GIORDANO BRUNO – o filósofo errante Filósofo polémico e, sem dúvida, notável hermetista, Giordano Bruno é, por vezes, referido como astrónomo e matemático, embora não seja considerado por muitos investigadores um verdadeiro cientista, no sentido atual do conceito. O seu contributo para o despertar intelectual da Europa partiu de uma das mais estimulantes ideias do Renascimento, isto é, a existência de um universo infinito, povoado por uma multiplicidade de sistemas siderais, nos quais existiria uma infinidade de estrelas e planetas e, provavelmente, vida inteligente e inumeráveis mundos habitados. Hoje, o filósofo errante, enaltecido por vezes como um mártir do conhecimento, está a ser redescoberto como símbolo de um pensamento moderno, criativo e interdisciplinar. Para muitos, no entanto, não passou de um ocioso, de um filósofo mediano ou de um artista marginal, não merecendo ser considerado um pensador científico. Contudo, não há dúvida de que foi um pioneiro. A História far-lhe-á justiça.
Carlos Marques Simões
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Giordano Bruno O filósofo Errante
Carlos Marques Simões. Atualmente é Professor Coordenador aposentado da Universidade do Algarve e Presidente do Conselho de Fundadores do Instituto Giordano Bruno. Licenciou-se em psicologia clínica pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada e, entre 1981 e 1983, residiu na Bélgica, onde concluiu uma pós-graduação em psicologia do desenvolvimento na Universidade Católica de Lovaina. Em 1994, doutorou-se em psicologia da educação na Universidade de Aveiro. Desde 1990, exerceu funções docentes e de investigação na Universidade do Algarve, tendo sido autor de cerce de duas dezenas de publicações pedagógicas.
Carlos Marques Simões
Giordano Bruno O Filósofo Errante
GIORDANO BRUNO
O Fil贸sofo Errante
FICHA TÉCNICA Edição: Vírgula Título: Giordano Bruno – O Filósofo Errante Autor: Carlos Marques Simões Capa: Sítio do Livro Paginação: Paulo Silva Resende 1.ª edição Lisboa, dezembro 2011 Impressão e Acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-8413-49-9 Depósito Legal: 335755/11 © CARLOS MARQUES SIMÕES Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt
Carlos Marques Sim玫es
GIORDANO BRUNO
O Fil贸sofo Errante
Para a minha mulher, Helena, e para a minha filha Rute Sem elas, este livro nĂŁo teria sido possĂvel.
“(…) Nasce e vive un uomo, lotta e muore, cosi per questo (…)” Le grida di Giordano Bruno di José Saramago
ÍNDICE PREÂMBULO (advertência ao leitor)
13
INTRODUÇÃO
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DO NASCIMENTO À HERESIA Os primeiros anos Chegada a Nápoles A vida no convento Os estudos filosóficos Os conflitos e a fuga
25 28 31 35 40 42
DA ERRÂNCIA À PEREGRINAÇÃO O esotérico norte de Itália A calvinista Genebra e a católica Toulouse Da instável Paris à isabelina Londres O regresso à dividida Paris A partida para a Alemanha
45 49 55 59 72 76
DA ALEMANHA A VENEZA A luterana Wittenberg A misteriosa Praga A liberal Helmstädt A humanista Frankfurt O regresso a Itália
79 82 84 89 91 94
DA PRISÃO À MORTE A traição de Mocenigo A Inquisição Veneziana Os processos do Santo Ofício As acusações de Belarmino A condenação à morte
97 99 100 103 106 109
QUADROS
113
FONTES CONSULTADAS Bibliografia Netgrafia
115 115 117
. PREÂMBULO , (advertência ao leitor)
Este livro não ambiciona ser um trabalho de âmbito histórico, filosófico ou esotérico; propõe-se apenas, através de uma síntese clara e elucidativa, evidenciar e divulgar algumas facetas da controversa vida de Giordano Bruno. Contudo, ao simplificar-se toda a informação utilizada, não se evitou um indispensável rigor; por exemplo, superando contradições manifestas entre as diversas fontes consultadas. Não tendo sido possível nem desejável realizar um estudo académico, procurou-se, no entanto, não desiludir um público mais informado e corresponder, na medida do possível, às suas expetativas. Por outro lado, no sentido de facilitar a leitura, evitou-se incluir referências bibliográficas; com o mesmo objetivo, optou-se por inserir quadros ilustrativos sobre os personagens, as instituições e os
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acontecimentos abordados. Esta solução, naturalmente dispensável para muitos leitores, poderá, todavia, para outros, ter utilidade pedagógica. A justificação para se publicar um relato biográfico sobre esta figura do Renascimento assenta em duas razões principais: escassez de obras no mercado editorial sobre o assunto e origem do contexto onde surgiu este escrito, o Instituto Giordano Bruno – Centro Interdisciplinar de Ciências e Artes, de cujo Conselho de Fundadores o seu autor é presidente. Para além destes aspetos, é útil salientar que, para a elaboração deste livro não se desprezou o recurso a obras ficcionais, de modo a produzir uma narrativa que, sem trair a realidade, fosse mais estimulante. Evitando-se uma visão redutora e simplista do comportamento do filósofo, procurou-se alcançar o seu olhar sobre a época e o mundo em que viveu. Porém, a trama da sua existência escapa muitas vezes ao rigor da pesquisa. Importa também sublinhar que este texto – embora seja uma simples compilação de ideias e factos, construída a partir das fontes confrontadas – procura não cair no erro de analisar a temática de uma forma eclética, sem ousar assumir um ponto de vista pessoal, mesmo que este, na esmagadora maioria das vezes, possa surgir de forma implícita. Às dificuldades invocadas, outra se acrescentou: a impossibilidade de consultar alguns dos ensaios mais significativos sobre a obra deste filósofo italiano, tais como, por exemplo, “Giordano Bruno and the Renaissance Science” de Hilary Gatti e “The Art of Memory”
