AMEI-TE ATÉ ACHAR QUE ME PODERIAS
MATAR
FICHA TÉCNICA edição: Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) título: Amei-te até achar que me poderias matar autor: Paula Almeida capa: Patrícia Andrade Revisão: Ana Domingos paginação: Paulo S. Resende .ª edição Lisboa, Janeiro, 2014 isbn: ---- depósito legal: / © Paula Almeida
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AMEI-TE ATÉ ACHAR QUE ME PODERIAS
MATAR Paula Almeida
Amei-te até achar que me poderias matar
QUEM É? Não sei. Podemos ser cozinheiros, jornalistas, publicitários, economistas, advogados, desempregados, doutores, enfermos, parasitas, que, se ninguém nos perguntar porquê, quem é, quanto mede ou quanto pesa, não somos ninguém. Até podemos pertencer à mais velha profissão do mundo. Quem nos conhece? Quem nos vê? Quem nos reconhece?
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ESCREVER A maneira como escrevo revela-se na maneira de estar e torna-se perigosa porque, ao estar, dou-me. Dando-me, posso amar e, como sempre disse, amar dói. Quero estar sozinha. Para escrever, envolver-me sobre o que escrevo. Envolver-me é penetrar, sentindo. Isolar-me do resto em que me insiro, porque nem sequer o vejo. Demasiado íntimo e penetrante. Recuso-me a falar se fumo muito ou pouco. Que falem do que escrevo. Do que escrevo, como escrevo, sinto.
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O QUARTO DE UM ESCRITOR Acabei de vir de longe. Cheguei, destapei a máquina de escrever, peguei na caneta com as folhas do lado esquerdo e reparei que, se calhar, não gosto do que vos escrevo. Olho e começo a ler folhas soltas dos três ou quatro manuscritos corrigidos, incessantemente escritos. Rasgo, rasgo sucessivamente. Sinto que me esvaziei com vocês, acho que valeu a pena. Caramba, existem tantas formas através das quais podê-lo-ia ter feito, mas penso que soube escolher e tive oportunidade de fazê-lo, sob a forma mais bonita e intensa que conheço, a escrita. Sinto e preciso de nascer, renascer, apanhar lufadas de ar puro, se me quiser reencontrar com vocês em mim. Sonhei, vivi momentos íntimos, intensos e angustiantes com alguém ou alguém que não conheço. Desconhecida. Foi bonito, transcendente, de sobremaneira intenso. Gostaria de fazê-lo novamente. Não me ocorre de que forma, mas penso fazê-lo novamente. Prazer incalculável, pois vivi momentos únicos, profundamente marcantes e decifratórios, acerca de fases existenciais minhas. Tentaram negar o meu valor, o meu esforço profissional. Podem fazê-lo de diversas formas, mas que este livro foi escrito de uma forma verdadeiramente amada, e pelo qual irremediavelmente me encontro apaixonada, sim, será permanente e existencial. Não pretendo ser pretensiosa a dizer que acho que sou do tipo de pessoa que vale a 11
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pena conhecer, apesar de o achar plenamente. Pouco mais resta a dizer. Foi um trabalho bonito, difícil e extraordinário, com o qual me realizei em diversas facetas como pessoa. Momentos de inesquecível prazer, gozando ao sabor ritmado, solitário e bem-vindo da escrita. Se, por mero acaso, nasceu um novo escritor com euforia vos digo que, por mais que sejam ou sejamos, nascer para a escrita vale momentos incompensáveis ou vale, pelo menos, tentar, que foi basicamente o que fiz e pelo que lutei.
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DA FESTA DA MINHA JUVENTUDE ME DESPEÇO Muitas guerras gostei de não as ter visto, nem percebido. A algumas sobrevivi, outras enfrentei. E assim foi chegado o fim da Festa da minha Juventude. Por vezes demasiado frágil e infantil Por vezes demasiado doce a imatura Por vezes demasiado amargurada e insegura Por vezes demasiado egoísta e inconstante Por vezes demasiado apaixonada e revoltada Por vezes demasiado exposta Se assim não fosse, não era através da Festa da minha Juventude que me despedia de vocês. Achei que tinha uma palavra a dizer à geração que vem e segue a minha, um pouco diferente, mas sempre uma nova geração. Não serei muito pretensiosa a dizer que éramos a nata de Lisboa, as eleitas ciganas, queques vadias, belas na noite, encontradas de dia.
