Fidelidade e Pós-Modernidade

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Fidelidade e Pós-Modernidade

Consequências do espírito pós-moderno no conceito e na experiência da fidelidade

Pedro Rodrigues Costa


FICHA TÉCNICA Edição: Pedro Daniel Rodrigues da Costa Título: Fidelidade e Pós-Modernidade: consequências do espírito pós-moderno no conceito e na experiência da fidelidade Autor: Pedro Daniel Rodrigues da Costa Revisão editorial e Paginação: Pedro Daniel Rodrigues da Costa Capa: Sítio do Livro 1.ª edição Lisboa, Novembro 2011 Impressão e Acabamento: Agapex ISBN: 978-989-97263-1-4 Depósito Legal: 335946/11 © PEDRO COSTA Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt




PREFÁCIO Passa despercebido ao dia-a-dia das relações que a sua existência (e persistência) têm por base a prática de atos esperados. Pode-se verificar esta premissa através do facto dos contratos regulares estabelecidos entre indivíduos não necessitarem de nenhuma formalidade e, mesmo assim, se cumprirem. Não fosse assim e a maior parte das relações estariam condenadas à partida, porventura subsistindo a visão hobbsiana de uma guerra permanente de “todos contra todos” que alvorava o homem no estado natureza e, assim, capaz de ser o lobo do seu semelhante. O desejo de se estabelecer uma paz capaz de permitir a vivência sã impôs a relação entre indivíduos como a matéria-prima das sociedades. A relação é assim uma necessidade do ser social. O homem relaciona-se para trabalhar, para amar, para se acompanhar, para a amizade, para se unir, no fundo, para existir. Nenhum individuo o faz só por si; não há relações de uma pessoa consigo. É a relação que estabelece o princípio da fidelidade na medida em que é percebida a necessidade do “outro” e instituído o sentimento particular dirigido para a preservação da relação com esse “outro”. Essa alteridade, condição básica da diferença, apesar de mostrar o que está em oposição, não só consciencializa o indivíduo de si como, ao instituir a necessidade do seu contraponto, estabelece a primazia dessa contraparte como se de si mesmo se tratasse. O que Pedro Rodrigues Costa nos dá a conhecer neste ensaio é uma narrativa do conceito de fidelidade cujo centramento encerra em si uma ambiguidade subjacente, para além da polissemia latente e da diversidade de entendimento. A fidelidade pode ser território de muitos olhares. Tem forma jurídica, cariz

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psicanalítica e expressa-se sociologicamente em ondas por vezes dominadas pelo modernismo e outras expressas nas linguagens e atitudes pós-modernas. Ao promover esta análise do conceito de fidelidade, fundamental no estabelecimento da certeza nas relações, sem a qual a vida social se tornaria impossível, o autor escolhe o caminho da multidisciplinaridade, enriquecendo-o com uma série de exemplos reais, apresentados como fotografias descritivas. Nelas a fidelidade tanto surge racional como irracional, imaginada e praticada, orientada e acidentalizada, por vezes sobressaído do interior outras vezes com necessidade de resultados exteriores. Um exemplo: não há organização que não almeje uma longa lista de clientes fiéis, porventura a totalidade. Semanalmente, o tema das reuniões e as instruções aos funcionários são sempre as mesmas: fazer tudo para fidelizar clientes. Para que tal plano resulte, são engendrados esquemas, denominados sistemas de fidelização, cujo objetivo é reter os clientes aos processos de sedução comercial da organização. Esta, nunca se pode dar por satisfeita com o nível de fidelidade obtido porque, sabe, muitas outras organizações querem também a fidelidade desse cliente. Os clientes dessas organizações agem de acordo com o pretendido e aceitam integrar os seus programas de fidelização. Tornam-se assim fiéis. Todavia, na carteira ostentam cartões de fidelização de várias livrarias, várias farmácias, vários hipermercados, várias lojas de pronto a vestir. Estão dispostos a ser fiéis, mas fiéis a todos. O que é um paradoxo: ser fiel a todos não será um caso de infidelidade? Todos os clientes fiéis são de uma infidelidade incrível. Não há organização que não o saiba. E não é vergonha ser infiel? Esta noção que integra e interliga o conceito e o seu contrário retiram à

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ideia a noção de honra e vergonha, trazendo-os para um campo normalizado das relações sociais. A integração de contrários faz emergir a noção de fluxo contínuo e constante, corporizado numa vitalidade social. Nem sempre essa integração de contrários se dá na mesma forma. No caso de um casal, este vive a sua circunstância naturalizada pela relação convencionada. É fiel porque quer sê-lo. Toda a fidelidade nasce de uma relação mas, no caso da união marital, a fidelidade é estabelecida segundo uma noção de unilateralidade. Apesar da esperança na reciprocidade, não é obrigatoriedade da lealdade do seu objeto que impõe a adesão da contraparte. Neste caso a fidelidade mantêmse um conceito interior, estabelecida no centro do indivíduo. A sua exteriorização dá-se com a demonstração aos vizinhos e à rede familiar dos sinais da intensidade da relação do casal. A interioridade do sentimento impõe, na união entre pessoas, a formulação de sinais que comunicam a exterioridade. É impossível falar em fidelidade sem que paire, imediatamente, o seu contrário. Por vezes essa dicotomia encanta o conceito dando-lhe a dinâmica de fluxo. Outras vezes a dicotomia recorta os lados da existência moral, dividindo. Outras vezes ainda, a fidelidade centra-se no interior do seu agente (um amor não correspondido pode ser fiel ao amado) e outras ainda, mascara a frente com as suas cores luminosas escondendo-se a parte escura por detrás. Este é o momento em que o primeiro a saber, realmente não quer saber. Prefere ser o último. Recorrendo a uma escrita fluída, Pedro Costa agarra o conceito através de uma narrativa simples – mas sem ser simplista, atravessando variações que a complexidade do tema obriga. Como não podia deixar de ser, grande parte da sua análise baseia-se no maior

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indicador que a sociedade construiu sobre o tema. A fidelidade dos corpos e o apelo destes à diversidade no seu uso impõe uma luta permanente entre uma socialização normativa, dominada pelo vitorianismo e a expressão das pulsões primitivas, geralmente fontes de prazer intoleradas. Trata-se de um quadro expresso num palco com diferentes iluminações. A zona iluminada mostra a todos as arestas da fidelidade, enquanto o breu arredonda os corpos e os gestos escondendo na escuridão a dúvida da infidelidade. Este livro não é um manual nem um receituário. É, sim, um exercício de análise sociológica de um tema que tem tanto de complexo como de encantador. A fidelidade induz nos indivíduos uma duplicidade e uma plasticidade que, manifestamente os individualiza mas, ao mesmo tempo, os mantém conectados com a sua mundo-vivência de relações. Como nos diz o autor, é desta plasticidade que se faz a máscara social dos indivíduos.