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e “Giordano and the Hermetic Tradition”, ambos de Frances Yates. Finalmente, é necessário referir que o título adotado, “Giordano Bruno – o filósofo errante”, talvez ambíguo, não foi a primeira opção, pois que o inicialmente escolhido, “Giordano Bruno – filósofo do amor e da luz”, hipoteticamente polémico e ambicioso – o qual havia sido inspirado no prefácio do romance “Giordano Bruno – o homem de fogo” de Francesca Y. Caroutch – não pareceu ser adequado às limitações do trabalho produzido, por este já não corresponder aos objetivos formulados quando do seu prévio delineamento. Nota: O autor agradece todas as críticas, opiniões ou sugestões dos leitores. Qualquer delas pode ser enviada para um dos seguintes e-mails: cm-simoes@hotmail.com ou instituto.giordanobruno@gmail.com
“(…) não invejo os escravos na liberdade, os infelizes no prazer, os miseráveis na opulência e os mortos na vida, pois eles, no próprio corpo, possuem os grilhões que os oprimem; no próprio espírito, têm o inferno que os amaldiçoa; na alma, o erro que os adoece; e na mente, a letargia que os assassina (…). Giordano Bruno
. INTRODUÇÃO , Filósofo polémico e, sem dúvida, notável hermetista, Giordano Bruno – que se designa a si-próprio como Bruno de Nola ou Nolano – é, por vezes, referido como astrónomo e matemático, embora não seja considerado por muitos investigadores um verdadeiro cientista, na aceção atual do conceito1. O filósofo maldito, como muitas vezes é designado, é conhecido sobretudo por uma das mais estimulantes ideias do Renascimento, isto é, a existência de um universo infinito, povoado por uma multiplicidade de sistemas siderais, nos quais existiria uma infinidade de estrelas e planetas e, provavelmente, vida inteligente e inumeráveis mundos habitados. No final do século XIX, em Itália, os quadrantes progressistas redescobriram Bruno, tomando-o como 1
Segundo o blog De Rerum Natura, Bruno foi um filósofo visionário, místico até, mais do que um cientista, uma vez que na sua obra não se encontram as grandes marcas da ciência: a experimentação e a matemática.
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símbolo duma filosofia de vanguarda, apesar do carácter eminentemente místico da sua obra. Ao reconhecerem a sua contribuição para o despertar intelectual da Europa, salientaram uma expressão que o imortalizou: “libertas philosophica”, isto é, o direito de pensar, sonhar e filosofar, podendo-se imaginar que talvez tenha sido martirizado devido ao seu excessivo entusiasmo pelas ideias. Nasceu assim a lenda de um mártir da ciência, condenado por ter superado as teses de Copérnico e sugerido a ideia de um universo infinito. No início do século XX, espalhou-se uma história inacreditável: a Inquisição não teria torturado nem queimado Bruno na fogueira mas apenas uma sua efígie. Tal suposição, completamente absurda, foi induzida por um artigo de 1875 de Théophile Desdouit, no qual este afirmava não ter sido a execução de Bruno atestada senão por uma carta de Schopp – um protestante convertido ao catolicismo, presente na Praça de Fiori no dia da execução – e que a autenticidade deste único documento nunca fora demonstrada. De facto, Desdouit não só negou o suplício, mas colocou também em dúvida a própria existência dos registos do julgamento. Parece que, todavia, ignorou deliberadamente que os documentos do processo de Bruno – assim como os de Galileu que, no entanto, foram salvos – tinham sido confiscados e arrolados em Roma e transportados para França por ordens expressas de Napoleão, cujo objetivo era torná-los públicos e, na sua disputa com o Papa, utilizá-los como chantagem política. Contudo, a queda do Império impediu que isso acontecesse. Sabe-se igualmente que, em 1817, parte
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desses documentos foi destruída durante a Restauração, possivelmente porque seriam comprometedores para a Igreja Católica. As afirmações anteriores são suscetíveis de serem rejeitadas por outros motivos, nomeadamente porque, em 1940, o cardeal Angelo Mercati reuniu e divulgou algumas peças do julgamento de Bruno encontradas nos arquivos privados de Pio IX, tornando-as públicas, a fim de justificar a condenação e apoiar a atuação da Igreja Romana ao punir o “blasfemo e herético Giordano Bruno”, segundo as suas palavras. Outra afirmação de Desdouit, segundo a qual Gaspard Schopp seria o único do seu tempo a testemunhar a morte de Bruno, também não é verdadeira, pois é possível consultar um documento publicado em Roma, no mês de fevereiro de 1600, que não deixa lugar para dúvidas. Nele se diz que no Campo dei Fiori, depois de despido e amarrado a um poste, Bruno morreu na fogueira na presença dos frades que entoavam ladainhas e o convidaram, até ao último momento, a abandonar a sua obstinação, o que ele não fez “terminando a sua vida miserável e infeliz.” Para além disso, sabe-se que dois avisos foram afixados pela Igreja, em Roma, no dia dezanove do mesmo mês. O primeiro noticiava que tinha sido queimado vivo no Campo dei Fiori, “(…) aquele irmão dominicano, de Nola, herege obstinado, com a língua travada por causa das terríveis palavras que pronunciava, sem querer ouvir ninguém, nem sequer os que o confortavam (…)”. O segundo dizia: “(…) quinta-feira de manhã no Campo dei Fiori, foi queimado vivo o monge dominicano
