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FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Ensaio sobre o Mal em Rousseau autor: Manuel João Matos capa: Patrícia Andrade revisão: Patrícia Espinha paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, dezembro 2016 isbn: 978-989-8714-87-9 depósito legal: 414786/16 © Manuel João Matos
publicação e comercialização:
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ÍNDICE
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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PRIMEIRA PARTE
O MAL, A LIBERDADE E A EDUCAÇÃO
CAPÍTULO I – O Mal e a Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO II – A Educação e o Mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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SEGUNDA PARTE
ROUSSEAU E A GENEALOGIA DO MAL
CAPÍTULO III – Da Genealogia do Mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 CAPÍTULO IV – Hermenêutica do Mal: Da Naturalização à Socialização do Mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 Índice Onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
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AGRADECIMENTOS
Os meus agradecimentos ao Professor Doutor Michel Renaud, Professor Catedrático aposentado da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, à Professora Doutora Isabel Renaud, Professora Catedrática aposentada da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, ao Professor Doutor João Sàágua, Vice-Reitor da Universidade Nova de Lisboa e ao Professor Doutor Francisco Caramelo, Director da FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Os meus agradecimentos à minha mãe Rosa Benedita Matos, à minha irmã Ana Matos, ao meu filho João Matos e à minha mulher Sílvia Matos.
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INTRODUÇÃO
Hegel afirmou no Prefácio da Fenomenologia do Espírito que a filosofia não deve querer ser edificante: «a filosofia deve abster-se, quanto a ela, de querer ser edificante»1. Pelo contrário, a filosofia de Rousseau é moralmente edificante, por uma dupla razão. Ela implica a pesquisa sobre os “fundamentos” da ciência moral assente no princípio da autonomia, mas ela é edificante na medida em que apela à “reforma moral” do Homem. Uma frase de Rousseau circunscreve o perímetro da sua reflexão: «A verdade que eu amo não é tanto metafísica como moral»2. Rousseau inocenta a natureza humana e Deus no Fiat da Criação, não recorrendo nem ao dogma do pecado original, nem ao dualismo gnóstico, nem à teoria tradicionalmente aceite no seu tempo do mal como privatio boni de Santo Agostinho a Leibniz. Enfim, como afirma Kant, Rousseau deu uma «nova justificação de Deus», totalmente diferente das teodiceias tradicionais e modernas, fazendo dele o «Newton do mundo moral»: «Até então a objecção de Alfonso e Mani
HEGEL, G. W. F., Préface à la phénoménologie de l’esprit, tradução T. Piel (edição bilingue). Paris, Éditions Allia, 2016, §9, pp. 24-25. 1
Lettre à Dom Deschamps, le 25 juin 1761, in Lettres philosophiques, edição J.-F. Perrin. Paris, Librairie Générale Française, 2003, p. 217. 2
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tinha ainda todo o seu valor. Depois de Newton e Rousseau, Deus é justificado e doravante a doutrina de Pope é verdadeira»3. Fazendo do mal uma criação humana, fruto do «abuso das suas faculdades», Rousseau entronizou a autonomia como a essência da natureza humana, o que faz dele o pioneiro da “liberdade positiva”, como afirma Isaiah Berlin, contrapondo-se a toda a tradição moderna de Hobbes, Locke e Montesquieu, etc., ao utilitarismo e ao materialismo que conheceu no século XVIII um desenvolvimento inusitado com o crescimento exponencial das ciências naturais. Rousseau busca soluções de âmbito secular para uma série de problemas fundamentais que antes estavam circunscritos ao pensamento teológico, mas mantendo o fundamento doutrinário do cristianismo. É o balanceamento entre um pensamento profundamente cristão e a tentativa de dar uma resposta secular a alguns dos problemas capitais que estavam circunscritos à teologia que faz do pensamento filosófico de Rousseau um pensamento absolutamente singular e deveras original. Rousseau compromete-se numa síntese absolutamente original com o pensamento teológico e com a ciência que no século XVIII conheceu um desenvolvimento notável das ciências naturais. À ciência o que é da ciência, à religião o que é da religião, e nenhum dos ensinamentos fundamentais pode ser posto em causa. Rousseau é um “filósofo sério”4, utilizando a expressão de Victor Goldschmidt em Anthropologie et Politique. Les principes du système de Rousseau, no duplo sentido em que o que caracteriza a marca do
