História de uma vida

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HISTÓRIA DE UMA

VIDA


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

Ex-Libris ® (chancela Sítio do Livro) História de uma Vida - Memórias em jeito de Autobiografia de um homem que nunca foi menino (1934-2013) AUTOR: José Alexandrino Aurélio TÍTULO:

REVISÃO:

Ana Domingos PAGINAÇÃO: Paulo S. Resende CAPA: Patrícia Andrade 1.ª EDIÇÃO Lisboa, julho 2013 ISBN:

978-989-98448-6-5 361727/13

DEPÓSITO LEGAL:

© JOSÉ ALEXANDRINO AURÉLIO PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


HISTÓRIA DE UMA

VIDA

MEMÓRIAS EM JEITO DE AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM QUE NUNCA FOI MENINO (1934-2013)



1 Nota do Autor PREFACIO

A obra está estruturada em XVII partes, cada uma trata do percurso na vida do personagem correspondente a esse período, salientando-se o cumprimento do serviço militar, parte dele no então Estado Português da Índia, mais precisamente em Goa, tendo integrado as primeiras tropas expedicionárias a entrar na Guerra Colonial, que se veio a incrementar com a invasão de Goa em 1961, ano em que se iniciaram as guerras de libertação nos demais territórios ultramarinos, começando por Angola, estendendo-se rapidamente a Moçambique e Guiné Bissau, só vindo a terminar com a Revolução de 25 de Abril de 1974 Qualquer pessoa com a idade e a vivencia do autor tem muitas coisas boas e más para contar. Nesta pequena obra citam-se algumas referentes aos vários ciclos da sua vida.

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2 Introdução NOTA PREVIA

O autor, do que aprendeu da história, lembrando-se da sua infância, constata ter assistido a situações muito proximas do feudalismo. Na sua Terra Natal, ao tempo era habito os camponeses, às segundas feiras reunirem-se no Largo do Ribeiro (Centro da Vila) e aparecerem os representantes dos Lavradores (Latifundiários) e, por vezes, eles próprios, a anunciarem o valor da jorna (salário diário), normalmente entre os 10/15 escudos para as mulheres e 20/25 para os homens. As alturas das melhores jornas eram a das ceifas e a tiragem de cortiça. No fim dos anos 50 inicio de 60, a situação começou a melhorar para essas pessoas com a emigração de muitas para as zonas de Lisboa e, mais tarde para o estrangeiro, sobretudo para França. Antes, no inicio da decada de 40, dera-se uma pequena emigração de seareiros para a zona de Samora Correia e Montijo. As primeiras pessoas a fixarem-se nesta ultima localidade tiveram origem nas que, a partir de certa altura, conseguiram emprego na CP (Caminhos de Ferro Portugueses).

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No caso do autor, os seus pais fixaram-se na zona de Samora Correia, de onde a sua irmã mais nova é natural. Foi esta geração que contribuiu para a construção dos atuais grandes Bairros de Lisboa, como os de Benfica, Restelo e Alvalade, bem como da grande urbe que envolve Lisboa, como Amadora, Odivelas, Massamá, St.º António dos Cavaleiros e muitos outros. O mesmo sucedeu relativamente a todas as atuais grandes cidades do país. Foi pensando nisto, que levou o autor a escrever estas modestas linhas, com a finalidade de levar ao conhecimento das gerações que se lhe sucederem como foi a vida da geração que, no fim da sua existência, está a ser tão mal tratada. Lembrando ainda que foi ela que participou numa guerra colonial com inicio em 1954, da que fez parte o autor, aquando da tentativa de invasão do então chamado Estado da India Portuguesa, consumada em 1961 pelo exército indiano estendendo-se a partir de fevereiro deste ano a todas as outras Colónias, com especial relevo para Angola e Moçambique, só terminando com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Esta pequena obra tem apenas como finalidade deixar um testemunho do que fez e como viveu, esta geração. O Autor