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de Nola, aquele celerado relativamente ao qual já escrevemos no último aviso: herético, absolutamente obstinado que, por capricho, contrariou vários dogmas da nossa fé (…)”. Ressuscitada, divulgada e ampliada na Net, a mentira de Desdouit ganhou atualmente nova vida, através dos boatos daqueles seus seguidores que, dotados de uma fértil e malévola imaginação, persistem na calúnia e no erro. O caso de Bruno tornou-se uma questão política em 1930, atingindo o auge e levando à indignação os liberais italianos, quando o Vaticano, após insistentes tentativas dos jesuítas, canoniza Roberto Belarmino e, num gesto significativo, lhe atribui o título de “Doutor da Igreja”. Curiosamente, quando se discute a condenação de Bruno ou a instrução do caso Galileu, cuja responsabilidade foi também de Belarmino, a hierarquia eclesiástica prefere ater-se eufemisticamente ao título de “cardeal Belarmino”. O Papa João Paulo II “reabilita” Galileu em 1992, justificando no entanto o seu julgamento com base na existência de uma “incompreensão mútua” entre o cientista e o cardeal tornado santo. Ao distribuir a culpa pelos dois, pode-se supor, eventualmente sem qualquer razão, que o pontífice tentasse salvar a face da Igreja Católica e, sobretudo, desculpabilizar Belarmino. E quanto a Bruno? Aparentemente, esperar-se-ia que o Vaticano se debruçasse sobre o seu caso. Mas a reabilitação desejada por muitos intelectuais é, para outros, perfeitamente ridícula. Segundo estes, que
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sentido pode ter para Bruno – que deu a vida pelas suas ideias – o perdão dos continuadores das teses do Cardeal Inquisidor? De facto, não é de uma “reabilitação” que Bruno necessita: o que é preciso julgar é a intolerância e o fanatismo religioso da Inquisição. Como muito bem disse Diderot: “as linhas desenhadas com o sangue do filósofo têm uma outra eloquência.” Quatrocentos e sessenta anos após o seu nascimento, inaugurou-se, em 2008, na cidade de Berlim, uma estátua de Bruno. Esta, de estética algo discutível, mostra o filósofo de pernas-para-o-ar, o que poderá sugerir uma perspetiva diversa de olhar o mundo, o que é verdadeiro no seu caso. Também, na Praça de Fiori, em Roma, onde foi executado, existe outra estátua, erguida em sua honra em 1889. Aqui o Nolano está firmemente de pé, numa postura bem mais clássica do que na moderna congénere berlinense2. Hoje, Giordano Bruno, enaltecido por vezes como um mártir do conhecimento, está a ser redescoberto como símbolo de um pensamento moderno, criativo e interdisciplinar. Para muitos, no entanto, não passou de um ocioso, de um filósofo mediano ou de um artista marginal, não merecendo ser considerado um pensador científico. Contudo não há dúvida de que foi um pioneiro. A História far-lhe-á justiça.
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Cf. Blog De Rerum Natura
“(…) Quando me equivoco, acredito não ser intencionalmente; na fala e na escrita não o faço pela vitória em si (…) mas, por amor à sabedoria e entusiasmo pela legítima pesquisa, preocupo-me e incomodo-me (…)” Giordano Bruno
. DO NASCIMENTO À HERESIA , A cidade onde Giordano Bruno nasceu, Nola, era uma ancestral povoação de origem etrusca das mais antigas da Campânia, na Itália Meridional, situada na encosta nordeste do Vesúvio, a pouca distância de Caserta e da capital do reino: Nápoles. O imperador romano Augusto terminou aí os seus dias e Tibério, o seu sucessor, muito a apreciava. No decurso das guerras púnicas, resistiu denodadamente às hordas invasoras do general cartaginês Aníbal e, mais tarde, foi devastada por Espártaco e pelos seus gladiadores revoltados. O chefe godo Alarico também quase a destruiu, tendo as invasões de outros povos, as inundações e a peste praticamente dizimado a sua população. O reino de Nápoles foi, durante séculos, palco de inúmeras contendas dinásticas de que se destacam as que existiram entre a Casa de Anjou e a Casa de Aragão; esta, que há muito possuía a Sicília, acabou com o
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domínio francês neste reino, cerca de 1500, tornando-o mais tarde num vice-reino, quando da unificação das nações ibéricas – Castela e Aragão – sob uma única coroa: a de Espanha. Esta zona de Itália era, desde 1529, domínio do imperador Carlos V e tornara-se um baluarte contra as investidas dos mouros do norte de África. Porém, devido à descoberta de novas rotas marítimas pelos portugueses, tinha diminuído a sua importância comercial no mediterrâneo. Todavia, a meio do século XVI, o comércio florescia e os ocupantes espanhóis protegiam os nolanos, agradecidos pelo seu apoio quando da expulsão dos franceses. Mas nem sempre tal mudança lhe fora favorável: sob o reinado de Carlos V, Pedro de Toledo instalou um regime de terror. Contudo, desde que Filipe II de Espanha sucedera a seu pai, o novo vice-rei, duque de Alba, trouxera uma governação mais clemente. Quando Filippo Bruno veio ao mundo, apenas existiam uns escassos milhares de pessoas em Nola. A ameaça turca era iminente e os piratas berberes pilhavam a região e raptavam os seus habitantes para os reduzir à escravatura. Passado algum tempo quando Filippo já acedera à razão, tornou-se plenamente consciente dos acontecimentos relatados e das suas consequências para a época em que vivia. Anos mais tarde, nas semanas que se eternizavam ao longo do tempo, Filippo estudou intensamente, debruçado sobre os seus cadernos de apontamentos, durante dias e noites. Nessa altura, a sua memória já era prodigiosa e, por esse motivo, certos factos insólitos
