Revista E - abril/2024

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Ator celebra 65 anos de carreira com retorno ao teatro

Ações coletivas e individuais geram uma vida saudável

Patrícia Campos Mello alerta para perigos da desinformação

A sala 33

Conto inédito de Wesley Barbosa ilustrado por Léo Daruma

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SESC PINHEIROS

25 ABR — 01 DEZ 2024

Exposição que propõe uma revisão historiográfica da identidade brasileira, por meio de uma seleção de obras em diálogo com o livro homônimo de Ana Maria Gonçalves.

CURADORIA

Ana Maria Gonçalves

Marcelo Campos

Amanda Bonan

Parceria Institucional Idealização e concepção Realização EMERSON ROCHA

CAPA: A obra Sem título (2023), do artista carioca que cresceu na favela da Rocinha Maxwell Alexandre, faz parte da exposição Novo Poder: passabilidade, em cartaz no Sesc Avenida Paulista a partir de 19/4. Na série de retratos pintados a óleo, o artista aborda a presença de personagens pretos dentro de galerias, museus, centros culturais e fundações, refletindo sobre as realidades sociais e culturais do Brasil.

Crédito: Estúdio Megazord

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Sentidos de comunidade

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Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Desde que foi criado, em 1946, por iniciativa do empresariado do comércio de bens, serviços e turismo, o Sesc – Serviço Social do Comércio atua para promover o bem-estar dos trabalhadores do setor e de seus familiares, considerados como público prioritário, bem como de toda a comunidade. Mantida pelo setor privado, a entidade reafirma permanentemente sua vocação para o bem-comum ao oferecer uma variedade de atividades e programas que visam a qualidade de vida e o crescimento interpessoal.

No estado de São Paulo, o Sesc mantém 42 centros culturais e esportivos, promovendo uma diversidade de atividades nos campos do lazer, da cultura, dos esportes, do turismo social, da saúde e da alimentação. São espaços construídos para proporcionar encontros, trocas de saberes, convívio e aprendizados múltiplos em temas que abrangem questões da sustentabilidade, acessibilidade, pluralidade de linguagens artísticas e escolhas que geram saúde, sempre no intuito de refletir sobre os desafios do tempo presente. Desse modo, ao realizar este projeto emancipatório e inovador, contribui para formar cidadãos atuantes, críticos e participativos na construção de uma sociedade cada vez mais plural.

Por uma cultura de saúde

Pode parecer paradoxal que a primeira ideia que nos vem em mente quando ouvimos a palavra saúde seja doença – ou a ausência dela. Acostumamo-nos a definir o corpo e a mente sãos a partir da negação de algo que nos acomete, desequilibra ou desestrutura. Assim, associamos o saudável à lacuna dos males, sem considerar que o real significado de saúde extrapola esse entendimento. Saúde, afinal, pode e deve ser compreendida de um modo mais amplo, como uma conjunção de escolhas de âmbito pessoal e coletivo que nos proporcionam bem-estar e qualidade de vida.

Assim, garantir e sustentar uma vida saudável começa com decisões que envolvem os hábitos mais rotineiros; passa por políticas públicas que promovem o acesso de modo amplo e democratizado; e incorpora iniciativas que proporcionam a sociabilização, a construção de vínculos e o acesso ao lazer e à cultura. Trata-se de um conceito complexo e em constante revisão, que nos leva a pensar sobre como podemos caminhar para adotar uma cultura de saúde.

Neste mês, em que é celebrado o Dia Mundial da Saúde, em 7 de abril, a Revista E traz uma reportagem que nos convida a essa leitura e reflexão, elaborada a partir de conversas com diferentes profissionais da área. Acompanhe também o projeto Inspira, nas unidades do Sesc, com atividades que nos fazem rever e expandir as perspectivas sobre esse importante tema dos dias atuais. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Marco Antonio Melchior, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Perin, Aline Ribenboim, Ana Paula Feitosa, Ana Paula Verissimo Souza, André Luiz Santos Silva, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andreia Pereira Lima, Angelo José Domingues de Moraes, Bruna Gavioli Ramos, Bruna Zarnoviec Daniel, Bruno Eduardo Ciccotelli, Caio Wallerstein Ferreira Gomes, Camila Santos Medeiros, Caroline Figueira Zeferino, Caroline Souza de Freitas, Cauê Colodro Botelho, Corina de Assis Maria, Cristiane Toshie Komesu, Danilo Cava Pereira, Danny Abensur, Denise Ramos da Fonseca, Diego Polezel Zebele, Diego Vinicius Teixeira Ferreira, Diogo de Moraes Silva, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Eduardo Santana Freitas, Elizabeth Nucci Milani, Elmo Sellitti Rangel, Emerson Luis Costa, Fabiane Emilio dos Santos, Felipe Campagna de Gaspari, Felipe Veiga do Nascimento, Fernanda Gehrke, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernanda Suemi Perruso, Fernando Andrade de Oliveira, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriela Grande Amorim, Gislene Lopes Oliveira, Giulia Maria de Campos Manocchi, Glauco Gotardi, Gustavo Faria, Heloisa Pisani, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivanildo Rodrigues da Hora, Ivy Granata Delalibera, Jacy Helena Almeida Silva, Jaderson Johnattan Porto, Jean Guilherme Paz, Jefferson de Almeida Santanielo, Joana Carolina Teixeira Mota, João Gabriel Fernandes Simil, João Paulo Leite Guadanucci, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Lilian Vieira Ambar, Luiz Fernando de Sousa Ogliani, Maria Lucia Morgante de Miranda, Maria Lygia R. Marques de Oliveira, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Mateus Merighi Cuconato, Patrícia Maciel da Silva, Priscila dos Santos Dias, Rafael Lima Peixoto, Rafael Nicolas da Silva, Rejane Pereira da Silva, Renata Goncalves de Souza, Ricardo de Oliveira Barbosa, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Romeu Marinho C. Ubeda, Roseane Silveira de Souza, Sandra Ribeiro Alves, Sara Maria da Silva, Silvia Cristina Garcia, Sofia Calabria Y Carnero, Stephany Tiveron Guerra, Tayna Guimaraes Vieira de Oliveira, Thais Ferreira Rodrigues, Thays Cabette Barbosa Alves, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Vitor Penteado Franciscon, Viviane Machado Lemos

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Lígia Scalise, Luna D’Alama, Manuela Ferreira, Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Edmar Júnior, Gabriela Amorim, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alessandra Soares, Alexandre Calderero, Cesar Albornoz, Leandro Henrique da Silva e Pablo Perez Sanches • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

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Reconhecido por personagens marcantes na TV, teatro e cinema, Osmar Prado celebra 65 anos de carreira com retorno aos palcos no papel de um sádico marquês

Entre os destaques da programação de abril, Circuito Sesc de Artes leva diferentes linguagens artísticas a 122 cidades paulistas

De que forma a soma de hábitos individuais com atitudes coletivas pode promover saúde física e mental?

Um passeio visual por obras da exposição

Um defeito de cor inspirada em livro homônimo de Ana Maria Gonçalves

Traumas familiares, protestos à ditadura e declarações de amor abraçaram vida e obra de Gonzaguinha, artista que marcou a história da música brasileira

Novas gerações de cantoras e instrumentistas conquistam cada vez mais

espaço nas rodas de choro

dossiê entrevista saúde bio gráfica música

Adriana Vichi (Entrevista); Obra A certeza da aurora (2022), de Tiago Sant'Ana. Acrílica e lápis de cor sobre tela. Reprodução: Tiago Sant'Ana (Gráfica)

p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40
SUMÁRIO

Patrícia Campos Mello

Artigos de Danilo Cymrot e Thiagson refletem sobre aspectos culturais, econômicos e sociais por trás do funk

Wesley Barbosa (texto) e Léo Daruma (ilustração)

Cantora Mônica Salmaso recorda começo da carreira, dispensa estereótipos da fama e fala sobre longevidade na música

Conheça cinco espaços culturais da capital paulista que se reinventaram depois de passarem por incêndios

Teresa Maria da Ponte Gutierrez

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S. p.66 p.70 p.74 p.78 p.82
p.60
Marcos Villas Boas (Encontros); Divulgação / Memorial da América Latina (Almanaque)

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O pianista Cristian Budu apresenta um retrato histórico da diversidade da música para piano no Brasil em álbum duplo

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Em busca de sua origem familiar, um jovem enfrenta uma dolorosa jornada de autodescoberta no canavial nordestino. Esse é o enredo de O ninho, um recado da raiz, novela cênica escrita e dirigida por Newton Moreno que está em cartaz no teatro do Sesc Bom Retiro até dia 21 de abril. Com trilha sonora original e direção musical de Zeca Baleiro, o espetáculo reúne, em cena, nomes como Paulo de Pontes e Badu Morais (foto), propondo um manifesto musicado contra o ódio e a intolerância em terras brasileiras.

LANÇAMENTO
Beltrao 9 | e
Andreia
em cena

Organizado por Marcia Abujamra, esse livro apresenta depoimentos de Antonio Fagundes, Zé Celso e Vera Holtz, entre outros, além de inúmeras fotos que celebram a vida e a carreira de um dos mais inovadores diretores das artes cênicas do Brasil.

MARCIA ABUJAMRA [ORG]

Caravana da arte

Espaços públicos de 122 cidades paulistas são ocupados pelo Circuito Sesc de Artes com centenas de atividades gratuitas

Praças, parques, ginásios, centros de eventos e até estações ferroviárias serão transformados por uma caravana artística que viaja pelo estado de São Paulo, do interior ao litoral, nas próximas semanas. De 20 de abril a 26 de maio, o Circuito Sesc de Artes chega a 122 cidades com mais de 700 apresentações gratuitas nas áreas de cinema, circo, dança, literatura, música, teatro, artes visuais e tecnologia.

Realizado pelo Sesc São Paulo em parceria com as prefeituras municipais e sindicatos do comércio, serviços e turismo locais, o Circuito ocupa, prioritariamente, municípios onde o Sesc não possui instalações, proporcionando uma oportunidade de imersão cultural e sensibilizando a população para a importância da conexão com a arte.

Para Érika Mourão, gerente da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, uma das maiores

potências do Circuito Sesc de Artes mora na promoção do encontro. “Ao possibilitar o intercâmbio de experiências entre público e artistas em espaços abertos, e de forma gratuita, o Circuito sensibiliza para o convívio e contribui para uma diversa e democrática ampliação de repertório artístico-cultural”.

Com o lema “Arte na rua para todas as pessoas”, a programação é dividida em 12 roteiros, contemplando shows, oficinas, mediações, vivências, intervenções cênicas e exibições de filmes. Entre os destaques, tem apresentação do Baile da Massa Real, idealizado por Pietro Leal a partir da união de expressões musicais baianas; o espetáculo Saias, do grupo GiraSaias, que reúne danças populares brasileiras, como maracatu nação, jongo, simbologia dos orixás, coco de Alagoas, ijexá, lundu colonial, samba de roda e ciranda; o Cabaré Feminino Multicultural, espetáculo circense

de Erica Stoppel composto por um elenco exclusivamente feminino de malabaristas, acrobatas, palhaças e musicistas; e a peça teatral Noite de Brinquedo no Terreiro de Yayá, em que o Clã do Jabuti une as tradições da festa de Reisado do Cariri cearense ao processo de amadurecimento da protagonista Maria.

Confira a programação completa: sescsp.org.br/circuitosescdeartes

O Circuito sensibiliza para o convívio e contribui para uma diversa e democrática ampliação de repertório artístico-cultural

Érika Mourão, gerente da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo

Tânia de Oliveira e outras artistas compõem o elenco do espetáculo circense Cabaré Feminino Multicultural, que faz parte da programação do Circuito Sesc de Artes
Rodrigues
Caique
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DOSSIÊ

DOSSIÊ

ARTE E ESPORTE NA LUTA ANTIRRACISTA

Com o objetivo de exercitar o olhar crítico sobre a representatividade de corpos negros no esporte e na arte, o Sesc Itaquera recebe, a partir de 16/4, o projeto Lance Livre: Reflexões sobre Racismo e Representação na Arte e no Esporte Com bate-papos, intervenções esportivas e artísticas, espetáculos de dança e passeios, a programação discute questões raciais, como o corpo preto é estereotipado e

quais mudanças se refletem nas discussões de hoje. No dia 17/4, o bate-papo Artistas negros e negras no Brasil: entre fazer arte e a resistência conta com nomes como o Movimento Vilanismo e Renata Prado. Já no dia 20/4, a Clarin Cia. de Dança apresenta o espetáculo Fênix: onde nascem os sonhos, uma obra de passinho e funk que fala sobre a esperança dos corpos periféricos. E no dia

Quem é (pode ser) turista?

A fim de discutir o que é viajar e as dinâmicas desiguais da relação entre quem visita e o lugar visitado, o Sesc promove, entre 23 e 30/4, a quinta edição do Ciclo de Reflexões Ética no Turismo. Com o tema "Reorientar a bússola, descolonizar a viagem", a série de encontros reúne a experiência de coletivos, povos tradicionais e originários para refletir sobre quem pode ser viajante, desafios

21/4, um bate-papo seguido de jogo-exibição reúne Janeth Arcain, Marcos Valentim, Nene Surreal e Felipe Oliveira para refletir sobre as questões raciais no esporte. A intervenção visual Lance Livre: Representações na arte e no esporte, da artista Nene Surreal, nas entradas do auditório e da quadra, ilustra as atividades durante o mês. Confira a programação em sescsp.org.br/itaquera

do turismo de base comunitária, direito à memória e perspectivas afrodescendentes sobre o turismo, entre outras questões. Realizadas no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, as atividades são conduzidas por Aline Bispo, Bani Amor (curso online), Bel Santos Meyer e Gasodá Paite Surui. Inscreva-se e saiba mais em sescsp.org.br/eticanoturismo

Patrimônio Cultural e Imaterial do Rio de Janeiro, o passinho se une ao funk no espetáculo Fênix: onde nascem os sonhos, da Clarin Cia. de Dança, apresentado dia 20/4, no Sesc Itaquera. Sérgio Fernandes
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José Maria (Verso Livre)/ Givas Satiago (SescTV)

Matheus

Homenagem aos tropeiros

Entre os dias 26 e 28/4, o violeiro Elomar, uma figura lendária na música popular brasileira, celebra o legado dos tropeiros, transitando entre o popular e o erudito em uma experiência musical no Sesc Consolação. Aos 87 anos, sua obra atravessa temas como a vida rural, a seca, o amor e a religiosidade. Sua técnica e habilidade única de contar histórias por meio da música o destacam como um dos grandes mestres da viola no Brasil. Elomar e a Tropa Encantada, como o projeto do cantor, violonista e compositor é chamado, será acompanhado por uma camerata formada por violão, flauta e violoncelo, além de duas cantoras. Na sexta-feira e no sábado, o show ocorre às 20h; e no domingo, às 18h. Saiba mais em sescsp.org.br/consolacao

Realizado pelo Sesc Belenzinho, o projeto Verso Livre recebe diversos artistas, como a cantora Marina Lima, que intercala show e conversa com o pesquisador Renato Gonçalves.

PALAVRA MUSICADA

Entre os meses de março e abril, o Sesc Belenzinho apresenta a primeira edição da mostra Verso Livre, que une duas linguagens: palavra e canção. A partir da pesquisa de obras de poetas, poetisas, escritores e escritoras nacionais e internacionais, cantores e compositores apresentam shows de diferentes vertentes musicais e com formatos plurais. Em comum, a transversalidade com a literatura. Nos dias 5, 6 e 7/4, Marina Lima apresenta o show Uma Noite com Marina, no qual canta vários sucessos, como "Fullgás", "À Francesa" e "Grávida", intercalados com uma conversa com o escritor e pesquisador Renato

Gonçalves. O compositor e violonista gaúcho Vitor Ramil apresenta, no dia 13/4, as músicas do álbum Avenida Angélica (2022), trabalho inteiramente dedicado à poesia de sua conterrânea, Angélica Freitas. Já no dia 21/4, a cantora e compositora curitibana Bruna Lucchesi encerra o projeto com a estreia do show Berros e Poesia, no qual se debruça sobre a poesia musicada, principalmente a obra de seu conterrâneo Paulo Leminski (1944-1989), além de composições próprias baseadas nas criações de poetisas como Alice Ruiz e Patti Smith. Confira a programação completa em sescsp.org.br/belenzinho

RELIGIOSIDADE EM FOCO

Nos sábados de abril, a programação do SescTV exibe documentários que abordam a relação do humano com o sagrado e a experiência em crenças religiosas. No dia 12/4, às 22h, Terreiros do Candomblé de Cachoeira e São Félix (BA, 2016), dirigido por Ceicça Boaventura, passeia pelas cidades de Cachoeira e São Felix, no Recôncavo Baiano, para contar a história dos dez terreiros patrimonializados nesses locais e seus entornos. Dirigido por Marcia Mansur e Marina Thomé, O som dos sinos (MG, 2016), que será exibido no dia 19/4, às 22h, busca o universo simbólico da fé nas cidades onde reverberam os toques dos sinos, registrados como patrimônios imateriais brasileiros, e que marcam o ritmo da vida dos moradores. Já no dia 26/4, às 22h, Açucena (BA, 2021), com direção de Isaac Donato, conta a história de uma senhora de 67 anos que anualmente celebra seu aniversário de 7 anos de idade, com direito a roupas festivas e temática infantil. Disponível sob demanda em sesctv.org.br/doc

O documentário Terreiros do Candomblé de Cachoeira e São Félix (2016), de Ceicça Boaventura, integra a programação do SescTV a partir de abril.

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DOSSIÊ

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

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Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Acesse o texto Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc

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Ricardo Ferreira

ARTES VISUAIS E TECNOLOGIAS, CINEMA, CIRCO, DANÇA, LITERATURA, MÚSICA E TEATRO

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Oator-criador

Em retorno aos palcos como um marquês sádico, Osmar Prado celebra a diversidade de personagens vividos em 65 anos de uma diversa carreira no teatro, cinema e TV

Ousadia é uma palavra que se destaca na longeva trajetória de Osmar do Amaral Barbosa, o ator Osmar Prado. Da escolha de personagens e da recusa ao rótulo de galã, na juventude, à decisão de transgredir lógicas do mercado televisivo, o ator conquistou autonomia em sua carreira. Nascido em São Paulo, morava na Vila Clementino, zona Sul da capital, quando anunciou para a mãe, ainda criança, que seria artista. Ao redor, nenhuma influência ou parentesco no universo artístico. Provavelmente uma fantasia de futuro que o guiou rumo à toca onde começaria a criar personagens tão complexos quanto fantásticos.

