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Política de transporte, sociedade e espaço urbano
José Augusto R. da Silveira* Tomás de Albuquerque Lapa**
1. INTRODUÇÃO Os problemas relacionados ao acelerado processo de expansão urbana e às questões de mobilidade e acessibilidade à cidade estão no centro das discussões recentes sobre a qualidade de vida urbana. Tem-se buscado avaliar os efeitos da lógica evolutiva sobre a sociedade, a partir da análise da relação entre as novas configurações espaciais e as políticas de transportes. Dessa maneira, questões envolvendo a dinâmica da cidade e o comportamento social merecem uma análise aprofundada, uma vez que o surgimento de novos territórios afeta a gestão dos transportes.
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De modo geral, questões físicoterritoriais, de deslocamento e sócioculturais, não são adequadamente observadas nas discussões sobre transporte urbano e, por isso, não condizem com a realidade das cidades. Neste artigo, são destacados os processos de expansão e de transformação do espaço urbano, realçando a formação de novos territórios que, por sua vez, exercem influência sobre a gestão dos transportes.
Aceitando-se que as questões do transporte devem ser tratadas numa perspectiva multidisciplinar, como forma de reconstituição do cotidiano da cidade e da sociedade, o transporte pode ser visto como um instrumento de análise das lógicas evolutivas urbanas, colocando-se com a possibilidade de conduzir uma estratégia de resolução dos descompassos entre as necessidades de deslocamento e a dinâmica de crescimento urbano.
2. Crescimnto e fragmentação do tecido urbano
A historiografia urbana mostra que à predominância da centralização físico-espacial, considerada sistematicamente a partir da segunda metade do século XIX, atualmente contrapõe-se à descentralização, à desintegração e à fragmentação da “nova vida urbana” (Topalov,1987). O processo histórico de crescimento urbano destacou os papéis funcionais da centralidade, do surgimento das cidades até as primeiras décadas do século XX, contrapondo-a à fragmentação recente, característica do crescimento contemporâneo. O modelo dito dos “lugares centrais”, pelo qual Walter Christaller (1933) explicava o crescimento e a repartição das cidades, não dá devidamente conta de uma reticulação generalizada, ao mesmo tempo mais instável e menos centrada, nem da urbanização dispersa, em forma de tentáculos. Uma das conseqüências foi o surgimento de novas centralidades e a perda da perspectiva estrutural da totalidade da cidade, que afetou a questão da acessibilidade urbana. Ao contrário do que ocorreu com os espaços de centralidade histórica, que permitiam a percepção da totalidade da cidade, no processo atual de dispersão urbana, as novas periferias produzidas pelas dinâmicas espaciais de segregação somente podem ser apreendidas de forma fragmentária.
Os fatos nas médias e grandes cidades brasileiras dão a parecer que a era das entidades urbanas discretas acabou. Isso indica a necessidade de rever, de forma ampla, as políticas de transporte urbano, não somente no que se refere à oferta de transporte, e sua adequação às necessidades de deslocamento da população, mas também quanto às articulações com a estrutura urbana e a ocupação do solo. Além disso, há que rever-se também os padrões de crescimento urbano e os efeitos dis
tributivos, no espaço, alcançados pelas ações públicas.
A urbanização, difusa e fragmentada, sob forma de linhas-filamentos, acentua a segregação social e a setorização territorial, destacando a categoria tamanho urbano e as deficiências de infra-estrutura e serviços urbanos. O processo de fragmentação, relacionado com a estrutura espacial, tem produzido novos territórios de maneira acelerada e dispersa, decompondo a paisagem da cidade em territórios que correspondem a áreas, simultaneamente estanques e articuladas, com conteúdos próprios.
O crescimento da cidade atual está assente na produção de novas centralidades e em rotas induzidas pelas novas tecnologias e subculturas urbanas, incrementando a escala da urbe, multiplicando e elastecendo trajetos. A técnica, implicada na morfogênese do espaço urbano, influi na constituição dos novos territórios e, conseqüentemente, na acessibilidade, assim como na formação de mentalidades e comportamentos humanos.
