Descer antes de Subir, Contos e Provérbios no Ondjango Umbundu

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DESCER ANTES DE

SUBIR CONTOS E PROVÉRBIOS NO ONDJANGO UMBUNDU

Fausto Kakumba


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Vírgul a

® (Chancel a Sít io do Livro) Descer antes de Subir – Contos e Provérbios no Ondjango Umbundu AUTOR: Fausto Kakumba TÍTULO:

REVISÃO: Ana

Domingos S. Resende CAPA: Patrícia Andrade ILUSTRAÇÕES: Adriano Cangombe PAGINAÇÃO: Paulo

1.ª EDIÇÃO Lisboa, Outubro 2013 ISBN: 978-989-8678-12-6 DEPÓSITO LEGAL: 361766/13

© FAUSTO KAKUMBA PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


DESCER ANTES DE

SUBIR CONTOS E PROVÉRBIOS NO ONDJANGO UMBUNDU

Fausto Kakumba



Descer antes de Subir – Contos e Provérbios no Ondjango Umbundu

Índice Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I

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O ONDJANGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 I.1 ONDJANGO: CASA DE EKONGELO (ASSEMBLEIA). . 23 I.1.1 Ondjango: Casa de Elongiso/Elongo (Educação/Iniciação) . . . . . . . . . . . . . . . 25 I.1.2 Ondjango: Casa De Ulonga (Relato Dialógico) . . . 26 I.1.3 Ondjango: Casa de Ombangulo (Conversa) . . . . . 29 I.1.4 Ondjango: Casa De Ekuta (Partilha Alimentar Comunitária) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 I.1.5 Ondjango: Casa De Ondjuluka (Solidariedade) . . . 31 I.1.6 O Ondjango: Casa De Ekanga/Okusomba/Okusombisa (Julgamento) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 I.1.7 Limites do Ondjango no Processo do Elongiso (Educacional) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 I.1.8 Ondjango: Centro de Transição de Valores na Cultura Umbundu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 I.1.8.1 Festas, Danças e Orações. . . . . . . . . . . . . 36 I.1.8.2 Ritos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 I.1.8.3 Lugares Sagrados . . . . . . . . . . . . . . . . 44 I.1.8.3.1 Os Akokoto . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 I.1.8.3.2 O Etambo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 I.1.8.4 ONDJANGO: Palácio Imperial Do M’balundu . . 47 I.1.8.4.1 A Estrutura De Poder no Reino de M’balundu . 47 I.1.8.4.2 Lista Nominal de Olossoma Vinene do Reino de M’balundu, desde a sua Fundação até ao Presente 49 I.1.8.4.3 Concelho da Constituição Imperial do M’balundu 50 I.1.8.5 Construção e Inauguração do Ondjango . . . . . 52

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I.2 CONTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 I.2.1 O doutor que perde seu filho pelo dinheiro . . . . . 55 I.2.2 O que se colhe é fruto d’aquilo que se semeia . . . 57 I.2.3 A salvação na hora certa . . . . . . . . . . . . . . 59 I.2.4 Um futuro escondido no copo com leite . . . . . . 63 I.2.5 A fuga de paternidade repreende a visão . . . . . . 67 I.2.5 Quando os ratos testam a paciência do homem . . . 69 I.2.7 A intolerância que traz o arrependimento . . . . . . 71 I.2.8 Se semear maldade, assim colherá . . . . . . . . . 73 I.2.9 A mulher que perde o marido por causa do conduto. 75 I.2.10 O homem que se torna rico por perder o seu dinheiro 77 I.2.11 A oferta que mata crianças . . . . . . . . . . . . 80 I.2.12 O escravo que se torna em ministro . . . . . . . 82 I.2.13 A ratoeira misteriosa . . . . . . . . . . . . . . . 94 I.3 PROVÉRBIOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 I.3.1 O Provérbio como Discurso de Dominação . . . . . 98 I.3.2.1 O voar da águia não enerva o camaleão . . . . . 99 I.3.2.2 O Mel Não Viaja . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 I.3.2.3 A Palanca negra não cai na armadilha de uma criança 101 I.3.2.4 O perigo da alegria pela manhã. . . . . . . . . . 102 I.3.2.5 Desordem na ausência do leão na selva . . . . . . 103 I.3.2.6 Quando se pisa na água, bebe-se turva . . . . . . 104 I.3.2.7 O caçador conhece melhor a velocidade dos animais 105 I.3.2.8 Em África, os veados não tocam batuques . . . . . 106 I.3.2.9 A emoção do caçador perante o veado . . . . . . 107 I.3.10 O artista precipitado . . . . . . . . . . . . . . . 108 I.3.2.11 O rato que parece estar convertido . . . . . . . 109 I.3.2.12 A colónia selvagem . . . . . . . . . . . . . . . 110 I.3.2.13 A experiência do cão idoso . . . . . . . . . . . 111 I.3.2.14 A calma do cágado consolida-o no poder. . . . . 112 I.3.2.15 O rei por causa das barbas . . . . . . . . . . . 113

