Memórias de uma Professora

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MEMÓRIAS DE UMA PROFESSORA

por que me reformei do ensino


FICHA TÉCNICA edição:

Edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) emórias de uma Professora – Por que me reformei M do ensino autora: Teresa Marcelino

título:

Revisão: Patrícia Espinha capa: Patrícia Andrade paginação: Paulo S. Resende 1.ª edição Lisboa, Julho 2014 isbn:

978-989-8714-11-4 377566/14

depósito legal:

© Teresa Marcelino publicação e comercialização

Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000‑­261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


teresa marcelino

MEMĂ“RIAS DE UMA PROFESSORA

por que me reformei do ensino



Agradecimentos A partilha Ê palavra chave para o professor. Agradeço a todos a quem partilhei o meu Saber e recebi outro tanto. Ficamos mais conhecedores e completos como cidadãos na sociedade atual. A todos, o meu obrigada.



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Introdução Eu concordo com Frank MacCourt1, quando afirma que o “ensino é a esfregona das profissões”, no seu livro “O pro‑ fessor”. Ora vejamos estes exemplos. Quando se diz que fulano é advogado, a maioria das pes‑ soas imagina logo que o sr. doutor trabalha num escritório de advogados, com nome na praça, que “defende” a justiça nos tribunais. O mesmo acontece quando alguém refere que sicrano é médico. Um misto de admiração estampa-se nos rostos e as perguntas emergem: “Qual é a sua especialidade? Em que hospital? Tem consultório? Onde?” A admiração é redobrada quando nos referimos aos homens e mulheres que protegem as florestas, as nossas casas, os nossos bens das chamas: os bombeiros, vulgar‑ mente, chamados de “os soldados da paz”. Ficamos tristes quando é publicada a notícia na comunicação social da morte 1 McCourt, F (2006), El profesor. Maeva Edicionas. Madrid, pág. 13. Prémio Pulitzer. É autor de várias obras entre as quais “As cinzas de Ângela”.


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de um desses “soldados”. Inimigo sem rosto que destrói tudo à passagem, floresta, casas, gado e, por fim, a vida desses homens corajosos. E os professores? Estes são convidados a “entra‑ rem pela porta de serviço ou pela parte de trás”, segundo o mesmo autor. Estou plenamente de acordo com essa afir‑ mação, pois em algumas situações que vivi, me senti um pouco diminuída, perante a autoconfiança de certas pes‑ soas. Claro que me poderão questionar – “Mas porque te sen‑ tiste diminuída?” Quando sou apresentada a “pessoas ou individualida‑ des importantes” como, por exemplo, a economistas (a eco‑ nomia do nosso país esteja na situação que está), a advoga‑ dos ou juízes (pouca gente acredita na justiça) ou a gestores (as empresas estão a falir) e, por aí fora… tenho relutância em dizer que sou professora. Constatei, por diversas vezes, que ser professora, em certos círculos, não é uma profissão muito apreciada. Um silêncio embaraçoso instala-se à minha volta, porque as pessoas sentem a necessidade de falar de ensino, procu‑ rando recordações de quando se sentavam nos bancos da escola ou através da experiência do filhos, quando os têm e acompanham a educação deles. Passados segundos, inca‑ pazes de abordarem outro tema (futebol, artes, cinema, férias, sei lá) fazem uma abordagem de 360 graus, à procura de um croquete numa bandeja que oportunamente acabou de passar ou de um conhecido que, após pedirem desculpa, o vão abor‑ dar, aliviados da situação embaraçosa. O conflito interno não é, como devem ter apercebido, meu. É deles, pois consideram que os professores são uma


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cambada de ignorantes, formatados em ensinar os mesmos conhecimentos ao longo de anos e anos. A situação melhora se o professor for do Ensino Superior, pois deve ser doutorado e não é qualquer um que consegue esse grau académico (segundo a opinião dos entendidos do nosso país). Agora ser professora do Ensino Básico… é mesmo a esfregona das profissões. Miguel Sousa Tavares, escritor com êxito (ainda bem!) costuma presentear os professores como “mimos” do género “inúteis mais bem pagos deste país”. Mesmo o meu marido, quando trava razões comigo, atira-me com esta pérola: “estás a falar como uma professora!” Estas páginas são meros episódios. São caricatos, dra‑ máticos, alegres, confrangedores vividos por uma profes‑ sora desde o início da carreira e ao longo de cerca de mais de vinte anos de carreira. Inicialmente pensei ordenar os episódios cronologica‑ mente. Não foi fácil saber por onde começar. Os episódios foram surgindo e relatados de modo a valorizar o que é ser professor em Portugal. Por fim, optei iniciar pelo tema Professora-Alunos, porque a finalidade fundamental do ensino é a nossa contri‑ buição na divulgação do Saber e, sobretudo, da Cidadania junto de jovens. As relações de empatia podem ser sementes que germinam. É no tema Professora – Alunos que estão inseridos o maior número de relatos. Alguns abordam a empatia dos alunos, questões relacionadas com o sexo, (sim sexo, não Educação Sexual, como agora está na moda em que todos devem abordar o tema sem ter tido formação necessária),

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indecisões quanto ao futuro, a escola oculta, o amor (sim‑ plesmente), o respeito pela Natureza, convidados especiais, alunos especiais, futuros empresários, despedidas dolorosas, uma turma especial, alunos com pais separados, comporta‑ mentos e analfabetismo no século XXI. Procurou-se retratar situações utilizando nomes fictí‑ cios na maioria das situações. Em algumas situações utilizei o verdadeiro nome. O intuito foi de homenagear. O tema a seguir aborda as relações Professora – Professores, ou seja, as relações entre colegas. Dei primazia ao meu início de carreira, seguido de alguns episódios que relatam dramas pessoais de alguns docentes, comportamen‑ tos desajustados de outros e, sobretudo, situações de con‑ vívio e momentos de solidariedade. A amizade e o esqueci‑ mento são palavras rainhas. Finalmente, mas com receio que os meus caros leitores desistam de ler as últimas páginas, termino com a “Maldita” Burocracia. É um risco que corro. Quando se fala de funcionalismo público, julgo que o leitor deve associar a burocracia. E tem razão. Sem querer ferir suscetibilidades, vou dar alguns exem‑ plos de como os professores estão afogados em papéis: ficha de observação de aulas, grelha de controlo de trabalho, ficha de autoavaliação do aluno por período, projeto curricular de turma (creio que o atual governo mudou a terminologia já o ano letivo vai no auge) constituído por um cem número de informações dos alunos da turma/ por disciplina ao longo do ano letivo, grelha de avaliação intercalar por período, relató‑ rio feito pelos delegados das disciplinas por período, relató‑ rio feito pelo coordenador sobre a compilação do que foi feito


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pelos delegados; relatório das diferentes atividades extra curriculares como clube da Ciência Viva, relatório etc. etc. (pois não quero enfastiar), além das reuniões de Conselhos de turma, de Conselho Pedagógico, de Departamento e de grupo disciplinar, todas com as respetivas atas. A palavra burocracia é rainha no ensino. E como chegamos a isto? Cada vez que muda de governo (PS, PSD, PS, PSD-CDS), os ministros que tutelam a educação gostam de mostrar tra‑ balho. Alteram o paradigma: antes por objetivos; depois por competências; agora por metas de aprendizagem. Estas mudanças ocorrem à velocidade dos seus reinados. E esque‑ cem-se que uma verdadeira reforma de ensino, além de ser previamente testada e com finalidades muito claras, ela deve ter uma implementação de pelo menos dez anos para surtir efeito. Mas o que os professores assistem é um vendaval de leis, despachos que vão substituindo uns aos outros, fazendo com que eles quase não tenham tempo para os interpretar. Como dizia uma colega, “os professores devem estar atentos a toda a legislação”. E preparar as aulas de modo adequá-las à realidade dos alunos, em cada ano letivo? Na “Maldita” Burocracia, através de uma pequena farsa teatral relacionada com avaliação de professores, descrevo horas infindáveis de “trabalho” durante várias reuniões e cujo produto foi … zero. Também descrevo o meu sentir, durante a primeira fase da avaliação de professores (2008), só porque achava que os professores deviam ser avaliados, como qualquer classe

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profissional. Porém, em 2014, como a realidade é outra, a avaliação de professores deixou de fazer sentido. E quando uma escola é sujeita à avaliação externa, toda a comunidade escolar tem que estar direcionada para essa nova realidade e não para o que é essencial: ensinar os alunos. … Caro leitor, Poderá catalogar alguns episódios como outsiders do articulado do Estatuto de Carreira Docente. Isto porque ser Professor, não é apenas lecionar conteúdos para cumprir programas ou apresentar o sucesso dos alunos ou formar cidadãos conscienciosos. Ser professor é, também, saber ultrapas‑ sar situações imprevisíveis que a cada momento se deparam, com a dignidade que a profissão deve ter. O ano de dois e mil doze é aziago para a classe. Milhares de docentes profissionalizados ficaram sem emprego. Para alguns, esfumou-se a esperança na profissão desejada. Para outros, o refúgio de um curso que, à falta de outra oferta pro‑ fissional, tinham enverado. O que restou nas escolas? Professores do quadro, alguns com idade à beira da reforma, descontentes com o excesso de carga burocrática e com um elevado número de turmas para lecionar, estas com elevado número de alunos. Uma colega que leciona Inglês lamentava-se: – Tenho sete turmas a multiplicar por vinte e nove alunos, dá duzentos e três alunos uma vez por semana.


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Achas que conheço os alunos? Achas que posso ajudar os alunos com necessidades educativas? Achas que os alunos aprendem Inglês? Treta! Faço o meu melhor, mas se me cha‑ teiam mais, meto atestado. É esse mais, que delimita a fronteira a partir da qual o espírito de revolta silenciosa e contida se espelha pelas escolas do ensino público ao lado de um conformismo pois o receio do que vier ainda pode ser pior! Foi essa revolta que me fez pedir a minha reforma antecipada.

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