Ao Longe a Distância Um conto juvenil de introdução à Filosofia
Edição: Edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: Ao Longe a Distância – Um conto juvenil de introdução à Filosofia Autor: Fernando Freitas Capa: Patrícia Andrade (sob aguarela de Sandra Baião) Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, Abril de 2015 ISBN: 978-989-8678-96-6 Depósito legal: 392405/15 © Fernando Freitas PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
Fernando Freitas
Ao Longe a Distância Um conto juvenil de introdução à Filosofia
«Eu, a sabedoria, habito com a prudência; eu possuo conhecimento e discrição.» Provérbios 8, 12
«Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens.» José Saramago
«Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.» José Saramago
Para Sofia… minha alma… E Sandra… meu caminho… Com infinito amor!
A Noite Abre Meus Olhos
Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado na constelação onde os tremoceiros estendem rondas de aço e charcos no seu extremo azulado Ferrugens cintilam no mundo, atravessei a corrente unicamente às escuras construí minha casa na duração de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes A aurora para a qual todos se voltam leva meu barco da porta entreaberta o amor é uma noite a que se chega só José Tolentino Mendonça, in A Estrada Branca
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Prefácio UM BELO ROMANCE JUVENIL Com Ao longe a distância, Fernando Freitas escreveu um belíssimo romance para a puberdade e a adolescência. Com efeito, é nesta escala etária que as perguntas filosóficas sobre a identidade pessoal e sobre o sentido da vida mais se repercutem na consciência, gerando, não raro, uma angústia e uma desorientação individuais que, socialmente, podem ter efeitos perniciosos na vida do adolescente. Em Ao longe a distância, Fernando Freitas combina com harmonia os grandes temas da filosofia (quem sou eu? O que posso esperar da vida? Qual o sentido da Vida? O que são o amor, a felicidade?…) com uma história de encantamento entre Samuel e uma desconhecida que encontrou na praia e que recusa declinar-lhe o nome, porque, justamente, anda à procura de si, de quem verda deiramente é. Despede-se de Samuel dizendo ir à procura de si. Retratando uma pequena comunidade piscatória, com os seus lobos-do-mar (Mestre João) e as suas coscuvilheiras (Tia Emília), as suas famílias de classe média (a família de Samuel, a irmã irrequieta Joana, o avô dedicado à empresa, o filho professor do ensino secundário, a mãe doméstica) e os adolescentes buliçosos (Ricardo), o autor enquadra com realismo a história de Samuel e da desconhecida por quem se apaixona. Um realismo que se entretece de algum romantismo (a constante expressão de sentimentos que perpassam pelas personagens, 11
nomeadamente o aflorar de lágrimas) exigido tanto pela evolução dramática da história como pelo rompimento da vida normal que Samuel levou até então. A rapariga desconhecida, que veio de sofrer um profundo traumatismo (perda dos pais num acidente de viação), provoca, pela sua inquietação existencial, um idêntico traumatismo em Samuel, que passa a procurar-se, tentando responder às dúvidas filosóficas que o atormentam superando o «vazio» que sente. A desconhecida, que lhe diz ser porventura aquele encontro na praia o mais importante na vida de Samuel, deixa-lhe uma mensagem: «Contenta-te com o que és e o que conheces. Este pode ser um ótimo ponto de partida para te conheceres». O avô, dotado de uma sabedoria ancestral, ilumina-lhe o caminho da procura: «O caminho de cada um é tão misterioso como o próprio homem. A chave de mim, de ti, do homem é o seu mistério». Como se encontrará Samuel? Encontrar-se-á mesmo? Sim. A resposta encontra-se no mistério de uma gruta dos penhascos sobre a praia, que o avô incentiva Samuel a descobrir. Aqui, Samuel encontra parte da resposta, que o avô completará e que ele aplicará na sua família, como evidencia o último capítulo do livro. Caro Fernando Freitas: Parabéns pelo belo romance que escreveu.
