O Soba Branco

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O SOBA BRANCO


FICHA TÉCNICA Edição: Vírgula Título: O Soba Branco Autor: António Serra Correia Revisão linguística: Ana Domingos Paginação gráfica: Paulo Resende Design capa: Patrícia Andrade 1.ª Edição Lisboa, Abril 2013 Impressão e acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-8413-90-1 Depósito legal: 357657/13 © António Serra Martins Publicação e comercialização Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 - 1.º dt | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


ANGOLA (ANOS 60)

O SOBA BRANCO ANTÓNIO SERRA CORREIA

Nota: Por vontade do autor, esta edição não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.



PREFÁCIO

António Serra Correia, autor do livro A Geração Rejeitada, onde relata as suas vivências em Angola, brinda-nos agora com este romance baseado em factos reais. Angola, com as suas paisagens, suas gentes e costumes, é mais uma vez retratada neste romance, vivido durante e após a guerra colonial. De 1961 a 1975, combateram em Angola milhares de militares portugueses, brancos e negros, além das Unidades recrutadas no próprio teatro de operações. Estas tropas eram unidades especiais africanas, adaptadas às técnicas de combate específicas da guerrilha e do terreno: GE, GEP e Flechas. O cerne da trama desta obra é a convivência de raças e a sua mistura, ponto em que os portugueses sempre foram únicos na sua passagem pelos cinco continentes. Diferentes dos outros europeus, que viviam nas suas colónias africanas separados dos nativos, os portugueses uniram-se aos locais pelo casamento, dando origem à mestiçagem de que Angola é o exemplo mais flagrante. Teremos nós, povo que nasceu de uma mistura de raças que ocuparam o nosso território em épocas remotas (Celtas, Visigodos, Romanos e Mouros), uma predisposição natural para as relações inter-raciais? Eu diria 7


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que sim. Somos únicos em absorver culturas, em conhecer a língua e a religião dos outros e em manifestar respeito pela diferença e pela partilha da vida. “Caló”, a personagem principal deste romance, desembarca em Luanda como militar em comissão de serviço, numa terra completamente desconhecida. Ele vai combater numa guerra de guerrilhas, em que o inimigo não se diferencia dos demais habitantes das sanzalas, com hábitos e costumes novos para ele, acabando por ficar agarrado a esta terra pelo coração. Esta obra é mais uma pincelada no quadro daquela época, que, aos poucos, vai sendo conhecido através de histórias como a de Caló. Muitas mais haveria para contar e divulgar. Para quem lá viveu, o autor faz recordar um pouco o que ali se passou, desde a década de 1960 até à debandada na ponte aérea. Para aqueles que nunca lá estiveram, ele explica o porquê da nostalgia das terras de África, que muitos ainda sentem. Devemos isso aos que sempre amaram aquela terra e, principalmente, aos que lá deixaram as suas vidas. Antonieta Gomes 25 de Fevereiro de 2013

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INTRODUÇÃO

Este romance de ficção teve inspiração numa história verídica, respeitando os valores culturais de dois povos irmãos, que souberam conviver em harmonia durante séculos e numa época crucial para ambos, em que os políticos de então, e de ambos os lados, tentaram aproveitar para esgrimir os seus argumentos. Infelizmente, nem sempre o conseguiram da melhor forma. A história é baseada numa realidade em tempos de atritos, em zona de conflito armado, mas já denotando um verdadeiro decréscimo, por influência de determinadas medidas políticas com iniciativa das entidades coloniais e bem aceite, tudo fazia crer, pelo povo mais isolado do interior angolano, aquele que mais sofria na pele as acções militares, tanto de um lado como do outro. No entanto, não era generalizado. Foi o início de um tempo de tréguas, senão real, pelo menos aparente, principalmente em determinadas zonas importantes, tanto para os militares portugueses como para os combatentes nacionalistas. Estou a referir-me concretamente à política da denominada “psico”, exercida no seio das populações a partir de determinada altura. 9


