Depois da vela apagada

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DEPOIS DA VELA APAGADA

R贸mulo Duque



DEPOIS DA VELA APAGADA

RÓMULO DUQUE


Fotos: Autor

FICHA TÉCNICA

EDIÇÃO: António Rómulo Pinto Duque TÍTULO: Depois da Vela Apagada AUTOR: Rómulo Duque REVISÃO / FOMATAÇÃO: António Rómulo Pinto Duque IMAGENS DA CAPA: António Rómulo Pinto Duque CAPA: Paulo Resende 1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2012 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Agapex ISBN: 978-989-97341-1-1 DEPÓSITO LEGAL: 338777/12

© António Rómulo Pinto Duque PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C – 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt




Prefácio

Do autor conheço a saudade da terra que o viu nascer bem como a participação nas lutas permanentes no sentido de esta ser valorizada e nunca esquecida. Amizade, respeito e altruísmo são características suas. A partilha dos valores que considera fundamentais é para ele uma missão, missão essa que faz questão de cumprir, e fá-lo da forma que mais lhe é característica: humildemente. Da amizade com que me presenteou só tenho a agradecer-lhe. Janeiro de 2012 Cândida Veloso



O Sentido

O quanto nos é difícil encontrar o caminho certo para o sentido da nossa existência... Dois mil anos (d.C.) e a humanidade continua a pisar as velhas calçadas na esperança de um dia encontrar caminhos de pétalas perfumadas... (...) Rómulo Duque



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RÓMULO DUQUE



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I

Acaba de nascer, é uma menina com três quilos e meio, é a mais nova da família e que vem completar a conta de doze. Seis rapazes e seis raparigas. – Vê lá Albertina como é que o Milhazes e a Inocência vão criar toda esta gente, com mais uma boca para comer – dizia a Rosinda. – É verdade, quantas vezes já eu pensei na vida da Inocência, eu que só me fiquei com dois e as voltas que dou para os conseguir

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manter. Se não fosse o meu Augusto ter emigrado, então é que seria... Passo o tempo aqui sozinha com os filhos, só vejo o meu homem uma vez por ano, mas vale a pena este sacrifício p`los garotos para que não lhes falte nada. Mas a verdade temos que a dizer... Ó Rosinda, diz lá! Deve ser uma alegria, todos em volta da mesa, mesmo com as dificuldades que por vezes muitas famílias possam passar... O que não é o caso do Milhazes; com a mercearia e os terrenos que ele possui tem tido o suficiente para criar todos seus filhos sem qualquer dificuldade. – Lá isso concordo contigo – dizia a Rosinda com os olhos postos em três dos garotos que saltitam pela calçada, tropeçando um deles no tio Serafim que por ali passava com os seus 14


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passos curtos devido aos copos de tinto que já levava no bandulho. – Cuidado com o tio Serafim – alertava a Rosinda. – Continuando... Vocês já viram um homem respeitador e respeitado por todos, em que estado ele vai, tu vê bem, Albertina!

– Pois é verdade! – Dizia o tio Manuel que subia a rua com o gado e mais atrás o zagalo, (ajudante do pastor) que seguiu caminho com os animais, enquanto o tio Manuel decidiu parar à conversa com as duas mulheres que ali

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estavam e que continuava dizendo: – O mal é do maldito vício, não pode passar em frente à taberna que logo os pés se viram para a entrada, mesmo que o corpo mantenha a direcção do caminho. Diz ele que os pés o atraiçoam e depois de lá estar não sai sem beber por ele e pelos amigos. – Olha Rosinda, deixa-me lá ir que o rapaz não chegue sozinho à corte com o gado! Até que ficava aqui com o cheiro a carne assada e a nabiças cozidas que vem aí da tua cozinha... Ainda vinha lá em baixo e já sentia o cheiro que me aguçou o apetite. – Olha, se és servido... O que dá para um também dá para três... – responde a Rosinda com a sua simpatia.

