O Conde e os Dois Tigres | 2.ª edição

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O CONDE E OS DOIS TIGRES


FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula

® (Chancela Sítio do Livro) Conde e os Dois Tigres autora: Sara Quintela

título: O

revisão:

Manuel Monteiro Paulo S. Resende desenho capa: Sara Quintela arranjo gráfico capa: Patrícia Andrade paginação:

2.ª edição Lisboa, agosto 2015 isbn: 978-989-8821-06-5 depósito legal: 395811/15

© Sara Quintela publicação e comercialização

Rua da Assunção n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 | 1100‑­ Lisboa www.sitiodolivro.pt


sara quintela

O CONDE E OS DOIS TIGRES



♛ d e d i c at ó r i a

Dedico este livro à minha maior confidente por todo o apoio que me dedicou em todos os momentos da minha vida e, sobretudo, pela sua ajuda e pelos seus conselhos no início desta nova fase da minha vida. És quem me inspira, quem me dá força para continuar e para ultrapassar todos os obstáculos que surgem. Que este livro te permita entrar ainda mais no meu mundo.

Dedico ainda à minha amiga Sara Oliveira, que me ajudou na perceção da minha vocação desde as pequenas descrições que delineámos em conjunto, até à primeira obra que redigi. Agradeço ainda a sua contribuição para o sucesso do meu primeiro lançamento.



♛ Peço a todos que façam de modo que a humanidade seja servida pela riqueza e não governada por ela. Papa Francisco

No casamento, cada pessoa deve realizar a função que lhe compete. O homem deve ganhar dinheiro, a mulher deve economizar. Martinho Lutero

Há apenas um tipo de comunidade que pensa mais em dinheiro do que os ricos: os pobres. Os pobres não conseguem pensar em mais nada. Oscar Wilde



♛ Prefácio George Orwell, um comprovado visionário, escreveu que ver o que temos diante do nariz requer um esforço constante. Arthur Conan Doyle, pela voz de Sherlock Holmes, sugeria que se procu‑ rasse o cadáver no átrio de entrada, precisamente porque esse sítio era o mais provável de ser aprioristicamente excluído das investiga‑ ções. O mais óbvio é muitas vezes o mais difícil de ver, como tantas vezes a história nos ensina e tantas vezes olvidamos. E a história, acrescentou Kundera, é uma luta entre a memória e o esquecimento. Entendo que os prefácios não devem desvelar o enredo, apresen‑ tar personagens, apontar o estilo de escrita – tenho a certeza de que este livro se encarregará disso. Mais: com tantas reviravoltas, com a densidade psicológica marcada das personagens, não posso contri‑ buir para matar no leitor o suspense que a leitura me proporcionou. As boas peças ficcionais são intemporais e aespaciais. Significa isto que o bom autor resgata dos limites do seu tempo e do seu espaço os elementos que perdurarão noutras culturas e noutras épocas. Não sendo de forma alguma uma obra datada (até porque o período


histórico é uma metáfora temporal), tem, ainda assim, muito que ver com o zeitgeist. Quem tiver olhos para ver que veja, quem tiver ouvidos para ouvir que oiça. Termino dizendo que é muito difícil escrever como Sara Quintela escreve com a sua idade. O esmero que pude observar no seu estudo da língua portuguesa, a sua capacidade sensitiva, a timidez da pessoa que se vinga no despudor da escrita, as horas infindas que passa a ouvir as vozes das personagens, o tempo que consagra à escrita lutando contra as tarefas imperiosas do quotidiano são raros. Cada vez mais raros. Manuel Monteiro