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O NOSSO EU Florbela Espanca diria Sonho que sou a Poetisa eleita Aquela que diz tudo e tudo sabe Que tem a inspiração pura e perfeita Que reúne num verso a imensidade E quanto mais no céu vou sonhando E quanto mais no alto vou voando Acordo do meu sonho e não sou nada… Fernando Pessoa Sim, não sou parvo nem romancista russo, romancista sim, mas devagar, sinto uma simpatia por essa gente toda, sobretudo a que não merece simpatia, sim, sou vadio e pedinte, mas sou-o por minha culpa, ser vadio e pedinte é não ser adaptável às normas sentimentais e reais da vida. Rafael Bordalo Pinheiro Uma cerâmica personalizada. Antoine de Saint Exupéry A criança que foi outrora uma pessoa crescida.
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Ana Paula Almeida Estrutura humana dotada de sensibilidade, materialismo e espiritualidade.
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DA MINHA GERAÇÃO DE AMIGOS Da minha geração de amigos todos se formaram Da minha geração de amigos todos se casaram Da minha geração de amigos todos se enfatuaram Da minha geração de amigos eu simplesmente me marquei Da minha geração de amigos também me casei Da minha geração de amigos também me distanciei, também me desiludi Da minha geração de amigos amei revoltada Da minha geração de amigos também me divorciei Da minha geração de amigos não me empantufei Da minha geração de amigos eu fui quem me libertei!
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PODER/TER Podíamos ser tudo na vida e não fomos nada Podíamos ter sabido querer alguma coisa e não quisemos nada Podíamos lutar e não lutámos Podíamos comprar e simplesmente roubámos Podíamos amar e simplesmente quisemos odiar
IDEIAS – Não vivo como os outros vivem, morrerei como os outros morrem. – Nesta cidade, poderemos morrer até darem conta que nos enterraram vivos. – Flores que desabrocham cedo são mortas pela geada tardia. – Um dia, morrerei sem saber como vivi.
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Sara AS SAIAS DA MINHA MIÚDA São quatro as saias da minha miúda. Eram as minhas saias de miúda. Gostava delas porque com elas parecia uma miúda travessa, marota e mimada. A minha miúda é bonita e gosta que lhe apalpe o rabo, que lhe diga que é bonita. Sente quando me magoa. Afirma-se, individualiza-se e é companheira. As saias dela são únicas, são dela. Eram maiores quando eram as minhas saias de miúda, até há bem pouco tempo. Agora, rendadas, bordadas ou lisas, rodam, voam e transparecem à luz do Sol. Uma Pipoca, a Sara sabe que quem manda aqui é ela.
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Gostava de contar uma história à minha menina. É cedo e faz tempo que ma devem ter contado e ma contaram – a dos Papões. À espera delas, atacam-nas. Querem matar as meninas. Estúpidos. Não os deixes matar. Não olhes para eles, eles não existem. Não tenho medo nem respeito. Como posso respeitar algo, sim, porque nem sequer é uma pessoa, que não existe? Nem medo, nem respeito. Ó vóvó! Dizem que há papões. Ó filha, vou lá acreditar nisso!
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AS MIÚDAS DE 83 O que elas sabiam e faziam, as miúdas de 83? Faziam e sabiam muita coisa. Viver? Tinham vivido pouco, topavam tudo à distância… Eram miúdas ciganas. Por onde andavam e passavam, não chegavam a passar despercebidas. Não eram ricas, intitulavam-nas de queques, talvez de berço. Aos 9 anos mascaravam-nas de rainhas. Na sua adolescência, ou no seu nascimento como mulheres, seriam pequenas déspotas endiabradas e de olhar malandro. Uma que conheço, deveras bem, tem o olhar mais malandro e silencioso que algures vi. Ri-se com o nariz quando está feliz e brinca com a sua facilidade de se aproximar das pessoas. Fá-lo de forma inocente, talvez para facilmente as cativar, só não gosta de trair. Fiel? Sempre, sempre a acreditar sabendo que nos podem facilmente magoar. Eram e são prendadas. Além de fazerem bolinhas enquanto fumavam, saboreando normalmente o seu SG gigante ou filtro, liam livros em francês e bordavam quadros em ponto cruz que ofereciam à Tia do Brasil ou ao amigo Sérgio Figueiredo, belo amigo. Senti saudades dele. Ele simplesmente foi continuar para aqui perto a sua vida, com a sua companheira de viagem. Entristece-me isto, vê-los partir. Se calhar, como fui a primeira a fazê-lo, não me recordo das saudades que neles ficaram do meu 20