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I.3.2.16 A soberania do fogo termina na água. . . . . . I.3.2.17 Os costumes do cão o identificam . . . . . . . I.3.2.18 Os cães que ladram . . . . . . . . . . . . . . I.3.2.19 A hiena não pode apascentar as ovelhas . . . . I.3.2.20 A derrota do cágado no atletismo . . . . . . . I.3.2.21 É um risco descer até além do limite . . . . . I.3.2.22 Mesmo treinando, o rato não vence o gato . . . I.3.2.23 Distribuição da carne de elefante no fim da caça I.3.24 O cabrito assassinado na festa dos lobos . . . . . I.3.2.25 A vacina do coelho não se aplica ao elefante . . I.3.2.26 O lobo não deve apascentar as ovelhas . . . . . I.3.2.27 O homem é ou não como macaco? . . . . . . I.3.2.28 O coelho não pode arbitrar a luta dos elefantes I.3.2.29 O sapo não impede a águia de voar . . . . . . I.3.2.30 O macaco revela o ódio na festa . . . . . . . . I.3.2.31 A faca que não corta o fígado . . . . . . . . . I.3.2.32 Só os homens fabricam armas . . . . . . . . . I.3.2. 33 Não há outro sabor do mel . . . . . . . . . . I.3.2.34 Nunca haverá paz entre o cão e o gato . . . . . I.3.2.35 Nem sempre o lobo é fiel . . . . . . . . . . . I.3.2.36 O deus dos ratos não atende as orações . . . . I.3.2.37 A pele do crocodilo também é dos seus antepassados . . . . . . . . . . . . . . . . . I.3.2.38 Quando o cão deita o osso . . . . . . . . . . I.3.2.38 O gato conhece melhor o sabor do peixe . . . I.3.2.39 Descer antes de subir na árvore . . . . . . . . I.3.2.40 Andar devagar para chegar cedo . . . . . . . . I.3.2.41 Julgamento de animais carnívoros . . . . . . . I.3.2.42 Macaco, doutor sem aproveitamento . . . . . I.3.2.43 Não somente os ossos agradam ao cão . . . . . I.3.2.44 O sapo exige respeito pelas borbulhas . . . . .

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I.3.2.45 A vida é mais importante que o dinheiro. . . . . 148 I.3.2.47 Todo o homem que nasce é filho de seu pai e sua mãe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150 I.3.2.48 Como a palanca negra envelhece no meio dos lobos 151 I.3.2.49 Deixai que a vida nos conduza. . . . . . . . . . 152 I.3.2.50 As trovoadas não regam as plantas . . . . . . . . 153 I.3.2.51 Só a carne desfaz a máscara dos lobos entre ovelhas 154 I.3.2.52 O rato que se aproximar do pescoço do gato morrerá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 I.3.2.53 Onde comerá o cabrito quando estiver amarrado? 156 I.3.3 alguns outros provérbios Umbundu e Africanos . . . 157 I.3.3.1 Os Alusapo / Provérbios . . . . . . . . . . . . . 157 I.3.3.2 Alguns provérbios africanos . . . . . . . . . . . 161 II

SIGNIFICADO DE ALGUNS NOMES . . . . . . . . . . . II.1 Alguns nomes em Umbundu . . . . . . . . . . . . . . II.2 Vocabulário afro-descendente . . . . . . . . . . . . . II.3 Kuliusika / Despedidas . . . . . . . . . . . . . . . . II.4 Olonepa vi’etimba vio’muno / Partes do corpo . . . . II.5 Animais / Ovinhama . . . . . . . . . . . . . . . . . II.6 Oviñuañua / Bebidas . . . . . . . . . . . . . . . . . II.7 Atendelo / Números . . . . . . . . . . . . . . . . . II.8 Dias da semana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.9 Meses do ano (cada mês corresponde a um fato regional) II.10 Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

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PREFÁCIO

Descer Antes de Subir: Contos e Provérbios, de Fausto Kakumba, um promissor jovem benguelense, é uma reflexão profunda sobre aquilo que nos pertence como povo, sendo um património intelectual do povo angolano e mesmo africano. Nos direitos de propriedade intelectual, o nome que nunca pode faltar é o de Fausto Kakumba. Kakumba, estudioso que é, faz-nos saborear um “prato”, que, mesmo sendo nosso, dificilmente os seus resultados são sempre digeridos por nós, porque são aquela parte íntima da nossa linguística simbólica que nos toca no fundo da nossa alma. Parte dessa linguística é a questão do “Ondjango”, e, estudando os mais recentes cultores desta realidade umbundu (Nunes e Kavaya), ele traz-nos uma novidade que convido o leitor a aventurar-se a ler e descobrir nesta preciosíssima obra. Enquadra-se num discurso mitológico, entendido o mito como interpretação da realidade, já que o nosso autor recorre às técnicas etnográficas da recolha de dados e do método antropológico da descrição etnográfica de Mc Callum e de Geertz, insignes 11


