Algures no Tempo
Edição: edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: Algures no Tempo Autor: Emanuel Góis Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, julho de 2015 ISBN: 978-989-8821-03-4 Depósito legal: 395470/15 © Emanuel Góis PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
Emanuel G贸is
Algures no Tempo
Algures no Tempo
Todos temos dois “eus”
Todos temos dois “eus” o “eu” que guardamos e o que mostramos há o “eu” que fingimos e o “eu” que sentimos neste conflito lutamos nesta luta nos consumimos nesta disputa entre os “eus” nenhum surge ocasional por vezes, dá jeito o moral noutras, vale antes o racional tudo depende da vantagem no momento ou ocasião de usar um dos “eus” e o outro “eu” não nesta irmandade dos “eus” em rigor, não se dão bem mas perante o desafio na farsa que os alimenta recua o que argumenta avança o que mais convém 7
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no fim de tudo isto nesta mentira ancestral onde todos habitamos sabemos bem ao que estamos e se pode ser banal um dos “eus” se disfarçar sempre se sabe que um deles não é o “eu” real e na separação dos “eus” do ímpio, beato ou ateu sempre nos fica a certeza que no mundo da hipocrisia na humana natureza pouco importa a abulia desde que se tenha os dois “eus”
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QUERIA MUDAR O RUMO
queria mudar o rumo à minha estória e não consigo queria afastar o ódio que me consome… e não posso queria embebedar-me no nevoeiro da tua indiferença e não me dás abrigo queria a paz que não tenho queria voar para o alto da montanha e não me deixam queria receber a liberdade que me atormenta queria, queria, afinal libertar-me e ser gente
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FINALMENTE
Finalmente encontrei a folha quadriculada meticulosamente guardada na arca da minha avó desenhos de noites vividas pedaços de fragmentos sentidos de palavras que já não oiço
apenas o eco de estar só nessa folha quadriculada que importa se amarrotada como flor que murchou
vejo nela a ave que poisou vindo do ar assustada na folha quadriculada onde o sol se vê nascer e partir em debandada a ave que chegou
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amanhece rasgaram-se os desesperos na lua que se esconde quando anoitece
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SEMPRE SURGE UM EMBARAÇO
Sempre surge um embaraço na vida que se não planeia é ter na esquina um abraço que se quer e se odeia
hoje, amanhã ou depois na hora ou minuto de um qualquer dia no vazio que o tempo não apagou sempre a espera desespera a esperança que tarda e não surge
só esta música me sossega neste alto mar que navego me recorda e faz pensar
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naquele fim de tarde na praia de sapatos na mão e pés na areia escondemos nossos corpos nas dunas e contemplámos o horizonte engolir o sol e no vermelho rosa do céu te abracei os lábios nesse abraço que foi meu entre a loucura e o acto neste mundo de formato o dia se esvaneceu
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NESTE IMENSO AZUL
Neste imenso azul te beijo neste mar meu onde a esperança ceifaste no nevoeiro que desceu para longe navegaste
nas ondas revoltas me perco no branco do algodão me afogo neste lugar te aguardo aqui te vou esperar até que me chegue o cansaço
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apenas a lua na noite me acalma e me alimenta e, mesmo que haja fogo no céu nesta árvore te abraço na bonança ou na tormenta
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NAQUELE FIM DE TARDE
Naquele fim de tarde na tarde daquele dia onde a noite já chegava implorei-te uma palavra do pouco que já restava do nada que não havia
naquele fim de tarde na tarde que era fim a chama que ainda arde no incêndio que não apaga vi-te fugir apressada no dia que acabava
naquele fim de tarde petrificado fiquei em momento de negação apenas ouvi o compasso do silêncio que se escuta no bater do coração
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naquele fim de tarde nas cordas do violino dedilhei este meu verso vi a linha de um tear que já foi letra de hino e na pauta me disperso
naquele fim de tarde não escondo, angustiante a tecla deste piano desse tempo tão distante suavemente me canta meu Deus, como te amo
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ABRO A PORTA à MADRUGADA
Abro a porta à madrugada e deixo a noite entrar vou perder-me no espaço atiro para longe o olhar e ali fico a meditar no aperto deste laço que não me faz sossegar estendo a mão à lua que foge sem a conseguir agarrar que importa se vejo a estrela polar revejo a geografia do teu corpo e que faço? na inveja de não o apertar nesta madrugada me deito e te envolvo no leito no cansaço sem luar
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quando a madrugada veio senti medo no escuro do parque e receei agora na estrela que parte na distância que nos separa me leve de novo a amar-te nesta inquietude que ampara aquela lua de Marte fecho a porta à madrugada e percorro as linhas do teu regaço apago a estrela onde guardo a ternura do teu abraço neste grito de socorro de ver alguém que parte
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A LUZ NA TORRE