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tempo de menina. Continuando o que vos estava a dizer, elas pintavam, desenhavam, cozinhavam, tricotavam, cortavam o cabelo ao seu namorado, pois tinham ciúmes das mãos de qualquer cabeleireira, era mais íntimo, próximo. De restos de tecidos, faziam trajo de palhaço para a sua filhota de 2 anos, nessa altura ainda no infantário. À procura de um canudo, depois de verem fechada a porta da Faculdade, enveredaram por outros ramos, como, por exemplo, hotelaria, jornalismo ou publicidade. Devido a este último, até uma rusga do metro apanharam, bem pesada, uma mensalidade de Instituto, mas, se não fosse paga, a menina queque não sabia dormir na esquadra próxima. Belos jantares para o grupo, 20 ou 30, éramos muitos. Este conhecia aquele, que, por sua vez, conhecia o outro. Iam a exposições, porque era o mais barato que havia, nem mesmo o cinema, e, fascinadas quando encontravam alguém com quem pudessem aprender mais, quase que o impediam de partir. Recordo-me agora do lançamento do livro 75 Anos dos Artistas em Portugal, de autoria de Margarida Botelho, com o qual tive a sorte de ser presenteada. Ensinaram-me a passear-me em frente a um quadro, penetro-o e, envolvida, sigo e acompanho a imagem/mensagem que me pretendem transmitir e partilhar. Como que num sonho, o qual só nós próprios é que o vivemos e, da mesma forma que sentimos e partilhamos o orgasmo de um homem, jamais o 21
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esqueceremos, porque a nossa memória apenas tem obrigação de reter os sonhos que nos fazem manter vivos e a acreditar que isto, por mais vezes que nos pareça um pesadelo e nos doa, é um sonho que merece ser vivido. Perdi-me com vocês, em mim. Elas também coleccionavam catálogos de exposições, é uma colecção bonita, além da de moedas ser mais rica e valiosa. Durante anos, guardavam bilhetes de concertos, música, teatros, cinema. As revistas, após serem lidas e recortadas para futuramente fazer arquivos de imagens, eram ainda utilizadas em creches e escolas ou consultórios. Passeavam-se também na cidade, com o cabelo ao vento, pensando e sonhando estar em Itália e terem o dom de se apaixonarem, como em Itália, Florença, Nápoles, e aí pariram o seu segundo filho, o seu primeiro livro. Parir dói, magoa, faz sofrer, chora-se, porque não se sabe como o vão ler, tal como uma mãe tem medo que lhe peguem no seu bebé. Oh, perco-me com vocês, tenho de ir ao dentista. Desculpem-me, até breve. Reencontro-me com vocês. Ontem, depois de ter ido assistir à Tourada no Campo Pequeno, 16.ª Corrida da Rádio, encontrei logo à chegada um amigo meu dos tempos de Liceu e das grandes Festas em casa do Diogo e do Samuel. Foi bom vê-lo, relembrámos com saudades os nossos tempos de Liceu. Disse-me que éramos a nata, éramos escolhidas a dedo, enfim, éramos as meninas queques do Liceu Dona Filipa de Lencastre. Em promessas de nos encontrarmos de novo, nos despedimos. 22
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Agora realmente me despeço. No fundo, estamos todos aqui, a minha malta, a nossa malta. Dizíamos nos tempos de Liceu: “Viva a malta de Liceu, quem não pensar como eu, que se mate, que se lixe”. Era, é e há-de continuar a ser uma bela malta. Até outro encontro. Antigamente, encontrávamo-nos menos solitários.
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O NOSSO JARDIM Sinto-o como hoje, hoje mesmo passeei-me nele. Se o sinto da mesma forma? Impossível dizer-vos que sim, mentir-vos-ia. Sinto o vazio e este torna-se imenso e magoa em demasia. Corria para o ver, esperava-o da sua vinda de Paris, com uma echarpe rosa na mão. Enrolávamo-nos em saudades. Fugíamos e, durante longos dias, jamais nos viam. Muitas flores, muitos amores e poesia, em melancolia. Sinto-o perto, longe. Ao atravessá-lo hoje em dia, após oito anos, percorre-me poesia e mágoa de saudade. No banco do jardim, ou no de pedra, sento-me e espero António Jorge. Dávamos beijos longos. Ele não chega, nem jamais chegará alguma vez na minha vida, para me oferecer uma echarpe rosa e beijar-me longamente. Sem tempo, esperei-o. Amei-o até achar que me poderia matar. Éramos miúdos com força e querer num mundo de adultos. Porquê, vida, és cruel? Ele nunca me mentiu, sempre me disse que a vida era dura. Achei que tudo isto se passava com os outros. Não foi sonho, foi o pior pesadelo de tempo que tive até hoje, faz tempo. Posso dizer-vos que ainda hoje não acredito e tenho inveja da miúda Ana Paula que, no banco do jardim, o esperava em saudade.
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