Memória das paisagens com gente dentro

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Alice Lázaro

MEMÓRIA DAS PAISAGENS COM GENTE DENTRO é o segundo título dos dois que constituem uma deriva à linha

ALICE LÁZARO

seguida pela autora, que se tem dedicado à escrita, a partir da pesquisa de fontes vasta produção deste género de que podemos salientar alguns dos títulos mais recentes: Luísa Clara de Portugal – A Flor da Murta – Biografia (1702-1779);

O Reinado do Amor – Cartas íntimas da Priora da

A memória tem o condão de nos mostrar o que não existe.

Estrela para a Rainha Dona Maria I (1776-1780) e A Escada de Jacob – Cartas íntimas de Soror Clara do Ss.º Sacramento (Antónia Margarida de Castelo Branco) para D. João de Sousa e outras afins (1677-1714) (todos com a chancela Chiado Editora) junta-se agora o presente livro onde a autora recupera uma via memorialista e autobiográfica. Mais informações sobre livros e autora em www.binhomirroico.com

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documentais inéditas. A uma já

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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) TÍTULO: Memória das paisagens com gente dentro AUTORA: Alice Lázaro PAGINAÇÃO:

Alda Teixeira CAPA: Nuno Remígio 1.ª Edição Lisboa, Maio 2014 ISBN:

978-989-8678-63-8 373867/14

DEPÓSITO LEGAL:

© ALICE LÁZARO www.binhomirroico.com PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

Av. de Roma, n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt

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Aos meus irmãos: Manuel José, Pedro e Maria Cecília.

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Preito de homenagem e respeito fraterno da autora a todas as pessoas, seres e situações trazidos à lembrança nestas páginas. Para sempre.

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A esfinge À entrada da aldeia fica uma pinheira-mansa que dá fé de tudo o que se passa. Lá está ela, ribeirinha à encruzilhada das valas do paul e da charneca, que se vêm fundir debaixo da velha ponte de ferro, antes de se perderem no campo e meter no Tejo. Tejo que uma criança imaginava ser um imenso tanque, todo caiado à volta, onde iam desaguar os ribeiros todos, que há no mundo. Nem sabe como é que veio ali parar, àquele sítio, estrema da charneca e da lezíria, onde se abrigam num viver antigo bordas-d’água e charnecos. Dá fé a pinheira e perdoa o abandono em que a deixaram, a partir do momento que se abriu outro caminho que arredou do pé dela quem passa. Ganhou outro sossego para recordar coisas antigas, não nega, agora, que está livre dos cachopos, que já não andam à cata de pinhas e dos adultos, alheados do quer que seja, porque têm mais que fazer.

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Veio-lhe o ensejo das lembranças de que a vozearia longínqua e a chilreada dos pássaros lhe dão conta, os únicos que a visitam, porque vêm fazer nela os ninhos. É memorável a idade da pinheira-mansa, mas não sei se ela saberá dizer, ao certo, quantos anos tem a igreja que a defronta. Mas é provável que seja a pinheira a mais velha, porque as árvores vieram ao mundo antes dos homens. Eis uma boa razão para ter confiado nela, quando me segredou os passos a dar. Era forçoso começar a contar a nossa história. É que nem ela nem eu nos podíamos dar ao luxo de mais perdas.

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Os arquivos Frente a frente e sozinha com os róis dos assentos, já gastos e carcomidos, temi e tremi. Temi que se desfizessem tanto a presilha como o couro da encadernação, mal lhes toquei. Tremi quando dei conta que segurava o peso e a leveza das vidas de dezenas de antepassados, não só meus cujas campas rasas pisara, na infância, no cemitério velho, que jazia abandonado a sul/poente da igreja, gente de quem não há já memória viva. Vieram-me à recordação as estelas das covas, dispersas, semienterradas e ocultas, onde, com alguma paciência se poderia ler ainda, nomes estranhos, cruzadas por um carreiro que encurtava caminho, ligando os quintais ao largo de Nossa Senhora dos Remédios. Estava, ainda, desprevenida da gravidade destas coisas, que se me tornava óbvia, quando o pânico tomou conta de mim e, de repente, tudo começou a ganhar sentido. Devolvi os livros e saí.

