Ficha Técnica Edição: Ana Brilha Título: A apologia do silêncio Autor: Ana Brilha Revisão editorial, formatação gráfica e arranjo de capa: Ana Brilha 1.ª edição: Lisboa, Fevereiro 2012 Impressão e Acabamento: Agapex ISBN: 978-989-97188-2-1 Depósito Legal: 340331/12 © ANA BRILHA Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa
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A apologia do silĂŞncio Ana Brilha
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"A amizade ĂŠ o amor sem asas." George Gordon Byron
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Tinta preta Seca-me a boca De tanto silêncio, De tantos gritos que ficaram Entalados na garganta. Bebo um copo de água, A expressão inalterada Da máquina perfeita, Da máquina que cumpre, Que ri quando apropriado, Na mordaz sensatez De ser apenas o que de si se espera. Mordo as mãos Do conformismo que me basta
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Como se fosse o último dia E não houvesse mais tempo Para protelar a verdade. Rasgo as letras no papel Que se tinge de vermelho, Matam e ferem E logo se apagam. O ser humano dura menos que um suspiro, Frágil como um galho ao vento. A minha mão é quanto basta Para destruir.
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As mãos Cinco dedos estendidos no vazio. Através deles, o sol escoa-se Como através de uma cortina de fumo, Ténue e baço, Incerto e pálido. No chão desenha-se essa forma Indecisa e sem substância. Existir ou não é indiferente. Se houvesse um relógio, Talvez ele marcasse o tempo a esgotar-se Como um coração que bate Em direcção ao seu fim.
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Ao longe, os ruídos Dos carros que passam, Apressados, compassados, Urgentes da raiva que morde E das mãos que ferem. Amanhã. Hoje esse degrau Está ainda longe demais.
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Sabes-me a silêncio Estou aqui como se tivesse morrido Antes do tempo, Um corpo abandonado De uma alma que há muito se rasgou Na inconstância. O meu riso é um pranto disfarçado, É a máscara grotesca do palhaço, Que ri, faz rir, Símbolo quebrado De se ter muito mais do que se vê. Um corpo horizontal, Que respira, parece viver, Nessa aparência que crê quem pode, 11
Quem não sabe que tens dentro de ti Demasiadas peças partidas. Respiro, como se fosse a única coisa Que ainda sei fazer. Dentro de mim não cabe mais nada, Vazia do que seja sentir, Um barco naufragado Tombado na areia da praia.
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Os rios correm Não culpes o rio Pelo carácter dos Homens, Nem a distância, nem o que se esconde. Não há mais nada Para além do teu olhar, E os tesouros que guardas São feitos de folhas secas. Ontem, houve um caminho Que esqueceste, um riso que caiu, E hoje hesitas em ver a luz De um sol que teima em nascer todos os dias. Fechas os olhos, Há algo quebrado dentro de ti 13
Que te rasga o peito Como estilhaรงos de vidro. Tu sabes, sempre soubeste.
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Eterno retorno Tenho teias de aranha na alma, Entre os dedos, Como se tivesse estado quieta Tempo demais. Os cabelos, como raízes, Sabem a terra molhada, A coisas mortas, Ao regresso. A cidade para onde torno, A cidade que me viu nascer, É uma peça dificilmente encaixada Noutras peças desiguais, Feitas de sangue e lágrimas.
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Regressei, Para romper as entranhas da terra, Saber de onde vim, Renascer.
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Florestas de betão O luto dos dias Que se acende nas paragens de autocarros, Freme como galhos quebrados De uma inocência perdida. A dor transmudou-se Em coisa física, Palpável, mensurável, Que se vende e se compra Ou se troca nas boticas. Há pedras soltas no chão, Onde se tropeçam promessas Que nunca se pretendeu cumprir, De olhos lentos e pardos De mentira e de intenção. 17
O cheiro acre Dos cabelos dos outros, Esqueceu o vento De se saber inteiro. S達o as mesmas pedras soltas Com que o nada se cimenta.
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Quase O sono dos dias Toldou-me a voz em cansaço. Quis o sonho todo de uma vez, Angustiada por ter as mãos Atadas das lágrimas de outros tempos E das feridas Que se curam a sal e a silêncio. Passos que soam na calçada Na pressa de seguir em frente, De fugir ou esquecer Pouco importa. Não sou mais quem fui, Arranquei as raízes de tudo 19
Num tombar de pĂŠtalas Amarelecidas e mortas. Tenho sono. Quase fui capaz de ser eu.
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Se tarda Tudo se vai, Num cântico impermanente De pássaros fugazes. Outras são as ondas, O brilho ténue dos gestos Que nos deixa a alma e as mãos frias. Passam os dias, Passam as estações Em que esperamos a vida Como a um autocarro Que nunca mais vem. Deixámos de acreditar Que está na nossa mão 21
Procurar outro luar, Lutar, cantar, Ou outra coisa qualquer. ร mais fรกcil Esperar a vinda do sol E culparmos os deuses todos Se ele teima em tardar.
