e mente

Nem só de prédios é feita São Paulo. Inseridas nessa “selva de pedra”, ou bem próximas a ela, extensas áreas verdes convidam a uma aventura por trilhas demarcadas para todos os níveis de disposição e experiência. Segundo a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, são 250 quilômetros de percursos mapeados em mais de 20 áreas naturais protegidas por todo o estado. Dessas, várias estão pertinho da capital e podem ser acessadas até de transporte público.

A caminhada em trilhas (conhecida como hiking – passeios de um dia;

ou trekking – expedições mais longas) traz inúmeros benefícios aos praticantes, a começar pelo bem-estar mental gerado do contato com a natureza. É também um exercício aeróbico, pois estimula a capacidade respiratória e cardiovascular, mas também de força, por sustentar o esforço corporal.

Apesar de essencialmente individual, a prática conduz os trilheiros à oportunidade de sociabilizar a partir do enfrentamento de desafios em grupo, apresentados pelo caminho. Fazer trilhas não requer

equipamento específico, exceto um par de calçados apropriados, garrafa d’água e proteção para situações de sol ou chuva. No entanto, a depender do grau de dificuldade do roteiro escolhido, a presença de guias especializados contratados garante segurança.

Neste Almanaque, listamos cinco opções de trilhas na Região Metropolitana de São Paulo. Bora pro mato?

Mauricio Maki Vista aérea do Cerrado do Parque Estadual Jaraguá, durante a Trilha do Pai Zé.

Na Estrada Caminhos do Mar, natureza e história seguem preservadas, como o Pouso de Paranapiacaba, localizado no início da serra, construído em 1922: esse era um ponto de parada e contava com quartos para hospedagem de viajantes.

ESTRADA AFORA

Entre São Bernardo do Campo e Cubatão, a famosa Estrada Velha de Santos, primeira rodovia asfaltada da América Latina, trocou o sobe e desce de veículos motorizados pelos passos de trilheiros. Rebatizada como Estrada Caminhos do Mar, a rota de 16 quilômetros (ida e volta) permite ao visitante passar o dia em contato com a fauna e a flora da Mata Atlântica, além de contemplar mirantes da Baixada Santista, como a deslumbrante Curva do Uau, e passear por oito monumentos históricos centenários, como o Pontilhão Raiz da Serra, o Belvedere Circular, a Casa de Visitas, entre outros. Autoguiada e com dificuldade mediana, a Estrada

Caminhos do Mar está dentro do parque de mesmo nome, que também oferece outros passeios, como a trilha para a Cachoeira da Torre (mediante agendamento prévio) e o Roteiro Ecoturístico pela Calçada do Lorena.

Estrada Caminhos do Mar

Parque Caminhos do Mar, no Parque Estadual Serra do Mar. Entrada por São Bernardo do Campo (SP): Rodovia SP-148, km 42, Alto da Serra. Entrada por Cubatão (SP): Rodovia SP-148, km 50, Cruzeiro Quinhentista. Quarta a domingo e feriados, das 8h às 17h. Mais informações e ingressos: caminhosdomar.com.br

BANHO DE CACHOEIRA

Durante a caminhada de três quilômetros, em meio a clareiras, rochas, pontes, antigos encanamentos do sistema de abastecimento de água e espécimes nativas da Mata Atlântica, a Trilha da Cachoeira convida a refrescantes banhos em piscinas naturais e quedas d’água. A principal trilha da área de visitação do Engordador, no Parque Estadual Cantareira, zona Norte da capital paulista, é autoguiada, sinalizada, circular e considerada de dificuldade moderada, uma vez que o percurso, feito em cerca de duas horas, oferece subidas, degraus e passa por áreas em que o caminho é de pedra. A trilha faz parte da Serra da Cantareira, que atravessa cidades como São Paulo (SP), Mairiporã (SP), Guarulhos (SP) e Caieiras (SP), sendo considerada uma das maiores áreas de mata tropical nativa do mundo dentro de uma região metropolitana.