A luz na torre ilumina o mocho e se perde no teu corpo de mulher adormecida neste diário escrevo a sombra da sombra que foi noite e da noite que não foi dia
este nó que sufoca e aperta a culpa que carrego na inconsciente ousadia de escrever o que não devo
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vou sair e nas vagas do mar revolto lanço a corda mas não me solto até acordar um dia
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ESTE AMAR FUTURO
Este amar futuro que acontece no bico de uma ave que não voa na manhã de cada dia que amanhece há sempre uma noite que perdoa Há um tempo que a memória escurece no percurso de quem um dia quis voar fica o vazio quando o dia anoitece vai a noite quando a manhã chegar
No calor deste dia que me aquece aguardo a hora e algures onde esperar a esperança que alguém há-de trazer
Se a ave que voou não aparece no tempo que tiver de esperar assim, na noite, ficarei até mais ver
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FRENTE A FRENTE
Frente a frente ali ficámos desfolhando outonos senti sede e deste-me a beber o teu perfume
peguei no copo encostei os lábios e saboreei o ciúme de o não poder ter cheiraste-me as mãos e conservaste até hoje uma mala de nãos
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uma a uma no sossego da tarde olhando a janela fomos contando as folhas caídas de estórias proibidas bordando os sonhos de sorrisos trocados em chama que arde
chegou a hora no aconchego do abraço selámos o final abriu-se uma ferida ainda não sarada uma lágrima contida acabou por saltar
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na despedida deste-me a chave do teu segredo na caixa guardada que segurei atĂŠ hoje, guardei para o caso de um dia te poder encontrar
na varanda do teu olhar acenaste-me um adeus as cordas soltaram-se ouviu-se um apito e o navio partiu vozes amordaçaram-se e na distância medito se existe algum Deus
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QUISESTE
Quiseste ver o quadro que há dezenas de anos te pintei
milhares de léguas percorreste fizeste bem não fosse haver enganos naquilo que idealizaste
ansioso, aguardei a tua chegada e subimos a escada a caminho do museu
mostrei-te a nu a pintura mas o que viste já o tempo tinha corroído
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já gasto ali estava, sem valor o que o autor não soube conservar
porventura pincel estragado em tela errada ali estava o que mostrei
por isso aquilo que viste não gostaste
foi, apenas, o sinal que a figura que pintara simplesmente se fora
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naquele quadro o óleo que, então, brilhou o pó já apagara
saíste da sala e o artista percebeu que o modelo pintado se perdeu pegaste na mala e ouvimos no fundo a voz do porteiro dizer aos presentes fechou o museu
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SE UM DIA TE ENCONTRAR
Se um dia te encontrar neste violino te canto talvez se quebre o encanto talvez se vá o feitiço vem comigo navegar
uma a uma já contei vezes sem conta sei lá são quarenta as badaladas todas elas já tocadas no sino que a igreja tem
olha e segue o teu olhar que de longe te contemplo e quando o céu se tornar fogo nas masmorras deste templo teu corpo hei-de forjar
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e nas asas do condor esculpirei meu pensamento que o vento h谩-de levar foi assim que te encontrei na espera hei-de ficar
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HÁ SEMPRE ALGO QUE PERDURA
Há sempre algo que perdura sejam choros, sejam risos, glória ou exaltação momentos de ternura sorrisos que contagiam derrotas e humilhação Há sempre algo que perdura dos passos de uma dança da música que se sonhou num abraço que não cansa no papel da partitura daqulo que nos restou Há sempre algo que perdura numa foto já rasgada de desejos que se inventam desvios que se fizeram amores que se encontram em luta desesperada
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Há sempre algo que perdura de futuro que foi projecto das quedas que se tiveram na procura de um afecto neste azedo de mistura do presente que se não espera Vão-se os dias, vão-se os anos no calendário da vida até que chegue Dezembro liberdade ou clausura de tudo o que relembro sempre há algo que perdura
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RASGUEI TEU CORPO
Rasguei teu corpo no branco da tela com o pincel pintei o que o sonho modela e na imaginação por ali fiquei
no carvão dos traços desenhei-te a mão escolhi a tulipa e em misturas de tinta que a cor dissipa pedi-te perdão
espalhei as pétalas nos teus seios bordados de um azul do céu e no rosto rosado de rosa pintado coloquei-te um véu
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de lágrima caída disfarcei o chorar na pintura inventada e na figura despida então desenhada não quis acabar
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DEITEI FORA A PEDRA
Hoje deitei fora a pedra que carreguei no tempo e nĂŁo ĂŠ que ao cair se fez flor? guardada na mochila por anos e anos andei em viagem por montes e vales deltas e mares que o chĂŁo aquartela e na bagagem que o tempo mutila assim andei com ela percorri mundos conheci gentes corpos e mentes ricos e vagabundos e sempre comigo
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