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que se repetiam desde a infância, quando já consultava obras filosóficas, começaram a inquietar a sua mãe, mas como Filippo tinha, por vezes, um comportamento algo estranho, tudo acabou por ser esquecido no baú das recordações familiares. À medida que avançava na idade, o interesse de Filippo pelos livros começou a estiolar um pouco. Por isso, enquanto vagueava pelos campos, o jovem perdia-se nas redondezas de Nola, imerso em meditações. Finalmente, chegou o momento da partida para Nápoles. Agora outro mundo se abria à sua imaginação. Nesta cidade, Filippo voltou a interessar-se pelas suas leituras. Uma delas, a Ars Magna de Lúlio, levou-o a fazer rigorosas anotações, pensando nos futuros livros que iria escrever. A obra daquele ilustre mestre franciscano mostrava-lhe a possibilidade de libertar a filosofia da teologia. No fim da sua vida, Bruno tentaria, em vão, usar essa distinção para provar a sua inocência, recusando assumir-se como um herético. Mas agora ainda estava longe desses terríveis momentos: o seu objetivo era simplesmente tornar-se dominicano. Quando, em junho de 1566, conseguiu integrar a ordem fundada por S. Domingos, o Nolano não imaginava o que o futuro lhe reservava. Entretanto, continuava a sua busca de novos conhecimentos, apreciava a clausura, a paz que usufruía e as tranquilas orações; tudo isto o inspirava no sentido de atingir um nirvana interior. Mas não duraria uma eternidade até que fosse confrontado com as contradições do catolicismo que, verdadeiramente, nunca renegaria. Contudo, a sua
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alma de reformador impelia-o para outros voos do pensamento. No entretanto, aceitou a disciplina que lhe era imposta pelas regras do convento, embora por vezes exclamasse: “O Inferno é a desgraça da alma!”.
Os primeiros anos Decorria o ano de 1548, quando o futuro filósofo nasce, tendo recebido no batismo o nome de Filippo Bruno. O seu pai era Giovanni Bruno, um homem de armas da pequena nobreza ao serviço do conde de Caserta, e a sua mãe Fraulissa Savolino. Pouco se sabe sobre os anos da sua infância; admite-se que passaria o seu tempo frequentando a escola de campanário, percorrendo os campos vulcânicos à volta da sua terra, lendo às escondidas as versões latinas das obras dos filósofos gregos – supõe-se que era uma criança muito dotada – e assistindo às festas profanas e religiosas de Nola que mantinham reminiscências de tradições ancestrais. Desde a mais tenra idade, foi sempre acompanhado pela sua mãe – cujo nome próprio, aparentemente de origem alemã, sempre o intrigou – pois que o seu pai se ausentava durante longos períodos e raramente aparecia na residência familiar, preferindo a vida de aventureiro que levava como soldado profissional. Quando as crianças ainda mal se exprimem, Filippo compreendia já o alfabeto e fazia disso o seu jogo preferido. Insatisfeito com a sua vida escolar, logo que aprendeu a ler, a sua sede de saber tornou-se
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insaciável, o que, associado à extraordinária memória que já demonstrava, por vezes lhe dava um ar de velho erudito mergulhado nos alfarrábios. Nos anos anteriores à sua partida para Nápoles, o jovem nolano vive as repercussões que os acesos debates no Concílio de Trento causavam, constando que essas ousadas discussões sobre temas religiosos e filosóficos controversos viriam a ter notórias consequências no seio da Igreja. Por esse motivo, é possível que estes factos o tenham vindo a influenciar posteriormente quanto entrou como noviço no convento de Santo Domenico.
CONCÍLIO DE TRENTO O Concílio de Trento, o décimo nono e um dos mais importantes da história da Igreja, foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé e da disciplina eclesiásticas e discutir estratégias que fizessem face à Reforma Protestante. Este concílio foi o mais longo, o que produziu maior número de decretos dogmáticos e aquele que teve os resultados mais duradouros e profundos. Nele estiveram presentes eclesiásticos oriundos de quinze nações. Decorreu ao longo de três períodos: o primeiro, entre 1545 e 1548, em que, entre outros, se promulgaram os decretos sobre a Sagrada Escritura e a tradição e sobre o pecado original; o segundo, entre 1551 e 1552, em que se promulgaram os decretos doutrinais sobre os sacramentos, a transubstanciação, a penitência e a extrema-unção; e o terceiro, entre 1562 e 1563, iniciado já no pontificado de Pio IV, que se deteve sobretudo na promulgação de decretos necessários à reforma da Igreja Católica.
