O Mistério do Albatroz

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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

Vírgula (Chancela Sítio do Livro) TÍTULO: O Mistério do Albatroz AUTORA: Isabel Rainha ILUSTRADOR: Manuel Oliveira CAPA E PAGINAÇÃO:

Paulo Silva Resende

1.ª EDIÇÃO 2011

LISBOA,

IMPRESSÃO E ACABAMENTO:

Publidisa

ISBN:

978-989-8413-34-5 DEPÓSITO LEGAL: 327864/11 © ISABEL RAINHA PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


O MistĂŠrio do Albatroz


Isabel Rainha é natural de Soure, Coimbra. Frequentou a Universidade de Coimbra onde se licenciou em Biologia e fez o curso de Ciências Pedagógicas. Exerceu a sua atividade profissional como professora de Biologia e Geologia do Ensino Secundário.

Livros publicados: O CERCO DA QUIMERA, colecção Poesia Minerva, 1997

Edições

MinervaCoimbra,

CANTO EM TOM MAIOR, Edições MinervaCoimbra, colecção Poesia Minerva, 2001 ENTRE MONDEGO E CUBANGO, romance, Edições MinervaCoimbra, 2005 A MENINA QUE NÃO SABIA AS CORES, literatura para a infância com ilustração de Ana Ribeiro, Vega, 2006, recomendado pelo Plano Nacional de Leitura.


ISABEL RAINHA

O Mistério do Albatroz



A FOZ DO RIO-MAR



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A história que vou contar passou-se há muito, muito tempo, quando o Vento dominava e um pequeno país situado no extremo ocidental da Europa era governado por um rei muito jovem que sonhava com aventuras e glória. Caravelas e naus com a cruz de Cristo, tocadas pelos ventos dominantes, cruzavam os mares em todas as direções competindo com aves marinhas de grande porte que atravessavam os céus em voo planado, vencendo enormes distâncias. Numa manhã de Abril, uma caravela aportou a uma pequena baía situada no delta de um enorme rio em Terras de Vera Cruz. Na tarde do dia anterior, os marinheiros tinham avistado terra. Navegaram durante toda a noite sem que ninguém pensasse em descansar, mas a orientação dos ventos só permitiu que chegassem ao nascer do sol. A travessia do mar oceano durara quase sete semanas. Os homens vinham exaustos por tanto tempo de mar e de tormentas, famintos e fracos devido à falta de alimentos frescos. Estavam ansiosos por voltar a pisar terra firme.

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Apressaram-se a lançar a âncora ao mar e fizeram baixar os botes. Em seguida, desceram pela escada de corda e entraram nos pequenos barcos, remando para a costa. Apesar das poucas forças, remaram depressa e, mal chegaram a terra, ainda tiveram energia para correr, tamanha era a vontade de beberem a água cristalina da nascente que viam ao longe e de colherem os frutos que pendiam das árvores. Depois de saciados, deitaram-se na praia e adormeceram. Estavam tão cansados que nem se preocuparam com a possibilidade de haver perigos à espreita. Já a tarde ia avançada quando foram acordados por um ruído ensurdecedor vindo dos lados da floresta cerrada: com o aproximar do pôr-do-sol, os animais revelavam a sua presença como se cantassem para espantar o medo do escuro que começava a desenhar-se. Descansados pelo sono reparador, os marinheiros puderam observar o ambiente que os rodeava. Um calor húmido a que não estavam habituados dificultava-lhes a respiração tirando-lhes a vontade de se levantarem. Viram uma floresta exuberante que se expandia invadindo o leito do rio o qual, por sua vez, se abria em canais que penetravam na densa mata. O mais estranho é que não se via solo, porque todo o espaço livre fora tomado pelo Reino Vegetal. Só a pequena praia onde aportaram estava coberta de areia, mas também nela havia troncos e outros restos de plantas trazidos pelo rio até ao mar e devolvidos pelas ondas.