A passagem da urbanização de pólos tradicionais para a de “geografia de linhas de crescimento” (Choay,1994 e LeBrás,1993), coincidentes com as principais rotas da cidade, tornam mais complexas as flutuações e incertezas inerentes aos novos padrões de assentamentos urbanos, além de dificultar a gestão dos transportes, exigindo a releitura de suas políticas.
O caráter dual da urbanização brasileira reflete a mais marcante de suas características: a polarização social e espacial que define fluxos urbanos típicos, influi na produção e multiplicação de territórios distintos e a na setorização do espaço. Com o
desenvolvimento das forças produtivas e a extensão da divisão social do trabalho, o espaço, manipulado, aprofunda as diferenças de classes, a setorização, a segregação e a consolidação de novos territórios. Esta evolução acarreta um movimento paradoxal: o espaço tanto une quanto separa os seres humanos. Este paradoxo é traduzido sob a forma de sistemas fundamentais, construídos na cidade, que viabilizam o estabelecimento das diferentes redes sociais. Historicamente, o espaço da cidade sempre esteve dividido em subespaços diferenciados, tanto pela idade do ambiente construído e pelo conteúdo humano, quanto pelas atividades que nele se localizam. A imbricação desses fatores fracionou a cidade em unidades complexas, cujas articulações traduzem-se por relações e deslocamentos que definem as redes urbanas. O processo
de desenvolvimento urbano recente, incrementando consideravelmente o tamanho e a complexidade da cidade, acompanhou-se de localizações mais diversas, vendo-se emergir novas polarizações, eixos e núcleos de atividades, em lugares bem localizados, ou atrativos, das novas periferias urbanas. Identificar-se as necessidades de adequação do sistema de transportes, face aos novos padrões de assentamentos, são tarefas cada vez mais instigantes. Os novos pólos do espaço urbano são pontos sensíveis em que o arranjo construído busca oferecer uma imagem moderna, dinâmica e atrativa na cidade (Rochefort,1998). Esta dinâmica, elastecendo e multiplicando itinerários, concorre para o crescimento disperso e aumento da complexidade das redes urbanas, criando dificuldades para a satisfação da demanda de transportes.
3. Surgimento de novos territórios e setorização do espaço
Segundo Villaça (1998), a organização espacial das cidades brasileiras apresenta um misto de círculos concêntricos e de setores de círculo, onde os últimos predominam sobre os primeiros, concorrendo para a fragmentação e segregação do espaço urbano. O processo conduz à formação de redes geográfico-sociais de produção e apropriação diferenciada do espaço. Por outro lado, as políticas de transporte, articulandose com a cultura automobilísticorodoviária, em detrimento do transporte público eficiente, influem na produção de novos territórios, afetando o tamanho urbano, incrementando a fragmentação e multiplicando desordenadamente as origens e os destinos de tráfego. Os novos territórios, muitas vezes surgem independentemente da presença de centralidades, quando a sociedade passa a organizar-se em redes e em função de interesses setoriais. A consciência de pertencer a um território, com uma sub-cultura própria, leva ao enfraquecimento das relações entre as partes e o todo urbano.
A noção de totalidade da cidade é guiada pelo fato histórico de que as dimensões econômica e política sobrepõem-se à dimensão social desse espaço, revelando uma desassociação que se mostra como fator importante na formação de territórios distintos e distanciados no espaço da cidade, com impactos na gestão adequada dos transportes.
O espaço da cidade é estruturado pelas condições de deslocamento do ser humano, seja enquanto portador da mercadoria força de trabalho - como no deslocamento casa/trabalho - seja enquanto consumidor - reprodução da força de trabalho, deslocamento casa/compras, casa/lazer, escola, etc. A força estruturadora dos territórios que
abrigam o terciário origina-se dessa dinâmica, a começar pela própria área central da cidade e os centros expandidos e eixos de comércio e de serviços.
No tocante aos transportes, o espaço urbano é heterogêneo e setorizado a partir dos principais eixos viários. Mais ainda, quando as classes sociais, com diferentes graus de dependência espacial, apresentam diferentes demandas, associadas a rotas de deslocamento urbano. As redes sociais materializam vetores de crescimento, geograficamente distribuídos no espaço urbano, atuando na cidade sob a forma de “redes geográficas de apropriação diferenciada de seus espaços” (Krafta,1996). Assim, produzem-se e consolidam-se eixos viários e territórios diferenciados e distanciados, constituindo formas espaciais e modos distintos de produção do espaço urbano, que desafiam a gestão dos transportes.