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Nesta época, Filippo dedica grande atenção à obra de um filósofo que muito o viria a influenciar: Raimundo Lúlio. Há muito tempo que mergulhara na Ars Brevis do mestre catalão; como ele, procurava uma extraordinária revelação, sonhando sobretudo em reunir as três religiões do Livro numa síntese maravilhosa. Ao abrir as portas da Arte Magna, Lúlio revelava ao mesmo tempo um método de demonstração e descoberta; sobre tabelas e figuras, os elementos do pensamento eram representados por letras e círculos a rodar, permitindo formar muitas combinações. O sábio erudito afirmava que, através desta técnica, seria possível descobrir a resposta para qualquer questão devidamente colocada; para isso, era necessário pôr em movimento as formas concêntricas, no interior das quais a solução era determinada por um pequeno número de categorias fundamentais. Ao ler tal coisa, Filippo já se imaginava a inventar um dispositivo capaz de explorar a imensidão do cosmos, conseguindo aceder através das suas combinações aos mistérios de todo o universo.
RAIMUNDO LÚLIO Natural de Maiorca, onde nasceu em 1232 ou em 1233, discípulo do médico, alquimista e astrólogo Arnaldo de Villanova, foi o mais importante filósofo, poeta e teólogo de língua catalã. Ao ter visões de Cristo, converteu-se ao cristianismo, em 1263, e deixou a vida de casado e a corte para se dedicar à evangelização dos infiéis muçulmanos. Pensa-se que foi lapidado no norte da África em 1316, sendo um dos beatos da Igreja.
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Escreveu em latim e árabe e foi o primeiro autor a utilizar uma língua derivada da latina para expressar conhecimentos filosóficos, científicos e técnicos; foi também o criador do catalão literário e o seu primeiro novelista. No seu manual - Ars Magna – e em numerosas obras que escreveu, antecipou muitos conceitos, descreveu estágios do desenvolvimento do entendimento e da compreensão e apresentou o conhecimento como algo que é constituído por princípios simples convergindo para uma integração numa única unidade.
A arte combinatória era semelhante à arte da memória. Há muito tempo que Filippo se habituara a compreender as ciências sem olvidar os seus conteúdos, bem como a dominar a maneira segura de dissertar de improviso. Aprendera tudo isto através do estudo da arte luliana, mas queria superar o mestre desenvolvendo artificialmente o registo das informações.
Chegada a Nápoles Aos catorze anos, Filippo, achando que os mestres da sua região já nada tinham para lhe ensinar, insiste com os seus pais para que o deixem ir para Nápoles. Estes, embora contrariados, porque preferiam que ele ficasse mais próximo do lar, acabam contudo por aceder. Em 1562, Filippo chega a esta cidade para estudar humanidades, lógica e dialética. Nos anos seguintes, fazendo progredir exponencialmente o seu saber,
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dedica-se a ler, de uma forma desordenada e por vezes caótica, muitas obras dos autores clássicos e dos escolásticos, além de notórios textos ocultistas, como o Corpus Hermeticus e outros escritos recentes como os de Pico Della Mirandola, que um dia escrevera “(…) minha ciência nos traz mais provas da divindade de Cristo do que a magia e a cabala (…)”. Neste período da sua formação académica, o jovem nolano embrenha-se na análise de muitas obras eruditas como as de Platão e as dos autores neoplatónicos, muito difundidas na Itália do início do século XVI, assim como de certos postulados sobre filosofia e teologia, introduzidos, no final do século anterior, por Marsílio Ficino e por outros seus contemporâneos. Porém, talvez a mais relevante tenha sido a do hermetismo, pelo qual Filippo foi especialmente atraído.
HERMETISMO O hermetismo refere-se ao estudo e à prática da filosofia hermética – que inclui o conjunto dos segredos revelados pela antiga religião egípcia do culto ao deus Toth, escriba dos deuses, inventor da escrita e patrono de todas as artes e ciências, mais tarde identificado pelos neoplatónicos com o deus grego Hermes Trismegisto (“Três-Vezes-Grande”). Os principais escritos herméticos são a Tábua de Esmeralda e o Corpus Hermeticum, os quais incluem uma coleção de textos gregos; para além destes, existem outros de tradição popular, relacionados com a astrologia, a magia e a alquimia. Estas obras tiveram grande influência na época do Renascimento, quando foram redescobertas por muitos ocultistas e humanistas como, por exemplo, Cornélio Agripa, Paracelso,
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Giambattista Della Porta, Marsílio Ficino e mesmo Giordano Bruno.
