Flores Silvestres

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U m casam e nto orq u e strado por du as fam í l ias nobre s, dois noivos e stranh os u m ao ou tro, du as vidas tã o dife re nte s.Para Inê s, u m a jove m re prim ida pe l a fam í l ia o casam e nto significa u m novo com e ç o, u m a nova vida.Para Afonso, o casam e nto éape nas al go para o q u alnã o te m fu ga possí ve l .Are núncia por parte da fam í l ia e u m de sgosto am oroso q u e q u ase o l e vou àl ou cu ra, fize ram do fu tu ro D u q u e u m h om e m se m coraç ã o.Se m pre com a som bra da traiç ã o nos om bros, Afonso vê todos os h om e ns com o u m a am e aç a e su foca a jove m e sposa com as su as de sconfianç as. Inê s e stava l onge de se r o se u ide alde m u l h e r, a su a pu re za e ine xpe riê ncia nã o fascinavam o h om e m arde nte e e xige nte , m alsabia q u e Inê s l u taria pe l o se u am or, q u e o su rpre e nde ria de form a tã o inte nsa e e nvol ve nte .

L IN E T E

Virgula

Flores Flores Silvestres Silvestres

Um livro leve, quente, com toques de humor e uma pitada de erotismo.

L A N D IM

Flores Silvestres L IN E T E

L A N D IM



Flores Silvestres L i n e t e

L a n d i m


Título: Flores Silvestres Autoria: Linete Landim Edição: Virgula® Design da Capa: Nuno Cardoso | OrangeCat.pt Fotografia: António Carreira | f-Spotter.com Paginação: Nuno Cardoso | OrangeCat.pt Impressão e Acabamento: Publidisa 1ª Edição: Abril de 2013 ISBN: 978-989-8413-89-5 Depósito Legal: 357474/13 Linete Landim®

Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma, n.º 11 – 1.º Dt.º 1000-261 Lisboa Tel.: 21 193 25 00 Web: www.sitiodolivro.pt Pontos de Venda

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Dedico este livro a quem o tornou possível desde o primeiro momento: Ao meu querido marido Nuno, à minha dedicada irmã, Nanda, e ao meu sempre atencioso irmão, Kalu. Sem eles, este livro continuaria na gaveta. E um sincero obrigado a tantos outros que me encorajaram e apoiaram ao longo deste processo, entre eles destaco: Chefe Alex, António Gomes, Célia Esteves, Karina Melo, Carla Cardoso, Montenegro, ao maravilhoso fotógrafo António Carreira e à modelo Natacha Rodrigues.



Capítulo 1

Abriu lentamente os olhos, raios de luz aqueciam o seu rosto, mas as suaves carícias do sol foram apenas uma das razões para o despertar da jovem, sonolenta e por breves momentos atordoada, Inês esfregou os enormes olhos verdes adormecidos, sentiu o corpo moído e ao passar a mão pelo longo e farto cabelo dourado desco‑ briu que estava coberto de palha seca. Aos poucos tomou consciên‑ cia do local onde se encontrava, deitada sobre um monte de feno, no celeiro da propriedade do pai, sim, recordou, estava a brincar com os filhos dos criados, às escondidas, jamais a procurariam nos estábulos, afinal, ela era a filha do Conde de Lazarim, nunca a procurariam ali, numa zona interdita, o pai tinha proibido brinca‑ deiras naquele local indigno para a filha de um Nobre. Inês sorriu, desta vez ela ganharia o jogo das escondidas e obrigaria o filho do cocheiro a engolir o orgulho, rapaz atrevido, não era uma boneca oca como ele lhe chamava, aos poucos ia provando que era tão ou mais esperta do que eles, podia ser a mais nova do grupo, mas não era certamente a mais fraca. Mesmo tendo ido contra a regra do pai tinha provado que era a melhor nesse tipo de brincadeira, ninguém se escondia como ela. Com o passar do tempo, ponde‑ rou sair do esconderijo, mas temeu ser apanhada pelos miúdos. 7


Não, hoje era o seu dia, tinha o pressentimento que a partir da‑ qui tudo iria mudar, mas não fazia ideia como nem porquê. O esconderijo revelou‑se tão perfeito que acabou por se aborrecer, o tempo passou, e escondida debaixo do feno, Inês adormeceu. Ninguém a encontrara e agora acordava ao som de vozes mascu‑ linas. Encolheu‑se ao reconhecer a voz do pai, um arrepio gélido percorreu o corpo infantil, Inês suspendeu a respiração, o Conde era um homem autoritário, rígido, era seu pai e no entanto, des‑ pertava nela um medo genuíno, não se dirigia a ela com palavras afetuosas, havia sempre uma leve censura nos olhos do progenitor e uma aspereza na voz, não era o rapaz que o pai desejava, se fosse apanhada seria severamente castigada. Estava proibida de brincar nos estábulos e com os filhos da criadagem. As vozes tornaram‑se mais claras e audíveis. Identificou os dois cavalheiros sem dificuldade e isso só intensificou o seu medo. O pai recebeu o convidado ao almoço e o velho senhor passou o tempo todo a contemplá‑la com um olhar esquisito. O Duque de Vale Ribeiro. Inês não gostava dele, na verdade já o conhecia de visitas passadas, era um dos melhores amigos do avô e agora do pai. Um homem sério e de olhos ríspidos, naquela tarde estava particular‑ mente interessado nela, por vezes apanhava o pai e o convidado a falarem baixo de olhos fixos em si. Inês estava longe de imaginar o motivo da conversa, apenas sabia que o homem a intimidava. Velho e abastado, de olhos frios e de rosto fechado, poderoso e no entanto fraco, era bastante doente, há muito que o pai e o Duque tinham uma sólida amizade. Era atencioso e educado com ela, no entanto, Inês não conseguia gostar dele, sentia calafrios sempre que o velho a contemplava. — É sem dúvida uma pequena muito bela, será uma mulher admirável, mas para desempenhar o papel de Duquesa será pre‑ ciso muito mais. — Ela estará pronta. O Duque ergueu o olhar e observou o velho amigo: — Tenho uma exigência inegociável, meu bom amigo. 8


O Conde engoliu em seco, o que poderia ser? Por Deus, o seu plano estava quase realizado, faltava tão pouco. Estava na altura de anunciar o noivado, nada o iria impedir de ver a sua primogénita ascender ao mais alto escalão da sociedade, Inês seria Duquesa. Foi para isso que aceitou auxiliar o amigo há dois anos atrás, estava na hora de ser recompensado. Não aceitaria mais desculpas, que mais poderia querer o velho? — Fale à vontade. Incitou nervoso. O velho Duque encarou o amigo e soltou um longo e débil suspiro: — De hoje em diante, quero que a donzela corte todos os laços com o exterior. Comunicou com uma voz débil. O Conde estranhou tão pe‑ culiar pedido, mas continuou, com o olhar perdido. — Apenas se autoriza o convívio com os homens que sejam familiares diretos, crianças e idosos. Ela vai viver num mundo livre de tentações carnais. — Parece‑me um pouco excessivo, ela é tão inocente. Respondeu o Conde ligeiramente ofendido. — Estas são as minhas condições. Contrapôs determinado o Duque. O Conde ponderou a pro‑ posta, não tinha objeções, mas a imposição deixou‑o intrigado. — Pois bem, assim será. O velho senhor respirou de alívio e continuou: — Contratarei a melhor governanta para guiar a pequena, aprenderá tudo o que uma Duquesa deve saber. Viverá e respira‑ rá para ser a mulher do meu filho — fez uma ligeira pausa — ao menos a pequena será educada para ser Duquesa já não posso dizer o mesmo do noivo, do meu filho, como sabe não participei ativamente na educação de Afonso, mas… — suspirou — não deixa de ser um Vale Ribeiro, fique descansado meu amigo, ele honrará o nome e será um excelente marido. — Não estou preocupado. 9


Afonso ou Inácio, para o Conde era igual, desde que fosse um dos filhos do Duque. O importante era resolver o problema das dívidas, e obter um estatuto mais elevado, com o casamento da filha, era a cereja no topo do bolo. A morte levou Inácio, o filho preferido e deixou o Duque sem escolha, ele, melhor do que ninguém, sabia o quanto o amigo preferira esquecer a existência daquele filho, Afonso foi sempre um problema, um assunto incómodo. Inês sentiu calor a invadir‑lhe o corpo, escondida no celeiro, a presenciar um acordo de casamento, a excitação apurou‑lhe os ouvidos e despertou a imaginação. Afonso Vale Ribeiro, o segundo filho do Duque era uma espécie de eremita, nunca comparecia em eventos sociais, a sua existência era quase um mito para o povo. Inês tentou recordar mais pormenores, ouvira há pouco tempo uma conversa entre o pai e a tia sobre a família Vale Ribeiro. O Duque tinha dois rapazes e um falecera há poucos meses, a notícia tinha abalado profundamente a família, o Duque de Vale Ribeiro e o seu pai tinham uma relação muito próxima. A tia Henriqueta costumava afirmar que Inácio, só era um bom partido por ser o herdeiro de toda a fortuna Vale Ribeiro, pois sem a riqueza a em‑ belezá‑lo, Inácio era um homem desinteressante, pouco dado aos negócios e mais interessado em festas, álcool e mulheres. Como seria Afonso Vale Ribeiro? Com a morte de Inácio passou a ser o único herdeiro, senhor de uma fortuna inimaginável para a gente daquela terra. Quem seria a jovem que desposaria tão ilustre e abastado cavalheiro, e porque passaria pelo seu pai o noivado entre os dois? A tia Henriqueta só tinha dois rapazes, e o Conde apesar de ter duas filhas, não estavam na idade de se casarem, ela ainda era uma criança e a irmã ainda mal completara os dois anos. Casamento, pertencer a um homem. Inês suspirou de alívio após um fugaz pensamento do que significaria tal união. Estava mais interessada em aproveitar a sua liberdade do que em pen‑ sar no futuro. Não conhecia nenhuma mulher casada que a fi‑ zesse ansiar pelo dia do seu casamento. As uniões eram vazias 10