E lá se vão mais de seis décadas de ofício. Estreou na televisão com apenas dez anos de idade na novela ao vivo David Copperfield, exibida pela extinta TV Paulista, e aos 12, no teatro, no espetáculo Nu, com violino, pela companhia formada por Nydia Licia (1926-2015) e Sérgio Cardoso (1925-1972), no Teatro Bela Vista, hoje Teatro Sérgio Cardoso, no Bixiga. Sem passar por escolas formais de artes dramáticas, Osmar Prado atribui sua formação à prática e à troca de conhecimentos com diretores que cruzaram seu caminho, como Líbero Miguel (1932-1989)

e Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974). Entre personagens que marcam sua história e a das telenovelas, Tião Galinha, de Renascer (1993), e mais recentemente o Velho do Rio, de Pantanal (2023), fazem parte de um universo onírico e poético da bagagem do ator. Frutos ainda de um “mergulho interno”, como ele diz, com o qual realiza cada trabalho.

Neste ano, Osmar Prado celebra seu retorno ao teatro, depois de quase dez anos de seu último espetáculo, o musical Barbaridade, de 2015. Convidado pelo diretor Eduardo Figueiredo e pelo ator Maurício Machado para interpretar o Marquês do texto O veneno do teatro, do espanhol Rodolf Sirera, o ator faz do público sua marionete. Num jogo perverso entre realidade e ficção, o Marquês submete o ator Gabriel, interpretado por Machado, a viver um papel que pode lhe custar a vida. O espetáculo esteve em cartaz até mês passado, no Sesc Santana, e agora segue em temporada por Belém (PA), Porto Alegre (RS) e outras capitais, antes de retornar a São Paulo. Nesta Entrevista, Osmar Prado fala sobre os desafios do novo trabalho, relembra o começo da carreira e reflete sobre a passagem do tempo e a arte como espelho do pior e do melhor da humanidade.

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Adriana
entrevista

No cinema, o ator interpretou Kid Jofre, pai do lendário boxeador Éder Jofre, vivido por Daniel Oliveira, em 10 segundos para vencer (2018): por esse filme, dirigido por José Alvarenga Jr., Osmar Prado ganhou o Kikito de Melhor Ator no Festival de Cinema de Gramado de 2018.

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entrevista

Depois de quase dez anos, você retorna ao teatro com o espetáculo O veneno do teatro. O que lhe atraiu no texto do espanhol Rodolf Sirera para que você topasse voltar aos palcos? É preciso saber que essa peça foi escrita em 1978, três anos após o término da ditadura de Francisco Franco [1892-1975], na Espanha. O que me “envenenou” foi o próprio texto. Quando o Edu [Eduardo Figueiredo, diretor] me ligou para fazer a peça com o Maurício Machado, ele queria que eu fizesse o Marquês. Eu nem sabia quem era o Marquês, nem O veneno do teatro. Quando ele mandou o texto, enlouqueci: é magnífico. Só que eu tive muito medo. Eu falei que não era para mim, porque estou com 76 anos e, embora tenha experiência de memorização, pensei: “Acho que não vou conseguir botar na cachola todo esse texto”. Mas, acabei aceitando e eles foram ao Rio de Janeiro para ensaiar comigo. Até agora, a peça tem arrebentado. Eu nunca vi um texto tão magnífico quanto esse, e um personagem tão brilhante quanto o Marquês. Eu me divirto. As pessoas riem com ele. É bom, porque você ri e depois toma um choque porque ele tem poder absoluto e faz o que ele quiser.

No papel do Marquês, cuja perversidade exerce repulsa e, ao mesmo tempo, fascínio, o público é, de certa forma, manipulado como o ator Gabriel, personagem de Maurício Machado. Quem é o Marquês?

Ele é como o Hannibal, de Anthony Hopkins [personagem da trilogia de filmes iniciada com O silêncio dos inocentes, de 1991]. Ele “encanta” e é assustador. O Marquês é fantástico porque ele joga na cara do público a nossa hipocrisia. E ele não é hipócrita, porque ele se assume como canalha. É esse microcosmo da realidade que a peça representa. Como muitas pessoas que a gente vê no poder, com as guerras. Como em genocídios e comportamentos cínicos ao redor do mundo.

Nesse aspecto, pode-se dizer que a arte é um espelho do que há de melhor e de pior na humanidade?

Pois é. A arte trabalha com isso. Quem foi um visionário fazendo a caricatura do Hitler? Charles Chaplin [1889-1977] em O grande ditador [1940]. E o que aconteceu? Ele brincava com o mundo, o mundo explodiu e ficou em frangalhos nas mãos dele.

No papel do Marquês, Osmar Prado contracena com Maurício Machado, que interpreta o ator Gabriel no espetáculo O veneno do teatro

Fernanda
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Baldo
A arte pode conscientizar, difundir cultura e conhecimento. Mas, o que revoluciona, de fato, é a escola.

De que forma essa temática que abrange os efeitos do autoritarismo, da guerra e da manipulação da realidade, e que está presente no teatro, no cinema, nas produções de streaming, revela o Zeitgeist, o espírito de uma época?

Eu acho que nós estamos num estágio de altíssima mudança. Nós estamos saindo de uma dependência de dois ou três países dominantes para um mundo multipolar. O que eu quero dizer é o seguinte: vai haver, de tal maneira, uma correlação de forças que não será nem um nem dois, mas um conjunto de forças que obrigará os mandatários do mundo a sentarem numa mesa redonda para discutir o que é melhor para o mundo e para a humanidade. O mundo tem que ser multipolar e generoso. Tem que ser um mundo de congraçamento, acabar com a pobreza, porque a pobreza é oriunda da concentração de riqueza. Isso tem que acabar. E o que a arte faz nesse contexto? A arte joga esses temas na cara das pessoas. Evidentemente, não é a arte que faz a revolução. A arte pode conscientizar, difundir cultura e conhecimento. Mas, o que revoluciona, de fato, é a escola. Tanto que o grande educador Paulo Freire [1921-1997] foi perseguido pela ditadura porque desenvolveu um processo de alfabetização revolucionário. Assim como Galileu Galilei [1564-1642]. A Igreja foi uma entidade reacionária – eu ainda vou fazer Galileu no teatro – quando disse para ele negar o que disse sobre a Terra não ser o centro do sistema, e sim o sol. E de fato, o sol é o centro do sistema planetário, não a Terra. Nós somos mais um planeta entre milhares de galáxias que existem. Somos uma pulga no universo.

Devolvendo-lhe como pergunta o que seu personagem, o Marquês, diz em cena: a profissão do ator é a mais desprezada e, ao mesmo tempo, a mais invejada?

É verdade. Se você assiste a Mephisto, você vê isso [escrita por Klaus Mann, a peça narra a ascensão e a queda moral de um ator ambicioso, dividido entre

manter seus ideais artísticos e humanistas ou se render à fama e demandas de um governo autoritário]. Veja, por exemplo, o rei Luís XIV [1638-1715]: o dramaturgo Moliére [1622-1663] vivia às expensas da pensão que o rei francês lhe pagava para trabalhar na cultura. Mas, quando ele escreveu Tartufo, a peça foi censurada por Luís XIV, porque ela ridicularizava a corte. Quer dizer, ele era empregado do rei que gostava de arte. O Rei Sol, que gostava de dançar, de festa, de teatro. Isso acontece porque nós [atores] incomodamos de alguma forma.

Fazendo um retrospecto, sua carreira começou muito cedo, por volta dos dez anos de idade. Naquela época, em sua família, não havia outros atores ou atrizes. De onde surgiu esse interesse pelas artes dramáticas?

Eu perguntei para minha mãe como é que se fazia para ser artista. E ela, na sua ingenuidade, no seu pouco conhecimento, disse assim: “Tem que ser alto e bonito”. A referência dela era o símbolo sexual da época, Rodolfo Valentino [1895-1926], um artista de origem italiana, bailarino, e que se tornou um grande astro hollywoodiano. De onde veio a vontade de ser artista eu não sei dizer. Eu nem sabia o que era “ser artista”. Nunca tinha ido ao teatro. Meu pai teve certa relação com a música. Ele fez parte de um conjunto de gaita que, depois, cada um seguiu um caminho diferente. Meu pai optou por uma vida mais segura, em empregos menos rentáveis, mas estáveis, enquanto o comandante do conjunto conseguiu estudar música, montar um conservatório e se deu muito bem. Então, meu pai tinha um pouco de frustração, porque poderia ter sido músico, mas não teve coragem. Também se casou muito cedo, logo teve uma penca de filhos: em 1944, nasceu meu irmão mais velho, em 1946, outro irmão, em 1947 eu, e seis anos depois, a minha irmã. Com muita dificuldade, morando numa casa modesta na Vila Clementino. Ele quis me demover da profissão [de ator], porém quando tentou, não conseguiu mais.

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Costumo dizer que o ator é um fingidor, finge tão completamente que finge ser dor a dor que deveras sente

Apesar da resistência paterna, sua mãe foi uma grande incentivadora da sua carreira como ator. Minha mãe me apoiou e minha tia também, irmã dela. Morávamos meu pai, minha mãe e a cunhada do meu pai. Minha tia era operária, empacotadora de pregos, e sacrificou muito a sua vida e seus horários para me ajudar. Em 1958, eu já estava na ativa. Meu primeiro trabalho foi numa novela chamada David Copperfield [adaptação da obra do escritor inglês Charles Dickens (1812-1870)], na TV Paulista, dirigida pelo Líbero Miguel. Eu não fui o protagonista, mas um dos meninos do grupo. No teste que eu fiz na casa do diretor, para o qual minha tia me levou, contracenei com a esposa dele, mas esbarrei na mesa e caiu o cinzeiro. Imediatamente, eu o peguei, botei no lugar e continuei representando. Na hora, ele me mandou parar e falou: “Você não precisa dizer mais nada. Só pelo fato de não ter parado a cena, você vai trabalhar comigo”.

Depois da televisão, você pisa no palco pela primeira vez na companhia teatral dos atores Sérgio Cardoso e Nydia Licia, no Teatro Bela Vista, hoje Teatro Sérgio Cardoso, no bairro do Bixiga. Como foi essa experiência?

Era uma peça de três atos, escrita por Noel Coward [dramaturgo inglês (1899-1973)], chamada Nu, com o violino, e precisavam de um menino que entrasse no terceiro ato. Eu seria filho do personagem do Sérgio [Cardoso], que era o Sebastian, brigando com o pai porque ele mostrou a obra-prima dele, Nu, com violino, sem autorização. Era uma cena só. Eu entrei e quase fiquei afônico – perdi a voz de emoção. Mas eu não parei e fui até o fim. Então, o crítico disse o seguinte: “O menino Osmar Prado – ele disse meu nome certo – é uma agradável revelação, apesar de

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Adriana Vichi

quase ter perdido a voz na noite de estreia. Representou a sua cena até o final com muita personalidade e bravura”. Essa foi a primeira crítica que eu recebi, aos 12 anos, e foi de Miroel Silveira [1914-1988], muito respeitado na época. Entendi o recado e estou aqui, aos 76 anos.

Você faz parte de uma geração que não tinha à disposição muitas oportunidades de instituições ou cursos formais de artes cênicas. Como se deu a sua formação como ator?

A minha escola foi a vida e a prática. Nunca fiz um curso de teatro. Desenvolvi uma técnica ao longo de 65 anos de carreira. Também aprendi com os diretores com os quais eu trabalhei, primeiro com Líbero Miguel, e outros tantos. Então, você vai conhecendo e aprendendo, no seu meio, como trabalhar a voz e o corpo. E, a cada projeto, entende a exigência de cada personagem. Eu sou um ator de criação.

Na sua lista de personagens, você interpretou jogador de futebol, monge budista, motorista, psicólogo, catador de caranguejo, entre outros. Como ator-criador, de que forma o processo de composição de personagens difere para cada meio em que você atua?

No começo, queriam fazer de mim um galã, mas eu não engoli a isca. Fracassaram porque eu não entrei no jogo. Isso foi na novela Bicho do mato [1972], na qual estreou, inclusive, o ator Mário Gomes: este, sim, realmente um galã. E o Ziembinski [1908-1978], grande diretor polonês radicado no Brasil, me falou: “Você não é um galã, você é um ator característico e vai criar personagens”. E ele estava certo. As técnicas para composição são diferentes, mas, evidentemente, o personagem é o

Eu não aguentaria, ou ficaria louco, se não tivesse um meio maravilhoso como o palco, onde posso jogar tudo em cima. É no teatro que eu me realizo.
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Adriana Vichi
Eu não mensuro o tempo de vida e também não faço projeções. Vou levando. Eu não sei e não tenho a certeza de nada. Mas isso é fascinante, né?

mesmo. Eu só adapto o personagem ao veículo em que estou atuando. Se vou fazer o Velho do Rio [personagem da novela Pantanal (2023)] no palco é uma coisa. Mas, se eu for fazê-lo como foi feito, in loco, no Pantanal, é outra. No teatro é um processo vivo, e na televisão, você grava. Mas, eu atuo na TV como se atuasse no teatro, de maneira que eu não paro o tape. Quando vai, é direto.

Antes de O veneno do teatro, você esteve em cartaz em 2015, no musical Barbaridade, contracenando com Edwin Luisi e Marcos Oliveira. No espetáculo, esses três personagens confrontam a velhice. Como é a sua relação com a passagem do tempo?

Desde criança, eu mexo muito com o corpo. Não cheguei a frequentar clubes porque não tinha dinheiro para isso, mas eu sempre fui muito ativo. Eu sou corredor e estou preparado para correr uma hora. Eu tenho preparo físico. Minha mulher e eu temos um pequeno estúdio em casa, tem argola, tem tecido, porque ela dá aula de acrobacia aérea. Somos atléticos não no sentido da estética, mas da saúde, e essa disponibilidade me dá condição de pular do palco com 76 anos [como faz em O veneno do teatro]. Eu não mensuro o tempo de vida, e não faço projeções. Vou levando. Eu não sei e não tenho a certeza de nada. Mas isso é fascinante, né?

Você já disse em algumas entrevistas que a arte sustenta sua vontade de viver. Qual o papel da arte na sua vida?

Eu não sei o que seria da minha vida se não tivesse seguido essa carreira. Não suportaria o contexto social sem a possibilidade da criação. Eu não aguentaria, ou ficaria louco, se não tivesse um

meio maravilhoso como o palco, onde posso jogar tudo em cima. É no teatro que eu me realizo.

Além de expurgar sentimentos, a possibilidade de experimentar outras vidas por meio dos personagens que interpreta também permite desenvolver autoconhecimento?

Costumo dizer que o ator é um fingidor, finge tão completamente que finge ser dor a dor que deveras sente. É preciso que se sinta. Eu, por exemplo, tenho que sentir vontade de falar esse texto que o Marquês fala e tenho que trazê-lo para mim. As pessoas dizem: “Ah, basta decorar”. Não. Não é decorar. É introjetar. É trazer para mim e ser uma espécie de advogado de defesa, aconteça o que acontecer.

Você se considera ousado pela coragem de escolher interpretar figuras controversas no palco, nas novelas e no cinema, e por desafiar o modus operandi em grandes canais de televisão?

Ou louco. Maluco, né? Eu acho que a loucura faz parte também do destemor. Um pouco de loucura. Você entrar em cena, como aqui [em O veneno do teatro], falando o que tem que falar, é um pouco de loucura. Mas também é maravilhoso quando o público recebe e reage.

*Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o ator Osmar Prado, realizada no Sesc Santana, em fevereiro de 2024.

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10 a 21 de abril de 2024

Cultura e saúde, conexões que estimulam pensamentos e práticas para o bem-estar físico, mental e social.

Em diversas unidades na capital, grande São Paulo, interior e litoral.

• PALESTRAS • FÓRUNS • EXIBIÇÕES INTERVENÇÕES • OFICINAS • CURSOS • VIVÊNCIAS sescsp.org.br/inspira
BATE-PAPOS
Adriana Vichi

cultura DE SAÚDE

Ter uma vida saudável é resultado da soma de atitudes individuais, de iniciativas de âmbito coletivo e de políticas públicas que priorizam o bem-estar

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Asaúde é a vida no silêncio dos órgãos”, defendia o francês René Leriche (1879-1955), um dos primeiros médicos ocidentais a se interessar pela dor física e por operações menos traumáticas em soldados mutilados durante a Primeira Guerra Mundial. Seu conterrâneo, o médico e filósofo Georges Canguilhem (1904-1995) dizia que saúde e doença eram duas faces de uma mesma moeda. Doença, para Canguilhem – que se notabilizou pela tese O normal e o patológico, de 1943 –, era a vida sendo contrariada. Ainda no século 20, com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948, o conceito de saúde foi definido não como a ausência de doenças, mas como um estado de completo bem-estar físico, mental e social.

Inúmeros são os fatores que impactam diretamente na saúde e na qualidade de vida das pessoas: excesso de trabalho, sedentarismo, problemas de sono e de saúde mental, entre outros. A OMS relata o aumento de peso em mais de um bilhão de pessoas no mundo, coincidindo com o também crescimento de ingestão de alimentos ultraprocessados, que vem subindo nos países de baixa e média rendas, como o Brasil, o que pode estar associado ao aumento de 50% no risco de morte por doenças cardiovasculares e de 20% no risco de óbito por qualquer causa. São exemplos que sinalizam a necessidade de se repensar nossos hábitos, valores e prioridades.

Segundo Nelson Filice de Barros, doutor em sociologia da saúde pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não se deve culpabilizar as vítimas, e sim sociologizar os eventos. “Saúde é uma questão social, coletiva. É também um exercício de poder, pois tem sido usada no controle de corpos, por meio da medicalização dos indivíduos. Temos olhado muito para os sintomas e esquecido de discutir as causas das doenças. Optamos, como Estado e sociedade ocidental, por um modelo médico prescritivo de exames e remédios”, analisa Filice de Barros, que é professor da Faculdade de Medicina da Unicamp, onde coordena, desde 2006, o Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde (Lapacis).

O especialista trabalha com o conceito de cultura de saúde, ao compreender que a saúde resulta de um conjunto de práticas, conhecimentos e costumes, um terreno de poder e de luta por sentidos, significados

e representações. “Quando pensamos em saúde, as pessoas realmente têm condições de escolher? Quantas vezes por semana conseguimos almoçar em casa e ingerir alimentos de qualidade? Sabemos que reduzir o açúcar, o sal, as gorduras saturadas e trans, o álcool, o tabagismo e o sedentarismo é fundamental, mas até que ponto podemos pôr tudo isso em prática no dia a dia? O Estado precisa promover políticas públicas de saúde e garantir também educação, transporte, segurança e lazer, que atingem diretamente nosso bem-estar físico e mental”, destaca o professor da Unicamp.