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antropólogos, inscrevendo-se assim entre os cultores da etno-antropologia umbundu. Os contos e provérbios de Fausto têm uma função pedagógica, por se carregarem de temas ligados à realidade da vida, ao concreto da nossa existência. São elucidativos: “Um futuro escondido no copo com leite”, “O doutor que perde seu filho pelo dinheiro”, “A fuga de paternidade repreende a visão”, “Quando os ratos testam a paciência do homem”, etc. Este último reporta-nos à questão da perseverança final, a qual muitas vezes esquecemos na meta desta nossa vida, mergulhados nós no quotidiano. O jovem autor estuda com profundidade surpreendente os provérbios, com toda aquela densidade simbólica que se esconde nas línguas da África Nígero-Cordofaniana, particularmente as da família bantu. Usa a língua umbundu como instrumento de comunicação, com toda a riqueza semântica que nela se encontra, não podendo deixar de parabenizar Kakumba pela audácia e inteligência na abordagem feita. Os provérbios trazidos aqui são, mais uma vez, de uma pertinência existencial, que reconhecidamente levam a saudar Fausto, porque, tal como nos contos, estamos diante de uma brilhante mente que decifra os mais escondidos tesouros da cultura umbundu, transformando-os em eternas lições para a humanidade. Não pode o leitor saltar provérbios como: “Desordem na ausência do leão na selva”, “Quando se pisa na água, bebe-se turva”, “Em África, os veados não tocam batuques”, poços de verdadeira sabedoria africana que se encontram no jovem Kakumba. Fausto Kakumba, exímio estudioso das culturas da nossa terra, conhece bem o que escreve. Insensivelmente, passo por passo, conduzindo o leitor pela mão, leva-o até ao coração “anatómico” da 12


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cultura. Que o leitor se deixe levar como eu mesmo o fiz: deixei-me conduzir sem canseira, porque a estrada é doce e o guia é elegante. Obrigado, Kakumba, por me ter confiado este prefácio que me honra. Admiro a tua erudição, a tua finura de pensamento, a clareza da tua linguagem. O teu livro é esplêndido, douto e cheio de esperança. Parabéns! Padre José Adriano Ukwatchali, docente de cadeiras antropológicas nas Universidades Jean Piaget (Pólo Benguela) e Católica (Benguela), de Religiões Tradicionais Africanas, no Instituto Superior de Teologia de Benguela, e de Escatologia e Filosofia da História, no Seminário Maior de Teologia do Bom Pastor. Padre, José Adriano Ukwatchali Ph.D em Antropologia Cultural Africana

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INTRODUÇÃO

Descer Antes de Subir: Contos e Provérbios no Ondjango Umbundu é uma obra antropológica que narra os aspetos reiterados da cultura Umbundu, substancialmente a dos va Wuambo, escrita no período de tempo correspondente a dez anos. Com este livro, surgimos para “ressuscitar” os costumes do nosso povo e declaramos também uma parte do folclore angolano, género de cultura de origem popular, constituído pelos costumes e tradições populares transmitidos de geração em geração. É uma obra que busca uma parte das mais variáveis formas culturais e tradicionais usadas por antepassados do povo Ovimbundu. Estes, ao educar os seus membros da comunidade, faziam-no através de costumes, crenças e superstições, que se transmitiam transversalmente por lendas, contos, provérbios, canções, danças, artesanatos, jogos, religiosidade, brincadeiras infantis, mitos, idiomas e dialetos característicos, adivinhações, festas e outras atividades culturais que nasceram e se desenvolveram com o povo. A inspiração parte de fontes orais, passado o testemunho contagiante, de geração para geração e, atingido na alma e no coração pelos 15


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seus ensinamentos, inclusivamente, fizeram uso de passagens ditas por aqueles que desempenhavam a sua soberania sobre a comunidade Umbundu. Estas são as páginas que oferecemos ao povo angolano, adaptando-as a todos os níveis da sua atuação didático-cultural. Os assuntos não são abordados com maior profundidade, conforme o seu grau de importância no relacionamento social. Todavia, refere-se a ideia de ressuscitar os valores culturas do nosso povo. Fez-se a escolha deste assunto com o objetivo de integrar a nossa contribuição para a revivescência da nossa cultura e para ajudar na formação comportamental e de maturidade pessoal do “jovem” angolano, desde o mais cedo possível, na sua educação e vida quotidiana, logo que sejam observados os bons e antigos costumes, através do Ondjango1. Durante a composição deste livro, usaram-se as metodologias de conversação, perguntas sobre os antepassados, como era a política da sua governação. A estrutura corresponde, após a introdução, a: I – O Ondjango I.1 – Ondjango: casa de ekongelo (assembleia) I.2 – Contos I.3 – Provérbios [ditos em Umbundu e traduzidos para Português, com a sua respetiva lição de moral] II – Significado de alguns nomes A nossa perspetiva centra-se na busca dos valores que, naquele 1

Ondjango: casa tradicionalmente cultural, onde os adultos se reúnem com as novas gerações para vincular o testemunho do património cultural, através dos ensinamentos ditos, geralmentes, em Alusapo (provérbio, contos, parábolas e outros que fazem parte da sabedoria popular).

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tempo, fizeram com que os nossos antepassados vivessem de forma “duradoura”, devido a obediências à natureza e à sociedade, enquanto membros da coletividade. A obra é rica, embora suporte limitações, por ser o primeiro passo na vida de escrituras sem maior enriquecimento estilístico, fazendo-o somente para mostrar o outro lado, importante, da nossa cultura angolana. Contém desacertos, não somente por esses indicadores enumerados, mas, também, por ser, eu, uma pessoa humana, sujeito a desacertos durante a vida e durante a prática das minhas ações, enquanto alma vivente na terra. Por isso, peço a todos os leitores que, atentamente, enxerguem este humilde e opulento livro.