de sentimentos e mais viradas para as questões financeiras, tudo girava à volta da fortuna e do dote das noivas. Via como alguns homens tratavam as esposas, sem amor ou respeito, não passavam de mais um bem, uma aquisição. Ela como filha de um Conde esperava ser privilegiada na escolha do parceiro. Até ao momento tudo não passava de um sonho, mas quando o dia chegasse, ela é que escolheria o homem certo para si. — Tem sido tão bom amigo. O Duque tossiu e a voz sumiu perdida na doença. — Deixe‑me renovar o meu sincero pesar pela morte do seu primogénito. O Duque assentiu com tristeza e respirou fundo. — Se Deus fosse justo teria levado outro filho. Desabafou com a voz carregada de ressentimento. Pousou a mão direita sobre o ombro do amigo como se se desculpasse de um pensamento tão tenebroso. Por entre as palhas, Inês viu os homens parados a apenas alguns metros de si, conseguia ver o rosto magro e doente do Duque, os olhos encovados e cansados, abatidos pela idade avançada, pela dor da perda do filho predileto e pela doença. Tinha os olhos hu‑ medecidos e tristes: — Não olhe a custos, meu velho amigo, assumirei todas as despesas para com a menina Inês. De agora em diante, o meu bom e fiel amigo e toda a família estarão sobre a minha proteção. Inês deixou de respirar quando ouviu o seu nome ser pro‑ nunciado: — A noiva… sou eu?! Uma voz dentro de si gritou, levou a mão à boca, todo o corpo estremeceu. Não podia ser, ainda era muito cedo, ainda tinha tanto para viver e para crescer, é claro que sonhava um dia casar, mas sem pressas. Afonso já passava dos vinte anos e ela ainda era uma criança, acabaria um dia por se casar, por ter um marido que a amava e que ela o amasse, mas não agora. Queria ser cortejada e acarinhada, conquistada pelo homem que amasse, agora um 11


acordo? Isso retirava a emoção e a alegria ao acontecimento, o fu‑ turo marido não se sentiria na obrigação de agradar, de incentivar o carinho, ela pertencer‑lhe‑ia, quisesse ou não quisesse. Queria casar por amor, que a sua futura casa tivesse aquilo que não tinha em casa atualmente, carinho, amor e respeito. A mãe falecera há alguns anos, envelhecida num casamento insípido. O pai nunca amou a sua mãe, era um homem insensível e distan‑ te. Não tinha ninguém com quem pudesse contar, que pudesse ajudá‑la, só os seus amigos, os filhos dos criados, só eles se preo‑ cupavam com ela. E agora o pai estava a casá‑la com um estranho. E Afonso já era um homem. — A sua difícil situação económica será resolvida, e não será nunca do domínio público. Em tempos passados, o meu bom ami‑ go assumiu os erros cometidos por mim, e é agora com o coração aberto que pago essa dívida de gratidão. — Foi uma honra poder ter sido útil a tão distinto Nobre e bom amigo. — Foi mais do que útil, foi vital, quando aquela infame cria‑ tura apareceu a meio da noite a exigir mais dinheiro e tive de a silenciar — soltou um longo suspiro — pensou que me comoveria se aparecesse com a criança nos braços. Uma criança que paguei para que desaparecesse. — Esse assunto há muito que está morto, meu bom amigo, nunca ninguém saberá do seu envolvimento, morrerá connosco. O Conde escondeu o seu sorriso vitorioso, sim, tinha sido ar‑ diloso ao reparar o erro de um velho amigo quando esse ami‑ go era um membro da Corte. O pagamento da dívida era mais que satisfatório, casaria a sua filha com o próximo Duque, único herdeiro de uma fortuna colossal. Ocuparia um mais alto cargo na Alta Sociedade e vingar‑se‑ia de todos aqueles que sempre o desprezaram por ter apenas um bom título, mas não a fortuna. Nunca foi um homem bem‑sucedido nos negócios e muito menos 12


em Sociedade, agora teria os dois — dinheiro e prestígio — tossiu para esconder a euforia: — Venha, meu amigo — recomeçaram a caminhar — vamos brindar à saúde dos nossos futuros netos. A primogénita do Conde de Lazarim gelou. Todo o mundo, tal como o conhecia, terminou naquele dia fatídico. A família estava arruinada? Não era possível, o pai era Conde, os Nobres não são pobres. Fortes tremores abalavam o corpo, seria um casamento para pagar uma dívida, para impedir que a família ficasse na miséria, não seria como sonhara, seria como as outras uniões que conhecia, apenas as questões financeiras interessavam. A sua opinião não tinha nenhuma importância. Algures, na distante Herdade dos Vale Ribeiro encontrava‑se o seu futuro marido. Lágrimas desesperadas rolaram pelo rosto infantil, Inês chorou como nunca antes o tinha feito, nem quando perdeu a mãe.

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Capítulo 2

Nunca mais viveu em liberdade, o pai foi extremamente rigo‑ roso em relação às exigências do Duque. Todos os elementos mas‑ culinos que se incluíam numa certa faixa etária foram transferidos ou expulsos da propriedade. Inês cresceu entre mulheres e ainda assim constantemente vigiada. A quinta não era pequena, mas ao fim de alguns anos Inês já conhecia todos os recantos, todas as sombras das árvores e todos os pedregulhos onde se sentava a ler e a pensar, numa espera deses‑ perante. Todos os dias temeu deparar com o noivo no salão, mas ele não apareceu, nem uma única vez. Seis longos anos passaram na propriedade, sobre controlo di‑ reto do pai, da governanta, dos criados e da restante família en‑ quanto aguardava pelo casamento. A tia Henriqueta e os primos que viviam com eles contribuíram para o aumento da pressão, vigiavam‑na o tempo todo. A família tratava‑a como se a sua opi‑ nião ou os seus desejos de nada valessem, renegando‑a para a sua condição de mulher comprometida, sem direitos nem opinião própria. Ela era fruto de uma jogada de mestre do seu pai e reju‑ bilava com o seu desempenho, para ele o futuro da filha há muito que estava traçado, ela seria a futura Duquesa de Vale Ribeiro, 14


era este o seu destino, nada o faria mudar de ideias, nem mesmo a infelicidade da pequena. O dia amanheceu límpido e seco, pequenas nuvens brancas deslizavam vagarosamente sobre o manto azul, os terrenos estavam verdejantes e no ar o agradável cheiro suave de flores silvestres. Tinha chegado o grande dia, toda a vila aguardava ansiosa por este momento. A longa espera tinha finalmente chegado ao fim, as mulheres da casa andavam em grande alvoroço, davam o seu melhor. Condes, Viscondes, Lordes e Cavaleiros vestiram os me‑ lhores fatos, muitos mandados fazer de propósito para o grande acontecimento, o casamento do Duque de Vale Ribeiro com a filha de uma das famílias com mais prestígio da terra. O noivo causava imensa expetativa, nunca antes a Vila recebeu tão ilustre nobre nos seus braços. Era o casamento do ano, nunca antes um Duque tinha contraído matrimónio na pequena e desprovida igreja da região, ninguém queria perder tal acontecimento, todos ansiavam observar de perto. A pequena vila não estava habituada a tamanha festa, mas para o Conde não havia melhor cenário, queria que a sua terra se lembrasse para sempre daquele dia. Apesar de não ser do conhecimento público a sua falência, o Conde precisava de desfazer certos rumores mal intencionados, já não era apenas um homem de prestígio, seria também um homem rico e altamente influente. Afonso, o ilustre noivo recusou casar assim que a criança se tornou mulher, pronta para procriar, o argumento era inegociável, afirmava que Inês ainda era muito jovem, preferia esperar que ela fosse mulher feita. O Conde aceitou o longo noivado, é claro que aceitou, não tinha outro remédio, mas viveu na mais pura angustia, sempre com receio de uma reviravolta, que o noivo se apaixonasse por outra por exemplo. Afonso era inteligente e arrogante, mas não podia inventar mais desculpas para atrasar o enlace sem levantar suspeitas e calúnias, e por outro lado a curiosidade aguçava certos apetites, diziam que a noiva se tinha transformado numa mulher lindíssima. 15


O Conde desceu vagarosamente as escadarias e sorriu orgulho‑ so ao ver a casa em alvoroço, os criados corriam nervosos a preparar a propriedade para a grande festa, nada poderia falhar. Hoje rece‑ biam todos os notáveis da Sociedade, hoje estava em paz. Nada, absolutamente nada, o perturbaria. Entrou nos aposentos da filha, atravessou a salinha de costura em direção ao quarto e ali estava ela, a sua querida filha vestida de noiva, pronta para ser entregue a outro homem, não um homem qualquer, mas sim o melhor partido que uma mulher pode desejar. Estudara e planeara esse enlace, não tinha sido a sua primeira escolha, mas infelizmente o filho mais velho do Duque falecera, deixando a Afonso auspicioso futuro. Inês olhou para o pai através do enorme espelho e sorriu. Não teve receção igual, a expressão do Conde manteve‑se inalterá‑ vel. Se Deus tivesse sido justo e generoso ter‑lhe‑ia dado um filho. Durante anos viu a filha com desilusão e com o passar do tempo mais desiludido ficou. A rapariga não era submissa e delicada como uma dama deve ser, ousava enfrentá‑lo, era teimosa e obstinada — tão diferente da mãe — pensou enquanto a observava a colocar o véu. Sentiu um aperto no peito. O seu casamento foi acordado pelos pais, no entanto foi cordial como todos os casamentos devem ser. Podia não haver amor, mas havia respeito, pelo menos da sua parte — a vida é tão cruel — foi um choque brutal quando des‑ cobriu que a mulher tinha um amante, no mesmo dia que soube que ela estava de esperanças. Ao fim de dez anos de infertilidade, a esposa, finalmente, carregava no ventre um herdeiro. Como podia ele descarregar a mágoa e a humilhação se devia estar feliz, como podia ele censurar a esposa quando devia estar grato? Guardou a dor dentro de si e deixou o veneno diluir‑se no tem‑ po. Quando o bebé nasceu e o filho que tanto queria revelou‑se uma menina, o seu autocontrole vacilou, passou a desprezar a esposa e a procurar as camas de outras mulheres, e ela assim que se recompôs do parto regressou aos braços do amante. Secava as lágrimas no calor do peito das amantes. Não podia proibir a esposa de se encontrar com o amante, simplesmente não 16