Uma cultura de saúde considerada saudável, portanto, caracteriza-se por hábitos e comportamentos que promovam a prevenção de doenças, a manutenção de um estilo de vida adequado e a busca por cuidados médicos quando necessário. Filice de Barros alerta, porém, que atualmente caminhamos no sentido contrário.

ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA

Não existe distinção entre saúde humana e saúde ambiental, preconizam autores como o indígena Ailton Krenak e o quilombola Antônio Bispo dos Santos (1959-2023), numa concepção contracolonialista e ancestral da vida e do universo. Alinhada a essa visão de mundo, a nutricionista e pesquisadora Bruna Crioula defende que existe uma conexão entre corpo, mente e mundo. “Eu sou a natureza, e a natureza sou eu. Minha saúde e meu bem-estar estão diretamente relacionados à saúde e ao bem-estar do planeta, dos seres vivos e não vivos. Para mim, a alimentação é um elo que nos lembra, diariamente, que somos orgânicos também”, explica Crioula, cujo trabalho se concentra em temas como alimentação ecológica, segurança alimentar e nutricional, nutrição socioambiental e biodiversidade alimentar.

Na opinião da nutricionista, o modo contemporâneo e hegemônico da produção de alimentos nos afasta dessa conexão e interdependência com a natureza. “Se os sistemas alimentares estão trazendo prejuízos e malefícios ao meio ambiente, automaticamente imprimiremos isso em nossos corpos e em nossa saúde, com o aumento dos casos de obesidade, diabetes, hipertensão etc. Vemos cada vez mais pessoas distantes do ato de cozinhar e de uma consciência ecológica que reflita sobre a própria alimentação. Infelizmente,

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Estilo de vida, hábitos e comportamentos que promovem a prevenção de doenças são alguns dos fatores que caracterizam a cultura de saúde.

Matheus José Maria

As condições de vida em uma cidade, como acesso à cultura, e serviços oferecidos à população impactam diretamente na saúde física e mental de seus habitantes: cena do espetáculo Lindy Hop: Um jazz para dançar, no Sesc Mogi das Cruzes, em 2023, pelo Circuito Sesc de Artes.

com o padrão de comportamentos e organização social das grandes cidades, temos a falsa sensação de que não fazemos parte da natureza”, pontua.

No entanto, Crioula vê a oportunidade de repensarmos essa relação e a forma como nos alimentamos. “Uma alternativa é buscarmos feiras agroecológicas, de pequenos produtores, hortas comunitárias, e respeitarmos a sazonalidade, ou seja, a época de cada alimento. Isso nos ajuda a sair da lógica acelerada do sistema e compreender os ciclos naturais”, afirma. Ela completa: “Chamo essa tomada de consciência de alfabetização ecológica, necessária para entendermos a importância da alimentação para a nossa saúde e para a transformação socioambiental de nossas realidades”.

A visão da nutricionista é compartilhada pela psicóloga e escritora guarani Geni Nuñez, doutora na área de ciências humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “À medida que compreendemos que nossa saúde é, necessariamente, coletiva,

desde a nossa inter-relação com os alimentos, água, vento e demais seres, repensamos, também, o peso da individualização desse processo”, diz. Citando a filósofa estadunidense Judith Butler, Nuñez acrescenta que há condições históricas e políticas (como o racismo, o capitalismo, a misoginia e outras opressões) que distribuem de modo desigual o acesso à alimentação, aos cuidados de saúde e ao tempo de qualidade para descanso. “Uma saúde que tenha a interculturalidade como guia abre espaço para o outro, para o diferente. Assim, nos tornamos mais fortes, pois toda nutrição coletiva se faz de diversidade, de concomitância, de floresta”, conclui a psicóloga.

SAÚDE URBANA

Nosso corpo sussurra para ser ouvido; às vezes, grita. Seja através de uma dor, um inchaço, uma coceira, um caroço, uma azia. Ou por meio de um formigamento, uma tontura, alterações no apetite, no ritmo intestinal,

Anderson Rodrigues
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saúde

José

Matheus

Maria na frequência cardíaca, no humor. Esse poderoso canal de informações pode sinalizar problemas de imunidade ou de saúde mental – cada vez mais frequentes –, como ansiedade, estresse, depressão e burnout. Pensando em macroestruturas, segundo o médico patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), as condições de vida em uma cidade e os serviços oferecidos à população também impactam diretamente na saúde física e mental de seus habitantes.

“Há uma década, comecei a ver além do corpo humano e enxerguei o tecido urbano. Compreendi que um CEP é capaz de alterar o curso de doenças crônicas e infecciosas, por exemplo. Sabemos como os vasos sanguíneos entopem por acúmulo de gordura e que células descontroladas causam câncer, mas isso não explica tudo. É preciso entender que respirar fumaça de veículos quatro horas por dia no trânsito equivale a fumar até três cigarros em 24h”, compara Saldiva. O professor foi membro dos comitês da

OMS que estabeleceram padrões de qualidade do ar e definiram o potencial carcinogênico da poluição atmosférica. De acordo com Saldiva, quando falamos em território, não nos referimos apenas ao lugar onde as pessoas moram, mas onde trabalham, frequentam e por onde transitam. “Isso tudo passa pelo acesso a tratamentos de saúde, à capacidade de os indivíduos se cuidarem e serem cuidados. Devemos separar componentes biológicos, genéticos, emocionais e territoriais. E a gestão dos territórios, muitos deles dominados pelo setor imobiliário e pelo crime organizado, depende de políticas públicas complexas”, avalia o patologista, que em 2018 apresentou o programa Urbanite, da TV Cultura, sobre obesidade, poluição, contagiosidade e doenças mentais.

Para Saldiva, a saúde humana necessita de relações afetivas e sociais, de cidadania e da participação de famílias, instituições educacionais e empresas para existir e se manter em equilíbrio. “As questões que mais me preocupam, atualmente, são a saúde mental,

O acesso a bens culturais e a iniciativas de lazer também contribuem para uma vida mais saudável: público durante a exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, que esteve em cartaz até março no Sesc Belenzinho.

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o aumento nas taxas de suicídio entre adolescentes e idosos, e a epidemia de solidão [algo tão sério que a OMS colocou o combate como prioridade até 2030]. Algumas pessoas acham que têm cinco mil amigos nas redes sociais, mas no fundo não têm nenhum. Estamos vivendo mais e precisamos nos reinventar em atividades conjuntas, para termos motivação de levantar a cada manhã”, enfatiza.

Para que esse cenário mude, “as cidades também têm que colaborar em termos de saúde, segurança, equidade e infraestrutura, enquanto nós fazemos a nossa parte: convivemos e ocupamos ruas, calçadas, parques e praças”, como defende Paulo Saldiva. “Usufruímos do benefício que é habitar cidades diversas, polimorfas e ricas em possibilidades de encontros. Infelizmente, muita gente só reavalia hábitos após sair de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou quase perder a vida. Mas podemos começar desde já”, acrescenta.

CARPE DIEM

Entre as atitudes, práticas e comportamentos que podem nos conduzir a uma vida mais saudável, estão o riso e a máxima latina do carpe diem (aproveite o dia). Segundo o psiquiatra e bacharel em filosofia Daniel Martins de Barros, autor de livros como Viver é melhor sem ter que ser o melhor (Sextante, 2023) e Rir é preciso: Descubra a ciência por trás do humor e aprenda a usá-lo para atravessar períodos difíceis e criar relações mais próximas (Sextante, 2022), a pandemia de Covid-19 não aumentou expressivamente os transtornos psíquicos, mas colocou nossa saúde mental em primeiro plano.

“A conclusão a que chego nos dois livros é a de que o sentido da vida se dá nas conexões que fazemos, nas relações humanas e nos afetos. O ser humano não nasceu para ficar isolado. Quem se apartava das tribos nômades morria, e quem tinha o desejo de ficar junto aos demais sobrevivia. Vários estudos demonstram que manter vínculos verdadeiros é fator de bem-estar, qualidade de vida, longevidade e proteção emocional. A solidão, portanto, é adoecedora, um grave problema de saúde pública. Precisamos de relacionamentos reais e efetivos, do olho no olho, de redes de apoio”, pondera.

Em sua obra mais recente, o doutor em ciências pela USP e professor colaborador do Departamento de

Psiquiatria da FMUSP faz um convite à autorreflexão. Quais são os valores que realmente importam para você? O que faz sentido na sua vida? O que o(a) aproxima da vida que deseja ter? “A cultura da cobrança e da excelência também é adoecedora, assim como a solidão. Não tenho nada contra promoções, medalhas de ouro ou pessoas que querem ser as melhores em tudo, mas, se apenas esse comportamento tiver valor na sociedade, torna-se escravizante. A vitória – pelo trabalho – não é a única coisa que importa”, destaca Martins de Barros.

Ainda de acordo com o psiquiatra, saúde mental, família, descanso e lazer também devem ser valorizados. “O burnout, por exemplo, é resultado de uma estrutura opressora, em que os funcionários

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Mirella Ghiraldi

mais disponíveis e engajados são os que mais sofrem. Acredito na importância do agora, da presença, da desaceleração. Além disso, para termos mais saúde mental e um sono de qualidade, a atividade física é transformadora”, recomenda.

Já o neurologista Fabiano Moulin de Moraes, especialista em cognição e demência pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), complementa que até 90% dos casos de acidente vascular cerebral (AVC) e até 50% dos registros de demências poderiam ser evitados com estratégias de prevenção. O médico acredita na união de seis pilares para a obtenção de uma melhor saúde: alimentação, atividade física, sono, conexões sociais, manejo do estresse e redução de cigarro,

bebidas alcoólicas e drogas. “A saúde é um privilégio silencioso e escondido, um jogo de longo prazo. Um efeito colateral de coisas que, à primeira vista, parecem muito diferentes do que você está buscando. O que aparenta mais confortável e gostoso agora: comer salada ou um sanduíche ultraprocessado? Ficar no sofá ou ir para a academia? Subir de elevador ou de escada? Doenças e problemas no envelhecimento, A prática de atividades coletivas, como esportes, yoga e outras iniciativas, promove laços sociais e contribui para a saúde, o bem-estar e a longevidade.

saúde

em geral, são fruto de escolhas feitas anos atrás”, alerta. Moraes entende que muitas questões não são de responsabilidade apenas dos indivíduos, mas de todo o funcionamento da sociedade. “Mesmo assim, somos corresponsáveis pela nossa saúde”, reforça.

Segundo o neurologista da Unifesp, nosso cérebro é treinado para sentir prazer imediato e, por isso, somos bombardeados por fugas e estímulos que nos inundam de dopamina (o hormônio da felicidade), como redes sociais, junk food (alimentos de baixo valor nutricional e altos níveis de açúcar, gordura e sódio), drogas lícitas e ilícitas e jogos de azar. “Conseguimos enganar nossa mente por um tempo, mas isso não se sustenta. Estamos confundindo prazer com felicidade e com propósito. Prazer é atalho; propósito é uma construção saudável. O resultado [do atalho]: acabamos adoecendo”, finaliza Moraes.

Para vivermos mais e melhor, o médico geriatra Marcel Hiratsuka, do Hospital das Clínicas da FMUSP, destaca que a ciência considera fatores genéticos, hábitos e estilo de vida, doenças prévias e questões ambientais, entre outras. “Pessoas longevas, saudáveis e felizes são, em geral, mais ativas e independentes, continuam

contribuindo socialmente após a aposentadoria, seja em igrejas, trabalhos voluntários ou dentro da família. Além disso, sentem orgulho de envelhecer e de terem transformado experiências, que muitas vezes se basearam em esforços e sacrifícios, em algo significativo”, afirma o médico, responsável pelo Centro de Desenvolvimento para Promoção do Envelhecimento Saudável, da Prefeitura de São Paulo. O acesso a bens culturais e a prática de atividades coletivas, como esportes, dança e outras iniciativas de lazer também pode ajudar as pessoas a levarem uma vida mais saudável. Segundo os especialistas entrevistados, as artes aumentam nossa sensibilidade e ajudam a inventar novos e mais potentes modos de vida. Dessa forma, nada devem à ciência e à medicina em termos de produção e promoção da saúde.

O psiquiatra Daniel Martins de Barros reforça que as atividades culturais ajudam a desenvolver vocabulário emocional. “As artes e o lazer melhoram nossa capacidade de discernimento, aprofundam e amadurecem nossa visão, nos instrumentalizam para identificar certas coisas. Nos desaceleram, promovem conexões. São verdadeiras áreas verdes da saúde mental”.

A conexão entre corpo, mente e natureza exerce um papel fundamental na integração entre saúde humana e ambiental.
Gustavo Castellon
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saúde

para ver no sesc / saúde

INSPIRE-SE

De 10 a 21 de abril, Sesc São Paulo realiza a sétima edição do Inspira – Ações para uma Vida Saudável, que reúne quase 200 atividades, como cursos, bate-papos e intervenções artísticas

No mês em que se celebra o Dia Mundial da Saúde, comemorado em 7 de abril – data que também marca a fundação da Organização Mundial da Saúde (OMS), há 76 anos –, o Sesc São Paulo realiza a sétima edição do projeto Inspira - Ações para uma Vida Saudável. Com o tema “Cultura de Saúde”, a edição 2024 acontece entre 10 e 21 de abril, em 38 unidades da instituição no estado.

Segundo Fernando Andrade de Oliveira, que integra a Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo, o Inspira propõe a discussão sobre as culturas de saúde a partir de cursos, oficinas, palestras, workshops, vivências, feiras, fóruns, bate-papos, aulas abertas e intervenções artísticas. A programação estabelece conexões entre saberes, práticas e territórios e amplia o olhar para a promoção da saúde dos indivíduos e do bem-estar coletivo. “Vamos tratar de uma dimensão da saúde relacionada à sociabilização e chamar a atenção para que as pessoas se comprometam, consigo mesmas e em conjunto, com escolhas e estilos de vida em prol da saúde, em conexão com a natureza. Se está difícil arranjar tempo, propomos reorganizá-lo para termos mais momentos de respiro e descompressão”, completa.

Confira alguns destaques da programação:

RIBEIRÃO PRETO

Fórum Regional de Saúde do Trabalhador – Empresas Saudáveis O evento reflete sobre a cultura de saúde nas organizações, estimulando hábitos saudáveis e sensibilizando o público para a importância da promoção da saúde e do bem-estar no dia a dia. Com Alberto Ogata e Samia Simurro. Dia 10/4, quarta, das 8h às 12h. GRÁTIS.

SANTANA

Corpos plurais: Saúde na perspectiva da diversidade Bate-papo com Andreone Medrado, Fábio Passos, Júnior Ahzura e Letizia Patriarca sobre a pluralidade cultural, étnica e histórica dos corpos, além das potencialidades e opressões que os envolvem. O objetivo é fomentar novas perspectivas para os conceitos “saúde” e “saudável”. Dia 11/4, quinta, das 19h30 às 21h30. GRÁTIS.

BELENZINHO

Cultivando um jardim medicinal Oficina com a bióloga e

herbalista Gabi Pastro, que ensina a cultivar uma horta de ervas frescas e aromáticas em casa, com dicas sobre escolha do lugar de plantio, rega, adubação, luminosidade, colheita e armazenamento.

Dia 13/4, sábado, das 10h às 13h. GRÁTIS.

AVENIDA PAULISTA

Meditação com tambores

Vivência com Monica Jurado que propõe uma experimentação de diferentes sensações por meio da música e do som de tambores xamânicos.

Dia 14/4, domingo, das 17h às 18h30. GRÁTIS.

SANTOS

Saúde e axé – Música, dança e ancestralidade Oficina de coreografia afro-brasileira com Vitor da Trindade e Elis Trindade, ao som de ritmos como maracatu, jongo, samba-reggae, hip-hop, afoxé e axé music. Dia 21/4, domingo, das 10h às 18h. Inscrições de 10 a 19/4. GRÁTIS.

Mais informações em sescsp.org.br/inspira

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Folhapress

eterno APRENDIZ

Na corda bamba entre o amor e a dor, Gonzaguinha imprimiu na música brasileira sua fé num futuro utópico

Tal como um prisma, elemento óptico e geométrico que, embora transparente, é capaz de refletir a luz que o atravessa, a vida do cantor e compositor Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha (1945-1991), foi dotada de ângulos distintos. Até a segunda metade da década de 1970, o Brasil conheceu apenas um deles: o do intérprete e letrista denso, sisudo e um tanto sombrio, características que lhe renderam o apelido de “cantor rancor”. No Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira (2006), o verbete dedicado ao artista reforça essa visão, em crítica presente na publicação e assinada pelo jornalista Okky de Souza: “A maior parte do público sempre associou Gonzaguinha às músicas de protesto e de resistência à ditadura militar. Colaborava para isso, além de canções raivosas como "Comportamento geral" (1973), a própria imagem cultivada pelo compositor, carrancudo e dono de um mau humor folclórico na MPB. Mesmo depois que a ultrarromântica "Explode coração" (1969) se tornou um enorme sucesso na regravação de Maria Bethânia [no disco Álibi, de 1978], ele não deixou de encarnar o eterno militante estudantil”, descreveu Souza.

Autor de canções interpretadas por grandes nomes da música brasileira, como Elis Regina (1945-1982) e Maria Bethânia, Gonzaguinha escreveu sobre o amor, a dor e o sonho de ser feliz.

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O processo de reabertura política do país, no início dos anos 1980, fez emergir uma outra faceta do cantor –esta, por sua vez, festiva, vivaz e em atávica sintonia com os ventos democráticos que se aproximavam. É de Gonzaguinha algumas das odes à esperança por dias melhores que embalaram o período, como os versos da canção "E vamos à luta" (1980). Nela, exaltou: “Eu vou à luta com essa juventude / Que não corre da raia a troco de nada / Eu vou no bloco dessa mocidade / Que não tá na saudade e constrói a manhã desejada”. Uma atmosfera que atesta a força de sua arte engajada, e é revisitada no álbum Viver Gonzaguinha, lançado em 2023, pelo Selo Sesc [Leia mais em Sem a vergonha de ser feliz]. O disco, ancorado no samba, passeia pela vertente mais luminosa do herdeiro do cantor, compositor e sanfoneiro Luiz Gonzaga (1912-1989).