Apesar dos interessantes estudos em que se ocupava, o ambiente frívolo e tempestuoso da universidade não agradava ao jovem Filippo. Como os seus professores não gostavam mais dele do que os seus condiscípulos - os quais o hostilizavam continuamente, invejosos do seu talento -, só fora dos portões da academia Filippo encontrava alguma satisfação. Nessas oportunidades, quando estudava matérias menos ortodoxas junto de professores como, por exemplo, Aldo Brandati, um astrólogo hermetista de Siena que o introduziu ao estudo do tarot, Filippo sentia-se verdadeiramente feliz, embora reagisse veementemente contra a charlatanice que estas artes faziam proliferar; alguns factos, contudo, faziam-no insurgir: era o caso, por exemplo, da morte na fogueira, no Campo de Fiori – um presságio do seu futuro – de Cecco d’Ascoli que ousou fazer o horóscopo de Cristo e aí reconheceu o seu fim na cruz. Enquanto esperava pela entrada no convento, Filippo teve a oportunidade de conhecer Giambattista Della Porta. Este sábio começara a escrever aos quinze anos a sua obra sobre magia natural, onde descrevia os efeitos causados por certos fenómenos físicos e químicos, mas também algumas ingenuidades imperdoáveis. Por este e outros manuscritos, o hermetista
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fora condenado pela Igreja em 1558, mas isso não o impediu de prosseguir os seus estudos. Quando habitualmente se encontrava com ele, Filippo explicava o que esquecera e o que memorizara dos ensinamentos de Heráclito, Pitágoras, Parménides, Platão, Demócrito, Lucrécio, Plotino, Nicolau De Cusa, Telésio e tantos outros. Nesses agradáveis momentos, conversavam sobre ciência e hermetismo e Della Porta acabou por aceitar a opinião do jovem nolano para quem a magia era uma forma de filosofia operativa.
GIAMBATTISTA DELLA PORTA Giambattista Della Porta, nascido em 1535, viveu em Nápoles e faleceu em 1615. Notável erudito e inventor, aperfeiçoou a câmara escura e alegou ter inventado o primeiro telescópio, facto que reivindicou, no tratado incompleto De telescopiis, dado que morreu no decurso da sua escrita. A sua obra mais famosa, de 1558, Magiae Naturalis (Magia Natural), cobre uma variedade de assuntos, desde o ocultismo, passando pela filosofia até à matemática. Em 1586, publicou o curioso livro De Humana physiognomonia libri, onde relaciona a fisionomia humana com a dos animais. Conhecido como “professor de segredos” e como um dos criptógrafos mais engenhosos do seu tempo, Della Porta fundou a Academia Secretorum Naturæ (Accademia dei Segreti ), uma das primeiras sociedades científicas. Após ser chamado a Roma pelo Papa Paulo V, foi obrigado a dissolver esta sociedade por suspeitas de ocultismo, mantendo-se porém sempre devoto e vindo mesmo a tornar-se irmão laico jesuíta.
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Entre os múltiplos interesses de Della Porta, encontrava-se a fisiognomia; sobre esta matéria tinha uma estranha interpretação, segundo a qual dizia existir uma afinidade entre os humanos e os animais. Defendia que uma pessoa parecida com um burro, tal como ele, era medrosa e teimosa, outra, parecida com um rato, era estúpida e maldosa e, finalmente dizia que: “(…) o homem que tem ar de porco, é naturalmente um porco (…)”. Para demonstrar a sua tese, exibia retratos de ilustres personagens, comparando-os com os desenhos de animais dos quais possuíam a expressão. Filippo acabou por admitir que as analogias físicas se revelavam impressionantes. Embora nem sempre concordasse com Della Porta, o jovem nolano dedicava-lhe uma grande estima. Por isso, não se espantou quando o sábio lhe disse estar prestes a construir uma máquina que reproduzia a linguagem oral. Todavia, para grande surpresa do seu interlocutor, Filippo mostrou-se incrédulo e desconfiado: não aprovava invenções que contribuíssem para reduzir o espaço mental.
A vida no convento Durante bastante tempo, Filippo aguardou com impaciência a sua admissão nos dominicani, domini canes (cães de Deus) como o povo lhes chamava. Por fim, em 15 de junho de 1565, aos dezassete anos, entra como noviço na Ordem dos Irmãos Pregadores, no
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Convento de San Domenico Majore, onde S. Tomás de Aquino havia lecionado. Nesta ocasião recebe o hábito de clérigo e passa a chamar-se Giordano, pronunciando os seus votos definitivos no mês de junho do ano seguinte. Em maio de 1572, com vinte e quatro anos, regressa a Roma para defender a sua tese de doutoramento em teologia que incidia sobre a Summa Teologica de S. Tomás de Aquino e sobre o Livro das Sentenças de Pierre Lombard. Pouco depois, é ordenado sacerdote e celebra a sua primeira missa no convento de S. Bartolomeu, próximo de Salerno.
ORDEM DOMINICANA A Ordem dos Pregadores (Ordo Prædicatorum) ou Ordem dos Dominicanos, tem por objetivo pregar a mensagem de Jesus Cristo e promover a conversão ao cristianismo. Em 1216, foi aprovada oficialmente por iniciati va do sacerdote castelhano S. Domingos de Gusmão. Os dominicanos, inteiramente votados à pregação, missão antes reservada apenas aos bispos, são religiosos que formulam votos de pobreza, de castidade e de obediência. Para tal, devem dedicar-se ao ensino, uma vez que este será um elemento fundamental desta Ordem. Em Bolonha, em 1221, realizou-se o Primeiro Capítulo Geral da Ordem; nele foram aprovadas as principais regras, entre as quais a que exige para o desempenho de qualquer cargo a respeti va eleição. Os frades dominicanos usam um hábito composto por quatro peças, numa harmonia de cores branco e negro. De notar que o
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traje branco tradicional usado pelos Papas se veio a tornar uma regra, desde que o Papa Pio V – um frade dominicano – foi eleito.