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Índice I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV XVI XVII

OS SEAREIROS (1934-1941) NA COMPANHIA DAS LEZÍRIAS REGRESSO À ATIVIDADE DE FABRICO DE TIJOLO E TELHA FABRICO DE TIJOLO E TELHA NA HERDADE DE ADEMA IDA PARA LISBOA INGRESSO NO SERVIÇO MILITAR EMBARQUE E VIAGEM PARA A ÍNDIA ESTADIA EM GOA FIM DA EXPEDIÇÃO, COM REGRESSO A PORTUGAL INÍCIO DE NOVO CICLO DA VIDA INÍCIO DA CARREIRA INSPETIVA REGRESSO A LISBOA FIM DA VIDA INSPETIVA PASSEIOS QUE REALIZOU APÓS A APOSENTAÇÃO ZÉ, O COOPERATIVISTA ZÉ, O VERSEJADOR ÚLTIMA ETAPA

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HISTÓRIA DE UMA

VIDA

MEMÓRIAS EM JEITO DE AUTOBIOGRAFIA DE UM HOMEM QUE NUNCA FOI MENINO (1934-2013)



I Os Seareiros (1934-1941) Na década de 30 do século XX, trabalhadores do Alentejo ligados à lavoura corresponderam a um apelo da Companhia das Lezírias do Tejo e Sado para se deslocarem para as suas terras situadas na zona compreendida entre Pegões, Samora Correia e Alcochete. Do distrito de Évora, nomeadamente da freguesia de Cabeção, concelho de Mora, muitas pessoas, que nas suas terras mourejavam por conta dos grandes agrários, emigraram para aquelas paragens, com a esperança de conseguirem uma vida melhor para si e para os seus. A maior parte dessas pessoas eram homens de idades compreendidas entre os 30 e 40 anos, animados de grande vontade de singrar na vida. Chegados à zona de trabalho, fixaram-se em vários pontos, conhecidos por Poceirão, Taxa Fina e Monte dos Parreiras. Esta, conhecida pelo apelido das pessoas que ali se fixaram e, uma outra de nome Pinelas, ambas oriundas de Santiago do Cacém. Cabeço da Aranha situava-se num ponto alto, a cerca de 2 km da primeira destas localidades, onde residia o guarda da

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Companhia das Lezírias, cujas funções passavam por, além de outras, vigiar a conservação das espécies cinegéticas. Aqui, construíram cabanas, com madeira, palha e buinho dos vales circundantes que, por muito tempo, serviram de sua habitação. Nestas cabanas nasceram e morreram pessoas. As cavalariças eram, normalmente, ligadas ou mesmo contíguas às habitações. No caso concreto do Zé, a sua cabana ficava a nascente de um vale, no qual seu pai fizera uma horta de onde tirava parte do sustento para o seu agregado familiar. Do outro lado do vale, na parte mais alta, ficava a eira onde se fazia a debulha do milho. Este, antes de ser debulhado a malho ou trilho puxado por muares, era descamisado por pessoal da casa e vizinhos. Contaram-lhe que uma noite, o Zé, com a idade de 4 anos, tinhase deixado dormir na eira, o que sucedia com outras pessoas, que ficavam lá toda a noite. Por volta das 3h00 da manhã, o Zé acordou e foi para a barraca, situada no outro lado do vale, tendo passado por uma vala com cerca de 3 m de largura e com mais de um metro de profundidade, que, normalmente, levava sempre muita água, por cima de uma tábua com cerca de 30 cm de largura, por onde habitualmente passavam as pessoas que iam e vinham da eira. Felizmente, o Zé passou sem novidade, mas também lhe podia ter sido fatal. Contava-lhe a sua madrinha M.M. que nesta idade, talvez um bocadinho mais novo, logo quando para lá foi, ido de Cabeção, o Zé mamava numa cabra chamada Boneca. Esta, por lhe terem tirado as crias, quando sentia o amojo cheio procurava-o, berrando, para ir mamar nela. Isto, certamente, para a aliviar do leite. O Zé ainda tem uma vaga ideia da Boneca, uma cabrinha já velha, sem chifres.