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♛ prólogo

– Nem sempre tudo é o que tu esperas. – O que queres dizer? Não compreendo como consegues perma‑ necer tão calmo com tudo isto. Vai sobrar para nós. Aliás, vai sobrar é para mim. Sobra sempre... – respondeu subindo a voz. – Simplesmente fica calado. Fica calado como todos nós que temos de ficar. Cala essa bocarra como já te pedimos várias vezes. Um dia, ouvem-nos, se é que ainda não nos ouviram e apenas o fingem para ter mais provas contra nós – disse com voz mais baixa, enquanto gesticulava fortemente com a mão direita, erguendo um pano amarelado com que acabara de limpar a última caneca. – Não consigo ficar calado enquanto isto acontece. Não consigo. Só por cima do meu cadáver é que permanecerei aqui quieto. E tu? Tu é que fazes queixinhas por aí. Realmente… – disse levantando‑ -se violentamente e avançando com passadas pesadas em direção ao outro. – O que foi? Porque me fazes esses sinais como se fosses um maluco?! Para… ~

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– Tarde demais… – disse o outro abanando a cabeça lentamente e fixando o olhar na madeira onde pousou um novo copo. – Agora, senta-te aí quieto!

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♛ capítulo i

Existia, num tempo não muito longe do de hoje, uma nação conhecida por Lagutrópia. Um país essencialmente agrícola, com uma excelente costa que dava para o grande mar azul-esverdeado, onde os dias eram passa‑ dos lentamente, enquanto o Sol dourava os vastos campos do Sul de trigo, ou enquanto as nuvens cinzentas banhavam e alagavam os campos de regadio. As vacas pastavam nos vastos latifúndios que predominavam no sul do país como dispersas aldeias. No Centro e no Norte, grandes e povoadas aldeias rodeavam os grandes e robustos pala‑ cetes ricamente decorados de ouro e de pedras brilhantes, ficando na sua eterna sombra, e perto das grandes muralhas, que a cada ano estavam mais largas, acompanhando o crescimento anárquico das populações numa época pouco propícia ao alargamento de qualquer família que não estivesse na área iluminada da nação. O grande castelo, símbolo do poder da pátria e da realeza do reino, encontrava-se na capital, onde o mais poderoso de ~

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todos os elementos desta antiga sociedade vivia num grande palá‑ cio de aspeto formal, mas extremamente elegante, símbolo de luxo e poder, circundado de requintadas estátuas de mármore rosa e peças de ouro que lembravam o papel de prata dourado de um Ferrero Rocher. A alguns metros do castelo, circundando-o e moldando a longa vila, estavam extensas muralhas, as mais altas de todo o reino que, tal como as outras, haviam sido alargadas ao longo do tempo com o aumento da cidade e das suas calçadas romanas, onde todos os caminhos davam ao mercado central. Neste caso, estas muralhas destacavam-se das outras: eram mais robustas, de uma pedra rochosa mais escura e sempre humedecida, onde crescia lentamente musgo esverdeado. Estas muralhas eram, mais do que tudo, extremamente planeadas para a defesa da grande capital, centro do reino, sobre a qual tudo pendia. Na parte mais alta da vila, num pequeno monte que se destacava do terreno plano, residiam os Reis no seu belo castelo. Em seu redor, atrás das ténues linhas que confinavam os vastos latifúndios do palá‑ cio e das muralhas que rodeavam a enorme quantidade de casas amontoadas em ruas estreitas, estavam os mais verdejantes terrenos do reino, pintalgados pelo vermelho das flores de lis que transmi‑ tiam os ideais de soberania, honra e pureza.

Luxuosas cerimónias a dignificar o Rei eram realizadas todos os dias, seguindo sempre um restrito protocolo que remontava à tra‑ dição ancestral dos antepassados da Família Real e que mantinha todos os passos das cerimónias oficiais delimitados. Enquanto o Rei se preocupava com os assuntos do reino, amon‑ toando os seus pensamentos políticos na grande barba cinzenta que ~

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contrastava com a grande coroa de ouro ornamentada com rubis, a sua mulher, de aspeto robusto e de formas exageradas, não tinha qualquer receio de se exibir nos tardios bailes da corte, convidando todos os cavalheiros para uma dança.