Trilha da Cachoeira

Parque Estadual Cantareira –área de visitação do Engordador. Estrada Particular da Pedreira, 240, Tremembé, São Paulo (SP). Quarta a domingo, das 8h às 17h (entrada até as 16h). GRÁTIS para crianças até 3 anos. Crianças e jovens de 4 a 14 anos, idosos, estudantes, professores da rede estadual ou particular e pessoas com deficiência e um acompanhante pagam meia entrada. guiadeareasprotegidas.sp.gov. br/trilha/trilha-da-cachoeira-2

Victor Navarro

ALMANAQUE

IMERSÃO SENSORIAL

Use roupas leves, passe protetor solar, tire o sapato e feche os olhos. Para percorrer os 500 metros de extensão da Trilha da Vida (ida e volta), a proposta é vivenciar uma imersão sensorial na floresta sem o auxílio da visão e a partir do contato dos pés e das mãos com a natureza ao redor. Pensado para despertar a consciência ambiental nos visitantes, o passeio é mediado por

educadores e dura cerca de duas horas, incluindo o percurso, seguido de uma roda de conversa para o compartilhamento de experiências. A trilha é feita dentro do Parque Ecológico do Guarapiranga, na zona Sul de São Paulo, espaço que, desde 1999, preserva fauna e flora da Mata Atlântica presentes em 250 hectares. O parque abriga ainda uma biblioteca, o Museu do Lixo e um núcleo de educação ambiental.

Trilha da Vida Parque Ecológico do Guarapiranga. Estrada da Riviera, 3286, Jardim Riviera, São Paulo (SP). Terça e domingo, das 8h às 17h. GRÁTIS (para trilheiros a partir de 10 anos de idade, mediante agendamento prévio para grupos de até 15 pessoas). guiadeareasprotegidas.sp.gov. br/ap/parque-ecologicoguarapiranga-pegua

ECOTURISMO E AVENTURA

Para além do charme da arquitetura inglesa, da imponência da extinta ferrovia e da típica neblina serrana, a Vila de Paranapiacaba, em Santo André (SP), também oferece diversas opções de passeios para trilheiros que desejam se aventurar pela Mata Atlântica sem se afastar tanto da capital paulista. Uma das mais concorridas atrações da região é a Trilha do Poço Formoso, que passa por corredeiras, piscinas naturais de diferentes profundidades, construções do século 19 e mirantes para o complexo industrial de Cubatão, até chegar ao poço, formado pelas águas do Rio Mogi. Destinado a praticantes de ecoturismo e aventura, o percurso de cinco quilômetros de extensão na Serra do Mar tem dificuldade mediana, dura cerca de cinco horas e deve ser feito com guia credenciado.

Trilha do Poço Formoso

Parque Estadual Serra do Mar. Início e fim da trilha: Vila de Paranapiacaba, em Santo André (SP). Todos os dias, das 8h às 17h. Obrigatório o acompanhamento de guia local credenciado. guiadeareasprotegidas.sp.gov. br/ap/parque-estadual-serra-do-mar

A Trilha do Poço Formoso tem como foco principal a chegada à várias piscinas naturais de águas cristalinas com diferentes profundidades.

José Antonio Rodriguês
e | 80

SUBIR, SUBIR

Uma das formas de alcançar o topo do Pico do Jaraguá, ponto mais alto da capital paulista – de onde se tem uma vista panorâmica da cidade a 1.135 metros de altitude –, é percorrer a Trilha do Pai Zé . Batizado em homenagem a um antigo líder religioso que realizava consultas espirituais na região, o caminho de quase quatro quilômetros de extensão

(ida e volta) passa por dentro do Parque Estadual Jaraguá, na zona noroeste de São Paulo. No caminho, uma subida (e depois descida) acentuada. Apesar de exigir bastante esforço físico, a trilha com grau alto de dificuldade brinda o visitante com uma imersão na natureza, possibilitando o contato com espécimes nativas da Mata Atlântica e do Cerrado. Também é

possível chegar ao Pico do Jaraguá de carro, por uma via asfaltada.

