Palestina
We w ill r emain h ere: above or below our land!
INÊS ANTUNES E SUSANA COSTA
Refugees
Portugal
FICHA TÉCNICA
título: Palestina – We will remain here: above or below our land!
autoras (Texto): Inês Antunes e Susana Costa
ilustrações: Inês Antunes
edição: edições ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)
revisão: Patrícia Espinha
arranjo de capa: Ângela Espinha
paginação: Alda Teixeira
1.a Edição
Lisboa, outubro 2024
isbn: 978-989-9198-14-2
depósito legal: 534432/24
© Inês Antunes, Susana Costa
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Para aqueles que escaparam, para os que ficaram e para os que já não puderam sair.
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“Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Foram lançadas antes do nascimento do tempo Preview
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos…
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio – sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês – um ser
Sem valor – nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou – Agrada-te?
Sou o meu nome próprio – sem apelido!
Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos da cor do carvão
Os meus olhos da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
… esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada…
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens… trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
… ao que dizem!
Então
Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!” (1964)
Do poeta palestino Mahmoud Darwish, recitado pelo nosso colega italiano numa tórrida tarde algures entre a Natureza e o paraíso.
[Tradução de Júlio de Magalhães]
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PORTO – LISBOA – TEL AVIV
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I – Disseram-nos para contar aquilo que vimos
Falar da Palestina tem um significado completamente diferente desde abril de 2023. Falar da Palestina inquieta os nossos corações, inunda-os de desejo por justiça, mas ao mesmo tempo enche-nos de sentimentos de culpa pelo tão pouco ou nada que fazemos. Disseram-nos que a rotina do regresso nos ia apagar, aos poucos, a nossa revolta por tudo aquilo que vimos – não acreditámos. Era impossível esquecer. Contudo, durante meses, pouco ou nada fizemos senão deixar dissolver na memória os rostos e as vozes de todas as pessoas que nos emocionaram. Até o fatídico mês de outubro emergir para não deixar nada ser como dantes. Para ninguém. Li algures que Gaza é o único local do mundo realmente livre, tudo o resto – principalmente o Ocidente – é território ocupado. Ocupado pela ganância, pelo dinheiro e pela sede de domínio do mundo. À primeira vista achei uma frase maravilhosa, de ênfase à causa Palestina. Mas percebi que não é a romantizar o que se passa que caminharemos para a mudança. Gaza não é livre, por mais que o seu ideal e o seu espírito o possam ser. E nós também não. Daí a importância de percebermos que a luta pela Palestina é a nossa luta.
É certo que conhecíamos um pouco sobre a história da Palestina, mas nada do que lemos ou ouvimos nos preparou para aquilo que encontrámos. Ainda hoje, passados vários meses, com as emoções mais controladas e distantes, ainda conseguimos distinguir com exatidão as palavras do povo palestino a cada dia da nossa viagem: «Contem aquilo que viram». E é na modesta tentativa de o fazer – sabendo bem que não estaremos à altura – que partilhamos este retalho – incompleto, é certo – de memórias de alguns dias que nos mostraram um pouco da Palestina. Da opressão e apartheid, da tentativa cruel de apagar a memória da existência de um Povo, mas, também, da sua inacreditável vontade de viver e defender a sua identidade, provando-nos que há, sem dúvida, alternativa para a violência e repressão.
Hoje, falar da Palestina, é uma obrigação que sentimos, por termos em nós a voz que é do outro lado reprimida, os meios democráticos (com todas as vicissitudes que a palavra democracia possa ter) para influenciar a comunidade, a consciência de que ninguém será livre enquanto a Palestina não o for, parafraseando o célebre Nelson Mandela.
II – Palestina: como viemos aqui parar?