podia, com o nascimento de Inês ficou provado que a infertilidade era dele, se ela mantivesse a relação haveria ainda a possibilidade de nascer um varão. Os seus pensamentos pervertiam‑se descon‑ troladamente, como se já não dependessem da sua vontade, esti‑ vessem entregues a um valor mais alto, a descendência, a defesa dos títulos ancestrais. Com o tempo a situação passou a ser aceite pelas partes intervenientes, embora sobre a opinião do amante pouco soubesse, o seu silêncio tornava‑se cúmplice. O impor‑ tante era serem discretos, saberem qual era o papel de cada um. Esperou pacientemente a notícia de mais uma gravidez, com o passar dos anos esse desejo foi sufocando e acabou por morrer. Tinha que se conformar, Inês era a sua única descendente. Uma mulher não tem direitos, nem capacidades intelectuais, não tem força nem habilidade para além de bordar ou pintar, mas agora já não trocaria Inês por um rapaz, hoje, pela primeira vez na vida, sentiu genuíno orgulho por ter Inês como sua filha, sem ela nada seria possível, não haveria casamento, não haveria dinheiro para pagar as dívidas, nunca recuperaria o prestígio. Respirou fundo, o futuro de Inês já estava traçado, agora só faltava a irmã, Alice, de oito anos, filha de outra infeliz história… — Vamos, vamos a despachar. O Conde estremeceu quando ouviu a voz da irmã, aquela mulher tinha o poder de desnorteá‑lo. Sempre que ouvia a irmã, o instinto primário do Conde era esconder‑se, e sem pensar duas vezes, assim o fez, encolheu‑se atrás da cortina de veludo. Henriqueta tinha um timbre de voz demasiado alto e excessi‑ vamente agudo para ser ignorado, mas ainda assim sentia neces‑ sidade em elevar a voz, não gostava de passar despercebida. Usava acessórios a mais, vestidos de cores garridas e uma maquilhagem excessiva. Ela era uma mulher marcante, mas não no bom senti‑ do, a vigorosa mulher de estatura mediana avançou por entre os criados, empurrando‑os sem delicadeza. — Inês ainda não está pronta — gritou — parasitas inúteis, como se atrevem a deixar o Duque Vale Ribeiro à espera? 17


Inês ignorou a tia, o Conde susteve a respiração, dali, do seu esconderijo, conseguia visualizar bem a filha, estava linda, um rosto angelical, a pele branca e os longos cabelos loiros, tal como a falecida mãe. Os gestos, a beleza e a voz agradável, eram he‑ rança materna, outra não podia ser. Por breves momentos sentiu saudades da mulher, muito bela, submissa e dedicada. Não soube ser o marido que ela merecia, aquilo que para os outros seria um pecado foi no fundo um gesto de amor, queria dar um filho ao homem que amava. Foi egoísta e mesquinho, nunca a devia ter desprezado, graças a ela, era hoje um homem relativamente feliz. — Minha querida menina — segurou o rosto da sobrinha nas suas mãos cobertas de anéis — hoje é um dia extraordinário. Finalmente os nossos sonhos serão realizados, jantaremos nas melhores mansões, frequentaremos bailes magníficos — soltou um profundo suspiro sonhador e depois fitou a sobrinha com de‑ terminação — não se atreva a arruinar a nossa felicidade. Virou‑se para os criados e espantou‑os como se fossem moscas: — Fora, fora, gente imbecil. Inês baixou o rosto para ninguém ver os olhos rasos de lágri‑ mas, aquele era o seu dia, ela era o centro das atenções, mas o seu papel para a família resumia‑se a ser um mero trampolim social, a sua felicidade, o seu bem‑estar, nunca foi tido em conta. Por vezes reconhecia no olhar do pai, um deslumbre de orgulho, e de cari‑ nho, mas era tão breve que poderia ser a sua mente a imaginar, tal era o desejo. Só havia uma maneira de lhe agradar totalmente e isso simplesmente era algo que nem ela nem ninguém poderiam oferecer — devia ter nascido homem. A desilusão do pai foi tão expressiva que matou a mulher aos poucos, Inês recordava a mãe, triste e doente, vagueando sem rumo pela casa, o desgosto de não ter dado o filho homem que o marido exigia deixou‑a desgastada e envelhecida. E agora, também ela seguiria o mesmo destino. Lorde Afonso era o último descendente da longa e próspera família Vale Ribeiro. Era imperativo que ela gerasse um filho que assegurasse 18


a linhagem. Como seria ele, porque nunca durante o noivado a visitou, porque fazia ele questão em a deixar na ignorância? Aprendeu a tocar piano, pintar, bordar, recitar poemas, gerir uma casa, tudo o que é preciso para agradar ao marido. O seu único objetivo era servi‑lo. Um gosto amargo desceu pela garganta e ela odiou o sabor. Nada, era isso que sabia sobre ele, nem um retrato, uma carta, no mínimo um bilhete amoroso. Nada, apenas boatos e alguma informação que Rosália conseguira sacar a mercadores. Alvito era apenas uma pequena vila perdida no meio da planície, as notícias demoravam a chegar e os dias demoravam a passar. Desalentada, Inês caminhou lentamente para a porta, o pai e a tia Henriqueta subiam para as suas carruagens, completamen‑ te indiferentes ao seu estado de espírito. Rosália, a sua criada de quarto e grande amiga desde tenra idade, aproximou‑se e sussurrou enquanto cobria a face da noiva com o véu, tinha de ser discreta, o Conde não via com bons olhos a relação delas, para ele, Rosália não passava de uma serviçal e ver a filha reforçar a relação com a criadagem irritava‑o. — Em breve, estará a rodopiar num baile real, coberta de joias — tentava animar a amiga. — Mas estarei sozinha, sem a tua companhia. — Com tantos criados ao seu dispor, depressa me esquecerá. — Prometo que não descansarei até te ter a meu lado. Rosália respirou fundo, evitando a todo o custo chorar, iria perder uma boa amiga e ficaria sozinha em Alvito. Com Inês longe não tinha motivos válidos para continuar na região, nunca apreciou o isolamento, a pequena Vila era demasiado sossegada para uma moça enérgica como ela, nada mais a prendia ali, mere‑ cia uma vida melhor. Era inteligente e astuta, o destino não seria caprichoso a ponto de desperdiçar uma vida tão preciosa como a dela. Partiria para longe, enfrentaria o mundo sozinha, viajar não a assustava, desde dos sete anos que dependia somente dela. 19


Talvez até se mudasse para Vale Ribeiro, para junto de Inês, sorriu com a ideia: — Seja feliz, minha querida senhora e amiga. As duas jovens deram um abraço apertado. — Inês? O Conde chamou a filha, aborrecido com tamanha intimidade, lá estava novamente a filha a rebaixar‑se àquela infeliz, Rosália Mendes, não gostava daquela criada, simplesmente não gostava. A moça tinha uns olhos vividos e astutos, sempre que olhava para ele, o Conde sentia‑se intimidado. Onde já se viu um homem como ele intimidado por uma criadita? Mal podia esperar para correr com a desgraçada, sorriu com uma alegria fria, aquela criada tinha os dias contados. Inês subiu para a carruagem, sabia que o pai detestava Rosália, o que seria da amiga agora que ela já não estaria ao seu lado para a defender da fúria do pai? Assim que Inês se sentou na bela car‑ ruagem o pai pousou os olhos na criada: — Vá para dentro ajudar os outros. Ordenou ríspido. A moça apressou‑se em obedecer e entrou em casa a correr, não ousando olhar para trás. O Conde amedrontava‑ ‑a, não podia continuar ali, não fugira antes por causa de Inês, mas agora estava livre. Os olhos frios do Conde prometiam vingança, tinha de se afastar dali o mais depressa possível. Mal a moça sabia que era tarde demais, dois homens da inteira confiança do Conde seguiram‑na para dentro de casa, tinham ordens a cumprir. — Rapariga insolente. Murmurou o Conde a entrar para a carruagem. — Pai, por favor, deixe‑me levar Rosália comigo. — E importunar Lorde Afonso com esta relação ultrajante para a sua condição, jamais, Rosália não passa de uma criada petulante. A coluna de carruagens começou a sua marcha a caminho da pequena igreja, afastando‑a para sempre da casa onde nasceu e cresceu. Inês contemplou o pequeno palácio com nostalgia, só Deus sabia quando voltaria a pisar Alvito. 20


O pai ajeitou o nó da gravata e então notificou orgulhoso o plano que desenvolveu para a criada: — Em breve Rosália terá uma casa e uma família para ocupar os seus dias. Inês voltou‑se para o pai apavorada, a respiração falhou, dei‑ xando‑a sem fôlego: — Como assim? O Conde sorriu maliciosamente: — Falei com o ferreiro, Rosália casará com o seu filho mais velho. — Pai, não faça isso — Implorou Inês. — Está feito — encarou‑a o Conde determinado. Naquele momento, Inês reconheceu o verdadeiro carácter do pai. Rosália odiava a família do ferreiro, em especial o filho mais velho. Apesar de não ir à vila há muito tempo Inês lembrava‑se perfeitamente do ferreiro, com dentes podres e cabelo desgre‑ nhado era imundo e rude, tinha sete filhos, todos homens. Pelas conversas que tinha com Rosália, sabia que o mais velho tinha um interesse carnal pela criada, sempre que podia tentava beijá‑la à força — meu Deus — era pura maldade do pai, queria casti‑ gá‑la por lhe ser tão íntima. Os criados que os acompanhavam à igreja eram da inteira confiança do pai e jamais transmitiriam um recado da filha em segredo, pobre Rosália, não a podia avisar do futuro que a espera. Sentiu o coração apertado e dilacerado. Rosália preferiria fugir a submeter‑se a semelhante casamento, a amiga era inteligente e astuta. Ainda estaria a tempo de fugir? A dúvida atormentou o jovem coração durante o curto caminho até a igreja. Numa última tentativa implorou de lágrimas nos olhos: — Por mim, por favor. O pai deitou‑lhe um olhar duro, mas Inês quase podia jurar que detetou uma ligeira hesitação nos olhos castanhos. — Não — comunicou de forma contundente — o casamento será dentro de duas semanas. — Pai… 21