KANT, I., Observations sur le Sentiment du Beau et du Sublime, Extraits des Remarques touchant les Observations sur le Sentiment du Beau et du Sublime, tradução, introdução e notas de R. Kempf, Paris, Vrin, 1962, p. 66. 3
GOLDSCHMIDT, V., Anthropologie et Politique. Les principes du système de Rousseau. Paris, Vrin, 1974, p. 13. 4
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seu génio especulativo é “a paixão filosófica ao serviço da ciência” e as consequências que retira do seu “sistema” são deduzidas com o maior rigor filosófico com base nos dados das ciências naturais do seu tempo. A construção do modelo do estado de natureza é, a este respeito, exemplar porque ela é «uma hipótese semelhante àquelas que fazem todos os dias os nossos físicos sobre a formação do Mundo»5, concluindo Rousseau que «as consequências que quero deduzir não serão por isso de modo nenhum conjecturais, pois sobre os princípios que acabo de estabelecer não se poderá formar nenhum outro sistema que não me forneça os mesmos resultados, e de que não possa tirar as mesmas conclusões»6. Na análise sistemática da obra de Rousseau, deve dar-se conta dos esforços filosóficos para a explicitação da intuição originária de Vincennes, à luz da qual se desenvolve o seu modelo explicativo: a importância desta visão é tal que ela se manifesta como o ponto absoluto de compreensão da unidade interna da obra de Rousseau. A coerência e a lógica do “sistema” constituem-se em torno desta intuição filosófica originária, cujo ponto de partida é a reflexão filosófica sobre o problema do mal. A problemática do mal é o fio condutor do pensamento de Rousseau, desde a «iluminação» de Vincennes (1749) até à realização das suas obras fundamentais como o Émile (1762) e o Contrato social (1762) e à redacção das Lettres écrites de la Montagne (1764) que é uma defesa das teses das suas obras fundamentais. O problema que ocupou Rousseau encontra a sua expressão acabada na Profession du Vicaire Savoyard, inserta no Émile: «O quadro da natureza não me oferece senão harmonia e proporções, o do género humano 5
Discours sur l’inégalité, Œuvres complètes, III, p. 133.
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Discours sur l’inégalité, Œuvres complètes. III, p. 162. 13
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não me oferece senão confusão e desordem! O concerto reina entre os elementos, e os homens estão no caos! Os animais são felizes, o seu Rei somente é miserável! Ó Sabedoria!, onde estão as tuas leis? Ó Providência!, é assim que reges o mundo? Eu vejo o mal sobre a terra»7. Na Lettre à Franquières, Rousseau coloca uma série de questões que lhe assaltam o espírito e que constituem o fulcro da sua reflexão sobre os assuntos morais, em que o mal é problematizado em toda a sua extensão na sua ligação com a natureza humana e com Deus, que são os pólos metafísicos entre os quais se equaciona a possibilidade da solução do problema do mal: «Mas se tudo é obra de um ser inteligente, poderoso, de onde vem o mal sobre a terra? […] Os nossos filósofos elevaram-se contra as entidades metafísicas, e não conheço ninguém que o faça tanto. Que entendem eles pelo mal? O que é o mal em si mesmo? Onde está o mal relativamente à natureza e ao seu autor?»8 Se o universo obedece às «leis da mecânica»9, a liberdade humana é um poder de espontaneidade que escapa por completo ao determinismo universal. A existência da liberdade humana desafia todos os determinismos sumários: «O movimento progressivo e espontâneo dos animais, as sensações, o poder de pensar, a liberdade de querer e de agir que encontro em mim próprio e nos meus semelhantes, tudo isso supera as noções da mecânica que posso deduzir das propriedades conhecidas da matéria»10. «Porquê que, declara Rousseau, o sublime produz um tão grande efeito? […] O quê! Fazer a luz é uma operação tão simples que lhe 7
Émile, IV, Œuvres complètes, IV, p. 583.
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Lettre à M. de Franquières, Œuvres complètes, IV, p. 1140.
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Discours sur l’inégalité, Œuvres complètes, III, p. 142.
