Memórias no Cadeirão

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Mem贸rias no Cadeir茫o


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

Vírgul a Memórias no Cadeirão AUTOR: Margarida Pandeirada TÍTULO:

REVISÃO DE TEXTO: Adr iano do Car mo e Joana do Car mo PAGINAÇÃO: Paulo S. Resende CAPA: Patrícia Andrade 1.ª EDIÇÃO Lisboa, Maio 2013 ISBN:

978-989-8413-91-8 357658/13

DEPÓSITO LEGAL:

© MARGARIDA PANDEIRADA PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


Margarida Pandeirada

Memテウrias no Cadeirテ」o Maria de Lourdes Rodrigues

BIOGRAFIA

TEXTO ESCRITO AO ABRIGO DO NOVO ACORDO ORTOGRテ:ICO



Lรกgrimas ocultas Se me ponho a cismar em outras eras Em que ri e cantei, em que era querida, Parece-me que foi noutras esferas, Parece-me que foi numa outra vida. (Florbela Espanca)



Maria de Lourdes Rodrigues, 1958



Nota introdutória

Na sala estofada, onde os abat-jours, diversamente decorados, celebram a luz artificial, e os quadros e fotografias recobrem paredes e móveis de diferentes estilos, ergue-se um cadeirão confortável forrado a tweed xadrez. Distinta e soberanamente sentada nele, conheci no início do verão de 2011, a Senhora Dona Maria de Lourdes dos Santos Rodrigues – Lurdinhas para os familiares e amigos. Houve uma empatia imediata, sem reservas nem subterfúgios, talvez uma certa timidez da minha parte que breve se desvaneceu, pela simpatia protetora que dela, e das suas palavras, emanava. Começou a contar-me alguns das suas memórias, tão naturalmente como quem mata a sede num dia de calor. Matou a dela e a minha: a dela de relatar histórias passadas, a minha de as ouvir. Ofereceu-me e autografou um pequeno livro, editado aquando do seu octogésimo

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aniversário, que reúne alguns dos seus escritos, que intitularam Pensamentos. Durante dois dias as nossas conversas fluíram, como a água no pequeno regato que atravessa a quinta onde vive com a filha Alda, o neto Tomás e o genro Humberto – a Quinta de Santo Estevão. Ofereci-me para escrever a sua biografia e ela aceitou. Deste acordo tácito nasceu este opúsculo, escrito a três vozes femininas, onde a emoção se sobrepôs à arte e ao tempo. A autora Quinta de Santo Estevão, 13 de Fevereiro de 2013

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Prefácio Para ti, Mãe! Olho a minha filha e fico feliz. Quero-te bem, porque és minha… Hoje és filha, amanhã serás mãe. (Maria de Lourdes dos Santos Rodrigues)

Mãe, lembras-te? Foi no dia 7 de outubro de 1962, na Calçada da Ajuda, aquele dia em que grande azáfama se vivia na casa, uma alegria, um nervosismo, um entra e sai daquele prédio. Nascia eu, uma menina a quem deram, tu e o pai, o nome de Alda Antónia. Alda por causa da tia, irmã do pai, e Antónia pelo grande amor e saudade que te recordava a tua madrinha – Antónia. Mãe, lembras-te de teres dito que “já parecia ter um mês” por ser tão robusta? Olhavas-me, embevecida, e os meus olhos rasgados, que se abriam para o mundo no rosto leitoso e puro, encimado pela falta de cabelo, olhavam o