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Não precisaram de cortar ramos das árvores. Aqueles que a praia lhes oferecia chegavam para improvisar os abrigos onde passariam a noite. Mal rompeu o dia, os homens prepararam-se para assistir à missa. Tinham muito que agradecer à Divina Providência, pois toda a tripulação chegara de boa saúde, sem perda de vidas. Nos tempos que corriam, eram frequentes os ataques de corsários que não se limitavam a roubar, antes mostravam uma grande crueldade para com os marinheiros aprisionados. Ainda recentemente, uma nau fora desviada da rota por uma tempestade indo aportar às ilhas Canárias onde fora atacada por piratas franceses que sacrificaram toda a tripulação incluindo os dois religiosos, por estes tomarem a defesa dos marinheiros pedindo que lhes poupassem as vidas. O desgaste e cansaço dos homens após a travessia do oceano era coisa sem importância atendendo à duração e dureza da viagem, pois nenhum deles adoecera com gravidade e bastara uma refeição de frutos frescos e uma boa noite de sono em terra para os deixar com forças para iniciarem a exploração das novas terras.

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A SELVA



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Enquanto a maior parte dos marinheiros se preparava para organizar o aldeamento iniciando a construção de casas de madeira, mais firmes do que as precárias cabanas onde haviam dormido, um pequeno grupo partira rio acima a explorar a zona. A tripulação era heterogénea e foram diversas as razões que levaram os homens a embarcar. Muitos deles tinham deixado o reino em busca de fama ou de fortuna, mas havia quem tivesse outras motivações. O padre jesuíta Manuel de Souza que vivera durante cinco anos na Terra de Vera Cruz, embora mais a sul, voltava agora àquelas paragens com a intenção de fundar uma missão para evangelizar os índios. Com eles aprendera a falar a língua tupi, a evitar muitos dos perigos escondidos na selva e a distinguir as plantas venenosas das comestíveis. O físico D. Martim de Almeida, que também fazia parte da expedição, viera para estudar a flora do Novo Mundo. Cursara medicina em Coimbra e, mal regressara a Lisboa, recém-formado, deparara-se com a epidemia da peste

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grande que vitimava diariamente centenas de pessoas. Tivera o privilégio de ser assistente de um cristão-novo que lhe ensinou os preceitos de higiene compilados no tratado Recompilação, da autoria de dois físicos castelhanos. Com ele aprendeu que mais do que tratar dos doentes era necessário evitar a progressão da peste com normas de higiene rigorosas, já que o tratamento com uma mistura de especiarias e as fumigações de alecrim se tornavam pouco eficazes quando o mal já se instalara. O mais importante era tentar deter aquela horrível moléstia e fazer os possíveis por sair incólume apesar do contacto tão próximo com os moribundos. A experiência da peste tornara clara a insuficiência dos remédios conhecidos. Os físicos e os boticários preparavam os medicamentos a partir de uma mistura de ervas que maceravam em almofarizes, mas as ervas conhecidas não eram suficientes. D. Martim tinha ouvido o padre Manuel de Souza falar da selva, da enorme variedade de seres que a habitavam, de como os índios usavam as plantas no tratamento de doenças. Por isso se decidira a empreender uma longa viagem e estava disposto a sacrificar-se explorando a floresta virgem, de tão difícil acesso. Esperava vir a conhecer novas espécies que pudessem servir para tratar alguns males para os quais não se conhecia cura. Durante vários dias, D. Martim e os companheiros exploraram a foz do grande rio, tão grande que lhe chamavam o rio-mar. O padre Manuel de Souza alertava constantemente os companheiros para os perigos que ele já conhecia.


