Muito prazer, meu primeiro disco #2 chico buarque
Para Zuza e Kobe No meu aniversário de 2016, Zuza tirou de meu colo seus cachorros Turico e Lila para mostrar um álbum de fotografias feitas na década de 1950 durante o período em que ele estudara na Juilliard School of Music, em Nova Iorque. Eram imagens de colegas daquela hora, como as de seu professor e ídolo, o contrabaixista Ray Brown, e as do trompetista Dizzy Gillespie arremessando um disco de frisbee no campus da universidade. Quando perguntei quem havia feito aqueles registros, Zuza disse: “Eu mesmo”, com aquela gargalhada inconfundível imediatamente colada à resposta. Foi com essa combinação de conhecimento, vivência, entusiasmo jovial e carisma que ele alumbrou numerosas plateias Brasil adentro e continentes afora. Tão logo decidimos, mês retrasado, que cada programa da série “Muito Prazer, Meu Primeiro Disco” seria acompanhado de um texto ensaístico analisando o disco em questão – numa ideia proposta
pelo Sesc Pinheiros –, Zuza Homem de Mello e eu sentamos para definir quem escreveria sobre quem. Falei que aquele episódio inaugural, com “Louvação” (1967), de Gilberto Gil, merecia a caneta do Zuza. Queria reverenciá-lo, além de achar que eu não tinha roupa adequada (nem existencial nem intelectualmente) para aquela estreia de gala. Recomendo aos amigos e amigas que leiam, não só pelo marco de ser o texto derradeiro do Zuza, mas sobretudo por ser, como de hábito, um primor. Após gravarmos, na companhia da talentosa Adriana Couto, a segunda entrevista da série com Chico Buarque, Zuza propôs: “Eu já escrevi dezenas de textos sobre o Chico. Além de achar que você vai poder dizer algo diferente de tudo o que eu já disse, acho que é uma boa oportunidade para as pessoas conhecerem melhor o seu trabalho”. Diante desse drible desconcertante que foi a ascensão do nosso amigo, peço licença então para falar não muito sobre você, Chico, mas sobre José Eduardo Homem de Mello, o popular Zuza. Passei a frequentar o apartamento dele e de sua inteligentíssima e amável companheira Ercília Lobo, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, no mês de novembro de 2015. Veja se não é algo da ordem dos sonhos. A convite do Instituto Moreira Salles – por intermédio de Luiz Fernando Vianna, a quem deixo aqui meus agradecimentos –, eu deveria ir semanalmente à casa de Zuza para catalogar seu acervo de discos. Pense na responsabilidade venturosa de inventariar cerca de 10 mil LPs daquele que era (e sempre será) um dos maiores musicólogos do mundo. Logo de cara, considerando que Zuza e Ercília iam com certa frequência à confortável casa deles em Indaiatuba, lamentei para mim mesmo o fato de que em alguns dias eu teria apenas a companhia dos discos. Recentemente, em uma das diversas vezes em que agradeci Ercília pela confiança de me entregarem a
chave de seu apartamento, ela me respondeu: “Eu reconheço as pessoas pelos olhos”. Deve ser por esse tipo de gesto que os meus ainda ficam marejados. Naquele convívio estreito, Zuza contou muito mais do que as inumeráveis histórias de seus 9.278 discos. Falou, em primeira pessoa, sobre como foi, por exemplo, pilotar a mesa de som dos famosos festivais de música brasileira dos anos 1960. Sabe o áudio das performances ao vivo que você escuta ainda hoje de “A Banda”, de Chico, e de “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, em 1966? Era Zuza quem abria ou fechava os microfones. Se preferir “Ponteio”, de Edu Lobo e José Carlos Capinam, “Domingo no parque”, de Gil, “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, ou ainda “Roda Viva”, de Chico, em 1967, tudo bem também. Afinal, novamente era Zuza o engenheiro de som daquelas apresentações históricas. Zuza deu aula de objetividade e comunicação quando falou de emissoras de rádio para quem pincelou vinhetas até hoje lembradas. Nascido em 20 de setembro de 1933, tinha vivas memórias da infância num mundo anterior à Segunda Guerra Mundial. Contou repetidas vezes sobre seu fascínio por Duke Ellington, Frank Sinatra, Regional do Canhoto e Ray Charles. Falou com a mesma efusividade de seus encontros com Villa-Lobos, nos Estados Unidos, e com Caco Velho, no Brasil. Ensinou que “uma orquestração pode tanto enriquecer quanto arruinar uma composição” – escalamos conjuntamente o primeiro time com Pixinguinha, Paulo Moura, Gaya, Moacir Santos e Letieres Leite. Lembro mesmo é de seu sorriso quando eu disse achar lindo o fato de o personagem de Charles Bronson em “Era uma vez no Oeste”, de Sergio Leone, não ter o nome convencional de um pistoleiro
qualquer, mas, sim, o do instrumento que tocava: Harmonica. A trilha, claro, é de Ennio Morricone, mais um gigante que cantou pra subir em 2020. “Zz” (como ele costumava assinar em despedidas por e-mail, não sem antes mandar “besos”) leu para mim, antes da publicação, quase que a totalidade de seu “Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958)”. Quando lhe faltava algum disco para a pesquisa ligada ao livro, lá ia eu à caça, e só sossegava depois de encontrar um exemplar em bom estado. Foi assim, por exemplo, com “Canções à meia-luz”, primeiro 10 polegadas de Elizeth Cardoso, lançado em 1955 pela Continental. Aquele álbum foi o segundo presente que dei a Zuza. O anterior havia sido “Dona Ivone Lara: a primeira-dama do samba”, meu livro de estreia. Zuza tinha uma memória afetiva e respeitosa de Yvonne da Silva Lara. Foi sobre ela, uma das maiores criadoras da cultura e da identidade brasileiras, que o crítico musical escreveu seu primeiro texto para o jornal “O Estado de S. Paulo”, nos idos de 1978. Ainda que eu nunca tenha encontrado coragem para perguntar o que Zuza tinha achado do livro, ele destacou que “uma das maiores virtudes foi ter revelado em detalhes a importância das pessoas que vieram antes de Dona Ivone e, de alguma forma, a influenciaram”. Torcedor do São Paulo Futebol Clube, Zuza sabia muito bem que antes de Pelé existiram Canhoteiro e Leônidas. Assistimos juntos a alguns jogos da última Copa do Mundo, e colocamos a TV no “mudo” por acharmos tanto os locutores quanto os jogadores histriônicos demais. Gastamos um 2º tempo inteiro comparando esse futebol “moderno”, de velocidade intensa e brutal imposição física, com o andamento aceleradíssimo das escolas de samba. Concordamos sobre como a correria da vida nos rouba o lirismo e a cadência.