Fiction ou Morceau Allégorique sur la Révélation, Œuvres complètes, IV, p. 1045. 10
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basta dizer tranquilamente à luz para ser, para que no instante a luz seja!…»11. A divisa de Genebra, Post tenebras lux, serve como um convite à filosofia de Rousseau. A metáfora da luz ela própria tinha uma longa história. Na Bíblia, do fiat lux do Génesis ao prólogo do Evangelho segundo São João – «a vida era a luz dos homens» –, a referência à luz é omnipresente na caracterização da acção benfeitora de Deus. Antónima das trevas, a luz é também a “luz interior” dos homens que é anunciada em Post tenebras lux. Depois das trevas do Mal, aparece a luz benfeitora do Bem, pela mão Daquele que guia o destino do universo e dos homens: «Um novo universo oferece-se, por assim dizer, à sua contemplação: ele apercebeu a cadeia invisível que liga entre eles todos os Seres, ele viu uma mão poderosa estendida sobre tudo o que existe, o santuário da natureza foi aberto ao seu entendimento, como às inteligências celestes e todas as mais sublimes que ligamos a esta palavra Deus apresentaram-se ao seu espírito»12. Então, «ensinemos os homens a encararem-se como os instrumentos de uma vontade suprema que os une entre si e com um todo maior,
Fragment sur la puissance infinie de Dieu, Œuvres complètes, IV, p. 1055; Génesis, I, 2. Rousseau caracteriza Deus segundo a melhor tradição teológica. É um lugar-comum da teologia que Deus conhece todas as coisas intuitivamente e não discursivamente. O conhecimento intuitivo é infinitamente superior a toda a outra forma de conhecimento; ele não pertence aos espíritos encarnados e decaídos: «La suprême intelligence n’a pas besoin de raisonner: il n’y a pour elle ni prémisses, ni conséquences, il n’y a pas même proposition; elle est purement intutive, elle voit également tout ce qui est et tout ce qui peut être; toutes les vérités ne sont pour elle qu’une seule idée, comme tous les lieux un seul point, et tous les temps un seul moment» (Émile, IV, Œuvres complètes, IV, p. 593). 11
Fiction ou Morceau Allégorique sur la Révélation, Œuvres complètes, IV, p. 1047. 12
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[…] e a amarem-se todos como irmãos destinados a reunir-se no seio do seu Pai comum»13. Depois das trevas, veio a luz do sistema que de “súbito concebeu”: «todas estas partes estão ainda elas no meu pensamento numa espécie de sistema que suspeito sem o conceber?»14 Então, a luz é a luz da filosofia que dissipa as trevas do mal e nos conduz a Deus que produz a suprema luz. São João recorda no Evangelho que os homens preferiram as trevas à luz. Se o mundo humano é um mundo de penumbra e de trevas, isso recorda a Alegoria da Caverna através do mito da estátua de Glauco da República de Platão evocado no Discurso sobre a Desigualdade. Ora, na sua interpretação tal deve-se à desfiguração da natureza humana pela presença massiva do mal na terra que obscurece o verdadeiro fim da vida humana. No claro-escuro da visão do seu espírito, a «iluminação» de Vincennes fez-lhe descobrir a origem e a genealogia do mal no mundo. É a visão do mal que torna os homens “miseráveis” que é revelada na «iluminação» de Vincennes, intuição que está na origem do seu “sistema” filosófico. A referência mais recente e coerente da «iluminação» de Vincennes (1749) é descrita na Lettre à Malesherbes e data de 1762, época em que as obras-mestras de Rousseau foram concebidas e realizadas, e é um momento excepcional no qual nasceu um mundo novo de pensamentos sobre a moral, o mal e a política: «Se jamais qualquer coisa se assemelhou a uma inspiração súbita, é o movimento que se fez em mim a esta leitura (do Mercure de France sobre a questão proposta pela Academia de Dijon para o prémio do ano seguinte (1750):
Fiction ou Morceau Allégorique sur la Révélation, Œuvres complètes, IV, p. 1048. 13
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«Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou purificar os costumes?»); de súbito senti o espírito ofuscado de mil maneiras; multidões de ideias vivas apresentaram-se simultaneamente com uma força e uma confusão que me lançou numa perturbação inexplicável; senti a minha cabeça tomada por um turbilhão de ideias semelhante a um êxtase […] Ó Senhor!, se eu tivesse jamais podido escrever um quarto do que vi e senti sob esta árvore, com que força teria exposto os abusos das nossas instituições, com qual simplicidade teria mostrado que o homem é bom naturalmente e que é por estas instituições somente que os homens se tornam maus»15. Há a força intelectual, mas também o abismo vertiginoso reconhecido por Rousseau, entre o que ele pôde expor e o que viu na “visão intelectual” de Vincennes. Evocar-se-á Santo Agostinho, Pascal, Fichte, Nietzsche, todos tomados por uma inspiração “súbita”. Mas, segundo as Confissões, um fenómeno único adveio que foi não somente uma nova visão do mundo, mas a visão de um homem novo que a assume: «No instante desta leitura, vi um outro universo e tornei-me num outro homem»16. A “crise intelectual” de Rousseau é vivida sobretudo como uma “crise moral”. Por um lado, é o problema do mal que impulsiona Rousseau; por outro lado, é a força bem mais poderosa da “verdade”, a causa da “imaterial virtude” que é o plaidoyer de Rousseau. A partir deste momento de revelação súbita sobre o problema do mal, nada detém o espírito de Rousseau, que consagrou a sua vida à “verdade”, mormente, à filosofia moral e política: «Vitam impendero vero: eis a divisa que escolhi e de que me sinto digno»17.