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Recobrei mais tarde a coragem, aplicando à minha tentativa a lição da Raposa, que é chegar perto das coisas, devagarinho. Com o avanço da idade, as memórias tornam-se calvários. São vias-sacras, onde é preciso pausar. É das pessoas fortes que se faz a história, porque das fracas não reza. Quem diz fracas, diz humildes, apesar de não vir ao caso discutir a contingência das coisas. Entendi que a sociedade humana, tal como a água, se cinde na sua corrida e também que o campo é tema de menos interesse e não deve alguém atrever-se a falar de tais coisas, sem cuidar primeiro do ridículo em que cai nem do fastio que causa a quem privilegia outros modos de vida. Pensando melhor, não há nada escondido que se pretenda revelar. Não se prevêem aplausos para as mesquinhas reflexões aqui vertidas. Nem os teve a gente que a pinheira-mansa conheceu. Da sua pacata terra não se contam façanhas. O mesmo é dizer que dos seus naturais não havia nada de monta a dizer. Razão talvez para nem constar do mapa. É sabido quanto a desolava terem de se resignar a este facto os que sabiam ler. Mas tudo tem vindo a mudar. Na prática, isso quer dizer que o lugar já vai tendo direito aos seus quinze minutos de fama. Daquela vez – lembra-se ela – escapou por pouco e durante uma semana falou-se daquela terra em todo o lado.

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O Tejo Sucedeu a esta minha esquecida terra ter à entrada uma pinheira-mansa e o rio Tejo a espraiar-se-lhe no horizonte. Isto bastaria para ela se tornar numa lenda. Não que, modesta, se balanceie a travar disputas para se bater com as terras que contam rios famosos no seu panorama histórico. É que este é um cenário ainda rude, onde, em tempos, as balizas eram árvores. Dizia-se… em passando os eucaliptos ou ao pé dos salgueiros… a um forasteiro que se perdia nas suas estremas. Rigorosos tratadistas, inspirando-se uns nos outros, concordam na descrição do sítio onde nasceu a pinheira-mansa, como sendo um lugar de encanto, qual milagre das águas, das quais parece ter emergido. Adiantando-se – garante um deles – a ribeira corria arrebatada de Inverno, enquanto nela se criavam barbos e fataças, a caminho de se meter no Tejo.

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Ainda a frase me ecoa nos sentidos e já sou obrigada a parar e a tomar fôlego, antes de entrar em prosas, onde o grande rio é tema. Disse quem sabe, o rio Tejo era já notícia dos gregos e na frase chã do padre-geógrafo Baptista de Castro, tanto bastava para ganhar aos maiores do reino de Portugal. E conquanto o próprio duvidasse de certas afirmações, decidira, ainda assim, relatar tudo o que sabia. O rio Tejo tinha nascente nas serras de Molina, junto da cidade de Cuenca, mas havia outros que o faziam natural de Mancha de Aragão e até das serras de Albarracín. Daí, correndo pelo reino de Castela-a-Nova e Estremadura castelhana, ia regar os povos de Zurita, Aranjuez, Toledo, Talavera de la Reyna, Almaraz e Alcântara. Sempre em progresso recebia as correntes de muitos rios, principalmente do Henares, do Xarrama, do Mançanares e do Guadarrama. Com cento e vinte léguas de jornada, por Santarém, descansava em Lisboa.1 Bendito seja um tal fraseado, que nunca deveria ser banido! Qualquer intenção de melhorar a prosa do geógrafo setecentista, só empobrece a elegância com que ele enaltece o majestoso caudal, se cotejado com as acanhadas valas que 1 Uma descrição actualizada desta matéria indica que o rio Tejo é o maior da Península Ibérica com 1010 km de comprimento, sendo a sua bacia hidrográfica inferior à do Douro e à do Ebro. O rio Tejo nasce na Muela de San Juan (serra de Albarracín) a cerca de 1 600 m de altitude, vindo desaguar em São Julião da Barra, 16 km a oeste de Lisboa, depois de banhar Aranjuez, Toledo, Talavera de la Reina, Alcântara, Vila Velha de Rodão, Abrantes, Santarém, Vila Franca de Xira e Lisboa, onde se espraia num estuário de 13 km de largura (Mar da Palha).

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vão entroncar nele, não sem cumprir o seu papel de regar e alimentar plantações e arvoredo. Descansa o corredor em Lisboa, fazendo da melhor cidade o melhor porto do mundo, quadro que o erudito padre não se esquece de aformosear, ao trazer à memória as lendárias areias de ouro, que eram a cama onde o Tejo deslizava. Mas se o caso, hoje, apenas serve de admiração ao leitor e não de testemunho, supra-se a lembrança com a notícia das copiosas riquezas que todos os anos e a fio lhe entravam pela famosa barra, nas opulentas frotas do Brasil, isto é, naquele tempo.