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O certo é que o Serafim depois de estar no café central não abandonava o local, sem de facto beber o suficiente, variando a quantidade conforme a secura da garganta ou as mágoas que o carregam nesse dia, não dando conta de nada, nem do frio, nem das horas a passarem. Contavam que havia noites que cambaleava pela calçada, onde muitas das vezes se espalhava por terra e por ali ficava como um animal abandonado esperando pela sorte de por ali passar alguém, como em muitas das noites que algumas boas almas lhe pegavam pelos braços e o descarregavam nas quatro tábuas onde era costume dormir até ao raiar! – Podemos imaginar logo pela manhã... aos primeiros raios de luz, certamente com uma enorme dificuldade em abrir os olhos, ainda 17


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não sabendo também se na verdade a secura da garganta e as mágoas da sua vida teriam desaparecido. Uma noite, enquanto olhava para um velho relógio que há muito tempo o acompanhava enfiado no seu pequeno bolso, disse o Serafim para um dos rapazes que o ajudava a recolher: – Este não pára! Só pára quando me esqueço de lhe dar corda. E estás a ver, a noite vai a meio e continua como antes, tudo por resolver, vou eu mais um dia para a minha barraca com os mesmos problemas que ontem carregava. Só quando consigo fechar os olhos por algum momento é que vejo uma terra com gente próspera, sem as invejas mesquinhas que se arrastam por muita gente deste povo, que eu até as consigo ver ainda à distância. Mas tenho 18


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noites em que só me vem à cabeça a revolta de muitos anos que se foi agarrando às paredes dos meus neurónios... E tu sabes, Chico! Tu és o Chico, não és? – Sou sim! Vá lá, vamos andando e vá falando! – Eu já corri o mundo, fiz de tudo! Olha, nunca contei isto a ninguém. Uma vez, eu com o grupo de amigos dessa altura até assaltamos um banco e nas notícias do dia seguinte chamaram-nos de burros, sabes porquê? Dessa vez não conseguimos roubar nada porque tivemos que fugir e nem reparamos que tínhamos passado por uma quantidade de obras de arte e não levamos nem uma. Vê lá a nossa burrice, íamos atrás do guito e não vimos ao

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nosso lado essas obras de arte, quadros com valor incalculável. – Ó Serafim, estou a ver que esta noite não apanhaste grande bebedeira, ainda estás a meio pau e parece que ainda não gaguejas – dizia o Chico. – Consegues andar até ao teu barraco? Não precisas da nossa ajuda? Ao que responde o Serafim com vontade de ali continuar com os rapazes, para contar mais peripécias da sua vida: – Não! Podes ir que eu lá me desenrasco... Olha rapaz, o vinho é a verdade do homem... Nunca ouviste na missa?... O homem, quando tem bons instintos, faz rir toda a gente à sua volta... Mas se tem maus instintos agride tudo o que o rodeia... Ouve lá, eu tenho muita história para te contar, a ti e a muita gente, se 20


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quiserem

saber

das

histórias

que

fui

escrevendo em noites mal dormidas. Um dia vou fazer um livro da minha vida! – Vá! Vamos andando que a noite está fria – diz o Chico. – Pronto, rapaz, vai lá andando. Eu na tua idade passava muitas noites com a guitarra a fazer serenatas às moças cá da terra à espera que alguma viesse acenar à janela, em noites onde a única luz que aqui havia era a do luar, e não tinha frio nenhum; agora estes rapazes parece que não têm o sangue desse tempo. – dizia o Serafim continuando a falar pela rua abaixo… “O Serafim é o maior! O Serafim é o maior.” Ao mesmo tempo que se aproximava da entrada da barraca – Bem já não acerto em nada, nem com o buraco da fechadura. 21


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II

O Milhazes com quase cinquenta anos e a Inocência com quarenta e tal tinham agora mais uma menina para criar. – O mais velho, o João, foi para África depois de ter acabado os estudos para o serviço militar e por lá ficou; o segundo rapaz, o Jorge, ficou para os lados do Porto e também nunca mais aqui veio – dizia a Albertina em conversa com a sua vizinha Isabel. 23