RAÍZES E FRUTOS

Pai e filho compartilhavam o amor à música. Mas, antes de ganhar notoriedade como artista, Gonzaguinha atravessou períodos de turbulência originados em seu núcleo familiar – que o acompanhariam em boa parte da vida adulta. Aos dois anos de idade, perdeu a mãe, a cantora e dançarina Odaléia Guedes dos Santos (1925-1948), vítima de tuberculose. Gonzagão, outra vez casado, distanciou-se do filho pois a nova esposa rejeitava o menino. A criação do garoto ficou a cargo de seus padrinhos de batismo, o casal Leopoldina de Castro Xavier e Henrique Xavier Pinheiro. Gonzaguinha cresceu no Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, região central da capital fluminense.

Uma infância, portanto, fisicamente longe das paisagens sertanejas enaltecidas nos versos do rei do baião, porém repleta do afeto da família postiça. Foi com o padrinho, exímio violonista, que Gonzaguinha aprendeu a tocar o instrumento. A primeira composição, “Lembranças da Primavera”, logo veio aos 14 anos. Na época, o cantor viveu uma das conflituosas tentativas de reaproximação com o pai. Preocupado com os gestos de rebeldia e indisciplina do jovem, Gonzagão enviava o adolescente periodicamente a colégios internos, cuja rigidez aumentava ainda mais os desentendimentos e a hostilidade entre os dois. Anos mais tarde, nos versos de "Odaléia" (1979), homenageou a mãe. “Minha cantora esquecida das noites brasileiras, Te amo / Compositora esmagada dessas barras brasileiras / Te amo.”

A maior parte do público sempre associou Gonzaguinha às músicas de protesto e de resistência à ditadura militar

Okky de Souza, pesquisador, no Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira (2006)

ARES DE ALEGRIA

Foi na cena universitária carioca do final dos anos 1960 que Gonzaguinha deu os primeiros passos da carreira. Estudante de economia da Universidade Cândido Mendes, o artista integrou o Movimento Artístico Universitário (MAU), sediado no bairro da Tijuca. Formado também pelos compositores Aldir Blanc (1946-2020) e Ivan Lins, entre outros nomes, o grupo recebia, eventualmente, artistas como Milton Nascimento, Ney Matogrosso e Emílio Santiago (19462013). A fama do movimento, no entanto, só veio com a participação no Festival Universitário de Música Popular, realizado entre os anos 1968 e 1971, na extinta TV Tupi. Com o sucesso conquistado no evento, seus

bio

integrantes apareceriam com frequência no programa semanal Som Livre Exportação, exibido na TV Globo e produzido pelo jornalista e crítico musical Nelson Motta.

No comando do espetáculo televisivo, que revelou ao país uma nova geração de músicos, estava, além de Ivan Lins, a cantora Elis Regina (1945-1982). Segundo o projeto Memória Globo, a atração pretendia oferecer uma visão panorâmica da música brasileira. “Aplaudido pela crítica, revolucionou os musicais de televisão ao romper com a fórmula do programa de auditório, intercalando depoimentos de personalidades e recolhendo opiniões de populares, o que imprimia um dinamismo próprio a cada número (...) e quebrava a imobilidade tradicional dos demais programas do gênero”, descreve o projeto.

GRITO DE ALERTA

Embora a intenção do movimento universitário tenha sido o de criar músicas de forma livre, mais descontraída e despojada, o contexto sociopolítico do país também potencializou a evidente voz crítica de Gonzaguinha. A partir de 1973, com o lançamento do seu primeiro disco, Luiz Gonzaga Jr., ele teve, ao todo, 54 letras vetadas pelos censores do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Estima-se que o órgão tenha analisado mais de 70 de suas composições. Quando, em 1975, Gonzaguinha passou a gerir a própria carreira, tornou-se um dos primeiros grandes artistas do país a abraçar a independência empresarial. Anos mais tarde, em 1986, fundou o selo Moleque, pelo qual gravou os discos Corações marginais (1988) e Luizinho de Gonzagão Gonzaga Gonzaguinha (1990).

U. Dettmar / Folhapress
Foi em festivais de música e programas de televisão, como Som Livre Exportação, produzido pelo crítico musical Nelson Motta, que Gonzaguinha popularizou seu trabalho.
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O Dina

Teu menino desceu o

São Carlos

Pegou um sonho e partiu

Pensava que era um guerreiro

Com terras e gente a conquistar

Havia um fogo em seus olhos

Um fogo de não se apagar

Trecho da canção "Com a perna no mundo", de Gonzaguinha.

A historiadora Gabriela Cordeiro Buscácio aponta que, apesar da massificação da indústria de bens culturais que a década de 1980 apresentou, tanto a MPB engajada quanto os roqueiros brasileiros mantiveram espaços de criação e de disputas que traduziam o comportamento e o modo de vida de gerações. É o que ela relatou na tese de doutorado O tempo não para: a década de 1980 através de Gonzaguinha e Cazuza, apresentada na Universidade Federal Fluminense, em 2016. “A geração do AI-5, que era jovem durante fins da década de 1960 e nos anos seguintes, cantava sua experiência com a vida política do país ainda focada na canção engajada bossa-novista. Gonzaguinha foi um importante exemplar desse grupo. A juventude da década de 1980, que havia nascido já durante a ditadura militar, tinha uma desesperança com o fim das utopias, se diferenciando da geração anterior”, analisou a pesquisadora no estudo.

VIDA DE VIAJANTE

Ao aliar trabalhos de caráter mais contestatório, como as canções “Pobreza por pobreza” (1969) e “Comportamento geral” (1973), a um repertório repleto de gravações de aspecto romântico, como “Começaria tudo outra vez” (1976), o músico ganhou as rádios e emplacou diversos sucessos nas vozes de intérpretes como Zizi Possi, Alcione, Fagner e Simone. A cantora Maria Bethânia foi a artista que mais gravou suas músicas até hoje, segundo dados do Ecad, entidade brasileira responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos autores. O autor do clássico “O que é o que é”, um hino do samba desde 1982, também foi reconhecido pelo talento nas cordas, conforme recordou o cantor, compositor e sanfoneiro Dominguinhos (1941-2013), em entrevista para o site Gafieiras, em 2011.

“O Gonzaguinha era um violeiro, bom instrumentista, e sempre escrevia muito. E eu me lembro que uma vez em Exu (PE), ele estava lá e começou a cantar umas coisas dele. Eu digo: ‘Ô, Luiz, por que você não toca violão no show? Você toca muito bem’. ‘Ah, você acha que eu toco bem?’. ‘Acho, rapaz, e ninguém vai saber acompanhar as suas coisas como tu mesmo!’. Aí ele passou a tocar o violão, rapaz, e tinha uma harmonia bonita”, rememorou. Ainda no depoimento, Dominguinhos apontou as diferenças entre os Gonzagas, dos quais foi amigo por toda a vida. Finalmente, a paz entre pai e filho foi selada em 1979, quando fizeram, juntos, o histórico espetáculo Vida de Viajante, com o qual excursionaram pelo país e puderam, enfim, estabelecer uma amizade que perdurou até a morte do sanfoneiro.

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Faceta sambista de Gonzaguinha foi registrada em disco lançado pelo Selo Sesc em 2023, com o músico Sombrinha e artistas convidados.

SEM A VERGONHA DE SER FELIZ

Disco Viver Gonzaguinha celebra o legado

sambista do filho do rei do baião

Comunidade que viu nascer a primeira escola de samba do Rio de Janeiro, a Deixa Falar, o Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, foi palco das travessuras de infância do menino Gonzaguinha. Foi lá, também, que o artista despertou para o violão, a composição e vivenciou os primeiros contatos com o mundo do samba – estilo musical pelo qual tinha devoção. Ainda que não seja considerado um sambista, tem boa parte de sua obra carregada de elementos do ritmo, homenageado no álbum Viver Gonzaguinha, lançado pelo Selo Sesc. Projeto idealizado por Jair Netto e produção musical de Carlinhos 7 Cordas, o disco tem como intérprete principal

o sambista, cantor e compositor Sombrinha, um dos fundadores do grupo Fundo de Quintal.

Um total de 14 faixas compõe o disco, começando com “Bom dia” (1985), que reúne em coro as vozes de Martinho da Vila, Elba Ramalho, Criolo, Larissa Luz, Vidal Assis, Yvison Pessoa e Zélia Duncan. Já em “Fala Brasil” (1981), interpretada por Sombrinha ao lado de Yvison Pessoa, Gonzaguinha pede para o país “levantar, mostrar seu corpo, sua voz e sua garra”. Um dos pontos altos do disco é o baião “Pense n'eu" (1984), em releitura de Elba Ramalho, e a atemporal “O que é o que é”, escolhida como tema do samba-enredo da Escola Império Serrano, em 2019, no Rio de Janeiro.

SELO SESC

Viver Gonzaguinha (2023)

Com Sombrinha e artistas convidados

Ouça nas plataformas de streaming, no Sesc.Digital e, em CD, nas lojas Sesc. para

Bruna Damasceno (acima); Alexandre Calderero/Sesc (abaixo)
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ver no sesc /

gráfica

UMA SAGA

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romaria, estudo do artista Emerson Rocha para empena de entrada do Sesc Pinheiros. Acrílica, nanquim, lápis de cor, waji e pigmento ouro sobre papel kraft.

AFRO-ATLÂNTICA

Premiado livro Um defeito de cor, que inspira exposição em cartaz no Sesc Pinheiros a partir deste mês, reflete sobre identidade, escravidão e racismo

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Emerson Rocha

Eu era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram (...). E assim foi até o dia em que comecei a me achar bonita também, pensando de um modo diferente e percebendo o quanto era parecida com a minha mãe”. Essa passagem do livro Um defeito de cor (Record, 2006), da mineira Ana Maria Gonçalves, apresenta pensamentos e sensações da protagonista Kehinde, uma mulher africana que é trazida escravizada para o Brasil ainda criança, no século 19, consegue obter sua liberdade, sobrevive como quituteira na Bahia, volta para a África e, ao fim da vida, retorna ao Brasil para encontrar seu filho. Ao longo da travessia, a personagem narra, em primeira pessoa, uma história marcada por lutas, mortes, violências e escravidão.

Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em julho de 2023, a escritora declarou que sua obra mais conhecida foi, em primeiro lugar, algo que ela gostaria de ter lido por não ter achado nada do gênero publicado. Também disse: "O livro ajudou a me entender, ao estudar a História, de onde a gente vem, a população afro-diaspórica. Esse arquivo a gente traz no corpo”. Segundo Gonçalves, foram cinco anos de trabalho, incluindo dois de pesquisa, um de escrita e dois de reescrita. “O racismo, como instrumento político do capitalismo, coloca essa população como tábula rasa para construir essa imagem romântica que os europeus tinham do Novo Mundo”, destacou na entrevista.

A protagonista Kehinde é inspirada em mulheres negras reais, como a ativista Luiza Mahin, trazida à força da África ao Brasil, e que teria protagonizado a luta abolicionista no século 19. Para criar essa fabulação, Ana Maria Gonçalves se baseou em documentos, como jornais e revistas de época, testamentos, cartas de alforria e de amor. O enredo de Um defeito de cor

também serviu de pano de fundo, em 2022, para uma exposição homônima que chega neste mês ao Sesc Pinheiros [Leia mais em Literatura exposta].

Segundo Marcelo Campos, um dos curadores da exposição, ao lado de Amanda Bonan e Ana Maria Gonçalves, a mostra é dedicada a um público que tenha lido o livro ou não. “Dividimos o espaço em uma grande roda com dez núcleos, em referência aos dez capítulos de Um defeito de cor. Começamos com artes africanas, pois a obra também se inicia lá. A maioria (90%) dos artistas participantes é negra e está em atividade. Abordamos temas como travessia do Atlântico, escravidão, empreendedorismo negro, amores, sororidade, religião, luto e lutas”, explica Campos.

O curador conta que leu o livro em 2020 e ficou muito impressionado com a pesquisa histórica por trás da narrativa. “A exposição traz o imaginário da obra, um mergulho nesse universo de orixás, árvores sagradas e baianas quituteiras, por meio de interpretações dos artistas”. A curadora Amanda Bonan explica que ficção e realidade se misturam na exposição. “A gente parte do ficcional, sem pretensão de ser algo biográfico. O grande lance é manter o público na dúvida. Inclusive, esta é uma reivindicação do movimento negro: o direito à fabulação, à invenção”, ressalta. Segundo Bonan, a escritora se inspirou em uma carta que Luiz Gama escreveu para a mãe, Luiza Mahin, e a exposição apresenta um vídeo em que o ator Lázaro Ramos lê esse documento. “A verdadeira carta é do filho para a mãe, foi ele quem passou a vida toda buscando por Mahin. Ana Maria, então, constrói e adensa essa personagem a partir da descrição de Gama”, destaca Bonan. Para a curadora, essa é uma exposição sobre o Brasil colonial do século 19, “e como as mulheres negras viviam nesse ambiente de racismo, exclusão, espiritualidade, festas, força e resistência”, resume.

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Fluxo e refluxo (barco de açúcar) (2021), de Tiago Sant'Ana. Fotografia / pigmento mineral sobre papel de algodão. Tiago Sant'Ana

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Série I "Afetocolagens" - Desconstrução de visualidades negativas em corpos negros (2021), de Silvana Mendes. Colagem digital impressa em Papel Hahnemühle Photo Rag.

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Silvana Mendes

Hahnemühler

Série II "Afetocolagens" - Reconstruindo narrativas visuais de negros na fotografia colonial (2022), de Silvana Mendes. Colagem digital impressa em Papel
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Photo Rag. Silvana Mendes

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Nan Xwèdehum Agaja, Abomei (2009), de Márcio Vasconcelos.
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Fotografia digital colorida.
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Márcio Vasconcelos
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Da esquerda para a direita: Caruru (2022), Tato Essencial (2022) e Tumbeiro (2022), de Goya Lopes. Serigrafia em tecido 100% algodão e impressão digital sobre tela.
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Júpiter (2017), de Äline Besourö. Serigrafia sobre algodão.
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George Magaraia
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Fabio Souza
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Agô (2022), de Gabriella Marinho. Instalação / cerâmica, barro, áudio performance.

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O abraço d'Oxum (2022), de Pandro Nobã. Acrílica sobre tela.
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Marina Alfaya
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para ver no sesc / gráfica

LITERATURA EXPOSTA

Sesc Pinheiros recebe a exposição Um defeito de cor com obras inéditas e peças do desfile de 2024 da Escola de Samba Portela

Inspirada na premiada obra literária da escritora Ana Maria Gonçalves, a exposição Um defeito de cor chega ao Sesc Pinheiros a partir de 25/4. A mostra, idealizada e concebida pelo Museu de Arte do Rio (MAR), com parceria institucional da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), conta com mais de 370 obras de arte. Entre elas, desenhos, pinturas, esculturas, fotografias, vídeos, áudios, tecidos, objetos e instalações, feitas entre os séculos 19 e 21 por cerca de 140 artistas brasileiros e internacionais, sobretudo africanos.

A itinerância de São Paulo apresenta obras inéditas, como um retrato de Ana Maria Gonçalves feito pela artista carioca Panmela Castro e um grande mural na entrada da unidade – pintado pelo artista Emerson Rocha. A mostra também inclui fantasias, adereços e croquis do desfile de

2024 da Escola de Samba Portela, que homenageou o livro Um defeito de cor em seu sambaenredo, sob o comando dos carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues. De acordo com Marcelo Campos, que assina a curadoria da mostra ao lado de Amanda Bonan e Ana Maria Gonçalves, o público ainda verá, pela primeira vez, a pintura criada pelo artista paulistano Moisés Patrício em que retrata uma cena de terreiro de candomblé, e esculturas do paraibano Thiago Costa, que utiliza ferramentas e instrumentos religiosos de terreiro em seu trabalho.

A arquiteta Aline Arroyo assina a expografia, que contou com a consultoria de Ayrson Heráclito, e a paisagem sonora é do pesquisador e músico Tiganá Santana, em colaboração com Jaqueline Coelho. Segundo Juliana Braga de Mattos,

gerente da Gerência de Artes

Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, a realização de Um defeito de cor resulta de um ativo trabalho de parcerias com outras instituições culturais do país, a exemplo do MAR. “Esse projeto é motivo de grande entusiasmo ao permitir que novos públicos visitem uma exposição sobre essa obra literária, considerada fundamental para entender a diáspora africana e suas resistências no Brasil, evocadas em obras e instalações de artistas visuais contemporâneos”, destaca.

PINHEIROS

Um defeito de cor

Curadoria de Ana Maria Gonçalves, Marcelo Campos e Amanda Bonan. De 25 de abril a 1º de dezembro. Terça a sábado, das 10h30 às 21h. Domingos e feriados, das 10h30 às 18h. GRÁTIS.

Sobre todas as orações a Conquista (2019), de Guilherme Almeida. Tinta óleo e grafite sobre tela.
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Guilherme Almeida

CHORO mulheres no

Novas gerações de cantoras e instrumentistas seguem legado das precursoras e mantêm vivo este patrimônio cultural brasileiro

Poucas coisas têm tanto a cara do Brasil quanto uma roda de choro. Uma das primeiras manifestações instrumentais da música popular brasileira, o gênero surgiu no final do século 19, no Rio de Janeiro, como uma expressão urbana, criada a partir da fusão de elementos e músicas estrangeiras, principalmente portuguesas e africanas. Ao se popularizar, o choro atravessou os séculos, multiplicou-se em rodas formadas por todo o país e segue presente. No último dia 29 de fevereiro, o choro foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do país, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Referência da nova geração do choro, a pandeirista Roberta Valente dedica-se à música há 35 anos e ainda atua como produtora, professora e pesquisadora de música popular brasileira.

Adriana Vichi

Se, por um lado, é admirável que as tradições do choro venham sendo transmitidas de geração em geração, há quase 200 anos, por outro, desde meados de 1970, começou-se a se questionar certos costumes das rodas de choro. Um deles é a prevalência de músicos homens, o que torna esse um ambiente pouco convidativo para a participação e expressão de mulheres musicistas.

Ainda que esse gênero tenha tido como uma das principais expoentes a pianista, maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935), as mulheres tiveram que se esforçar para conquistar respeito e espaço como instrumentistas e compositoras. “A roda de choro sempre foi uma espécie de ‘clube do bolinha’. A presença feminina nesses ambientes chegou a ser rotulada como ‘auxiliar do marido’, ‘aspirante a cantora’, ‘tocadora de chocalho’ etc.”, relatou Anna Paes, cantora, violonista e pesquisadora, no artigo "A presença feminina no choro”, para o projeto Brasil Toca Choro, da TV Cultura.