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INTRODUÇÃO Ninguém se pode considerar incólume ao tema da fidelidade. Esta rege, em graus variáveis, todo o tipo de relações. Para os que acham que a fidelidade diz apenas respeito às relações que se projectam no futuro, entre casais enamorados, o recomendável é ler com atenção todos os capítulos, pois facilmente se percebe que a sua génese não é assim tão redutora. Aliás, se há algo que não é redutor é falar de fidelidade. Primeiro porque esta não representa um simples conceito; é, antes de mais, um metaconceito1 (pode ter carácter sociológico, jurídico, económico, histórico, religioso, etc.). É algo que pertence a um dos modos de comportamento muito gerais, e que se eleva sobre relações que já existem e perduram – tem portanto um carácter complementar. Em segundo lugar porque, para além de metaconceito, que preserva e complementa vários tipos de relações sociais, comporta um carácter afectivo – é também uma forma sociológica sob a forma de sentimento2. E isso leva-nos ao terceiro ponto: falar de fidelidade obriganos a falar da nossa essência simultaneamente sociológica e sentimental, de todas as dimensões profundas que nos afectam enquanto seres sociais e individuais, relacionando constantemente as nossas acções com as sociações produzidas em função do espírito do tempo. Por todas estas razões, podemos considerar que não há nada de banal ao falar de fidelidade. Nada é tão 1

Um metaconceito é um conceito que se alastra a várias dimensões impossibilitando a delimitação da sua área de aplicação. Ou seja, pula de dimensão em dimensão, instala-se, interioriza-se e reconfigura-se dentro da acção humana. 2 Cf. G. Simmel, Fidelidade e Gratidão e Outros Textos, Lisboa, Relógio D’água, 2004, p. 33.

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óbvio quanto parece, pois a sua interiorização e inscrição social não é tão plástica quanto pretende, nem tão objectiva quanto deseja. Começar por descrever as razões pelas quais se decide ensaiar sobre a fidelidade, permitirá resumir algumas ideias aqui presentes. Em primeiro lugar, ao procurar perscrutar este tema, incluído numa série de temas profundos e problemáticos, pretende-se, intencionalmente, mostrar aquilo a que chamo de Sociologia da Individuação: uma sociologia que não aceita que se deixe de fora o lado mais sombrio e não racional nas acções humanas, uma sociologia que se preocupa em mostrar o «si-mesmo»3 - aquele que todos nós desejamos alcançar de uma ou de outra forma. Em segundo lugar, é também importante referir que o que aqui escrevo não pretende ser uma teoria geral acerca dos comportamentos balizados pelo conceito de fidelidade. É apenas uma tentativa de explicar um conjunto de consequências do espírito pós-moderno no conceito e na experiência da fidelidade. E em terceiro lugar, não quero que fiquem a pensar nesta obra como um incentivo à desconfiança e à descrença pela humanidade. É precisamente o contrário que quero que pensem: aqui se acredita no ser humano, não como um ser a caminho da perfeição mas antes como um ser constantemente actualizável, denotando a importância da sua existência e da sua convivência como factor de imprevisibilidade. Sublinha-se por isso, para que não restem dúvidas aos leitores, duas ideias chave para a compreensão deste ensaio: primeiro temos o conceito, e depois a experiência da fidelidade. O conceito é aqui entendido na sua forma sociológica, e não jurídica. Quero com isto 3

Termo usado por Jung, que tem um significado semelhante ao do Self, para descrever a essência psicossociológica dos indivíduos.

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dizer que o contrário de fidelidade não é, necessariamente, a infidelidade tomada acção. Existe fidelidade enquanto aura que abarca uma relação, e que se projecta no tempo de forma duradoira, portanto relacionada com os sentimentos e afectividades; e existe fidelidade que é imposta como matriz social que está na base de todo o tipo de relações sociais. O seu contrário, infidelidade, não tem que se tornar necessariamente acção – ou aquilo a que vou designar de traição. Pode ser também uma suspensão da fidelidade na consciência, no desejo ou nos sentimentos, algo que fica em estado virtual e que pode não levar a nada objectivamente. Em segundo lugar, vou falar da experiência pós-moderna para com a fidelidade, relacionando-a com as várias dimensões do quotidiano pós-moderno. Aquilo que vou tentar mostrar neste cruzamento dinâmico são as influências de uma atmosfera líquida, em permanente fluxo, carregada de lógicas que apontam para o hedonismo, para o imediatismo e para o efémero, e que incidem sobre a socialização e a individuação da fidelidade gerando novas práticas e concepções face ao passado. Direi ainda, acerca do conceito, que existe uma natureza humana que se opõe constantemente às construções conceptuais colectivas. Forma e conteúdo estão sempre em constante confronto. Constantemente sob o efeito de forças nascentes, viradas hoje para a realização plena do tempo imediato e presente, forçamos mais do que nunca as formas da vida, tentando impor mais de nós mesmos. Entre as formas que nos são impostas, e os conteúdos que tentamos impor, percebem-se cada vez mais os lados colaterais dos processos de socialização e de individuação. É o que resulta dessas socialidades e desses processos que

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tornam difícil, senão impossível, a realização plena de conceitos como o da fidelidade. Importa também realçar que a Sociologia não é uma moral, logo não julga. É isso que aqui pretendo fazer. Evitar julgamentos de valor ou de causa. O objectivo é apenas compreender, mostrar e objectivar as dinâmicas inerentes ao conceito de fidelidade. Este ensaio é, portanto, de base sociológica, embora a transversalidade do conceito tenha obrigado a recorrer constantemente às outras ciências sociais e humanas, tais como a Antropologia, a Psicologia, a Neuropsicologia, a Filosofia e as Ciências da Comunicação. Pensar em rede, numa rede científica de conhecimentos, permite aumentar a probabilidade de acerto, diminuir as insuficiências e evitar as simplificações dentro do campo teórico. Foi isso que pretendi fazer. Assim, ensaio aqui sobre a fidelidade usando diferentes métodos4 para analisar um conceito complexo mas atraente, inconveniente mas pertinente, importante mas levianamente esquecido, que sustenta um dos maiores pilares das relações humanas e sociais: a família (sobretudo). Falarei da fidelidade não apenas como uma caixa negra, não apenas como objecto que se reificou na modernidade, mas sim em algo que na pósmodernidade se transfigurou e que afunda ainda mais o barco das utopias sociais, mostrando o mundo e a sua transformação através do desenvolvimento não controlável e não programável das relações humanas. Falarei da fidelidade não como algo óbvio nem facilmente aceitável, até porque na sua génese pouco ou 4

Usei análise bibliográfica, trechos de artigos e descrições de casos reais que foram transformados em ficção. Na descrição desses casos substituí nomes e lugares para garantir a protecção e a confidencialidade das fontes. Qualquer semelhança com a realidade alheia é pura coincidência.