Troca de olhares discretos era o que mais abundava nestas magni‑ ficentes cerimónias em que nada era esquecido e em que até o mais ínfimo pormenor era planeado com o maior cuidado. Os pobres pajens, deixados nos recantos do palácio, só poderiam entrar para servir as bebidas e os petiscos e para recolher os casacos, vestindo ricos fatos e máscaras que lhes cobriam as faces envelheci‑ das pela dor e pelo cansaço. Qualquer erro, qualquer pequenino ponto que pudesse arrui‑ nar a bela festa torná-los-ia num alvo de chacota e de violência que comprometeria a linha de giz que dividia a estabilidade da anar‑ quia. Assim, tremiam em cada tarefa que desempenhavam ao mesmo tempo que observavam o rico estilo de vida ao qual todos queriam e sonhavam um dia poder pertencer. De todas as cerimónias, as festas mais frequentes e com um pro‑ tocolo cujos valores e orientações se acumularam ao longo dos anos eram os bailes clássicos. Para eles eram convidados todos os aris‑ tocratas e ricas famílias nobres e burguesas que entretinham suas majestades e participavam com alegria e extravagância nas luxuosas danças e jantares. As madames juntavam-se pondo os mexericos em dia. Os homens, esses, observavam-nas de soslaio tentando conter-se, atirando sorrisos para as mais belas ou mais ricas e preparando poemas para lhes dedicar. Em troca, recebiam o sinal de um lenço, um sorriso escondido por detrás de um leque (objeto que fora vítima ~

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de uma violenta viagem de uma das caravelas vindas do Oriente), ou até um toque de mãos numa longa dança. O Rei desta nação, o sábio Jullius Ocar IV, encontrava-se no poder havia mais de trinta anos e, desde a sua solene cerimónia de coroa‑ ção, perdera o seu brilho e a sua juventude, ganhando uma extensa barba, dissipando os seus caracóis ruivos definidos e até necessitando de fatos mais alargados para que o seu corpo real ficasse devida‑ mente coberto. Pelos iniciais discursos que fazia antes da sua subida ao trono era largamente admirado por todos. Mas, agora, deixara de ser o próximo herói da nação para ser «mais um daqueles políticos», daqueles que «só aumentam os impostos e alimentam os ricos». Essa realidade, porém, ficava dentro e nos limites das muralhas, escondida nos pequenos subúrbios e nas sombras dos grandes palá‑ cios e castelos, numas pequenas casas fracamente iluminadas. No pequeno monte onde o castelo se situava, a riqueza era sinónimo de felicidade, uma ostensão que os restantes ansiavam obter, mas que só os de rico nascimento, os do chamado berço de ouro, estavam predestinados a usufruir. Assim, as cerimónias reais eram solenidades de luxúria que contrastavam com o estilo de vida quotidiano dos mais pobres. Nos bailes reais, como em qualquer cerimónia real, o Rei e a Rainha apresentavam-se aos convidados que entravam com a anun‑ ciação dos seus ricos nomes enquanto desciam as escadas cobertas por um longo tapete avermelhado em direção ao grande palco de dança, o salão, demonstrando o seu sangue divino em cada passo gracioso que davam, em cada gesto elegante que faziam e em cada sorriso brilhante que transmitiam. Depois, Sua Majestade, já cansado e exausto de tanto cerimonial, repousava em frente do belo leitão ou do belo cordeiro, morto nessa ~

