fรกbulas de lisboa
Edição: edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: fábulas de lisboa Autor: josé luís borges de almeida Arranjo Gráfico de Capa: Patrícia Andrade (sob fotografia do autor) Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, Julho de 2015 ISBN: 978-989-8821-04-1 Depósito legal: ?????????? © josé luís borges de almeida PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
fábulas de lisboa
josé luís borges de almeida
nĂŁo poucas vezes esbarramos com o nosso destino pelos caminhos que escolhemos para fugir dele. jean de la fontaine
convidaremos agora o turista a vir connosco. servir-lhe-emos de cicerone e percorreremos com ele a capital (‌) pelo caminho mostrar-lhe-emos tudo o que merece ser visto. fernando pessoa
hei-de avisar ulisses
a terra é agradável, com pequenas colinas erguidas sobre vales onde ribeiras de águas mansas prometem a frescura de hortas imagino o primeiro casario, paredes brancas à sombra das telhas as vozes num mercado, a venda de animais e a ida às fontes e até consigo antever neste rio despido a azáfama de um porto todos os ruídos de um cais na descarga de navios ancorados podia aqui haver mesmo uma cidade – hei-de avisar ulisses
cais das colunas
estou aqui há horas mas não me sinto em parte alguma. onde estás, memória da nau que içavas âncora e partias? procuro-te no turvo horizonte e interrogo a baça bruma num querer vão de reviver esse oceano de especiarias. na névoa de onde um rei é ainda esperado, já só uma gaivota voa. deste rio partiram todos aqueles que se afundaram em dunas mas agora apenas aqui aportam cacilheiros ávidos de lisboa e é à deriva que também eu encalho neste cais das colunas…
chiado
uns passam o braço por cima do ombro e sorriem para a fotografia outros sentam-se ao lado na cadeira vazia e afagam a minha mão
alguns dizem-me segredos, chamam-me “bigodes” e “nandinho” e há sempre uma criança atrevida que tenta tirar-me o chapéu
tenho sido insultado por muitos e agredido por ser eu e ser assim mas já me beijaram os lábios frios e tocaram onde não posso confessar
o que mais me custa mesmo é ter de passar as noites na solidão do chiado e aprisionado nesta pele de bronze não poder ao menos descruzar as pernas
largo de belas artes
sonâmbula acorda a sombra da årvore adormecida
elevador de santa justa
estás sempre longe quando não estou parado a olhar para ti nunca consegui guardar-te numa imagem fixa na minha memória por isso estás muitas vezes em mim ausente e presente também porque é nessas ocasiões que me lembro que de ti nada relembro gigante metálico muito mais alto que o mero percurso ascensional imaginário vertical esculpido num alfabeto sem letras nem palavras
(é que as palavras têm esse dom, independente das coisas que acontecem: porque as coisas também aconteceriam mesmo que não houvesse palavras, só que nesse caso teriam acontecido sem as palavras. e não seria igual…)
sua alteza real, o candeeiro do chiado
[ vieram empoleirados na nau que trouxe os restos mortais do mártir s. vicente, desde o cabo de sagres até lisboa, acompanhando-a, protegendo-a e indicando-lhe o caminho. e reza também a lenda que na noite de 16 de novembro de 1173 a nau ancorou junto à igreja de santa justa e rufina, onde o corpo do santo fora recolhido pelo prior, d. múnio. os corvos pousaram no telhado. depois fez-se uma grande procissão para a sé, e as duas aves seguiram no cortejo, ficando ali por muitos e longos anos e permanecendo para sempre nas armas do brasão da nossa mui nobre e sempre leal cidade de lisboa ]
1º corvo: não achas este candeeiro demasiado vaidoso? 2º corvo: vaidoso e irritante. sabes, julga-se muito importante… 1º corvo: se não fosse por vicente, há muito que teria voado. 2º corvo: também eu. olha, ali ao fundo, já é lisboa? 1º corvo: vês a foz de um rio largo? então deve ser… 2º corvo: …e depois de entregarmos vicente, o que faremos? 1º corvo: não sei, talvez possamos ficar por aqui.
calçada do combro
há em lisboa uma calçada que estudou o passado com os olhos postos no futuro. quando soube do terramoto que houve em mil setecentos e cinquenta e cinco achou que devia escolher um nome fácil de modificar em caso de calamidade, uma palavra que pudesse revelar a sua verdadeira e mais íntima essência.