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nada de aceitável existe. Falarei da fidelidade enquanto conceito que convive diariamente com um mundo marcado pela sensação, pelo prazer e pela partilha de algo que no passado a razão das épocas e dos ambientes sociais consumiam: os sentimentos contraditórios. Este tema da fidelidade foge à perspectiva tradicional dos temas teóricos da Sociologia clássica, nomeadamente aos temas normalmente desenvolvidos pela Sociologia da Família. O objectivo deste ensaio é mesmo emprestar à moralidade e ética que envolve o conceito uma visão proveniente das profundezas da imparcialidade sociológica, ainda que isso custe o destapar da moralidade e da ética socialmente instituída sobre o tema. Quando alguém compra um livro sobre assuntos sociais tem sobretudo o interesse de ler ideias novas e perspectivas diferentes, conhecimentos únicos e úteis para a sua vida. Um livro com conotação sociológica que fale de fidelidade pode eventualmente cair na maior desilusão e subjectividade daquele que compra um livro: não ter nada de novo e de útil sobre o assunto. Afinal de contas, todos nós julgamos saber bastante sobre fidelidade, pois convivemos diariamente com esse código de conduta que guia normalmente as relações com os outros. Mas será assim tão óbvio falar de fidelidade? Qual é a sua função nas relações sociais? Qual é a sua força nas dinâmicas relacionais? Tal como todos os metaconceitos, o conceito de fidelidade pode tornar-se um conceito confuso e gerador de alguma contradição. Por isso mesmo, pensar e escrever sobre a fidelidade, e sobre a sua complexidade moral, ética e objectiva, é uma tarefa muito pouco óbvia e por isso mesmo pouco previsível nos seus resultados finais. Este ensaio divide-se, por isso, em cinco partes: na primeira parte, com o capítulo O Tempo e o Método, pretende-se descrever a dinâmica imposta pelo espírito

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dos tempos actuais, bem como a forma usada para analisar o conceito e os fenómenos que lhe estão adjacentes; a segunda parte dedica-se à análise do conceito de fidelidade e às suas dinâmicas internas e externas, tentando mostrar como ele se socializa e se inscreve nos indivíduos; a terceira parte aborda a relação excêntrica entre a fidelidade e o desejo, mostrando a dificuldade de enquadramento da acção humana num conceito socialmente construído e racionalmente definido; no quarto capítulo, em A Fidelidade e as Formas, estuda-se a relação entre formas externas e o que deriva internamente do conceito. Por último, no capítulo 5, esboça-se uma resposta há questão “há alguém completamente fiel?”, resposta que acaba por derivar de todo um conjunto de análises feitas nos capítulos anteriores, conciliando conceitos na tentativa de os tornar complementares para uma explicação mais resumida.

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Capítulo I O tempo e o método O caminho iluminado pela sombra não é, necessariamente, o caminho do abismo; é, antes de mais, um dos lados do destino inevitável do ser humano. Pode ser, ou não, percorrido. Mas está sempre contemplado no nosso mapa vital.

A FORÇA DAS PALAVRAS Uma das primeiras formas de destribalização dos indivíduos ocorreu, precisamente, com a introdução da linguagem, isto é, com a palavra. As grandes narrativas, onde a bíblia figura como um bom exemplo, serviram de base para a formação do mundo ocidental. A cultura ocidental fora inicialmente construída tendo por base a palavra, ao contrário de outras culturas que se basearam durante mais tempo na força das sensações e das emoções sem tradução linguística. Esta distinção levanos a pensar na dicotomia entre os efeitos da palavra e os efeitos da imagem nas sociedades, e nas suas diversas interpretações. O imaginário colectivo, nas palavras de Gilbert Durant, ou o inconsciente colectivo, nos termos de C. G. Jung, são toldados por imagens e símbolos que estruturam, de forma subjectiva, os indivíduos. E sempre de uma forma diferente da configuração gerada pelas palavras.

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Moisés Martins aponta também neste sentido. Para este autor, o Ocidente fora sempre marcado pelo mito fundador: a palavra. Ora, isso significa que a palavra, com descodificação mais de génese racional, fora determinante para a emancipação da cultura objectiva Ocidental por apelar mais à expressão da unidade e da objectividade. Pelo contrário, as imagens, separam e exprimem o múltiplo. A multiplicidade, a colectividade e a heterogeneidade gerada por estas fomentam subjectivações que fragmentam, por sua vez, o carácter aparentemente unitário dos indivíduos5. Neste contexto actual, onde o espírito do trágico assombra o quotidiano, onde as palavras dão cada vez mais lugar às imagens que emanam por todos os poros do quotidiano pósmoderno, das tele-telecnologias ou da publicidade, parece assistir-se àquilo a que Maffesoli chama de influências de «orientalização» do mundo, influências que colocam as imagens num lugar central. A via recta da razão, da eficácia, do progresso, fora, neste «eterno instante», substituída pela lógica da vivência pela emoção, pelo prazer, pelo consumo de imagens, pelo «imaginal»6. E é nas imagens, nos movimentos animados pelas imagens, que todos os meandros do quotidiano pósmoderno se movem. Integração social das imagens, individuação dos seus significados, subjectivação dos seus intentos, que na perspectiva ontológica de Gilbert Simondon podem permitir qualquer tipo de individuação e qualquer mutação de momento para 5

Esta relação, entre imagens e palavras, é trabalha por Moisés de Lemos Martins em ‘Ce que peuvent les images. Trajet de l’un au multiple.’ In Cahiers européens de l’imaginaire, nº1, janvier. Paris: CNRS Éditions, 2009. 6 CF. M. Maffesoli, O Eterno Instante – O Retorno do Trágico nas Sociedades Pós-Modernas, Lisboa, Edições Piaget, 2001, p. 80.

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momento. É constante o que permite a divisão do indivíduo7. Importa lembrar esta distinção entre o desenvolvimento da cultura ocidental e o desenvolvimento da cultura oriental. Importa porque a base permite a formação da estrutura, extensiva e intencionalmente diferente. Fora esta a base que (re)configurou formas de pensar, sentir e agir no mundo de maneiras diferentes. Gilbert Durand, em A Imaginação Simbólica, faz precisamente uma distinção entre palavras e sensações, remetendo para uma oposição entre linguagem escrita e linguagem das imagens. Embora ambas sejam realmente constituintes da linguagem humana, Durand aponta para existência, no ocidente, de uma diferença criada entre as interpretações das palavras e as interpretações das imagens. Com base numa análise ao mundo religioso, como por exemplo à narrativa bíblica, Durand percebeu que a palavra remetia para o simbólico, ao passo que a imagem se virava para o diabólico. A palavra significava a sequência uniforme e contínua, ao contrário da imagem, que poderia ser perigosa porque separava o uno e exprimia o múltiplo8. Dentro destas premissas, onde a religião judaicocristã fora determinante na consolidação do poder da palavra, a imagem fora tratada, no ocidente, durante muito tempo, como pertencente ao lado mais perigoso da humanidade: a sombra da fragmentação do unitário. Assim, a imaginação, ou melhor, a acção das imagens, fora retida por pressões sociais, culturais, espirituais. 7

CF. P. Chabot, La Philosophie de Simondon, Paris: Vrin, 2003, p. 111. 8 Cf. M. Martins, ‘Ce que peuvent les images. Trajet de l’un au multiple.’ In Cahiers européens de l’imaginaire, nº1, janvier. Paris: CNRS Éditions, 2009.

