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Emprego público: sua face real

Marina Barbosa Pinto

Fazer política hoje é construir um enfrentamento cotidiano, permanente e contundente contra o projeto do governo e suas implementações práticas: um enfrentamento ideológico e de ação. Derrotar esse projeto é preciso para resolver os problemas da maioria da população brasileira, para evitar a tendência a mais fome, miséria, violência, morte - a barbárie. Hoje, por exemplo, na Argentina, os movimentos dos trabalhadores desempregados apresentam uma radicalização muito grande em relação aos ocupados, claro indicador dessa situação de barbárie.

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O desmonte do serviço público é estratégico para o projeto do governo. O Anteprojeto de Lei de Emprego Público é um instrumento privilegiado para este fim, por materializar a forma estatal capacitada para implementar as políticas neoliberais e é usado como instrumento de ataque ao setor do movimento sindical que tem lutado, quase que anualmente, por seus direitos. E, acima de tudo, luta pela manutenção dos serviços públicos necessários à vida da classe trabalhadora.

O tema em questão é muito complexo e está intrinsicamente ligado a nossa greve 1 porque se relaciona com uma concepção de serviço público e, por conseguinte, de uma universidade pública.

O debate do Anteprojeto de Lei de Emprego Público deve ser feito em três momentos: o primeiro, indicando os elementos que são de imediato associados a essa proposta; o segundo, identificando seus determinantes, para que possamos construir a leitura crítica necessária; o terceiro, definindo linhas de ação frente a este projeto.

Através dessa medida legislativa, o governo busca impor o regime celetista às relações de trabalho, nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). A justificativa do governo está apoiada em três argumentos: racionalização, produtividade e flexibilidade. Esta argumentação compõe um arcabouço que orienta a reforma administrativa e está a serviço do reordenamento da ação do Estado. na perspectiva de superação da crise de acumulação do capital.

As conseqüências mais imediatas são: a fragmentação da carreira

docente do sistema federal de ensino, assegurada pelo Plano Único de Classificação e Retribuição de Carreiras e Emprego (PUCRCE); a desvinculação das carreiras atrelando diferentes segmentos a diferentes órgãos por grau de ensino - superior, profissional, fundamental, médio; a diferenciação entre as instituições e no interior delas; o fim da isonomia e do universalismo; o ataque aos direitos trabalhistas, em especial, à aposentadoria integral e ao vínculo empregatício; a quebra da tríade ensino-pesquisa-extensão.

Uma nova lógica se institui no interior das IFES com a pulverização das carreiras e salários, o pagamento por tarefas desempenhadas, a introdução do regime celetista, a constituição do orçamento global, a adoção dos contratos de gestão, a desvinculação da pesquisa e extensão dos interesses científicos e da sociedade, com seu atrelamento direto à lógica do mercado, que se choca frontalmente com a autonomia da instituição.

Desvendar esse anteprojeto exige a compreensão de que seu determinante é a Reforma do Estado. Aqui cabe um parênteses: ele não é novo, não é de agora, mas é um “canto” que nos leva ao período da ditadura militar no Brasil.

Na década de 60, o discurso instituído, dos que apoiaram o golpe militar, era o privatizante, desde lá a transferência dos recursos públicos para o setor privado foi uma constante. O discurso dominante na época condenava as legislações trabalhista e previdenciária e defendia a retração da intervenção do público na economia, tendo como esteio a inviolabilidade da propriedade privada. Durante a ditadura, identificamos que os governos atuaram no controle do Estado, fazenO discurso dominante é o da crise fiscal originada sobretudo pelo endividamento público e populismo econômico. Bresser Pereira, principal orquestrador deste discurso, apresenta uma proposta de ação do Estado que, paulatinamente, deixa de exercer funções diretas nas áreas de saúde, educação e assistência social para repassá-las a organizações públicas não estatais.

do-o crescer numa lógica de privatização interna dos aparelhos administrativos. Ao dividir, em 1967, por meio do Decreto 200, a administração direta e indireta, incluindo nesta as autarquias, empresas públicas e de economia mista, se proliferam as fundações de direito privado, que se sustentavam com recursos públicos e não estavam sujeitas ao controle público. A rede de relações que designavam as ações do Estado e seus vínculos com suas empresas primavam pelo controle pessoal e privado, redimensionando a noção de público.