um louvor à calçada do combro, a única a pensar na transitoriedade da vida: quando ocorrer uma nova catástrofe e esta calçada calçada deixar de ser ao seu nome será necessário apenas acrescentar o simples prefixo ex-… e a calçada ex-combro continuará a ser ela própria… a calçada escombro.
martinho da arcada
caminha-se e contam-se as arcadas até à porta do martinho depois quem entra fica sempre admirado pelo recanto vazio e também um pouco desapontado pela improvável ausência afinal, com tanto heterónimo por aí, algum devia estar presente
como esta mesa tem sempre uma só chávena de café e um só copo de aguardente sempre quis saber qual dos muitos senhores pessoa se sentava neste «reservado» uma vez até perdi timidez e vergonha e perguntei se acaso sabiam se era fernando ou álvaro ou ricardo ou alberto ou bernardo ou até alexandre ou mesmo outro qualquer olharam para mim e abanaram a cabeça, com aquele gesto de bonomia tão lusitana com que se desculpam os que perdem tempo a saborear a magia nas palavras
cais do sodré
sempre que desaguo neste cais, olho um comboio e vejo nele uma nau com timoneiro e marujos, navegando mansamente sobre carris de sal e faço crescer nele mastros de madeira erguidos ao sabor do vento
surge então em mim o súbito desejo de embarcar numa carruagem e ir desfraldando velas remendadas pelo entardecer do passado vão rumo a essa foz onde o lamento se esquece e a glória por fim renasce
mas a estação está tão vazia de sonho como estas águas embaciadas e, de costas para o rio como a cidade entorpecida que me ignora, escondo um suspiro e dou por mim perdido a subir a rua do alecrim
as calçadas
inscreve-se nas ruas de lisboa a lenda do calceteiro: anónimas esculturas de pedras-palavras esquecidas que escrevinham poemas-passeios a preto e branco e compõem canções-calçadas em apenas dois tons
a fertilidade da resistência
a irresistível atracção de uma parede nua, montra alheia e reflexo do olhar comum. alguém percebeu esse poder do anonimato da palavra escrita que ninguém escreveu num muro despido que toda a gente lê. e a melhor frase para resistir ao desgaste do pulsar do tempo poderia ter sido esta:
passando todos os dias defronte deste mural pensei durante algum tempo nessa fertilidade, no pensamento inerente ao esforço da resistência, necessariamente criativo e sempre motivador. admito que havia alguma razão para acreditar no poder gerador de um conceito lido diariamente, mas a verdade é que após poucas semanas pude constatar que essa ideia não germinou e não pôde colher frutos a vontade de resistir: a limpeza da pedra foi o triunfo da esterilidade…
largo de são carlos
alguma vez te detiveste a pensar nisto: que canção ecoa no local onde nasceste?
pois apesar de mais não ser que um ténue sussurro, a brisa cruza o largo de são carlos e traz uma ária a um pessoa de pé e em si mesmo ensimesmado,
com a cabeça escondida num livro que não se folheia num fono-fotograma estático captado em bronze.
essa melodia não está escrita mas parece agradar-lhe e ressoa musical nas paredes do edifício onde nasceu.
consegues ouvi-la?
jardins gulbenkian
uma palavra: semente plantada no vento
suspenso olhar: flutuante magia do nenĂşfar
cais da rocha
e no entanto nenhum cais poderia ser apenas quotidiano mero limite entre uma cidade imĂłvel e a fluĂŞncia das ĂĄguas porque nos sabemos indefesos navegantes imaginados perante a imensa vastidĂŁo do desejo de oceanos sem fim
e a simples menção aqui ouvida de portos longínquos logo os torna nos nossos mapas ainda mais inatingíveis encerra em si uma promessa difusa de outras aventuras a ilusão romântica de viagens à deriva nos mares do sul
lugares que talvez mais não sejam que este cais da rocha mas que estão suficientemente distantes para que em nós amadureça e aumente e se perpetue essa ânsia tão sonhada
de destinos exóticos concebidos pelo nosso desassossego de rumos nunca antes traçados em nenhuma carta de marear de veleiros antigos que em silêncio cumprem as nossas vozes
[ dedicado a alain de botton, a quem furtei uma ideia e algumas palavras ]