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Pelo contrário, a palavra, o conceito, as afirmações lexicais, as narrativas, e portanto as ideias e as sensações que são transportadas pela linguagem escrita, foram os grandes softwares da cultura ocidental. O poder das palavras foi interiorizado pela cultura ocidental, ou melhor, socializado e individuado. Durante muito tempo, e de certa forma ainda hoje, não questionamos muito a origem da sua força e aceitamos facilmente que elas possam conferir à humanidade aquilo a que esta implicitamente aspira: um mundo sempre controlado e dominado pela acção humana. É por estas razões que tentamos constantemente fechar o mundo em conceitos e ideias, operacionalizadas por palavras. É uma prática comum tentarmos entender tudo através da tentativa de simplificação de coisas complexas, como fazemos por exemplo nas relações humanas e sociais. Ao contrário daquilo que por vezes podemos pensar, não há nada muito mais difícil do que entender o mundo relacional e social. Ao invés dos processos naturais e matemáticos, das ciências exactas e da precisão dos números, da profilaxia através do comprimido ou da normalização através do domínio sobre seres inferiores, a vida em sociedade, em relação, em partilha, não tem nenhuma base simples de junção ou de soma, de cálculo lógico ou de cura que permita, facilmente, eliminar o indesejável ou o nefasto e impor completamente o lógico, o racional e o moral. Todas as utopias preconizam a ideia do ser perfeito, do ser maximizado, da bondade, do amor, da ternura, da igualdade. Mas, na realidade, nunca nenhum modelo de vida social, pelo menos conhecido até agora, conseguiu satisfazer completamente todos esses atributos. É verdade que existem uns modelos sociais mais equilibrados do que outros, mais justos e igualitários do que outros, mas nunca existiu

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verdadeiramente o mundo social perfeito que estivesse de acordo com as utopias sociais. Pensar desta forma permite validar e sustentar os comportamentos e as atitudes sobre as questões conceptuais. Afinal de contas, poucos são os indivíduos que se podem gabar de dizer que foram ou são transversal e completamente felizes e realizados. E grande parte desta grande dificuldade, de encontrarmos indivíduos completamente felizes e realizados, está precisamente na ideia difusa de felicidade. Afinal de contas, o que é isso da felicidade? O que é ser completamente feliz? Será que é possível ser completamente feliz? O que é que a palavra felicidade significa? Das várias definições existentes sobre o conceito de felicidade, encontram-se alguns elementos caracterizadores mais ou menos transversais a todas as definições existentes: satisfação plena; contentamento e bem-estar nas diversas dimensões da vida humana; viver em plena harmonia com os outros; favorecimento pela sorte; indivíduos cujos desejos, aspirações, exigências e motivações foram atendidos ou realizados na sua plenitude; etc. Enfim, a transversalidade do conteúdo da definição de felicidade gera, sobretudo, dois grandes efeitos: por um lado, um grande nível de subjectividade, pois coloca dentro da mesma definição coisas difíceis de se concretizarem e que se podem vir a opor entre si (a frequente oposição entre material e ideal é, logo à partida, uma grande dificuldade que interpela o conceito de felicidade); por outro lado, a transversalidade das dimensões que definem o conceito apontam ainda para mais duas dimensões inextricáveis da vida humana - o mundo do racionalizado e o mundo do instintivo, não racionalizado. Daqui se depreende, logo à partida, a dificuldade (se não impossibilidade) de

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mostrarmos a todos o que é ser completamente feliz. Ora, como o conceito não é fácil de arrumar, como as ideias podem ser confusas e por vezes contraditórias com o que está difundido socialmente, o termo felicidade é usado normalmente de uma forma simples e fácil mas, ao mesmo tempo, admitindo um certo risco na sua utilização. Por mais que os indivíduos o usem facilmente, eles sabem que correm o risco de cair na incompreensão aos olhos dos outros, dada a facilidade que este conceito tem em ser facilmente contrariado pela acção humana. Afinal de contas, todos podem lançar a seguinte questão aos que se dizem felizes: se és assim tão feliz então porque não paras de procurar a felicidade? Esta é uma grande questão! Mesmo que alguém faça questão de dizer que é completamente feliz, então porque razão procura atingir sempre mais além do que tem ou do que diz ter? A célebre música de António Variações, jargão popular que diz «só estou bem aonde não estou porque só quero ir para onde não vou» é uma boa forma de mostrar esta dinâmica contínua entre felicidade e o seu contrário. O objectivo deste ensaio não é, todavia, abordar a felicidade. Não pelo menos de forma directa. O intento do que foi dito sobre a felicidade serve apenas para ilustrar a dificuldade quando tentarmos definir e arrumar em caixas conceptuais os produtos da acção humana. A felicidade, tal como o conceito que vou realmente aprofundar – fidelidade – são, antes de mais, construções sociais baseadas em formas e conteúdos aceites, produtos que nascem na interacção dos indivíduos em sociedade. Importa pois pensar nos seus limites e nas suas utilizações, nas suas formas e reificações, nas suas dinâmicas e impulsões, para depois podermos realmente falar do que queremos dizer.