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I O ONDJANGO



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Ondjango, na cultura e língua umbundu do centro-sul de Angola, é uma palavra composta por aglutinação: Ondjo (casa) + Ohango (conversa); <ondjo y’ohango> (casa de conversa, diálogo ou conversação). Ondjo, enquanto casa, habitação, residência, é o espaço onde se constrói a vida através dos ensinamentos de adultos para a nova geração, por isso, não implica que seja necessariamente uma casa, mas qualquer lugar onde os homens se encontrem reunidos para tratar um determinado assunto de interesse comum. Ohango é um diálogo ou conversa séria de igual para igual, entabulada entre duas ou mais pessoas, mediatizadas por um varão, o sekulu (mais velho, com experiência vital), que acontece num sistema circular ou do tipo mesa redonda. Trata-se da casa de conversa, de reunião, de hospedagem, de partilha de bens, refeição e serviços, de educação e iniciação sociocultural, de entretenimento e/ou de fazer justiça. Antes de tudo, trata-se de uma casa, de ponto de partida e de confluência, de uma casa com as condições de se poder sentar e reunir junto de alguns mais velhos, trata-se de um lugar de encontro (reunião). Tradicionalmente, o ondjango é sempre visto como um espaço rudimentar, erguido em forma de “U”, onde é possível fazer 21


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acontecer a reunião. Nesta ótica, enquanto realidade física, ondjango significa espaço aberto nas laterais, construção de pau-a-pique, em forma circular, não rebocada dos lados, isto é, sem paredes, encoberto de capim (colmo) ou debaixo de uma árvore frondosa, grande e de sombra, onde os homens se sentavam para que o ohango se tornasse factível ou realizável. No interior do ondjango encontravase sempre lenha em troncos grandes (olononga) transportados pelos jovens. Admitia-se que fosse adornada com troféus de caça ou de guerra. Esta casa (ondjango), nos primórdios, não era propriedade de ninguém em particular, mas de todos os homens que dela faziam uso diariamente. Toda a vida parte do ondjango e encontra o seu ápice no ondjango. Aí, segundo a pertinência do vivenciado, o ohango (conversa/diálogo) tomava vários significados: ondjango, enquanto ulonga, elongiso, ekuta, ekongelo, ekanga/okusomba/okusombisa, okupapala, ondjuluka, etc. Ondjango considerava-se uma determinada casa, que se tornava o espaço de todos os residentes na comunidade. Lugar respeitado, quase sagrado, e era da consciência da comunidade ser aquele espaço o centro da vida comunitária, da aldeia. Era o centro onde passava e de onde dimanava a corrente vital do clã e de onde fluía o respeito e as decisões importantes em prol da comunidade. Era realmente a casa da conversa, da discussão de tudo e da resolução das grandes questões da vida que fluía a partir do ulonga (relato de toda a trajetória, desde o encontro anterior e situações vivenciadas, partilhadas e resolvidas, sobretudo os meios utilizados para sua resolução ou exposição daqueles ainda sem solução, esperando do grupo reação para seu encaminhamento) (Kavaya, 2006: 148).

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I.1 ONDJANGO: CASA DE EKONGELO (ASSEMBLEIA) É a reunião dos homens, excluindo as mulheres deste espaço. Desde os tempos idos, as sociedades secretas dos homens (akokoto ou atambo)2 no ondjango agrupavam todos os homens. Enquanto reunião, o ondjango é uma abertura ao diálogo, feito de palavra dita e pronunciada, palavra escutada, palavra discutida, palavra ensinamento/iniciação, palavra resolução de casos comunitários ou individuais, palavra cântico, palavra música, palavra provérbio, etc. Era a casa de reunião dos homens, segundo a referência. Nunes (1991), citado por Martinho Kavaya (2006: 150), considera o ondjango como: “Assembleia que se reunia em determinado local para conversar, discutir, tratar de todos os assuntos (e isto podia ser feito a vários 2

Akokoto: missas ou cerimónias religiosas não cristãs, que se destinam a suplicar aos antepassados bênçãos e purificação da comunidade, principalmente quando se consagra alguém ao trono, momento em que se acende o fogo que passará para toda a comunidade. Etambo: é o santuário onde, de forma isolada, singular e secreta, o indivíduo implora aos seus deuses, pedindo bênção, sorte e proteção.

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níveis: familiar, de bairro, de aldeia ou só de responsáveis). Quando se tratava de uma reunião geral dos homens, deve referir-se que ali era feito um controle diário de toda a vida e de todas as vidas, isto é, ali se conversava e ali se davam informações tanto de caráter público como de caráter mais privado. Agrupados todos os homens à volta do sekulu, do chefe ‘mais-velho’, era este quem servia de oficiante ao ritual das perguntas. Logo de manhã, antes da saída para o trabalho, poder-se-iam perguntar coisa do género: ‘tu sonhaste alguma coisa’? ‘tu como estás’? ‘tu foste roubado?’ etc. Também ali, logo de manhã, se distribuíam trabalhos coletivos – caso os houvesse – ou se recolhiam informações sobre o programa individual de cada membro: ‘hoje vou àquela lavra’; ‘hoje vou caçar naquele local’. Na volta, à tarde, esperando pela refeição, cada um trazia também informações: ‘ali encontrei um doente’; ‘além estão num óbito’; ‘houve uma discussão por causa disso ou daquilo’; etc. Digamos que se trazia, diariamente, o ponto de situação. E era um balanço da vida profundamente comunitário. A conversa dialogada, partilhada, contudo, não era só ‘etchi nhe, tchetchi’... isto é, não era apenas conversa de passatempo, pouco importante, não era só perguntar ‘isto é quê?’ ‘É isto...’ A conversa, no ondjango, [era] também séria, [era] sobretudo ‘ohango’, [era] ‘ulonga’, [que consistia em] tratar de problemas importantes, [era] o recordar da tradição, [era] ensino da arte de viver. Neste caso, só os homens adultos participavam, muitas vezes até apenas os responsáveis maiores. De qualquer modo, os adolescentes e jovens deviam sempre retirar-se, a não ser que se tratasse especificamente da sua iniciação”.3 3

