Autobiografia de Um
Cabo-Verdiano Francisco de Sales Lima
Edição: Edições Vírgula® (chancela Sítio do Livro) Título: Autobiografia de Um Cabo-Verdiano Editor: Francisco de Sales Lima, François Lima (mais conhecido por Chico) Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, Abril de 2015 ISBN: 978-989-8714-47-3 Depósito legal: 391794/15 © Francisco de Sales Lima PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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INTRODUÇÃO Desta obra é autor Francisco de Sales Lima, que, sem nenhuma preparação intelectual e com alguma pobreza literária, pois apenas fez a 4.ª classe da instrução primária, e dificilmente a obteve, pede ao leitor a sua indulgência perante as falhas que ela possa conter. Francisco de Sales Lima nasceu a 29 de janeiro de 1939, em Chã de Alecrim, na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. Teve pouca sorte na vida, e isso desde que viu a luz deste planeta, pois veio ao mundo numa altura não só em que a conjuntura atravessava crises desastrosas sob todas as formas, mas também em que a doença e a pobreza o atingiram. A essas circunstâncias juntaram-se as injustiças que foi sofrendo ao longo de toda a sua existência, tanto pela natureza como pela má gestão familiar, que era dotada de poucos recursos para desenvolver a sua inteligência. Esta obra não é mais do que um desabafo do autor na sua velhice, para se libertar dos pesos que lhe submergiram o espírito ao longo da sua vida. Nela sublinha a falta de estabili-
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dade residencial da sua família desde que ele veio ao mundo, uma situação que o acompanhou sempre ao longo de toda a sua existência; e também o autoritarismo paternal, as injustiças maternas, e as indiferenças fraternais, sublinhando sempre a dureza das épocas sucessivas que atravessou e procurando, de uma forma ou de outra, uma porta de saída do marasmo da sua adolescência, que o perseguiu na sua juventude. Na juventude, o pai mandou-o chamar simplesmente para o aconselhar a constituir a sua família e a deixar os sofrimentos no passado; melhorou então a sua forma de viver desde que formou o seu lar, e depois de ter emigrado. Estas páginas não são mais do que um grito e um desabafo do seu eu, vindos do fundo da sua alma. Pede-se ao leitor que as leia até ao fim e com a máxima indulgência.
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CAPÍTULO I Chamo-me Francisco de Sales Lima. Nasci a 29 de janeiro de 1939 no Mindelo, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde, na época uma colónia portuguesa, hoje República de Cabo Verde. Mais precisamente, nasci na localidade de Chã de Alecrim, num tempo em que as barracas feitas de pedra, cal e barro, sem quaisquer rebocos, emergiam da terra quais faces de estéril solo. Ainda de tenra idade, com poucos dias de vida, na verdade, mudei-me com a minha família para outro local, de nome Madeiralzinho. Mas parecia que estávamos no mesmo sítio, tão crua e despida era a paisagem. Os tempos eram difíceis. Mais tarde, vim a saber que nunca fui alimentado pelo leite da minha mãe. A falta de trabalho e a fome obrigaram-na a ir servir de ama para uma família burguesa de origem grega que vivia no centro da cidade do Mindelo. Os Karantónis possuíam um bar na principal rua da cidade, a Rua de Lisboa. Tinham um filho chamado Luís Karantónis, que, curiosamente, tinha nascido no mesmo dia que eu.
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Nessas condições, fui um bebé com pouca saúde, alimentado por apenas meia garrafa de leite de cabra, quando aparecia. Não admirava, portanto, que os meus pais passassem tanto tempo comigo no hospital. Soube que, certo dia, um tal Dr. Sócrates me administrou um medicamento que, na verdade, não era mais do que um frasco com veneno com a clara intenção de se ver livre da minha constante presença. Um dos irmãos do meu pai possuía um bar na cidade, e a minha sorte foi o meu pai ter passado por esse bar, a caminho de casa, e, estranhando o frasco que ele levava nas mãos, o irmão lhe ter perguntado o que era. Quando lhe disse que era um medicamento para o seu filho, ele obrigou o meu pai a enterrá-lo num sítio onde nem os cães pudessem encontrá-lo. Um mero acaso acabou, assim, por me salvar, mas o sinal estava dado. A minha vida seria tudo menos fácil… Tinha uma irmã que não era filha do meu pai mas que o tratava como tal e que cuidava de mim enquanto o meu pai ia à cidade à procura de trabalho para poder ganhar algum dinheiro para nós sobrevivermos. Ouvi dizer que, no meio das nossas brincadeiras, ela me fazia montar um cão que andava por lá. Naquela época, existiam muitos comerciantes em São Vicente. Muitos faziam parte de uma espécie de associação de malfeitores, vulgo maçonaria, e, durante a escura noite sem eletricidade da ilha, dedicavam-se a práticas malignas contra muitas pessoas. Porventura, o meu pai trabalhava por vezes para alguns deles. Num certo fim de tarde, estando o meu pai no bar do irmão, não muito longe da Rua de Lisboa, acompanhado da
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irmã e do seu esposo alemão, que alegadamente pertenciam à tal associação, embora não fossem tão radicais como os restantes membros, pôs-se a caminho de casa. Passados 2 km, foi surpreendido por ambos junto a um poço chamado Fonte de Sarafe. – Oh Antonino, anda cá! – ouviu ele. Estupefacto, até por não compreender como era possível encontrar-se com eles, na medida em que não tinha parado nem feito nenhum desvio no seu regresso a casa, escutou as duras palavras que saíram das suas bocas: – Não vás por esse caminho! Estão pessoas um pouco mais longe à tua espera; vão-te fazer mal, vais fazer um desvio e fazer um outro caminho que te vamos indicar. O meu pai acatou prontamente o conselho da minha tia (que nem cheguei a conhecer, diga-se) e do esposo. Depois de mim, foi a vez de o meu pai se safar de boa… Apesar deste episódio, ele estava determinado a fazer um trabalho para um outro comerciante da mesma estirpe. A sua missão era levar uma carta até à baía das Gatas, que ficava fora da cidade. Completamente surdo em relação aos conselhos dos nossos vizinhos e da minha pobre mãe – oh, que tempos tão crueis para ela! –, preferiu correr o risco, pois dinheiro era coisa que não abundava. Em má hora o fez. Nessa noite, chegou a casa completamente louco, gritando como se não houvesse amanhã. Tremia que nem varas verdes. Os vizinhos, alarmados, acorreram de imediato, de forma a ajudar a minha mãe e a acalmar o meu pai mas… sem sucesso. O meu pai tinha uma força brutal; na verdade, não sei se era força ou se era medo, um terror de morte. Mas uma coisa sei: nada o conseguia deter.