No mesmo ano chegaram ao Papa rumores da excecional habilidade de Giordano com a arte da memória (mnemotécnica) e, por isso, Pio V quis conhecê-lo. Levado a Roma para demonstrar esta sua competência, o Nolano deixa impressionada a assistência e passa na prova que lhe preparam: recitar em hebreu algumas linhas de um salmo, escolhidas aleatoriamente. Instado a explicar minuciosamente as suas capacidades, acaba por regressar ao convento sem ter demonstrado todas as virtualidades do seu método. Esta jornada deu asas ao humor de Giordano que resolveu escrever um ensaio irónico, A Arca de Noé, dedicado ao Papa, onde representava simbolicamente a sociedade humana sob todas as espécies de formas animais e como sendo governada por um asno; obra essa talvez baseada nas recordações do seu convívio com Giambattista Della Porta. Este livro foi publicado, mas Giordano evitou enviá-lo para Roma; pensou que, certamente, ele chegaria à Santa Sé.
PAPA PIO V Nasceu em 1504, em Milão, no seio de uma família nobre. O seu pontificado durou de 1556 até à sua morte, em 1572. Depois de ingressar na Ordem Dominicana, foi ordenado padre em 1528 e nomeado Inquisidor-Mor de Paulo IV, tendo escrito uma persuasiva obra contra as heresias.
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Severo asceta espiritual, cumpriu as decisões do Concílio de Trento e reduziu drasticamente os gastos da Igreja; publicou o Catecismo Romano, ordenou o ensino da teologia de S. Tomás de Aquino, instituindo na missa a liturgia do rito latino. Beatificado em 1672, foi canonizado em 1712. Feroz combatente da Reforma Protestante, reafirmou a legitimidade e a supremacia da Igreja Católica e, na defesa de uma Europa cristã, coordenou as potências europeias até à vitória de Lepanto sobre os otomanos. Em agradecimento, instituiu a prática do Rosário. Na sua vigência, tomou medidas pontuais como mandar cobrir a nudez das figuras representadas nas obras de arte da Santa Sé e proibir os espetáculos cruéis, entre os quais as touradas.
Os estudos de Giordano continuaram até que, apesar da sua pouca idade, foi nomeado professor no convento de Santo Domenico; tendo adotado uma certa cautela, evita revelar aos seus alunos as suas conceções radicais: substituir a lógica de Aristóteles pela de Lúlio e a astronomia de Ptolomeu pela de Copérnico. Esta ideia revolucionária sobre a qual, mais tarde, Giordano haveria de refletir profundamente, não era nesta altura a sua principal preocupação, nem o momento parecia propício para grandes cogitações filosóficas. Na verdade, os dissabores quotidianos que o Nolano sofria, não auguravam nada de bom. De facto, não levaria muito tempo até que fosse obrigado a fugir, a fim de evitar um processo de heresia.
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Para compensar estas atribulações, tentava amenizar a sua vida através de breves encontros com alguns eruditos residentes em Nápoles. Um dia conseguiu conversar com Bernardino Telésio, cujos trabalhos muito apreciava, sobretudo a sua fascinante obra De Rerum Natura. O velho sábio, que Giordano considerava o melhor dos homens e o melhor dos adversários de Aristóteles, recomendou-lhe ponderação, pois bem sabia o que representava para a Inquisição a existência de mentes curiosas e heterodoxas da estirpe do jovem dominicano.
BERNARDINO TELÉSIO Nasceu em 1509 na Calábria, em Cosenza, e aí faleceu em 1588. Filósofo e naturalista, saiu da universidade para desenvolver as suas ideias científicas. Crítico fervoroso da metafísica, refutou com firmeza Aristóteles e defendeu uma ciência baseada na observação, sendo precursor do moderno empirismo. Influenciou Giordano Bruno, mas também Campanella, Gassendi e Francis Bacon. Filho de uma família nobre e muito rica, deixou a carreira universitária entrando num mosteiro beneditino onde esteve entre 1535 e 1544. Em 1553, casou-se e passou a residir na sua terra natal, onde fundou a Academia Cozentina, cujo objetivo era o estudo da filosofia natural. Após a morte da esposa, ficou com dificuldades financeiras, mas não aceitou o cargo de arcebispo de Cosenza, para o qual, em 1565, o Papa Pio IV tentou nomeá-lo. A partir de 1576, viveu ora em Cosenza ora em Nápoles. A sua principal obra De Rerum Natura Iuxta Propria Principia (Sobre a Natureza das Coisas de acordo com os seus Próprios Princípios) foi publicada em 1563 ou, talvez, em 1565.