Resulta das diversas entrevistas realizadas por Nunes em dezembro de 1985 e, coincidentemente, a resposta foi a mesma, na pesquisa do escritor benguelense, Padre Martinho Kavaya, PH.D. Este escritor entrevistou com Sabino Sapi e Azevedo Periquito, das zonas de Pambala-Cassongue e Amboíva-Seles;

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I.1.1 Ondjango: Casa de Elongiso/Elongo (Educação/Iniciação) Uma das iniciações culturais é o rito de puberdade, com a função da inserção sociocomunitária e cultural dos indivíduos. O ondjango apresenta-se-nos como elongiso/okulonga4, isto é, encontro de aprendizagem dos valores socioculturais a observar, das tradições herdadas pelos ancestrais e das regras da vida em e na comunidade. Mas também se narram estórias estabelecedoras de ligação e comunhão com os antepassados. Transmitia-se a cultura que se passava de geração em geração, que se tornava em iluminação na resolução dos problemas presentes. Os conhecimentos hauridos no ondjango não podiam sair do ambiente ondjangiano. Aquele que fosse “iniciado” não podia relatar a ninguém o vivido, nem mesmo à própria mãe ou à mulher com que se vivia. O assunto do ondjango era a conversa e o ensino cultural transmitido. Nesta altura, não existia escola. A única realidade escolar da vida era o ondjango. O aprender dos antepassados constituía a arte de viver. Kavaya (2006: 152), na discussão entabulada com Geraldo sobre a realidade ondjangiana, obteve, na sua pesquisa para o doutoramento, o seguinte enriquecimento: “Ondjango é uma realidade inspiradora para uma concepção pedagógica que tem em conta o homem como ser aberto à vida, Katayenge e Cariogo, da zona da Lupula/Cela – província de Cuanza-Sul, quando preparava a sua dissertação em Doutoramento na Universidade Federal de Pelotas. Falaram em lavra, quando se referiram aos lugares onde se faz lavoura, onde se produz alimentos dos humanos e dos animais, etc. 4

Ensinamento que é simultaneamente ensinar e aprender, dar e receber. No ondjango não existe quem saiba mais, e sim quem tem mais experiência vital. Este partilha as suas experiências, mas é também aberto ao novo, com os membros do ondjango. É de salientar que quem tem experiência é detentor da última palavra no ondjango. Quer dizer, a ele se dá a oportunidade de abrir e fechar o ondjango.

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ao diálogo interpersonal, a comunhão e a reflexão. Para nós tudo isto acontece neste lócus mágico, qual areópago de aturado agiornamento e memória para este Bantu na sua singularidade (...). Ai, ele destilou toda a sua sabedoria e acumulou o pensamento e reflexão de milhares de anos (...). Com os provérbios aprendidos no ondjango, o homem muntu reforça seus argumentos filosóficos seja para solucionar um conflito, como para ensinar sábias sentenças, ou moralidade tirada de uma história, e com a variedade de suas imagens comunicam-se os encantos poéticos, estéticos e morais…”

I.1.2 Ondjango: Casa De Ulonga (Relato Dialógico) Ondjango, enquanto casa de ulonga, significa relato dialógico, realizado num espaço vital onde este ohango (diálogo) se transforma em relato demorado, que resgata todo o vivido desde o encontro anterior dos sujeitos envolvidos nesta comunicação e dos membros ausentes, pertencentes à família dos sujeitos em causa. A sua função e o seu funcionamento caracterizam-se em dimensões sócio-hierárquicas, de cima para baixo (dos adultos para os jovens): Ondjango y’Elombe (Vakwelombe); Ondjango ya Soma (Vakwavisoko)5; Ondjango y’Epata (Vakwuvala). Não se pode falar de ondjango como instituição umbundu, sem também lhe relacionar a função do fogo perpétuo (ondalu y’Usoma, y’Imbo, y’Epata). Segundo o Regedor Toto e os dois olosoma, Nelemba e 5

Vakwavisoko: aqueles que tinha o poder de entrar em contato com as sociedades secretas, através dos Akokoto, Etambo, etc.