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OS INDIVÍDUOS E AS SUAS RELAÇÕES Antes de avançar para o conceito de fidelidade, importa tecer algumas considerações sobre o que lhe está na base. E na sua base estão as relações pessoais ou interpessoais. Todas as relações se projectam em horizontes espaciais e temporais. Com maior ou menor proximidade física, com horizontes temporais mais ou menos latos, mais ou menos efémeros, mais ou menos eternos, o que é certo é que as relações são dinâmicas sempre atravessadas por ligações temporais e espaciais. Uma grande amizade projecta-se num futuro longínquo, dentro de um quadro espacial compatível para os elementos envolvidos; um grande amor sustenta-se precisamente porque se projecta no futuro, numa vida em conjunto e partilha contínua, assente na ideia de eternidade; por sua vez, uma relação casual estende-se apenas na duração e no espaço necessários para a sua concretização. Portanto, todo o tipo de relações sofre, de uma ou outra forma, as influências das estruturas temporais e espaciais. Porém, mesmo com relações idênticas nas estruturas temporais e espaciais, nem todos nos relacionámos da mesma forma e com a mesma intensidade. Nem todos concebemos as relações pessoais e sociais de forma igual. Nem todos pensamos de forma igual a vida. Isto leva-me a dizer que todos os indivíduos são diferentes. Isto é, não são completamente iguais. Porém, também há algo que não é completamente diferente. Ora, ser diferente sem ser completamente igual, ser ligeiramente igual na diversidade, é algo que temos como certo à priori, desde o momento em que nos olhamos ao espelho até ao momento em que aprofundamos temas ou opiniões. Por

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isso, faz todo o sentido analiticamente pensar em tipos, tipos-ideais como sugeriu Max Weber, ou tipos psicológicos como sugeriu Carl Gustav Jung. Ou seja, há pessoas que concebem a vida de uma determinada forma, com inúmeras relações sociais, outros que dão bastante importância às perspectivas mais individualistas e outros haverão que fazem uma gestão mais ou menos intermédia entre o «virar para dentro» e o «virar para fora». Deleuze diria, por certo, que a força do desejo e a força do social seriam os responsáveis maiores por esse virar para dentro ou virar para fora. Na sua concepção teórica, apenas duas coisas existem concretamente: o social e o desejo. Tudo o resto é fluxo9. Ora, dentro desta concepção, cabem os tipos-ideais e os tipos psicológicos, na medida em que existem agrupamentos ideais e psicológicos de desejos impostos pelos social e vice-versa. Estas considerações mostram as bases das orientações da acção humana, fluxo que liga e desliga as conexões sociais. Desejo e social em acção, a constituir indivíduos diferentes individual e socialmente. Por outras palavras, uns movem-se de uma forma e outros mover-se-ão de outra de acordo com a força dos desejos integrados, acomodados, interiorizados, inscritos, socializados e individuados. Integração, interiorização, acomodação, inscrição, socialização e individuação. Talvez conceitos a mais para quem não está dentro deles. Na verdade, todos estes conceitos concorrem para a explicação da formação de processos que permitem a constituição dos diferentes tipos psicológicos e dos diferentes tipos sociais, e por isso directa ou indirectamente para a 9 CF. G. Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 1, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004 [1972], p. 33.

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estruturação das relações sociais. Não respondem a tudo certamente, até porque apresentá-los assim nada significa, mas permitem perceber a quantidade de variações e (re)combinações que estruturam os indivíduos. Isto mostra o jogo de forças, internas e externas, a que estamos sujeitos enquanto indivíduos. Uma imensidão de forças, de pressões, de fluxos que transformam os indivíduos e lhes preparam as formas de pensar, sentir e agir no mundo. Dirá o leitor, por esta altura, que estes são factores a mais a concorrer na explicação do que quer que seja. Pois é! Mas é bom lembrar que ainda não estão reunidas todas as dimensões analíticas. É preciso ainda juntar à influência desses processos as dimensões do consciente e as dimensões do inconsciente, que se revelam de forma diferenciada à superfície ou no subterrâneo, complicando ainda mais a tarefa. Por isso, desenganemse todos aqueles que acham as ciências humanas e sociais uma banalidade ou uma perca de tempo. É dentro destes complexos circuitos que nos movemos constantemente, tentando perceber a complicação que estes factores, sozinhos ou em conjunto, trazem para os debates e análises. O mesmo é dizer que a imprevisibilidade da acção humana é tão grande que parece inexplicável. O mesmo é dizer que constituir tipos ou grupos é apenas uma forma de tentar simplificar o que não é, de modo algum, simplificável. É um esforço enorme, um esforço de louvar, mas que no entanto nunca deverá ser entendido como uma explicação final. É apenas uma forma de demonstrar uma aparente objectividade, tudo menos concreta, definitiva e objectiva. É apenas um traço, um esboço sempre passível de correcção e mudança. Portanto, temos por certo três grande dimensões analíticas: a dimensão da imprevisibilidade, a dimensão

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da relatividade e a dimensão do efémero. Por outras palavras, podemos dizer que o que para uns é para outros não é; o que para uns começa para outros acaba; o que para uns é claro para outros nem tanto; e por aí adiante. As relações humanas regem-se por estas dinâmicas. Primeiro porque dependem das concepções individuais de relação, de ligação entre duas ou mais pessoas; depois porque oscilam consoante os desejos e as motivações, e são mais ou menos intensas consoante a força desses desejos e motivações; e por último porque correspondem a um conjunto de necessidades sociais estando, por isso, sujeitas às formas impostas pelo exterior. Todos os conteúdos que envolvem as relações pessoais ou sociais não são mais do que formas regulamentares da acção em conjunto. Formas que embora pareçam ser unicamente objectivas, dependem e muito da subjectividade individual e das forças sociais que as dinamizam. Portanto, os valores morais que sustentam as relações variam consoante os fluxos resultantes da dinâmica entre formas sociais e conteúdos objectivos e subjectivos. Quando falamos de relações temos também que mostrar as suas formas e os seus conteúdos implícitos. Há relações sociais formais e relações sociais informais. Por isso mesmo se pode distinguir o formal do informal através da complementaridade entre conceitos como “socialidade” e conceitos como “sociabilidade”, este último proposto por Simmel. Assim sendo, para diferenciar estes dois conceitos, olhemos para a socialidade como algo que “marcaria os agrupamentos urbanos contemporâneos, colocando ênfase na tragédia do presente, no instante vivido além de projecções futuristas ou morais, nas relações banais do quotidiano, nos momentos não institucionais, racionais ou finalistas

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da vida de todo dia”10, contrariamente da “sociabilidade” que se distingue pelo facto de se basear em relações mais institucionalizadas e formais. As relações sociais que predominam nos dias de hoje, segundo Maffesoli, são estruturadas em função das acções vividas no quotidiano e estão cada vez mais voltadas para o que é da ordem da proximidade11. Assim, este autor afirma que o termo socialidade “significa que a vida social não poderia reduzir-se às simples relações relacionais ou mecânicas que servem em geral para definir as relações sociais. Ele permite integrar na análise parâmetros tais como o sentimento, a emoção, o imaginário, o lúdico, cuja eficácia multiforme, não pode ser mais negada, na vida das nossas sociedades” 12. Ou seja, o que se passa a privilegiar nas relações sociais é o simples facto de “estar-junto”, o laço social torna-se mais emocional e não tão racional, o que interessa de facto é aproveitar o momento sem olhar ao tempo que dura. De facto, a socialidade caracteriza-se por ser constituída por relações sociais que submetem a razão à emoção de viver, onde há uma valorização da afectividade e onde prevalecem práticas sociais mais liberais, mais enraizadas no presente, ou seja, baseadas no ambiente imaginário, passional, erótico e violento do quotidiano. Neste sentido, dentro da sociedade contemporânea, a socialidade vai estabelecer-se então 10

Cit. In A. Lemos, Ciber-Socialidade. Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea, consultado na Web em 18/01/2010. Disponível em: http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/cibersoc.html, consultado em 07/03/2010. 11 Cit. In Michel Maffesoli, Um guia para entender a pósmodernidade, entrevista a Juremir Machado da Silva in Zero Hora, Caderno, Porto Alegre, 30/09/1990. 12 Idem.