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Caminhavam com grande dificuldade, com as mãos e o rosto molhados, a roupa colada ao corpo devido ao calor e intensa humidade que impedia a evaporação. Aves coloridas e grandes borboletas competiam em beleza com uma enorme variedade de flores. Um ruído de mil vozes de animais tomava conta do espaço do silêncio. Mal penetraram um pouco na selva, começaram a perder as referências que lhes permitiriam orientar-se porque era tanta a vegetação e tão altas as árvores, que nem sequer se via o céu. Apenas uma luz ténue atravessava os estratos da floresta e chegava ao nível do solo onde plantas de grandes folhas a recebiam como dádiva preciosa. Por esta razão, os homens não podiam afastar-se do rio onde o espaço era um pouco mais aberto. Sabiam que lhes seria mais fácil encontrar o caminho de regresso se caminhassem junto à margem, apesar da grande quantidade de braços e pequenos lagos formados pelo curso de água lhes impedir uma progressão em linha reta. Logo no segundo dia de incursão na floresta, o jesuíta reconheceu a árvore de cuja casca se fazia um chá para evitar e curar as febres da selva. Colheram uma boa porção de fibra do tronco enquanto D. Martim desenhava a árvore em pormenor. Iniciava, assim, a elaboração de um álbum que possibilitava reconhecer cada espécie e o uso que lhe era dado no tratamento ou na prevenção de doenças. Nesse mesmo dia, a conselho do padre Manuel de Souza, começaram a beber a infusão de quina para evitar serem vitimados pelas febres. Todos os dias improvisavam abrigos para passar a noite e havia sempre um homem de prevenção enquanto os outros dormiam. Não sabiam que perigos os rodeavam.

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O SALVAMENTO



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O segundo dia de exploração foi muito difícil para todos. Mal levantaram o acampamento, uma chuva breve, mas muito intensa, desabou sobre eles. No meio da floresta, as copas das árvores aparavam-na na sua maior força preservando o solo do seu poder erosivo, mas junto ao rio, em espaço mais aberto, as fortes bátegas arrastavam árvores e solo para a corrente. Grandes buracos substituíram o emaranhado vegetal da margem tornando o piso muito irregular e escorregadio. Um dos homens caiu sendo arrastado na direção do rio. D. Martim precipitou-se para ele com grande valentia e conseguiu segurar o companheiro impedindo que a corrente o levasse até que chegassem os outros em seu auxílio. O homem estava muito magoado. Durante a queda, os ramos das árvores derrubadas tinham-lhe retalhado o corpo. O cirurgião pediu para improvisarem um abrigo que os protegesse da força da chuva. Então, limpou cuidadosamente os ferimentos, deu uma bebida ao companheiro para

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que ele não sentisse tanto as dores e coseu ali mesmo os grandes golpes. Depois, ligou as feridas com tiras de pano e recomendou ao companheiro que descansasse. Sabia que o odor do sangue nas feridas abertas poderia atrair todo o tipo de animais, incluindo os insectos. Mais uma vez, tiveram a impressão de ser observados, mas não viam seres humanos, nem cabanas que pudessem ser habitadas. Procuraram um lugar mais seco, mais afastado do rio, e prepararam um abrigo para que o ferido pudesse recuperar as forças. Nesse dia, não prosseguiram a exploração. Na manhã seguinte, retomaram a marcha, embora a um ritmo mais lento, de modo que não fosse tão penosa para o doente. Para se alimentarem, apanhavam os frutos indicados pelo padre. Ele conhecia bem os que eram comestíveis e aqueles que deveriam ser evitados por serem venenosos. Também pescavam no rio uns peixes de dentes pontiagudos, muito saborosos – as piranhas. – Tenham cuidado! – Avisava o Jesuíta. – Estes peixes são muito perigosos. Se lhes cheira a sangue, atacam em grupo e são capazes de devorar animais muito maiores que eles deixando-os reduzidos ao esqueleto. Mesmo o homem... Na realidade, a selva escondia muitos perigos, não feras como as que existiam nas florestas de África ou da Ásia porque o único mamífero realmente perigoso era a onça pintada, mas uma enorme variedade de serpentes. Nos rios, nadavam cobras gigantes, as sucuris, que não eram venenosas, mas conseguiam engolir animais do