— Assunto encerrado, dei ordens claras para a trancarem no quar‑ to e lá permanecerá até ao casamento, Rosália terá o que merece. Inês tremeu, o pai conhecia Rosália muito bem, já esperava uma fuga, tinha pensado em tudo. Como poderia ela ser filha daquele homem, como poderia só haver gelo e maldade naquele coração, sentindo as lágrimas a encherem os olhos Inês baixou a cabeça. Porque haveria o pai de a ouvir se nunca o fez, mas ela não podia desistir de Rosália, simplesmente não podia. Só lhe restava uma única solução, apelar aos sentimentos de alguém que lhe era estranho, mas que em breve teria a sua vida nas mãos, o futuro marido, esse pensamento apaziguou‑a um pouco. Altivo, orgulhosamente sentado na carruagem aberta da noiva, o Conde de Lazarim ergueu o queixo assim que entrou na Vila, a festa iria ultrapassar tudo o que os seus súbditos tinham visto até en‑ tão, aquela gente pertencia‑lhe, não tanto como antigamente, agora havia leis novas que protegiam demais aquela cambada de calões. Inês observou a terra com nostalgia, reconheceu algumas lojas onde se vendiam coisas insignificantes a que no entanto as pessoas davam muita importância. Parecia sempre tudo igual, mas no fundo sentia que tudo estava diferente, as ruas estavam desertas, toda a população aguardava na igreja, uma multidão de curiosos, pessoas que não tinham lugar sentado na pequena e rústica igreja. Todos os olhares caíram sobre ela, trémula e hesitante Inês saiu da carruagem com o coração acelerado, as pessoas sorriam, mas ela não conseguia retribuir o sorriso, como podia se esse não era um dia de sonho. Não era o seu sonho. Quando Inês entrou na velha igreja medieval, foi esmagada pela alteração da temperatura, a igreja estava fria e escura, o calor agradável e o ar ameno da rua foram substituídos, sem pena ou consideração pela jovem noiva. Os seus olhos demoraram a focar o interior, durante anos idealizara esse momento e agora que o grande dia chegara tudo parecia irreal. A igreja estava iluminada com velas, em pedestais e no enorme lustre suspenso do teto. Dúzias e dúzias de rosas brancas enfeitavam os longos e velhos 22


bancos de madeira escura, flores raras, vindas de muito longe, enfeitavam o altar. Um agradável odor a rosas e o cheiro a incenso pairavam no ar, um longo e vermelho tapete percorria o frio corre‑ dor central, nada parecia real, Inês sentiu dificuldade em respirar, tinha o coração apertado e um medo genuíno no olhar. Sorria de nervosismo sem se aperceber, conduzida pelo braço forte do pai caminhava com passos tímidos em direção ao altar, murmúrios invadiam o espaço, as mulheres apontavam para o seu belo traje, o vestido cor de marfim bordado a fios de prata brilhava à luz das velas, o decote arredondado enfeitado com renda da mais fina e delicada emoldurava o gracioso pescoço e o vale dos seios, o corte elegante do vestido delineava na perfeição a fina cintura e elevava o peito muito generoso, a saia caía majestosamente até ao chão, cobrindo por completo os sapatinhos brancos, a cauda do vestido parecia sussurrar enquanto Inês caminhava em direção ao altar. Toda aquela gente no interior da igreja era privilegiada, via‑se a diferença nos trajes e nos rostos, as pessoas lá fora eram todas mal‑ trapilhas e precocemente envelhecidas, Inês conseguiu reconhecer muito poucos, mas eles olhavam para ela como se a conhecessem intimamente, felizes e orgulhosos, acompanhando‑a na lenta ca‑ minhada viam a menina que ela foi. Inês parou, Afonso estava à sua espera no altar. Só podia ser um sonho, ela nunca conseguiria imaginar aquele rosto, o mais belo que ela alguma vez vira. Fato de cerimónia azul‑marinho, botões em prata com o brasão, casaca larga elegantemente confecionada, calças negras coladas ao corpo, camisa de folhos de um branco imaculado e por cima o colete creme bordado a fios de seda, para rematar um lenço de seda branco ao pescoço com alfinete de ouro branco e diamantes. Emanava respeito e riqueza. Sentindo um formigueiro nos pés, Inês não conseguiu avançar mais, ficou imóvel, um silêncio glaciar abateu‑se sobre a igreja, todos observavam com interesse o estado de choque da noiva, mas a jovem só conseguia fixar o futuro marido. Rosto sem dúvida masculino, levemente bronzeado, cabelos negros curtos, olhos 23


castanho escuro, uma boca dura e larga, alto, de peito e ombros largos. A sua presença física era de tal forma dominadora, que pa‑ recia que todo o povo se curvava à volta dele. Finalmente conhecia o noivo, era muito belo, mas com uma aura fria que a assustou, se o casamento era do seu agrado ou não, Inês não saberia dizê‑lo, o homem à sua frente era uma autêntica escultura em pedra. Os seus olhares encontraram‑se e Inês deixou de respirar, ele elevou uma sobrancelha e brindou‑a com um leve sorriso, a quietude dela constrangia‑o, mas evitou começar já a censurá‑la. Inês estudou com prazer a leve curvatura dos lábios do noivo e gostou do que viu, o seu sorriso iluminou‑o parecia agora mais belo e acessível. Como seria a sua voz, como seria o toque das suas mãos, sorriria para ela com frequência ou limitar‑se‑ia a encará‑la como um objeto? Tal como o pai encarou toda a vida a sua mãe. O silêncio deu lugar ao murmúrio, todos testemunhavam a primeira vez que os noivos se conheciam com ávido interesse. Perturbado com a quietude da filha, o pai incitou‑a com um leve aperto do braço a recomeçar a marcha. Ela estava presa na‑ queles olhos que a estudavam com demasiada intensidade, quei‑ mando cada centímetro da sua pele. Estremeceu quando o noivo tomou a sua mão delicada, ofere‑ cida pelo pai. Afonso sorriu e delicadamente puxou‑a para si, Inês sentia‑se examinada ao pormenor, nada era esquecido. Afonso contemplou satisfeito a boca bem desenhada, os con‑ tornos suaves do rosto, as longas pestanas, a pele de marfim, que por Deus, podia jurar ser macia e excitante. A sua jovem noiva possuía uma beleza delicada que o atormentava terrivelmente, os longos cabelos loiros estavam presos num penteado elaborado, deixando alguns fios dourados a emoldurarem‑lhe o belo rosto, os enormes olhos verde‑água olhavam‑no fascinada, Afonso lutou contra a louca tentação de a tomar imediatamente nos braços e de a beijar. Era ainda muito nova a sua bela esposa, mas não era nenhuma criança assustada, como ele temera. Não olhava para o chão envergonhada e sem jeito. Enfrentava‑o. 24


Inês sentiu‑se a flutuar, desconhecido ou não o noivo agra‑ dou‑lhe de imediato, não passava de uma jovem impressionável, é certo, mas mesmo que já usufruísse da maturidade, o noivo iria sempre mexer com ela. Afonso era o primeiro homem realmente atraente que ela vira. A voz do padre soou distante e destorcida, tudo brilhava e ondu‑ lava à sua volta, estava perdida, alegremente perdida num mundo de sensações, o medo foi anulado, tudo o que conseguia registar era a face do seu Duque. Finalmente tinha um rosto, e que rosto. Tentava concentrar‑se na cerimónia, mas o olhar desobedecia‑lhe, como que enfeitiçada, fixava‑se no rosto do noivo, o queixo, os lábios, estavam mais à altura da sua vista. Quantos lábios terão os seus provado, quantas palavras apaixonadas terá declamado, quantas mulheres terá seduzido? — Eu, Afonso João Augusto Franco Vale Ribeiro… Proferiu num tom carregado de autoridade. Inês sobressaltou‑se e pestanejou repetidamente. — …tomo Inês Maria Alberta de Lazarim como minha legí‑ tima esposa, prometo amar e respeitar de agora e em diante, na prosperidade e na adversidade, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe — depois voltou‑se para a noiva e introduziu a grossa aliança no delicado dedo anelar — segundo a vontade de Deus entrego‑me a ti como esposo. Inês estremeceu, tinha a garganta seca e o coração em alvoroço, o sangue latejava nas têmporas. «... entrego‑me a ti como esposo.» meu Deus! Inês fechou os olhos claramente aturdida, tudo parecia distante, o tempo movia‑se dolorosamente devagar, pronunciou os votos e sentiu um arrepio gélido na espinha, agora pertencia àquele belo estranho. Pétalas vermelhas choveram sobre eles, gritos entusiastas saudaram os noivos, sorrisos e rostos felizes. Inês observava tudo sem ver real‑ mente, quando deu por si estava na carruagem com Afonso ao seu lado. Esta era luxuosa, negra, espaçosa, forrada com a melhor pele, à frente quatro cavalos de puro‑sangue igualmente negros, 25


só a portinhola ostentava um toque de personalidade e cor, com o brasão da família Vale Ribeiro. O Duque Vale Ribeiro, pai de Afonso, não compareceu ao casamento que preparara ao pormenor, estava demasiado fraco para enfrentar a longa viagem, as forças abandonavam‑no dia após dia. Estava velho e doente, mas mesmo assim não deixava de ser o chefe da família, exigia abençoar a nova filha de imediato, Afonso não teve outro remédio senão obedecer ao pai, a festa das núpcias iria decorrer sem a presença dos noivos, o Duque estava a morrer não se podia esperar nem um único dia, a festa ficaria para os convidados, esperava‑os uma longa viagem e se o tempo ajudasse chegariam à mansão ao anoitecer. Passariam a noite de núpcias na mesma propriedade, no mesmo quarto onde seis gerações de Vale Ribeiro geraram os seus descendentes, ao amanhecer parti‑ riam para Paredes Brancas onde o Duque esperava para abençoar a união e ver materializado o seu sonho. Inês não reparou nos rostos sorridentes, nos aplausos, nem mes‑ mo nos beijos de felicidade que recebeu, tudo parecia irreal. Densa multidão caminhava feliz para a enorme festa, na propriedade do Conde de Lazarim e gritaram votos de felicidades quando os noivos passaram por eles rumo à felicidade. Ao abandonar a vila a carruagem dos noivos aumentou de ve‑ locidade, Afonso pegou na delicada mão da esposa e bastou este pequeno gesto para a arrancar do seu estado hipnótico, ele sorriu ao sentir a inexperiência dela, Inês baixou o olhar e contemplou a grossa aliança. Era agora Inês Vale Ribeiro, futura Duquesa de Vale Ribeiro, a realidade do que acabara de acontecer abateu‑se sobre a jovem com uma violência insustentável, fechou os olhos e absorveu a sua nova vida, o seu mundo mudara, para trás ficaram todos os rostos que conhecia, o seu universo era agora o de Afonso, devia‑lhe obediência. Abriu os olhos, mas não teve coragem de o enfrentar, optando por lançar fugazes olhares, o que não passou despercebido ao marido, na verdade, até o divertia, mas Afonso 26