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teu rosto suave, emoldurado pelo teu cabelo farto, onde um sorriso alvo fazia promessas de amor eterno. O amor de mãe. Soltei o primeiro choro e, lá fora, todos os ruídos se calaram para que tu me escutasses e recordasses esse som, que seria o único que te chamaria a atenção nos dias que se seguiriam a este instante. Sim, eu sei, naquele dia, fui a estrela da casa: dos tios, das tias, dos primos e, claro, do pai e de ti. Mãe, as palavras que te dedico, estes pensamentos que me vão surgindo, são escassos, mas, crê-me, são de forte significado para mim. Queria conseguir transmitir, com estas palavras (falta ainda inventar as palavras que o consigam fazer), a enorme gratidão que sinto por tudo: a vida que me deste, os bons momentos e os menos bons que vivemos, e nos quais sempre te senti, incondicionalmente, a meu lado. Mãe, eu sei: sempre viveste por mim e para mim. Lembro, na minha infância, a tua presença firme e decidida. E – o mais importante – muito daquilo que hoje sou, devo-o a ti, e é o meu coração que te agradece. A ti e ao pai. Afirmo-o porque o sinto, e considero-me uma privilegiada pelos pais maravilhosos que me deram as melhores bases de formação, que me passaram testemunho dos valores que me norteiam, assim como o amor à vida, à natureza, à arte e ao trabalho que dignifica.

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Mãe, sei também que a vida não foi fácil para ti: os mesmos momentos que tiveste, bons e maus, foram também os meus. A perda do nosso herói foi um desses momentos, e eu, acompanhando a tua dor, partilhei contigo a mesma infelicidade nessa perda que nos marcou a ambas. Marido e pai, que, ao partir, deixou uma dor que nos acompanha; mas a vida continua e aquele nosso primeiro olhar, que ficou lá no passado, reflete-se agora no presente e no futuro numa força motriz que nos impulsiona para continuar, com força e coragem, a obra que ele construiu. Mantém-te, mãe, forte, a meu lado, trave mestra desta casa e dos que te rodeiam e amam. Embora eu saiba que não és essa fortaleza que aparentas ser, eu sei que, lá bem no fundo, és uma pessoa frágil, humana e sensível. Não é o colibri pequeno mas seguro e rápido no seu voar? Mãe, vou dever-te sempre a minha beleza, a mesma que em ti apreciam e admiram, não só exterior, mas também interior; o teu gosto requintado, que procura a perfeição, sempre foi uma constante ao longo da minha vida. Consiga eu alcançar, um dia, esse “sexto sentido”, característica das mulheres da família que, com o tempo, se transformou em sabedoria. A tua dedicação, por vezes em demasia, é compreensível, porque ela faz parte da tua personalidade e demonstra o carinho e o zelo que dedicas àqueles que te cercam. Mãe: sei que a solidão em que te deixou o paizinho foi, em parte, compensada por mim, e também compensada

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pelo teu neto Tomás. Sempre estive ao teu lado e nunca te deixei, dando-te o carinho, o amor e a dedicação de filha. Agora estamos mais próximas, e vejo-te todos os dias no teu cadeirão onde, quando posso, me sento a teu lado e atualizamos as nossas conversas. Mãe: apesar de, por vezes, me contrariares, és minha mãe, só minha, e serás sempre recordada e admirada pelo que foste e pelo que és. Gosto de ti, mais do que gostar, amo-te, e é isso que quero que saibas, é o que sinto e tudo o mais que a minha emoção cala... A tua filha. Alda Antónia Quinta de Santo Estevão, 10 de Fevereiro de 2013

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Capítulo I As memórias da avó Genoveva A vida é como uma escadaria, começa o primeiro degrau, a infância, uma etapa feliz. (Pensamentos de Maria de Lourdes Rodrigues)

Estamos a 26 de dezembro de 2012, o ano e o mês em que se dizia acabava o mundo, o que não aconteceu. E não parece que tenha preocupado muito as gentes, que, atarefadas já com as compras de Natal, os presépios e as decorações da data, não deram muita importância ao suposto ‘evento’. A profunda crise em que o país vive, as notícias alarmantes da subida do desemprego, a dívida crescente das empresas públicas, tudo isto ocupa as parangonas dos jornais diários e os telejornais. Na sala solarenga, com janelas rasgadas para o jardim, cobertas com um generoso alpendre, de onde se avistam