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Esta situação prolongou-se por muitos dias. Muitas foram as vezes em que o meu pai saiu a correr desenfreado em direção às montanhas e os vizinhos atrás dele, com medo que caísse nas rochas… Certo dia, o desespero apoderou-se da minha mãe. Com a ajuda dos vizinhos e apesar da estoica resistência oferecida pelo meu pai, conseguiu que o levassem para a porta da igreja da nossa pequena povoação. De repente, ao mesmo tempo que evitava a todo o custo entrar na igreja, Antonino virou-se para trás e acalmou-se de forma tão repentina e súbita que parecia que um raio lhe tinha cruzado a alma. Entrou de forma dócil e mansa, sem esboçar qualquer tipo de reclamação ou repulsa. Pela boca da minha mãe, vim mais tarde a saber que o meu pai lhe contara que fora confrontado naquele momento com uma autoritária aparição da sua falecida mãe, que lhe terá dito que a sua salvação estava dentro da Casa de Deus. Seja como for, e depois de ouvidas algumas orações do padre, o meu pai foi recuperando pouco a pouco a sua saúde. Em tão poucos anos de vida (se a memória não me falha, não teria mais de três ou quatro anos nessa altura), era já a segunda vez que via o meu pai fintar o destino. Pouco tempo depois, tivemos de mudar novamente de habitação. Fomos morar para uma aldeia vizinha chamada Cruz de João Évora. Na verdade, desconheço quanto tempo por lá ficámos e, sinceramente, a minha memória não me permite descrever nenhum acontecimento que tenha ocorrido por aquelas bandas mas… enfim, fica o registo de mais uma mudança de residência.
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No entanto, entre a minha escassa memória e as histórias que me contaram, recordo-me de um outro episódio ocorrido por volta de 1943/1944. Para não variar, estávamos eu e a minha família a viver numa aldeia chamada Pedra Rolada (sim, mudámo-nos novamente!). A paisagem era a mesma de sempre e vivíamos numa pequena casa que pertencia a um tal Sr. Jansénio, um burguês que vivia na cidade e era detentor da única tipografia existente na ilha de São Vicente. Essa era, pois, uma casa de fim de semana para ele e para a sua família e os amigos que, em troca da sua manutenção, foi cedida ao meu pai. Nessa altura, a minha mãe estava grávida do meu irmão, Augusto Vandiciano Lima. Tínhamos um vizinho próximo, conhecido por António de Almeirão. Homem já de certa idade, muitos diziam que era um bruxo, e até andava com uma espécie de varinha nas mãos. Certo dia, António de Almeirão encostou a varinha junto à barriga da minha mãe e ela, que não deixava passar nada nem ouvia desaforo de ninguém, correu para junto dele, chamando-lhe atrevido e toda a espécie de nomes, dizendo mesmo que, se alguma coisa viesse a acontecer com a sua gravidez, o teria por responsável. Desse por onde desse, far-lhe-ia pagar por todo o mal que daí resultasse. O meu irmão acabou por nascer no dia 11 de março de 1944. A parteira foi uma senhora chamada Nha Vitorina. Na altura do parto, eu e a minha irmã fomos postos na rua para não vermos a nossa mãe a dar à luz. Oh! Como estávamos curiosos! Tentávamos espreitar junto da porta, na esperança de poder ver alguma coisa.
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Não me lembro muito bem de como tudo se passou, mas recordo-me de ouvir de repente um grito de um menino. De forma instantânea, eu e a minha irmã apelidámo-lo de Cuca e assim ficou até hoje. (Tenho de sublinhar que o meu irmão não gosta que o chamemos assim.) Entretanto, as vicissitudes e dificuldades da vida conti nuaram a desempenhar teimosamente o seu papel. O meu pai resolveu regressar ao Norte da ilha de Santo Antão, a sua terra, onde tinha alguns familiares. Apanhámos um barco que se chamava Vascona e que fazia a viagem entre São Vicente e o Tarrafal de Santo Antão. Ao mesmo tempo que transportava os passageiros entre estas duas ilhas, carregava igualmente água doce para se beber em São Vicente. Chegados a Santo Antão, mais precisamente ao Tarrafal de Monte de Trigo, pusemo-nos a caminho, a pé, rumo ao Norte. Na verdade, havia muitos quilómetros para percorrer. O meu pai conhecia bem o caminho, mas nós não. Fomos andando pelos campos fora até que a sede foi tomando conta do nosso corpo e da nossa mente. A certa altura, a minha irmã, não suportando mais, caiu redonda no chão, quase sem sentidos. Prontamente, o meu pai deixou-nos ali e desatou a correr. Ele sabia para onde se dirigir até chegar a um sítio chamado Cedron, aonde as mulheres iam buscar água. Ao chegar, não cumprimentou ninguém. Agarrou numa lata de água, colocou-a nos ombros (ou na cabeça, não sei bem) e voltou a correr em sentido inverso. Claro está, muitas mulheres começaram a gritar: «É o Antonino! Parece que vem doido de São Vicente!».