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tamanho de uma vaca. Pendendo das árvores ou no chão da selva, havia serpentes de todas as cores e tamanhos. O padre Manuel recomendava aos companheiros que tivessem cuidado porque algumas possuíam venenos terríveis que matavam em segundos. As botas de cabedal grosso protegiam-lhes os pés, mas o resto do corpo estava mais vulnerável e era preciso ter atenção. Durante vários dias, os homens exploraram a selva. Viram animais e plantas de todas as cores, no chão da floresta ou em cima das árvores. Quanto mais se afastavam da costa, mais insuportável se tornava o calor. Inspiravam o ar grosso e pesado como quem engole, e era um esforço enorme a acrescentar ao desbravar da mata virgem. Até mesmo junto ao rio se viam obrigados a cortar plantas para conseguirem progredir. Por vezes, os exploradores ficavam com a sensação de que alguém os espiava apesar de não verem qualquer ser humano para além daqueles que constituíam o seu grupo. Só a vozearia estridente dos papagaios e das araras se destacava. A progressão fazia-se lentamente devido às condições difíceis da selva e ainda mais porque D. Martim desenhava todas as plantas detalhadamente. Cada flor, cada fruto era observado com minúcia e o registo desse estudo era feito no álbum. Dele constavam o desenho e a descrição bem como as dimensões, de modo a que não pudesse haver qualquer engano no reconhecimento posterior das espécies.

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ENCONTRO COM OS GENTIOS



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Uma manhã, quando o físico se debruçou para observar uma planta de grande beleza, uma pequena serpente escondida debaixo das folhas picou-lhe um dedo. D. Martim empalideceu e caiu no chão sem dar acordo de si, deixando os companheiros consternados. Quando se preparavam para regressar ao acampamento levando o ferido consigo, convencidos de que já nada podiam fazer para o salvar, dois homens surgiram e começaram a falar numa língua estranha. Eram ambos muito jovens. Os cabelos negros e lisos tinham sido cortados muito curtos e o corpo, de pele mate ligeiramente avermelhada, estava enfeitado com pinturas e colares feitos de sementes e de penas de colibri. Não possuíam qualquer espécie de roupa. Só o padre Manuel de Souza conseguiu compreender alguma coisa do que diziam. Percebeu que eles queriam levar o moribundo para a aldeia índia a fim de ser tratado pelo curandeiro.

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A pouco e pouco, foram surgindo outros homens por entre as árvores. Durante todo aquele tempo de incursão na selva, os exploradores tinham sido observados e seguidos pelos gentios. Viram como D. Martim estudava as plantas, viram-no salvar e cuidar do companheiro ferido. Perceberam que se tratava de um pajé, um homem capaz de curar, digno do maior respeito. Alguns homens quiseram recusar a ajuda dos indígenas. Constava que os índios matavam os inimigos e reduziam as suas cabeças até pequeníssimas dimensões. Tinham medo que fizessem o mesmo a D. Martim e por esse motivo, acreditando que o físico não tinha salvação, preferiam dar-lhe um enterro cristão a deixar que fosse levado por selvagens. Após uma pequena conversa com os gentios, o padre Manuel achou que deviam arriscar. Nenhum deles sabia tratar do amigo e tinham de fazer tudo para o salvar. Um dos indígenas cortou a ferida e chupou o veneno da cobra, cuspindo-o em seguida. Depois, improvisaram uma maca e D. Martim foi levado para a aldeia índia, seguido por dois companheiros que não o quiseram abandonar. Um deles era o ferido que o médico salvara da força das águas. Os outros homens regressaram ao acampamento principal com a triste notícia. Chegados à aldeia, logo o pajé foi informado do sucedido e acolheu prontamente o doente na sua própria cabana. Aí, aplicou-lhe uma cataplasma de plantas na ferida e fez arder estranhas ervas que encheram de fumo o ambiente, ao mesmo tempo que murmurava palavras mágicas. Este tratamento foi repetido ao longo de vários dias.