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Tchindjunda, citados por Marinho Kavaya (2006: p.155)6, ulonga é definido como sendo “um costume de saudação que faz parte da cultura Vahanha, vatchisandji e dos ovimbundu”. Este costume “consiste em narrar o estado de saúde, problemas e necessidades familiares, grupais ou pessoais”. Para Toto7, “os Vahanha procuram, no ato do ulonga, primeiro narrar o estado da saúde, problemas e necessidades desde o último dia em que os reencontrados se separaram, ou melhor, desde a última vez que deixaram de se ver até ao dia do reencontro”. Nelemba diz que “os vatchisandji têm o mesmo procedimento dos vahanha” enquanto para Tchindjunda, “os Ovimbundu narram apenas o estado de saúde, problemas e necessidades das últimas 24 horas, até a hora do reencontro”. Assim, a condução do ulonga, para os subgrupos Vahanha, Vatchisandji e os Ovimbundu8, rege-se por regras, homogénias, nos três subgrupos. Para tal, falando destas regras, os três afirmam o seguinte: “Depois que o visitante chegue a uma determinada casa, deve se manter em pé até que se lhe dê uma cadeira; ao visitante se faz a seguinte pergunta em forma afirmativa: ‘Komangu!’9 E este 6

Entrevista concedida a Kavaya, em novembro de 2005, no município da Ganda, na pesquisa para a sua dissertação, no Brasil.

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Toto: regedor municipal da Ganda.

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Ovimbundu constitui o grande grupo etnolinguístico. Entretanto, para os subgrupos que não são Vahanha e Vatchisandji, são todos chamados de ovimbundu. Isto não tira o mérito de todos pertencerem ao mesmo grupo. Quando são os Vatchisandji ou os Vahanha a chamarem outros que não pertençam aos seus grupos, nesta altura o conceito ovimbundu é pejorativo e quando fosse o contrário, isto é, os Ovimbundu a chamarem outros alheios aos seus hábitos e costumes, também os conceitos Vatchisandji ou ao invés de os Vahanha serem chamados pelo próprio nome, utilizando outro, isto é, de Vakamuhanha, aqui os conceitos são tomados negativa ou pejorativamente.

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A tradução seria, mais ou menos, “na cadeira”, desejando à visita boa disposição, boas vindas e que estivesse à vontade.

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responde animadamente ‘kuku’10. Nesta altura o visitante replica ao acolhimento dizendo: ‘Sanga mangu’· O visitado ou os visitados em uníssono respondem; ‘Tchô’11. Tudo isto acontece só depois de o visitante se ter sentado. No entanto, quem não obedecer a estes princípios, já pode, de antemão, ser considerado, um estranho. Se for alguém que deve seguidamente prosseguir sua viagem, mesmo havendo um perigo adiante, não se lhe chama atenção, não se lhe avisa pelo fato de não ter obedecido aos princípios de ulonga.12 Para os Vahanha, os Vatchisandji e para os Ovimbundu, o ulonga é sempre iniciado pelo mais velho que tem o direito de poder dar ordem de o mais novo fazer o ser relato, seguindo sempre o mesmo esquema: estado de saúde, problemas da vida familiar ou pessoal e as necessidades. Terminado, o mais velho retoma a palavra, repetindo todo o discurso do mais novo, com exclamações de alegria ou indignação, dependendo da situação em pauta. Posteriormente, o mais velho fará seu relato dentro da regra. A concluir, o mais velho diz: ‘Wange’ e os ouvintes ou os participantes responderão ‘Tchô’ e o mais novo replicará dizendo: ‘Haewo unosi’ e os mesmos ouvintes ou participantes responderão ‘Tchô’. Entre os Vahanha e Vatchisandji, se o ulonga estiver acontecendo no seio familiar, a primeira palavra é dada à pessoa que nasceu do(a) irmão(ã) mais velho(a), mesmo se este(a) for criança. Depois deste, o indivíduo que nasceu do mais novo terá a palavra ainda que seja o mais velho em idade [por isso se diz, na cultura, que ser mais velho não é questão de idade, mas de experiência].” 10

“Obrigado”. Este é o reconhecimento que a pessoa em visita está sendo bem acolhida.

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“É verdade. Sim, está concedida a cadeira.”

12

Entrevista cedida a Ph.D Pe. Martinho Kavaya, em Maio de 2006.

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Para estes subgrupos, o ulonga tem a mesma importância que é a de rever o passado, corrigir e acertar o presente, construindo um amanhã melhor, na família, na comunidade e nos membros, enquanto constituintes desta história.

I.1.3 Ondjango: Casa de Ombangulo (Conversa) Um encontro esporádico, informal, pode ser considerado como ondjango, pelo fato de se permitir que neste encontro aconteça o diálogo de amigos, sem grandes compromissos, mas uma conversa amena e tranquila. É que quando as pessoas se encontram, independentemente daquilo que devem fazer, acontece aquilo que Lukamba (1981), citado por Kavaya (2006: 156) chama de “encontro vivo”. Neste “encontro” existe, no seu entender, um sinal de vida que é “a palavra, o gesto, o som ou o eco”. Assim, para ele (ibidem), o sinal não é uma coisa ou um objeto, nem sequer uma pessoa como tal, mas a palavra, o gesto, o som ou o eco que me liga e relaciona com o outro, ou os outros, como um encontro vivo destinado à comunhão. O sinal é a mensagem viva que, como arco de chama acesa, aproxima e une dois ou mais universos interiores. É uma mensagem capaz de ser entendida pelo outro e provocar nele uma resposta que move os interlocutores num diálogo vivo que os faz ultrapassarem-se a si mesmos, tendo como objetivo uma comunhão aberta a todos os seres pessoais e impessoais. Assim, o essencial do sinal está precisamente na sua capacidade de relacionar, de estabelecer, sem limites, relações entre diversos universos interiores.