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Outras, conhecendo-o melhor, pensaram que certamente o meu pai não estaria doido: para agir assim, com toda a certeza estaria a passar-se alguma coisa. Já junto de nós, deu-nos de beber, dando prioridade à minha irmã Maria Cristalina (em casa era tratada por Bia, e eu por Nuna). Bebemos todos um pouco de água, descansámos e continuámos a nossa caminhada. Confesso que não sei quanto tempo estivemos a caminhar, mas acabámos por chegar ao Norte de Santo Antão. Ficámos por lá algum tempo, na medida em que o meu pai foi trabalhar para os campos juntamente com outros lavradores, de forma a ganhar qualquer coisa para o nosso sustento. Para não fugir à regra, vivíamos numa pequena barraca. Não tínhamos, de facto, outra alternativa. Estávamos em 1944. Num certo dia, creio que em agosto, ouviu-se um grande apito vindo do meio da baía de São Vicente que se ouviu até em Santo Antão. Em quase toda a parte e de forma repentina, a multidão encheu as ruas das vilas e aldeias e mesmo os campos; cantavam, pulavam e dançavam, gritando as palavras «Guerra já ’caba!!! Guerra já ’caba!». Finalmente, tinha terminado a Segunda Guerra Mundial.
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CAPÍTULO II Nessa altura, à procura de melhores dias, o meu pai decidiu voltar para São Vicente. Como não teve possibilidades de nos levar com ele, deixou-nos no Tarrafal e foi procurar trabalho naquela ilha, tentando igualmente arranjar um lugar para morarmos. Felizmente, ele tinha um irmão que trabalhava na fábrica de pão e bolachas Favorita, que era propriedade de um português de nome Manuel de Matos. Esse meu tio chamava-se José da Graça, sendo conhecido por Ti Djô de Padaria, e conseguiu arranjar-lhe um trabalho na dita fábrica. Obviamente satisfeito, o meu pai fez-nos regressar para junto dele tão depressa que nem sequer teve tempo de providenciar uma morada para nos albergar! No entanto, fomos recebidos por uma senhora que se chamava Lucinda que habitava defronte da fábrica. Era da ilha de São Nicolau, a terra da minha mãe e, por ter batizado a minha irmã Bia, era também sua comadre.
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A casa era pequena, pelo que, infelizmente, ficámos apenas um ou dois dias. Assim sendo, tivemos de nos refugiar junto do nosso avô materno, que morava numa cafua (não se lhe podia dar outro nome, de facto), para os lados da Areia Branca. Era quase uma rocha, no lado esquerdo do caminho a pé para Salamansa. Não sei precisar quanto tempo por lá ficámos, mas recordo-me de uma coisa: o meu avô não gostava de mim, embora eu só tivesse dado por isso muito mais tarde. Algum tempo depois, mudámo-nos para uma aldeia chamada Lombo de Tanque. Aí, tínhamos uma casinha um pouco melhor, embora não tivesse portas. Usávamos um saco para as substituir que ao mesmo tempo servia para nos agasalhar. Permanecemos aí algum tempo, mas, quando o meu pai perdeu o emprego na Favorita, tivemos de nos mudar outra vez. Nada a que não estivesse habituado, portanto! Ao que parece, o meu pai veio a conhecer um padre chamado Cecilo, que lhe terá doado uma antiga construção. Era uma enorme ruína conhecida por Igrijinha, mas havia também quem lhe chamasse Igreja Nova; em troca de abrigo, o meu pai ficaria com a função de guarda da mesma. A ruína situava-se junto do Madeiralzinho, onde já havíamos residido, mais precisamente na Fonte do Meio. No fundo dessa ruína, existiam dois quartos. No entanto, só um oferecia algumas condições para nos instalarmos, apesar de, à semelhança do que sucedera em Lombo de Tanque, não ter porta. Como se pode facilmente adivinhar, usávamos o «saco salvador». Ficámos por lá bastante tempo, infelizmente. Na verdade, foi até à minha adolescência.
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E assim fui crescendo, até que o nosso avô, já velhote, veio viver connosco, tinha eu seis ou sete anos de idade. Curiosamente, foi a partir dessa altura que comecei a compreender melhor o quanto ele me detestava. Os meus pais costumavam ir à cidade em busca de trabalho. Para o meu pai, desde rolar tambores de petróleo para as grandes firmas e outras coisas do género, ele fazia de tudo. Para a minha mãe, qualquer tarefa que aparecesse, desde vender roupas na rua, tudo servia também, desde que desse para ganhar algum dinheiro. Saíam de manhã e só voltavam à tarde ou mesmo à noite e, pior ainda, muitas vezes sem terem ganho rigorosamente nada. Esperávamos impacientemente por eles… Quando chegavam, era uma autêntica festa! Lembro-me de passar o dia todo sentado no lombinho um pequeno alto que ficava mesmo à frente da ruína (daí o nome que lhe dei), junto a uma espécie de ribeira onde havia um poço de água, a tal Fonte do Meio, à beira de uma estrada. Sentava-me de olhos fixos na cidade, esperando ansiosamente pelos meus pais. Cheguei a ficar dias inteiros sob um sol escaldante, usando uma camisa ou um pequeno calção; às vezes, nem isso: estava praticamente nu! Por vezes, o meu pai encontrava trabalho como servente nas obras e então as coisas corriam um pouco melhor. Um dia de trabalho, por volta de 1945-1946, não rendia mais de seis, sete ou oito escudos mas dava para comer uma cachupa ou fazer papa com leite que comia de mau grado (especialmente esta última).
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Nesse período comecei a compreender muitas coisas. Uma delas foi o facto de a minha mãe me tratar de forma bastante diferente em relação aos meus outros irmãos. O meu pai também percebeu isso e lembro-me de ele me ter dito para pedir leite à minha mãe quando visse a minha irmã a ir comprar leite para comer com a sua papa, já que raramente comia a minha com leite. Ainda me recordo das suas palavras: – Comeste leite ao almoço? – perguntava-me. E a minha resposta era sempre não. – Quando vires a tua irmã a comer a sua papa com leite, pede à tua mãe para te dar também! – retorquia com igual frequência. Cedo comecei a perceber que estava entregue a mim próprio.