Miguel Real Quinta de Santo Expedito, Colares, 16 de Outubro de 2014 12
Capítulo I NA PRAIA
Era de manhã, quando, ao longe, a vi pela primeira vez. A sua figura deslocava-se pelo ar como que flutuando por cima das ondas. Estava, então, junto ao mar naquela que, desde que me conheço, intitulei «a minha praia». Julgo que foi aí que pela primeira vez contemplei o mar. O sol abraçava a realidade despida como que a anunciar que chegara o momento de o mundo acordar. O que fitei ainda hoje recordo saudosamente. Com apreensão e medo, aventurei-me então a descer essa escarpa montanhosa até chegar à beira-mar. Celebrava a humidade contida na areia num misto de frio e inquietação à medida que me aproximava. Nos dias anteriores, tinha perdido o meu olhar na infinidade de azul. Nos últimos passos até conseguir atalhá-la, conjeturava como iria abordá-la de forma perfeita. Estava prestes a conseguir alcançá-la e perdido em habilidades para conhecê-la, e não podia deixar de acusar a sua alegórica fragilidade com olhos esbatidos em si mesmos. Finalmente, os meus passos tornaram-se estreitos na confiança de conseguir conhecê-la. Abeirei-me ainda mais e aliei-me dos seus passos, quando timidamente falei: – Olá, bom dia! 13
A resposta tardava quando, de repente, e ainda sem libertar a atenção de si, retribuiu-me a cortesia: – Sim… Bom dia… Admirado pelo seu «Sim, bom dia…», não colhi instantaneamente o que ela quisera dizer com aquele «sim». Naqueles bruscos segundos, não conseguira apreender a desatenção na formalidade. Não fora a resposta, mas sim o seu olhar desertor o que me despertou a atenção. A discrição prendia-nos. O fustigar das ondas e o eco esganiçado das gaivotas criavam um ambiente que se tornava imaginário, apenas por ser natural. Exigia-se encontrar os adolescentes motivos para o diálogo continuar e a consciência acumular, como se o mais efetivo conhecimento escavasse aquele que se exprime através de palavras. Antes de descer à costa podia jurar que sim, mas naquele momento já não possuía essa convicção. Aproximámo-nos lado a lado, sem a intrepidez das palavras, mas como se permanecesse uma outra linguagem que, por vezes, desviamos numa vida inteira. De repente, ela parou, olhou fixamente para mim, à medida que o meu rosto era invadido vergonhosamente por algazarras de perplexidade. Aquele olhar averiguava-me através dum desembaraço, decifrando interiormente e abrindo as portas do mistério que não me atrevia a anunciar. Indagou então: – Como te chamas? – Eu? – respondi. – Bem, eu chamo-me Samuel. Avançámos, como se o importante não fosse chegar ao limite da praia, mas sim ir. Tinha de compensar a pergunta, era urgente saber o seu nome. Dessa forma poderia, quando a deixasse, des14
cobrir mais sobre ela. Com desassombro e ensaiando várias vezes em pensamento como seria falar-lhe pela segunda vez. Foi então que, num ato de audácia e desassossego, enfim inquiri: – Então, e tu? A resposta não saiu da sua boca. Intimidado pelo seu recalcamento, examinava o meu pesar. Sim, era isso, necessitava de imaginar algo mais completo. – Desculpa, mas gostaria de saber o teu nome. Podes dizer-mo? Novamente, o silêncio instalou-se. Quando parámos de novo, com aquele olhar que já me causticara antes, retorquiu-me: – Também gostaria de responder-te. Procuro-me. Enquanto não conseguir descobrir quem sou, não poderei atribuir-me um nome. Era razoável aquele pensamento; no entanto, não pude deixar de exteriorizar espanto e assombro. Como era possível não ter um nome? Tudo parece ter uma designação, por muito relativa que seja, para descrever o que somos. Como era isso possível? As questões cresciam com enorme rapidez dentro de mim. Com aquela resposta, tinha perdido o acanhamento e estava decidido a interrogá-la. Todavia, o seu caminhar apressou-se, como que a fugir de mim e de si, pressentido as muitas questões de que necessitava para recrear a minha curiosidade. Afastando-se ela desembaraçadamente, perguntei-lhe como que a sentir já a sua ausência: – Onde vais? Como ver-te novamente? Ela respondeu-me: – Vou à procura de mim! E foi assim que encontrei pela primeira vez o amor… 15