A própria biografia de Chiquinha Gonzaga retrata a luta feminina para conseguir reconhecimento na cena da música popular brasileira. Arrojada, e por isso considerada subversiva, a pianista enfrentou inúmeros desafios ao romper com um casamento – numa época em que ainda não existia divórcio –, e, com isso foi afastada de seus filhos e familiares. Chiquinha passou, então, a dar aulas de piano para sobreviver até se tornar a primeira pianista do choro, consolidando o gênero ao lado de homens como Joaquim Callado (1848-1880), considerado o ‘pai do choro’.

Foi somente na primeira metade do século 20, como relembra Anna Paes, que o crescimento do movimento feminista mundial e a gradual mudança de percepção sobre o papel da mulher na sociedade permitiram que outras artistas pudessem projetar seus nomes como profissionais do choro. Entre elas, destacaram-se Tia Amélia (1897-1983), Lina Pesce (1913-1995) e Carolina Cardoso de Menezes (1913-2000).

Apesar de o choro ser essencialmente instrumental, uma brecha se abriu para a entrada das mulheres no canto ao longo do século passado. Elizeth Cardoso (1920-1990), Ademilde Fonseca (1921-2012), Zezé Gonzaga (1926-2008), Teca Calazans e Amélia Rabello são alguns dos nomes pioneiros. Já Dona Inah, Carmen Queiroz, Maria Martha, Ruth Eli, Dalva Torres e Kelly Rosa fazem parte do time de intérpretes contemporâneas do choro.

Como defende Maria Souto, flautista, professora e pesquisadora, a presença das mulheres neste gênero musical só começou efetivamente a mudar a partir da década de 1970. “Aconteceu uma mudança de paradigma e os instrumentos tocados por mulheres não se restringiam mais ao piano. Isso causou um retrato da mudança de costumes no choro, já que mulheres começaram a se arriscar a tocar instrumentos de todos os tipos, até então, dominados pelos homens."

DE 2000 PARA CÁ, PASSAMOS A VER UM NÚMERO CADA VEZ MAIOR DE MULHERES ATUANDO COM EXCELÊNCIA NA MÚSICA POPULAR. RODAS FORMADAS SOMENTE POR MULHERES É OUTRA MUDANÇA DE PARADIGMA NA CENA. Maria
pesquisadora 55 | e música
Souto, flautista, professora e

música

Luciana Rabello, com o seu cavaquinho, tornou-se a primeira mulher a integrar um conjunto regional profissional de choro, no Rio de Janeiro, em 1976. Assim como também fez Nilze Carvalho, que começou ainda menina, aos seis anos de idade, tocando cavaquinho e conquistando espaço nas rodas e na mídia. Em São Paulo, Jane do Bandolim inaugurou as rodas de choro em meados dos anos 1980, tornando-se referência para Roberta Valente, que apareceu e conquistou a cena pouco depois. “Nas últimas décadas, principalmente de 2000 para cá, passamos a ver um número cada vez maior de mulheres atuando com excelência na música popular. Rodas formadas somente por mulheres é outra mudança de paradigma na cena. Elas criam um novo capítulo na história do choro, ajudando a fortalecer e a dar visibilidade à crescente presença delas no gênero”, reflete Maria Souto. Na ativa desde 1994, Choronas é o primeiro grupo do gênero formado exclusivamente por mulheres e, desde então, não param de se multiplicar grupos femininos que vêm enriquecendo a cena do choro em todo o país.

COISA DE FAMÍLIA

No início dos anos 1980, o nome de Jane Silvana Corilov começou a circular pelas rodas de choro. “Tem uma menina tocando muito bem o bandolim”, dizia João Macacão, violonista 7 cordas e uma figura marcante na cena do choro paulistano. Não demorou

para que os caminhos se abrissem para a menina prodígio, que passou a ser conhecida como Jane do Bandolim. A instrumentista tinha apenas nove anos quando ouviu o pai tocar bandolim pela primeira vez. “Contra a vontade da minha mãe, que queria que eu fizesse aulas de piano ou de balé, comecei a ter aulas de bandolim com meu pai. Ele me ensinou um pouco de música sacra e erudita, até que, aos 11 anos, ganhei dele o vinil Vibrações, do Jacob do Bandolim [1918-1969]. Esse era o incentivo que eu precisava.”

Jane passou a fazer aulas de bandolim com um tio violonista. Depois, conheceu Walter Veloso, bandolinista que fazia parte, então, do Conjunto Atlântico, grupo representativo na cena do choro paulistano na segunda metade do século 20. “Com 16 anos, comecei a frequentar as rodas. Tomei muita bronca e ouvi comentários maldosos e machistas. Por outro lado, aprendi tudo que sei com eles. Também me senti acolhida.

Quando teve alguma provocação, eu só desabafava com meu pai.”

Tendo em vista essas dificuldades, a mãe da bandolinista custava em aceitar a escolha da filha. “Hoje eu entendo sua preocupação, afinal, só tinha eu de mulher no meio das rodas, né? Já meu pai, consciente da minha felicidade com o bandolim, dizia: ‘Desde quando a palavra de alguém vai ser mais forte do que você? Não estou te reconhecendo!’. Ele sempre teve razão. Eu sempre fui uma menina enxerida!”, brinca.

Com o tempo, Jane construiu uma sólida carreira nas rodas de choro e foi uma das poucas mulheres a liderar seu próprio grupo, em 1993, batizado de Jane do Bandolim e o Miado do Gato. Em 1998, foi intitulada “a rainha do bandolim brasileiro” pelo Jornal da Tarde e jornal O Globo. Apesar de abrir espaço para outras artistas, Jane conta que demorou um bom tempo até encontrar outras mulheres na roda. “Comecei a ver uma menina tímida tocando seu pandeiro. Pouco

Jane do Bandolim em apresentação pelo projeto Instrumental Sesc Brasil, no Teatro Anchieta, Sesc Consolação.

Maria
CréditoMatheus José
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depois, soube que era a Roberta Valente. Sinto muita alegria por ver tantas mulheres e alunas minhas, inclusive, dando show por aí. Quando alguma delas me pede um conselho, logo digo: ‘Ocupe o seu lugar e se preocupe em tocar bem’.”

UMA PUXA A OUTRA

Referência no choro e no samba de São Paulo, Roberta Valente tem uma trajetória de 35 anos de carreira como pandeirista, produtora, professora e pesquisadora de música popular brasileira. Ela é também uma produtora reconhecida por movimentar a cena, dando espaço para o trabalho de choronas e chorões das novas gerações. Neta de violonista, bisneta de bandolinista e filha de pais apaixonados pela música brasileira, Roberta começou a tocar violão aos 14 anos até que, aos 17, conheceu as rodas de choro. “Ali eu me encontrei e encontrei o meu mundo. Troquei o violão pelo cavaco, e logo me interessei pelo pandeiro. Eu era muito tímida e

gostei da ideia de tocar pandeiro, escondidinha no palco ou na roda”.

A ausência de mulheres no choro foi sentida desde o começo, mas Roberta pensava que eram as próprias mulheres que não queriam estar ali. “Eu era muito ingênua. Cheguei na roda deslumbrada, acreditando que qualquer uma poderia estar no choro, bastava querer. Só depois percebi o tanto de ‘sapo que tive que engolir’ para me manter naquele universo tão masculino”, desabafa. Um dos nomes mais admirados e respeitados na cena do choro, Roberta conta que outro ponto que a ajudou a circular pelas rodas foi o seu trabalho como produtora. “Sempre fui tão fanática pela música e pelos músicos, meus ídolos maiores, que nunca me conformei com os cachês aos quais eles se submetiam. Então, comecei a trabalhar para vender bem os shows deles. Fiz isso pensando em fortalecer o choro”, conta. Roberta também complementa que muita coisa mudou nesse cenário, apesar de ainda observar algumas

Importante nome do choro, Nilze Carvalho começou a tocar cavaquinho aos seis anos de idade.

resistências contra a participação das mulheres. “Infelizmente, o machismo ainda existe. Por outro lado, nunca vi tanta mulher tocando como vejo hoje. Comemoro muito esse momento e até penso que adoraria ter começado minha carreira agora”, constata.

ABRIR CAMINHOS

Uma das principais referências do pandeiro, além de percussionista e cantora, Xeina Barros reconhece a importância de instrumentistas que a antecederam. “Se encontrei as portas abertas para participar das rodas de choro, é porque a Roberta Valente e a Jane do Bandolim já tinham passado por elas. Eu faço parte de uma geração que tinha para onde mirar”.

Xeina começou a estudar pandeiro ainda criança, influenciada pelas rodas de samba que aconteciam na casa de sua avó, em Piracicaba, no interior de São Paulo. Aos 16, ganhou seu primeiro cachê e, aos 19, foi se profissionalizar no Conservatório de Música de Tatuí. Depois disso, mudou-se para a capital paulista, cidade que escolheu para construir sua carreira no choro.

A pandeirista também reconhece a importância das formações femininas. “Essas rodas compostas por mulheres são um espaço importante de acolhimento, até mesmo para estudos e ensaios. É onde eu digo para as mulheres mais novas que a gente tem que seguir o exemplo das pioneiras e não baixar a guarda”, arremata.

Valéria Martins
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para ver no sesc / música

CHORO EM CORO

De 23 de abril a 5 de maio, Sesc 24 de maio celebra várias gerações do choro

A partir do dia 23 deste mês, quando se comemora o Dia Nacional do Choro – data atribuída ao aniversário do maestro, músico e compositor Pixinguinha (1897-1973) – o Sesc 24 de Maio realiza a quinta edição do Choraço, com dezenas de apresentações, oficinas, audições e bate-papos. “Esse é um projeto que busca oferecer ao público um panorama do choro, respeitando a história e a constante evolução do gênero. Para isso, convidamos artistas e grupos que fazem referência aos clássicos, ao mesmo tempo em que apresentam arranjos, interpretações e vozes contemporâneas”, destaca Jáderson Porto, técnico de programação da unidade.

Nesta edição, as mulheres ganham destaque com Carmem Queiroz, que apresenta o espetáculo Choro cantado, Nilze Carvalho, que celebra os 40 anos do seu disco Choro de Menina, e Wanderléa, que apresenta o álbum Wanderléa Canta Choros

Na programação, a pandeirista Xeina Barros se apresenta com o grupo Água de Vintém.

(Selo Sesc, 2023). Também serão realizadas atividades formativas nos Centros de Música do Sesc São Paulo, nas unidades Consolação, Guarulhos e Vila Mariana, além de rodas e bailes gratuitos de choro, para crianças e idosos.

O choro também é destaque na programação do SescTV deste mês, às terças-feiras, 21h30, com a exibição de quatro episódios do Instrumental Sesc Brasil: Dedo de Moça, dia 2/4; Deborah Levy, dia 9/4; Marcela Nunes, dia 16/4; e Choronas, dia 23/4.

Confira destaques da programação:

24 DE MAIO

Choro Cantado

A cantora Carmen Queiroz celebra seus 40 anos de carreira no choro ao lado de Lula Barbosa e Maria Martha, com um repertório

que apresenta a poesia de letristas como Catulo da Paixão Cearense e Bello de Carvalho. Dia 24/4, quarta, às 20h.

Choro de menina – 40 anos

A cantora, instrumentista e compositora Nilze Carvalho apresenta um espetáculo instrumental, com seu cavaquinho e bandolim, em um repertório comemorativo às quatro décadas da série de discos Choro de menina, lançados entre 1981 e 1984.

Dia 3/5, sexta, às 20h.

Wanderléa canta choros

Wanderléa volta às suas origens musicais com show do disco homônimo lançado pelo Selo Sesc. Acompanhada pelo pandeiro de Roberta Valente, apresenta um repertório com canções de nomes como Joyce Moreno, Waldir Azevedo e Assis Valente, entre outros.

Dia 4/5, sábado, às 20h, e dia 5/5, domingo, às 18h.

Roda Água de Vintém

Um dos principais conjuntos de choro da atualidade, o Água de Vintém comemora a volta aos palcos com o show 10 anos de choro Com pandeiro de Xeina Barros, o quinteto apresenta repertório com obras tradicionais do choro, além de composições autorais. Dia 5/5, domingo, às 15h. GRÁTIS.

Confira a programação completa do Choraço, além de acessar uma playlist exclusiva do festival e um catálogo com o mapeamento das rodas de choro paulistanas, elaborado por Roberta Valente. sescsp.org.br/choraco

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Osmar Moura

A Fundação Bienal de São Paulo e o Sesc

apresentam a mostra itinerante

curadoria

Diane Lima

Grada Kilomba

Hélio Menezes

Manuel Borja-Villel

Em 2024, o programa de mostras itinerantes da 35ª Bienal de São Paulo leva recortes da exposição para diferentes cidades do Brasil e do mundo. Por meio da parceria com o Sesc, essa iniciativa chega a São José do Rio Preto e Campinas, permitindo novos encontros entre as obras e públicos cada vez mais amplos.

SESC RIO PRETO

até 28 de maio

SESC CAMPINAS

6 de junho a 8 de setembro

patrocínio master realização

FUNK Por trás

do

Ainda que o funk tenha nascido nos Estados Unidos e chegado ao Brasil na década de 1970, as diversas influências que atravessaram esse gênero musical a partir da década seguinte o alçaram a um lugar único na história da música brasileira. Julgado por melodias e letras capazes de provocar polêmicas, o funk brasileiro se tornou objeto de estudo na academia a partir dos anos 1980, com a dissertação de mestrado do antropólogo Hermano Vianna, que deu origem ao livro O mundo funk carioca (Jorge Zahar, 1988). Desde então, pesquisadores investigam o papel e a importância do funk, não só como estilo musical, mas como ferramenta de contestação do racismo e de desigualdades sociais.

Para o musicólogo e professor Thiago B. A. de Souza – conhecido nas redes sociais como Thiagson –, a universidade ainda não dialoga com aqueles que fazem parte da cena funkeira, o que pode gerar mais perspectivas enviesadas. “Muitos pesquisadores conseguem abordar o tema ignorando essa diferença de classe social favela/universidade. Ou muitas vezes, pesquisadores são coagidos pela dinâmica institucional da universidade a ignorar os

conflitos sociais surgidos pela simples presença do tema funk em uma pesquisa acadêmica”, observa Souza, que faz um doutorado sobre o assunto no departamento de música da Universidade de São Paulo (USP), além de ter escrito o livro Tudo que você sempre quis saber sobre funk… mas tinha medo de perguntar (Tipografia Musical, 2023).

Finalista do Prêmio Jabuti 2023 pelo livro O funk na batida: baile, rua e parlamento (Edições Sesc São Paulo, 2022), Danilo Cymrot ainda observa que o preconceito sofrido pelo funk é direcionado a outros gêneros musicais associados a jovens, negros, moradores de favelas e periferias. “Assim como o sertanejo, o forró eletrônico e o pagode romântico, o funk, muitas vezes, é taxado de ‘música pobre’. Os critérios que fazem um gênero musical ser considerado ‘pobre’, no entanto, variam de acordo com os diferentes valores dos diferentes grupos sociais.”

Afinal, por que o funk brasileiro incomoda tanto? E o que isso diz a respeito da sociedade contemporânea? Neste Em Pauta, Cymrot e Souza traçam caminhos para para uma compreensão dessa expressão cultural embalada por música e controvérsias.

Nortearia
em pauta 61

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Funk: expressão cultural, preconceitos e as várias faces da sociedade brasileira

Se o samba, há décadas, é vendido como símbolo da identidade nacional brasileira, nem sempre foi assim. No começo do século 20, sambistas, oriundos das camadas populares e negras da população, eram marginalizados ao ponto de serem presos, acusados de vadiagem, uma contravenção penal. Gêneros musicais que antecederam o samba, também fortemente associados aos negros, como o lundu, o maxixe e o jongo, eram acusados de terem coreografias e letras indecentes. Foi apenas na Era Vargas [entre 1930 e 1945] que o Estado passou a valorizar manifestações culturais populares como o samba, mas, ao mesmo tempo, tentando domesticá-las para adaptá-las às ideologias oficiais do governo: o nacionalismo, o trabalhismo e a democracia racial.

Da mesma forma, alguns artistas da chamada MPB, muito respeitados atualmente, chegaram a ser taxados de “descartáveis”, produtos de um “modismo” imposto pelo mercado e considerados muito inferiores a artistas de gerações que os antecederam. É recorrente, afinal – como Woody Allen mostrou no filme Meia-noite em Paris [Estados Unidos, 2011] –, o discurso que idealiza o passado e que denuncia de forma nostálgica uma suposta decadência cultural dos tempos atuais.

É nesse quadro que o repúdio que o funk causa em tanta gente deve ser compreendido. Muitas das acusações sofridas pelo funk estão presentes em outros gêneros musicais associados a um público bem específico: jovens, negros, pobres, moradores de favelas e periferias. Assim como o pagode baiano e o tecnobrega, o funk é acusado de fazer apologia ao crime, às drogas e ao sexo. Assim como o sertanejo, o forró eletrônico e o pagode romântico, o funk, muitas vezes, é taxado de “música pobre”. Os critérios que fazem um gênero

musical ser considerado “pobre”, no entanto, variam de acordo com os diferentes valores dos diferentes grupos sociais.

Uma música que valoriza mais o ritmo, a batida e a dança do que a letra e a harmonia pode ser a mais “rica” para se animar um baile, por exemplo. Ocorre que a diversão descomprometida pode desagradar grupos que veem no lazer de pobres um foco de caos social, pois questiona, ainda que não explicitamente, o papel a que os jovens pobres foram destinados, o trabalho precário. Da mesma forma, um espaço em que negros podem circular à vontade ganha um aspecto político em uma sociedade racista em que a circulação livre de negros pela cidade é interditada, haja vista as reações aos rolezinhos nos shopping centers de São Paulo. Já o funk ostentação, com letras que fazem apologia a marcas de luxo, apesar de ser acusado de alienado, questiona distinções sociais por meio do consumo e não deixa de expressar uma demanda de jovens pobres e periféricos por reconhecimento e visibilidade.

Dois dos subgêneros mais controversos do funk, um gênero não homogêneo, são o funk “putaria” e o funk de facção, ambos também conhecidos como funk “proibidão”. O primeiro, com letras explícitas sobre sexo, ainda quando cantado por mulheres, é acusado de ser machista, objetificando sexualmente as mulheres. Isso não impede que uma corrente do feminismo, que tampouco é homogêneo, veja cantoras de funk “putaria” como neofeministas, na medida em que cantam nas letras o desejo sexual de mulheres ou respondem na mesma moeda a letras de funk machistas. Ocorre, por outro lado, que muitos desses funks “neofeministas” são compostos por homens. Além disso, cantoras de funk se queixam que só encontram espaço no mercado ao cantarem sobre sexo. Não se pode esquecer, porém,

que o machismo está presente em diversos gêneros musicais por se tratar de um problema social que se reflete na cultura.