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CAPÍTULO III Naquele tempo, em todas as casas havia uma lata de despejo onde se juntavam os excrementos com água suja. Obviamente, essa lata tinha de ser despejada: as pessoas mais abastadas pagavam para mandar fazer esse desagradável serviço. Quanto aos mais pobres, tinham de ir defecar em lugares mais escondidos, onde não pudessem ser vistos, mas as urinas da noite e as águas sujas tinham de ser despejadas logo ao nascer do dia. Estou a abordar este assunto porque, ao escrever a minha autobiografia, é do meu entendimento que não devo fugir ao mais pequeno detalhe. Na verdade, não será a nossa vivência um somatório de detalhes? Não existirão detalhes que nos marcam para o resto da vida? O despejo das latas era uma tarefa exclusiva das mulheres; a mentalidade daquela época, nos meados da década de 1940, era assim. Mas a beleza da minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, contrariou essa espécie de desígnio. Ela era linda, de
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facto. Toda a gente gostava dela, para não citar só os homens. Ainda adolescente, já despertava o interesse… Assim sendo, a minha mãe fazia questão de não a deixar fazer certos trabalhos que a desvalorizassem aos olhos de todos. Como o leitor já poderá imaginar, não seria certamente a minha irmã a pessoa encarregada de executar a horrível tarefa que acima descrevi… Será necessário referir a quem foi entregue então o trabalho sujo? Penso que não! Pois, foi a mim. Por outro lado, quando eu e a minha irmã íamos ter com a nossa mãe, para a ajudar a trazer as compras feitas com o dinheiro que eventualmente tivesse ganho, era eu a mula de carga. A minha irmã, sempre bem vestida e calçada, vinha de mãos vazias. Não pegava em nada que fosse pesado ou que a pudesse «envergonhar» aos olhos dos outros. Por exemplo, era sempre eu quem trazia o balaio cheio de carvão em cima da cabeça, para utilizar no fogareiro. O fogareiro era uma espécie de lata de tinta de 50 litros onde cozinhávamos os alimentos, com carvão de lenha ou um carvão a que se chamava nhocácio. Tinha um furo de cerca de 20 cm de lado e na boca era feito um emboço onde assentava a caldeira, uma panela de ferro com quatro pequenas patas por baixo. Apesar do meu desagrado em desempenhar as tarefas mais duras e sujas, não podia dizer nada e assim fui continuando. Antes de ter completado os meus sete anos (faço anos em janeiro), e tendo em conta que a escola começava em outubro, o meu pai entendeu matricular-me na escola primária, para evitar eventuais atrasos. No entanto, a minha matrícula foi recusada, precisamente por não ter atingido a idade para o
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efeito, vindo a ser matriculado só no ano seguinte, já com oito anos de idade, portanto. Eu não era bom nas aulas. Não tinha a faculdade de reter o que quer que fosse na memória e, como o meu pai desejava que fosse o melhor da escola, forçava-me a estudar até muito tarde, à noite de facto e à luz de lamparina. Acordava-me de manhã muito cedo para que retomasse o estudo, mas a minha fraca memória não me dava rendimento nenhum. Lembro-me bem do dia do exame de passagem de ano, como dizíamos. O meu pai pensou que eu não estava apto para o fazer e, talvez querendo que eu passasse com notas altas, não sei, resolveu que nesse dia eu não iria à escola, com o pretexto de estar doente. A escola (chamávamos-lhe Escola Nova) ficava a cinco minutos do sítio onde morávamos e eu tinha um companheiro de aulas chamado João de Deus que morava no Madeiralzinho. A Dona Tanha, filha de Nha Rosalinha de João Beto e minha professora, era muito minha amiga. Resolveu mandar João de Deus dizer ao meu pai para me deixar ir à escola fazer o exame, regressando depois imediatamente a casa. E, como se isso não bastasse, disse também que passaria em primeiro lugar! João de Deus foi pelo menos três vezes a minha casa. Da última vez, a minha professora terá dito ao João para informar o meu pai de que ele mesmo me carregaria nas suas costas até à escola, trazendo-me de volta da mesma forma! Não podendo mais negar, o meu pai disse-me: – Vais fazer o exame. Mas vais fazê-lo como se estivesses realmente doente, ouviste? E assim fiz. E foi desta maneira que passei no exame.
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Esses primeiros anos foram difíceis para mim. Como se não bastassem os frequentes pesadelos que tinha com o meu avô materno (entretanto falecido), aquela enorme ruína onde morávamos também me fazia sentir coisas sem explicação, mesmo durante o dia. Não sei bem o que seria, mas aquela igreja parecia albergar espíritos e companhias que não eram nada, mas mesmo nada, agradáveis… Falando de coisas mais palpáveis ou mais explicáveis, diria que, além da diferença de tratamento entre mim e a minha irmã pela parte da minha mãe, o meu pai era bastante severo comigo. Para ele, eu deveria ser melhor do que todos. Não podia falhar em nada! Mas, infelizmente, isso era-me impossível. Era e continua a ser. Para mim e para qualquer comum mortal. Na verdade, o meu pai não me perdoava nada. Era sempre castigado quando falhava e, naquele tempo, usava-se muito o cinto ou a palmatória. Como eu era medroso, estabeleceu um pacto comigo: se eu não chorasse nem saltasse no momento do castigo, só me daria três cinturadas ou três palmatoriadas. Caso contrário, multiplicaria por três por cada vez que pulasse ou chorasse. Era difícil resistir, mas por vezes conseguia… Quando, a seus olhos, fazia coisas demasiado graves, chegava mesmo a pegar numa corda, enrolava-a na minha garganta e pendurava-me no lintel da porta… Ainda ouço os gritos de desespero da minha mãe: – Vais matá-lo, Antonino! Vais matá-lo! Certa altura, o meu pai cansou-se de mim e levou-me ao Sr. Mota Carmo, que era o administrador na ilha. Pediu-lhe que me colocasse no albergue, que era uma casa para crian-
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ças desfavorecidas. Fiquei ao cuidado de um tal Sr. Djunga, conhecido por Nhô Djunga, que também era fotógrafo. Ficou comigo durante cerca de 15 dias, mas o meu pai acabou por me ir buscar. Esta memória da severidade do meu pai não se aplica somente em relação à minha pessoa. Recordo-me de que ele batia na minha mãe com bastante frequência. Ela não sabia ler, o que, além da incompreensão que resultava entre eles, provocava a ira do meu pai. Tantas foram as vezes em que eu saí a correr pelo meu lombinho abaixo, cheio de medo!