Fazer parte de uma organização humanitária traz-nos –para além de experiências impactantes e inesquecíveis – uma consciência maior do mundo à nossa volta, da sua pluralidade e das diversas formas que existem de compreender e interpretar um mesmo acontecimento. É também um exercício de humildade e de desconstrução desta visão etnocêntrica e ocidental que apreendemos através da educação e dos estímulos do meio que nos rodeia. Quanto mais somos expostos a outras realidades e a outros espaços, mais percebemos o quão limitador é o nosso pensamento e o quão enraizados temos mitos e preconceitos que tão indignamente comandam as nossas atitudes e comportamentos. Talvez uma das descobertas mais difíceis seja perceber que numa típica narrativa de super-heróis é mais provável sermos os vilões e que os países “de terceiro mundo” são vítimas da ganância e crueldade daqueles que se intitulam “países civilizados”. Ninguém gosta de ser vilão, daí ser natural arranjar uma forma de culpabilizar os outros, camuflando as próprias falhas e atacando as suas vítimas. Trabalhar numa ONG é descortinar – ainda que de forma muito leve – a dura realidade das coisas, é dar rosto e nome aos “Outros”, sen-
tir a culpa por nada fazer ou por tanto tempo ter ficado na ignorância e com medo de que já seja demasiado tarde para mudar algo. Perceber que ninguém é dono da verdade do Outro. Fazer parte de uma ONG como a Refugees Welcome Portugal permitiu-nos ter algum vislumbre do quão ignorantes fomos (e ainda somos), de que tantos projetos ou respostas que já criamos foram inúteis e em nada favoreceram as pessoas que supostamente deveriam beneficiar com a nossa existência. Quantas vezes nos sentimos ridículas a entregar um cobertor e a pessoa pedir-nos se, ao invés, poderíamos “abrir as fronteiras”. Trabalhar numa ONG é ter cada vez mais consciência da nossa ignorância e isso, em si só, já é positivo. Mas não basta. Às vezes a dura realidade das coisas afeta-nos e faz-nos pensar que seria mais fácil desistir, enveredar por outra ocupação.
Quando começamos a sentir que estamos sozinhos/as, que as nossas pessoas próximas não compreendem, que a sociedade tem ideias contrárias, quando nos irritamos com uma opinião banal de uma pessoa conhecida, nessas situações sentimos um peso que nos quer derrubar. Afinal, que diferença fazemos nós? Acaso conseguiremos acabar com as guerras, as injustiças e o sofrimento humano? A resposta rápida, simples e crua é: não. Por outro lado, que tipo de pessoa somos se deliberadamente desviamos os olhos para o resto do mundo? Qual a nossa responsabilidade no meio da crescente indiferença em que vivemos? Preview
Fazendo parte de uma ONG, uma das coisas que podemos fazer é ver. Sair um pouco da nossa bolha social e compreender as múltiplas facetas que um mesmo problema pode ter, entender que não existe uma verdade mas, sim, visões diferentes mediante a posição que ocupamos.
Precisamente no dia em que foi escrito este texto, é-nos apresentada uma viagem de estudo à Palestina com o objetivo de dar a conhecer o que realmente lá se passa, ouvir da própria boca do Povo as suas lutas e desejos e – de alguma forma – desafiarmo-nos a fazer algo. O medo de que fosse uma mera viagem turística dissipou-se quando percebemos que a guia desta mesma viagem viveu vários anos na Palestina e – coincidência ou não – esteve na Bósnia numa missão humanitária perto da fronteira com a Croácia – no mesmo período que nós e com quem nos chegámos a cruzar brevemente.
Após alguma consideração, decidimos embarcar nesta viagem, com o compromisso de trazer a Palestina para as nossas conversas, trocas e atividades. O pouco que sabíamos da Palestina – maioritariamente fruto de leituras e notícias – revelou-se efetivamente muito escasso após a semana que lá passamos. O que ainda reforçou mais a nossa convicção de que podemos passar anos a ler e a estudar sobre algum tópico, povo ou local e ainda assim não termos ideia do que realmente se passa. Não estamos a dizer que uma semana na Palestina nos trouxe todo o conhecimento de que precisamos – muito pelo contrário –Preview
mas colocou a descoberto a nossa ignorância que queremos a cada dia que diminua. As próximas páginas são o diário da nossa viagem, as experiências, os sentimentos e as reflexões – um primeiro passo, esperamos, em direção a um movimento mais coeso e ativo pelos direitos do Povo Palestino.