A controvérsia aumenta, ainda mais, quando se trata de funks “putaria” que fazem referência a “novinhas” ou que são cantados por MCs mirins, o que rende acusações de que o funk faz apologia à pedofilia, à erotização precoce ou à prostituição infantil. É importante salientar, no entanto, que uma prática comum no funk “putaria” e no de facção é “contar vantagem” por uma questão de status. Ou seja, não existe uma correspondência, necessariamente, entre o que é cantado e o que é vivido pelos MCs; e a forma como crianças têm o primeiro contato com relações sexuais é diferente, dependendo das condições materiais de vida.

A gravidez na adolescência, assim como o abuso do consumo de drogas (lícitas ou ilícitas) e a violência são problemas complexos, com múltiplas causas. Atribuí-los a um gênero musical ou ao espaço onde ele está mais presente – o baile – responde a uma demanda por soluções rápidas e fáceis, mas apenas simbólicas e ineficazes, tendo em vista que a proibição dos bailes, como já foi feito, não impede que esses problemas se manifestem em outros espaços.

O funk de facção é comumente acusado de fazer apologia ao tráfico de drogas. Seus defensores, no entanto, argumentam que ele apenas retrata a realidade das favelas ou que deve ser entendido como qualquer obra de arte baseada na realidade, mas que não se confunde com ela. Que proibi-lo equivale a “matar o carteiro”, e que os MCs cantam esse gênero de funk muitas vezes por não encontrarem espaço para cantarem, a não ser em bailes financiados por traficantes. Seja porque o mercado descarta rapidamente MCs, seja porque o Estado não cumpre com seu dever de garantir o direito ao la-

zer, seja porque o funk de facção faz sucesso entre jovens, que o encaram como um revide simbólico à violência policial ou uma forma de afirmação de orgulho coletivo territorial. O funk de facção ainda é um locus privilegiado para entender os valores difundidos pelas facções e a história não oficial de disputas e alianças entre elas.

Um dos principais objetivos do meu livro O funk na batida: baile, rua e parlamento foi mapear as diversas formas como o Estado responde ao fenômeno do funk. As disputas se dão entre poderes políticos diversos, dentro do mesmo poder e até mesmo dentro do mesmo governo ou partido. Ora os projetos de lei, leis e políticas públicas reconhecem o funk como manifestação cultural, procurando disponibilizar espaços públicos para que vigore; ora o restringem de forma discriminatória, por meio de legislação administrativa que impõe uma série de requisitos burocráticos para a realização dos bailes; ou o criminalizam por meio do enquadramento de MCs em delitos como os de apologia ao crime ou associação ao tráfico de drogas.

Por essas razões, tratar do funk é mais do que tratar apenas de um gênero musical. É tratar de temas como liberdade de expressão, o direito à cidade, racismo, juventudes e violência. Nesse sentido, o funk e a forma como o Estado lida com ele expõem as contradições e fraturas da sociedade brasileira.

Danilo Cymrot é doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo e autor de O funk na batida: baile, rua e parlamento (Edições Sesc São Paulo, 2022), finalista do Prêmio Jabuti 2023, na categoria Ciências Sociais.

Tratar do funk é mais do que tratar apenas de um gênero musical. É tratar de temas como liberdade de expressão, o direito à cidade, racismo, juventudes e violência.
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Funk é o espelho que a universidade precisa

POR THIAGO B.A SOUZA (THIAGSON)

Palavras vão ganhando novos significados conforme a sociedade muda e, frequentemente, vão se distanciando dos significados originais. “Funk”, no nosso Brasil, já não é mais associado diretamente a James Brown (1933-2006) ou Sly Stone. Muito antes do funk, o mesmo aconteceu com a palavra “bolero”, a partir do final do século 19. “Bolero” deixou de se referir a um antigo estilo musical espanhol de ritmo ternário (em três tempos, parecido com a valsa) e se tornou sinônimo de uma música sentimental latino-americana em ritmo binário – músicas completamente diferentes.

É por causa dessa atualização dos sentidos das palavras que muitas vezes esquecemos que “refletir” ou “reflexão” significa olhar para a própria imagem espelhada. Talvez por isso seja comum ouvir dizer que intelectuais (pessoas que refletem sobre o mundo) são narcisistas, adoram se olhar no espelho. Olhar para si mesmo, não com autoadmiração cega, mas com autocrítica, é parte do processo de entendimento do mundo. Quem somos nós nesse jogo?

Entendi cedo que a universidade de música é lugar de muito narcisismo e, contraditoriamente, pouca reflexão. “Falta autocrítica nesse lugar!”, é o que penso muitas vezes quando estou na universidade e vejo as pessoas e a instituição. O funk é o espelho que a universidade precisa. O funk é um objeto de estudo que reflete a própria universidade e as pessoas que lá estão.

pesquisam o funk. Muitos pesquisadores conseguem abordar o tema ignorando essa diferença de classe social favela/universidade. Ou muitas vezes, pesquisadores são coagidos pela dinâmica institucional da universidade a ignorar os conflitos sociais surgidos pela simples presença do tema funk em uma pesquisa acadêmica.

Contudo, abordar os conflitos e diferenças sociais entre quem faz funk e quem escreve sobre ele é o que tem se colocado como um obstáculo libertador da minha pesquisa e do meu trabalho. Sendo bem sincero, para mim é difícil tratar de funk. Tem tanto a ser falado antes de qualquer análise musicológica. Por isso, digo que minha pesquisa é estranha. Não estou na universidade olhando para o funk. Eu estou no funk olhando a universidade e olhando com estranheza.

Por isso, meu trabalho é estranho… é estranhador. A posição social de pesquisador me é estranha, a de funkeiro não. O que é questionável em uma universidade que o funk nos mostra? Não houve estudos musicológicos sobre o funk nos departamentos de música das universidades do nosso país até o final da primeira década do ano 2000. Isso é bizarro, pois o funk é, antes de tudo, música. E uma música de grande impacto social, por isso merece atenção. A pesquisa em música que ocorre nas universidades, e o ensino musical em conservatórios, não têm interesse algum (há até desprezo) pela música do mundo real, a música que é realmente ouvida hoje.

Música de verdade nesses lugares é música de concerto de tradição europeia, o que se chama popularmente de música clássica. Ou seja, a música do homem branco de uma tradição judaico-cristã heteronormativa que representou, historicamente, as igrejas, a aristocracia e a burguesia europeia – isso deixa as mentes vira-latas do nosso Brasil com muito tesão.

“A teoria musical é racista”, como afirmou o musicólogo norte-americano Philip Ewell no seu artigo Music theory and the white racial frame [em tradução livre, " Música, teoria e o enquadramento racial branco "], que causou polêmica em 2020. Só há espaço para ídolos brancos e uma concepção branca de música em universidades e instituições de ensino em pauta

Hoje faço um doutorado sobre funk no departamento de música da Universidade de São Paulo. Mas, antes de tratar do tema, gosto de refletir sobre o conflito e a distância social que existe entre as pessoas do funk e as pessoas da universidade que

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Músicos e musicólogos, crias de uma estrutura de ensino colonialista/racista não veem estilos como o funk como algo que seja digno de ser analisado

musical formal. Para que a música preta apareça, é preciso que os artistas pretos já estejam mortos: jazz, blues, samba raiz, capoeira, jongo… A branquitude adora artistas pretos mortos, talvez porque não houve convívio com eles.

Ensino de música em universidade é projeto ultraconservador. Aliás, falo aqui dos departamentos de música das universidades, mas a própria universidade é um lugar conservador que resiste à mudança, apesar de vender a imagem de inovadora, como mostra o livro Outra universidade (Paco, 2011), de Pedro Demo. Sendo conservadora, a universidade não deixa de ser heterogênea. Há campos do conhecimento muito sintonizados e interessados no presente, e isso costuma ocorrer nas ciências sociais. Acreditem: o primeiro mestrado sobre o nosso movimento funk foi escrito pelo antropólogo Hermano Vianna, em 1987, dois anos antes de o DJ Marlboro lançar o primeiro LP da história do funk brasileiro.

O funk é estudado por cientistas sociais, linguistas e jornalistas há muito tempo. Músicos e musicólogos, crias de uma estrutura de ensino colonialista/ racista, não veem estilos como o funk como algo que seja digno de ser analisado. E há muito pouco interesse social nos sons do funk. Falar sobre tabus sexuais, crime e drogas desperta mais facilmente o interesse público, mas os sons, que são a causa das impressões geradas, ficam em segundo plano.

Foi de uma percepção pessoal de que a universidade precisa ser mais autocriticada; foi de uma percepção de que os julgamentos que o funk recebe falam, na verdade, sobre a classe social de quem o julga; e foi de uma percepção de que é necessário falar da MÚSICA funk que comecei a compartilhar minhas pesquisas nas redes sociais, no @canaldothiagson. Com o crescimento nas redes sociais, veio o convite para uma publicação pela Tipografia Musical, que é

uma editora de música clássica. Assim nasceu o livro Tudo que você sempre quis saber sobre funk… mas tinha medo de perguntar (2023), título sugerido pelo editor em referência ao filme do Woody Allen Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar (Estados Unidos, 1972).

Sendo o autor do primeiro livro brasileiro de funk escrito por um músico, percebi ao longo do processo que o desafio que me interessava era o de fazer um livro sobre funk chegar na favela. Entendi que o jeito ortodoxo como se faz um livro não comunica às pessoas do funk e às pessoas das favelas. O funk, o jeito favela, vai estar no conteúdo e na forma – o livro é bem papo reto, com muitas imagens, prints, QR codes para acesso aos links, áudio capítulo para que o conhecimento musical do funk seja ouvido, experienciado. Ele contou com o trabalho de mulheres na produção e revisão. A jornalista Glória Maria [articuladora cultural em Paraisópolis, onde mora], por exemplo, fez a foto de capa do livro com imagens do Baile do Bega.

A ideia de escrever e publicar esse livro foi a de construir uma ponte entre o que é produzido na universidade sobre funk e as pessoas do funk. Quero retribuir o que as periferias me ensinaram.

Thiago B. A. de Souza (Thiagson) é mestre e bacharel em música pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), funkeiro, musicólogo, professor de música, palestrante, influenciador digital, compositor formado em música clássica e, atualmente, doutorando no departamento de música da Universidade de São Paulo (USP). Também é autor de Tudo que você sempre quis saber sobre funk… mas tinha medo de perguntar (Tipografia Musical, 2023) e de livros sobre música clássica.

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NOTÍCIA em defesa da

Premiada jornalista e escritora Patrícia Campos Mello alerta para os efeitos da desinformação sobre os rumos do país

Cada vez menos, a população brasileira tem interesse em entrar em contato com notícias. E quando o faz, informa-se, principalmente, por plataformas de mensagens, como WhatsApp, e redes sociais, como Instagram e TikTok. Além disso, a prioridade no consumo de notícias tem sido dada ao perfil de influenciadores digitais em detrimento do de jornalistas profissionais, segundo a última edição da pesquisa Digital News Reports, publicada pelo Reuters Institute, em 2023. De acordo com esse levantamento realizado no Brasil e em outros 45 países, 47% dos entrevistados brasileiros consomem notícias via redes sociais. Mas, como identificar e distinguir notícias de informações falsas nos ambientes digitais? Afinal, as mesmas plataformas que servem ao entretenimento, à

democratização da informação e à interação social também podem ser ferramentas de desinformação e manipulação da realidade.

Ao investigar as engrenagens desse mecanismo durante o segundo turno das eleições de 2018, a repórter especial do jornal Folha de S. Paulo e comentarista da TV Cultura Patrícia Campos Mello se tornou alvo de ataques no ambiente digital, com episódios de ameaça e difamação. Essa experiência traumática, somada ao seu trabalho de investigação sobre o uso de redes sociais nas eleições dos Estados Unidos (2008, 2012 e 2016) e Índia (2014 e 2019), resultou no livro A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital (Companhia das Letras, 2020). “Se não houver uma regulação da internet que, de alguma maneira, torne as plataformas, as big tech,

responsáveis, por exemplo, por tentativas de golpe de estado, e pela proliferação nas redes de conteúdo incitando a violência, elas não vão ter um incentivo para agir”, analisa.

Formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo, com mestrado pela Universidade de Nova York, Patrícia Campos Mello é reconhecida por uma trajetória de mais de 20 anos de coberturas jornalísticas nas áreas de política, tecnologia, relações internacionais e direitos humanos em mais de 50 países, entre eles Síria, Iraque e Ucrânia. Já recebeu o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa (2019) e o Prêmio de jornalismo digital Rei da Espanha (2018), entre outros. Neste Encontros, a jornalista reflete sobre o descontrole da propagação de notícias falsas, novas formas de censura e o futuro do jornalismo.

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FURAR A BOLHA

Ser repórter é o melhor emprego do mundo. O problema é garantir emprego e salário, mas tirando esses dois detalhes, todo o resto é maravilhoso. É um privilégio poder entrar em contato com tantas realidades, ouvir pessoas fascinantes e, de repente, descobrir alguma coisa que pode, de alguma maneira, mudar a realidade. Eu adoro esse emprego e fui ser jornalista por inspiração do meu pai [Helio Campos Mello]. Eu sou superfã dele, que foi

fotojornalista, diretor de revista. Só que, a princípio, ele trabalhava muito e nunca estava em casa. Pensei: “Eu não quero essa vida dura”, daí prestei Direito, e fiz por seis meses. Depois entrei na USP, em jornalismo, e logo no começo, arrumei um estágio no Jornal da Tarde, cobrindo saúde, polícia. Você sai de uma bolha e entra na vida real, vai conhecer a cidade, as pessoas e sai do seu mundinho privilegiado para ver o quão mal distribuída é a renda no mundo.

DEMOCRACIA E JORNALISMO

A função do jornalismo é empoderar o cidadão para que ele possa tomar decisões informado. Trata-se de investigar e mostrar aspectos da realidade para que as pessoas usem essa informação para tomarem suas próprias decisões, principalmente decisões eleitorais: quais serão os políticos que vão determinar o futuro delas. Ninguém consegue tomar uma decisão consciente se não tiver todas as informações. Assimetria de informação é um problema gigantesco. Não tem um blog, quer dizer, deve ter algum, que está lá puxando o orçamento do governo para ver se tem desvio ou que está pesquisando obras da seca. Mas, quem vai fazer isso é o jornalismo profissional. Não é opinião, não é comentário, não é blog, e muito menos esses sites que distorcem as notícias. Então, acho que você precisa muito do jornalismo profissional, que tem essa função cívica de empoderar os cidadãos para que eles possam exercer a sua cidadania e escolher de posse de uma informação de qualidade.

ALVO NAS REDES

Quando comecei a escrever A máquina do ódio, não tinha nada de mim no livro. Eu, como muitos jornalistas, não gosto de me colocar em história nenhuma. A gente gosta de saber do outro, escrever sobre o outro. Então, comecei a escrever o livro a partir de várias coberturas que eu tinha feito na Índia, nos Estados Unidos e aqui, no Brasil, sobre o uso de redes sociais, e de dados pessoais dos eleitores, para tentar manipular eleições. Aí, virei alvo de campanhas de desinformação.

Marcos Villas Boas
Jornalista e escritora, Patrícia Campos Mello foi a única repórter brasileira a cobrir a epidemia de ebola em Serra Leoa, nos anos de 2014 e 2015.
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Eu simplesmente estava fazendo uma cobertura normal da eleição de 2018. No meio do caminho, fui descobrindo algumas coisas e fiz uma matéria. Meu mundo virou de ponta-cabeça. Pela primeira vez, tinha vídeo manipulado e editado com minha imagem na internet, tinha fotomontagem, fake news A partir disso, comecei a perceber que preservar a família e a vida pessoal é algo cada vez mais difícil. Mencionaram minha família, depois houve ameaças contra o meu filho. Todo mundo já foi, de alguma maneira, exposto numa rede social. É um tipo de assassinato de reputação. Eu precisei tomar

Publicado em 2020 pela editora Companhia das Letras, o livro investiga os riscos que a sociedade sofre com a proliferação de discursos de ódio e manipulação da realidade no ambiente digital.

ações jurídicas, entrar com processo, uma coisa que nunca tinha feito. Então, resolvi começar o livro falando a respeito disso.

NOVA CENSURA

Essa máquina do ódio é como se fosse uma nova versão de censura. Isso pode ser instrumentalizado por atores políticos. A gente sabe que vários líderes populistas no mundo usam, de forma muito hábil, esse tipo de “ferramenta de marketing digital” porque, na prática, esses ataques começam orquestrados, mas, depois, você tem uma adesão genuína. Inclusive, porque há um efeito perversamente liberador nessas pessoas: “Que legal, agora eu posso ser homofóbico”; “Agora eu posso ser misógino”; “Agora eu posso me juntar à turma que está xingando e que tem esse ressentimento”. Esse tipo de ataque funciona como uma censura. Você acaba silenciando certas vozes que são, geralmente, de grupos minorizados de alguma maneira. Você vê que para mulheres, negros e para a comunidade LGBTQIA+ é muito mais difícil, eles são alvos frequentes.

AMBIENTE TÓXICO

Vamos pensar em uma coisa: a Inteligência Artificial raspa informações de vários sites da internet, inclusive de redes sociais, para alimentar modelos. Se você tem um ambiente tóxico para grupos minorizados, você tem menor participação dessas vozes na internet. Com isso, o que você vai ter de conteúdo para a Inteligência Artificial é um mundo de menor participação dessas pessoas, que se tornam alvo desses instrumentos

virtuais. São muitas as implicações. Por exemplo, o quanto isso muda a nossa visão de mundo e o ecossistema de informação é grave. A censura também não é uma censura “clássica”, de um jornal com censor, com publicação de receita de bolo. Você tem uma censura pelo barulho, pela intimidação e ambiente tóxico virtual.

MANIPULAÇÃO DA REALIDADE

Esse tipo de arma, de tentativa de manipular a realidade, a opinião pública, o eleitorado, é um negócio que a gente precisa entender que, infelizmente, é a nova realidade. A gente precisa, inclusive, como jornalista, fazer um trabalho muito bem checado e apurado. Porque tudo que esses atores que se aproveitam da desinformação querem é que o jornalista cometa erros. Acho que essa manipulação veio para ficar, não acho que o pior já passou. Vamos ver agora com a eleição municipal, pode ser um show de horror, como foi em 2022, quando a gente viu esse foco de desinformação, de manipulação da realidade ao falar que o sistema eleitoral é fraudado.