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É verdade – respondia a Isabel que continuava à conversa enquanto fazia o seu croché. – Olha, Albertina, e as raparigas ainda por aqui estiveram muito tempo, até terem idade de se governarem, mas depois também se puseram a andar para o Porto, parece que quiseram continuar a estudar. Ainda recordo quando daqui saíram, foi com elas nesse mesmo dia a Laurinda, a filha do Manuel do gado, que foi para Lisboa servir numa casa de boas famílias que me parece que eram de Freixo. A Laurinda era uma moça que sabia fazer de tudo e sempre pensei que ficaria por cá, se não fossem os desamores com o filho do Américo, que também foi para o Brasil, mas a rapariga lá foi para Lisboa; a sorte é de quem a tem, pois com as qualidades dela, os senhores só 24


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podem estar contentes com o seu trabalho. Nunca mais soubeste nada dela, pois não? – Não! Nunca mais ouvi nada. – Responde a Albertina, adiantando: – Estes garotos da Inocência ainda por aqui andam mas não tarda a saírem, logo que tenham asas é vê-los voar, vão todos, parece que já ninguém aqui quer ficar, vamos ficando nós, os velhos. Como o Serafim, que quando tinha a idade deles também se pôs a andar para a cidade para tentar a vida. Quando foi, saiu com os bolsos vazios, deixando os seus pais à sua sorte. Mas como vês regressou com os bolsos como quando daqui saiu, ou pior, pois lá não se safou muito bem, por lá ficou a mulher e os filhos que nunca mais os vimos e anda ele por

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aqui perdido a cair de bêbado, sem ter onde cair morto. É verdade, antes que me esqueça, não te esqueças de ligar o rádio para ouvir a novela. Deve estar a começar e não a quero perder, já não consigo passar um dia sem perder um episódio, agora que a Maria está tão interessante. – O Serafim de facto regressou à sua terra depois de ter passado parte da sua juventude e vida activa na Capital, mesmo depois de grandes reformas anunciadas por muitos chefes

dos

dois

grupos

políticos

mais

acreditados pela maioria do povo, e que sempre foram os amarelados do PPP, que por vezes apareciam na companhia de azuis do CDP, que tinham uma cor muito próxima da

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rosa. Muitos eram nesta área que mudavam de tom conforme a humidade do ar, como aqueles galos que cheguei a ver na mercearia da tia Inocência, em cima de uma prateleira para se orientar como seria o tempo do dia que se avizinhava. Mas continuando com o que íamos dizendo sobre a vida do Serafim: quando regressou à sua terra com algumas notas no bolso que foram durando enquanto ainda se controlava nos gastos diários, passando uma ou duas vezes pelo bar para tomar uma bica como era hábito na capital, não deixando de dizer no final de cada pedido um “pá!”. “Ó Zé tira aí uma bica, pá!... E passa aí o jornal para ver o que anda pelo mundo!...” Do outro lado do balcão o Zé perguntava:

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“Curto ou comprido Serafim?” “Ainda não sabes como o „Fim gosta do café, pá? É curto, pois! Eu já tomei o pequenoalmoço.” “Agora queres encher a tigela...” "Para encher a tigela só logo, quando aqui vier matar a sede com um copo de tinto.” Dia após dia, e depois de um homem criar hábitos, é difícil por vezes mudar de atitude, só mesmo na falta de rendimentos, o que não tardou, com algum que conseguiu reservar, que foi muito pouco, e com a miserável reforma, não conseguia manter o nível de vida a que estava habituado, obrigando a fazer trabalhos que também com aquela idade nunca

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pensou que iria novamente fazer quando daqui saiu, mas a vida dá muitas volta e quem governa, governa para si, não para o Serafim. Houve então alguém que se lembrou de ajudar o Serafim, conseguindo que ele ficasse de guarda na Quinta das Nogueiras, e aí ficou durante alguns anos, e assim ninguém o viu a dormir nas valetas da aldeia, obrigando a carregar com ele às costas quem de boa fé que por ali passasse. Tinha então uma pequena casa para viver e as refeições garantidas, melhor para um homem com poucas forças não podia ter encontrado. Isto era o que todos diziam por lá, quando o encontravam, “Então Serafim agora é que tu

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estás bem, com casa e roupa lavada, que mais queres?” Mas todos sabíamos que estas conversas não convencem ninguém, muito menos o Serafim que conhecia mundo e nunca gostou de estar debaixo de grandes regras e compromissos. Não tardou a deixar a Quinta das Nogueiras, da família dos Soares Gonçalves, e nos últimos anos que por lá esteve passava mais tempo na taberna do que a olhar pela quinta dos Soares. Foi numa das tardes quentes de Verão que pôs pés ao caminho em direcção à taberna com a vontade de beber todos os canecos que não tinha conseguido beber nos últimos tempos. Dizia o Zé do café para o Serafim:

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– Põe-te lá na rua que eu não te sirvo nem mais um caneco, tu já estás como hás-de ir, já não te aguentas em pé e hoje não dizes coisa com coisa! E o Serafim no degrau do passeio onde se tinha sentado, ali ficou, dando por si quando os primeiros raios de sol da manhã lhe bateram no rosto. Quem passava para os seus trabalhos reparava que o Serafim voltara a cair na desgraça a que se tinha habituado. Logo que o dia começava e o efeito do tinto emborcado passava, o homem ficava outro com as conversas com que muitos se admiravam ao ouvi-lo, por vezes apanhados de surpresa com palavras que ele dizia no sentido de lhes chamar saloios, que não tinham

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conhecimento de nada do que se passava à sua volta, e perguntava-lhes com atrevimento: – Oiçam lá, hoje já leram o jornal, seus saloios? Vocês não querem saber do que se passa no vosso país! Eu já li... Vocês só olham para as fotos que lá vêm, se não viram perdem muito e podem crer, o jornal de hoje tem escrito coisas que em noites mal dormidas me passam muitas vezes pela cabeça e que vou apontando no cadernos das minhas notas para um dia fazer um livro... O „Fim não é burro! Continuando com o jornal na mão, ao mesmo tempo que ia apontando para uma das páginas com o sentido de que alguém que estivesse ali presente também o pudesse ler e nesse mesmo momento, um dos amigos pega então no jornal

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e começa a ler a crónica que o Serafim apontava:

Crónicas Isabel Pureza

O Domínio do Petróleo “O domínio do petróleo no mundo está na mão de meia dúzia, é explorado por segundos outorgantes, que são os governos. Não seria do interesse global que esse bem (ou mal) que vem das profundezas do planeta e que serve para se mover quem em cima dele anda, ser explorado pela comunidade global? Já que se fala e defende a globalização, só que pelos vistos

interessa

globalizar

para

reinar

individualmente em grandes grupos. Ser global para eles é fazer chegar os seus produtos a

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muitos e muitos, se calhar é por isso que andam há tanto tempo a correr para o espaço para ver se conseguem vender crude para abastecimento das naves de extraterrestres, não para ser global onde o interesse de produtos básicos seria do bem comum. Um dia destes, ao acordar, podemos deparar com um pequeno contador junto das narinas e uma válvula na boca para que daí só se possa expirar, e tudo isto servirá para contabilizar o ar que usamos, chegando a factura via electrónica para pagar sem atrasos, para não sofrer as consequências que daí decorrerem. Já pensaram se um grupo desses com grandes equipas de especialistas que trabalham horas sem poderem estar com a família, mas que

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ganham sete vezes mais do que os restantes trabalhadores, com empregos de escravos, para comprar coisas que não precisam, a não ser o ar que se respira e a água que se bebe, os quais, como bens essenciais estão muito perto de serem patenteados, e o mais devastador é que não repararam que a única informação divulgada com grandes acções de marketing pela empresa que os recrutou foi: „se quer um futuro promissor venha fazer parte de uma grande equipa numa das empresas em grande expansão, a nível mundial, com mercado garantido para as próximas gerações‟. A água era de quem passava junto da fonte, que jorrava, mesmo sem grandes perfurações, as veias que circulavam na terra traziam a água

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aos seres que a pisavam. Nos dias de hoje, vejam em que mãos está a água, um dos líquidos mais preciosos que faz parte de setenta ou oitenta por cento do corpo humano, pertence

a

grupos

e

é

comercializada,

tributada, negociada em bolsa. Por este caminho não vamos estar longe da crise energética do petróleo, da água, dos produtos alimentares, com os cereais à cabeça, ou então poderá ser esse o interesse, tentar demonstrar que existe o domínio do petróleo e que para isso levar a população a aceitar a troca de dois papos-secos, para com outros tantos, fazer andar

as

máquinas

em

que

andamos

diariamente de cú tremido, mesmo sabendo que ao jantar só terá batatas para comer, pela falta do trigo, do arroz e soja. 36