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A verdade é que este tipo de actividade não dignificava muito a posição do colonizador e, da parte dos nacionalistas, a medida não passava de mais uma manobra de querer desviar a atenção do povo da importância que este tinha no seio de uma guerra de guerrilhas, de modo a fazer com que “mudasse de campo”, tanto em simpatia como em preferência. Ambas as partes sabiam que o apoio popular num confronto armado como este era fundamental e, devido a esta medida política, tudo indicava que as forças coloniais estavam a levar a melhor. Estavam realmente a colher frutos disso. Do outro lado, as medidas mais eficazes eram acções de esclarecimento político onde se denegria esta medida que “visava a divisão do povo e [em] que tudo não passava de uma manobra de diversão”. Eram, por vezes, proferidas palavras de cariz racista, tema muito forte para o angolano (pelo menos para alguns), que não esquecia outros tempos de martírio e escravidão. No entanto, o povo sabia também que esse tempo já tinha passado, salvo alguns tristes episódios isolados, e esses havia-os tanto de um lado como de outro. Esse mesmo povo soube então aproveitar, e muito bem, escolhendo ora um lado, ora o outro, conforme o que recebia em troca e o que mais lhe convinha no momento. Decorria um tempo de relativa paz e penso que quem mais ganhou com isso, para além do povo, foram as forças armadas coloniais. Assim, o povo tinha o que mais precisava, desde assistência médica, transportes, formação escolar básica, sustento alimentar, entre outras, e as forças militares conseguiam algum tipo de informação que lhes convinha, estreitando laços de verdadeira amizade, nalguns casos, e a paz necessária para expandirem a sua área de influência, construindo novas estradas, pontes e iniciativas de toda a ordem, desenvolvendo 10


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e expandindo todo o tipo de comunicações, fundamentais para o êxito que se pretendia no campo político e militar. Na realidade, o conflito armado em Angola (por causa desta medida, ou não) estava a ter um desfecho positivo para o lado português e, para além disso, os três movimentos nacionalistas digladiavam-se entre si devido a divergências tanto políticas como ideológicas, tribalistas e regionalistas. Todos pretendiam chamar a si a atenção internacional, para que fossem reconhecidos como verdadeiros defensores dos interesses do povo angolano, fazendo com que os outros, não sendo reconhecidos como tal, pudessem ser marginalizados e, quando muito, não fossem além da sua clandestinidade. É verdade também que nunca descuraram a oportunidade de se mostrar activos em acções de combate com as forças portuguesas, sempre que a ocasião surgia e quando o alvo era devidamente escolhido como sendo o mais frágil e de maior sucesso para si, tanto no campo militar como político. Em caso de êxito para si, para os outros movimentos era como se fosse também uma derrota. Seria então considerada como uma tripla vitória. Foi então neste ambiente que esta história decorreu, e cujos personagens, lugares, Kimbos, ou outros, o autor não relevou de grande importância quanto à veracidade dos mesmos. Um pouco de ficção, também nesse campo. O Autor

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CAPÍTULO I

Decorria o ano de 1963 e Luanda, para quem a conheceu no início da luta armada em 1961, já não parecia a mesma. Praticamente todo o território era, nos tempos que decorriam, essencialmente agrícola. Proliferavam as grandes fazendas de café, algodão, sisal, cana-de-açúcar, palmar, para além, de uma forma dispersa, de alguma produção hortícola e frutícola. Todavia, passados alguns anos e após alguma acalmia, pelo menos aparente, no interior norte e real nas cidades, nomeadamente nas capitais de Distrito, notou-se um regresso de muitos daqueles que desacreditaram no futuro de Angola, após, de uma maneira directa ou indirecta, terem sofrido graves consequências materiais ou familiares (consequentes dos ataques que a UPA efectuara no norte) e onde tinham implantado toda sua vida. Ainda assim, poucos voltaram aos locais de onde tiveram de fugir e onde alguns ficaram sem os seus familiares mais queridos e de uma forma tão inesperada e brutal. A principal montra demonstrativa desse progresso era precisamente Luanda, a capital. Os bairros habitacionais apareciam quase do dia para a noite, a par dos musseques que se 13