III – O (quase) reencontro (o título contém spoilers)
As horas que antecedem uma grande viagem são – para mim – sempre caóticas. Desde a indecisão sobre que mochila levar, à confirmação da documentação necessária até ao dosear da ansiedade sentida pelas escalas bastante curtas, a nossa cabeça corre sempre a mil. Por questões de poupança, decidimos partir de Lisboa e fazer duas escalas até chegarmos a Tel Aviv no dia seguinte. Aproveitando que uma das nossas colegas vivia na capital decidimos ir de autocarro na noite anterior, aproveitando esse tempo para jantar com ela. Tínhamos combinado encontrarmo-nos no Colombo pelas dez da noite.
Partimos da Estação de Campanhã pelas dezoito horas, tendo chegado à estação do Oriente dentro do horário previsto. A nossa colega esperava-nos na Praça da Alimentação.
– Estou perto do McDonald’s, mesmo à entrada – disse-nos.
– Nós também – respondemos com a ansiedade crescente de reencontrar a nossa colega que não víamos há quase um ano.
– Não vos vejo. Perto do restaurante não tem a Pans?
– Sim, tem!
– Estou mesmo em frente. Perto dos tabuleiros.
Só que nos tabuleiros não estava a nossa colega que acabou por nos ligar.
– Não vos encontro em lado nenhum. Afinal em que shopping estão?
– Então, estamos no Colombo perto do Oriente – respondemos com a certeza de duas portuenses que vão a Lisboa duas vezes por ano (no máximo!).
Um riso nervoso do outro lado da chamada, fez-nos adivinhar o desfecho deste (quase) encontro.
– Mas esse é o Vasco da Gama, não o Colombo.
Na formação pré-partida que o nosso grupo teve com a guia, para além do contexto histórico-político, foi-nos dada informação sobre como agir nas interações com as forças de segurança e o povo israelita. Não poderíamos revelar o nosso verdadeiro programa de viagem nem tão pouco os encontros que iríamos ter Preview
O adiantado da hora já não possibilitava à nossa colega nova deslocação para o lado oposto da cidade e nós, embaraçadas, acabámos por comer um solitário hambúrguer em silêncio, olhando a cadeira vazia à nossa frente. Após isso, seguimos caladas para o aeroporto onde uma longa noite nos esperava antes do primeiro voo às seis da manhã.
Para além da ansiedade normal que uma viagem a um novo local provoca em qualquer pessoa, crescia em nós um sentimento de receio fruto das precauções que tínhamos de tomar dado o contexto da viagem. E o primeiro desafio seria logo à chegada ao aeroporto de Tel Aviv aquando da passagem pela segurança.
com pessoas ativistas palestinas. Teríamos então de preparar uma história falsa e dar o nosso melhor como atrizes para que não nos impedissem de prosseguir. A versão que deveríamos contar era a seguinte: éramos um grupo de peregrinos que ia visitar a Terra Santa pela altura da Páscoa. Foi-nos também aconselhado levar algum item que remetesse para atestar a veracidade das nossas palavras, como por exemplo uma medalha ou algum outro item cristão. Ainda no aeroporto de Lisboa colocámos um colar com um pendente em forma de cruz e revi na Internet informações relevantes sobre a Páscoa. Durante a formação, também nos foi sugerido apagarmos as redes sociais e mudar os nomes daqueles contactos no WhatsApp que pudessem “parecer suspeitos”. Tudo apenas por precaução, não fossem as autoridades desconfiar e confiscar o nosso telemóvel para inspeção. Foi assim que, enquanto aguardávamos o nosso voo, mudámos alguns nomes de contactos de Yusuf para José ou de Samira para Sara. Fotos pessoais e viagens anteriores também foram estrategicamente removidas ou guardadas online.