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Porque não se desapropriam os terrenos e zonas marítimas? Locais onde são extraídos produtos únicos, como o ouro, o cobre e o ferro e dos quais fizeram com que todos dependessem, ou então porque não criaram alternativa? Por isso é que podemos colocar a questão e temer a longo prazo o que pode bater à porta de milhões de cidadãos: o domínio do ar que todos respiramos. Como irá ser gerido, se alguém começa a exploração e distribuição controlada,

como

tantos

outros

que

questionamos? Em Portugal, não é fácil fazer registos de patentes, porque se o fosse, não andavam os estrangeiros a registar produtos nacionais, como alguém comentou num dos fóruns há

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muito pouco tempo, e se alguém se lembrar de registar, sou Português, mais ninguém o poderá usar. Neste seguimento, acho que vou tentar arranjar um dinheirinho para registar o ar que eu uso, porque sei que muita gente ainda o vai utilizar, pois o ar que neste momento estou a respirar poderia ter passado pelas narinas do primeiro rei de Portugal há uns séculos atrás, pois dizem que circula livremente, ao contrário da água, do petróleo e outros que são controlados, como represas, tanques e patentes.” – Tens razão, ó Serafim... Olha que esta história tem que se lhe diga! – Pois é, pá. Se não for eu a mostrar-vos estas letras, vocês não pegam em nada. – disse o

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Serafim, com a satisfação de alguém que partilha o que lê. Como ele, que já leu essa história e ao discernir essa crónica, até lhes pareceu ser um dos seus relatos em noites alegres, de boas companhias, disponíveis e com tempo para o ouvirem, pois muita das vezes os visitantes do café central não estavam para o aturar, tinham mais que fazer, mas é sabido que todos têm dias em que conseguem ouvir tudo e todos mas há outros que uma palavra são cem e vai daí o que dizemos... “Olha vai chatear outro, que eu não estou para te aturar.” O Augusto nesse instante virou-se para o grupo de amigos que ali estavam desde que tinha começado à conversa com o Serafim,

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aproveitando para mudar de tema, pois os amigos do lado podiam ouvir-se ao fundo da rua, da forma que falavam, “Claro que vocês não vêem nada! Quando o Álvaro marcou golo, ninguém viu quem lhe passou a rasteira. Pois é, nunca se vê o que não queremos. Os encarnados são os melhores. Qual quê, nem verdes nem azuis conseguem subir como nós.” Outros dos intervenientes intervieram: “Está mas é calado. Quem mais subiu esta temporada foram os verdes, meu cara de car----!!... Tu é que não queres olhar para a realidade, mas com o tempo vais ver quem tem razão. Não entendes nada de futebol!” Pode-se imaginar quando existem diversos grupos numa sala a discutir os mais variados

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temas, só se ouve o que se quer ou aquilo de que se está à espera e não o que disseram, mas acredita-se que foi dito; a verdade é que quando alguém fala alto todos o seguem, no sentido de se fazer ouvir, será por isso, mas um dia em que alguém entrar num desses espaços onde habitualmente se fala aos gritos, estranhará tanto silêncio, andando à volta e vendo todos concentrados na TV a ver um filme sem som. O galo cantava e os sinos da Igreja tocavam de madrugada, muitos estavam a ir para a cama enquanto outros se preparavam para iniciar mais um dia de trabalho, como a Inocência que às primeiras horas já andava a preparar-se para abrir a sua loja, onde à porta já estava o seu

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caixeiro, o rapaz que os vai ajudando no atendimento dos clientes; mas antes não deixava de ainda levar uns baldes de cereal aos animais de capoeira. Ninguém diria que estivera de parto ainda há tão pouco tempo e não parava. A sua vida sempre ligada ao comércio vinha de família, vendendo de tudo o que se podia vender: mercearias, tecidos, drogaria… O negócio ia de vento em popa, a concorrência não assustava os Milhazes, tinham clientes de toda a redondeza, vinham clientes das aldeias mais próximas e alguns tinham que andar caminhos de terra batida para se virem abastecer ao Milhazes. Já com as mulas carregadas lá seguiam de volta depois de

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