15
Lettres à Malesherbes, Œuvres complètes, I, pp. 1135-1136.
16
Les Confessions,VIII, Œuvres complètes, I, p. 351.
Cf. Lettre à D’Alembert, Œuvres complètes, V, p. 120, nota*; Juvenal, Sátiras, VI, 91. 17
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Rousseau ensaia a genealogia do mal tanto do ponto de vista individual como histórico. A primeira interpretação do mal, elaborada em Emílio, reveste um carácter individual estrutural, enquanto o Discurso sobre a Desigualdade ensaia a genealogia histórica do mal. Ora, no mundo social, o mal é estrutural à “condição humana” e «a virtude entre nós obriga frequentemente a combater e a vencer a natureza e raramente [os homens] são capazes de semelhantes esforços»18. Rousseau declara no Prefácio de uma Segunda Carta a Bordes que «este triste e grande Sistema, fruto de um exame sincero da natureza do homem, das suas faculdades e do seu destino, é-me caro, embora me humilhe. [...] Quanto ao Sistema que sustentei, defendê-lo-ei com toda a minha força durante tanto tempo quanto permanecerei convencido que é o da verdade e o da virtude»19. A verdade que o sistema de Rousseau desvenda, nas «profundidades [da natureza humana] em que estava escondida»20, é aquela que é «útil para a prática»21, isto é, para a moral. «Malheureuse»! É como Rousseau qualifica a questão da Academia de Dijon (1750) porque ela, na «iluminação» decisiva de Vincennes, lhe fez descobrir a fonte da infelicidade humana, a origem do mal moral: «Uma infeliz (malheureuse) questão da Academia que leu num Mercure veio de súbito […] mostrar-lhe um outro universo […], e realizar a esperança de todas as visões, pela destruição dos
Rousseau juge de Jean-Jacques, Premier Dialogue, Œuvres complètes, I, p. 670 [itálico nosso]. 18
19 Préface d’une Seconde lettre à Bordes, Œuvres complètes, III, p. 105 [itálico nosso]. 20 KANT, I., Observations sur le Sentiment du Beau et du Sublime, Extraits des Remarques touchant les Observations sur le Sentiment du Beau et du Sublime, p. 66. 21
Lettre à M. de Franquières, le janvier 1769, in Lettres philosophiques, p. 368. 18
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preconceitos que o tinham subjugado a ele próprio, mas de que ele creu nesse momento ver nascer os vícios e as misérias do género humano»22. O seu “sistema” é o desenvolvimento de uma questão “infeliz” e “triste” que o “humilha”: é o problema do mal moral de que Rousseau procede à árvore genealógica de que todo o seu “grande sistema” apresenta as “partes” ou as diversas ramificações da mesma “verdade”. Esta “verdade” é “humilhante” porque o peso da responsabilidade do mal moral recai única e exclusivamente sobre o homem, bem como a via da sua regeneração, não se devendo nem a um hipotético pecado original nem à imperfeição das criaturas racionais, como é o caso do mal metafísico em Leibniz. Santo Agostinho fez do amor-próprio a causa da desobediência e da queda do primeiro par humano e recordou a “preferência” denunciada pelo Evangelho de São João: «Eles preferiram as trevas à luz. Et dilexerunt hominis magis tenebras quam lucem»23. Para anular os efeitos do amor-próprio, os moralistas cristãos propõem, pelo uso culpado da liberdade, a renúncia ao amor-próprio e implorar humildemente o perdão e a graça divina. Rousseau propõe uma nova solução, que é a de não renunciar ao amor-próprio, mas universalizá-lo. Essa é, verdadeiramente, uma forma de remédio no mal porque o amor-próprio é inseparável da reflexão que compara e é a fonte do mal. A reflexão de Rousseau sobre o amor-próprio volta-se, então, para o amor à humanidade segundo o preceito evangélico agora profundamente radicado na natureza humana: «Estendamos o amor-próprio sobre os outros seres, transformemo-lo em virtude, […] e o amor do género humano não é outra coisa em nós senão o amor da justiça»24. Se se está
22
Rousseau juge de Jean-Jacques, Œuvres complètes, I, pp. 828-829.