resolveu terminar com a timidez da esposa, desejava uma mulher na sua vida, na sua cama, não uma criança. — Sou real, estou aqui. Inês corou ligeiramente. Sim, ele era real, mas continuava a ser um estranho, um homem maduro, conhecedor da vida e dos prazeres carnais, como poderia ela o satisfazer? Nada sabia. — Por favor, tire as suas dúvidas. Inês encarou‑o nervosa mas segura, tinha tantas questões para colocar, tantas perguntas sem resposta, começaria pela mais simples: — Desconheço a vossa idade, meu senhor. Afonso sobressaltou‑se incomodado. — Não sabe a minha idade, o que sabe sobre mim? — Sei tão pouco, apenas o essencial. Afonso soltou um longo suspiro. — O essencial, e o que é o essencial para si, o meu valor mo‑ netário, quantos reais ganho por ano? Passou a mão pelo cabelo em completo estado de frustração, tinha‑se enganado em relação a ela, não passava de mais uma interesseira. Inês corou abalada com o juízo que ele fazia dela e ergueu o rosto: — Não compreendo o seu desânimo, meu senhor, a culpa de não nos conhecermos melhor é sua, o noivado foi longo e propício a visitas da sua parte, porque optou por não comparecer muito dificilmente conseguirei compreender. Afonso encarou‑a surpreso, era determinada e destemida, não esperava aquela reação, os enormes olhos verdes olhavam‑no de frente, sem receio, o rosto ganhou um leve tom rosado devido à indignação. Se por um lado apreciou a determinação da jovem esposa, por outro sabia que não podia perder o controlo da situa‑ ção, era só o que lhe faltava, uma esposa respondona e desobe‑ diente. Sem uma palavra, enfrentou‑a de rosto austero, os olhos escureceram e soube perfeitamente quando Inês se apercebeu da gravidade da situação, primeiro os lábios tremeram, depois os 27


olhos perderam força e logo de seguida escondeu‑os por detrás das longas pestanas. — Sinto muito, foi inoportuno da minha parte. — Devo‑me preocupar? — Não, de todo. Assegurou de imediato irritada consigo própria, porque tinha que contestar tudo, porque não aprendia a ficar calada, não era assim que uma mulher se devia comportar, questionar o marido, ai, se o pai a visse agora. — O que sabe sobre mim?! Disparou Afonso visivelmente indisposto. — Sei o que me foi contado, mas ainda não respondeu à mi‑ nha pergunta. — Fiz vinte e nove anos este Inverno. Respondeu seco. Inês estudou‑lhe o rosto e resolveu não conti‑ nuar, não era assim tão tola, o marido estava aborrecido e de mau humor, podia estar livre do pai, mas agora pertencia a outro ho‑ mem, e nenhum homem apreciava mulheres de pensamento livre, o papel das fêmeas era claro, viviam para casar e dar descendentes, deviam ser submissas, sempre prontas a servirem o esposo. Porque teimava? Estava casada há menos de uma hora e já enfrentara o marido, não podia começar assim, em nome do seu bem‑estar tinha de mudar, mesmo que a razão estivesse do seu lado. Depois de alguns momentos de silêncio, Afonso resolveu jus‑ tificar‑se, não sabia porque o fazia, mas a acusação da esposa deixou‑o incomodado: — Foi‑lhe enviado um medalhão com o meu retrato, não o recebeu? — Recebi de facto um medalhão, mas não tinha o seu retrato. — Não? Inês remexeu na bolsa que estava ao seu lado e retirou de lá um pequeno embrulho envolto em seda azul, do mesmo tom do brasão da família e entregou‑o a Afonso que o abriu e viu o mesmo fio que enviara há três anos, mas o retrato que mandou colocar no 28


interior da medalha não se encontrava lá, no seu lugar estava um pequeno retrato da mulher que agora se encontrava à sua frente. — Pensei devolver‑lho assim, com o meu retrato, uma prenda para ser entregue no dia do nosso casamento. — Mas… é um medalhão feminino — argumentou. — Sim, de facto o é, meu senhor. Afonso encarou a bela mulher ao seu lado, retirou a foto, guar‑ dou‑a no bolso da casaca e devolveu o medalhão: — Sinto muito pelo sucedido, confiei a entrega da oferta à pessoa errada. Inês guardou o objeto e lamentou realmente que a prenda tenha sido adulterada, quem teria sido? Recebera‑a de um mensageiro anónimo, teria sido ele, mas qual seria o objetivo, o seu ganho? O medalhão era valiosíssimo se se tratasse de um roubo, certamente que não seria o retrato a ser roubado. — Devo depreender que também não recebeu nenhuma cor‑ respondência minha? — Correspondência?! — olhou surpreendida — não, de todo. Afonso soltou um profundo suspiro e amaldiçoou o mensageiro, maldito homem, até quando teria de o suportar? Engoliu a raiva e descontraiu o maxilar, era inútil remoer ódios naquele exato momento, era o seu dia de casamento e a sua noiva estava ali, a poucos centímetros dele, lidaria com o criado no momento devido. — Então sou de facto um estranho para si, não era esse o meu desejo — Inclinou‑se e acariciou o rosto feminino — não desejo que me veja como um estranho. O leve toque perturbou‑a, sentiu a pele a arder e o coração disparou violentamente. Ele agradava‑lhe, e muito, mas quem era aquele homem que se encontrava à sua frente? Ele tentara conhe‑ cê‑la, enviou‑lhe prendas e principalmente, tentou corresponder‑se, mas alguém conspirava contra eles, quem seria? A curiosidade e a dúvida invadiram o jovem coração, mas a intensidade com que o marido a encarava anulou todas as inquietações. Os olhos casta‑ nhos olhavam‑na com desejo, queria‑a, conseguia perceber isso, 29


ele queria‑a como um homem quer uma mulher. Naquele exato momento sentiu‑se uma verdadeira mulher, atraente e desejável, a esposa daquele belo homem: — O que diziam as cartas? Perguntou hipnotizada pelos olhos ardentes, a presença do marido asfixiava o pequeno espaço da carruagem e Inês respirava com dificuldade. Afonso deslizou os dedos sobre a pele macia da face da esposa e roçou o polegar nos lábios cheios. — Já não tem importância. Declarou rouco enquanto o olhar vacilava entre os enormes olhos verdes e os lábios sedutores. O desejo naqueles olhos cas‑ tanhos era evidente, mas no fundo, Inês sabia que era completa‑ mente indiferente os sentimentos que o marido sentia, ele tinha plenos poderes sobre ela, os anos de ensinamento sobre o modo como agir, como pensar na presença do senhor seu amo, esmagou a jovem criatura que ansiava por ser livre: — Agrado‑lhe, senhor? — perguntou num fio de voz. — Sim, muito — respondeu ele encantado. Um sorriso nervoso surgiu nos seus lábios, a presença física do marido ocupava por completo o escasso espaço da carruagem: — É uma honra servi‑lo. Afonso arqueou uma sobrancelha desconfiado: — Era vosso desejo comparecer na cerimónia? — Farei aquilo que o meu senhor desejar. Afonso suspirou frustrado. — Já chega de frases estudadas, quero uma mulher ao meu lado, não uma marioneta manobrada pelo seu pai — disparou um pouco irritado. Mas, seria que não estava a fazer tudo bem, não era isso que deveria dizer, não era assim que deveria agir? Estava submissa e devota como todos os homens querem a sua mulher: — Desculpe, meu senhor, não era meu desejo perturbá‑lo. Afonso segurou‑a pelo queixo, levantou‑o, obrigando‑a a enca‑ rá‑lo, os olhos castanhos estudaram‑na, procurando algo: 30


— Sei que aí dentro reside uma jovem apaixonada pela vida, que dança à chuva, que enfrenta as adversidades com confiança e se recusa a ser uma vítima. Os grandes olhos verde água olharam‑no estupefacta, como poderia ele saber de tal acontecimento? Afonso estudou a surpresa no seu rosto, agradava‑lhe: — É essa jovem que eu quero — segredou‑lhe ao ouvido. Incomodada com a revelação, com a proximidade do corpo masculino Inês ganhou consciência do poder do marido, ele do‑ minaria todos os aspetos da vida dela, mesmo os mais banais. — Vejo que o informaram com exatidão, senhor, e que mais lhe foi contado? — Estou ao corrente de tudo sobre a sua vida, não é de forma descuidada que assumo um compromisso. Uma tristeza invadiu os olhos femininos, Afonso notou, todos estes anos sob a vigilância do pai, sempre atento aos seus passos, vigiada pela governanta, pela família, pelos criados, era enviado regularmente um relatório ao Duque, mas que não poderia partir da sua família, eles nunca mencionariam as suas rebeldias, in‑ vocariam sim a sua habilidade com a música, o seu talento para a pintura, o seu gosto pelas artes. Inês suspirou, o que importa‑ va isso agora, já nada alteraria o destino, que nunca esteve nas suas mãos. Era uma relação injusta, o marido sabia de tudo e ela não sabia nada. Ainda com a impressão dos dedos do marido na pele do queixo, Inês ergueu o olhar, já não estavam tristes apenas conformados: — Se uma mulher gosta de ser livre, meu senhor, será acon‑ selhável libertá‑la? Afonso acariciou a face com os nós dos dedos, queria abraçá‑la e afagar‑lhe os cabelos dourados, queria soltá‑los e deixá‑los cobrirem os ombros, passar os dedos por eles, acariciá‑los, puxá‑la para ele e provar‑lhe os lábios, sentir o seu gosto — não — ouviu a sua voz interior — ainda não — Afonso suspirou ansioso, aqueles lindos olhos verdes fixavam‑no, como era linda a sua esposa: 31