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as palmeiras, o arvoredo e o azul fresco da piscina, a Dona Maria de Lourdes, sentada no seu habitual cadeirão, folheia o jornal do dia e lê os cabeçalhos, que espelham a crise, que vai permanecer nas nossas vidas, não sabemos por quanto tempo, e os fait-divers comentados por ela e pela amiga septuagenária, a Ana Francisca, que mantém a jovialidade e a ternura dos setenta. Dona Maria de Lurdes tem 82 anos, confessa, idade que reflete ainda os traços de uma grande beleza. A sala pejada de recordações, de fotos de familiares, de objetos que nos contam histórias ao ouvido, que viveram outras crises no passado, crises económicas, sociais, humanas… E é desse passado, vivo ainda na memória, que começa a contar as histórias familiares no seu cadeirão habitual, donde enxota quaisquer intrusos que dele se apoderem mesmo que por breves momentos: “Esse cadeirão é meu”, afirma assertiva mostrando um rosto zangado, gesto que os seus lábios, ligeiramente levantados, contrariam. A palavra ‘Avó’, - talvez o rosto na sua memória - foi a primeira que pronunciou. A maiúscula foi propositada, porque é em torno desta personagem real que todas as memórias escorrem como um pequeno regato, a procurar o seu leito. E muitas das histórias que conta são relatos da avó Genoveva, “… senhora de grande porte a quem chamei de mãe, porque não conhecia outra!” “Os meus avós eram um casal que começou do nada. Era um casal muito bom e muito simpático, bondoso e

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bem formado, muito bonito. A minha avó era uma mulher muito bonita: tinha um olhar escuro e penetrante, num rosto de linhas suaves e bem proporcionadas, sempre bem vestida no seu traje belle époque. O meu avô era também um homem muito bem-parecido. Tinha um rosto alto e varonil, cujo nariz era sublinhado por um farto bigode, conforme ditava a moda do início do século XX. Diziam que era o casal mais fino que por lá havia na zona da Ajuda. Tiveram sete filhos, cinco raparigas e dois rapazes, o Carlos e o Artur, o meu pai. Duas das raparigas, uma de 24, a mais velha, a Júlia, e outra de 12, a mais nova, a Bibi, faleceram prematuramente, por esse motivo, sempre vi a minha avó vestida de preto ou roxo. A avó Genoveva tinha ficado deprimida após a morte das filhas e fechava-se muito. A menina que morreu ainda adolescente, contou-me a minha avó, estava sozinha com a criada em casa e viu um vendedor de gelados do outro lado da rua, através da janela. A menina estava com uma pneumonia. A ignorância da criada e o dito gelado, que tanto desejou, provocaram-lhe a morte. A Júlia faleceu de parto. O meu pai terminou os estudos e empregou-se num banco. Era o mais novo de todos os filhos, um homem garboso e elegante. A tia Mimi foi para o conservatório aprender música e seria a última a casar. A tia Gigi, que bordava muito bem a matiz, casou aos 18 anos com Antero,

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um oficial mais velho, Ajudante de Campo do General de Cavalaria 7. A minha tia e madrinha Antónia, depois de uma estada no sanatório do Otão, por motivos de deficiência óssea e recuperada, regressou a casa. Ainda doente, contava a minha avó, ela bordava no tabuleiro e cantava na cama. Ficou sempre solteira e dedicou-se a cuidar dos sobrinhos. Foi a outra mãe que não tive… Os meus avós tinham um estabelecimento onde se vendia leite. O meu avô comprou terras para semear trigo, e chegou a receber o diploma de melhor agricultor da região de Oeiras. Criava ovelhas e porcos e alimentava duzentas vacas leiteiras, para além dos bois que ajudavam no trabalho da lavoura. Tinha hortas e mantimentos que fornecia para a Praça da Ribeira, e ainda terrenos de pasto que alimentavam os cavalos dos quartéis. Este leite fornecia, ainda, a produção dos afamados pastéis de Belém, e os hospitais da região de Lisboa. Éramos conhecidos pela alcunha dos ‘zenidas’, cognome com que toda família foi denominada, e vinha do ‘Casal’, ou Quinta dos Zenidas, que era administrado pelo abegão. Na escola também eu era conhecida pelos ‘zenidas’. A alcunha vem do meu bisavô, porque murmurava e falava consigo próprio, ‘zenia’, dizíamos nós, quando estava arreliado. Os filhos foram crescendo. O tio Carlos, o outro varão da família, desde pequeno que não se entendia com o meu