23
São João, III, 19.
24
Émile, IV, Œuvres complètes, IV, p. 547. 19
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irremediavelmente cativo dos laços do amor-próprio, a ética de Rousseau repousa na reciprocidade da lei evangélica: «O amor aos homens derivado do amor de si é o princípio da justiça humana. O sumário de toda a lei moral é dado no Evangelho pelo da lei»25. O homem é o produto de uma longa evolução histórica e a origem da espécie humana mergulha na obscuridade da sua condição animal e, na escala dos seres, o homem desceu do pólo divino ao pólo animal. A visão das origens, no tempo de Rousseau, está ainda contaminada por elementos poéticos e religiosos; o “primitivismo” de Pope que retoma temas muito antigos, é ainda comummente aceite. Entre o Adão bíblico e o homem errando na floresta pré-histórica há um hiato profundo, num caso iluminado por Deus e próximo do anjo e, no outro caso, animado por forças obscuras e próximo do animal; contudo, têm em comum a imagem da unidade primordial e da inocência da indivisão que, em Rousseau, liga o organismo vivo à natureza que o produziu. Ele deve, para o bem ou para o mal, ser o criador do seu destino histórico. O “homem primitivo” e Adão criatura superior afastam-se infinitamente um do outro no tempo e deverá intervir não somente a educação, mas todo o esforço heróico da história individual e social. Quando Rousseau elaborar a sua visão sistemática da evolução social, ela desenvolver-se-á como um movimento circular, que se abre e encerra como um grande círculo sobre si mesmo: o acesso à unidade final equivale a um retorno à unidade primordial, mas o começo é elevado e aprofundado pela dimensão da consciência que faltava ao homem primordial e que o resgata para o caminho do bem e da virtude. Assim se desenvolviam também as escatologias religiosas, da inocência original à salvação final, passando pelo pecado e a natureza decaída. A realidade humana cativa do mal é objecto de uma 25
Émile, IV, Œuvres complètes, IV, p. 523, nota*. 20
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condenação de princípio, mas surge tal qual nas categorias religiosas como a condição indispensável de um progresso para a salvação. Antropologia evolucionista e teologia da queda numa versão secular entrecruzam-se no pensamento de Rousseau, sobretudo no que diz respeito à reflexão. A fusão das duas perspectivas não é jamais completa e pacífica, se bem que a ambição de Rousseau seja a sua conciliação. No Discurso sobre a Desigualdade, o ponto de vista teológico e o naturalista coexistem entre si. O homem, pela sua perfectibilidade, elevou-se acima da sua condição animal; ao mesmo tempo, corrompe-se e decai, perdendo a sua unidade inocente, e tornando-se num ser dividido entre o ser e o parecer, “alienado” e estranho a si próprio e aos seus semelhantes, cativo das aparências. Assim, o desenvolvimento progressivo do homem e o da sua corrupção moral estão intimamente interligados. O escândalo da tese de Rousseau não é menor para os cristãos do que para os filósofos do seu tempo. Rousseau move-se no registo evolucionista e no cristão, buscando a sua conciliação, cujo acordo é de grande complexidade. No Discurso sobre a Desigualdade, há uma frase célebre, muitas vezes mal compreendida, mas que resume o seu pensamento de forma exemplar: «Se [a natureza] nos destinou a ser sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contranatura, e que o homem que medita é um animal depravado»26. Rousseau move-se no plano da ciência natural e fala de uma evolução em que o homem parte da sua condição animal. Neste caso, a norma é a saúde, contudo, a infidelidade a esta norma não é a “depravação”, mas a doença. Hegel, mais tarde, dirá que «com a doença, o animal transgride a fronteira da sua natureza, mas a doença do animal
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Discours sur l’inégalité, Œuvres complètes, III, p. 138. 21