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Certamente devido à subalimentação, o Zé tinha o ventre bastante dilatado pelo que a sua mãe só lhe chamava Zé Gordo (com certeza, fruto da sua ignorância, não com qualquer sentido pejorativo, mas sim com enlevo pelo facto de o seu menino ser gordinho, sinal de que não passava fome). Nesta época, os pais, quando velhos, andavam nas casas dos filhos, normalmente um mês em casa de cada um. Uma das vezes que o pai da tia Maria esteve em sua casa seu marido, o tio Joaquim, incumbiu o sogro, senhor Aniceto, de ir guardar uns porcos pequenos, levando-os para o montado a fim de comeram bolota. Como os porquinhos corriam muito, do que se havia de lembrar o tio Aniceto que andava de muletas? Serrar uns bocados de varas com cerca cinco centímetros de diâmetro e 15 de comprimento e, quando ia com os porcos para o montado, para não lhe darem trabalho, atava-lhes os trambolhos ao pescoço. A certa altura o tio Joaquim vendo os porcos cada vez mais magrinhos põe-se em campo e descobre a marosca, retirando logo a guarda dos animais ao tio Aniceto, escusado dizer-se , o que muito lhe agradou. Este avô Aniceto tinha das boas. Uma outra dele foi , arranjar uma cana com cerca de dois metros de comprimento e com um arame em brasa furar - lhe todos os nós interiores de modo a poder deixar passar o líquido que se lhe deitasse isto, para através dela ,urinar para a rua sem se levantar da cama introduzindo, para o efeito, a cana através da parede da barraca que era feita de mato. Estes alentejanos, trouxeram para esta zona do Ribatejo os métodos de semeadura de cereais usados na sua região, relacionados essencialmente com a cultura das searas parganosas como o trigo e cevada e também, milho de sequeiro.

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As condições de exploração da terra oferecidas pela C.L eram as seguintes: a ) Cada seareiro, na área bravia, coberta de mato: estevas, rosmaninho,cádegas , urzes, algumas de elevado porte, tirava (arrendava) os hectares de terra que se propunha semear ; b) Do contrato fazia parte o fornecimento de sementes e um crédito na Caixa Geral de Depósitos destinado a custear as despesas com o pessoal nos trabalho de semear, mondar, ceifar e debulha; c) Como contrapartida , cada seareiro teria de entregar no acto da colheita à CL um X de quilos com base na produção por hectare arrendado; d) Também no fim das colheitas teriam de pagar o empréstimo contraído junto da CGD sob pena, se o não fizessem, não mais se poderem candidatar nas sementeiras seguintes. A CL calculou de tal forma as condições de exploração da terra, que poucos foram os seareiros que tiveram êxito, só tirando algum proveito os que não se consideraram escravos dos seus compromissos. Os alqueives, o transporte de adubos e do trigo para a eira bem, assim como o transporte de pessoas das terras de origem para aquelas zonas eram feitos por parelhas de muares. Só mais tarde surgiram empresas de transportes públicos de passageiros, como a Benaventense, João Cândido Belo e Martins de Évora. Do Poceirão a Cabeção, cada viagem não durava menos de dois dias, realizadas nas épocas das mondas (janeiro e fevereiro) e das ceifas (junho e julho). No Poceirão, fixaram-se os Aurélios, Brás, Bichos e Batatas. Na Taxa Fina foram os Miras, os Guerreiros, os Carões, os Saldanhas e outros. No Monte dos Parreiras, estabeleceram-se estes e os Pinelas oriundas de zonas diferentes, como atrás se refere.