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I.1.4 Ondjango: Casa De Ekuta (Partilha Alimentar Comunitária) Para além do encontro, da reunião e da conversa, o ondjango é o espaço de partilha das refeições. Tais refeições acontecem uma ou duas vezes ao dia, segundo o estatuído em cada localidade. O habitual é que seja de tarde, depois do trabalho do dia, ou de manhã cedo, antes de se partir para a jornada laboral. Aqui começa a compreensão organizacional da economia13. Enquanto se aguarda pela comida, a conversa que acontece é um entretenimento. As conversas mais longas, diz Nunes (1991), citado por Kavaya (2006), acontecem depois das refeições. E de onde vem a comida? De cada residência de onde cada homem é oriundo, prepara-se comida pelas próprias mulheres. Tal comida era normalmente o pirão ou o funji (espécie de puré de farinha de milho ou de mandioca), feijão, carne (de criação ou de caça), maçaroca14, algumas bebidas, etc. Tudo é preparado pelas mulheres e levado para o ondjango pelos jovens, onde os homens fazem acontecer a verdadeira partilha, em torno da lareira, com lenha grande, que ali se mantém permanentemente. É importante salientar que durante esta partilha ninguém chama “sua” a comida preparada pela própria mulher e sim algo da comunidade reunida no ondjango. A mulher, as crianças e o resto da família, ficam em casa, manducando parte da comida, por elas prevista no ato 13

Nesta organização económica comunitária ninguém é abandonado e privado da alimentação. E qualquer um que fique sem o mínimo para a sua sustentabilidade, a comunidade (aldeia) se reúne em mutirão para prover o sutento e até a ajuda na lavoura.

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Maçaroca é o milho bem assado no carvão, forno, ou numa lareira, que normalmente antecede as refeições. Também se pode comer depois das refeições ou independentemente delas.

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da preparação da refeição do dia. Em várias localidades, as mulheres não são abandonadas à mercê do “Deus dará”, enquanto os homens se reúnem no ondjango. Fala-se de uma reunião das mulheres, paralela à dos homens, feita por afinidade, por amizade ou por vizinhança, no “otchiwo” (cozinha ou dormitório das moças), onde elas partilham e comem juntas e onde as jovens se juntam para a iniciação cultural e sociofamiliar (ibidem), preparando-se para a fecunda maternidade.

I.1.5 Ondjango: Casa De Ondjuluka (Solidariedade) O ekongelo15 de ondjuluka era o encontro de planeamento de um projeto de vida ou de uma ação a ser realizada em comunidade, pela comunidade e para a comunidade, em forma de mutirão solidário, por exemplo: • Em velórios; • Nos casamentos; • Quando alguém recebe uma visita (a visita é considerada como a da comunidade e não da pessoa que a recebe, mesmo que receba o alojamento de uma pessoa conhecida. Enquanto estiver na comunidade, é cuidada por todos os membros); • Preparação para a guerra de autodefesa; • Preparação para a caçada comunitária; • Preparação para o julgamento, para dirimir situações candentes que lesem o bem-estar comunitário.

15

Ekongelo é um encontro, comunhão, associação e interatividade.

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Deste ekongelo pode acontecer o okupapala, isto é, a festa, a dança, o lúdico da vida, momento de entretenimento. O africano, angolano, reconhece a importância da dimensão lúdica e festiva da vida. Para o efeito, ele canta e dança para mostrar que a vida tem a sua realização na festa. Todos os momentos devem ser celebrados. E nós, africanos, manifestamos esta dimensão lúdica da vida com a mensagem expressa nas palavras do seguinte cântico: “nda oli komwenho papala, omwenho wokaliye otchinimbu”16, significando que cada momento da vida deve ser bem saboreado e festejado, por causa da contingência e temporalidade da vida biológica.

I.1.6 O Ondjango: Casa De Ekanga/Okusomba/ Okusombisa (Julgamento) O ekanga17, que resulta em okusomba, isto é, em fazer a justiça ou okusombisa, em ser julgado, era uma reunião, um encontro, que visava a resolução de problemas comunitários. Tratava-se aí tudo o que se relacionava com o exercício da justiça. Neste sentido, diversos autores (VV. AA, 1982: 46-47; 80), citados por Kavaya (2006), “opinam que era esta a função mais importante do parlamento tradicional: o exercer a justiça, o resolver conflitos [comunitários]”, mas outros, tais como Mauss (1967: 235-313), citado por Kavaya (2006), “fala[m] dos fenómenos jurídicos e nelas aparecem várias instituições descritas, entre elas, as sociedades dos homens”. Porém, somente aos 16

Traduzido literalmente, quer dizer: “se estiveres com a vida (vivo), brinca e festeja, porque a vida hodierna é breve”.

17

Ekanga é um ondjango (reunião) de julgamento.