No processo em discussão, os territórios produzidos pela periferização assumem um novo significado, quando são revistas as noções de centro - periferia, onde o espaço urbano é marcado pela segmentação e pela produção de novas centralidades, que concorrem para a formação de verdadeiras excrescências urbanas (Lapa,1996). Os territórios periféricos atuam como fatores magnetizantes, de ampliação e multiplicação dos trajetos urbanos. A periferia mais evidencia do que oculta a construção histórica da setorização e da segregação social, plasmando ao longo do tempo as clássicas relações de centro e periferia, redefinindo as localizações e a apropriação do espaço. A diversificação e a redistribuição do uso e da ocupação, estabelecendo novos padrões urbanos de circulação entre as classes sociais,
acentuam a apropriação diferenciada, fragmentada e setorizada do espaço. Os “espaços deslocados” de Pierre George (1990) constituem o espaço da heterogeneidade territorial, das localizações periféricas - tanto da classe de alta renda como da classe de baixa renda -, dos valores diferenciais e da segregação produzida pelo distanciamento cada vez maior entre o espaço econômico e o espaço social. Conformam-se novas geografias urbanas que descortinam um descompasso entre as políticas convencionais de transporte e as novas formas de organização da sociedade. Contraditoriamente, o processo engendra um estágio de desenvolvimento que promove tanto uma integração quanto a fragmentação e a setorização do espaço urbano.
4. Descompasso entre políticas de transporte e novas formas de organização da sociedade
As políticas de transporte são implementadas segundo métodos e técnicas que tomam como base as circunscrições político-administrativas existentes, assim como as chamadas zonas de tráfego. O problema crucial reside no fato de que o transporte ainda é visto como um elemento setorial, que se relaciona apenas com suas partes internas, e não como um sistema participante do processo mais amplo de estruturação da cidade.
O pensamento positivista e a defesa de soluções científicas para todos os problemas, inclusive os de natureza social, influenciaram os métodos de pesquisa em transportes a partir do final dos anos 1940 e início dos anos 1950. Durante a década de 1960, os procedimentos metodológicos foram desenvolvidos com a aplicação de técnicas analítiOs territórios produzidos pela periferização assumem um novo significado, quando são revistas as noções de centro - periferia, onde o espaço urbano é marcado pela segmentação e pela produção de novas centralidades
cas e modelos matemáticos, voltados para soluções do “setor transportes”. Transporte passou a ser sinônimo de modelagem, valorizando cálculos matemáticos que, em muitos casos, distanciam-se da realidade complexa da cidade e não captam a dinâmica da sociedade.
A problemática dos transportes, com origens fundamentalmente sociais, não pode ser tratada sob um ponto de vista restrito e setorial, pois envolve a produção dinâmica de redes territoriais no espaço, articulando intimamente a acessibilidade à construção de localizações. Essa perspectiva considera o espaço nas suas relações com a sociedade, isto é, através dos processos sociais, das funções e das formas, numa visão chamada por Santos (1978) de “espaciológica”, onde o espaço possui seu sentido e seu significado (Canter e Santos,1978). A realidade urbana mostra que o processo tem potencial multiplicador, com a geração e consolidação de novos territórios dispersos, produzindo uma relação conflituosa entre oferta e demanda de transporte, face às restritas políticas de transporte urbano.
As descrições assumem uma perspectiva ainda mais intrincada, em um contexto marcado por um processo de reestruturação urbana complexa e veloz, que Topalov (1987) denominou de “nova vida urbana”, ligada a um padrão de consumo e de relações sociais, crescentemente mercantilizado, diversificado e fragmentado.
É importante que as políticas de transporte levem em conta a relação dialética do transporte com a ocupação e o uso do solo e sua influência no processo de produção e apropriação do espaço urbano, assim como no padrão de crescimento urbano e nos impactos sobre o desenvolvimento da cidade. Sob esse foco, pode-se visualizar a incompatibilidade existente entre a produção do sistema de transportes, como base física à estruturação da cidade, e o processo de crescimento urbano.