Este processo não se deu, e nem se dá, sem resistência. Os movimentos organizados atuaram e, ainda que com limites, evitaram que seguisse a escalada de mando e uso nos aparelhos públicos. São exemplos: a lei 7596/87 que determinou a subordinação das instituições que recebem recursos públicos ao mesmo controle das autarquias; o PUCRCE que definiu o tratamento isonômico entre as tarefas e qualificação para trabalhadores do setor público; a Constituição de 1988 que determina a isonomia no conjunto do serviço público; o Regime Jurídico Único (RJU) que estabelece uma regulamentação única para praticamente a totalidade das relações de trabalho nos órgãos da administração direta, autarquia e fundacional. Tudo isso combinado com um avanço na concepção de Estado que vigora na década de 80, no país, expresso em uma ampliação da democracia, no fim do regime militar e, fundamentalmente, no preceito da universalização dos direitos.

Na atualidade, o discurso dominante é o da crise fiscal originada sobretudo pelo endividamento público e populismo econômico. Bresser Pereira, principal orquestrador deste discurso, apresenta uma proposta de ação do Estado que, paulatinamente, deixa de exercer funções diretas nas áreas de saúde, educação e assistência social para repassá-las a organizações públicas não estatais, terceirizando a execução das políticas sociais.

A nova configuração do Estado, nessa proposta, inclui distintos setores no aparelho estatal: 1) núcleo estratégico - presidência, cúpula dos ministérios e tribunais federais; 2) atividades exclusivas do Estado - agências reguladoras para fiscalização de políticas; 3) atividades não exclusivas do Estado - organizações sociais para execução de políticas. Os contratos de gestão serão a “ponte” entre elaboração e execução. Ao núcleo estratégico caberá a definição dos objetivos, critérios, avaliação, e as organizações sociais executarão e serão fiscalizadas pelas agências reguladoras do Estado.

É no âmbito das organizações

sociais que o governo pretende inserir as universidades, que passarão a ser instituições públicas por destinarem seus serviços a setores da população e, não estatal, por não terem a totalidade de seus recursos advindos dos cofres do Estado, portanto, terão de obtê-los no mercado, não envolvendo, assim, o poder estatal. Aqui, mais uma vez, volta-se ao “canto” entoado pela ditadura: a oficialização das fundações de direito privado sob nova retórica: as organizações sociais. A novidade é que estas poderão ser criadas por pessoas físicas e não mais pelo Estado, o que gera uma libertação das restrições impostas pela administração estatal. Processa-se a tão desejada flexibilidade, racionalizando os papéis sociais e o uso dos recursos. Retomam-se as relações privadas no âmbito do Estado, gerenciando-as de forma privada, abolindo, mais uma vez, seu conteúdo público.

Como se dá a singularidade da universidade nesse processo? Segundo os teóricos desta reforma, a principal característica da inserção da universidade neste projeto é o seu vínculo direto com o setor produtivo, em nome dos imperativos da globalização, que se travestem em uma verdade, absoluta e única, pautada na doutrina do mercado mundializado.

Neste contexto, está em curso uma reforma educacional que ocorre na esteira das transformações no mundo do trabalho. Países que integram o mercado mundial, com produtos de alto valor agregado, têm demandas para Universidades e Centros de Pesquisa. Países onde os produtos manufaturados simples e primários têm a vantagem da matéria-prima, da energia e do baixo custo do trabalho - à custa da super-exploração dos trabalhadores - terão sistemas de ensino ainda mais simplificados .

Há uma redivisão internacional no âmbito da educação que pressiona alguns países a adequarem seus sistemas educacionais a menor demanda de conhecimento avançado. A Organização Mundial do Comércio tem pressionado fortemente nesse sentido.

Diante da atual etapa de crise do sistema capitalista, com o aprofundamento de queda da taxa de lucro, são produzidas inovações tecnológicas e organizacionais e, na disputa pela maior taxa de acumulação do capital, a educação, para os neoliberais, passa a ser a “verdadeira riqueza das nações”. Diante da ideologia da inevitabilidade deste quadro, de que não há alternativa para a humanidade fora das reformas propostas pelo modelo capitalista em vigência, a conseqüência, que o governo pretende tornar real, para a educação é adequar-se ao novo capitalismo. Nessa ideologia, o capitalismo “perde” suas asperezas e é apresentado como sociedade do conhecimento, forma contemporânea da sociedade capitalista. O ensino a serviço do mercado aparece na retórica oficial como estando a serviço da sociedade,

A autonomia radical diante do governo e a necessidade de defini-la como instituição pública e estatal são construções que se contrapõem a ingerências indevidas na gestão das universidades.

mas o desvendamento se sucede a uma pergunta básica: de que sociedade? A do mercado, a dos capitalistas? A contra-revolução educacional em curso prioriza o ensino elementar e a formação profissional, em detrimento da importância da ciência e do desenvolvimento da tecnologia de ponta 2 .

O cenário é o da agudização da crise econômica que atinge as economias dos países industrializados, o epicentro do desenvolvimento econômico com queda mundial do crescimento econômico medido pelo PIB, para além do quadro de destruição das economias dos países chamados em desenvolvimento ou periféricos. Segundo a UNCTAD, em 1965, a renda per capita dos 20% mais ricos era 30 vezes superior a dos 20% mais pobres, hoje a diferença é superior 60 vezes, o que revela o quanto este fenômeno aprofunda a crise social, elevando-a em escala planetária, a índices desumanos e insustentáveis.

Numa análise superficial da economia brasileira, identificamos indicadores importantes de que a sua transformação é gritante. O número de trabalhadores na industria é o mesmo da década de 40; de 1998 a 2000, o número de postos de trabalho, no setor de serviços, subiu de 346 mil, para 411 mil; o número de postos de trabalho, na informática, reduziu em 48% e, no setor de comunicações, 54% somente, nos últimos dois anos.

Neste quadro, exige-se uma “globalização da educação” cuja função central é a preparação de mão-deobra para adequar-se às demandas das alterações no mercado, com base em reformas organizacionais e tecnológicas, que se coloquem a este serviço com agilidade, flexibilidade e com alta resolutividade na

relação custo-benefício.

A divisão internacional da educação dar-se-á entre os países que se colocarão na posição de fornecedores ou exportadores de educação transacional e os que seriam os beneficiários ou importadores desta.

O canto que hoje ecoa é do poder que se julga portador da verdade única e absoluta, que nos levará ao mundo moderno e globalizado. Essa ditadura do pensamento único não é nova, pois se caracteriza como uma condição de sobrevivência da própria burocracia dominante, já que, se esta estabelecer o mínimo de diálogo entre as idéias e projetos distintos do seu, estará negando a si própria.

Para além da subordinação da universidade ao mercado, a sua singularidade nesta teia também se revela nas mediações que a regem, seu sistema de gestão. A autono

mia radical diante do governo e a necessidade de defini-la como instituição pública e estatal são construções que se contrapõem a ingerências indevidas na gestão das universidades. Quebrar esta autonomia é condição para a efetivação da reforma do ensino superior em curso.

Há que se constatar que a sustentação desta reforma tem, além de uma força externa 3 , uma força interna gerada na sustentação que segmentos da comunidade docente, vinculados ao Estado desde a modernização conservadora engendrada pelo regime militar, até o atual processo de privatização interna, viabilizam, articulando a venda de serviços da universidade ao mercado.

O atual estágio da contra-reforma educacional está em viabilizar a diversificação das instituições e das fontes de financiamento. Haverá uma alteração profunda no papel social da universidade, caso essa proposta se concretize, e ela passaria agora a formar aquilo que Taylor chamava de gorilas amestrados 4 recursos humanos e não indivíduos com capacidade de ler criticamente a realidade, com solidez teórica e competência técnica para a produção de novos conhecimentos. Isso explica a inclusão da educação nos tratados de livre comércio, como também a desqualificação da educação tecnológica e de formação de professores e o fim do Programa Especial de Treinamento (PET).