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Melhor, ainda, bastava ao rio Tejo para ser estimado encerrar, em si, o glorioso corpo de Santa Iria, sepultado nas suas águas, diante de Santarém! Águas que, por duas vezes, se tinham aberto, bisando o divino milagre do mar Vermelho. Aqui, o Tejo abria-se diante dos olhos incrédulos para testemunhar a verdade da sua lenda e para glória de outra santa (D. Isabel de Aragão), que logo mandou erigir em honra de Santa Iria um memorial. Porém, não era tudo. Fértil, desde sempre, é a região que o rio Tejo banha, só em azeite, chegando a vila de Santarém para prover o reino e suas conquistas e, sem exagero, podia dizer-se que a mais fértil e mais farta província de Portugal era a Estremadura, faixa de terra que corre desde a boca do Mondego até ao Tejo, correndo pela comarca de Setúbal, indo entestar com Santiago do Cacém.2 2 A designação de Estremadura remonta à época da reconquista, quando ficou o nome à região por ser a fronteira com o território ocupado pelos mouros, englobando na designação o território ribatejano.

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Bafejada da sorte era ainda esta província, por gozar do clima mais temperado e sadio de Portugal, graças à bondade dos céus, que fazia insensíveis as estações, com suave mudança, usufruía de ar puro e céu sereno e produzia nela, abundância de frutos de todos os géneros. Foi devido à fartura de água e alimento, que Estrabão deu à Lusitânia o título de feliz. Se Baptista de Castro fosse mais tardio, é óbvio que ao estilo da sua escrita, teria acrescentado a figura humana. Faltou-lhe dizer que a Estremadura, por onde corre o rio Tejo, se ergue da planura e do agreste, recriando da combinação dos elementos, indecifráveis fácies e atitudes galhardas, característica dos seus naturais. É do temperamento que se fala: do sangue que lhe corre nas veias, do alongar da vista, do perscrutar dos sons e do latejo da vida. A alma do ribatejano ecoa e palpita de tal modo nos seus gestos, que fazem lembrar os acordes andaluzes de uma goyesca. Patenteada que fica a admiração do ilustre oratoriano pelos autores antigos e a de quem escreve, pelo estilo dele, fica mais viva esta evidência, quando afloramos o tema onde ele discorre acerca dos achados romanos, abundantes nesta região do Tejo. A memória da pinheira-mansa é também a da ponte de ferro, tão imensa, quanto a dimensão das recordações da infância. A velha ponte revezou, uma sua avoenga, talvez de madeira ou, quanto muito, de cantaria, coisa que os vivos ignoram.

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Face às grandezas da antiguidade, esta nossa ponte perdia qualquer paralelo. A acareação com outras, deixa-a ficar mal. Mas o que é que se pode dizer, senão exaltar a sua grandeza, quando ela é que era o limes das nossas aventuras, que é como quem diz, passar ou não passar, além da ponte de ferro? Mas não é por causa do seu pudor que se deve deixar de falar das pontes e caminhos que, antes de nós, ali existiram. Tomemos como válida a notícia prévia e sumária das vias militares e pontes romanas, conforme saiu da reflexão do nosso padre-geógrafo.

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A maior obra pública – recorda ele – mais útil e magnífica, em que os latinos se mostraram soberbamente famosos, foram as vias militares. Corriam elas desde os fins do Ocidente, que era a Lusitânia, até além da Babilónia Oriental e de Norte a Sul, desde a Escócia até à África. Num crescente contínuo – citando Plínio – iam dar todas as estradas ao meio da maior praça de Roma, a do Coliseu, onde se erguia uma coluna dourada, umbilicus urbis ou militarium aureum, ali mandada erguer pelo imperador Augusto a fim de aferir as distâncias do seu império. E assim, ficava também a ignota terra da pinheira-mansa (mesmo sem saber) ligada ao centro do mundo, cumprindo o ditado, todos os caminhos vão dar a Roma. Rompiam as vias romanas por penhascos e rochedos e fráguas de montanhas e vales, atravessavam ribeiras e rios das maiores enchentes, ultrapassados por soberbas pontes, a levar de vencida, epicamente, as dificuldades da aspereza, para que

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os viandantes, fosse a pé ou a cavalo, pudessem transitar, achando mais branda a jornada e menores os estorvos.

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Sugerimos aqui uma paragem para meditar sobre os incómodos que arriscaria o nosso ilustre guia, se se animasse a viajar ou a confrontar a realidade que o cercava, com as clássicas descrições da sua erudição. Vai mais longe e mais fundo o seu assombro, como quem pretende despertar idêntica atitude no leitor, ao afirmar que Portugal participava do legado grandioso e da magnificência de tais obras latinas, de que apenas restavam vestígios e ruínas da menor parte delas, porque enfim, o tempo tudo destrói e consome, para que os homens se desenganem e não se queixem da brevidade da vida, pois também as pedras morrem. Das grandezas romanas, sobre as quais discorre, traz a lume o itinerário reformado de André de Resende. Sigamo-lo, que vale a pena. Visto que da Lusitânia não se saía para lugares do império romano, por terra, senão através da vizinha Espanha, vagueie-se, ao menos, mentalmente, até às actuais fronteiras, pelas vias que nos legaram a engenharia e o pragmatismo romanos. Escolha-se a que passava pelas bandas da pinheira-mansa, sobre a qual não há dúvidas e que Baptista de Castro já acreditava ser a que saía de Lisboa para Mérida e designava como a outra daquelas vias [romanas] mais bem examinada. Chama-lhe o erudito padre a estrada real, que no século XVIII partia de Lisboa, por Sacavém, aonde outrora tinha existido uma ponte da qual, por volta do ano de 1570, se via

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conservados alguns vestígios, certeza que garante, baseado em Francisco de Hollanda, capítulo VII do seu Tratado. De Sacavém a estrada ia a Povos e daqui a Santarém, onde havia sobre o Tejo outra ponte, não longe de Almeirim, sobre a chamada ribeira de Alpiarça. Andava perto da Estalagem da Vendinha ou das Mestas, corria pelo canal da Água Branca, ia ao Padrão, ao Casal do Xou, a Ponte de Sor (onde se via ainda um arco sobre a ribeira) e daí a três léguas atingia a ponte de Vila Formosa, com os seus grandes arcos e pela Torrejana alcançava Alter do Chão. Daqui, ia contornar as vinhas de Assumar e passando à ponte de Arronches, desembocava, finalmente, no termo de Badajoz.

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Neste tão claramente visto, que parece aferido por ele, o nosso autor entra a falar das pontes que o impressionavam, ainda, na região de riba Tejo. Uma delas era a que sobre este rio o imperador Trajano mandara erguer, na comarca de Idanha-a-Velha (Norba Cesarea), a qual os mouros apelidaram de Alcântara. A outra era a que havia, não longe de Santarém, a cujas ruínas se referia Francisco de Hollanda no século XVI, nas Junqueiras, onde chamam a Terruja. Magnífica, ainda, era a que ficava acima de Abrantes. À semelhança do autor setecentista – cuja preferência vai direitinha para as coisas romanas, como se vê nos seus mapas e roteiros – levados pela mesma paixão, os hodiernos continuam a buscar achados, nesta região. Esta é a boa razão por que de há um bom par de anos para cá, a pinheira-mansa tem presenciado a invasão pacata da sua terra, casais e cercanias,

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pelos devotos amadores que jubilam, com bem fundadas suspeitas. É que há notícia certa de se ter encontrado no campo da Trava uma ara em calcário (material ignorado na região), com uma fórmula rara de inscrição, em honra de um varão ilustre, nascido para o bem da república. 20

Catalogado e tido como outro importante sinal da via Olisipo-Emerita, por Scallabis é o marco miliário erigido ao Invicto Augusto Pontífice Máximo Tribunício Potestate. Estas miudezas nem por isso deixam de ser um testemunho bastante valioso, que recoloca no poder do mundo antigo, este torrão decantado.3

3 Matéria de que dá conta o livro Vila de Rei com Vale de Cavalos – A charneca, Edições Cosmos, 2009.

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A lezíria A generosidade de que esta terra é dotada, ao mesmo tempo que permite tê-la como dádiva do Tejo, leva-nos a admitir que a exploração económica que daí advém, não sofre grandes quebras, qualquer que seja a época de que se fale. A proximidade e a parcial navegabilidade do rio fazem crer – e muitos já o escreveram – na afluência de povos que buscavam na região farta matéria-prima, havendo quem acredite na origem púnica de certos lugares. Mas muito antes daquele povo, semita e marinheiro, é possível encontrar marcas de um remotíssimo passado, coisa a que o afamado rio não é estranho. Com base sólida, nas vizinhanças do lugar os crastos – castelos na linguagem popular – aportam testemunho seguro de práticas que ligam a ocupação da região, tanto ao resto da Europa, como às civilizações mediterrânicas, ab initio.

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Destes temas, que levam às profundezas da realidade e dos tempos, não creio que se ache voz que indague, na terra da pinheira-mansa. Mas não deixará de alinhar com as lendas cuja origem ignora, ainda mais, com as que povoem a terra de moiras encantadas. 22

Da má conta em que eram tidos os moiros, ainda, no tempo de Baptista de Castro, vê-se pelas suas preferências, porque nem fala nem nos remete para a sua herança na península. A terra que o geógrafo apelida de rainha, ao vê-la coroada de todas no meio do reino, acumula a admiração de investigadores de outros períodos da sua história e há motivos para isso. Servindo-nos de frase alheia, repetiremos também, que o Tejo é a linha de atracção e a estrada geográfica central e dominante do território português. Só pode concordar com isto a pinheira-mansa que, na meia-encosta onde está, vê de esguelha o rio, a limitar a fronteira entre o campo e a charneca. Mas tem sido o campo quem mais afama a região, já que é criação sua. Não que o Tejo renegue algum ponto do seu curso, de montante a jusante, mas apresenta tais diferenças, entre si, que até parece dois ou mais seres distintos, depois de ultrapassar a fronteira portuguesa. Da Barquinha até entrar no oceano, o rio expande-se ou deixa-se assorear, com os mouchões, formando húmidas lezírias e campinas nas suas margens. Para falar de lezírias e de mouchões requer-se um linguajar de borda-d’água e isto é outro encanto da terra de riba Tejo. Reporta-se aqui um passado, onde o tipo de solo, assimilado ao curso do rio, se ajusta à idiossincrasia de uma peculiar

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maneira de encarar as coisas e de as viver, diferenciada e que o encurtamento das distâncias veio apagar. Hoje, já ninguém se atreve a romancear debates, sustentados em gabarolice, alardeando bravatas que maximizem aos olhos dos estranhos os heróis da terra. É na banda sul, antes de se perder pelo além-Tejo adentro, que se encontra a mais típica manifestação da terra e do homem, nado e criado, nas margens do grande rio. Aqui, onde dizer Inverno é o mesmo que falar de cheia, a terra despertou encostada à charneca, como que a pedir protecção contra o rijo invasor. Cheias que eram a impotência dos homens e o espanto dos cachopos. O Tejo galgava tudo, num zoar medonho e arrepiante, que parecia vir dos confins da terra até se prostrar, humilde, à porta das casas e dos quintais, onde a gente corria a festejá-lo.

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Desta maneira, tinha início um ritual milenar, perante o fenómeno grandioso, que se aprendia pela contemplação e sem mediações. Quando chegasse a adulta, a criançada já não estranharia a repentina paragem da faina e teriam aprendido a perdoar à natureza incerta que, sendo pródiga, lhes negava de forma abrupta o ganha-pão. Não fosse, em certos anos, o agudizar da miséria e aceitar-se-ia o espectáculo fascinante, que oscilava entre a mercê e a maldição, conforme a época em que viesse. Porque nem toda a cheia era má e nem toda era bem-vinda, sabiam-no bem os homens da borda-d’água, que viviam apenas do campo. A dimensão bíblica das enxurradas costumava balizar o viver ribeirinho, sendo uso da gente recordar os passos desse

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quotidiano, pela enchente, quer dizer, o sítio aonde a água tinha batido, daquela vez… Foi no ano em que casou… ou quando nasceu... ou quando morreu... ou quando tirou as sortes... tudo, enfim, num mimetismo anímico entre o caudal do rio e a vida. Aparentemente, o Tejo levava de vencida o raro arvoredo da lezíria, onde despontava o choupo, o freixo, o salgueiro, as sebes e os valados de marmeleiro e vinhas inteiras, tudo náufragos daquele mar lodoso que, ao afastar-se, deixava presos nas ramagens os farrapos, como troféus, que sobraçavam na corrente dos nateiros. Inseparável do Tejo, prolongava-se na lezíria, montado no seu cavalo, que era filho do vento, munido de pampilho e firme, contra o horizonte, o campino. O campino era um forasteiro no povoado, onde só se atrevia a entrar de fugida, qual habitante de um mundo estranho, atraindo, sobre si, a atenção da gente. Fora da lezíria, o campino era um maltês. A pinheira-mansa não se lembra de alguma vez ter visto um campino a pé. Via-os passar, num todo, homem e animal, nas voltas da planície ou na dolorosa travessia do povoado, encaminhando o gado, quando calhava a mudança de pastio. Obediente, a manada formava uma mole, submissa à voz do maioral, aos brados: deixem passar, deixem passar o gado! E a gente encostava-se à borda da estrada, admirando, entre amedrontada e embevecida, o estrondoso galopar daquela força em movimento. Do Pedroso ou do visconde, podiam ser alguns dos nomes dos criadores das feras, que não faziam mal a ninguém. A pinheira-mansa há-de guardar na memória, enquanto viver, o

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acanhamento dos toiros, à procura de se livrar, o mais rapidamente possível, da presença humana, unindo-se uns aos outros. Os ganadeiros eram vários e gente de renome. Os acima, são circunstanciais, porque era deles o gado que transitava pela aldeia, naquele tempo. Os ferros do Pedroso tinham fama de muito bravos e constava, até, que numa ou noutra dessas ocasiões lhes fez tenta um rapazito, que ficou conhecido no mundo das touradas, chamado Manuel dos Santos, aprendiz de barbeiro, ali, na terra da pinheira-mansa.

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O campino dava nas vistas, pelo trajar. Mas a vestimenta festiva e do folclore era uma coisa raríssima, no dia-a-dia de quem brincava, então, à volta da pinheira-mansa. As meias brancas de renda, subidas até ao joelho, onde se ajustavam ao calção, a camisa sem colarinho, a jaqueta, o barrete, os sapatos ferrados, as esporas e o pampilho, onde amparava o peito, se à-vontade, denunciavam o campino. A pinheira-mansa talvez se tenha esquecido, mas há quem se lembre, perfeitamente, como agora, do senhor Lourenço dos Casais, num cavalo com os ferros da Lagoalva, a trotear na planície e a saudar a gente das searas. E, igualmente, não lhe sai da lembrança, um campino aflito na sua montada, a galope, gritando à gente, estrada do campo afora, que se desviassem, porque uma vaca parida, tinha perdido a cria e era perigosa, por causa da cisma. Isso era o pão de cada dia. Mas ninguém em seu juízo se atrevia a entrar num território interdito, sem se acautelar. Não se dava pela vida daqueles cujo trabalho decorria num dia-a-dia de permanências, ano atrás de ano, nas artes do

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campo. A arte do campo era, nesse tempo, ofício para entendidos, que sabiam lidar com a natureza de modo a tirar dela o seu provento. Formavam-se, deste modo, gerações inteiras de trabalhadores. Podar, enxertar, amanhar, desladroar, empar, semear, mondar, ceifar, gadanhar são actos de um catecismo monumental, estranho à rotina urbana, tal como o da abegoaria e o da pastorícia. Cada tarefa, da mais simples à mais complicada, regia-se pelo seu preceito e, por cada uma, respondia o seu oficial: aguadeiro, abegão, cavador, boieiro, maioral, seareiro, rendeiro, fazendeiro, valador... era um nunca mais acabar!

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A charneca Charneca e ir à charneca são realidades de uma infância, vivida nas redondezas da pinheirinha mansa. Se a um forasteiro, charneca soa a arcaísmo regional, a um natural a palavra é inseparável de uma prática do quotidiano remoto. Ir visitar os tios e os primos ao Gorjão ou ao Chouto, era um acontecimento único, viagem longíssima que obrigava a passar pela Chamusca e Ulme, por não haver ligação directa – quer dizer, carreira – naquele tempo. Não se embarcava à toa numa tal aventura. Carecia o viajante de se preparar como deve ser, por causa das horas a fio da ida e vinda e das mudanças de camioneta. Os preparativos envolviam pôr uma roupa de acordo com uma ocasião especial, que era aparecer na frente da família, que só se revia muito longe em longe. Preparar-se para uma viagem daquelas, era como ir a uma festa ou ao médico. De

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resto, era essa a palavra que se usava, então, querendo dizer que a pessoa estava alindada ou bem vestida. Também ir à charneca, era ir até à nossa fazenda na Parreira. Este evento era mais ou menos um tormento, não para mim, mas para a minha mãe, que sempre achou o lugar perigoso, por causa da lonjura e da aspereza do caminho. 28

Deixava-se a casa para trás, subindo a rua do Chafariz até ao alto da Amendoeira. Daqui, pela estrada das Arroteias seguia-se directo à Caniceira, pelas Vargens. O silêncio abatia-se sobre a gente, quando deixava de se ver as últimas casas da terra, na descida do pequeno vale, onde se achava o caminho, golpeado de fendas das chuvas e aberto pelo uso. Ao contrário das estradas do campo, feitas de saibro, o caminho da charneca era uma multidão de pedras a estorvar o rodado da carroça e a estafar a Carriça, que não sofria pouco nos arneiros cuja brancura contrastava vivamente com o encarniçado das barreiras. Acompanhava o trajecto, irregular e serpenteado, um mato rasteirinho e balsâmico, ora ralo, ora espesso, que alternava com balceiros de juncos, donde podia saltar um bando de aves. E de repente, abria-se à nossa frente, os arrozais, como jardins, bem tratados, nas planuras do paul e a densidade verde e prata dos eucaliptos e dos sobreiros, a tornear os montados. Ali abundava todo o género de arbustos entremeado no verde fragrante dos pinheirais. Era com alívio que se avistava o casal da Pernancha e nem a sonoridade do nome evitava o medo, porque não se entrevia vivalma. Galinholas, perdizes e rolas bravas corriam entre

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murtas e carquejas, à passagem da Carriça. Aves de rapina de que não sei o nome, adejavam suspensas no seu avoaçar e a perder-se da vista no matagal aromático e florido. Se fosse tempo, saltava uma lebre ou um coelho num susto e o vento trazia para perto os sons que sopravam de longe, muito longe… e vinham morar comigo, junto do coaxar das rãs, que espreitavam a gente, nos ribeirinhos e o resfolgar da Carriça.

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Então, se lhe dava, a minha mãe contava lendas sem fim, recordações do seu tempo e cantava toadas de um romanceiro estranho à borda-d’água: Deus te salve Rosa / guardando o seu gado / S’ a menina quiser, serei seu criado / criado tão fino, com meias de seda / Olhe não as rompa, por essas estevas / Meias e sapatos, eu tudo romperei / Só p’ la menina, minha alma darei... … ou modas destas, ao gosto do meu pai: Indo eu por í abaixo / À procura dos amores / Encontrei uma laranjeira / Carregadinha de flores / Assentei-me à sombra dela / P’ ró sol me não queimar / Quando foi p’ lo meio-dia / Rouxinol ouvi cantar / Rouxinol que tão bem cantas / Onde aprendeste a cantar? / No palácio da rainha / Onde o rei vai passear... A ele, também ouvia cantarolar as cantigas do tempo de tropa, em Lisboa, do filme A Maria Papoila: Despedi-me das ovelhas / Do meu cão, das casas velhas / Do lugar onde eu nasci / Ai, ai, ai, não m’ importa d’ ir à toa / Que o meu sonho é ver Lisboa / Ver o mar qu’ eu nunca vi.

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E de uma opereta: A sorte só favorece a quem / Na vida uma boa estrela tem... Versos que eram prenúncio do último desabafo:… não tenho nenhum gosto na vida! 30

A guarita era o sítio, antes de se enxergar a Parreira, donde se alcançava uma vista larga. As encostas desdobravam-se em matizes de cor, a contrastar com a dos cereais nas cumeadas. Casario nenhum. Quando muito, umas caixinhas perdidas, com rodas, que era a morada dos pastores. De resto, era o ermo e o mais profundo silêncio, limpo da voz humana. O regresso a casa era muito trabalhoso, se fosse Inverno, porque a noite saía-nos ao caminho. Quando chovia, era ainda pior, por causa das enchentes das ribeiras e a Carriça estacava, ameaçando deitar a carga abaixo. Com a maior das paciências, a minha mãe pegava-lhe no cabresto e falava-lhe ao rosto a encorajá-la. Há alturas, em que até os animais precisam de estímulo. Da fazenda da Parreira, ficou-me a encantamento do cheiro a feno cortado, do cantar das cigarras, da imagem dos homens a tratar da vinha e do olival a descer. Também, da largueza dos gestos e das vozes amigas, que saudavam a gente. Aquela charneca guardei-a e hei-de levá-la comigo na morte. Devo isso à minha mãe, que me guiava, através das suas memórias, num maravilhoso e intemporal universo. A falta de saúde e de assistência levaram o meu avô a deixar o trabalho do campo e a buscar na charneca uma ocupação menos desgastante.

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Foi isso que deu começo à separação de um ramo da família, que acabou por se tornar charnequenha, não regressando nunca mais, nenhum dos tios à terra de origem. Casaram ali as irmãs da minha mãe e ali deixaram descendência, menos o tio César – dono do sorriso mais bondoso do mundo – e que não se casou. Aquele era o tempo da Grande Guerra. O meu avô entrou a servir como maioral os donos de casais, que tinham na criação de gado e no montado a raiz do senhorio. As casas-mãe formavam o núcleo e à volta moravam as famílias de criados justos que, nalguns casos, formavam dinastias.

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Entre senhores e criados costumava haver laços que se perpetuavam e raramente se desfaziam, assentes num modus operandi que teimava em resistir. Ao interior da casa senhorial, acediam as raparigas, a ajudar nas tarefas, a tomar conta das crianças, a tratar da criação, a servir à mesa, a cuidar da limpeza e a acompanhar a família nas deslocações, sazonalmente, quando iam para as casas da vila ou para outras fazendas. Daqui, emanou um itinerário, palmilhado mentalmente na infância, por mim, levada pelas recordações da minha mãe e o qual recriei, à maneira de quem ouve um conto: Foros do Arrão, Casal do Rolim, Gaviãozinho, Fontainhas, Almotolias, Vale da Lama da Atela, Balsas, Semideiro, Tojeiras… Ponte de Sor, Montargil e Abrantes. Atrás de cada um desses lugares do meu imaginário, esconde-se, de facto, a memória antiquíssima de um outro território, longe do grande rio e o

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império aqui era dominado pelas ribeiras de Ulme, do Chouto e de Muge.

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Diferente era também o modo de vestir (tão austero nos homens como nas mulheres) no linguajar, no folgar, nas rezas e na comida. Mas os tempos que corriam tendiam já a ser diferentes. As mudanças sentiam-se na lenta alteração dos costumes, que iam desmantelando a submissa pacatez do dia-a-dia. Raparigas e rapazes partilhavam ainda, então, os arraiais de Verão com as filhas e filhos-família, quando eles, que andavam por fora grande parte do ano, nos estudos ou na carreira militar, voltavam a casa. Numa destas vezes é que o som primevo de um gramofone de corda irrompeu no ar e deu ensejo à gente nova de balhar sem tocadores, substituindo-os e passando a ter a honra de abrilhantar os serões no pátio da casa grande, nas noitadas de estio. Era ver o espanto dos mais antigos a escutar, boquiabertos, a voz sem figura de uma balada coimbrã. Era um tempo sem tempo, aquele, quando se media pela duração das luas e pautava o ritmo da vida pelas estações do ano: um tempo de frugalidade e de comedimento, em tudo. Nunca se deitava pão fora e aos homens bastava um alforge e uma manta e já estavam aviados para a maltesaria, que é como quem diz, labutar longe de casa. As novidades esbatiam-se, por chegarem já tardiamente e sem força capaz de romper com o quotidiano. A rotina era quebrada pela energia nova dos homens e mulheres dos ranchos de barrões ou de alentejanos, que vinham para a faina

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dos arrozais, a muda da cortiça e as ceifas, porque a mão-d’obra da casa não bastava. Com esta gente chegava a alegria. O Verão era azado ao trato, ainda que passageiro. Diluíam-se as barreiras e toda a gente se misturava nos ranchos, na feira e na festa do S. Pedro ou balhavam, noite adentro, balharicos, verdigaios e fandangos, tudo, tudo, debaixo do olhar atento e cuidadoso dos mais velhos, de cá e de lá.

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As lonjuras era um castigo para as vencer, agravado pela dureza das jornadas a pé. Não se dispunha de quaisquer meios que não fossem os que a natureza dava, dependendo-se do seu ciclo. Era, ainda, na mesma pródiga natureza que se buscava e achava o remédio para as moléstias, nas mesinhas e tisanas cujos sortilégios e virtudes desciam à cova com quem os tinha e morrendo, morriam os dons com eles, sem nunca os desvendar. Furtadas pela saudade ficam as amarguras de uma vida rude, toda ela, feita de aceitação e de renúncia, porque cada um anuía às coisas como as tinha herdado. E, deste modo, chegava ao seu fim, que se esvaía, pacífica e serenamente, podendo levá-la a morte, quando a pessoa estivesse à sombra do olmeiro ou da figueira, como sucedeu com o meu avô Alfredo que, daquela maneira, procurava alívio para a falta de ar. Podia também terminar como a avó Rosalina, que morreu de cancro e nunca tomou remédio da botica. Pouco antes de fechar os olhos, para sempre, as filhas montaram-lhe uma

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cama no chão da casa-de-fora, onde ela se reclinava, virada para a rua, numa derradeira contemplação da vida. Tendo consciência do fim, chamou-as, despediu-se lucidamente e serenou, sem mais um ai, conforme recordava a minha mãe. Morrer, naquele tempo, envolvia solenidade. 34

Apesar de a minha mãe ter regressado às suas origens para casar, nunca conseguiu reintegrar-se no lugar que tinha deixado em criança. Em parte, o ter vivido na charneca condicionou-a fatalmente, a ponto de, ao longo da sua vida, jamais ter reencontrado a harmonia cósmica perdida. A força telúrica da charneca foi muito intensa, formando com ela um todo, de tal modo, que nunca a força dos fenómenos, como as trovoadas, lhe saíram da mente. Só achava socorro, como a mãe dela, em S. Jerónimo: Sã Girolme s’ alevantou / Seus sapatinhos calçou / Chegou ó meio do caminho / Nossa Senhora encontrou / Onde vais Sã Girolme? / Vou espalhar as trovoadas / Espalha-as lá p’ ra bem longe / Onde não haja telha nem beira / Nem raminho de figueira / Nem g’adelhinho de lã / Nem raminho d’ oliveira / (...) / Nem galo que cante / Nem galinha que espante... Ou no Bendito Louvado, dito de joelhos, com um manto pela cabeça, portas e janelas entreabertas, enquanto o céu se desfazia em raios e coriscos, atestado na derrota que deixava à sua volta e um assustador cheiro a queimado, que intensificava a desolação da charneca erma. Deve ter sido para a charneca e para os seus queridos defuntos, que voou o último dos seus pensamentos, na hora de morrer.

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