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D. Martim de Almeida não abria os olhos, mas via-se que não estava morto porque ainda respirava, embora levemente. A pouco e pouco, as ervas e os sortilégios do pajé foram fazendo efeito e, algumas semanas depois, o médico abriu os olhos e foi capaz de beber uma infusão preparada pelo curandeiro. Embora tivesse sido mordido por uma das serpentes mais venenosas, D. Martim estava a melhorar. No entanto, não podia fazer a viagem de regresso enquanto não estivesse suficientemente forte e isso poderia levar muito tempo. Já que se via obrigado a permanecer na aldeia até estar perfeitamente restabelecido, aproveitou para aprender a língua dos índios de modo a poder comunicar com eles de forma mais eficaz. Acabou por se sentir bem, tão bem que foi perdendo a ânsia de regressar que sentira nos primeiros dias de contacto com aquela civilização desconhecida. A aldeia era formada por casas sustentadas por vários troncos que formavam o esqueleto das paredes e também se erguiam no interior para suportar uma cobertura de folhas e ramos entrelaçados, bem como as redes de algodão que usavam para dormir. Durante o tempo em que esteve doente, D. Martim viveu na cabana do pajé. Os dois exploradores que o acompanharam adaptaram-se bem aos hábitos dos indígenas, abandonaram as roupas pesadas que haviam trazido do reino, ajudaram nas tarefas destinadas aos homens e interessaram-se por raparigas índias a ponto de as quererem para suas companheiras.

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A vida na aldeia era simples e feliz. Um pequeno rio de águas muito límpidas que desaguava no rio-mar garantia-lhes a água e o peixe de que necessitavam. A floresta, apesar dos perigos, albergava muitos animais, frutos e raízes comestíveis. O pajé conhecia bem as plantas que curavam as doenças. Os homens da tribo tinham por missão pescar e caçar enquanto as mulheres cuidavam dos filhos, plantavam mandioca e cozinhavam. Um braço do rio alimentava um pequeno lago coberto por uma espécie de nenúfares cujas folhas, grandes como bacias, serviam de berço às crianças durante a sesta. Quando D. Martim se sentiu mais forte, começou a sair com os homens da tribo para pescar e caçar, tal como já faziam os dois europeus que o tinham acompanhado. De tarde, sentava-se na beira do lago a desenhar os animais e as plantas que habitavam a selva. Desenhou também algumas cenas da vida na aldeia enquanto as mulheres da tribo entoavam canções de ninar para embalar as crianças deitadas nas folhas da rainha dos nenúfares. Quando o físico gastou toda a tinta que levara consigo, o pajé ensinou-o a extrair corantes de várias plantas e assim foi possível continuar a registar as observações. O corante vermelho, extraído de uma planta a que chamavam urucu, era usado pelos índios para pintarem o corpo a fim de se protegerem dos raios do Sol e das picadelas dos mosquitos. Aquele retiro forçado na aldeia índia acabou por se mostrar de grande valia para o médico. À medida que recuperava as forças, acompanhava o curandeiro na visita aos doentes ou na colheita das plantas. Os dois homens


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gostavam de conversar sobre o modo de tratar cada doença. O pajé, considerando-o um seu igual, um homem capaz de curar, não lhe escondia os segredos da mata. Pôde, por isso, aprender mais depressa as virtudes das plantas, missão que lhe fora confiada e que o fizera viajar para tão longe da terra onde nascera. O padre Manuel de Souza, embora tivesse grande interesse pelos métodos indígenas de tratamento, não poderia ter-lhe ensinado tanto.

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O NASCIMENTO DO NETO DO GUERREIRO



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D. Martim começava a pensar em regressar. Sabia que os amigos deviam estar preocupados, ansiosos por notícias. Mas, desta vez, eram só três homens para desbravar o caminho e sabiam bem como era difícil progredir na mata cerrada. Mesmo assim, começaram a fazer os preparativos para a viagem. Entretanto, um acontecimento veio pôr à prova a competência do médico e engrandecê-lo aos olhos dos índios. A filha mais velha do chefe da tribo chegara ao fim da gravidez e a criança, em má posição, não conseguia nascer. Durante dois dias e duas noites, as mulheres mais experientes e o pajé tinham tentado ajudá-la, sem resultado. O sofrimento era grande e enorme o risco de morte para a criança e para a mãe. D. Martim ofereceu-se para auxiliar. Com todo o cuidado, observou a mulher em trabalho de parto e conferenciou com o pajé. A cabana estava cheia de anciãs que tinham vindo para ajudar e que, perante a dificuldade daquele nascimento, não sabiam que fazer. Pediu-lhes, por