A viagem de avião até ao destino final foi um tanto alucinante: não apenas pelo facto de estarmos sem dormir, mas pelos atrasos e curtas escalas entre voos (uma hora e vinte no primeiro e uma hora e cinquenta no segundo) que nos obrigaram a correr aeroporto fora, quase em jejum (rebuçados bola de neve não contam) e com pesadas mochilas às costas, vergando cruelmente a nossa coluna. Finalmente entrámos no último avião que nos levaria ao nosso destino. O ambiente no voo já era complePreview
tamente diferente: a maior parte das pessoas eram cidadãs do Estado de Israel com alguns peregrinos (como nós) e turistas pelo meio. Confesso que senti o ar a ficar imediatamente pesado e a realidade do que tínhamos pela frente começou a ocupar o seu espaço. Claro que todas as expectativas que foram crescendo em mim nos dias antecedentes à viagem acabaram por cair uma por uma nos dias que se seguiram.
O último voo foi curto e passei-o, praticamente, a dormir, para lá de exausta. Sentia os músculos duros como pedras que duvidei das minhas capacidades para me mexer quando avisaram que poderíamos tirar os cintos. Fez-me recordar uma viagem a Marrocos em que estava tão cansada que simplesmente entornei o cappuccino todo na camisola, passando o resto da viagem com um humilhante odor a leite azedo e, na mesma, cheia de sono.
Por precaução não bebi nada desta vez. E ainda nos esperavam algumas horas de viagem e um jantar com o grupo, antes de finalmente termos a oportunidade de dormir.
Ao sair do avião, fomos recebidas pelas multifacetadas luzes de um final de tarde quente e seco. Arrastei-me, primeiramente, pelas escadas e depois pelo asfalto já gasto e fissurado do aeroporto, onde, anualmente, chegam dezassete milhões de outros passageiros.
Logo à entrada do edifício – e ainda antes de encontrarmos qualquer funcionário – deparámo-nos com várias máquinas nas quais tínhamos de colocar o nosso passaporte para leitura e respetiva identificação. Após isso era emitido um cartão de papel
fino equivalente ao visto. Esse cartão deveria estar sempre acompanhado pelo passaporte durante a viagem e indicava a validade de permanência no território. Este processo é um pouco diferente do habitual carimbo no passaporte de forma a que a visita a outros países – como por exemplo o Líbano – não seja interdita se constar que a pessoa turista esteve no Estado de Israel anteriormente.
O interior do aeroporto de Tel Aviv – também conhecido como Ben Gurion, o primeiro chefe de Estado de Israel, apanhador de laranjas na juventude e jornalista, não exatamente por essa ordem – é bastante imponente e movimentado. Os seus terminais são modernos, com um ambiente espaçoso, tetos altos e áreas bastante abertas; com várias opções de comércio e áreas de descanso, as sinaléticas são bastante fáceis de entender estando tanto em inglês como hebraico. Através das suas indicações conseguimos chegar ao local de controlo onde centenas de passageiros aguardavam. Os cidadãos de Israel tinham a sua própria fila – muito mais pequena e célere, uma vez que não eram sujeitos a tão apertados controlos de segurança como os estrangeiros.
A tensão aumentava à medida que nos aproximávamos dos guichets. Reparei na quantidade absurda de bandeiras que se encontravam no espaço: ora hasteadas em grandes pórticos ora coladas às paredes brilhantes do aeroporto – seriam apenas as primeiras de uma mensagem bem clara que o Estado de Israel quer passar. Como o nosso voo se tinha atrasado ligeiramente, Preview
os nossos colegas de grupo – que tinham partido de Veneza – já se encontravam há algum tempo à nossa espera do lado de fora do aeroporto, já a “salvo” do temido security check. Vários minutos depois, encontrava-me frente a frente com o funcionário israelita que de imediato pega no meu passaporte e o começa a analisar com desconfiança. Estrategicamente – ou não – inclino-me em direção ao vidro que nos separa, deixando a descoberto a minha cristandade em forma de pendente. – O que vem cá fazer? Veio sozinha? Já cá esteve? Que cidades vai visitar? Em que hotel vai ficar? Quando vai embora? –disparou quase sem pausas, o que me fez estremecer no âmago. Ignorando a fraqueza nas pernas, repeti com a normalidade possível as respostas ensaiadas previamente com toda a certeza de que seria descoberta e mantida horas em interrogatório até me mandarem de volta para Portugal.