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Para os trabalhos de preparação das terras, como desmouta e alqueive, os seareiros traziam pessoal das suas terras, o mesmo sucedendo para as operações de monda, ceifa e debulha. As condições de exploração eram tão desfavoráveis, como acima se diz, que levou a que poucos tivessem tido sucesso. Por isso, nos anos 1940 e 1941 começaram a debandar, fixando-se parte deles na Colónia Agrícola de Pegões, uma experiência levada a cabo nesta altura pelo Estado Novo, que, por contemplar tão poucas famílias, levou a que a maior parte dos seareiros tivesse abandonado a agricultura e se tivesse de dedicar a outras atividades, dispersando-se pelas zonas de Samora Correia, Montijo e Benavente, tendo parte regressado às suas terras de origem, completamente desiludidos com a experiência.

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II Na Companhia das Lezírias Tendo sido feita esta pequena introdução, daqui para diante passará a narrar-se, essencialmente, a vida de uma personagem real que, embora de tenra idade, viveu esta situação, que a marcou no desenrolar de toda a sua vida, e que passará a ser designada por Zé. Com a idade de um ano, em 1935, seguiu com os seus pais para as Lezírias que na altura já tinham mais outros dois filhos (um rapaz e uma rapariga, ele com onze anos e ela com cinco). Até aos sete anos viveu como os demais numa cabana com as características das acima referidas, começando logo desde muito cedo a ajudar os seus pais na apanha dos cereais e a descamisar milho na eira. Em junho de 1936, nasceu na dita cabana uma menina, aumentando a prole de três para quatro filhos. Em fevereiro de 1941, houve o maior ciclone do século tendo, o Zé, presenciado a sua fúria devastadora, destelhando barracas e barracões e arrancado árvores pela raiz, na sua maioria sobreiros. Supôs tratar-se do fim do Mundo.

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No verão de 1941, na ausência de seu pai, nesta altura preocupado com a “mudança de vida”, completamente desiludido com a de seareiro, o Zé acompanhou a sua irmã mais velha que, com uma carroça puxada por um macho, se deslocou à última seara, a fim de colher parte do pouco milho que esta tinha produzido. Esta seara situava-se na zona da Escola de Tiro (Alcochete), distante cerca de 7 km do local de residência. No trajeto, numa descida, a irmã J., para evitar que o macho caísse, colocou-se junto a um dos varais da carroça, no ponto de apoio de uma das extremidades da canga, e, com o peso do seu corpo tentou diminuir a marcha da carroça durante a descida. Nesta azáfama, descuidou-se e deixou que um dos dedos de uma das mãos ficasse por debaixo de uma das extremidades da canga e o varal, num movimento de sobe e desce, esmagou-lhe a cabeça de um dedo da mão direita. No regresso, num vale antes do Cabeço da Aranha, num dia de julho com muito calor, o Zé, a J. e o macho vinham sequiosos. Havia um poço neste vale, mas com água a cerca de 5 m de profundidade. Como tirá-la? Lembrou-se a J. de atar uma panela de barro a uma corda que trazia na carroça e, com ela, tirar água para os três. Daí, com todo o cuidado, lançou a panela ao poço que, com todo o jeito, atingiu a superfície da água. Cheia a panela, começou a puxá-la com todo o cuidado. Quando já estava quase ao alcance da mão, num movimento menos feliz, a panela bateu na parede do poço e partiu-se, ficando os três ainda com mais sede. Desesperados, iniciaram viagem rumo ao Poceirão, distante cerca de 3 km. Este foi o ponto de viragem na vida do seareiro, pai do Zé, o senhor Joaquim, assim passaremos a designar a personagem, que, completamente desiludido com a vida e sem ânimo para

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enfrentar a adversidade resultante dos maus anos agrícolas, decidiu dar outro rumo à sua vida, a de fazedor de tijolo e telha, arte que tinha antes de se tornar seareiro, embora por conta de outras pessoas.