A criação dos Centros Universitários, desobrigados do compromisso com a pesquisa, e dos Institutos Superiores de Educação e Cursos Normais Superiores, aligeirando a formação e descaracterizando-a como locus de formação

de educadores, revela que o curso da reforma a qualifica como uma investida inédita no projeto de privatização do serviço e do espaço públicos e uma ameaça à universidade como locus de produção de conhecimento novo, correspondendo à lógica dos diferentes campos científicos. A pesquisa será a demandada pelo mercado e a realizada quase que exclusivamente para ele.

Este estágio prima pela queda de investimentos e recursos sob responsabilidade do Estado, o que realimenta o ciclo da privatização quando, para funcionar as administrações, recorrem a convênios e venda de serviços, alterando, assim, a lógica do trabalho dos docentes, na busca pela superação das aviltantes condições de trabalho e salário, e a mecanismos externos de superação desta situação.

A marca do mercado é o espírito empreendedor que se mede pela capacidade de auto-financiamento das instituições e é para essa lógica que as reformas têm empurrado a universidade, numa velocidade semelhante à uma bola de neve descendo dos picos de uma grande montanha, não só é muito rápida, mas quando chega ao solo já adquiriu outra forma que a descaracteriza e, em seu rastro, destrói o que se colocou a sua frente.

Com isso, a autonomia é definida governamentalmente como a liberdade para operar no mercado sem a interferência do Estado, na medida que se desinstitucionaliza a universidade, caracterizando-a como um novo tipo de propriedade, que é a organização social.

Cabe sinalizar que a busca da inviabilização da universidade como instituição pública vai das legislações que procuram alterar a concepção de autonomia, como a PEC 370, o decreto de diferenciação da IFES, até as medidas que não se restringem ao campo da educação, como a reforma administrativa e a da previdência, a instituição da previdência complementar, os fundos setoriais. E internamente se complementam com a Gratificação de Estímulo à Docência - GED, a Gratificação de Incentivo à Docência - GID e a forma de financiamento.

A face real do Anteprojeto de Lei de Emprego Público está agora revelada: é uma medida para efetivar a flexibilização da autonomia e a transformação da universidade em organização social.

O quadro é dramático. Para quem deseja a alteração da ordem, o desafio é compreender a realidade e encontrar formas de ação que possam alterá-la na intencionalidade almejada.

É imperioso e urgente que o movimento docente resista a esta reforma e construa mecanismos que assegurem: democratização do acesso à universidade pública e de qualidade para a maioria da população brasileira; resistência a viabilização da reforma administrativa e da previdência; garantia do controle social sobre a ação da universidade, impedindo os mecanismos de ingerência dos governos; democratização da gestão das universidades, viabilizando o debate de idéias com a presença política das entidades representativas do movimento; elaboração, no debate democrático, de novo sistema de fomento à ciência e tecnologia; construção de conhecimento que possa viabilizar alternativas para solucionar os problemas da maioria da população, em especial, um projeto econômico e social.

A tarefa central é não permitir a utilização da educação como mecanismo de regulação da economia e um dos pilares de sustentação da desigualdade social. Este posicionamento exige que os princípios do movimento docente, em sua construção histórica, sejam reafirmados, o embate claro e direto de projetos com o poder instituído, a unidade com os demais trabalhadores na defesa do patrimônio público do país e o permanente diálogo com a sociedade para hegemonizar o projeto de universidade pública, gratuita, laica e de qualidade.

Essa ação já vem sendo desenvolvida pelo movimento docente e nos coloca na trincheira daqueles que acreditam que outra verdade existe e que outro mundo é possível.

1. Greve que se desenvolve no país com uma adesão estupenda dos docentes e que coloca no cenário político a real situação das universidades e de seus trabalhadores, denunciando para a sociedade o projeto de destruição impetrado pelo governo FHC. 2. Para aprofundamento do tema, ver Leher,

R. “O MEC e a Universidade: uma política hostil”. Mimeo, 2001. 3. Ela é originária dos projetos dos organismos financeiros internacionais que controlam o desenvolvimento das ações dos países periféricos por meio de instrumento privilegiado que é a dívida externa. 4. O fato de esse tipo de trabalhador aparecer como “qualificado” não nega nossa afirmação. Na prática agudizam-se as condições destrutivas da força de trabalho e amplia-se a já existente hiper-exploração sobre o trabalhador.

* Marina Barbosa Pinto é professora assistente na Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. 3ª vice-presente do Andes-SN.

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