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isso, que saíssem. Só a jovem Iara teve permissão para ficar porque as suas palavras e modos suaves acalmavam a irmã. Pouco depois, a parturiente dava à luz um lindo bebé, robusto e saudável, que encheu o aposento com um choro forte, o grito do guerreiro, como lhe chamou o chefe índio que se apressou a conhecer o neto. Toda a aldeia festejou o nascimento da criança. Era o primeiro neto do seu principal guerreiro que não tinha nenhum filho homem. Durante os festejos, o chefe quis mostrar o seu apreço e reconhecimento ao médico, oferecendo-lhe em casamento a sua filha mais nova. D. Martim sentiu-se honrado com a prova de consideração por parte do chefe índio. Iara era uma jovem muito bela e delicada. No entanto, ele sabia que o seu dever era voltar ao reino e não achava justo aceitar Iara como sua esposa para depois a abandonar. Foi isso que disse ao Chefe.

D. Martim comunicou aos dois companheiros a sua decisão de partir logo que rompesse o dia. Esperava-os uma longa caminhada através da selva virgem e tinham de usar bem as horas de luz, tanto mais que era muito ténue a luminosidade filtrada pelas várias camadas de plantas dos estratos da floresta. Só perto do rio o espaço se tornava mais aberto e luminoso. Ambos se mostraram renitentes: não queriam ir sem as suas índias. Então, D. Martim pediu ao chefe da tribo que as deixasse seguir com eles até ao acampamento. A verdade é que considerava a sua companhia muito útil


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porque as jovens conheciam bem a mata e não deixariam que se perdessem. Prometeu que seriam bem tratadas. Depois de dar o seu consentimento, o Chefe mandou preparar uma piroga e cedeu-lhes dois homens experientes para os conduzirem à foz do rio-mar. Sabia como a selva poderia ser traiçoeira para quem não a conhecesse bem, como era difícil a orientação mesmo seguindo o curso do rio, demasiado recortado para servir de referência. Sabia que qualquer pequeno obstáculo os poderia fazer mudar de rumo, perdendo-se irremediavelmente. A viagem de barco era mais rápida e menos perigosa. Na última noite passada na aldeia, D. Martim convidou Iara a sentar-se com ele na beira do lago. Queria explicar-lhe o motivo que o levava a regressar e o porquê de não a levar consigo. Era uma noite muito clara e a lua cheia refletia-se no lago parecendo estar ali, ao alcance da mão. Como que por magia, brotou do meio das águas uma flor rósea por entre as grandes folhas da Victoria amazonica. Então, Iara começou a contar uma antiga lenda, a lenda de Naiá. – Há muito, muito tempo, numa noite como esta, uma bela jovem chamada Naiá apaixonou-se pela Lua. Nunca vira nada mais belo que Jaci (a Lua) iluminando o céu por entre as estrelas e aquela visão marcou, para sempre, o seu destino. Quando chegou à idade de casar, foram muitos os guerreiros que vieram pedi-la em casamento. Vieram os mais valentes e os mais belos, mas Naiá a todos recusou.

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À medida que o tempo passava, Naiá ia ficando mais triste, até que um dia saiu de casa para não mais voltar. Corria pela mata subindo todas as colinas na esperança de se aproximar de Jaci e aí pedia-lhe que a levasse consigo e a transformasse numa estrela. De dia, dormia no chão da floresta e, mal escurecia, continuava a sua busca. Uma noite, já muito cansada, ajoelhou-se na margem de um iguarapé para beber água e viu a lua reflectida nas águas, em todo o seu esplendor. Julgando que Jaci a vinha buscar, lançou-se ao lago sem qualquer hesitação e desapareceu para sempre. Conta-se que a lua se apiedou da jovem e a transformou na Estrela das Águas, esta flor que só abre as suas pétalas nas noites de luar, perfumando a noite para os amantes.

D. Martim compreendeu a mensagem de Iara. Percebeu que ela seria capaz de atravessar sozinha a mata para ir ao seu encontro. Assim, acabou por aceitar que ela o acompanhasse até à foz do rio.


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