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III Regresso à Atividade de Fabrico de Tijolo e Telha No verão de 1941, por indicação não se sabe de quem, o Ti Jaquim rumou ao Monte de Almada, no concelho de Benavente, propriedade de um tal senhor João Vicente, onde passou a exercer esta atividade. No fim do verão, os dois filhos mais novos e a mulher foram ter com o senhor Joaquim; a filha mais velha foi para Cabeção, para casa de uma tia materna e o filho mais velho, na altura já com dezoito anos, devia ter entrado na arena da vida e, por conta própria, foi vivendo como pode, até porque ele logo desde muito novo nunca jogou muito certo com o pai, sendo sempre a mãe a grande moderadora. Foi nesta localidade que o Zé, sem os seus pais saberem, se apresentou, no ano de 1942, no Posto Escolar e começou a frequentar a primeira classe. Era seu grande desejo aprender a ler, tendo, na altura própria, ido a Santo Estêvão (concelho de Benavente), com os outros meninos, fazer a prova de passagem de classe. Os seus pais não souberam da sua iniciativa de se ter apresentado no Posto, passando, a partir daí, a saber e a dar o seu inteiro consentimento.

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Aqui, em Almada, o seu pai trabalhava, no verão, no Telheiro (fabrico de tijolo e telha portuguesa) e, no inverno, por conta do dono da Herdade, recordando que, num ano, andou a arrancar cepos de árvores. Neste ano de 1942, ganhou o Zé o seu primeiro salário, 2$50/dia, a guardar carneiros. Houve um episódio que, por ser verdade, tem interesse em constar e que é o seguinte: no fim do verão de 1942, o primeiro passado nesta Herdade, quando começaram a surgir as primeiras chuvas o senhor Joaquim, sua mulher e filhos passaram a dormir no barracão de alvenaria, onde havia uma fila com cerca de 30/40 m de manjedouras, onde os bois de trabalho da Herdade recolhiam à noite e, presos, comiam a palha e o feno que lhes davam. Numa dessas noites, a mulher do senhor Joaquim acordou aos gritos, dizendo que tinha sido mordida por um rato, o que de seguida se veio a verificar, pois tinha um dos dedos de uma mão a sangrar. Ainda não foi aqui que o ex-seareiro foi bafejado pela sorte. Pelo contrário, averbou mais uma desilusão, uma vez que as telhas e os tijolos que fazia, depois de pagar ao pessoal que trazia por sua conta de junho a setembro, feitas as contas, mal lhe dava para comer, ele e os seus. Estava-se na altura no auge da Segunda Grande Guerra, pelo que os produtos alimentares de primeira necessidade eram caros e raros. Vezes houve em que a mulher do senhor Joaquim, indo-se aviar a Benavente, distante 6/7 km, a pé, de lá regressava apenas com pão e laranjas. No verão de 1943, o senhor Joaquim e a família pretenderam deixar a Herdade de Almada, com rumo a uma outra Herdade, situada na zona de Alcochete e pertencente a um senhor António Palha, onde se encontrava um primo da tia Maria, mulher do senhor Joaquim, de nome Aniceto. Para tanto, necessitava de