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CAPÍTULO IV Os anos foram passando e eu fui continuando na escola. A minha irmã não teve a mesma sorte do que eu e, sempre que podia, ia-lhe ensinando alguma coisa. Mas a Bia continuava a ser a preferida de todos. Frequentava muitos grupos de baile, aquilo a que chamamos malta nos dias de hoje. Contrariamente ao meu pai, a minha mãe gostava muito de que a minha irmã fosse dançar. E o mais constantemente possível. Mas o meu pai só o permitia se a Bia fosse na companhia da minha mãe. Mais tarde, comecei a acompanhá-la. Algo de que gostava muito, pois aprendi a dançar e encontrei um grande prazer nisso. Mas, com os meus 10 ou 12 anos, comecei a perceber outras coisas. A minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, tinha muitos pretendentes e eu era bastante ciumento. Nesse sentido, não gostava de todos, só mesmo daqueles de quem me apetecia gostar! Durante as férias, ia a uma ou outra oficina para tentar aprender uma profissão. Na primeira vez, fui até à Pontinha,
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que era a oficina mecânica mais afamada em Cabo Verde. Tinha um mestre que se chamava Cunque. Era muito malcriado, pois dizia muitas obscenidades.
Acabei por ficar apenas oito dias, pois certo dia, não me recordo porquê, ele disse-me alguma coisa sobre a minha mãe. Fui para casa a chorar e então o meu pai não me deixou frequentar mais a tal oficina. Numa outra vez, já durante outras férias, fui a uma oficina de carpintaria, de Nhô Filipe, mas depois deixei de a frequentar. Já pelos meus 12 anos, lembro-me de que o meu pai continuava a bater na minha mãe. Já não suportava mais e um dia, sem saber o que fazer, levantei-me, pus-me de pé em frente do meu pai, com todo o medo que eu tinha, voltei-me para ele e disse-lhe: – Esta é a última vez que bates na minha mãe na nossa presença. Se continuares a fazê-lo, eu contigo seremos dois homens. O meu pai não voltou a repetir as agressões, mas, algum tempo depois, acabou por se separar da minha mãe, abando-
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nando-nos. Foi viver com outra mulher na terra dele, Santo Antão, e, na verdade, nós ficámos desorientados. Pelo menos, enquanto ele estava connosco, eu ia frequentando a escola. Como já referi, eu não era nada bom nos estudos. Reprovei duas vezes, uma na 3.ª classe e outra na 4.ª. Por isso tive mais do que um professor e só terminei a 4.ª classe com 14 anos. Naquela altura, chamava-se 2.º grau e quem o tivesse não era assim tão analfabeto… Por uma razão ou outra de que não me recordo, tivemos mais uma vez de nos mudar, saindo da Igreja Nova. Fomos morar para casa de um casal de Santo Antão, para os lados da antiga carreira de tiro. Nhô Manel e Nha (derom) Dos Ramos tinham um filho que se chamava António e uma filha de nome Marcelina. Habitavam numa barraquinha que ficava num fundo e aí ficámos, mas por pouco tempo. Eu estava um pouco desorientado, ao abandono até. Desde criança que a minha mãe nos falava de um tio que tinha na ilha do Sal, que nós não conhecíamos. Ele tinha uma loja naquela ilha e passou-me pela cabeça aventurar-me por aqueles lados. Fui num barco que se chamava Santo Antão. Nem sei bem como foi, mas acabei por ir de graça, porque não tinha dinheiro para pagar a passagem. Chegado ao Porto da Palmeira, que era feito de um monte de pedras a que os botes acostavam para os passageiros saltarem e para descarregar mercado rias, ao pular reparei que estavam algumas pessoas sentadas a uma pequena distância. Entre elas, estavam algumas raparigas. A mais nova, com os seus 17 ou 18 anos, perguntou-me:
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– Tu não és do Sal? – Não – respondi eu. – Tu vais para casa de quem? – voltou a perguntar. Disse-lhe que não sabia bem, que tinha um tio conhecido por nome de cabelo que morava nos Espargos, mas que não sabia quem era, nem sequer onde ficava tal localidade. – Ele está à tua espera? – questionou a moça. – Não – voltei a responder. – Então, ficas cá comigo. Vou tomar conta de ti – afirmou a rapariga. E assim fui acolhido na ilha do Sal. Fiquei com ela durante algum tempo, tendo vindo a saber mais tarde que era prostituta. Na verdade, ela ensinou-me a conhecer as mulheres… Uma semana mais tarde, a minha irmã chegou de surpresa à ilha do Sal. Naquele mesmo porto, quando a vi, fiquei surpreendido e bastante contente. Ela ia diretamente para casa do nosso tio e foi dessa maneira que finalmente consegui conhecê-lo. Ao chegarmos junto dele, disse-nos que não tinha forma de nos acolher, a não ser por alguns dias. Pouco tempo depois, consegui encontrar um trabalho no único hotel que havia no Sal e que ficava no acampamento junto ao aeroporto internacional. O meu trabalho consistia em tratar das bagagens das pessoas que chegavam. Lembro-me bem de um casal de italianos que ficaram por lá algum tempo e que tinham uma filhinha com uns 14 anos. Ela simpatizou comigo e levava-me quase todos os dias ao «morro de curral», onde havia uma piscina e um campo de ténis. Tomávamos banho juntos e brincávamos… Nunca esqueci nem esquecerei esses maravilhosos momentos!