Zuza assinou a curadoria de um sem-fim de festivais de música, produziu muitos discos – na prateleira dos preferidos ainda está o dueto entre a pianista Carolina Cardoso de Menezes e o violinista Fafá Lemos – e escreveu diversos livros (sozinho ou em dupla com outro craque, Jairo Severiano), o que lhe rendeu uma cadeira na Academia Paulista de Letras. Na noite da cerimônia de sua posse, no Largo do Arouche, suas netas e netos, eu e nosso amigo Lourenço Rebetez, todos muitos amados pelo “vô Zu”, éramos seguramente os mais jovens em meio aquele mar de cabeças de algodão. Recentemente, quando surgiu a oportunidade de entrevistarmos Chico Buarque, optamos por seguir este caminho: falar sobre a formação musical daquele Chico de apenas 22 anos de idade em 1966. Assim, em vez de se debruçar extensivamente sobre “Olê, Olá”, “Pedro Pedreiro”, “Tem mais samba”, “A Rita”, “Sonho de um carnaval” e, claro, “A Banda” – todas presentes no repertório do descortinar buarquiano –, puxamos o fio da memória em um passeio que contou com mais de 50 personagens. Falamos de Baden Powell, Astor Piazzolla e Dominguinhos, de quem Chico tem guardadas consigo melodias inéditas e que ele nunca irá letrar. Falamos de Aracy de Almeida a Guinga, de João do Vale a Dolores Duran, de Jackson do Pandeiro a Mônica Salmaso, passando por João Cabral, Orlando Silva, Ary, Dorival, Noel, Marília Batista, Gonzagão, Mario Reis, Caçulinha, Marino Pinto. Falamos de Sérgio Buarque de Holanda, de Miúcha, de Jobim, de Vinicius e do inescapável João Gilberto, um dos maiores artistas da história da humanidade e, não por acaso, protagonista do último livro escrito por Zuza Homem de Mello. Zuza sabe retribuir presentes. Levei 15 anos para conseguir entrevistar Chico Buarque. Hoje vejo essa ralentada espera com um olho na saudade e o outro, no encantamento. Acho bonito que o encon-
tro para falar sobre a “opera prima” de Chico tenha sido o “gran finale” de Zuza neste plano. Chego a pensar que esse tipo de vereda levou Guimarães Rosa a versar em prosa que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Por fim, me remeto a “Raphael Rabello: o violão em erupção”, publicado em 2018 pela Editora 34 com apoio do Itaú Cultural. Tenho a impressão de que este livro, feito ao longo de seis anos, teria um valor documental menor se não fosse o generoso texto do prefácio lavrado por Zuza. Bem antes disso, lembro de ter falado que via nossa relação – marcada por uma diferença etária de 50 anos – como a que o jovem Raphael Rabello teve com o experiente Radamés Gnattali. Com a ressalva de que embora eu não tivesse nem um milésimo do talento de Raphael, Zuza tinha, de fato, a mesma genialidade de Radamés. Nas centenas e centenas de conversas que tivemos, falamos muito pouco sobre política. Lamentamos que a nação das diferenças e do exotismo esteja, momentaneamente, se transformando no país das ofensas e do exorcismo. Ainda neste ambiente ruidoso me vem à mente outro ídolo que partiu neste 2020: Kobe Bryant. Em “The Last Dance” – série documental sobre a dinastia do maior time de basquete de todos os tempos, o Chicago Bulls da década de 1990 –, Kobe é provocado a falar das comparações entre ele e seu antecessor Michael Jordan num especulativo mano-a-mano. Ao que o lendário jogador do Los Angeles Lakers responde: “Michael foi um mentor para mim. O que eu sei aprendi com ele”. Pois é sobre o raro privilégio de encontrar na mesma figura um mentor e, também, um amigo que reafirmo: tudo o que eu sei aprendi com Zuza. Em especial, a irrefreável continuidade de sonhar um Brasil
respeitoso com sua memória, aberto ao novo, diverso, livre de preconceitos e essencialmente musical. Por ora, Zuza, vá preparando as raquetes de pingue-pongue ou calçando as luvas de boxe, enfim, esses “esportes” de que João Gilberto tanto gosta. Apesar de eu não ser muito bom em nenhuma dessas modalidades, vou adorar assisti-los. Sem pressa. Como diz o Chico, “não se afobe, não, que nada é pra já”, maestro. Nosso reencontro pode esperar. Lucas Nobile, outubro de 2020.