— Não sou muito convencional minha bela esposa, mas tam‑ bém não sou tolo, acolho essa mulher com agrado, mas não tolero traições ou enganos. Passou os dedos pelos lábios macios como veludo, involunta‑ riamente entreabriam‑se, uma onda de luxúria tomou conta do seu corpo masculino. — Quanto ao resto estou aberto a negociações. Num movimento rápido, agarrou‑a suavemente na nuca com as duas mãos e aproximou a boca dele à dela ignorando o grito de alarme de Inês, beijou‑a pela primeira vez de forma absoluta, o beijo na igreja não passou de um leve roçar de lábios, muito pouco para o desejo que o consumia desde o primeiro instante que a viu. A sensação da boca dormente deixou‑a aturdida, uma nuvem de algodão doce ocupou‑lhe a mente, esvaziando‑a de pensamentos, gemeu maravilhada, então era essa doce sensação que acompanha‑ va um beijo. Ele seduziu‑a numa chama de sensualidade, invadiu o seu interior sem pressas, deixando o calor morno da sua língua dançar dentro da boca da esposa. Um simples beijo e no entanto Inês derreteu‑se nos seus braços totalmente rendida. Mais, mais, o corpo de Afonso ansiava, exigia, mais, mais… Mordiscou‑lhe o lábio inferior excitando ambos. Os lábios dele desceram até a zona sensível do pescoço, suspirou profundamente deixando‑a tonta, delirante. Inês sentiu‑se pela primeira vez de‑ sejada, todo o seu corpo vibrava como nunca ela o sentira vibrar, uma sensação que viciava, o seu corpo pedia mais. Se uma parte do casamento era sentir assim, então valeria a pena: — Oh, meu senhor! — ofegou ao sentir o toque da língua dele no seu peito agitado. — Para si sou Afonso. — Afonso — repetiu obediente. — Sim. Cobriu um dos seios com a larga mão, Inês sentiu o mamilo a endurecer com a pressão, e o marido não ficou por aí, procurou mais contacto e deslizou a mão para dentro do vestido, queria 32


mais, queria sentir a pele macia, queria tê‑la nua, queria acari‑ ciá‑la, por Deus, queria estar dentro dela. Inês gelou com a cari‑ cia atrevida, sentiu a mão ávida a explorá‑la, ali, na claridade do dia, no pequeno espaço da carruagem enquanto esta percorria as ruas que atravessavam a Vila. Nunca imaginou que o marido a tocasse sem consideração, ela não era uma mulher da vida que aceitava apalpões em qualquer lado, ele era um cavalheiro, um Nobre, porque a humilhava desse modo? Indiferente ao estado de espírito da jovem esposa, Afonso prendeu o mamilo com os dedos e brincou excitado. Embaraçada com a sua própria reação, Inês gemeu de prazer e arqueou o corpo. O membro masculino inchou e Afonso gemeu desconfortável, queria libertá‑lo, queria acalmar as chamas que ardiam dentro dele, mas não podia, um sorriso proibitivo torceu a boca do homem enquanto este lutava por recuperar o domínio de si mesmo, seria sua, mas não agora, não numa carruagem. Recompôs‑se, afastou‑se bruscamente da mulher tentando impor mais espaço entre ambos. Inês atordoada levou a mão ao peito abandonado, excitada, perplexa e ofegante. — Magoei‑a? Perguntou Afonso preocupado, não mediu a investida talvez tivesse sido bruto, ela era tão jovem. Inês retirou imediatamente a mão: — Não. Respondeu docemente, o prazer que sentiu era bem superior à ténue dor que sentia no mamilo, era a excitação que vibrava dentro dela que a incomodava, há minutos atrás queria que ele parasse, mas agora não conseguia compreender porque se sentiu ofendida, procurou no olhar dele compreensão, Afonso sorriu: — Não me olhe assim — pediu com a respiração ainda altera‑ da — não me tente. Demasiada abalada com o turbilhão de sensações, Inês não compreendeu o sentido daquelas palavras, mas o calor intenso que lançavam aqueles olhos castanhos assustaram‑na, baixou o olhar, notou que ele estava excitado, provocando uma enorme e 33


inequívoca ereção, que lhe avolumava as calças, Inês corou e sen‑ tiu o que nunca antes sentira, um ardor a percorrer‑lhe o corpo. Afonso mantinha um leve sorriso, lutara contra o casamento, mas agora, com a mulher ao seu lado, mal conseguia encontrar os pontos negativos dessa união. A carruagem seguia por um vale verdejante, um tapete vivo que se estendia a perder de vista. O ambiente nunca mais foi o mesmo, cada contacto acidental, cada olhar mais intenso despertava em ambos memórias de carícias e beijos interrompidos. — A viagem é longa, mas tem a minha permissão para visitar a sua família com regularidade. — Poderei voltar a Alvito? Mas não pensou na família, apenas na amiga que ficou para trás. — Sim — sorriu ao vê‑la feliz — com uma condição, exijo a presença de uma dama de companhia da minha inteira confiança. — Estarei com a minha família — argumentou sem perceber a exigência — não há necessidade… — Acima de tudo exijo fidelidade e respeito, não tolerarei ne‑ nhum tipo de traição. — Jamais o trairia. — Prefiro não arriscar. Inês tentou engolir a resposta, mas as palavras voaram da sua boca: — Já tentou confiar em vez de exigir? — Sim— respondeu ríspido — e aprendi a minha lição. Inês sentou‑se muito direita, o marido olhou espantado, a jovem não se acanhou e voltou‑lhe as costas, numa clara tentativa de o ignorar. O seu belo marido era como todos os outros, a tolerância era um dever apenas praticado pelo género feminino. — Inês. A voz do marido soou cortante e autoritária, nesse preciso mo‑ mento ela soube que tinha agido tolamente, tinha agido como uma criança, faltado ao respeito mais uma vez, perdeu a confiança quando fixou os gélidos olhos castanhos, uma máscara dura cobria 34


o rosto do marido. O pequeno corpo tremeu de receio, parecia maior e deveras ameaçador, por momentos temeu ser agredida, já ouvira falar de mulheres que eram sovadas pelos maridos. — Perdoe‑me — implorou receosa. — Nunca mais volte a ignorar‑me. Cada palavra saiu de forma lenta e carregada de tensão, uma veia surgiu na testa ligeiramente bronzeada. — Nunca mais, prometo. Durante breves momentos Afonso limitou‑se a estudá‑la, estaria ele a confirmar se de facto ela entendera a gravidade do seu ato, estaria a estudar um castigo, o simples facto de a manter na dúvida já era castigo suficiente. — Muito bem, confio na sua palavra Finalmente dera por terminada a angústia. — Venha — estendeu‑lhe a mão e um leve sorriso iluminou‑lhe o rosto. Inês olhou para a mão sem entender, onde poderia ela ir, esta‑ vam dentro de uma carruagem, com pouco espaço de manobra, mesmo assim aceitou a mão, quem era ela para o recusar ou contes‑ tar? Levantou‑se equilibrando‑se com algum esforço, os solavancos eram muitos por causa da estrada em mau estado, Afonso puxou a jovem até si e sentou‑a no seu colo, Inês permanecia muito quieta, afinal sempre teria o seu castigo. — Porque ousa desafiar‑me? — perguntou enquanto a fixava. — Perdoe‑me. Afonso soltou uma risada e olhou‑a com descrença: — Os seus lábios dizem uma coisa e o seu coração outra, em quem devo acreditar? Acariciou o decote bordado do vestido, roçando levemente os dedos na pele exposta do peito, sentia‑a trémula e apreensiva. — Talvez esteja mais cansada do que pensava, foi um dia longo. Afirmou nervosa, ansiosa por mitigar as dúvidas do esposo, mas no fundo sabia que voltaria a desobedecer, Deus foi injusto ao criar a mulher desprovida de direitos e autoridade. 35


— Hum — Afonso desceu os lábios até ao pescoço e saboreou deliciado o gosto daquela pele — então é meu dever aliviar essa tensão. Inês susteve a respiração quando os lábios dele desceram até aos seios encheu o peito de ar, diminutas mas violentas labaredas incendiavam o seu pequeno corpo: — Pare. — Agora diz‑me o que devo fazer? — perguntou ele divertido. — Não, não. Afonso lambeu a pele entre os seios. — Então estamos de acordo. As mãos acariciaram os braços nus, mantendo‑a ali, ao seu al‑ cance. Inês gemeu, nunca experimentara um prazer tão intenso, tinha tanto a aprender. — Há muito tempo que a desejo — agarrou‑a pela nuca e mor‑ discou‑lhe a orelha — tenho‑a visto com uma certa regularidade. — Quando? — A primeira vez trajava um vestido amarelo, ainda era moça mas já tinha corpo de mulher. Inês petrificou com a revelação, ele tinha‑a visto. — Onde foi isso, senhor? — Em Alvito — sussurrou enlouquecido — como estava linda. — Há quanto tempo foi isso? — Não sei dizer exatamente, a Inês passeava na propriedade do seu pai com os braços carregados de flores silvestres. Inês tentou recordar esse dia, mas muitos dos seus dias foram passados assim, a colher flores para a casa nos campos verdejantes de Alvito. Os lábios masculinos procuraram os dela, o beijo foi meigo e atencioso, pela primeira vez Inês abraçou‑o, enlaçou‑o pelo pescoço e afundou os dedos nos cabelos negros, Afonso ge‑ meu deliciado, sabia bem receber o seu carinho, sentir a mulher assim tão recetiva agradava‑lhe terrivelmente. As mãos ávidas não a exploraram como ele desejava, não a queria assustar e princi‑ palmente queria que ela também ansiasse por isso, que retirasse 36


prazer na noite que se avizinhava. A custo terminou o beijo, mas manteve‑a ali, a centímetros do seu rosto. De olhos brilhantes, lá‑ bios dormentes e com a respiração alterada, Inês aguentou o olhar intenso do marido. Sim, adorava estar casada. De repente, lem‑ brou‑se que um dia, durante o passeio diário, ver uma carruagem ao longe. Recordava‑se desse dia sim, estava um calor sufocante, o vestido era pesado e demasiado fechado, a tia tinha‑lhe comprado vários daqueles vestidos, lembrava‑se de olhar para Rosália com inveja, a amiga trazia um simples vestido de algodão, leve e fresco. Então num ataque de loucura, mergulhou nas águas frescas do riacho, Rosália seguiu‑a divertida e brincaram tolamente, como duas crianças. Será que ele tinha assistido a isso? — Desejo‑a deste então — confessou apaixonado. Sem pressas Afonso deslizava os dedos muito ao de leve pela pele macia do pescoço, sentiu a pulsação acelerada. — Não imagina o meu tormento, tive de me conter para não revelar a minha presença. — Não o devia ter feito — censurou‑o carinhosamente. Nem queria acreditar que ele esteve assim tão perto, que o poderia ter conhecido antes do casamento, que também ela teria um rosto para sonhar. — Não podia. — Porque não? — A Inês ainda era uma criança. — Já era uma mulher. Afonso sorriu divertido, ainda agora a considerava uma criança, mas resolveu não partilhar tais pensamentos: — Não estava preparada. Desceu os lábios até ao pescoço e beijou a veia que palpitava, sentindo o ritmo cardíaco da esposa com os lábios húmidos, Inês fechou os olhos e deixou‑se levar na maravilhosa sensação de ser acariciada de um modo tão suave e delicado: — Gostava que o tivesse feito — lamentou com a respiração entrecortada. 37