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transporte e, possuindo ainda a tal carroça e o macho, em poder do filho mais velho (na altura a usá-la no transporte de pedra no repavimento da Estrada da Palha, em macadame, de Porto Alto a Vendas Novas), teve de a pedir de volta. Pedida a devolução da carroça, colocou nela todos os seus parcos haveres e partiram do local onde permanecera e governara a sua vida durante dois anos, com destino à Herdade de Paul da Vala, propriedade daquele senhor Palha, da família Palha Blanco. No caminho, o senhor Joaquim parou em Benavente, onde foi agradecer ao senhor João Vicente tê-lo deixado estar na sua propriedade e dado trabalho durante os dois referidos anos. Nos faustosos aposentos deste lavrador, recorda-se o Zé, aquando da visita de despedida, de ter sido abordado por duas meninas gémeas, netas deste senhor, que, curiosas, lhe fizeram várias perguntas, tais como para onde ia (pergunta a que não soube responder, pois também não sabia). Apresentadas as despedidas, lá marcharam a caminho do seu destino, levando na bagagem um grande peru, que, visto de perto, e pela sua imponência no tempo de crise em que se vivia, aguçava o apetite a muito boa gente. Saídos de Benavente, e passando por Samora Correia, Herdades de Baracha e Adema, chegou-se, por fim, ao Paul da Vala, à herdade do primo Aniceto. Uma vez aqui, descarregouse a carroça e desengatou-se o macho, ficando a carroça com os varais apoiados na espera, a fim de a carroçaria se manter na horizontal. O peru, posto no chão devido à longa viagem, encontrava-se um tanto ao quanto atordoado, parando por debaixo dos varais da carroça suspensos pela espera. Para azar do bicho, e gáudio dos rapazes, a espera caiu e os varais apanharam o pobre peru pelo pescoço, causando-lhe morte

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quase imediata, só dando tempo à tia Maria para lhe dar um golpe no pescoço para o sangrar e aproveitar o sangue. Depois de percorrer tantos quilómetros, cerca de 40, uma cabidela de peru ao fim do dia não calhou nada mal. Estava-se na época da plantação do arroz. Como não havia dinheiro, a tia Maria pediu ao primo Aniceto para lhe arranjar trabalho na plantação, onde andavam duas das suas filhas, Ana e Maria do Rosário. Foi conseguido, tendo ido plantar arroz, tarefa que obrigava as pessoas a andarem descalças com água por cima do joelho do nascer ao pôr-do-sol. Adoeceu com febres, pelo que, depois de muito teimar devido à falta de dinheiro, foi obrigada a desistir. O Povo costuma dizer que Deus, quando fecha uma porta, não demora a abrir outra. Com provérbio ou sem provérbio, a verdade é que o primo Aniceto deu a seguinte sugestão ao senhor Joaquim: “Oh, primo Esquim! Não sei se sabes, mas os irmãos Palha, da Herdade da Adema estão, segundo se consta, a pretender construir vários barracões para celeiros, cavalariças e para alojar os gaibéus que todos os anos para lá vão trabalhar e, ainda a Praça de Touros para dar festas e tentar as garraias bravas. P’ra que não vais lá falar com eles?” O tio Joaquim era uma pessoa muito tímida, mas face à sua delicada situação, sem dinheiro, sem trabalho e com família a sustentar, lá se encheu de coragem e foi ao Monte da Adema, uma, duas, três vezes, até que conseguiu falar com os “meninos Palha” que, residindo na Castanheira do Ribatejo, na Quinta das Areias, iam umas tantas vezes por semana à Herdade. Conseguindo o contacto, o senhor Joaquim expôs aos senhores o que pretendia, ao que eles prontamente acederam, sem, no entanto, lhe dizerem: “Mas como é que vai fazer o tijolo e telha sem haver fábrica de cerâmica?” Ao que o senhor Joaquim

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respondeu, dizendo: “Os senhores não se preocupem! Preciso apenas de um local com barro, água e lenha. Se me garantirem isso, forneço-lhe todo o tijolo e telha que for necessário.” “Pois bem! Se só for isso, escolha o local e comece a trabalhar.”, disseram os senhores Palha (Carlos e Francisco). “Senhores!” – diz o senhor Joaquim, – “Há ainda uma outra coisa que lhes quero pedir!” “O que é?” “Que me adiantem dinheiro para poder pagar as primeiras duas semanas ao pessoal e, conforme o material for saindo, vou descontando.” “Está bem. Diga ao senhor António Caneca [apontador da Casa] quanto precisa, que o dinheiro lhe será entregue.”

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