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como uma estrutura capaz de misturar valores, onde os agentes sociais desempenham papéis, produzindo máscaras de si mesmo, agindo como se de uma encenação se tratasse. É no quotidiano e com essa prática da teatralidade que os agentes sociais podem "sair de si", sem pôr em causa a ordem social. Vemos estas socialidades contemporâneas, por exemplo, em festas, em rituais, na moda, na tecnologia, nos grandes eventos desportivos ou em grandes espectáculos culturais urbanos. Isto leva-nos a considerar que “a vida social é feita de teatralidade e contradição. Há teatralidade porque há contradição, e se não existisse uma aparência das forças de união, as forças centrífugas da contradição conduziriam para a morte. É nesse sentido que a teatralidade é uma astúcia que garante a permanência social. Na deontologia dos professores, na educação dos pais, na família das camadas superiores, nas diversas hierarquias, o jogo da unanimidade não tem outra função: a de garantir uma solidariedade que esconde uma profunda contradição que é, de facto, impossível eliminar mas que se não fosse temperada, levaria à aniquilação da educação”13.

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Cit. in Michel Maffesoli, O Tempo das Tribos. O Declínio do Individualismo na Sociedade das Massas, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1987, pp. 162-163.

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DIZER SIM, HOJE, À VIDA EM CONJUNTO A relação entre o indivíduo e as dimensões temporais e espaciais é reveladora. Como vimos e podemos ver, tempo e espaço condicionam os desenvolvimentos, bem como as direcções. Na pré-vida, no útero, o ser em formação segue um percurso linear de desenvolvimento. Não há corrosão nem erosão, apenas um caminho para o aperfeiçoamento. Pelo contrário, na vida, o caminho vai em direcção à erosão, à deformação, à corrosão. As células envelhecem com um sentido: a morte. Esta metáfora permite mostrar as relações com o tempo e com espaço. Na incubadora biológica, o ser está num estado letárgico mas condicionado pelo tempo e pelo espaço linear do desenvolvimento. No exterior o ser está num estado dinâmico e sujeito à própria dinâmica do tempo e do espaço, que de certa forma leva sempre à erosão, à deformação e à corrosão. O mesmo principio se pode aplicar aos tempos históricos. Isto é, a era moderna que privilegiava o futuro vivia numa letargia com o presente, num tempo marcado pelo linear das consequências do desenvolvimento; a era pósmoderna, pelo contrário, vive numa dinâmica de autoconsumo, onde a erosão, corrosão e deformação dão o tom aos sentimentos trágicos. Os indivíduos que já individuaram e socializaram esta nova lógica vivem para a vida, sabendo que o tempo da pré-vida já passou. Por sua vez, os indivíduos que se encontram num plano intermédio, num limbo entre pré-vida e vida estão ainda a viver um estado nascente, muito inseguros para com todas as dinâmicas da vida que aí vem. Estes que se encontram no estado nascente ainda não dizem nem sim nem não à vida. Estão suspensos, tal como o bebé que ainda não deu o

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primeiro choro depois da saída do ventre materno. Já os que sentem e vivem a vida pós-moderna, têm nas intenções de vida não um sentido que se pauta unicamente pela preocupação do eu e da formação individual – como acontece na pré-vida – mas sim um sentido de expressão máxima do sim à vida e ao colectivo. Isto faz sentido quando olhamos para as ideias de Nietzsche. Quando este autor insistia constantemente na ideia de que o ser humano deveria dizer constantemente «sim» à vida, estava, certamente, a apelar à importância de dizer sim não só à existência individual como também a uma existência colectiva da vida. No instante do sim, todas as eternidades se exprimem, toda a eternidade é aprovada, readquirida, justificada e afirmada14. Viver o eterno instante é isto. É dizer sim à vida como referia Nietzsche, e dizer sim à vida implica dizer sim a todas as suas dimensões: relações sociais, prazer, sexo, emoção, amor, conflito, fusão. É precisamente este sim à vida, ao instante em que decorre a vida, que a actualidade parece querer exprimir. Vivemos num mundo em que cada vez mais, dia após dia, o prazer de sugar o presente é maior e mais exigido. Na consciência, por vezes, ou noutras vezes menos conscientemente, sentimos que o trágico poderá estar ao virar de qualquer esquina. Assim, sentindo o trágico, o fim como uma realidade eminente, e a vida como um bem efémero, o desejo de a aproveitar tende a crescer. A precariedade com que nos aparece o prazer, imbuído da lógica do instantâneo, torna os «sim´s» pontuais, torna a aceitação da nossa animalidade e da 14

Cf. F. Nietzche, La Volonté Puissance, Paris, Gallimard, 1947, p.

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nossa fragilidade algo mais agradável e satisfatório. Enfim, mais próximo da nossa base. Os valores da época passada, apelidada genericamente de era moderna, escondiam por isso mal a precariedade da existência. Vivia-se, nessa era, com os olhos postos num futuro melhor. Mas que futuro era esse? Supostamente, deveria ser este, o que vivemos hoje. Mas na verdade, nem é melhor nem pior, é simplesmente diferente, suspenso num tempo que nos relembra constantemente o quão trágica pode ser a vida – os noticiários mostram-no bem. E o que é certo é que os valores sociais do passado, valores familiares, valores patrióticos, valores de cidadania, e conceitos como por exemplo o conceito de fidelidade, não convivem muito bem com este novo espírito. Precisamente porque nasceram num passado que já não existe. Usando a expressão de Alberoni, podemos dizer que não convivem muito bem com os constantes processos de «estado nascente» que nos impelem para novas formas de ver, pensar e sentir o mundo15. O carácter precário dos prazeres não permite uma boa convivência com conceitos que têm uma relação com o tempo mais ou menos linear. Num tempo cíclico, onde o trágico está realmente presente no quotidiano, a figura espiralada da borboleta de Laurence, inspiradora da teoria do caos, é um bom exemplo geométrico para pensarmos no tempo de hoje. A ordem surge de um caos, que por sua vez dá lugar a uma ordem, e que no presente se fragmenta e se consome. Como tal, também conceitos como a fidelidade podem ocultar a forma como precariamente vivemos com o tempo de hoje. Isto deve-se, em parte, pelo facto 15

Cf. F. Alberoni, O Mistério do Enamoramento, Lisboa, Bertrand Editora, 2003, pp.29-30.