Afonso afastou‑se e fitou os lindos e claros olhos verdes: — Se o tivesse feito, nada me impediria de a possuir naquela tarde. Inês sentiu o seu hálito fresco a beijar‑lhe a pele do rosto e recorreu a todas as forças para não enlouquecer, a voz trémula revelava o seu esforço: — Poderia ter anulado anos de angústia, criança ou não estava preparada para o receber. O marido desceu o olhar até aos lábios carnudos enquanto ela falava e depois voltou a encará‑la: — Não foi respeito que despertou em mim quando a vi, acre‑ dite, não estava preparada para me conhecer, não do modo como eu a queria. Inês corou violentamente e baixou o olhar, mortificada. — Agora compreende o meu tormento. — Assim sendo, porque adiou sucessivamente o matrimónio? — No início foi para ganhar tempo, mas depois de a ter visto naquele dia — suspirou — as razões foram outras. Declarou rouco enquanto a retirava do seu colo e a sentava ao seu lado. Depois da relevação, permaneceram em silêncio, um leve sorriso de satisfação brilhava nos lábios femininos, sentia‑se tão feminina, tão sensual, tão mulher ao lado do esposo. A meio da tarde, pararam numa estalagem sem grandes luxos situada à beira da estrada, enquanto o criado foi informar o esta‑ lajadeiro sobre a intenção de almoçarem no seu humilde estabe‑ lecimento, ajudou‑a descer da carruagem e o calor da sua mão percorreu todo o corpo feminino. Nervosa, Inês retirou a mão e disfarçou o embaraço ajeitando a farta saia do vestido. — Continua linda, minha querida. Inês agradeceu o elogio. O marido era gentil e isso agradava‑lhe profundamente. Os inesperados e ilustres clientes foram levados diretamente para uma sala isolada, o espaço era mal iluminado, com um forte odor a álcool e suor masculino, Afonso torceu o nariz e desculpou‑se pelas fracas condições, mas a Inês nada importava 38


verdadeiramente a não ser o crescente desejo de ser beijada nova‑ mente. Apesar de expressar o seu desagrado, Inês reparou que o marido não se sentia verdadeiramente incomodado, era como se o ambiente simples lhe fosse familiar, sentia‑o descontraído e à vontade. Apreciaram a refeição quente com agrado, mas as vozes masculinas do outro lado deixavam o marido inquieto, os sons de distúrbios eram audíveis, homens discutiam em voz alta e por diversas vezes insultavam‑se mutuamente. Afonso comprimiu os lábios em desagrado, mas nada podia fazer e remexeu‑se nervoso na sua cadeira, tinham de permanecer naquele sítio sujo e escuro cheio de homens bêbados, era simplesmente impossível adivinhar o que poderiam umas mentes toldadas pelo álcool fazer, mas os cavalos precisavam de recuperar da longa viagem, era imperativo. — Ainda sabe muito pouco sobre mim. Inês sentiu a garganta seca: — Vamos ter a vida inteira para nos conhecermos — declarou nervosa. Queria ficar sozinha, queria que ele não falasse, queria ter tempo para digerir os últimos acontecimentos. — Não sou um homem paciente, minha querida, dentro de poucas horas partilharemos a mesma cama não quero que haja dúvidas entre nós. Provocou‑a e sorriu quando viu o choque no rosto da mulher. Inês levou o copo de vinho aos lábios, apenas com o propósito de se ocupar e evitar o olhar intenso do marido. Como poderia ele falar assim com ela, com tamanha franqueza, poderia ela também gozar de tanta liberdade? Tinha tantas questões para colocar, tantas dúvidas para tirar. — A nossa diferença de idades preocupa‑a? Afinal estamos separados por onze anos. — De todo. Inês pousou o copo e encarou‑o, havia calor naqueles lindos olhos castanhos acompanhados com um leve sorriso encorajador, obrigando‑a a confessar‑se: — E a si, incomoda‑o? 39


O marido percorreu o pequeno corpo com olhos gulosos, Inês estava ainda na flor da idade, a descobrir a vida, ele geralmente preferia mulheres maduras, confiantes e experientes: — Um pouco, confesso. Inês sentiu as faces a arder, o marido estaria preocupado com o desempenho dela na cama, por certo perguntar‑se‑ia se ela seria capaz de satisfazer os seus apetites sexuais? Pois bem, também ela era atormentada pela incerteza, mas logo à noite as dúvidas seriam desfeitas, tentou mudar de assunto: — Com quem partilharemos a casa? — Ninguém, para além dos criados — bebericou a aguardente e continuou — ocasionalmente teremos a visita de um bom amigo de infância, por motivos laborais Fernando por vezes pernoita na mansão, é meu secretário particular. — Aguardo ansiosa por o conhecer. — Folgo em saber, ele espera‑nos na mansão. Inês assentiu e um nervoso miudinho começou a crescer, nada mais seria igual, agora era uma mulher casada, uma dama da so‑ ciedade, com obrigações e deveres. Passaria o resto da sua vida na companhia daquele homem maduro e poderoso, quer fosse do seu agrado ou não. Era fundamental que criassem uma boa imagem de si, quer Fernando, quer o velho duque, e até os empregados: — Só nós os dois numa casa tão grande? — Não gosto de multidões. — E o Duque, seu pai? Perguntou nervosa e reparou que o sorriso e o brilho nos olhos castanhos desapareceram, uma linha dura marcou-lhe os lábios. — O Duque vive em Paredes Brancas — declarou secamente. — É muito longe de Vale Ribeiro? — Meio‑dia de distância. — Quando serei formalmente apresentada? — Hoje já não é possível, partiremos amanhã a seguir ao pequeno‑almoço. 40


— Estou nervosa em o rever, da última vez comportei‑me de forma tão miserável. Serei do agrado do Duque? — Foi ele que vos escolheu — disparou ríspido — porque não haveria de gostar? Inês sobressaltou‑se intimidada com a dureza das palavras. — Perdoe‑me. Pediu perdão sem ter a certeza de como o tinha ofendido, os seus nervos eram legítimos, manteve o olhar fixo no prato e optou pelo silêncio, ouvia‑o respirar profundamente, mas não se atrevia a encará‑lo, no futuro evitaria tocar nesse assunto. Uma mão forte, de dedos longos deslizou sobre a mesa e tomou a sua mão com gentileza: — Vamos deixar o Duque fora do nosso casamento — pediu com calma, mas num tom autoritário. Inês acenou em concordância, nervosa demais para falar, ele tinha o poder de a assustar e isso não lhe agradava nada. Estavam há poucas horas juntos e no entanto já o ofendera demasiadas vezes, tinha uma leve suspeita que teriam uma relação confli‑ tuosa. Afonso acariciou a palma da mão com suaves movimentos circulares, incomodada com a carícia, ela levou a mão ao cabelo impecavelmente preso, o homem perturbava‑a demasiado: — Com que frequência tem o costume de se ausentar de casa? Sei que é muito dedicado ao trabalho. Afonso recostou‑se na dura cadeira de madeira, encantado com a mudança de assunto: — Demasiadas vezes, antes não havia motivos para voltar, é uma casa demasiado grande para um homem só. — Não tem por hábito usar a mansão? — Tenho uma pequena casa na Vila, poupava assim o desgaste de uma penosa viagem de regresso a uma casa vazia. — Uma casa na Vila? — repetiu lentamente. Também o pai tinha uma casa na vila e ela sabia perfeitamente a finalidade dela. O marido sorriu e um leve embaraço encheu os olhos castanhos: 41


— Também — confessou com um sorriso malandro — como todos os homens, tenho necessidades. Inês mordeu o lábio para não tecer a sua opinião a esse respei‑ to, mais uma regalia só atribuída ao género masculino, em nome dessas necessidades os homens colecionavam mulheres sem remor‑ sos. Pela primeira vez na vida, sentiu o gosto amargo do ciúme, sabia que era um sentimento disparatado e sem sentido, era uma realidade a existência de amantes na vida de todos os homens. Disposta em não ocupar a mente com situações desagradáveis, resolveu mudar de assunto: — Dizem que a propriedade é um paraíso na terra. — Sim, é belíssima. — Como é a mansão? Novamente o olhar dele endureceu, mas desta vez o sorriso manteve‑se: — Não tenho palavras para a descrever com justiça. Mais um terreno perigoso pensou, Afonso era um homem ro‑ deado de areias movediças. — Diga‑me, pelo menos que há um riacho, já sabe que ado‑ ro banhar‑me — afirmou num tom jovial e com uma ponta de ironia, ansiosa por anular a tensão. Afonso sorriu e a imagem da esposa com água até ao joelho, o vestido ensopado colado ao cor‑ po, ocupou‑lhe a mente: — Temos um lago por perto, um pouco profundo em certas zonas, porventura sabe nadar? — Sei chapinhar. Riram‑se divertidos e o jovem coração feminino encheu‑se de afeição, era agradável ver o marido tão descontraído e feliz, parecia mais jovem e muito, muito mais belo. Suspirou arrebatada, ele era perfeito. Nunca o imaginou assim, tão descontraído e agradável, por estranho que parecesse nem parecia filho do velho Duque, as semelhanças físicas eram evidentes, mas a atitude, o trato leve e a boa disposição eram uma característica oposta, o velho Duque era um homem sombrio e frio. 42