ALGUÉM ME DISSE

Agora você tem essa tiktokização dos algoritmos, que é o algoritmo do Tik Tok, algo que não fica te mostrando a última novidade da sua tia ou a matéria compartilhada pela sua prima. É uma coisa de influenciadores, de conteúdos aleatórios que o algoritmo, pelos padrões, diz que vai engajar. O Instagram está cada vez mais assim, o Facebook e outras redes também. Algo que, inclusive, essas plataformas estão querendo é

Divulgação
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O JORNALISMO TEM ESSA FUNÇÃO CÍVICA DE EMPODERAR OS CIDADÃOS PARA QUE ELES POSSAM EXERCER A SUA CIDADANIA E ESCOLHER DE POSSE DE UMA INFORMAÇÃO DE QUALIDADE

cada vez menos notícias. Porque há uma queda de braço com os veículos de mídia para que sejam pagos pelo uso do conteúdo. Para as plataformas é assim: “Notícia não engaja tanto, então, vamos fazer a tiktokização com conteúdo de influenciadores e usar cada vez menos notícia”. Ou seja, é mais difícil chegar até as pessoas, pois muita gente se informa pelas redes sociais. Fiz uma entrevista com o CEO do WhatsApp e ele falou uma coisa impressionante: o Brasil não é o maior mercado do aplicativo, mas é onde mais se manda mensagem de áudio, por exemplo, onde há mais grupos e onde se usa mais intensamente o WhatsApp. E a gente sabe que, raramente, a pessoa que recebe algo pelo WhatsApp vai entrar na internet para checar. Então, fica aquilo como a verdade.

FUTURO DO JORNALISMO

Estamos num momento muito difícil de como conseguir chegar nas pessoas num mundo ditado por algoritmos. Muito do que a gente vê é um público consumidor de notícias passivo. Há esse desafio de a notícia real viralizar. A gente está numa fase em que há cada absurdo,

que você fala: “Não é possível que isso esteja acontecendo”. Mas no geral, por que a desinformação viraliza? Por que ela é tão eficiente? Porque ela suscita essas emoções fortes e isso, por sua vez, gera engajamento. Como hoje em dia você tem esse consumo passivo de informação, você fica à mercê de um conteúdo que engaja. Nosso desafio é conseguir empacotar a informação de qualidade, checada, apurada, inclusive, uma checagem desmentindo informações falsas, de um jeito que a informação consiga engajar mais o leitor.

REGULAÇÃO DA INTERNET

Por muito tempo se disse que com a educação midiática se combate fake news. Sim, é superimportante saber diferenciar [o que é notícia], checar a fonte da informação, entender o que é opinião e o que é informação, mas isso está longe de ser o suficiente. Primeiro porque, em muitos casos, a pessoa não é ignorante e sabe exatamente que a fonte daquela informação não é de confiança, mas aquilo corrobora suas visões e ela vai compartilhar. Não é falta de alfabetização midiática. E segundo, não é suficiente: se

não houver uma regulação da internet que, de alguma maneira, torne as plataformas, as big tech, responsáveis, por exemplo, por tentativas de golpe de Estado, e pela proliferação nas redes de conteúdo incitando a violência –coisa que, supostamente elas dizem que não deixam, que isso é contra suas regras –, elas não vão ter um incentivo para agir, porque esse tipo de conteúdo engaja muito, o que, por sua vez, é dinheiro de venda de anúncio. Nesse sentido, acho que a educação midiática não é suficiente. É preciso haver uma regulação e, no caso do jornalismo, essa é uma questão de vida ou morte.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a jornalista

Patrícia

Campos

Mello, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 23 de fevereiro. A mediação do bate-papo é da jornalista e editora-executiva da Revista E, Adriana Reis Paulics.

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A SALA 33

Faz alguns dias conheci um sujeito em uma lanchonete perto do meu antigo emprego. Ele me sugeriu um novo ofício por intermédio de um anúncio de jornal, que me ofereceu aparentemente a troco de nada. Na verdade eu estava desesperado, tentando arrumar algo pra fazer, desde o meu último serviço em uma livraria bastante frequentada no centro da cidade.

Eu não gostava de carregar as caixas de livros, nem de ficar espanando as prateleiras com aquele monte de pó me fazendo espirrar a todo o momento. Mas todas as vezes que o gerente se distraía, eu dava um jeito de folhear um livro e outro, sempre atualizando minhas leituras.

Um jovem, o desgraçado de um auxiliar administrativo, cheio de querer mandar nos vendedores, ficava me olhando pelo rabo do olho, vira e mexe cochichando algo com o gerente que, por sua vez, vivia bajulando o dono da livraria, demonstrando que daria o sangue por aquele emprego.

Uma vez, ele me chamou até sua sala e disse:

— Fulano, infelizmente você não passou na experiência, e a loja não poderá registrá-lo, aqui está o pagamento dos seus dias de trabalho.

— Mas o prazo de experiência são três meses — observei indignado — e eu estou trabalhando aqui não faz nem quinze dias.

— Sabe o que é — falou o gerente, forçando simpatia — do jeito que você está trabalhando não vai render muito, não, essa é a verdade.

Aceitei meu pagamento e fui direto para uma lanchonete local tomar qualquer coisa. Ali, prostrado

como um desses vagabundos sem eira nem beira, me perguntava o que eu iria fazer para conseguir o dinheiro do almoço dos dias seguintes.

A atendente de olhos espertos e bastante sensual perguntou:

— Boa tarde, vai querer o quê?

— Um café com leite, por favor.

— E um pão na chapa pra acompanhar?

— Só o café com leite mesmo.

— Volto num instante.

Foi nesse exato momento que vi um cara se sentando ao meu lado com uma aparência bastante esquisita. A garçonete retornou pousando o copo de vidro (todo sujo nas bordas) em cima do balcão e me lançou um sorriso como que dizendo “se precisar de alguma coisa, é só me chamar.”

— Essa daí lá em casa eu faria miséria — comentou o cara ao meu lado.

Concordei balançando a cabeça enquanto o sujeito, que até aquele momento não havia pedido nada, olhava o cardápio do dia. Eu ainda não havia almoçado e, olhando para o relógio de parede da lanchonete, que apontava duas da tarde, era como se eu estivesse sem fome por causa da preocupação.

— Garçonete — chamou o homem.

Como que por um passe de mágica, ali estava a moça, outra vez atendendo o cliente de olhos vazios. Ele apontou o dedo

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para o cardápio, e ela disse 'já volto', fazendo parecer que aquela frase saía de sua boca mais de mil vezes por dia.

— Hoje eu trabalhei que nem um condenado — falou o homem. – Tô com uma fome que, se eu pudesse, comia tudo o que tá aqui neste cardápio.

— Nem me fale.

— Trabalha por aqui mesmo, companheiro?

— Trabalhava.

— Despedido do emprego?

— E o desgraçado só me pagou uma mixaria!

— Era registrado?

— Estava no período de experiência.

— Eu sei como é que é, irmão, não tá fácil pra ninguém.

A garçonete retornou depositando um pratinho à frente do sujeito, que sorriu pra ela exibindo dentes amarelos de nicotina, agradecendo-lhe com uma piscadela furtiva, enquanto apreciava a pequena porção de toucinho que enfiava na boca com os dedos, onde se podiam ver unhas pretas de sujeira.

Ele disse:

— Tá servido, irmão?

— Tô tranquilo.

Abocanhou mais um punhado de toucinhos e voltou a chamar a garçonete, pedindo-lhe que lhe trouxesse uma garrafa de cerveja. Após a moça servi-lo, colocando o líquido amarelo em seu copo, sem deixar fazer espuma, ele tornou a sorrir, dessa vez olhando-me como se me conhecesse há muito tempo.

— Eu consegui um serviço faz duas semanas — disse o cara, soltando um pequeno arroto —, estou me dando muito bem lá.

— E por lá eles tão precisando de gente pra trabalhar?

— Sempre tão precisando.

— Você poderia me indicar.

— Não é bem assim não, meu chapa.

Fiquei amuado como uma criança sem entusiasmo. No entanto, percebi o sujeito retirando a metade de um jornal que ele trazia consigo dentro do bolso de sua calça jeans surrada.

— Aqui — falou ele —, eu fiquei sabendo desse trampo através do anúncio de jornal.

— Obrigado, irmão.

— Só tô te dando a dica porque fui com a tua cara.

— Obrigado de verdade.

— Só mais uma coisa: diga que você é da turma do Luizão (esse é meu nome), que foi eu quem te mandou lá; se você por acaso trombar com um cara magrelo que todo mundo chama de Picuinha, pode dizer pra ele que foi eu quem te mandou.

No dia seguinte, decidi ir até o lugar que o jornal indicava. Não estava explicado claramente o que era o serviço. Dizia apenas que os interessados deviam seguir a rua Principal, perto de um prédio comercial que ficava próximo à estação de trem. Fiz a barba e coloquei a camiseta mais limpa que eu tinha. Meu sapato furado no calcanhar também não estava tão sujo assim. Soprei na minha mão em concha para ver se eu estava com bafo. Escovei mais uma vez os dentes e fiz o sinal da cruz ao sair de casa.

Era um prédio de esquina pouco chamativo: a entrada dava em uma escada por onde eu subi alguns lances e segui pelo pavimento superior até encontrar uma salinha, no final do corredor, que apontava o jornal.

Bati na porta do número 58. Ninguém atendeu. Bati mais duas vezes e esperei. De lá de dentro saiu uma mulher de aparência suja (igual ao sujeito da lanchonete) e eu observei que ela parecia um monte de farrapo ambulante por causa de suas roupas.

— Pode entrar — falou um sujeito bem vestido de lá de dentro.

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Entrando no local, eu senti um cheiro enjoativo de incenso e me sentei na cadeira que o moço de mais ou menos quarenta anos me indicara. Ele tinha olhos azuis, e seu relógio parecia ser banhado a ouro. Estava me olhando de cima a baixo.

— Você veio pelo emprego? — perguntou ele, meio desconfiado.

— Sim, senhor.

— Quem te indicou?

— O Luizão, ele disse pra eu falar com o Picuinha, o senhor é...

— Não, meu amigo. Você está na sala errada, aqui eu só pago pra ficar na frente de agências de bancos... A sala do Picuinha é a 33, nesse mesmo corredor, mas desse jeito que você tá vestido… Não sei, não...

Na outra sala, Picuinha, que na verdade gostava de ser chamado de seu Estevão, fumava um charuto de cheiro agradável.

Ele falou:

— Então o Luizão que te mandou aqui?

— Sim, senhor.

— O espertinho não perde uma comissão — comentou Picuinha —, a cada pessoa que ele indica eu pago um valor pra ele. Você já mendigou na sua vida?

— Como?

— Esmola, já pediu esmola?

— Não...

— É esse o emprego: aqui nós contratamos pra vocês ficarem na frente dos restaurantes.

Picuinha parou de falar um instante e deu uma longa tragada em seu charuto, depois continuou sua explicação:

— Nós levamos e buscamos nossos funcionários dentro de uma lotação. Se você topar, são oito horas de trabalho por dia, de terça a sábado, pagamos quarenta por cento do que for arrecadado até o final do expediente e, no último dia do mês, damos um bônus adicional para aqueles que conseguiram arrecadar o maior número de esmolas.

Ao fazer aquela proposta, Picuinha sorriu de um jeito que jamais vou esquecer. Quando perguntou se eu aceitaria aquele emprego, me detestei por hesitar por um segundo, pois cogitei estender as mãos para os transeuntes nas ruas.

Lembrei-me da quantidade de pessoas desesperadas no centro, submetendo-se à humilhação. Crianças abandonadas nos semáforos, idosos arrastando carroças e revirando lixo em busca de um pedaço apodrecido de pizza, ou deitados nas calçadas sem ter para onde ir, loucos e bêbados querendo fugir da realidade daquele mundo de derrota e desgraça.

Levantei-me da cadeira, equilibrando-me entre o sim e o não. Enquanto isso, o patife continuou a sorrir, dizendo que caso a fome apertasse por dentro como um corvo faminto, ele estaria ali, sentado em sua cadeira como o rei da cidade, com as portas da sala 33 abertas. Era o próprio sistema rindo às gargalhadas da vida miserável dos desgraçados.

Wesley Barbosa nasceu em Itapecerica da Serra (SP) e, desde a adolescência, trabalhou como vendedor ambulante e em diversas outras atividades. É autor de seis livros, entre eles: O Diabo na Mesa dos Fundos (Selo Povo, 2015), Parágrafos fúnebres (Ficções, 2020), Viela ensanguentada (Ficções, 2022) e O rebento do ódio (Barraco Editorial, 2023).

Léo Daruma, artista visual nascido em Santos (SP), descobriu na colagem uma de suas técnicas favoritas. Inserido na cena hardcore da Baixada Santista, conheceu os fanzines, a street art, o estêncil e os lambe-lambes. Criador e organizador da feira gráfica Goma, dedica-se a oficinas, palestras e atividades educativas voltadas à arte urbana autoral.

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inéditos

‘FORMIGUINHA’ uma cantora

A voz inconfundível e a expressividade no palco são alguns dos atributos da cantora Mônica Salmaso, que se aproxima dos 30 anos de carreira.
Mônica Salmaso dispensa estereótipos da fama e valoriza a autenticidade e a incansável dedicação ao ofício musical

Apontada pela crítica como uma das grandes vozes da música brasileira contemporânea, a cantora paulistana Mônica Salmaso celebra o fato de poder andar pelas ruas de maneira tranquila. Uma contradição para o imaginário popular, que costuma medir o sucesso de um artista a partir dos estereótipos de uma vida de celebridade.

“Amo o meu trabalho e a carreira que construí. Estou no meu melhor lugar neste momento, mas não é um lugar de fama. Sou uma ‘cantora formiguinha’, que faz questão de trabalhar em cada detalhe", orgulha-se.

Ela emergiu na cena musical dos anos 1990 e seu nome ganhou destaque em todo o país durante a pandemia, em 2020, com a popularidade do seu projeto virtual Ô de Casas. Foram 175 gravações em que se apresentou com músicos convidados, cada um em sua casa e ocupando metade da tela do celular, por meio de uma montagem nas redes sociais. “O que era despretensioso virou alento, uma forma de continuar fazendo música e de ofertar afeto ao público em um momento tão difícil”, recorda.

Em 2022, a cantora foi convidada por Chico Buarque para acompanhá-lo na turnê

Que tal um samba? No ano passado, Salmaso se juntou a nomes como Gilberto Gil, Leila Pinheiro e Lulu Santos para interpretar as faixas do álbum Afeto (Selo Sesc, 2023), em homenagem aos 90 anos de Carlos Lyra (1933-2023), que faleceu duas semanas após o lançamento do disco.

Com a agenda recheada de convites e projetos solo e em parceria com outros artistas, Mônica Salmaso vem consolidando uma carreira que já se aproxima de três décadas de estrada. Neste Depoimento, ela compartilha reflexões sobre a identidade musical brasileira, relembra momentos importantes de sua trajetória e esboça planos para o futuro.

vitrolinha

Não tive exemplos de pessoas que viviam das artes. Por volta dos meus seis anos, um tio me presenteou com uma vitrola de plástico vermelha e aquela antiga Coleção Disquinho (Gravadora Continental, 1960), que fazia sucesso contando historinhas infantis acompanhadas de composições do Braguinha (1907-2006). Daí por diante, comecei a ouvir os discos dos meus pais, que eram poucos, mas bons e variados. Tinha um tanto de Dorival Caymmi (1914-2008), Chico Buarque, Roberto Carlos, Vinícius de Moraes (1913-1980), Milton Nascimento, Caetano

Veloso, Elis Regina (1945-1982). As músicas e os artistas formaram em mim o que chamo de "banco de emoções", porque mesmo sem entender as letras, eu conseguia sentir as emoções que aquelas canções transmitiam. De tanto ouvir, comecei também a cantar ao lado dos adultos, nos encontros musicais que meus pais organizavam em casa. Foi assim que alguém notou que eu era uma criança afinada, e, claro, eu gostei do elogio! Ouvir e cantar música brasileira virou meu prazer! No entanto, ainda que eu olhasse para aquele mundo com olhos apaixonados, não tinha a pretensão de ser cantora, era um sonho muito distante para a minha realidade.

ofício

Eu estava com 18 anos e fazia cursinho para o vestibular. Queria cursar jornalismo, por influência de uma prima, mas estava sofrendo de ansiedade na sala de aula. Não suportava passar tantas horas tentando decorar nomes e datas para uma prova. Foi quando, andando pela Vila Madalena, encontrei um amigo saindo todo feliz da escola Espaço Musical, do Ricardo Breim. Pensei: “Preciso fazer aulas de canto para compensar a minha angústia”. Convenci meus pais e me matriculei. Comecei a fazer aulas, teóricas e práticas, e o sonho não era mais um delírio, ser cantora se tornou um ofício factível.

Lorena
Dini
75 | e depoimento

Poucos meses depois, larguei o cursinho e anunciei que seria uma cantora profissional. Meus pais devem ter ficado aflitos diante de um futuro tão incerto, mas confiaram em mim. Logo, dei minha primeira canja e não parei mais.

sorte

Um ano e meio depois de ter começado as aulas, surgiu um convite inesperado: a mãe de uma amiga me elogiou para a atriz Rosi Campos e ela, mesmo sem me conhecer, indicou o meu nome para o diretor de teatro Gabriel Villela, que procurava alguém para cantar na peça O concílio do amor (1989), no papel de Verônica. Hoje, eu vejo que a companhia de teatro me trouxe a segurança e o acolhimento de que eu precisava. Segui na peça até que Eduardo Gudin me convidou para participar do disco Notícias dum Brasil (1994). Outra vez abracei a oportunidade. E foi o próprio Gudin que, tempos depois, também me provocou a fazer um disco só meu. Ele propôs: “Que tal gravar Os Afro-sambas, de Baden Powell (1937-2000) e Vinícius de Moraes?”. Fiquei apreensiva.