Capítulo II O PORTO DOS SENTIDOS
Durante aquela noite não consegui adormecer os meus sentidos. Estava demasiado incomodado por uma multiplicidade de sentimentos que emergiram em mim. Pressentia que a primavera tinha chegado antes do tempo e é bom sentir o tempo. Os movimentos batentes do relógio faziam as pausas necessárias nos meus pensamentos. Tinha de saber mais sobre aquela pessoa que tinha como objetivo conhecer-se. Achava tudo muito irónico. Ela procurava-se e essa demanda era tão contagiante! Nem sequer tinha divagado muito acerca dela, mas essencialmente pensava na quantidade de emoções que acordara em mim. Até àquele súbito momento só tinha duas realidades que me inquietavam profundamente – o mar e o choro. Nem sei bem porquê, mas o facto de ter nascido numa vila junto ao mar tinha marcado para sempre a minha vida. Julgo que em frente ao mar sentimos a nossa pequenez e mesmo assim somos felizes. Estou certo de que sentimos a mesma sensação quando, junto aos Himalaias, observamos as longas montanhas cobertas de neve ou estamos em qualquer outro lugar do mundo, mas a razão é sempre a mesma – o sentimento de que somos parte da vida, nem que seja por breves momentos, e que nos encaminhamos para 17
um sentido pleno de absoluto. Muitas vezes refletia no porquê desse sentimento maravilhoso que tinha perante o mar. Tantas vezes é ocasião de dor para a comunidade pesqueira local. Mesmo assim, de geração em geração, o mesmo fascínio continuava bem vivo nos homens daquela simples, graciosa e fraterna vila. A dor e a morte de tantos pescadores não os demoviam de embarcarem na descoberta única de cada viagem. Julgo que a minha emoção pelo choro tem a mesma origem. Cada lágrima assume a nossa fragilidade. O mar tornou-se igualmente, para mim, e em especial na minha infância, o som das sirenes alertando para notícias de naufrágio, com as famílias a correrem para a areia confiante da praia, no desempate do regresso. A noite já não era das mulheres, mas das viúvas e dos órfãos. Deste modo o mar, tal como a vida, parece tornar-se num híbrido de morte e vida, alegria e dor. E embora o meu pensamento estivesse atarefado nestes afazeres, o meu coração, esse ignorado, estava bem longe e questionava-se a si próprio como era possível estar tão perto daquela rapariga, incógnita de si própria. No encontro não se tinha afirmado nada em concreto, apenas se quebraram as minhas certezas em relação à vida. Finalmente o relógio, quase de forma paternal, tocou. Eram quatro da manhã e era tempo de adormecer.
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Capítulo III ESPAÇOS DA RECORDAÇÃO
Na manhã seguinte, o sol batia incessantemente no meu rosto, através da vidraça da janela. Acordei sonolento. Tinha prometido a mim próprio que iria muito cedo à praia na esperança de encontrá-la. Consegui nessa manhã, talvez a primeira na vida, bater o recorde de rapidez ao tomar o pequeno-almoço. Naquele momento não era importante alimentar-me, mas correr o mais depressa possível para a praia. Podia ser que ela permanecesse ainda algures por lá. À medida que corria para o miradouro da praia tinha quase a certeza de que ela regressara. Os «bons-dias» sucediam-se com grande facilidade, sem referências a rostos, até que finalmente cheguei. Era pleno mês de Setembro e a praia, já perto da hora de almoço, estava cheia de pessoas na tentativa de suavizarem as suas vidas de tanto calor. Tentei visualizá-la, mas em vão. Estavam demasiadas pessoas, era quase impossível ver o imenso areal, quanto mais a… Neste momento tudo parou dentro de mim. Não conseguira saber o nome dela! Foi nesse momento então que optei por descobrir de forma inegável e convicta quem seria aquela pessoa que andava à procura do seu nome. Decidi falar com o Mestre João – o pescador 19