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é o devir do espírito»27. Assim, a doença é o acto de assinatura secreto que arranca o homem à natureza e Rousseau afirma no Discurso sobre a Desigualdade que se pode fazer a história das sociedades civis fazendo a história da medicina. Ora, a utilização da palavra “depravado” traz implícita a referência de Rousseau a uma norma moral e mesmo religiosa. Ela não é o antónimo de são, mas de recto ou justo. Rousseau substitui uma norma de moralidade à norma de saúde e a frase revela uma tese capital – a evolução do estado de inocência animal do homem ao estado de corrupção moral em sociedade. A síntese ideal dos dois registos, o naturalista-evolucionista e o teológico, visa a reconciliação dos termos em conflito, encarando a história humana simultaneamente como um processo natural e segundo a primazia dos valores morais e religiosos, que é exemplificada na religião natural. Há uma dialéctica interna no âmago do pensamento de Rousseau em que a interpretação naturalista acerca da origem e da evolução da espécie humana realizada no quadro das ciências naturais do seu tempo e a interpretação teológica coexistem entre si, cujo resultado é um “sistema” que contribuirá para o enorme progresso filosófico, moral e político, desde a segunda metade do século XVIII até aos nossos dias. A reflexão tem um estatuto paradoxal, mas crucial no pensamento de Rousseau. Ela é a fonte do mal moral, mas está intimamente ligada à liberdade humana, que é a faculdade por excelência do pensamento moral de Rousseau. Reflectir é comparar, comparar é julgar, que é a prova da espontaneidade do espírito humano e, nomeadamente, do poder de querer (puissance de vouloir) em que consiste a essência HEGEL, G. W., Jenenser Realphilosophie I, edição J. Hoffmeister e G. Lasson. Leipzig, Meiner, 1932, t. XIX, p. 186. 27
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da liberdade humana. Mas os nossos juízos podem ser falsos, a nossa intenção corrompida e a nossa liberdade faz-nos correr o risco de errar e, assim, querer o mal, que é o resultado do assentimento voluntário do juízo. O amor-próprio presente na comparação humana está na origem da reflexão, e é a maior causa dos males humanos: pela reflexão, eis-nos simultaneamente livres e escravos da “opinião” social e, acima de tudo, do nosso amor-próprio. A tese de Rousseau é reveladora do carácter paradoxal da razão: a razão é responsável por todas as «paixões odiosas e irascíveis» sob a influência do amor-próprio e é a fonte da perversão universal e original; ela corrompe no homem a inocência animal do estado de natureza. Se a reflexão é a fonte da corrupção, Rousseau afirma simultaneamente a unidade da natureza humana, a sua inocência e a sua “rectidão” originária. Rousseau defende a tese que o homem está inteiramente cativo do mal pela reflexão, mas a única esperança da sua regeneração reside na própria reflexão, na necessidade de um esforço suplementar e redobrado da razão: o homem deve encontrar «na arte perfeccionada [da razão] a reparação dos males que a arte no começo fez à natureza»28. Assim, esboça-se uma genealogia do mal em três épocas da humanidade: a humanidade, tendo perdido pela reflexão a plenitude da sua inocência no estado de natureza, cai na patologia da civilização, mas eleva-se à mais alta unidade, conquistada através de um esforço disciplinado da legislação e da educação. Os efeitos nefastos da razão não podem ser “curados” senão pondo em obra todos os recursos da razão disciplinada através da educação. É através da reflexão ou do uso da razão que, pela educação, se vencem todos os obstáculos e tentações do mundo social, assim como a nossa própria natureza, profundamente 28
Fragments politiques, Œuvres complètes, III, p. 479. 23
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corrompida pelo mal ou pelo “pecado” agora concebido numa versão secular que é a vanidade do parecer e do mundo das aparências. Há uma tensão interna no pensamento de Rousseau, que reside na conciliação de dois registos quase antitéticos, e diante do mesmo problema, visto por ângulos diferentes, recorre-se à antítese e à síntese por uma dialéctica de superação, em que todo o seu esforço filosófico se volta contra o mal absoluto, o mal moral. A reflexão, por um lado, arranca-nos à nossa natureza animal que «comportava um vício essencial» que era a ausência da virtude e a impossibilidade da realização do bem; mas, por outro lado, a