Eu ainda não me sentia uma cantora, mas uma paraquedista de sorte, e com uma tremenda responsabilidade. Mas topei o desafio. Em 1995, gravei o álbum ao lado de Paulo Bellinati, violonista, compositor e arranjador, e deu certo! Talvez seja um golpe de sorte, mas eu me preparei bem para ele.

revelação

Me lembro de ficar impressionada com a carreira independente do Eduardo Gudin. Na casa dele tinha um fax, um computador e um telefone. Só com isso ele desenhava as turnês que fazíamos pelo Brasil, e eu gostei desse jeito “formiguinha” de trabalhar. Foi exatamente assim que decidi construir o meu caminho. A verdade é que eu nunca quis largar meu trabalho nas mãos de alguém, nunca quis me tornar uma personagem e ser diferente de quem sou. Isso fez com que minha carreira fosse mais segmentada e, talvez, menos popular. Brinco que sou vista como uma cantora revelação, todo ano, há muitos anos. Mas não me importo com isso. Entendo que a vida é uma mistura entre as escolhas que

ENTENDO QUE A VIDA É UMA

MISTURA ENTRE AS ESCOLHAS QUE A GENTE FAZ E AS OPORTUNIDADES QUE NOS APARECEM.

a gente faz e as oportunidades que nos aparecem. Eu sempre me dediquei às minhas oportunidades. Aproveitei bem o meu caminho, e tenho orgulho de dizer que a indústria fonográfica não impôs o meu trabalho a ninguém, nem ele foi moldado por ela.

janelas

Sou casada com Teco Cardoso, também músico e profissional autônomo. Logo no início da pandemia, em 2020, fiquei muito angustiada. Eu estava assistindo a uma live do Alfredo Del-Penho, quando ele me viu online e me chamou para cantar com ele. Eu tentei, mas nosso dueto ficou uma pororoca, por conta do delay tecnológico. Mesmo assim, a gente se divertiu. No dia seguinte, disse ao Teco que queria consertar o embaraço daquela live. Fiz uma proposta ao Alfredo: “Você topa gravar um vídeo cantando e tocando “A Cor da Esperança”, de Cartola (1908-1980) e Roberto Nascimento (1940-2019)?". O Teco sugeriu que eu cantasse olhando para um lado e o Alfredo para o outro, assim, depois de editar os vídeos, ficaria parecendo que estávamos interagindo. Publiquei o resultado nas redes sociais com o nome Ô de Casas. Outros amigos viram e disseram que queriam gravar também. Isso me ajudou a ocupar bastante a cabeça naquele contexto tão tenso. Foi assim, inclusive, que me enchi de coragem para convidar o Chico para participar e interpretar “João e Maria” comigo. “Chico, eu juro que você vai se divertir”. Ele confiou e topou. E, como era de se esperar, o público se emocionou ao ouvi-lo. Aliás, o Ô de Casas em si foi um sucesso bem inesperado. Hoje, eu sei que nosso projeto foi um respiro de sanidade. Esse projeto me fez

MINHAS
depoimento
EU SEMPRE ME DEDIQUEI ÀS
OPORTUNIDADES.

olhar para a minha carreira e para o tanto que eu já havia construído até ali. Foi uma corrente de afeto.

Chico

Antes de me entender como gente, eu já escutava e cantava Chico [Buarque]. Cresci apaixonada pela sua obra e tive meu primeiro contato presencial com ele em 2006, quando recebi um presente em forma de convite para participar do seu disco Carioca. Em 2008, com o desejo de homenageá-lo, gravei o álbum Noites de gala, samba na rua, só com músicas do Chico. Minha relação com ele, a pessoa, só se estreitou quando fiz o convite para o Ô de Casas. Talvez, essa tenha sido a sementinha e o incentivo para que Chico me presenteasse com o convite para a turnê de Que tal um samba? Nunca quis normalizar o fato de estar ao lado do Chico Buarque nos palcos. Participar da turnê

foi um presente, tanto pra minha vida quanto pra minha carreira.

identidade

Tem gente que nasceu para a fama, está tudo certo, mas isso não é da minha natureza. Meus prêmios são os convites e o reconhecimento pelo meu trabalho. Também acho delicado quando comparam meu nome com o de outras grandes cantoras brasileiras. Não acho possível comparar a minha carreira com as delas, porque somos de momentos diferentes. Aliás, eu não seria quem eu sou se elas, minhas referências, não tivessem sido o que foram antes. Eu não tento ser igual, nem diferente das outras cantoras. Esse é o meu conselho para quem está começando sua carreira: seja você e isso já te faz ser único.

futuro

Quero ser reconhecida como uma cantora brasileira, formiguinha,

que deu o seu máximo pelo ofício. Podem gostar ou não do meu trabalho, mas não podem dizer que o faço malfeito, isso não aceito! Tomara que eu possa cantar até meus 90, livre dos calores da menopausa, sem neura, feliz e numa boa. Minha projeção de futuro é cantar enquanto for bom e prazeroso. Tomara!

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com a cantora Mônica Salmaso, registrada do estúdio do Sesc Vila Mariana, em dezembro de 2023.

Reprodução
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Pelo projeto musical de lives Ô de Casas, durante a pandemia, Mônica Salmaso recebeu o cantor Chico Buarque para interpretarem juntos a canção "João e Maria", acompanhados pelos músicos Teco Cardoso (flauta) e Luiz Claudio Ramos (guitarra).
depoimento

ALMANAQUE

Renascidos das cinzas

Cinco centros culturais da cidade de São Paulo que se renovaram após grandes incêndios abalarem suas

estruturas e acervos

Entre 2008 e 2021, alguns espaços culturais da capital paulista foram parcial ou totalmente destruídos por incêndios de grandes proporções. As chamas consumiram estruturas físicas, acervos de arte e, no caso do Museu da Língua Portuguesa, deixaram também uma vítima – um bombeiro que trabalhava no local. Após as tragédias, esses locais foram reconstruídos, reabriram ao público e se reinventaram. O mais novo deles é o Teatro Cultura Artística, na região central, que se prepara para a reinauguração em agosto de 2024, após 16 anos de reforma. Confira, a seguir, as histórias de cinco instituições culturais que foram abaladas pelo fogo, mas que renasceram com programações diversas. Vida longa!

PATRIMÔNIO ARTÍSTICO

Inaugurado em 1950, o Teatro Cultura Artística foi destruído por um incêndio em agosto de 2008. Os únicos itens preservados pelo fogo foram alguns arquivos históricos, os foyers do térreo e do primeiro andar e a fachada com o painel Alegoria das Artes, de 48 metros de largura por oito de altura, feito por Di Cavalcanti (1897-1976). Mais de um milhão de pastilhas de vidro do mural passaram por restauro, e detalhes originais dos espaços projetados pelo arquiteto Rino Levi (1901-1965) foram

reconstruídos – como duas escadas e as bilheterias. O novo prédio, planejado para reabrir em agosto deste ano, tem mais de 7.500 metros quadrados de área construída, sob coordenação do arquiteto Paulo Bruna. Uma livraria e um café devem ocupar o térreo, e um novo átrio ficará voltado para a Praça Roosevelt. A sala principal de espetáculos, com 773 lugares, abrigará concertos de música clássica, popular, eletrônica e jazz. O Cultura Artística terá, ainda, um auditório com 150 lugares no

Aline Iovasso

LATINOAMÉRICA RESISTE

Com projeto de Oscar Niemeyer (1907-2012), o Memorial da América Latina acaba de completar 35 anos de existência. Em novembro de 2013, o local foi abalado por um incêndio no Auditório Simón Bolívar, palco de shows nacionais e internacionais e de apresentações de música clássica, dança, teatro e cinema. A reinauguração do auditório, em 2017, contou com a presença da orquestra Brasil Jazz Sinfônica e das cantoras Elza Soares (1930-2022), Sandra de Sá, Paula Lima, Liniker e Baby do Brasil. Uma tapeçaria da artista Tomie Ohtake (19132015), que havia sido parcialmente destruída pelas chamas, foi restaurada, e hoje o novo Simón Bolívar tem duas plateias que, juntas, abrigam 1.788 pessoas. Além de eventos culturais, o espaço recebe convenções, congressos, seminários, formaturas e produções de TV. Ao longo de sua história, já passaram por lá Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Jobim (1927-1994), Mercedes Sosa (1935-2009), Astor Piazzolla (1921-1992), entre outros importantes nomes da música. Até 7/4, quem for ao Memorial pode conferir a exposição Uruguai, Cultura e Arte, na galeria Marta Traba e, até 21/4, a Exposição Fotográfica Província de Qinghai, no Espaço Expositivo Gabriel García Márquez.

Auditório Simón Bolívar

Avenida Mário de Andrade, 664, Barra Funda, São Paulo (SP). Próximo à estação de metrô Barra Funda (Linha 3-Vermelha). Áreas externas do Memorial: segunda a domingo, das 10h às 17h. Pavilhão da Criatividade e Salão de Atos: terça a domingo, das 10h às 17h.

Biblioteca Latino-Americana: segunda a sexta, das 10h às 17h, e aos sábados, das 10h às 15h. Acesso gratuito ao Memorial, e no auditório há eventos pagos. memorial.org.br/espacos/auditorio-simon-bolivar

A tapeçaria do Auditório Simón Bolívar, da artista Tomie Ohtake, também foi restaurada após ter sido parcialmente destruída pelas chamas em 2013.

térreo, para receber apresentações de música, teatro, leituras dramáticas, cursos e palestras. Além disso, os bolsistas da instituição contarão com espaços de estudo e prática musical, incluindo 11 salas e quatro estúdios de gravação.

Teatro Cultura Artística

Rua Nestor Pestana, 196, República, São Paulo (SP). A 700 metros da estação de metrô República (linhas 3-Vermelha e 4-Amarela). culturaartistica.org

Gabriel
Farias
Após sofrer um incêndio em 2008, e passar por uma reforma que durou 16 anos, o Teatro Cultura Artística deve reabrir ao público em agosto.

ALMANAQUE

NOSSA LÍNGUA VIVA

Aberto em 2006, no prédio histórico da Estação da Luz, região central da capital paulista, o Museu da Língua Portuguesa foi atingido por um grande incêndio em dezembro de 2015. O fogo começou após uma troca na iluminação, destruiu dois andares e causou a morte de um bombeiro civil.

Após seis anos de espera, o museu foi reinaugurado em julho de 2021, com a presença dos presidentes de Portugal e de Cabo Verde, do ministro da Cultura de Angola e da cantora Fafá de Belém. Com curadoria de Isa Grinspum Ferraz e Hugo Barreto, o

ARTE ATEMPORAL

espaço ficou mais interativo, acessível e audiovisual, para apresentar aos visitantes a história e a diversidade desse idioma falado por mais de 260 milhões de pessoas em todo o mundo. No terceiro piso, foi criado um terraço com vista para o Jardim da Luz e a torre do relógio – em homenagem ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), responsável pelo projeto original. Neste mês, além da exposição permanente, o público pode conferir o Sarau Africanizar no Museu, no dia 20/4, das 12h às 14h, e Plataforma Conexões 2024, no dia 27/4, das 12h às

Fundado em 1873, com o apoio de comerciantes, cafeicultores e maçons, o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo é uma instituição de ensino médio e técnico profissionalizante, com trabalhos de destaque em marcenaria, serralheria e escultura em madeira. No início do século 20, foi dirigido pelo engenheiro e arquiteto Ramos de Azevedo (1851-1928) e, ao longo de sua trajetória, formaram-se nele artistas como Victor Brecheret (1894-1955). Entre as obras mais famosas feitas pela instituição, estão portais em madeira instalados na Catedral da Sé, esquadrias metálicas do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e um monumento a Duque de Caxias. Em fevereiro de 2014, o Centro Cultural do Liceu

13h. Na segunda quinzena de maio, estreia a nova mostra temporária: Línguas Africanas no Brasil, que destaca a influência dessas línguas na formação do português brasileiro.

Museu da Língua Portuguesa Praça da Luz, s/nº, Luz, São Paulo (SP). Ao lado da estação de metrô Luz (linhas 1-Azul e 4-Amarela). Terça a domingo, das 9h às 16h30 (com permanência até as 18h). GRÁTIS para crianças de até 7 anos e, aos sábados, para todos. museudalinguaportuguesa.org.br

de Artes e Ofícios (CCLAO) foi destruído por um incêndio que queimou boa parte de seu acervo de pinturas, esculturas, móveis e réplicas em gesso. O edifício foi reinaugurado em 2018. Até 13/4, o CCLAO apresenta a mostra Mobiliário Atemporal, com curadoria do arquiteto Guilherme Wisnik, reunindo itens do mobiliário original e um panorama do contexto urbanístico e social da cidade de São Paulo nos últimos 150 anos.

Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofícios - CCLAO Rua da Cantareira, 1351, Luz, São Paulo (SP). Terça a sábado, das 12h às 17h. Aberto aos domingos apenas para grupos agendados. GRÁTIS. cclao.com.br

Ciete Silvério
Reinaugurado em 2021, o Museu da Língua Portuguesa ficou ainda mais interativo, acessível e audiovisual para retratar a diversidade e a história do quarto idioma mais falado no mundo.
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MEMÓRIA DO CINEMA

Criada na década de 1940 e batizada como Cinemateca Brasileira em 1956, sob o comando do professor e crítico Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), a instituição abriga o maior acervo de filmes da América do Sul e um dos maiores do mundo – com 40 mil títulos e mais de um milhão de itens como cartazes, roteiros e livros. Sua função é preservar a memória e promover a difusão de mais de 120 anos de produção audiovisual do país. Suas instalações na Vila Leopoldina, zona Oeste de São Paulo, sofreram dois desastres recentes: uma enchente em 2020 e um incêndio em 2021. O complexo continua interditado pela Defesa Civil, e não há previsão de obras no que restou do prédio. No entanto, no ano passado, a

instituição iniciou o projeto Viva Cinemateca, para revitalizar obras audiovisuais e documentos, além de ampliar e modernizar outra unidade da Cinemateca, num edifício histórico localizado na Vila Mariana, onde funciona, desde 1997, a sede da instituição. Segundo a diretora geral da entidade, Maria Dora Mourão, a reforma inclui áreas técnicas e os espaços públicos do edifício. Ainda estão em andamento iniciativas para recuperar filmes em nitrato de celulose, digitalizar as películas e atrair mais público – só em 2023, o local recebeu 210 mil visitantes. A programação deste mês inclui o festival de documentários É Tudo Verdade, além de uma retrospectiva do diretor Jorge Furtado e uma mostra

dedicada ao cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard (1930-2022).

Cinemateca Brasileira

Unidade aberta à visitação: Largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Mariana, São Paulo (SP). A 840 metros da estação de metrô Hospital São Paulo (Linha 5-Lilás). Espaços públicos e jardins: todos os dias, das 8h às 18h. Centro de Documentação e Pesquisa: segunda a sexta, das 10h às 17h (exceto feriados). Café: quarta a domingo, das 13h às 21h. Salas de cinema: verificar horários de acordo com a programação. GRÁTIS, com retirada de ingressos uma hora antes. Eventos especiais podem ter cobrança de entrada. cinemateca.org.br

Carol Vergotti / Cinemateca Brasileira
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Com 210 lugares, a Sala Grande Otelo, batizada em homenagem ao ator mineiro morto em 1993, é um dos espaços do edifício-sede da instituição voltados à exibição de filmes do acervo da Cinemateca.

O que é saúde para você?

A ideia do que é saúde, para além dos conceitos acadêmicos clássicos, se cria e se renova de diferentes formas para cada indivíduo, de acordo com as experiências vividas ou observadas. Lembro-me de que, quando pequena, tínhamos em casa uma série de fascículos de uma publicação chamada Medicina e saúde que, depois, encadernados em volumes com capa verde e dourada, traziam informações gerais sobre anatomia, condições de saúde, doenças e assuntos afins. Acabou virando um primeiro apoio quando surgia alguma dúvida ou sintoma, como se fosse um Google daquele tempo. Mais tarde, um dos meus irmãos seguiu carreira na área e se tornou a referência maior.

Ainda criança, tive inflamação na garganta e fui à consulta com um pediatra que se chamava Nelson — mesmo nome do meu pai. O que mais me recordo não é de nenhum incômodo, dor ou mal-estar. Ao contrário. Lembro-me que minha mãe levou um bolo divino de laranja, com recheio e cobertura, para eu comer depois dos exames em jejum. Outra lembrança afetiva desse episódio foi de que dormi na cama entre minha mãe e meu pai, melhor lugar do mundo, medicada e cuidada com toda a atenção!

O que é a saúde senão, em grande parte, o cuidado, seja o que temos com nós mesmos, o que recebemos ou o que nos dispomos a dedicar ao outro? Já cursando odontologia, para além da formação técnico-científica, o que se destacou para mim, novamente, foi a riqueza do contato e cuidado com as pessoas. Assim sigo, mas de diferentes formas agora. Da clínica, e sempre nos estudos, fui entrando cada vez mais na seara da saúde coletiva e de outros campos da odontologia social, constatando como a saúde está relacionada e pode ser impactada por uma conjunção de fatores que compõem os contextos sociais de cada pessoa.

Anos depois da minha formação acadêmica, alinhavo, em meu repertório cultural, experiências que me fazem ter a convicção do quanto a arte é uma via que,

de várias maneiras, pode promover a saúde mental, energia e potência de vida. Eu me lembro de uma visita ao museu Collection de l’Art Brut, em Lausanne, na Suíça, onde vi obras acompanhadas das histórias de seus autores autodidatas que, em sua maioria, sofriam de transtornos mentais. Também já pude desfrutar de uma impressionante exposição do artista Arthur Bispo do Rosário [1909-1989] na inauguração do Sesc Santo Amaro, em 2012, e também, por coincidência, em instalação no Sesc Paraty, em 2017. Ano passado, já trabalhando na equipe da qual faço parte, pude participar de diálogos sobre o trabalho e a vida da médica Nise da Silveira [1905-1999] e sobre as obras de seus pacientes-artistas.

Longe do apego a bulas prescritivas de comportamentos, acredito que a saúde não pode ser definida em meras afirmativas restritas. Vai além, envolvendo os direitos fundamentais de acesso a condições de vida digna, desenvolvimento, segurança e redes de apoio/afeto, entre tantas outras. Afinal, a gente não quer (e precisa de) só comida, diversão e arte. O respeito é o imperativo desejado em todas as relações e ambientes de convivência, e viver a diversidade, como o que temos de mais rico, também é essencial.

Aprendo a cada dia, nas reflexões individuais e construções conjuntas, pretendendo que haja cada vez mais espaços onde todos possam ser mais colaborativos, sintam-se mais seguros, cuidados e respeitados. Essas possibilidades motivam, trazem mais saúde e alimentam a caminhada.

Teresa Maria da Ponte Gutierrez é graduada em odontologia, especialista em saúde coletiva, mestre e doutora em Ciências Odontológicas/Odontologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), e atua na Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.

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Fique por dentro do que é destaque na programação deste mês!

Confira a programação completa: sescsp.org.br

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Eduardo Knapp (foto); Nortearia (colagem) sescsp.org.br DISTRIBUIÇÃO GRATUITA VENDA PROIBIDA CONHEÇA O SESC CARMO

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