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expandiam ao redor da cidade. A indústria desenvolvia-se a olhos vistos. No centro e na baixa os arranha-céus erguiam-se, o comércio expandia e os grandes armazéns de café e de outros produtos abarrotavam. No porto marítimo, principal porta de entrada para aqueles que regressavam e para os que vinham pela primeira vez, era uma azáfama total de trabalho de toda a ordem. Apareciam novos hospitais e novas escolas, a primeira Universidade ganhava vida e tornou-se fundamental a construção de um novo e maior aeroporto. Os transportes urbanos cresciam e andavam sempre a abarrotar de passageiros para os mais diversos pontos da cidade. A indústria pesada e química era já uma realidade e trabalho não faltava a ninguém. Era notória a qualidade da informação escrita e falada. Paralelamente, a cidade embelezava-se com novas urbanizações. Belos jardins, lindas avenidas e monumentos, divertimentos nocturnos e diversas casas de espectáculos iam surgindo. Nas praias, em dias de descanso e fins-de-semana, era quase sempre um mar de gente e os clubes desportivos desenvolviam-se nas mais diversas modalidades, deles saindo alguns atletas que conseguiram marcas de relevo, tanto a nível nacional como internacional. A rádio e a imprensa eram uma peça fundamental no mesmo desenvolvimento e a vida pessoal era demonstrativa de um bem-estar económico e cultural. Foi mesmo reconhecido que a população vivia de uma forma tão alegre e livre, que nem parecia haver uma polícia política que a todos pretendia controlar, com o argumento de manter um clima de segurança nacional. Quando é que, em Lisboa, por exemplo, alguém ousaria, numa qualquer esplanada, falar mal do Governo e, nomeadamente, de Salazar? Ai daquele que ousasse! No entanto, em Luanda e não só, acontecia, por vezes, não de uma forma generalizada, mas discreta, haver dois, três 14


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ou mais parceiros de mesa num café ou esplanada que o faziam e ninguém ligava a isso, porque também não era essa a matéria mais importante e prioritária a ter em conta pela mesma polícia. A área urbana e municipal, constava-se, era já maior que a de Lisboa e o número de habitantes aumentava, não apenas com a vinda de nacionais, que por qualquer motivo deixavam os seu kimbos de origem e vinham para as cidades, porque havia trabalho para todos e onde morar, como se de “novos colonos” se tratasse, mas sobretudo de militares que, ao chegarem ao término da sua comissão de serviço militar, eram seduzidos pelo progresso e por uma nova forma de vida e um futuro que se apresentava risonho. Alguns, e não poucos, desfizeram-se de tudo o que tinham nas suas terras da Metrópole, para ali investirem no seu futuro e no de todos os seus. Estava a decorrer ainda a primeira metade do ano de 1963, e, em Abril, a cidade fora fustigada por enormes enxurradas. Era já sabido que, por vezes, caíam chuvadas com tal intensidade ao ponto de causar grandes estragos, mas como aquela que caíra naqueles últimos dias de Abril, muito poucos, para não dizer ninguém, se lembravam. Ruas e avenidas esventradas com automóveis e mesmo “machimbombos” (autocarros) engolidos por completo, alicerces de grandes edifícios a descoberto e a baixa, essa então, era a mais sacrificada. Tinha ficado submersa em lama, em determinados sítios até à altura de um primeiro andar. Teria sido por causa do desenfreado crescimento? Por terem sido feitas obras à pressa e de maneira irresponsável? Não! Nada disso. Talvez mais devido às características geográficas da cidade, também ela, como Lisboa, conhecida como cidade de sete colinas. E a precipitação fora, sem sombra de dúvida, descomunal. Um verdadeiro dilúvio, diziam alguns. 15


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Imediatamente se puseram “mãos à obra” e, em relativo pouco tempo, a cidade ficou como nova e ainda mais bonita. A vida quotidiana não parou nem se desviou dos seus objectivos. Este desenvolvimento, mais ou menos acelerado, não se fazia notar apenas nos grandes centros urbanos. Também no interior, principalmente onde a segurança se tornava mais eficaz e evidente, se desenvolviam as indústrias ligadas à agro-pecuária e seus derivados. Caso relevante nesta área, era a indústria de lacticínios na Cela, a indústria derivada da pesca e os transportes de longo percurso como, por exemplo, a E.V.A., sediada em Nova Lisboa. Para além destas, também outras indústrias se desenvolveram, em Luanda e outras cidades. Já para não falar da frota costeira que percorria toda a orla marítima, e dos caminhos-de-ferro de Benguela que, entre outros, fazia o transporte de minério de ferro de Kassinga e sisal para o Lobito, essencialmente para exportação. A par de tudo isto, algumas indústrias eram já uma realidade, e do conhecimento internacional, como era o caso da exploração petrolífera e respectiva refinação, a diamantífera e a de siderurgia e cimenteira.

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