própria razão nunca acede à clarividência da imagem de si própria que não aparece com precisão intelectual. Então, todos os perigos morais assaltam-nos no seio da nossa natureza e do espírito: a vanidade, o amor-próprio, a mentira, etc. O homem não possui a visão interior de si próprio, nem a evidência de um espelho intelectual, onde a nossa esfinge interior se pode reflectir, como em Platão e Descartes. O homem está condenado ao obscuro, às trevas, somos uma camera oscura e o fiat lux advém pela prática da virtude que implica um duro “combate interior” pela realização do bem, que é a mais alta insígnia do ser humano. Rousseau supera, assim, o carácter meramente edificante da sua filosofia pela pura construção do seu “sistema” moral. Rousseau pretende atingir o ser e não meramente o parecer, o que é a aspiração da filosofia, cuja divisa é a da consagração da sua vida à “verdade”. Todos os seus esforços filosóficos visam a determinação do “fundo” (Grund) do mal absoluto, o mal moral, que é a fonte da miséria humana e a possibilidade da regeneração moral do homem. Rousseau, pela genealogia do mal, procurou a origem límpida e a possibilidade de inocentar a natureza humana originária, dando-se por pátria um mundo inalterável
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MANUEL JOÃO MATOS
e puro: «os primeiros movimentos da natureza são sempre rectos»29 e, assim, uma via aberta para a “cura” dos males sociais: «Sanabilibus œgrotamus malis» promete a epígrafe do Émile30. ✳ ✳
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Todas as citações de Rousseau reenviam à edição Œuvres complètes, edição publicada sob a direcção de Bernard Gagnebin e Marcel Raymond. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1959-1995, 5 volumes. Embora o estudo obedeça às regras de exposição em vigor, houve opções metodológicas para as quais chamamos a atenção do leitor. Os textos de Rousseau são citados a partir desta edição, seguidos do número do volume em números romanos e do número da página em algarismos árabes. Na maior parte dos casos, cita-se também a obra de Rousseau a que se faz referência, seguida do livro em números romanos e do capítulo em algarismos árabes. As citações que aparecem no corpo do texto estão em português, não transcrevendo o original em rodapé, e as traduções são da nossa inteira responsabilidade.
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Émile, II, Œuvres complètes, IV, p. 322.
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Émile, IV, Œuvres complètes, p. 239; SÉNECA, De irâ, L. II, c. 13. 25
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PRIMEIRA PARTE
O MAL, A LIBERDADE E A EDUCAÇÃO
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CAPÍTULO I
O MAL E A LIBERDADE
A abertura de Émile ou de l’éducation mostra o enclausuramento da espécie humana no labirinto do mal em que se encerrou por sua própria culpa: «Tudo está bem, saindo das mãos do autor das coisas: tudo degenera nas mãos do homem. Ele força uma terra a suportar as produções de outra; uma árvore a ter os frutos de outra. Ele mistura e confunde os climas, os elementos, as estações. […] Ele inverte tudo, desfigura tudo: ama a deformidade, os monstros. Ele não quer nada como fez a natureza, nem mesmo o homem; é necessário discipliná-lo como um cavalo doméstico; é necessário podá-lo a seu modo como uma árvore do seu jardim» 31. A solenidade da problemática do mal na abertura de Émile glosa o termo “degenerar” (mudança de género, alteração e deformação do “homem”). A via da regeneração do homem passa pela educação como a única forma de restabelecer a ordem onde «tudo está bem». O início de Émile traça um esboço antropológico disforme quanto à desmesura e à violência que descreve como sendo “obra do homem”. A perversão é genérica e absoluta. O homem desfigurou-se por um desejo patológico de alteração de si próprio («ele não quer nada como fez a 31 ROUSSEAU, J.-J., Œuvres complètes, Émile ou de l’éducation, I, O. C., IV, p. 245. Todas as citações de Rousseau remetem para as Œuvres complètes, edição Bernard Gagnebin e Marcel Raymond. Paris, Gallimard, Pléiade, 1959-1995, 5 volumes.
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