Trilha do Pai Zé

Parque Estadual Jaraguá. Rua Antônio Cardoso Nogueira, 539, Vila Chica Luiza, São Paulo (SP). Terça a domingo e feriados, das 7h às 16h. GRÁTIS. guiadeareasprotegidas.sp.gov. br/trilha/trilha-do-pai-ze

Mauricio
Maki
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Até chegar ao mirante da Trilha do Pai Zé, os trilheiros enfrentarão subidas acentuadas em meio a espécies da Mata Atlântica e do Cerrado.

Pessoas fazem lugares

Em novembro do ano passado, completei dez anos vivendo na cidade de São Paulo. Vim do Recife para fazer mestrado, nunca pensei que passaria mais de três anos aqui. Vai por mim, o litorâneo faz um esforço descomunal para abrir mão do mar.

Tenho feito o exercício de olhar com carinho para minhas escolhas e para tudo que veio de bom dos caminhos que escolhi seguir: a oportunidade de ver ao vivo obras e patrimônios sobre os quais estudei, novos amigos (alguns dos quais se tornaram família), os lugares que conheci, um trabalho que faz sentido.

Um trabalho que faz sentido ocupa um espaço generoso em minha vida paulistana. Um trabalho que faz sentido é, para mim, um privilégio, porque trabalho é um assunto importante, que vai de subsistência à realização pessoal, de conexão à identidade.

Percebo que desde que comecei a trabalhar, inclusive nos estágios da minha primeira formação, o termo “significado” é de grande peso nas minhas escolhas. Obviamente, falo de um lugar de muito privilégio, porque sei que, infelizmente, não é grande a parcela da população que pode incluir o fator “fazer sentido” quando o assunto é trabalho.

Não fui o tipo de pessoa que sempre soube o que queria fazer. Tem gente que sempre quis ser arquiteta ou jornalista. Jogador de futebol, médico, cantora, cozinheiro. Ando numa fase “copo meio cheio”, então gosto de pensar que há um lado positivo em não saber: descobrir no empirismo, entre erros e acertos.

Entre erros e acertos, a única coisa que minha trajetória de trabalho tem em comum é a economia solidária, que descobri existir numa disciplina no primeiro ano da faculdade de design. Muito me alegrou entender que era possível unir o design à inclusão social.

A economia solidária visa reduzir as desigualdades econômicas e promover a participação igualitária nas decisões e nos frutos do trabalho. Me conforta que haja pessoas trabalhando num formato que vai na contramão da lógica excludente.

A parte que me cabe de otimismo por uma possível realidade mais justa passa pela possibilidade do trabalho digno não alienado. Um aspecto fundamental desse modelo econômico é o fortalecimento das comunidades e a sensação de pertencimento que o trabalho coletivo gera. Quer coisa mais bonita que a sensação de pertencimento?

Em qualquer aspecto da vida, construir pertencimento enquanto adulta, praticamente do zero, é um desafio. É caro o preço que a gente paga por viver longe das nossas origens, pelo menos para mim. Sem arrependimentos e com alegria!

Tenho muita sorte, porque pessoas muito amáveis e generosas têm cruzado meu caminho nesses dez anos em que vivo por aqui. Pessoas fazem lugares, dão sentido à vida. Se a cidade de São Paulo tem sido uma boa experiência, é principalmente pelas trocas e vivências, pelo sentido no que faço, que me tornam pertencente.

Eu estaria mentindo se dissesse que não sinto falta do Recife. Disse Antônio Maria no "Frevo Nº1" que o "Recife está perto de mim". No meu caso, perto mesmo não está, mas está dentro. Então, vamos que vamos!

Aline Pessoa é psicóloga e mestre em arquitetura. Integra a equipe de programação do Sesc Pompeia.

Nortearia e | 82 P.S.

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MARÇO

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Maira Acayaba (foto); Nortearia (colagem)
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