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mesma manhã na caçada do Rei com uma bala do criado (mas não digam a ninguém!). Rigorosamente preparado para os convidados, o leitão mesmo ao centro da requintada mesa fazia crescer-lhe água na boca. Mas ainda não era hora do jantar. Os pratos continuavam vazios, as traves‑ sas ainda não tinham sido servidas e o som do ansiado sino a chamar para o jantar ainda não fora soado. Enquanto esperava, avaliava a todo o momento quem o rodeava, desde os trajes dos jovens às joias a que as damas teciam elogios, sem se esquecer da animosidade da Rainha, que se entretinha como se nada naquela vida a pudesse cansar. Ele, por sua vez, sentia-se mais velho do que nunca. Com apenas 51 anos, considerava-se já um idoso, incapaz de falar com a mesma eloquência, incapaz de se mover como o fazia na sua juventude, incapaz de se levantar sem bater com a barriga na mesa, incapaz de pensar sem se sentir exausto por tudo e por nada… As ideias ino‑ vadoras que anteriormente tivera pareciam ter-se esgotado. Todo ele parecia estar no limite. As rugas na sua face, junto aos olhos, evidenciavam a fadiga que as fortemente delineadas olheiras também indicavam. Eram os assuntos do reino que o preocupavam, especialmente o reer‑ guer do país e da bandeira nacional para os elevar à vista de todo o mundo. No entanto, os trovadores e os belos concertos delei‑ tavam-no, fazendo-o esquecer-se das suas funções e inquietações e entretendo-o quando mais precisava. Por outro lado, enquanto as músicas perduravam nas noites frias, fazendo eco nos montes e aquecendo e iluminando o grande castelo, fora das muralhas ou nas áreas dos arredores, os mais trabalhadores procuravam render mais com todo o esforço possível, mesmo que isso implicasse arriscar a educação dos seus filhos. Contudo, nem ~

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sempre esta dedicação e sacrifício equivaliam ao máximo lucro que tanto ansiavam, que tanto mereciam e que lhes podia fazer tama‑ nha diferença. Para quem foi condenado pelo seu nascimento, com a vida pre‑ determinada antes sequer de ser uma pequenina semente em lugar estranho, estava apenas reduzido a um futuro de suor e de trocos sem valor. Apenas uns se conseguiam destacar ou na guerra (se depois não houvesse quem ficasse esquecido e condenado à mesma vida de miséria) ou nos negócios (se a boa fortuna o amasse). Os outros, por sua vez, olhavam o horizonte com sonhos do regresso do Rei Salvador, imaginando ao som do violino um cavalo majestoso saindo do nubloso céu e relinchando vio‑ lentamente por eles, como se nele viesse um cavaleiro de honra prometendo-lhes a salvação há tanto desejada. Mas até o Rei deixava as suas esperanças no largo vazio, enquanto ouvia uma cítara e limpava os olhos confusos com tantas luzes e cores fortes no salão. Vendo os seus esforços infrutíferos enquanto atravessava uma crise (a qual ninguém poderia referir na sua pre‑ sença porque eram apenas uns «tempos difíceis para todos» que, contudo, ainda permitiam os gastos reais, mesmo de cofre leve), tentava várias medidas para o fim do défice comercial e para reforçar a imagem do país, sem qualquer sucesso até ao momento. A produção começava a atravessar sérias dificuldades, quer nos campos fracamente explorados, quer nas poluentes fábricas, cujos donos se preocupavam mais com o lucro rápido e não sobreviviam à concorrência do estrangeiro. E, enquanto no seu majestoso palá‑ cio o Rei se divertia com os cómicos e os dançarinos que faziam truques com chamas e batutas, nas calçadas mais longe do castelo e nas ruas mais estreitas onde as casas se acumulavam um cheiro ~

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fétido inundava as sombras onde os animais circulavam sem qualquer receio (exceto o de serem o futuro jantar). Aí, o céu escuro da poluição não deixava a luz do Sol entrar num lar onde, para muitos, a esperança escasseava à medida que os mais novos começam a temer o seu próprio futuro.

Apesar de tudo, o Rei governava brandamente com os prolon‑ gados e nulos discursos que elaborava, iludindo e ocupando o tema com palavras soltas, mas eloquentes. Relatava o que todos já sabiam, mas prometia e garantia soluções para todos os problemas que jurara solenemente resolver em prol da nação. Contudo, as soluções pare‑ ciam tardar. Entretanto, reunia-se quatro vezes por semana com a corte e os conselheiros reais, porém, nem sempre as decisões tomadas abarcavam a felicidade de todos (como acontece na maioria dos casos), porque é impossível «agradar a Gregos e Troianos».