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Os estudos filosóficos Durante os seus estudos, enquanto se debruça aprofundadamente sobre as filosofias aristotélica e tomística, acontece a Giordano um facto que nunca olvidaria. No outono de 1571, esquecido numa prateleira de tratados obscuros que nunca ninguém havia consultado, Giordano deparou com um volume de um tal Copérnico, dedicado ao Papa Paulo III, intitulado De revolutionibus orbium coelestium (As Revoluções das Órbitas Terrestres), descoberta que viria a influenciar toda a sua vida. Giordano nunca tinha ouvido falar do cónego polaco; mas logo que leu as primeiras páginas, pressentiu que aquela obra sustentava as perspetivas fantásticas que sempre imaginara, isto é, que a Terra, longe de ser o centro do mundo, girava em volta do sol. Cerca de trinta anos antes, um astrónomo desconhecido ousara imprimir uma notável evidência e apenas suscitara a indiferença geral. Mas Giordano estava inteiramente convencido de que a humanidade não estava no centro da Criação; para além disso, ele achava que a Terra era um planeta insignificante num universo infinito onde existiam infinitos mundos. Ficou também convencido que aquele homem de ciência evitara o pior, esperando pelo fim da vida para publicar o seu brilhante tratado, cujo prefácio Giordano considerava um ultraje à magnitude da obra, pois que mostrava que o seu autor não fora o mesmo, mas sim um tal Osiander.
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NICOLAU COPÉRNICO Nicolau Copérnico, um cónego católico, nascido em 1473 na Polónia e falecido em 1543, foi, entre outras coisas matemáti co e astrónomo. Durante a sua vida desenvolveu uma revolucionária teoria heliocêntrica, a qual constitui o ponto de partida da astronomia moderna. Na sua época, a Igreja Católica defendia a teoria geocêntrica de Aristóteles contradita por aquele cientista que afirmava ser o sol o centro o sistema do solar. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, após a publicação da sua obra revolucionária – “De revolutionibus orbium coelestium” (As Revoluções das Órbitas Terrestres), o seu modelo não foi combatido pela Igreja. Seriam necessários mais de sessenta anos para que ela fosse proibida, na sequência do processo contra Galileu e, possivelmente, devido à cruzada de Giordano Bruno em prol desta teoria.
Enquanto a cidade aguardava a chegada dos navios espanhóis depois da vitória sobre os turcos na batalha de Lepanto, Giordano, absorto nas suas pesquisas, lembrou-se que, para compreender aquele livro, era necessário conhecimento de matemáticas. Ele tinha estudado aquelas matérias mas sempre com grande aborrecimento: apenas uma delas o atraía, a geometria, Mais tarde, havia de aprender que para se ocupar de astronomia, não era necessário observar o céu nem perder-se em labirintos inúteis. Contudo, com a ajuda de rigorosos cálculos, verificou minuciosamente as teses de Copérnico, a fim de poder demonstrar a sua veracidade. As suas lucubrações teriam escandalizado as mentes conformistas dos
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seus confrades, mas Giordano preferia a discrição e manteve silêncio sobre a sua descoberta. Nesta altura da sua vida, em que se sussurravam notícias sobre o massacre de S. Bartolomeu que acabava de acontecer em Paris, Giordano lia as obras da Reforma que adquirira às escondidas. Ao mesmo tempo, interessava-se pelos textos herméticos: consultava tratados de alquimia de Alberto, O Grande, de Basílio Valentim e de Bernardo, O Trevisano. Também traduzia da língua original os autores árabes, os cabalistas e Cornélio Agripa. Entretanto, adquiriu discretamente muitos destes livros proibidos, sendo obrigado a ocultá-los debaixo do colchão, a fim de não ser denunciado.
Os conflitos e a fuga Durante a sua permanência no convento de Santo Domenico, Giordano, sempre impaciente com a dogmática ignorância dos seus colegas de claustro, desenvolve dentro de si uma intolerância cada vez maior face às minudências das discussões que sempre se detinham em meras subtilezas teológicas; aproveitando os debates que, por vezes, aconteciam, o Nolano põe em causa a divindade de Cristo, a Santíssima Trindade e a virgindade de Maria; para além disso, recusa-se a ter imagens de santos na sua cela. O seu temperamento e o amor pelo livre pensamento, catalisados pelas suas tendências heterodoxas, contribuem para causar graves desentendimentos,
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provocando censuras e admoestações por parte dos seus superiores hierárquicos. Tudo isto ocasiona conflitos que não demoram muito tempo a agudizar-se. Entretanto, para compensar todo este clima de querela que o aborrece, Giordano lê textos de Erasmo e de outros autores proibidos. As questiúnculas com os outros frades desencadeiam no jovem dominicano opiniões cada vez mais radicais que não tardam a alertar a Inquisição de Nápoles. Certo dia, quando numa das suas aulas, desenvolvia cautelosamente algumas das suas polémicas teses, foi interrompido por desconhecidos encapuzados que o interpelaram, declarando que os quatro anticristos eram Erasmo, Lutero, Jean Reuchlin e Lefèvre d’Étaples. À noite, alertado por este acontecimento, Giordano preparou-se para partir para a Alemanha. Reuniu todos os seus manuscritos e, num gesto inútil, corrigiu-os fazendo algumas alterações; depois, usando os seus conhecimentos de mnemotécnica, absorveu toda a informação significativa. Em seguida, tomou-os todos e lançou-lhes fogo. O Nolano já sabia que tinha de percorrer o mundo com uma memória sem papéis. Em fevereiro de 1576, tinha Giordano tinha vinte e oito anos, quando se viu ameaçado de um processo de heresia pelo Provincial da Ordem, sendo forçado a fugir do convento para escapar às acusações que eram proferidas contra si.