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homens adultos se permitia a participação nestes eventos. Tratava-se de alguns homens, anciãos, responsáveis, escolhidos e aceites na e pela comunidade, deputados pela comunidade para o referido ato. No ekanga eram discutidas vicissitudes próprias da vida de qualquer grupo humano: “casos de roubo, ofensa ou violação das mulheres [caso isso acontecesse], crimes generalizados, desordens e discussões [diversas questões da aldeia ou do bairro], hospitalidade, problemas de defesa, heranças, terras, matrimónios, etc.” [Nunes (1991: 166-167), citado por Kavaya (2006)]. Quando o ondjango formado por estes responsáveis não ultrapassava a situação, recorria-se à uma instância superior, ao conselho do Soba (Soma), com seu conselho adjunto (vice-conselho). O chefe intimava as partes em litígio, ou apenas o declarado infrator, depois de ter realizado o ondjango com o seu conselho. Com ele, tudo tinha um meio e um caminho de solução. Com ele, tudo encontrava esclarecimento e solução. Encontrados os culpados neste grande ondjango do Soba (Soma), aplicava-se uma sanção adequada, que era não de castigar por castigar, mas de corrigir o infrator e ainda de desencorajar possíveis ações semelhantes. As penas ou os castigos aplicados resumiam-se, normalmente, aos seguintes: pagamento, em dinheiro ou em animais (bois), correspondente à infração (quando a ofensa lesava direta ou indiretamente a comunidade, um dos animais pagos era executado e manducado por todos os membros da comunidade no ondjango); pagamento em trabalho, feito pelo próprio infrator ou por algum dos seus familiares, se este estiver fisicamente impossibilitado; ou, ainda, castigos públicos vergonhosos para o infrator (mas estes eram raramente aplicados), como ser banido da comunidade. Em casos de feitiçaria, aplicava-se a pena de morte (ibidem). Pessoalmente, assisti a uma destas últimas penas (pena de morte 33


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por feitiçaria). Tratou-se de um velho que declarou publicamente ser o responsável por todas as pessoas que tinham morrido na aldeia, num determinado período, até a menina que ia morrer no dia seguinte. Assim, só ao ondjango competia o exercício da justiça, onde podiam participar todos os homens da área, ou, preferentemente, somente um grupo restrito de responsáveis, deputados pela comunidade. Podemos afirmar que na realidade angolana o mundo da vida cultural passa necessariamente pelo ondjango, enquanto locus vitalis. É do ondjango que se parte para a iniciação sociocultural e é no ondjango onde se acolhe o iniciado socioculturalmente, para fazer parte da comunidade fraterna, festiva e solidária. (Kavaya, 2006: 159-160).

I.1.7 Limites do Ondjango no Processo do Elongiso (Educacional) Apesar de o ondjango ser uma realidade de grande valia para a comunidade Bantu, enquanto espírito e modo de vida e expressão do mundo da e/ou de vida para o povo angolano, em geral, e, de modo singular, para o grupo etnolinguístico Ovimbundu, alguns limites são encontrados no ondjango. Antes de mostrarmos tais limites, eis uma reflexão que Amílcar Cabral18 nos oferece. O africano é um povo 18

Amílcar Cabral nasceu em Guiné-Bissau em 1924. Estudou em Cabo Verde e foi um dos animadores literários da revista Certeza (1944) que marcou a toda uma geração literária de caboverdianos. No ano de 1945 ingressou no ingressou Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, licenciando-se em 1951. No memo ano, em metrópole, fez parte da CEI (Casa dos Estudantes do Império).Foi ali onde se reafirmou como nacionalista africano. Morreu assassinado a mando da PIDE salazarista, em Conacri (Guiné-Conacri), a 20 de janeiro de 1973. Pela sua notável pessoalidade intelectual e revolucionária, foi uma das figuras chave e de alta referência nos estados nacionais que ele criou (Guiné-Bissau e Cabo Verde), assim como no resto do continente africano.

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multicultural. Para Cabral (1999: 45-47), citado por Kavaya (2006), existem várias pessoas com o pensamento de que ser africano é saber sentar no chão [é saber tocar o tambor, é viver do batuque] e comer com a mão. Sim, isso é decerto africano. Entretanto, todos os povos no mundo se sentaram já no chão e comeram com a mão. É que há muita gente que pensa que só os africanos é que comem com a mão. Não. Todos os Árabes da África do Norte, mas mesmo antes de serem africanos, antes de virem para África19, comiam com a mão, sentados no chão. Temos de ter consciência das nossas coisas, temos de respeitar aquelas coisas que têm valor, que são boas para o futuro da nossa terra, para o nosso povo avançar. Ninguém pense que é mais africano do que outro, nem mesmo do que algum branco que defenda os interesses da África, porque eles sabem hoje comer melhor com a mão, fazer bem a bola de arroz e atirá-la para a boca. Os Tugas20, quando eram visigodos ainda, ou os suecos, quando eram Vikings, também comiam com a mão. Se virem um filme dos Vikings dos tempos antigos, podem vê-los com grandes chifres na cabeça e mezinhos21 nos braços para irem para a guerra. E não iam para a guerra sem os seus grandes chifres na cabeça. Ninguém pense que ser africano é ter chifres pegados ao peito e mezinhos na cintura. Esses são os indivíduos que ainda não compreenderam bem qual a relação que existe entre o homem e a natureza. Os Tugas fizeram isso e os Franceses também o fizeram, quando eram saxões, viajando pelos mares fora em canoas, grandes canoas. 19

Eles vieram do Oriente para África.

20

Tugas é a expressão usada em todas as colónias portuguesas para chamar os Portugueses. Ainda hoje prevalece a seguinte expressão: “Vou a Tugas” (Vou a Portugal).

21

Mezinho é uma espécie de talismã ou amuleto (tipo remédio caseiro). É um objeto de formas e dimensões variadas, ao qual se atribuem poderem extraordinários de magia ativa, possibilitando a realização de aspirações ou desejos e não ser morto se estiver na frente de combate.

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