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Nessa altura, dormia no dormitório do hotel, à semelhança de todos os empregados. Ao chegar o fim do ano, mais precisamente o Natal, tive uma forte desejo de comprar um fato todo branco para usar naquela quadra festiva mas… o dinheiro não me chegava. Fui ter com um senhor de nome Toi Pedro, que era dono de uma loja. Confiou em mim e disse-me: – Toma este fato e paga como puderes – afirmou ele, para grande surpresa minha. Senti uma alegria enorme e vesti o fato todo branco no Natal. Primeira e última vez. Na noite de Natal saí com alguns amigos para dar as boas festas a todos os que conhecíamos e em cada casa tomávamos um copo de martini, de vinho do Porto, de licor ou de vinho doce. Quando chegou a madrugada, estava com uma bebedeira… e já me tinha rebolado todo pelo chão de terra vermelha; de manhã, em vez de branco, o fato era cor-de-rosa! Mais tarde – confesso que não me recordo do motivo – vim a perder o emprego no hotel. Uma senhora conhecida por Bia de Petcha, que morava no Hortalão, uma aldeia um pouco mais distante, acolheu-me em sua casa, juntamente com os seus filhos Fátima, Manuela, Zecas, Leonor, Ângela e mais um ou outro filho de cujo nome não me recordo, tratando-me como se fosse igualmente seu. Encontrei mais tarde um trabalho como aprendiz de eletricista, situado também no morro de curral. Lembro-me de estar numa obra, a estender uns fios num telhado falso, apoiado em quadrados de vigas. Chamaram-me à atenção, recomendando que tivesse cuidado ao colocar
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os pés, pois podia ir parar ao chão e, como havia muitos ferros, as consequências poderiam ser bastante graves para mim. Aconteceu que me desequilibrei mesmo e caí mas, estando Deus comigo, agarrei-me a duas vigas e fiquei pendurado. Tiraram-me dali com uma escada. Recordo-me também de estar na oficina a lubrificar um motor com umas rodas dentadas que rolavam apoiadas umas nas outras. O motor estava em funcionamento e o movimento impedia-me de ver se estava a entornar óleo ou não. A minha mente disse-me para pôr um dedo de forma a verificar se havia óleo. Ora, uma dessas rodas começou a levar-mo e tive de puxá-lo imediatamente, senão corria o risco de ficar sem o braço inteiro. Mas a falange do dedo médio ficou lá dentro a remoer e, quando consegui escapar, desatei a correr em direção ao único posto de socorro que havia nos Espargos, o qual não ficava longe do hotel onde trabalhei. O dono da oficina era um português que, ao ver o sangue no chão e eu a correr, se meteu na carrinha e foi atrás de mim. Mas, quando chegou à minha beira, já eu estava junto ao posto! Ufa, nunca tinha sofrido o que sofri naqueles dias! Nha Bia fazia bolos e pastéis de sucrinha de leite e outras coisas para vender. Eu e a Fátima íamos tentar vendê-los pelas ruas do morro, nos Espargos, junto ao acampamento e na porta do único cinema que existia. Por vezes, vendíamos tudo; outras não. Entre mim e a Fátima existia uma certa conivência. Não sei se era por nos tratarmos como irmãos, ou se seria algo mais íntimo… A minha irmã também morava com essa senhora, mas, como sempre e como a minha mãe a acostumou, não fazia nada.
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Certo dia, passou pela cabeça de Nha Bia organizar uma festa, embora não houvesse nenhum motivo especial para isso. Então um de nós, já não sei quem, resolveu que eu devia ser batizado e assim se encontrou uma razão para fazer uma festa. No entanto, a única igreja que existia não tinha padre. De vez em quando, havia um padre italiano que, de passagem, celebrava uma missa. Mesmo assim, fomos tentar a nossa sorte e, por acaso, encontrámos um padre que estaria na igreja por dois ou três dias. Falámos com ele, que aceitou batizar-me de imediato. Nha Bia organizou o meu Batismo com tanta rapidez que em três dias fui batizado, sendo ela a minha madrinha. Foi uma boa festa, recordo-me bem. Entretanto, a minha irmã acabou por partir para São Vicente – não sei precisar quando – e eu permaneci 11 meses na ilha do Sal.
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CAPÍTULO V Voltei depois para São Vicente. A minha mãe habitava no Lombo, na Rua António de Nola. Morava numa casa antes habitada por uma sua prima, Nha Tanha Bia era seu nome, que era de São Nicolau. A casa ficava em frente a um bar conhecido naquela época, chamado Nha Apolónia. Ao chegar, não havia ninguém em casa. Eu tinha uma malinha de madeira, que era o que se usava naquele tempo para guardar as roupas. Fiquei de pé à espera, na porta. Haveria de aparecer a minha irmã Bia, o meu irmão Augusto ou a minha mãe. A primeira pessoa que apareceu foi a mamã. Ao ver-me, ela pôs as mãos na cabeça como quem diz: «Oh, meu Deus, o que é que ele veio aqui fazer?». Fiquei completamente desiludido. Só me apeteceu chorar, mas felizmente não o fiz. Entrei, e ela não me disse nada. Ali fiquei a pensar… Na realidade, não sabia o que fazer. Queria era trabalhar e ganhar dinheiro, embora fosse muito novo.
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Fui então aprender o ofício de sapateiro. Cheguei a trabalhar no Sr. Henrique, conhecido por Henrique Sapateiro, ao lado da igreja, junto da drogaria Gaspar. O Sr. Henrique também trabalhava como ator num filme que estava a ser produzido em São Vicente e que se chamava Cavaleiro Mascarado. Comecei a aprender alguma coisa naquela casa e depois fui trabalhar para uma outra sapataria, que pertencia a um polícia chamado Nhô Lela, situada na Rua da Luz. Aí trabalhei algum tempo, aprendi a deitar meias solas e ganhava alguma coisa aos fins de semana. Também engraxava calçado nessa sapataria, o que me dava algum dinheiro para ir ao cinema. Recordo-me de que havia um rapazote que morava no monte e era conhecido por Dai. Devia ser dois ou três anos mais velho do que eu e dizia que gostava da minha irmã (que tinha mais três ou quatro anos do que ele). Ele tinha prazer em ir à sapataria para me dizer que gostava dela e que tinha de fazer assim, assim e mais assim com a minha irmã, o que me deixava de mau humor, fazendo-me brigar com ele. Certo dia, estando eu mais mal-humorado do que noutros, ele chegou e a porta estava entreaberta. Quando começou a falar, peguei numa faca (que se chamava «faca de ofi cial» e era comprida, com uma ponta aguda e fina, muito boa para cortar) e pu-la entre mim e a mesa de trabalho, ameaçando-o de que, se continuasse, lhe espetaria a faca. Em abono da verdade, por Deus, não tinha essa intenção. Mas, como diz o velho ditado, «as intenções do Diabo andam com a gente»; coloquei a faca à minha beira e continuei a engraxar um par de sapatos.