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pai. O meu avô deu-lhe uma casa agrícola, terrenos em Sintra e enviou-lhe todas as peças agrícolas necessárias como prenda de casamento, enquanto o meu pai continuava a trabalhar no banco. Quando o meu pai tinha 23 anos, o abegão, que era o responsável pelo ‘Casal’, o capataz, como diríamos hoje, queixou-se ao avô ‘já não tenho mão’- dizia - porque o Carlos levava o que queria da casa agrícola. O Artur, o meu pai, teve que deixar o banco, com grande desgosto da minha avó, para se dedicar à casa agrícola. Recomeçava, assim, uma vida completamente diferente daquela que tinha levado até ali: do trabalho administrativo e monótono do banco, passava para a administração do árduo trabalho das propriedades da família que se estendiam desde a Outurela, Jamor e até Queluz. Com a sua pose garbosa, montado no seu cavalo negro de farta cauda, percorria as extensas propriedades e supervisionava os trabalhadores das sementeiras, principalmente do trigo, e os animais. Essa nova vida trouxe-lhe outros encantos porque, pouco depois de instalar-se no ‘Casal’, começou a namoriscar as raparigas que aí trabalhavam. Uma dessas raparigas que conheceu era solteira e muito jeitosa, e o meu pai encantou-se com ela, para grande desgosto da minha avó. Desse encantamento nasci eu. Tinha já uma meia-irmã mais velha, filha de uma senhora com quem o meu pai conviveu.

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Fui criada com os meus avós na Ajuda, em Lisboa. A minha mãe, só a vi uma vez, de passagem, já eu tinha vinte e tal anos. Recordo que era bonita. Contou-me a minha avó que, depois de eu nascer, ela, comigo nos braços, veio para Ajuda para casa dos meus avós, mas abandonou-me ainda a amamentar-me. O meu avô mandou chamá-la, mas ela voltou a fugir e nunca mais voltou. Fui criada pela minha avó, a quem chamava mãe, pois era ela a minha mãe de criação. Uma senhora com S muito grande. Quando me telefonaram a dizer que a mãe que me gerou morreu, não senti nada. Eu já tinha a minha filha nessa época. Quando me ligaram por telefone para comunicar a morte, não fui ao funeral, e respondi, a quem me informou, que não ia lá fazer nada, pois ela também nunca me tinha falado sequer a dizer que estava doente. Além disso, eu já tinha duas mães, a minha avó e a minha madrinha. Recordo ainda os berços de embalar, em ferro e em madeira, que estão no sótão da casa dos meus avós. A minha avó era uma santa, muito bem formada, meiga e benemérita. Mandava a criada, pelo portão da parte de trás, entregar o almoço e o jantar a um casal idoso. Toda a gente da travessa era pobre, mas não passavam fome pela solidariedade da D. Genoveva. O meu avó Manuel era um homem muito bem formado e que construiu um império. Morreu com 73 anos com diabetes e ureia.

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Quando o meu avô faleceu, tive um grande desgosto e ficou-me na memória o que a minha avó me disse por entre as gelosias verdes da casa: ‘Ali vai a trave principal da casa. Espero que ela não se comece a desmoronar’. Um ano após a morte do meu avô, a minha avó morreria do coração, sentada numa poltrona enquanto lia o livro ‘Bichinho de Conta’, o livro que contava a história do Marquês de Pombal, e que levava a meio. Tinha eu, na altura, dezoito anos. A minha avó fechava-se muito, mas fazia muita costura, passajava e fazia rendas. Depois das bonecas e das brincadeiras também eu aprendia renda. As duas tias que morreram, e que já referi, não as conheci. Em casa da avó ficou o marido da Júlia, a jovem que faleceu com vinte e quatro anos. Após a morte da esposa ficaram ao seu cuidado e da minha avó, duas crianças: um rapaz com três anos e uma rapariga com dois. Em 1930 nasci eu, época em que já todos os tios e tias eram crescidos e tinham as suas vidas. Estes meus primos, quando os conheci, também já eram crescidos.”

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