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do conceito de fidelidade sentir com mais força a influência da lógica do «contrato do amor romântico», muito difundido e divulgado na modernidade. Digamos que a fidelidade, como conceito auge na modernidade das relações amorosas, está com dificuldade em se adaptar ao mundo actual. Na realidade, ao invés de falarmos em fidelidade, porque não aceitar a sugestão e falarmos de «sinceridades sucessivas»16, ou de trocarmos mesmo fidelidade por lealdade, expressões mais coerentes com o tempo espiralado e com o espaço aparente, enfim, com a atmosfera actual. Pensar em «sinceridades sucessivas», mais ou menos coerentes dentro de um tempo e de um contexto, ou pensar numa fidelidade standard, carregada de um sentido imutável, não disposta a sofrer os efeitos dos fluxos gerados pelo tempo? Conceitos profundos como o da fidelidade precisam de ser pensados também de forma profunda. A análise não poderá ser profunda se excluirmos da acção e do pensamento os dois lados humanos: o consciente e o inconsciente. Encontramos na relação entre indivíduos e conceitos profundos aquilo a que Giddens chama de “monitorização reflexiva da conduta”, no sentido em que a acção existe dentro de um quadro intencional ou propositado. Mas tal intencionalidade não significa que os indivíduos envolvidos na (re)produção de acções sociais tenham em mente objectivos completamente conscientes e definidos17. A acção humana depende das reservas de conhecimento e da capacidade social e racional dos seus actores, embora decorra também de uma interacção tensa com o inconsciente. Mesmo que a 16

Cf. M. Maffesoli, O Eterno Instante – O Retorno do Trágico nas Sociedades Pós-Modernas, Lisboa, Edições Piaget, 2000, p. 49. 17 Cf. A. Giddens, Dualidade da Estrutura, Lisboa, Edições Celta2000, p.16.

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racionalização da acção, enquanto básico da conduta diária, seja a base principal pela qual os indivíduos são julgados, isto não significa que se possa afastar todas as formulações discursivas e comportamentais dos indivíduos dos elementos inconscientes da motivação e do desejo. Neste sentido, importa não afastar o inconsciente das acções racionais e das estruturas sociais. Assim, conceber a teoria social como uma relação tensa entre acção e estrutura, como faz Giddens, onde os traços reflexivos da acção devem ser entendidos pelo prisma das acções racionais influenciadas por processos inconscientes, faz todo o sentido18. Desta forma, podemos aproximar a teoria da estruturação desenhada por Giddens com o processo de individuação, que mais adiante aprofundarei. A relação entre acção e estrutura motiva o aparecimento de constantes individuações com impacto nas condutas e motivações humanas. Ampliando esta visão, e pensando na individuação como um processo de mediação entre o exterior e o interior dos indivíduos, sugerimos que os constantes processos de individuação medeiam as influências da estrutura na acção e as influências da acção na estrutura. Consideramos, por isso, que as premissas freudianas acerca do conhecimento do inconsciente, reveladoras da ideia de que os conteúdos deste se reduzem apenas às tendências infantis reprimidas devido à repressão e influência exercida pela moral e pelo ambiente cultural, deixam escapar algo que considero fundamental: por mais repressão que exista sobre o inconsciente infantil, a verdade é que existe repressão nos vários estados do desenvolvimento humano, pois ele interage com a nossa psicologia em todos os momentos. Não o podemos 18

Idem, pp. 17-21.

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deixar de fora, até porque as individuações sofrem constantemente a sua influência. Durkheim constata, surpreendentemente próximo do sentido dado por Simondon quando este último aborda a questão da individuação, que as heranças psicológicas e intelectuais que as crianças recebem dos seus pais são gerais, podendo servir para todo o tipo de fins. Isto é, o inconsciente poderá dinamizar e auxiliar a estruturação da personalidade de variadíssimas formas, ainda que na base a educação seja um grande pilar para uma certa homogeneidade19. Isto é, os conteúdos inconscientes não são apenas tendências infantis, mas sim matriciais. Nesta conjuntura actual, era marcada pelas emoções e pelas sensações, reforçada pelas tendências nómadas, tribais e hedonistas, o inconsciente, mais do que nunca, encontra lugar para se explanar. Diria até que poderíamos chamar a esta actualidade a era do «simesmo» ou, usando um conceito muito trabalhado por Carl Gustav Jung, a era da concretização do caminho da individuação20. Quando falo da era do si-mesmo estou precisamente a falar na importância também do inconsciente no processo de formação e de decisão dos indivíduos. Falo assim de uma era marcada por uma margem maior de utilização do inconsciente, do instintivo e do intuitivo na expressão da acção humana. Ao contrário da era da razão, que se baseava numa constante racionalização da acção e das formas de pensar e sentir o mundo, esta era pós-moderna invoca e apela, mais do que nunca, à individuação. À individuação como processo constante de diferenciação e de singularidade, como processo constante de 19

Cf. E. Durkheim, Educação e Sociologia, Lisboa, Edições 70, 2009, pp. 64-65. 20 Cit. in Carl Jung, O Eu e o Inconsciente, Petropolis, Editora Vozes, 1979, p. 49.

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obtenção intermédia do «si-mesmo», no sentido de obter um (re)síntese mais completa das qualidades que o colectivo humano constantemente exige e actualiza. A individuação como processo que medeia o universal e o singular e que permite atingir o «si-mesmo» em maior amplitude. Assim, estou a seguir as sugestões analíticas de Mcluhan, pensando em estruturas e configurações21. Mas, mais do que isso, estou a alargar o pensamento e a pensar, para além das estruturas e das configurações, em extensão e in-tensão. Isto é, na relação excêntrica entre exterior em fluxo constante com o interior individual. Estou, alargando ainda mais estas reflexões, a somar à socialização o processo de individuação. Numa abordagem próxima de uma certa tendência budista, uso um processo de (re)síntese constante, tentando conviver com o intermédio, isto é, com a zona obscura da essência do ser. Ao pensar em estrutura, extensão e intensão, procurando a zona intermédia dos processos, caminho para uma abordagem, ou melhor, para um método baseado numa teoria que permite relacionar as pessoas com as materialidades e imaterialidades da vida - numa abordagem que mostra como estudar coisas em constante relação e fluxo. Como sugere Latour, e a sua teoria que pensa o actor constantemente relacionado com a sua rede, é um método que permite perceber «(…) the work, and the movement, and the flow, and the changes that should be stressed»22.

21 Cf. M. Mcluhan, Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem, Rio de janeiro, Cultrix, 2007, p. 26. 22 Cit. In B. Latour, Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 143.