O descompasso entre as políticas oficiais e a forma como a sociedade passou a organizar-se, deixou consideráveis lacunas no que diz respeito ao atendimento dos serviços essenciais, como no caso dos transportes, favorecendo o aparecimento dos “modos alternativos” de transporte que, freqüentemente, apresentam-se na clandestinidade. As conseqüências diretas são o agravamento dos conflitos urbanos e das dificuldades na gestão dos transportes, assim como a alimentação e consolidação do processo desordenado de crescimento da cidade.
5. Articulação das políticas de transporte com a organização do espaço urbano
Tendo em vista o cenário do crescimento urbano recente, que apresenta acelerada produção de novos territórios, é essencial que as políticas de transporte levem em conta o caráter dialético da relação transporte - uso do solo, visando adequar-se à realidade da cidade. É necessário considerar o peso, representado
pelos interesses setoriais que motivam a existência de cada território. Por outro lado, é necessário definir uma estratégia de articulação entre as novas localizações e as antigas áreas consolidadas, de modo assegurar a eficiência e distributividade das políticas de transportes, buscando fortalecer a unidade e a coerência da totalidade do tecido urbano.
Na perspectiva descrita, o sistema de transporte coloca-se como uma base fundamental do processo de estruturação da cidade, podendo vir a assegurar, através de uma política compatível com a realidade da cidade, tanto uma acessibilidade adequada aos novos territórios, quanto um funcionamento equilibrado das redes urbanas. As transformações do espaço urbano são, em grande medida, calibradas pelo sistema de transporte, que compõese de verdadeiras “linhas de força” da paisagem urbana (Cullen,1961 e Panerai,1980,1986).
Ao engendrar no espaço uma interface entre a acessibilidade, os territórios e as pessoas, a possibilidade de deslocamento e os movimentos urbanos criam produtos e interações, influindo no modo de organização das redes sociais e no processo das transformações urbanas. No âmbito das suas relações com a ocupação e uso do solo, o transporte pode vir a atuar como elemento da reorganização urbana e minimização dos conflitos urbanos.
As políticas de transporte podem conduzir à construção de eixos estruturais de acesso que favoreçam espaços heterogêneos a conformarem um certo grau de unidade, equilíbrio e organicidade, estabelecendo as relações adequadas entre os elementos formativos do espaço urbano, que podem incluir justaposições e/ou separações territoriais.
Para Sampaio (1999), na cidade o importante não é o uso da noção de estrutura como algo estático, mas, entender o que é “estrutural” na sua dinâmica, enquanto processo de desenvolvimento urbano. Na formação da estrutura urbana, existe uma base física e territorial subjacente, onde são produzidos e se reproduzem os sistemas. Entre esses, destaca-se o sistema viário, em articulação dialética com o uso do solo. A exterioridade da estrutura (o sistema de vias, por exemplo), em sua conformação e articulação com o uso do solo, revela as correlações de forças que produzem e setorizam a cidade, sendo a estrutura física uma parte da estrutura urbana (social, econômica, política). O que particulariza os produtos, resultantes da apropriação do espaço urbano, é a associação com suas localizações, referindo-se às relações entre um determinado território urbano e todos os demais. Na verdade, essas relações contêm forças políticas e econômicas e dominam aquelas que se materializam através do deslocamento dos seres humanos enquanto consumidores e/ou portadores da força de trabalho (Villaça,1998).
As políticas de transporte devem conter arranjos, norteados tanto pela acessibilidade eficiente, quanto pela lógica de estruturação da cidade, que indiquem a forma de coexistência e articulação dos elementos constituintes do tecido urbano e seus parâmetros estruturais. Dessa maneira, somente políticas estratégicas de transporte, de cunho estrutural, podem conduzir a uma adequação do serviço ao processo de crescimento urbano, situando-o como uma questão social fundamental e de responsabilidade coletiva. As políticas de transporte devem articular ações não só nas três esferas de poder público, mas também no nível da participação efetiva da sociedade, que deve estar engajada nos esforços de compatibilização do transporte com a realidade do processo de crescimento urbano.
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José Augusto R. da Silveira é professor mestre no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraiba.-UFPB.
Tomás de Albuquerque Lapa é professor doutor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE.