Memórias de uma vida de afetos

Page 1


Memorias de uma vida de afetos .indd 2

12/11/15 14:07


MARIA DO CARMO PAISANA

MEMÓRIAS DE UMA VIDA DE AFETOS

Memorias de uma vida de afetos .indd 3

12/11/15 14:07


FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris (Chancela Sitio do Livro) título: Memórias de uma vida de afetos autor: Maria do Carmo Paisana revisão: Sílvia Lobo paginação: Alda Teixeira capa: Patrícia Andrade

1.ª Edição Lisboa, Novembro 2015 isbn: 978-989-8714-56-5 depósito legal: 398298/15 © Maria do Carmo Paisana

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

Memorias de uma vida de afetos .indd 4

12/11/15 14:07


Parafrasiando, “António Lobo Antunes” “Todas as grandes obras, são feitas de pequenas coisas”. Mas aí, eu já não chego.

Memorias de uma vida de afetos .indd 5

12/11/15 14:07


Memorias de uma vida de afetos .indd 6

12/11/15 14:07


Esta singela obra dedico aos meus pais Josefina e José pelo amor, dedicação e carinho que me deram ao longo das suas vidas. Momentos para mim inesquecíveis. Aos meus filhos Ana e Nuno, e aos meus netos com todo o amor e carinho. A todos, que Deus vos ajude.

Memorias de uma vida de afetos .indd 7

12/11/15 14:07


Memorias de uma vida de afetos .indd 8

12/11/15 14:07


NOTA PRÉVIA O que vos vou contar é uma história de vida como tantas outras, em que eu aproveito para vos revelar muitos dos aspetos do meu relacionamento familiar com aqueles que muito amei e amo. E porquê só agora? A ideia já me tinha surgido há alguns anos quando começaram a aparecer nas livrarias este tipo de obras, o que achei uma boa ideia. Contudo o tempo passava e eu fui guardando essa vontade para quando tivesse mais tempo para pensar nisso. E aquela vozinha continuava a dizer-me: “Maria, tens que ter coragem, não é fácil... Trata-se de recordar factos e pessoas que já não fazem parte do teu mundo. Prova quem és, como em tantas coisas que ultrapassaste...” E foi assim que resolvi pôr mãos à obra, não afastando os sentimentos de perda, mas também para fazer aos meus familiares mais chegados uma homenagem singela, pelos legados que deles recebi e de que muito me orgulho. E aqui está ela de pé. Simples, mas muito rica de sentimentos, proezas e revelações únicas tal como cada ser humano é sempre único. E porque não uma dose de inspiração para que haja alguma harmonia e dinâmica também? Consta de tudo o que passa pela cabeça de um ser humano, durante uma boa parte da vida e que resolvi dar a conhecer na primeira pessoa. 9

Memorias de uma vida de afetos .indd 9

12/11/15 14:07


Neste momento, é o que apraz, escrever, com alma e coração e creio que esta história de vida é a minha, sentida e amada, e isso, para mim, tem todo o significado. Podem achar alguns defeitos, mas o certo é que ela aqui está, é verdadeira, e isso é o que conta – o resto são cantigas, como diz o nosso bom povo. Oxalá que gostem e que lhes dê tanto prazer como aquele que eu senti ao transmitir-lhes estas minhas simples palavras.

10

Memorias de uma vida de afetos .indd 10

12/11/15 14:07


INTRODUÇÃO Os meus primeiros anos de vida têm como fundo as vivências de determinada região do país, no extremo sul de Portugal – o Algarve, na pitoresca terra da Fuseta. E, como gosto imenso deste país, da sua história, do seu clima extraordinário, das suas gentes, do seu espírito acolhedor, da sua simpatia, da sua gastronomia, do sol, é com muito agrado, e muita satisfação, que o faço. Espero não desiludir, pois são memórias de vidas, que fizeram parte do meu mundo e daqueles que me viram nascer e crescer, comungando com eles a vida que escolhi com alegria e determinação. Julgo, e tenho a certeza, que eles se sentirão também muito felizes pelo seu contributo e o amor que me deram. Foi preciso crescer para lhes dar toda a razão. Os seus conselhos e as suas regras de conduta eram baseados na sua experiência de vida e nos sábios ditados populares. Era a psicologia da altura tendo em vista um normal relacionamento cívico com toda a gente, sem exageros, mas que se traduzisse no bem-estar entre nós e os outros, principalmente os mais próximos. Posso dizer que fui muito amada e tive uma infância muito feliz. Muita gente da minha terra se sentirá feliz por falar da nossa terra, das suas gentes passadas, presentes e futuras que contribuíram para o crescimento daquela pequena aldeia num paraíso à beira-mar plantado. 11

Memorias de uma vida de afetos .indd 11

12/11/15 14:07


Devemos ter orgulho de nascermos seja num lugar importante ou num pequeno burgo como foi a Fuseta, mas que hoje jĂĄ ultrapassou o conhecimento para lĂĄ das nossas fronteiras. Bem-haja ao seu povo e Ă s suas gentes.

12

Memorias de uma vida de afetos .indd 12

12/11/15 14:07


1

Fuseta – A branca noiva do mar 1.1. A minha infância Que posso eu dizer sobre a terra que me viu nascer? Só posso dizer coisas boas. Ali passei a minha meninice, a minha adolescência da qual guardo imensas recordações. Que posso mais acrescentar? Que é uma terra de boas pessoas, simpáticas, de quem tenho boas recordações, sempre muito prontas e acolhedoras, para qualquer pessoa que a visita. Era uma beleza aquela paisagem, que para mim era única, e que não posso deixar de agradecer à pródiga mãe natureza e à mão do Homem. Aquelas belas e enormes praias, de areia fina e doirada, de águas límpidas e quentes, que ao longo da costa se inserem na ilha da Armona, preenchendo um grande espaço da Ria Formosa, que se estende até Faro. Foram fonte de inspiração de grandes poetas desta terra, nomeadamente o sr. Joaquim Andrade, mais conhecido pelo “pai Andrade”, o do seu filho João de Deus, e de outros populares, anónimos. Vamos, então, à história essencial desta bela terrinha. É engraçada, porque tudo começou por um pequeno agrupamento de cabanas, junto ao mar, que os pescadores utilizavam para guardarem todas as suas alfaias utilizadas na pesca da pes13

Memorias de uma vida de afetos .indd 13

12/11/15 14:07


cada neste local. Mais tarde o número de cabanas aumentou, dando-se então a fixação dos pescadores que desejavam ter melhor acesso à barra. Além disso, tinham também outros trabalhos a fazer, como desempachar e consertar as suas redes, que facilmente se estragavam, por serem de fraca qualidade, e também pelo esforço despendido. As suas atividades começavam ao cair da noite e por lá andavam até ao amanhecer do outro dia. Os apoios das famílias eram essencialmente das mulheres e dos seus filhos que os ajudavam nos afazeres diários, e ao mesmo tempo aprendiam a conhecer e lidar com o mar.

Uma vista parcial da aldeia da Fuseta.

14

Memorias de uma vida de afetos .indd 14

12/11/15 14:07


Com poucos meios económicos, eles não podiam perder dias sem ganhar o seu pão de cada dia, e por isso uns atrás dos outros começaram na vida da pesca, que passou a ser a grande atividade económica daquela terra, construindo-se cada vez mais casas, aumentando assim aquele minúsculo aglomerado de cabanas, que deram origem a um aglomerado cada vez maior. Nasceu assim a “Foseta”, junto à foz do rio Eta – depois, Fuseta. De tal maneira foi crescendo, que acabaram por se fixar de todo com suas famílias e, a pouco e pouco, deram origem a este enorme casario que tenho no coração. Nas casas algarvias é de notar as açoteias. Esta foto mostra uma terra mais evoluída, onde ainda se podem observar as casinhas em cima das varandas. Era o espaço necessário para a seca do peixe, durante o inverno, devido às condições do tempo, por natureza incerto, e também para a sua alimentação. Quem tivesse um bocadinho de terra, sempre semeava alguns cereais que também ali guardavam para situações de escassez, devido aos parcos recursos económicos da sua população. Os telhados eram, normalmente, de forma cónica, muito comuns, naquela altura, que serviam para as escorrências das águas da chuva, evitando estragar as telhas, que eram de barro, escuro, para melhor protegerem as paredes e o interior de suas casas. A minha casa era grande para a época. Dava para duas ruas. A rua da frente – a Rua Dr. Virgílio Inglês, n.º 72. Na rua de trás, havia um portão grande, que dava para o nosso quintal. Era um bom espaço para os afazeres ligados à criação de galinhas, galos, pintos e ainda alguns coelhos. Além disso, ainda alguns desafogos, como o forno, onde se cozia o pão, e ainda um poço, de onde bebíamos da bela aguinha fresca, que era uma maravi15

Memorias de uma vida de afetos .indd 15

12/11/15 14:07


lha. Havia ainda um alpendre para arrumos, e onde minha avó costumava fazer as malhas e as rendas de bilros. Em volta havia frondosas videiras de belos cachos vermelhos e bons, que pendiam para um terraço. Nesse terraço1 era onde se secavam os figos, os feijões, e outros tantos legumes. Em cima da varanda, também se fazia a seca de algumas qualidades de peixes, como a cavala, o cação, que no inverno, por haver pouco peixe, se comiam assados ou guisados, acompanhados do bom vinho da Fuseta (da arte nova), e da rapaziada ali da zona. Perto da chaminé, havia um pombal, com pombos, muito especiais, os pombos-correios. A nossa alimentação era mais à base de peixe. De verão e de inverno estava sempre o fogareiro de barro pronto para assar os carapaus, sardinhas ou cavalas. A carne era mais daquela que nós criávamos, bons e belos galos que eram um luxe para quem os via e para quem os comia. Além disto era o tradicional xarém, cuja farinha era moída lá em casa pela minha avó, que depois ou se comia simples ou se juntavam conquilhas, amêijoas, que lhe davam um sabor maravilhoso, ou então pão aos pedaços, torrado, que também era bom. À medida que a vida foi evoluindo economicamente, a rede de águas canalizadas começou a fazer parte dos hábitos das pessoas por ser mais prática a sua utilização. Mas nós continuávamos a beber da nossa água, porque era muito boa, saborosa e bem fresquinha. Era uma delícia, especialmente quando o calor apertava.

1

Se este terraço agora contasse... o que me aconteceu. Mais à frente... 16

Memorias de uma vida de afetos .indd 16

12/11/15 14:07


Nós também acabámos por aderir, assim como toda a gente. Mas esta água não era tão saborosa e natural, não tinha tanta graça. O meu pai teve uma ideia muito boa, utilizava o nosso poço como frigorífico, onde colocava algumas garrafas de vidro, cheias da nossa água, dentro de um grande balde, suspenso por grossas cordas, que ficavam presas numa grossa tampa durante umas horas. Passado esse tempo, eram puxadas para cima e ali é que era beber da água bem fresquinha, quando o tempo quente apertava. O nosso poço era um frigorífico muito especial. Boa ideia, pai! Recordo-me de haver dias em que não se suportava o calor do sol. O calor era tanto que era impensável sair à rua nas horas mais quentes. À noitinha, abriam-se as janelas e as portas para refrescar principalmente os quartos. Não se estava bem em casa. As pessoas sentavam-se às portas, com cadeiras feitas de tábua, e ali conversavam com as vizinhas e com quem passava nas ruas. As pessoas que vinham de regiões mais frias muitas vezes sentiam-se mal, por força do calor, e tinham que regressar às suas terras. Ainda lá passei bons e menos bons momentos, mas, está no meu coração, aqueles belos tempos em que eu e minha mãe, em noites de grande calor, íamos para cima da areia da praia dos Tesos. Levávamos umas mantas, e ali dormíamos umas belas sonecas, ao som do marulhar das ondas, com a lua e as estrelas, num céu, de um azul-escuro, que convidava a fazer alguns poemas, mesmo de pé quebrado, mas era o que dava vontade de declamar: “Ó lua que vais tão alta, redonda, como um tamanco, Ó Maria, traz cá uma escada, que eu não chego lá com um banco”, era engraçado, declamar à lua. Mas pela madrugada, lá pelas cinco horas da madrugada, quando fazia o tal friozinho, estava 17

Memorias de uma vida de afetos .indd 17

12/11/15 14:07


na hora, agarrávamos na trouxa, e lá íamos para a nossa casa já mais fresquinhas, que nem uma alface, para a caminha que era bem mais fofinha até à hora de levantar. Quem, por vezes, nos acompanhava, era a Baptistinha, que morava lá mais em cima, ela passava pela nossa casa, já de manta no braço, e depois, mais acompanhadas, lá seguíamos para a pequena prainha. Mas nós sempre que o calor apertava, naquele sítio é que era bom, e não havia perigos de maior cuidado, dava-nos o sentido de liberdade. Meu pai não nos acompanhava, porque ele não gostava de ir à praia, por causa da areia, que lhe dava impressão e arrepios. Nós vivíamos na parte central da terra, muito pertinho do Largo, onde tanto brinquei – era e ainda é uma perpendicular à rua principal –, a Rua Dr. Oliveira Salazar, uma rua bem comprida, abrangendo o espaço desde a entrada da terra até à praia.

O Largo da Fuseta, onde tanto brinquei e fui muito feliz.

18

Memorias de uma vida de afetos .indd 18

12/11/15 14:07


No canto inferior direito, ou seja, no começo do jardim, existem ainda umas das mais conhecidas mercearias, vinhos e papelarias, de que era propriedade o sr. Joaquim Andrade, conhecido e tratado por “pai Andrade”. Era uma das figuras mais simpáticas da terra. Sempre com um sorriso, e uma anedota engraçada para contar aos seus clientes. No aspeto físico era um homem baixinho, todo roliço, e depois usava uma boina que lhe dava muita graça. Esta família faz parte da história desta terra, assim como a minha e outras que ali criaram as suas raízes. A nível dos serviços a prestar à sua população, tinha duas boas escolas primárias num prédio contíguo. Uma ala era para os rapazes e outra era para as raparigas. Ficavam situadas perto do quartel da Guarda Fiscal. Durante o Estado Novo, foram então construídas duas escolas, perto do apeadeiro da Fuseta, assim como o primeiro bairro social especialmente destinado às famílias dos pescadores mais carenciados, e ainda a Casa dos Pescadores, com diversos serviços e com bons profissionais de saúde à escala da época. Foi mandado construir pelo então almirante Henrique Tenreiro. O resto da população tinha que recorrer a consultas de médicos particulares na terra ou nas redondezas. O enfermeiro para toda a população era o sr. José Ricardo, com morada muito perto da minha casa.

19

Memorias de uma vida de afetos .indd 19

12/11/15 14:07


A Igreja de Nossa Senhora do Carmo

Como é linda a minha igreja.

A nossa e bela igreja foi edificada num local elevado da terra em 1835, no lugar onde já existia uma pequena capela com o mesmo nome – A Capela de Nossa Senhora do Carmo. Como a maioria das igrejas, tem a nave central em forma de cruzeiro. No topo central a imagem da Nossa Senhora do Carmo, ricamente vestida e com um manto azul, bordado a ouro e com pedras preciosas espalhadas por todo o tecido. Foi oferecido por um conjunto de pescadores, como promessa em horas de grande aflição. O povo desta terra é por tradição muito crente e muito devoto de Nossa Senhora que pela sua raiz ligada ao mar atra20

Memorias de uma vida de afetos .indd 20

12/11/15 14:07


vés de gerações muito contribuíram para o embelezamento da igreja, como luxuosos candeeiros na nave central, assim como o reforço dos mantos ornados a ouro, etc. Como não poderia deixar de ser, aqui vão mais ou menos todos os pormenores que antecedem a festa, durante e depois de acabarem todos os festejos.

AS FESTAS EM HONRA DE NOSSA SENHORA DO CARMO

A minha terra, desde o princípio de cada ano, prepara as festas da nossa padroeira, com pompa e circunstância. E, na véspera, ao som de muitos foguetes, com os barcos todos engalanados e muito coloridos, deslocam-se a outra freguesia – o Livramento, onde por tradição já centenária vão buscar a Nossa Senhora do Livramento, por mar. À hora combinada na antevéspera, do dia 16 de julho, o pessoal, em procissão, leva o andor de Nossa Senhora do Carmo até ao cais onde aguarda o encontro com a Senhora do Livramento, entre cânticos, foguetes e morteiros, saudando-AS, com muita alegria e também muita emoção. Como já é normal junta-se muito povo para acompanhar o encontro das imagens no cais, ao som de foguetes e cânticos, seguindo depois em procissão para a nossa igreja, onde haverá um breve sermão. O senhor padre, depois de a todos saudar, faz então os avisos necessários, o horário da missa e da saída da procissão, assim como os nomes dos festeiros encarregados de levarem os andores. De manhãzinha, do dia 16 pelas oito horas, começa o ribombar dos foguetes, uns atrás dos outros e ao som das bandas de música percorrem algumas ruas da aldeia, lindamente enfeita21

Memorias de uma vida de afetos .indd 21

12/11/15 14:07


das. Os moços vão atrás, pulando e saltando, procurando apanhar as canas dos foguetes. Nesta altura sempre se apanha uns tostões, porque é dia de festa e o pessoal anda muito divertido. À tarde pelas 16h00 é então a missa, saindo depois a procissão, com os andores que vão percorrer muitas das ruas da Fuseta. Quem leva os andores normalmente são pescadores que em momentos muito especiais recorreram ao auxílio da santa. As crianças da catequese vão também em alas junto aos andores. Quando a procissão chega ao cais, ouve-se o barulho ensurdecedor dos foguetes onde os barcos estão belamente enfeitados e em sinal de cumprimento soltam as buzinas dos barcos e da Lota. É um momento muito nobre, porque são sempre lembrados os nomes daqueles que ficaram para sempre sepultados nas águas dos mares por onde andavam a centenas de quilómetros do seu país – nomeadamente nos mares gelados da Gronelândia e outros também distantes. A procissão segue então o seu destino, ou seja, até à igreja matriz, onde há sempre o sermão e cânticos a acompanhar a entrada dos andores para os seus lugares. No dia seguinte, há novamente uma procissão, onde a Senhora do Livramento é levada por terra, devido ao desencontro das marés. Vai acompanhada por uma pequena banda de música, até ao Livramento, onde se encontram muitos populares para receber Aquela que é a sua Santa e nossa Santa. Como é natural há sempre um espaço para as festas profanas. Costuma ser montado um pequeno coreto onde atuam os ranchos folclóricos convidados, os bailaricos, quermesses e o sempre fogo-de-artifício preso. Falar da Fuseta, o que mais posso dizer? Muita coisa. É uma terra de gente simples, trabalhadora, afável, regra geral simpá22

Memorias de uma vida de afetos .indd 22

12/11/15 14:07


tica e muito acolhedora. Foi tema de canções que poetas algarvios levavam para os bailaricos. Quanto à paisagem, toda ela é bela, desde o mar à serra, que para mim é única, pelas recordações que tenho, pelo encanto das suas gentes. Não posso deixar de mencionar o papel dos vastos sapeirais, a maternidade de muitas espécies marinhas, uma riqueza para a nossa economia, além da vista que nos oferece, que é maravilhosa, e ainda na continuação, para norte, os Olheiros, onde em tempos as mulheres do campo, montadas em burros, iam buscar às suas freguesas a roupa para a lavarem com a límpida água dos pequenos braços de rio, que ali permanecia. As roupas eram então estendidas nas muitas moitas por ali espalhadas, para secarem. Naquele tempo não havia lixívias. Era o sabão azul e branco em cima de manchas difíceis e postas ao sol, durante umas horas. Ficavam impecáveis. À tardinha entregavam a roupa às suas clientes e prontinhas para serem passadas a ferro. As salinas, além da paisagem que ofereciam a quem àquela terra se deslocava, pelo seu vasto manto branco constituíam também uma fonte de riqueza para a sua população. O sal desde sempre foi um bem muito apreciado pela sua brancura e pureza. O sal e a flor de sal tiveram um papel também importante no desenvolvimento desta terra e ainda pela sua beleza, que dá gosto olhar e admirar.

23

Memorias de uma vida de afetos .indd 23

12/11/15 14:07


A minha praia

A antiga praia da Fuseta.

A estrutura que se vê é a casa do salva-vidas, onde nós apanhávamos bivalves, agarrados às paredes dos pilares, quando íamos para a praia. Para lá daquela linha do horizonte está então a já conhecida e famosa – A ilha da Armona, aliás, uma parte da Ria Formosa2. Para além desta bela praia de imensa areia branca e de boa água quentinha, havia uma ilha um pouco mais distante, a que apenas tinham acesso as pessoas que possuíssem barco e daí ser uma ilha no seu estado natural, ou seja, uma ilha selvagem. Falando do mar... Este mar imenso que liga continentes uns aos outros foi desde sempre uma forma de comunicação entre os A Ria Formosa compreende o espaço marítimo desde Cabanas de Tavira até Faro. 2

24

Memorias de uma vida de afetos .indd 24

12/11/15 14:07


povos, e o mundo foi-se tornando mais pequeno. Por isso, houve a necessidade de proteger toda a nossa costa da pirataria e de outros males que pusessem em causa a nossa estabilidade territorial. Foi então mandada construir uma pequena estrutura de defesa militar, com mais ou menos dez metros de altura, datada do século XI, conhecida como a Torre de vigilância de Bias, de forma a poder controlar quaisquer movimentos suspeitos, principalmente à noite. Desde há muito que está desativada, mas está lá, para ser visitada. – A Torrebias, uma bela construção que ainda perdura.

A torre de Bias3

Uma pequena estrutura militar.

3

Para além desta, idêntica – a Torre d’Aires, perto da Luz de Tavira. 25

Memorias de uma vida de afetos .indd 25

12/11/15 14:07


Hoje, há outros meios, mais modernos, mais sofisticados, e consequentemente mais seguros. Mas é bom mostrar que as pequenas coisas são a raiz das grandes coisas, a que se chama a evolução dos tempos. Bem-haja àqueles que pelo seu esforço, engenho e arte, conseguiram dar-nos testemunhos vivos da nossa história, de que muito nos orgulhamos. Pequeno país de grandes Homens! Depois de descrever a terra que me viu nascer, aqui estou eu!

Eu, com 7 anos. Gosto imenso desta foto, embora um pouco desfocada, mas é única.

Nasci e cresci na pequena e pacata aldeia da Fuseta, pertencente ao concelho de Olhão, distrito de Faro. Sou, portanto, uma algarvia de gema, como se diz na gíria. Aqui passei, como já atrás referi, a minha infância e a adolescência, momentos mara26

Memorias de uma vida de afetos .indd 26

12/11/15 14:07


vilhosos, que eu gostaria de partilhar com aqueles que fazem parte da minha vida e porventura alguns amigos, de quem gosto. Quando eu nasci, a minha mãe já tinha dois filhos: a Maria da Conceição de 16 anos e o meu irmão Victor de 10. Ter outro filho já não fazia parte dos seus planos para aumentar a família, com uma nova criatura e passar tudo de novo. Quando se viu grávida e com 34 anos e sem paciência para aturar novas traquinices, recorreu a “mesinhas” que na época costumavam utilizar para resolver o problema da sua angústia. Segundo contou a Celestina, pessoa com alguma prática nesta matéria e muito nossa amiga, a minha mãe recorreu a várias e nenhuma deu resultado e assim resolveu deixar a minha existência nas mãos do Criador. O tempo foi passando e eu crescendo cada dia mais e eu faço uma pequena ideia como seria o seu estado de alma... Quantas vezes ela se teria interrogado se teria feito bem ou mal a esta criancinha ao querer travar o seu desenvolvimento? Certamente que ela pensou muito nisso, e principalmente quando sentia os primeiros movimentos vitais de uma gravidez que dia-a-dia se tornava mais evidente. Seria um bebé perfeito ou com alguma anomalia? Quantas dúvidas permaneceram até ao meu nascimento? Quando chegou a altura que ela contava ser o meu nascimento, andava muito nervosa, mas ao mesmo tempo esperançosa que nada acontecesse de mal. Na véspera da festa, a minha terra estava em festa para homenagear a nossa padroeira – A Nossa Senhora do Carmo, que se realiza todos os anos no domingo mais próximo do dia 16 de julho, e assim ao som dos foguetes e num dia de muito calor comecei a dar sinais de que ia nascer. Corria o ano de 1942. 27

Memorias de uma vida de afetos .indd 27

12/11/15 14:07


A Celestina, já prevendo a novidade nessa noite, foi jantar a nossa casa, onde por tradição se comia o melhor galo que estivesse na capoeira. E assim foi. A minha mãe, pelos jeitos, não comeu quase nada, porque já estava preocupada com o que iria acontecer nas horas mais próximas. Os foguetes continuavam a estalar no ar e o céu era iluminado, com a queda de pequenos raios luminosos e a alegria do povo que se fazia ouvir. Eu não parava de rabiar e de dar sinais mais que evidentes de que seria para breve a minha entrada neste mundo. A Celestina já não foi dormir à casa dela e que seria melhor ela pernoitar ao pé de minha mãe para ajudar a nascer esta bela prenda. E assim aconteceu. Pelas 08h30 do dia 17 de julho do ano da graça de 1942, a minha mãe dá à luz uma menina que graças ao Criador nasceu perfeita e como agradecimento à Virgem deram-lhe o seu nome. E assim me apresento a vós – Sou a Maria do Carmo Sousa e Passo, filha de José Francisco Mendes do Passo e de Josefina de Sousa Mendes do Passo. Eu tenho pelo pai uma costela algarvia e pela mãe uma costela alentejana. A família de minha mãe era natural de Almodôvar, concelho e distrito de Beja, e residiram muitos anos em São Brás de Alportel, onde ambos se conheceram e ali se casaram. A minha mãe tinha 18 anos e o meu pai 26 e após cerimónia adotaram a Fuseta como residência oficial. Ali passei momentos maravilhosos na minha infância e adolescência e outros nem tanto, devido à minha teimosia, e com muitas aventuras e sustos pelo meio, mas Graças a Deus apenas me deixaram uma marca na perna esquerda. São todas essas histórias que eu desejo partilhar convosco. E como era eu fisicamente?

28

Memorias de uma vida de afetos .indd 28

12/11/15 14:07


Uma menina muito pequenina com cerca de 3,000 kg. Era portanto magrinha, mas saudável. Tinha uma bela cabeleira castanha e olhos também castanhos. Não chorava muito, apenas quando tinha fome. O meu irmão antes de eu nascer foi para São Brás ter com os avós e eu ocupei o quarto dele, coisa que ele não gostou nada. Ficou mesmo zangado comigo, que não tinha culpa nenhuma. E por azar a cama dele estava molhada. As fraldas eram de pano e nem plásticos para prevenir algumas molhadelas. Perante isto, ele foi dormir para o quarto dos fundos, perto da cozinha. Eu e o meu irmão éramos os mais parecidos com o meu pai. Morenitos, olhos e cabelos castanhos. A minha irmã era mais parecida com a mãe, na pele mais clara, e nos cabelos claros, mas enquanto a minha mãe tinha os olhos azuis, a minha irmã tinha os olhos castanhos como nós. Era uma mulher bonita... O meu pai trabalhava em Faro numa empresa de produtos alimentícios e naquele dia saiu como era costume e não sabia nada de nós. Os telefones eram raros e ele estava em pulgas para saber se havia ou não alguma novidade. Para surpresa de todos, naquele dia fez questão de aparecer para almoçar. Trouxe o camião da empresa e qual não foi o espanto quando vai à cama onde eu estava com minha mãe, levanta uma mantinha onde eu estava embrulhada e levanta-me ao ar. A minha mãe assustou-se e ele beija-me com tanta ternura... que desatei a chorar. E porquê? Para já, ainda não sabia onde estava; depois ele tinha um bigode todo arrebitado e umas barbas enormes e sempre que ele me beijava acontecia a mesma coisa. Toda a gente chegou à conclusão que era das barbas, e do bigode. Segundo contava a Celestina, as barbas eram imensa-

29

Memorias de uma vida de afetos .indd 29

12/11/15 14:07


mente grandes e para exemplificar punha as mãos dela a meio do seu peito. No segundo dia de vida fizeram-me logo uma maldade. Aquela senhora, a Celestina, levou-me a uma senhora para me furar as orelhas. Tinham-me oferecido uns brinquinhos e era melhor pôr naquela altura. Coitadinha de mim, disseram-me que chorei tanto, tanto, que nem quis mamar. A minha cara estava vermelha como um tomate maduro e sempre que me tocavam chorava imenso e em cada orelha umas linhas penduradas para os buracos não fecharem. Depois colocaram-me então os brincos de ouro. Que maldade faziam às pobres criancinhas inocentes... Uma crueldade! No dia seguinte, quando o meu pai veio à tarde e me beijou já não chorei. Porque ele à hora do almoço foi ao barbeiro, tirou o bigode e as barbas e como devem calcular com a cara muito mais macia. Eu deixei de chorar e tornámo-nos grandes amigos. O calor do verão também me ajudou a criar. As mulheres que davam à luz permaneciam na cama durante oito dias a chá e a caldos de galinha. Daí a necessidade de ajuda, prestada pela nossa amiga Celestina, o que para ela também era uma ajuda financeira. Ela era viúva e tinha três filhos. O mais novo era amigo do meu irmão Victor mais conhecido pelo “Zeca Benga”. O meu crescimento era “a olhos vistos”, moreninha muito mexida e que dei água pelas barbas aos meus pais e devem ter muita razão. Na minha meninice posso dizer que fui criada como filha única, com os mimos, a tolerância e a cumplicidade de minha avó Cândida, mãe de meu pai que sempre me defendia quando fazia disparates, e não eram poucos.

30

Memorias de uma vida de afetos .indd 30

12/11/15 14:07


Todos os dias quando meu pai chegava do trabalho, vinha pelo corredor dentro e dizia: “Onde está o meu coraçãozinho pequenino?” Eu mal ouvia a porta bater ia logo pelo corredor adiante correndo ao seu encontro, abraçávamo-nos e depois vinha até ao quintal, comigo ao colo. E eu toda contente porque apanhava muitos beijinhos. O meu futuro cunhado todas as noites quando ia namorar a minha irmã à janela levava sempre uns docinhos para eu mostrar à minha mãe... Ele lá sabia porquê. Mas inocente, não percebia nada do assunto. Enquanto ia e vinha, não sei o que se passava... A minha avó já era viúva. Vivia connosco desde o falecimento do meu avô Manuel. Pertencia a uma família com alguma importância económico-social e fisicamente era também muito bonito e elegante. Ele estudou em Coimbra e depois foi nomeado administrador do concelho de Tavira desde 1906 a 1908, até final do reinado do rei D. Carlos. Viviam-se momentos conturbados porque a instauração da República já começava a indiciar grandes mudanças. Ele era de uma família de muitos teres, tanto na própria terra como em hortas e pomares. A minha irmã pensando no seu casamento passava muito do seu tempo a bordar e costurar as roupas para o seu enxoval, isto é, estava a preparar-se para ser uma futura dona de casa. Entretanto fui crescendo e cada vez mais, uma miúda vivaça muito irrequieta, que estava sempre a inventar formas de aborrecer a minha mãe que não podia estar descansada. Se ela quando eu nasci já não tinha paciência, quanto mais agora que não parava quieta. Na Fuseta havia um espaço que não era muito grande mas que funcionava como uma pequena escola de nome “Escola 31

Memorias de uma vida de afetos .indd 31

12/11/15 14:07


Paga”. Eu nunca soube quanto meus pais gastaram, “só sei que gostei”, para mim era uma novidade. A professora chamava-se D. Amália, com todo o respeito, tinha que ser assim. Era uma senhora com alguma idade, solteira e a sua vida era feita entre a escolinha e a igreja. Era bastante alta para a época, magra e andava quase sempre com roupa escura e como era moda também usava um carrapito no alto da nuca já bastante grisalho. Sempre a conheci assim. Quando minha mãe me foi levar, fiquei muito entusiasmada com a novidade, porque havia ali muitas meninas da minha idade para brincar e conversar. Mas rapidamente eram dados avisos a quem ia pela primeira vez para aquela escola e aí a minha carinha laroca mudou logo de expressão porque “era preciso não fazer barulho” para não perturbar as aulas, mas tanto eu como algumas das minhas companheiras depressa esquecíamos os avisos. Primeiramente eram repreensões, mudança de lugares e quando isso não bastava trabalhava o ponteiro que era bem comprido e chegava a toda a sala. O nosso material escolar era uma pedra de lousa retangular, com um fio pendurado tendo na ponta uma borla feita de trapinhos que servia para apagar os traços do giz, funcionava como a borracha da altura. Ao centro um quadro preto grande onde a professora fazia os números ou as letras e nós copiávamos nas nossas pedras. Confesso que sempre gostei muito das aulas, tomava atenção, mas qualquer coisa me distraía e era apanhada logo, mas bastava um olhar para eu baixar os olhos. Aprendíamos a soletrar pequenas palavras em coro. Os números eram feitos também no quadro em coro e depois continuávamos a treinar, porque depois íamos ao quadro fazer o que 32

Memorias de uma vida de afetos .indd 32

12/11/15 14:07


a professora dizia. Aí é que era pior. Eu tinha medo de me enganar. Ela era muito exigente e não perdoava nada. Eu fui lá algumas vezes ao quadro e só uma é que apanhei um castigo. E então qual foi o castigo? Primeiro mudei logo de lugar, lá fui eu com a minha cadeirinha de empreita para onde a professora mandou – afastada das outras companheiras. Eu fiquei logo atrapalhada e depois foi fazer a palavra certa em toda a pedra e não podia estar errada porque senão teria que fazer o dobro. Foi muito aborrecido, mas ficou-me de emenda. Tinha que estar atenta, porque ela era assim para todas. Outra coisa que eu aprendi foi partilhar as minhas coisas que eu levava com outras colegas. A princípio não achei muita graça, mas perante os elogios da professora até o fazia naturalmente, isto é, passei do oito para os oitenta. A escola era só da parte da manhã. Depois do almoço dormia a sesta e depois ia brincar no quintal à tardinha com os brinquedos que tinha e eram muitos, desde tachinhos, panelinhas onde fazia jantarinhos para as minhas bonecas. O meu pai sempre que ia a Lisboa em trabalho da empresa trazia-me sempre brinquedos, patinhos que batiam as asas, serviços e pratinhos para servir os almoços das bonecas. Às vezes corria mal porque eu ia buscar produtos que a minha mãe tinha em casa, como o açúcar que eu aproveitava para dar umas lambidelas. E era assim quase sempre. As minhas bonecas eram feitas de trapos, mas lindas com tranças. Havia uma boneca grande com tranças amarelas que eu guardava logo no meu quarto para não se sujar e depois dormia com ela. Era lá que eu passava horas entretida. A minha mãe não era pessoa de muitas falas. Era o trivial. Ela já se sentia cansada porque eu era irrequieta por natureza e um dia aos quatro, cinco anos, mais ou menos, lembro-me 33

Memorias de uma vida de afetos .indd 33

12/11/15 14:07


de ver minha mãe, por vezes, ir a uma saleta, e discretamente encostava a porta, e depois aparecia com alguns produtos alimentares, e às vezes lá aparecia um docinho e eu comecei a desconfiar... Ali há gato!... E um dia, a cena repetiu-se, e o que é que eu resolvi fazer? A porta da sala estava encostada, e, pela fresta, pus-me a espreitar. E vi tudo, depois, pé ante pé, fugia para o quintal, muito senhora do meu nariz. Então o que era? O segredo estava na mesa da dita saleta. Havia uma tampa, em cima de outra tampa, e com um fundo que disfarçava o que lá estava dentro e que não deveria estar à vista. E porque seria? Mais tarde vim a saber porquê... Eu estive naquela escolinha apenas um ano. Com cinco anos tivemos que mudar de residência porque a empresa do meu pai foi temporariamente para Loulé e nós tivemos que ir, isto é, eu e os meus pais, porque a minha irmã deveria acompanhar a minha avó que era viúva há muitos anos e que se dedicava a fazer lindas rendas de bilro para os lençóis, toalhas de banquete como se dizia na altura. E quem já pensava em casar não admira ter ambições de fazer peças lindas para o seu enxoval. Por um lado ia mudar de sítio e conhecer novas amigas, mas por outro senti saudades das minhas companheiras de escola. Mas não podia fazer nada. Era ir e mais nada. Os meus pais tinham alugado uma cave, com duas janelas para a rua e tinha em frente um grande jardim onde havia um pequeno lago com imensos peixinhos das mais variadas cores e ao meio tinha um repuxo em forma de peixe, assim escuro. Eu gostava muito de ver as crianças a brincarem à tarde, mas eu era ainda uma desconhecida. Uma tarde meu pai levou-me lá e rapidamente me integrei nas brincadeiras.

34

Memorias de uma vida de afetos .indd 34

12/11/15 14:07


Uma das grandes amigas foi uma menina chamada “Sãozinha”, que vivia perto da minha casa e às vezes ia para a casa dela, uns bocadinhos. A casa dela era muito grande, tinha primeiro andar com as escadas em caracol e era pintada de cor-de-rosa. Às vezes ficava de castigo quando fazia asneiras e o meu lugar era sentar-me na janela e contentar-me em ver as minhas amigas brincarem, o que me dava muita tristeza. A minha mãe às vezes dizia-me quando eu era teimosa: “Olha, vem aí a mulher da manta.” Eu tinha medo dela porque a velhota passava junto à minha janela embrulhada numa manta velha e quando olhava para mim eu saía imediatamente de lá. Mas por fim perdi o medo. No silêncio da noite, na minha caminha, gostava imenso de ouvir as rãs coaxarem, e naquela sinfonia acabava por adormecer. Mas houve um dia que não correu nada bem para o meu lado. Como costume brincava naquele jardim com outras crianças perto daquele lago e a brincadeira deu mau resultado. Não sei se me distraí se me empurraram sem querer. O certo é que fui parar dentro e bati com a boca numa pedra de que resultou um golpe no interior da boca e alguns ferimentos leves. Fui assistida no hospital local onde levei alguns pontos e ainda hoje tenho a sua marca, que me ficou de recordação, aos seis anos. Conforme foi combinado, a empresa volta novamente para Faro. Antes de partir o meu pai pediu a um fotógrafo para nos tirar uma fotografia com todas as minhas amiguinhas, para ficar de recordação. Eu era mesmo a mais pequenina e estou com um vestidinho preto às florinhas sentada na primeira fila em baixo, porque tinha morrido a minha avozinha materna, Maria do Rosário, de São Brás. Não mais soube da foto, sei que a mostrei há algum tempo e não sou capaz de a encontrar. Por acaso tenho 35

Memorias de uma vida de afetos .indd 35

12/11/15 14:07


pena. Foi um marco na minha vida. Para mim foi uma alegria voltar à minha terra e às minhas amigas que as tinha deixado com saudades. Eu gostava muito de ir para a minha praia e da qual já tinha saudades e de vez em quando ia lá dar umas voltas, normalmente com alguma das meninas da minha rua, ou da minha escolinha, que comigo costumavam brincar. Mas houve um dia que não correu muito bem. Nesse dia, talvez, com os meus cinco anos, seis anos, recebi umas sandálias lindas, de couro, amareladas, e resolvi levá-las à praia, à tardinha. Acontece que, com medo de as perder, resolvemos, eu e ela, taparmos as nossas sandálias com um monte de areia. Andámos a brincar, as duas muito contentes e ali perto do dito montinho, só que começamos a correr e a dar cambalhotas, e a distrairmo-nos nas brincadeiras, e as sandálias estavam algures, sabia lá eu? Havia tantos montinhos de areia, e por isso, era impossível localizar – ideias, de cabecinhas, ainda débeis. Quando pensámos regressar, não sabíamos onde estavam, pois eram tantos os montinhos... Já ao escurecer, depois de remover muitos daqueles pequenos montes, nenhuma delas aparecia. Temendo o pior, fui tremendo para casa, eu e a outra moça. Bem, foi todo o mundo à procura, mas para meu desespero, viemos todos de mãos vazias, bem tristes, sem saber o que iria acontecer. A partir daquela data, fiquei proibida de voltar à praia sem que me acompanhassem pessoas de juízo. Assim me foi dito. Depois de muito ouvir, não queria sair, muito zangada e triste, mas que remédio tiveram se não me comprarem outras? Paciência. E assim foi, mas só as usava quando minha mãe assim o entendesse. “As velhas também eram boas, dizia-me ela meio zangada.” Para além daquela praia, de imensa areia branca 36