— Acho incrível estar a tomar uma refeição numa estalagem à beira da estrada — declarou animada. — Não compreendo a surpresa, tínhamos que parar e cear em um algum lado. — É a vossa atitude que me intriga, o meu pai jamais se apearia num local como este, depreendo que não partilha dos mesmos preconceitos que o meu pai, ou o seu. Afonso contraiu o maxilar e apagou o sorriso, o ambiente ar‑ refeceu e Inês lamentou o infeliz comentário. Estava enganada, Lorde Afonso Vale Ribeiro não tinha apenas alguns assuntos proi‑ bidos, ele era uma autêntica ilha rodeada de marés vivas. Depois da refeição, desejou ter trazido um livro para se distrair, sem o ritual da refeição a distraí‑los, os minutos custavam a passar. O marido manteve‑se em silêncio e não procurou iniciar novamente conversa. Estava mais uma vez aborrecido sem ela saber porquê. Inês permaneceu no seu lugar, sem coragem para o encarar, seria mais sensato optar por passar despercebida, mas à medida que o tempo passava, mais impaciente e resmungão o marido ficava, começou a implicar com o estalajadeiro, com os ruídos vindos da outra sala, enfim, com tudo, por isso, foi com verdadeira exultação que o ouviu ordenar o prosseguimento da viagem: — Temos um longo caminho pela frente — comunicou sem calor na voz — já perdemos muito tempo. Inês afastou‑se da mesa e seguiu‑o para fora do estabelecimento. Ele mal olhou para ela, parecia que preferia esquecer que ela es‑ tava ali. Uma chuva miudinha começou a cair e o criado acorreu para juntos dos amos cobrindo‑os com um enorme chapéu de chu‑ va. O tempo tristonho acompanhou‑os por um longo período, Inês fez a vontade ao marido e passou o resto do caminho a desfrutar da bela vista, nem por um único momento procurou o seu olhar. Estava encantada com o que via, sentia‑se livre a olhar através janela da carruagem, uma vasta paisagem por explorar. Durante anos só conheceu a propriedade do pai e agora tinha um mundo novo para conhecer, apreciava longas e revigorantes caminhadas. 43


Segundo opinião de terceiros Vale Ribeiro era deslumbrante, pro‑ pícia a passeios. Desejou secretamente ter Rosália ao seu lado, não por ser hábito, mas sim por adorar de facto a presença da amiga. A solidão dos futuros passeios não a incomodava tanto como o saber do triste destino da amiga, isso sim pesava‑lhe no peito. Estava só, e Rosália também. Um ligeiro movimento despertou Inês do seu estado de sono‑ lência, o marido examinava‑a pormenorizadamente. Sentindo‑se incomodada com tamanha avaliação, Inês observou‑o também, estava agradavelmente recostado no assento, tinha um olhar sere‑ no e amistoso. O marido sorriu, parecia apreciar a atenção dela: — Como foi a sua infância? Um sorriso trocista brincou nos lábios femininos. — Pensei que o senhor estava ao corrente de tudo. Afonso não gostou de ser provocado, mas sorriu fascinado, con‑ tinuava a responder ao marido, que ousadia, parecia adorar en‑ frentá‑lo. Sim, gostava dela, era decidida e firme, bela e apetecível, sensível e calorosa. Estava louco por conhecê‑la melhor: — Ainda assim, conte‑me. Inês virou o rosto para o exterior e deixou a mente recuar al‑ guns anos. — Tive uma infância muito só — a voz era suave e agradável — o meu pai sempre foi um homem rígido, e depois do acordo tornou‑se completamente controlador. Inês não conseguiu disfarçar a dor na voz. — Compreendo‑a perfeitamente, mas tem uma irmã e outros familiares, nunca esteve só. Afonso sabia o que era viver isolado, sem uma base familiar que o apoiasse, ignorado, exposto aos dissabores de uma vida sem regalias nem proteção. Inês inspirou fundo, desabafar com o ma‑ rido revelava‑se tranquilizador: — Alice, a minha irmã mais nova sempre foi uma criança ca‑ lada e é grande a nossa diferença de idades, não somos muito che‑ gadas e devo confessar que durante anos nada fiz para incentivar 44


uma aproximação mais profunda — suspirou — por puros ciúmes confesso, gostava de ter tido o carinho que o meu pai tinha com ela, comigo ele sempre foi tão distante. O marido compreendia perfeitamente, também ele sabia o que era ser preterido. — Lamento, julguei que passaria a viagem a secar lágrimas nostálgicas, vejo agora que estava enganado. — Não está enganado, senhor, trago comigo boas e saudosas recordações, amo e sei que sou amada por muitas pessoas, ainda que não partilhemos do mesmo sangue. O desprendimento fami‑ liar foi de algum modo benéfico, uma vez que encorajou o meu desejo de desposá‑lo. Afonso encarou‑a desorientado. — O que ambicionava, liberdade? — Ser senhora do meu destino — confessou de coração aberto. Afonso soltou um riso trocista: — E desde quando uma mulher casada o é? — Não ambiciono pôr em causa o seu ascendente sobre mim, senhor — respondeu ressentida — mas com o casamento a mulher adquire certos direitos. O marido fitou‑a longamente e soltou outra gargalhada sarcás‑ tica, muito se enganava a esposa se acreditava que ele seria um desses maridos fracos e permissivos, que eram dominados pelas esposas. Do pouco tempo que esteve com Inês compreendeu que a jovem era obstinada e de pensamento libertino, mas até que ponto? Era só o que lhe faltava, desposar uma liberal, não era um homem tirano, mas não aceitaria faltas de respeito. Depressa o sorriso masculino murchou: — Acredita realmente nisso, nos direitos da mulher? Inês avaliou o homem à sua frente, estava nervoso e preocupa‑ do, resolveu não avançar com a questão, tinha‑se explicado mal não lhe pareceu a melhor desculpa, as suas crenças nada tinham a ver com o que se passava naquele momento: 45


— Não me iludo ao ponto de debater consigo o ideal feminino, falo de situações tão banais como a escolha dos criados, de um vestido ou de um parceiro de dança. — Até que ponto se sente subjugada? — perguntou. — Até hoje, completamente. Inês fechou os olhos, agora sim tinha ultrapassado os limites, esperava que ele tivesse compreendido que se referia ao passado. Recordar a infância doía, a sua vida foi sacrificada para que outros membros da família pudessem resolver os seus problemas, para eles Inês não passava de um peão num jogo muito particular. Agora tinha à sua frente o marido escolhido pela família, não era caso único sabia disso, mas ao contrário da maioria só conheceu o es‑ poso no altar, e agora pertencia‑lhe inteiramente. Ele nada teria que fazer para a encorajar o seu afeto, a alegria da sedução estava fora do seu alcance, roubaram‑lhe esse direito. — Tudo pelo que passei foi para o servir, senhor, para não o envergonhar perante ninguém, aprendi tudo o que uma Dama deve aprender, por isso nada lamento — mentiu. Afonso tomou‑lhe as mãos. Inês fitou‑o, tinha compaixão no olhar e vontade de a compreender: — Não estou preocupado com o seu desempenho, tenho a certeza que estará à altura, mas fale‑me do seu passado. Na boca desenhou‑se um sorriso encorajador, sentiu‑se leve, pronta para revelar antigas angústias, medos, mas conteve‑se, o marido ainda lhe era estranho: — Só os pensamentos eram exclusivamente meus — declarou num fio de voz — tudo o resto era imposto, e objeto de avaliação, a cada passo dado ouvia uma censura, um reparo. Maldição, acabara por se expor em demasia. Sentindo a dor latente na sua voz, Afonso aproximou‑se e abraçou‑a. Inês pou‑ sou a cabeça no duro peito do marido, não queria chorar, não ia chorar. Deixou‑se ficar naquele abraço acolhedor e confortável, sentindo‑se pela primeira vez em anos acarinhada. Afonso afa‑ gou‑lhe o cabelo, beijou‑lhe a testa, Inês nunca fora apresentada 46


à sociedade, desconhecia a adrenalina de participar num baile, de ser cortejada e de ser convidada para dançar. Inconscientemente o ego dele inchava, tinha nas mãos um diamante em bruto, seu, de mais nenhum homem. — Minha doce Inês — murmurou — quero‑a livre e feliz, poderá dar todos os bailes que assim desejar. Prometeu e arrependeu‑se logo, não era homem que partici‑ passe nas atividades sociais, em bailes e eventos. Não era grande apreciador de conversa fútil, galanteios, cerimoniais e mexericos, mas tinha acabado de autorizar a organização dos bailes que ela quisesse. O coração de Inês disparou no peito emocionado: — É muita gentileza da sua parte, senhor — agradeceu num fio de voz emocionado. — Afonso, para si sou Afonso, não sua senhoria, nem senhor, apenas o meu nome. Mesmo em público. Inês nem queria acreditar, o futuro Duque de Vale Ribeiro não se regia por normas convencionais. Na igreja parecia tão autoritá‑ rio, tão ciente do seu poder, exigindo respeito, e agora estava tão condescendente. Não se lembrava de algum dia a sua mãe tratar o pai pelo nome. — Não, Inês. — Interrompeu‑a como se lesse os seus pensa‑ mentos — não sou uma pessoa benevolente. Acariciou os braços nus com movimentos suaves, aquecendo‑a. — Não conheço o perdão — a mão forte apertou o frágil braço — não caia no erro de um dia suplicar por ele. Inês gelou por dentro, a mensagem foi recebida e compreen‑ dida, Afonso não abdicava dos seus direitos, apenas facilitava em questões de pouca importância. Estaria para sempre ligada a esse homem, mas nada sabia sobre ele. Tinha o poder de a aquecer com um simples toque e de a congelar com a voz. De repente a carícia que recebia deixou de a aconchegar e Inês tremeu de frio, Afonso esticou o braço para alcançar a manta que se encontrava dobrada no assento em frente deles, tapou‑a e Inês deixou‑se cobrir. 47


— Ainda faltam alguns quilómetros — comunicou ao fim de um longo período de silêncio— deseja que paremos um pouco? Inês meneou a cabeça negativamente. Estava cansada, queria de facto esticar as pernas, já estavam em viagem há muito tempo, mas sobretudo o que queria era chegar ao fim e descansar: — Estou desejosa de chegar a casa. Estava preparada para fazer da propriedade dos Vale Ribeiro a sua casa, seria seu dever cuidar, organizar e estimar toda a me‑ cânica daquela estrutura viva, mais de cinquenta criados ao seu dispor, levaria dias até os conhecer a todos. Mas tudo faria para se sentir em casa. De súbito, uma pontada de nostalgia atingiu‑a de forma aguda, sentiu a falta dos seus únicos e verdadeiros amigos, de Rosália, sua grande amiga e criada de quarto, conheciam‑se desde tenra idade, Rosália era cinco anos mais velha, era os seus olhos e ouvidos para o mundo exterior, registava e descrevia tudo ao pormenor, nada passava despercebido à jovem moça. Tinha que a resgatar, Rosália não merecia tal futuro. Em breve falaria com o marido e suplicaria por ela. O abraço aconchegante e as leves carícias levaram a melhor sobre o corpo cansado. Inês adormeceu, a sua mente voou para tempos felizes, em que lhe era permitido ser criança, relembrou brincadeiras passadas, zangas antigas, conversas à luz de velas, confidências trocadas, choros e alegrias partilhadas.

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