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A VIDA NO «PÓS-LENDAS» O processo de racionalização a que foi submetido todo o Ocidente, pela acção conjugada da religião e da economia, contribuiu para a afirmação da «maior das potências irracionais da vida, o amor sexual» Weber

Recentemente, depois de abrir uma das minhas páginas da rede do Facebook, encontrei, no local de mensagens de um dos elementos pertencentes à minha rede digital, a seguinte frase: «A vida é curta demais para se viver o mesmo dia duas vezes». Este é um tipo de frase que mostra bem o espírito actual. É um espírito que está em perfeita sintonia com o tom atmosférico de hoje. Já não se trata apenas de viver um dia de cada vez como se cada dia fosse o último, como encontrávamos bem descrito no código dos Samurais. Hoje, trata-se, antes de mais, de evitar a repetição do mesmo dia, característica de uma necessidade assente nos espíritos do efémero e do imprevisível originários da dinâmica social actual. Esta frase é uma expressão que mostra bem como os partidários do hedonismo e do prazer consomem todas as dimensões da vida: viver sem repetir o mesmo; alterar constantemente as formas, os gostos, as paixões, os prazeres; dar continuidade a uma realidade que escorrega totalmente para o fragmentário e para o descontinuo. Vivemos, pois, num mundo que, ao contrário do passado, vive numa relação diferente com o tempo. É uma relação a que eu chamo de pós-lendas. Na era da fábrica, era da modernidade, onde reinava o progresso, os olhos estavam postos no futuro. A linearidade das histórias de vida seguia a linearidade e a cadência sequencial que os contos tradicionais e as lendas

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comportavam. No fim da história, depois de todo um enredo, os diversos heróis das histórias de embalar viviam felizes para sempre. Era bom para o sonho da criança, e construía, de certa forma, uma génese ideal de vida: a linearidade sequencial. Porventura, hoje, já não é tanto assim. Às lineares histórias da vida sucedem os enredos circulares, que não se focam apenas no fim. Podemos até mesmo arriscar dizer que vivemos num mundo de meios sem fins. O progresso olhava, pois, para o futuro. O pós-lendas pósmoderno olha para o presente, para o agora. A continuidade que damos hoje aos enredos desconstrói a ideia de linearidade sequencial. Às histórias do lobo mau, que acabava por fugir e nunca mais aparecer deixando para sempre os porquinhos felizes, sucede um reaparecimento do próprio lobo, metamorfoseado numa lógica mais contemporânea, que tem também que conviver com essa fase de derrotado que o passado lhe mostrou. E o lobo mau, tal como a bruxa má, ainda vivem depois de tal derrota. Vivem aprisionados no presente, suspensos no tempo, eles próprios derrotados pela própria derrota da razão como bem supremo. Interessa por isso referir que eles representavam o lado sombrio da razão; o lado que a própria razão deveria ser capaz de destruir, impondo o lado bom e destruindo o lado mau. Mas isso não foi conseguido. Ora, suspenso no tempo e no espaço ficaram todos os vilões. Pensar em jeito de metáfora permite perceber bem a transição do linear para o circular, passagem das sociedade disciplinares para as sociedades de controlo. Retomando a metáfora, podemos ainda afirmar que os vilões não ficaram mal de todo depois da encenação da derrota que a era da razão nos mostrou. Estes adaptaram-se e resistiram. Perceberam que a luta entre o perfeito e o imperfeito não fazia qualquer sentido

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objectivo. Perceberam que os planos maquiavélicos que tanto tentavam concretizar seriam, de certa forma, aniquilados. Por mais que tentassem, a linearidade assombrou-os a todos. Na óptica linear, o fim caminha lentamente mesmo que isso tenha sido, em todas as dimensões da era da razão, remetido para o esquecimento. Prevaleceu a ideia de final feliz, ficando esquecido socialmente o lado trágico da vida. Se a aparência de final feliz assombrou, na modernidade, os maus da fita – os vilões – o que dizer dos heróis? O final, seja feliz ou infeliz, assombra sempre todos de uma ou de outra forma. Também os heróis foram assombrados pelo final. Depois das aparentes vitórias dos contos de fadas, também os heróis perceberam que perderam. Perderam pelo menos o gozo de lutar contra os vilões. Quando deram conta de que tinham, aparentemente, ganho, pensaram: e agora, o que vamos fazer quando não sabemos fazer mais nada do que lutar com os vilões? Aqui reside, em jeito de metáfora, o mistério da evolução de um estado de linearidade do passado para um estado de circularidade do presente. É quando todos os lados se apercebem de que terá que existir uma síntese dos dois lados que a linearidade passa a deixar de fazer sentido. O linear dá a sensação do não retorno. Mas na verdade o trágico está sempre presente, mesmo que a linearidade o queira eliminar. Perguntemos: e depois do lobo ir embora? O que aconteceu aos porquinhos? E as outras bruxas más? O que aconteceu à princesa linda que casou com o príncipe? No pós-lendas está toda uma realidade que tem que ser vivida e contada. O trágico regressa em força, sem pensar na razão e no fim concreto. E as dinâmicas contraditórias que conjugam o bem e o mal, o sim e o não, o ying e o yang, continuam sempre activas. Por

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isso temos que perguntar hoje: será que os três porquinhos ficaram mesmo a salvo dos lobos? Será que o príncipe e a princesa viveram felizes para sempre, a salvo de enredos de outras ordens? Viver o presente percebendo que o futuro não passa de uma simples possibilidade em milhões de possibilidades têm sido o quotidiano do tempo póslendas. As lendas preconizavam a razão e a sua ‘certeza’. O presente aceita o incerto como o ar que respiramos. Logo, a espiral do incerto relativiza a razão, e impõe a sua força nas convicções dos indivíduos. O incerto é o eterno instante, é aquilo que nos move no momento, motivado pelo ambiente e pelo valor mor da pós-modernidade: o hedonismo. Sob a égide do incerto, as formas de pensar, sentir e agir no mundo ganham uma relatividade temporal. O que se disse ontem pode tomar outra forma hoje ou amanhã. Ora, a simples possibilidade da existência da incerteza é, por natureza, capaz de gerar uma subliminar vontade de sentir a força do incerto, ou pelo menos de expor constantemente a sua existência. O adágio popular nunca digas nunca tem ganho muita força nos tempos que correm, isto porque as pretensões da sociedade da razão não foram capazes de eliminar aquilo a que se proponham: o imprevisível. Portanto, é importante perceber esta analogia com os contos populares. A história da princesa que casa com o príncipe e vive feliz para sempre existia no passado. Hoje a história tem outros contornos. A princesa até pode casar com o príncipe, mas não é, numa boa franja de histórias, o príncipe dela para toda a vida. É apenas o príncipe daquele instante. Outros instantes estarão por vir.

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