Memorias de uma vida de afetos .indd 36

12/11/15 14:07


e de boa água, quentinha, havia ainda uma ilha, um pouco mais distante. Apenas tinham acesso as pessoas que tivessem barco, era por isso uma ilha no seu estado natural. Pouco tempo depois, num belo dia em que estava no Largo a brincar com as minhas amigas do costume, ouvimos um grande barulho. Admiradas olhámos e vimos um grande camião com uns bonecos pintados com cores muito coloridas em toda a sua extensão. A correr fomos todas ver para onde ia e o que ia acontecer. Um homem ia a falar a um microfone com um lenço pendurado a anunciar que havia circo na Fuseta. E nós atrás continuávamos a correr. – Olha, é um circo, vamos ver onde é que é? – Disse eu... – Quando eu for para a minha casa, vou lá ver. – Diz uma das moças. – Então eu vou contigo, está bem? – Disse eu contente... Quando demos por acabadas as nossas brincadeiras em vez de ir para casa fomos as duas a correr ver onde estaria o circo montado. Era ao pé da praia e era muito grande. Quando chegamos, andámos à roda a ver os bonecos. Ela foi para casa e eu fiquei a olhar mais um pouco para ver se podia espreitar. O circo já estava montado. Era mesmo ao pé dos correios. Eu nem pensei mais nada, fiquei por ali entretida a ver o movimento por aqueles lados. Eu já tinha visto também na minha terra uma pequena versão que eram “Os Robertos”, também com uma barraca mas muito mais pequena, onde grandes bonecos eram manietados por fios e cordas com linguagem e tons de voz muito amacacados e com grandes chapéus e as caras pintadas às bolinhas e com grandes narizes, as bocas enormes pintadas de branco e os olhos também pintados com grandes sobrancelhas. 37

Memorias de uma vida de afetos .indd 37

12/11/15 14:07


Este divertimento durava mais ou menos uma hora. Quando acabava o espetáculo vinha então uma senhora gordinha com grandes saias farfalhudas e um homem com um chapéu para receberem algumas moedas. E este agora tão grande deve ser ainda melhor. E ali estive a ver os movimentos. Algumas pessoas começaram a entrar e eu entrei atrás dessas pessoas e ninguém me pediu dinheiro. E sentei-me no chão, de pernas cruzadas, onde muitas crianças se juntaram. Eu estava tão encantada com o que via que nem mais me lembrei de ir jantar. O ambiente era de muita alegria e era um ambiente que desconhecia, pela sua dimensão e tão diferente que nem mais me lembrou o que os meus pais estariam a pensar. Como estava bem colocada e sem perder pitada assisti ao espetáculo todo. Os artistas baloiçavam-se de uma ponta à outra e os meus olhos seguiam com atenção todos aqueles movimentos. De certeza que os meus olhinhos brilhavam de tanto contentamento. Os palhaços, muito bem vestidos, com fatos de várias cores e com pequenos animais a fazerem cenas saltando obstáculos e passar por entre arcos, entre outras habilidades. De vez em quando era um barulho ensurdecedor de palmas. E eu ali estava encantada! Pudera, nunca tinha visto tal e com tamanha dimensão e nem sequer sabia as horas nem pensava nas aflições que ocorriam na minha casa. Quando saí é que foram elas... Uma das primeiras pessoas que vi foi o meu pai. Fiquei em pânico e desatei a fugir e ainda levei uma bela de uma palmada e continuei na corrida até casa. Quando cheguei estava muita gente à minha porta e a minha mãe estava desesperada. Quando me viu respirou fundo, creio que foi de alívio, mas o seu estado de espírito estava mau.

38

Memorias de uma vida de afetos .indd 38

12/11/15 14:07


Quando lhe disse onde estive aí é que foram elas! Apanhei mais umas palmadas, mas as palmadas dela não faziam grandes mossas. As do meu pai eram bem piores, além dos castigos. De facto estiquei a corda demais, e agora? Depois a vizinhança foi para as suas casas. Enquanto eu jantava ouvi sermões e missa cantada além dos esforços que tinham tentado para me encontrar, e sem resultado. A Maria Justina andou por aquelas ruas anunciando o meu desaparecimento a troco de algumas alvíssaras, como era costume. Bem, eu nem sabia o que dizer. Nem tinha vontade de comer, apetecia-me era ir para a cama e chorar, mas tive que comer alguma coisa e mesmo assim enquanto comia ainda revia cenas que tinha visto, mas nem me atrevia a dizer nada. O melhor era nem tocar mais no assunto. Fui então dormir. Dei um beijinho como costume e lá fui eu para a minha cama a pensar no que tinha visto... Pelo cansaço e as horas já tardias lá consegui adormecer. Na manhã seguinte ainda não me tinha esquecido do que tinha visto e voltei a pensar a sério naquela brincadeira. E se eu fosse fazer um baloiço? Se melhor o pensei, melhor o fiz. Na parte de trás do meu quintal havia o tal celeiro onde se secavam os produtos, o feijão, o milho, os griséus para semearem no ano seguinte. Olhando para cima vi que estava coberto com canas da Índia e muita folhagem de milho, para fazerem também um pouco de sombra. E do que é que eu me lembrei: amarinhei por ali acima, pendurei-me numa das canas e comecei a baloiçar, muito contente. Passados uns minutos, a cana partiu-se e eu fui parar a baixo. Outro dia de azar, depois de outro que não me tinha corrido nada bem. Isto foi o castigo por

39

Memorias de uma vida de afetos .indd 39

12/11/15 14:07


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.