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A dor de lembrar Não sei muito bem o que me liga a ti: O passado, de que ainda me lembro, E que não se pode mudar, O futuro que ainda não foi escrito, Ou essas memórias Que não são minhas nem nossas Porque nunca existiram. Sei apenas que te lembro, Que foste importante, Que deixaste em mim Essa marca demasiado profunda Para que o tempo te mude ou te apague. Depois a vida aconteceu, As memórias misturam-se, 23
Confundem-se entre o que foi E o que podia ter sido, Entre a dor de lembrar E o estar no presente. Confrontar-me comigo mesma Nesse espelho de censura Que é a verdade, Que é envelhecer e esquecer os sonhos E a força com que se acredita Por debaixo do tapete do quarto Junto com tudo aquilo que não se quer ver. Lembro-me de ter sido jovem, De te ter sonhado, De ter enterrado tudo quanto fui E me fez sorrir. Lembro-me e não queria lembrar, É mais difícil suportar o presente, Os dias que se esgotam, sem amanhã. 24
Pedra em frio A minha mão recorta-se Contra o chão de pedra. Depois, já não é só uma mão, São cinco dedos Cada um apontando para a sua direcção, Comprimida contra o frio. Cheguei tarde. Não consegui que o meu corpo Te abraçasse por inteiro, Te prendesse, Como se os meus braços Feitos correntes Pudessem impedir-te a queda.
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E a minha m達o, Cinco dedos vazios de sentido, Recorta-se contra o frio da pedra.
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Por detrás das mãos O tempo cai pesado Nas goteiras dos beirais, Mordaz como uma mão Apontada à minha garganta. Emprestaste-me as tuas asas Mas eu não soube voar com elas, Ao invés arrojei-me no pó Das ruas desertas da capital, De bar em bar, De flor em flor, À procura do próximo grito, Da próxima esperança, De uma gota de sentido No fundo de um copo. 27
N達o estou. Nunca estive. Mas espalho o meu perfume Sobre as nuvens, Como p辿talas vermelhas de raiva Enclavinhadas nas m達os. Nelas trago a faca com que hei-de ferir-te um dia. Mas tu ainda n達o sabes, E vais bebendo da minha boca O veneno da mentira.
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Um céu pintado a lápis Saí à rua numa ânsia De outro céu que não este, Os dedos crispados Sobre as palavras. Vesti o sorriso de outrora Como uma máscara sem cor, Na esperança, talvez, De amordaçar o coração. Lá longe, O céu era afinal o mesmo. Vazio como as mãos Que lanço ao vento. Olho-te do alto Dos meus cabelos brancos 29
E, num gesto De que talvez me arrependesse, Estendi-te a minha mรกscara Esquecida, talvez, De que sem ela estava nua.
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Depois de tudo O pintor ajeitou a sua tela E, sem um rascunho que fosse, Começou a pintar. Traçou um rosto que se esconde, Uma mão aberta de nada E, ao longe, a cidade nocturna A erguer-se contra o azul da noite. Pintou as luzes a acenderem-se Uma a uma nas janelas, Os gatos quietos sobre os telhados E, nas suas casas, As famílias à mesa Enquanto a costureira costurava Sob um candeeiro fosco. 31
Ponto a ponto, Preparava o vestido Em que alguém havia de casar, Ela que nunca casara E o que conhecia do branco Era que facilmente se manchava Se picasse os dedos. Vira-a o pintor, De janela a janela, De coração a coração. E enquanto a costureira costurava Morreu o instante, E o pintor pinta de memória O rosto de quem já não está.
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Não querer nada Não te quero Porque tu sabes a cor das pedras, Sabes o segredo que se esconde Por detrás dos olhos das pessoas. E caminhas, Como se as folhas pisadas aos teus pés Fossem as lágrimas dos deuses todos. Não te quero. E não quero as tuas palavras, As que dizes no teu silêncio, As que abraças e atiras ao ar Para que a chuva as cole umas às outras. Não quero isto tudo 33
Nem o que vem depois. Não quero saber de novo Brincar com o sol Que faz arabescos nos vidros das janelas E desenha nas folhas de papel As almas das pessoas Espalhadas em cima de uma mesa. Não te quero, Não quero o sol, Não quero o desassossego Das tuas mãos no meu rosto Como se o mundo todo Me viesse buscar para a vida outra vez. Eu sou do povo das pedras, Sou do silêncio que espreita Por detrás da lua E não te quero. 34
Não quero o que trazes nos braços, Não quero o que quer que seja Que dança nos teus olhos E no teu sorriso. É mais fácil deixar a vida Escoar-se por entre as mãos do tempo E não querer nada.
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