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Mas, de repente, fiquei cego e surdo, já não via nem ouvia nada, e qual não foi o meu espanto quando, ao recuperar as faculdades, o rapaz já tinha a faca espetada no meio da fronte. Fiquei desorientado ao ver o sangue escorrer pelo chão, retirei a faca e levei-o para minha casa para que ele se lavasse, antes de irmos para o hospital. Quando lá chegámos, perguntaram-lhe como é que tinha acontecido aquilo e ele respondeu que tinha caído e batido com a testa na boca de uma garrafa! «Ah! Com certeza!», foi a resposta que nos deram. E o assunto ficou por ali… Em casa, continuava a sofrer as mesmas diferenças de tratamento de sempre, em relação aos meus irmãos. O despejo das águas sujas era tarefa minha. A minha irmã, sendo eu mais pequeno, batia-me constantemente. A minha mãe não dizia nem fazia absolutamente nada e Deus me defendesse de eu levantar as mãos e retribuir, pois o mínimo que iria acontecer seria ouvir das boas… Tais acontecimentos marcaram a minha existência, em abono da verdade. Certo dia, a minha irmã agrediu-me com bastante violência, magoando-me bastante. Não suportando mais, ergui os punhos e dei-lhe um soco nos seios. Ela perdeu os sentidos e eu, pensando que tivesse morrido, saí durante 24 horas. Permaneci longe de casa, espreitando para ver se havia algum movimento. Ao reparar que estava tudo calmo, resolvi regressar. Entrei e verifiquei para grande alívio meu que afinal a minha irmã estava viva e, a partir daí, nunca mais me voltou a bater. Mas também tenho boas recordações desse tempo. Morávamos na Rua António de Nola, que fica ao lado da Pracinha
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Dr. António Regala. Ao anoitecer, íamos brincar com outros adolescentes vizinhos, tanto da mesma rua como de outras ruas adjacentes. Brincávamos ao «soldado cabo furriel», à «rola», à «roda, roda sem cantinho» ou então à «esgrima». Para esta última brincadeira, imitávamos os nossos ídolos, como o ator Mel Ferrer, ou D’Artagnan n’Os Três Mosqueteiros e outros filmes de capas e espadas. Jogávamos também ao «trinca», que era um jogo de botões com duas balizas, em que se tentava marcar golo trincando os botões. Entretanto, abandonei a sapataria e fui ter com o meu pai a Santo Antão. Ele vivia no Porto Novo, com outra mulher de nome Antónia. Nesse período, o meu pai fazia enxadas, indo vendê-las para os campos dos lavradores. Levava-me com ele para o Norte e para muitas outras partes da ilha, pelo que vim a conhecer muitas aldeias. Quando íamos ao Norte, parávamos no Chã de Norte, mais precisamente em casa do tio Júlio de José João ou, em alternativa, na casa do tio Manuelinho de José João. Tinha muitos primos e primas e dava-me bem com todos eles. Eu era muito estimado, o «rapazinho de São Vicente». Quando havia baile, era sempre convidado e todas as moças queriam dançar comigo! Andava muito a pé com o meu pai. Começando no Porto, passávamos por Lajedos, Ribeira das Patas e subíamos as rochas daquela ribeira. Depois, atravessávamos os campos do Norte até chegarmos ao nosso destino. Noutras ocasiões, íamos até à Ribeira Grande e até ao Paúl, percorrendo todos aqueles campos a pé, desde o Porto até ao Norte. Por vezes íamos até à Ponta do Sol (partindo do Porto), passando pelas bordeiras, da Povoação ao Paul, e subíamos
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toda a Ribeira do Paúl. Atravessávamos a Cova, descíamos o Lombo das Figueiras e voltávamos ao Porto. Na verdade, fizemos esses caminhos várias vezes, não foi só uma. De vez em quando, dormíamos onde tínhamos alguns familiares, como no Caetano da Ribeira das Patas ou em Lajedos, Povoação e ainda no Eite, perto das Pombas. Nessa altura, o meu irmão Augusto também estava no Porto Novo connosco. Certa altura, estava o meu pai no Norte e eu no Porto Novo, tive de ir ao seu encontro. Recordo-me de ele me ter indicado um sítio em que, se um dia me faltasse água pelo caminho (pelo campo, portanto), me bastava fazer um pequeno desvio de alguns metros até encontrar onde pudesse matar a sede. Se por acaso não encontrasse água, o meu pai aconselhou-me a escavar até encontrar areia molhada, humedecer o lenço que deveria levar na minha algibeira e chupá-lo. Em alternativa, podia também colocar uma pedrinha na boca para fazer saliva, de forma a aguentar até encontrar água… Sendo assim, pus-me a caminho e levei água comigo. Ao passar a rocha da Ribeira das Patas, fiquei sem água. Não fiquei preocupado, porque certamente haveria de encontrar o tal lugar para me refrescar. No entanto, procurei durante cerca de uma hora e… nada! A minha situação começou a agravar-se a partir daí, já que faltavam muitos quilómetros. Fui andando mas faltavam-me as forças, e o sol estava escaldante… Quando faltavam alguns quilómetros ainda, comecei a andar aos ziguezagues. Não dava já para ver ao longe e estava a escurecer. Entretanto, acabei por vislumbrar uma silhueta à porta de uma casa e calculei que fosse o meu pai. Já com voz rouca, como que em surdina, gritei:
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– Papá!!!! Não conseguia aumentar a voz, mas o meu pai percebeu que algo não estava bem. Entrou para dentro de casa como um relâmpago e saiu disparado na minha direção, correndo desenfreadamente pelo campo. Quando chegou ao pé de mim, estava eu já caído no chão, praticamente sem sentidos. Felizmente, ainda foi a tempo. À semelhança do que aconteceu com a minha irmã, acabei por ser novamente salvo (o leitor lembrar-se-á certamente do episódio do veneno, certo?). Numa outra vez, o meu pai mandou-me ir fazer uma coisa (não me recordo precisamente o quê) no Norte. Fiz o que tinha a fazer, dormi por lá e, no dia seguinte, bem cedo, tive de ir a Pascoalaves tratar de um outro assunto, voltando mais tarde para o Porto Novo. No caminho de regresso, trazia comigo batata doce assada, queijo, leite e água. Andei durante todo o dia e à noitinha, ao chegar junto da bordeira da Ribeira das Patas, vislumbrei no horizonte a cidade do Mindelo. As luzes acenderam-se e, como não tinha relógio, fiquei a saber que seriam 18 horas em ponto. Era essa a hora exata a que as luzes se acendiam em Mindelo. Nesse momento, sentei-me e comi quase tudo o que trazia (tinha bom apetite nessa época). Depois de ter descansado um pouco, meti-me novamente a caminho. Desci pelas rochas abaixo durante boa parte da noite e, quando cheguei a Caetano, passei em frente de uma casa de uns familiares de que o meu pai me tinha falado… Inclusivamente, já teríamos dormido por lá. Não devia faltar muito para a meia-noite e toda a gente já dormia, sem dúvida.