Enquanto me preparava para aceitar a realidade da derrota, é-me devolvido o passaporte e o pequeno cartão azul acompanhado de um seco «Enjoy Israel». Sou autorizada a avançar. A minha colega também. Aliviadas, encontrámos o resto do grupo sentado no chão do aeroporto à nossa espera. Dirigimo-nos ao exterior, já o negro pintara o céu. Aguardava-nos um pequeno autocarro e partimos rumo ao desconhecido na bruma da noite. Preview
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1. Preparativos de viagem paralelos
«Este ano vamos à Palestina, ok?»
Foi esta pergunta em tom de afirmação que me chegou através de uma mensagem da Susana no WhatsApp. Reli e fiz várias perguntas: vamos ser mesmo necessárias? Não seremos ruído para a situação?
Como contexto, íamos fazer uma visita de grupo com cerca de quinze italianos, sendo que uma das guias, a Susana, já a conhecia por ter estado num campo de refugiados da Bósnia a trabalhar. A Anna fazia viagens “guiadas” à Palestina, sabia falar árabe e já lá tinha estado muito tempo a viver, conhecia muito bem a realidade palestina.
Depois das perguntas respondidas, pesquisas rápidas e decisão tomada, tivemos formação online pré-viagem num sábado: o grupo italiano encontrou-se presencialmente, eu e a Susana assistimos online.
Nesta foi aprofundado o contexto histórico, dicas para a viagem e de comportamento, para não parecermos “demasiado ativistas”. Entretanto, a Susana (que sabe falar italiano) perdeu a conexão da Internet e eu fiquei à deriva a usar o tradutor do Google naquela ligação de Zoom.
Foi aconselhado levarmos scarpe grossos ou leves para a passeggiata e quanto à vinda do aeroporto seríamos melhor aconselhados mais tarde (apenas para não nos assustarem antes de Preview
irmos – momento que gerou um riso nervoso). Aconselharam ainda a levarmos cruzes ao pescoço.
Se nos nossos passaportes tivéssemos destinos considerados dúbios para o Estado de Israel, teríamos de estar preparados para dar uma desculpa. No meu caso fui à Turquia em 2021, a um training course de reflexão sobre o uso de storytelling para contar histórias de pessoas refugiadas cuja organização de acolhimento era composta por pessoas do Curdistão. Neste caso, fui “apenas aproveitar as praias de Antália” com uma amiga. Além dos planos B de destinos passados, assinámos ainda uma declaração antes de irmos, apenas para prevenir, caso falecêssemos.
Entretanto, fui ouvindo o excelente podcast da Fumaça sobre a ida da sua equipa à Palestina em 2017 e vendo alguns vídeos ou recursos sobre o contexto da região. Também comecei a ler
Jerusalém, de Guy Delisle, uma novela gráfica em que o autor relata o ano em que lá viveu.
Em 1989, os meus pais fizeram uma grande viagem desde o Egito até à Palestina (Israel, nas palavras deles). Neste último território, estavam inseridos num grupo com um guia israelita. Perguntei-lhes sobre a sua viagem, o que tinham visto e visitado. Eles contam-me sempre que passaram a cento e tal quilómetros de Gaza e visitaram um kibutz1, realçando a dificuldade que o povo judaico teve em construir estas estruturas.
1 De base sionista, são projetos agrícolas de exploração dos recursos da terra em territórios ocupados.
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