O povo desta nobre mas enfraquecida pátria, os Lagutrópieses, como a maior parte dos povos, tinha receio de se revoltar e de se expressar, pois o seu país já perdera a imagem do que signi‑ fica ser Terra Natal, defensora dos que nela nasceram e nela vivem, depauperando a dimensão da sua grande nação que outrora fora um largo e rico império. Além disso, vozes que teimavam em emergir acabavam sempre silenciadas de forma misteriosa e nunca mais se ouvia falar do sujeito da mensagem revolucionária. Alguns cegos e iludidos, outros mais acordados do que nunca, viviam, por isso, no contínuo período do grave retrocesso que ~

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parecia eternizar-se e cujos efeitos criariam profundas marcas nas suas memórias, caso algum dia a sua adorada pátria recuperasse. Num tempo em que parte do povo achava ainda ter vida própria e liberdade, dentro de cada um, existia um pequeno remoinho que se questionava acerca do que verdadeiramente se passava e de como tudo tinha acontecido e de como os afetava. Pois é nele, no pobre povo, que caem sempre as desvantagens das soluções tomadas (e disso sempre todos souberam, mas parece ser inevitável o sucedi‑ mento deste círculo vicioso). Muitos reuniam-se na taberna e com simples olhares troca‑ dos podiam facilmente compreender-se mutuamente e estabelecer longas conversas. As expressões desapontadas, as rugas e marcas na cara, os cabelos brancos, as roupas velhas e até rasgadas eram apenas evidências da própria crise interior que viviam e que todos pareciam ignorar. No entanto, os olhos cansavam-se, as expressões e ações perdiam valor e as palavras, sendo constantemente usadas, tornavam‑se banalidades sem significância. No fundo, esgotavam-se de já não quererem aparecer para reforçar a insatisfação pelo governo, o qual estava agora no poder e o qual tanto haviam defendido, aclamado e elogiado com as suas promessas de futuro. Um governo que haviam festejado e celebrado antes de tempo como uma era de glória digna de relembrar, mesmo antes da solene cerimónia de coroação que se realizara com todo o fausto e digni‑ dade, com o célebre juramento que o Rei prometera honrar. Mas as esperanças agora já haviam morrido. Só restava viver cada dia e esperar que tudo mudasse. Apesar de o Rei ter sido acolhido rapidamente por milha‑ res de pessoas e de até continuar a ter o apoio de muitas delas (de acordo com o que clamavam os seus secretários das Relações, ~

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novo posto criado propositadamente para omitir a grave crise que afundava a nação), os olhares trocados não compreendiam como a revolta era tanta e a falsidade era ainda maior. Na realidade, ficavam simplesmente a sorrir para quem lhes espe‑ tava lentamente uma faca na espinha, percorrendo-a cada vez mais devagar e carregando mais profundamente para aumentar a dor, mantendo, porém, o silêncio do grito. O salteador bem podia ser o Rei, mas esse era apenas quem emprestara a faca ou pusera uma almofada para abafar os gritos. Todos os outros assistiam à sua própria condenação.

Tudo era diferente do que deveria ser. Estava tudo mal, todavia, parecia seguir segundo as normas (se é que as normas se mantinham iguais). E enquanto os tempos difíceis se prolongavam ao longo dos dias, meses e anos, apenas se ouvia falar no exterior da imponência da corte do Rei Jullius Ocar IV e das suas majestosas cerimónias reais que acolhiam muitos elementos da realeza internacional, cerimónias essas que escondiam a crise de que o reino realmente sofria. As lutas vãs dos antepassados, a riqueza e a prosperidade de que uma nação havia anteriormente usufruído, tudo se fora. Nada res‑ tava do largo e conhecido Império que tantos e tanto conquistara numa verdadeira era de grandeza, honra e orgulho, valores que pare‑ ciam esquecidos. O que apenas se mantinha, e agora com mais indícios, era a presumível queda da nação, o destino negro que já fora traçado, já há muito aguardado, mas cuja probabilidade de acontecer era agora mais evidente do que nunca. A moeda fora lançada e permanecera a rodar. Seria cara ou coroa?

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