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Ainda assim, podia ter batido à porta e dormido lá o resto da noite, mas preferi continuar a minha caminhada. Atravessei toda a Ribeira das Patas e, ao chegar a Lajedos, um guarda de hortas gritou: – Quem está aí? perguntou ele. – Sou o Francisco, filho do Antonino! – respondi em voz alta. – O que fazes aqui sozinho a esta hora da noite? – questio nou com surpresa. – Venho do Norte, a caminho do Porto Novo. Fui tratar de umas coisas para o meu pai… – justifiquei eu. Ele sabia quem era o meu pai – toda a gente o conhecia, na verdade – e disse-me que esperasse um pouco. Apareceu depois com uma cana de açúcar grande e grossa, dizendo-me: – Tens uma navalha? – Sim – respondi-lhe. – Então, leva esta cana contigo. Vai comendo aos poucos, que te ajuda a passar o tempo. Retomei o meu caminho já pela estrada, onde passavam os carros que iam do Porto Novo até Lajedos. Ao longe via-se a Praia Formosa. A certa altura, comecei a ver umas luzes que cintilavam mas que de repente desapareciam e voltavam a reaparecer. Fiquei com medo, mas tinha de continuar… Algum tempo depois, deparei-me de frente com um vulto e, com as canelas a tremer, ouvi em simultâneo: – Quem vem aí? Nesse momento compreendi que eram viajantes, tal como eu. Vinham também de longe e as luzes que me tinham assustado não eram mais que as lanternas que traziam com eles.
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Acabámos por nos sentar a conversar e fizemos um pequeno piquenique. Dei-lhes a cana que transportava – que era um peso para mim! – e, em troca, eles deram-me uma garrafa de aguardente. Quando cheguei ao Porto Novo deviam ser umas quatro ou cinco horas da manhã. Bati à porta e, ao abrir, o meu pai quase quis matar-me. Ralhou-me como se não houvesse amanhã, dizendo-me: – Nunca mais te quero ver a andar sozinho por esses campos, ouviste? Não sabes que podes ser atacado? Tens família pelo caminho todo; devias ter dormido no Caetano da Ribeira das Patas! Se tornares a fazê-lo, sou eu mesmo que te mato, percebeste? Mas a verdade era que não queria incomodar ninguém àquelas horas… Mais tarde, voltei a passar por lá com o meu pai e, ao saberem que tinha passado por lá sem dizer nada, ouvi das boas: – Pensas que és inteligente, não é? Para passares e não bateres à porta… Ficas a saber que há lugar para os outros! E arriscas a tua vida ao andar sozinho pelos campos… Nunca mais voltes a fazer isso! Nunca mais! Mais tarde regressei a São Vicente, tendo passado só 11 meses em Santo Antão. O meu irmão ficou em Santo Antão com o meu pai. Quer-me parecer que, nessa altura, a minha mãe e a minha irmã estiveram em São Nicolau, ilha onde nasceu a minha irmã e que ela não conhecia. Voltaram pouco depois para São Vicente, habitando numa outra casa mas na mesma Rua António de Nola, onde residiam anteriormente. Um mês depois acabei por voltar para Santo Antão.
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Encontrei um trabalho numa agência que era da brigada da estrada, cuja função era construir e reconstruir as estradas naquela ilha. Ocupava-me de um cavalo que pertencia a um técnico português, chamado Sr. Andrade. Ele era meu amigo. Levava-me com ele para todo o lado, quer para fazer pagamentos aos trabalhadores, quer para tratar de outros afazeres. Deslocávamo-nos de jipe até onde a estrada permitisse; de forma a chegarmos a locais menos acessíveis, íamos a cavalo e foi assim que aprendi a montar. Conheci parte da zona de Janela, chamada Pérdias. É uma zona onde faz tanto ou mais frio do que na Europa: lembro-me de estar vestido de lã dos pés à cabeça, com peúgas, ceroulas debaixo das calças, gorro na cabeça e luvas de lã e mesmo assim ainda ter os dedos das mãos enregelados por causa do frio! Estava já com os meus 16 ou 17 anos. Não passava muito tempo no Porto Novo, já que acompanhava o Sr. Andrade por toda a parte. Todavia, eu desconfiava de que a mulher do meu pai maltratava o meu irmão. O Augusto não falava muito, mas… E, embora eu não tivesse a certeza disso, tinha uma suspeita de que era uma situação que já vinha de há algum tempo. Um dia, cheguei a casa na parte da tarde e o certo é que a encontrei a bater no meu irmão com um pau, como se estivesse a bater num burro. Perdi a cabeça, peguei numa enorme pedra e ameacei-a: – Se voltas a pôr as mãos em cima do meu irmão, esmago-te a cabeça! Se não tens filhos, não é o meu irmão que vais matar, porque mato-te eu em primeiro lugar! – gritei, enfurecido.
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Entretanto, o meu pai chegou, impedindo-me de cometer uma loucura. Sendo assim, a sua esposa nunca mais voltou a agredir o meu irm達o.