O рoęȶą ȵo şęu ħomizio
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O рoęȶą ȵo şęu ħomizio
Ɲorberto
Ðo
√ale Ƈardoso
O рoęȶą ȵo şęu ħomizio
(Projecto Marginalia II)
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Ficha Técnica: Edição: Edições Vírgula
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(Chancela Sítio do Livro)
Título: Projecto Marginalia II: O Poeta no seu homizio Autor: Norberto do Vale Cardoso Revisão/Formatação: Norberto do Vale Cardoso Capa: Patrícia Andrade 1ª Edição Lisboa, fevereiro de 2014 Depósito Legal: 368901/13 ISBN: 978-989-20-4451-4 Publicado e Comercializado:
Av. Roma nº 11, 1º Dtº |1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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«O inferno é incapaz de inventar uma tortura pior do que a de ser acusado de debilidade anormal pelo facto de ser anormalmente forte.» (Edgar Allan Poe, Marginalia)
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1: Estígio
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«Tenho de estar muito tempo sozinho. O que consegui realizar é apenas resultado do isolamento.» (Franz Kafka)
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1, 1
Decerto o poeta entrou no templo à procura de víveres não cansado de desobediência civil antes homiziando-se da insipidez de si mesmo, pois terás sabido que o poeta traduz a inquietude esfomeada com uma aparente tranquilidade social O poeta parece apaziguado, mas, no fundo, é como um homem de Tollund, percebes?
Para o poeta, viver não é viver, é encontrar um lugar, mas um lugar que se não situe entre as margens, que não o oprima e que implique dar passos largos sem pegadas O poeta encontra-se sempre no seu homizio (mesmo quando pensas que está a conversar contigo,
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essa conversação é para ele descobrir o sentido do seu homizio no leito do rio de fogo) E é ali que ele vive, ainda que viver seja apenas um modo de falar (e falar seja um modo de existir sem exílios), pois a vida que o poeta vive é uma vida que (para os outros que vivem outra vida) não é viver A vida dos outros é aqueloutra cujo tempo de experimentação e utilidade corre sem se saber como, conforme passam as palavras sem que se saiba para que servem, como não se sabe para que serve a vida, porque a velhice só envelhece quando os sonhos não chegam antes de qualquer jantar
Já o poeta, aquele do ofício dos mortos, homiziado em seu homizio interior, senta-se hontem
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à sua mesa, na sua cela, na sua selha, pensa e rejeita a mesa, a cela e a selha, acendendo a lareira com sentimentos de lenha (e pressentimentos de cinza), vivendo a sua vida precária em que o tempo é uma escassez tanto de água como de fogo, não se atendo à água porque esta escoa pela lâmina da barba até à velhice que não é amanhã, mas, antes, o dia pretérito que é fogo porque o fogo não é Luz
1,2
O poeta no seu homizio longe da falange tem uma mesa e uma cama e uma selha
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que não existem porque o que o poeta quer é tão-só cantar a mesa e a cama e a selha e não possuir os objectos ou as coisas como a mesa ou a cama ou a selha, e/ ou outros que tenha de declarar/ registar/ legar
O poeta não quer mesmo ter-se a si próprio, forçando-se por deixar de existir para não ser – também ele – um objecto de Dor Se o poeta não tiver um corpo não adquirirão para ele um esquife onde vertam o caixão do seu genius a que chamam alma Não terão nem mesmo um pedaço de terra que lacrem a mármore com dísticos ou dobres lamentosos como “AQUI JAZ O POETA…”
e etc. depois do poeta não ter sido poeta
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No homizio, em mesa rasa, o poeta escreve outros poemas e debate-se com os seus dilemas de como deixar de existir existindo Não se trata de como cantar, mas de como ser (ele próprio) um Canto uma Luz que é preciso compor até ser luz
O poeta não se pode experimentar como as substâncias químicas No fundo, o poeta para ser um poeta não pode ser um poeta pois para ser um poeta o poeta tem de ser apenas um symbolo E então a cama e a mesa e a selha e o esquife serão, não coisas, mas signos vigilantes
O poeta é um adido de si mesmo, coloca-se anexo à interioridade desejada
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porque o poeta tem de comer pão O poeta é uma problematização indefinível, uma teoria como pregos mastigados
1,3 O poeta vem e traz o palácio da ventura em suas mãos: não traz mais que coisa nenhuma O nada é o seu ser porque ao nada se chega como quem nasce virado para a Lua como deve ser nada ou uma adaga
O poeta vem de mãos vazias Ele é aquele que nem mesmo tem mãos e, não obstante, as suas mãos são poças vazias ineptas para a agricultura ou a pesca (e cada dedo de cada mão é um feixe um diadema)
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Por conseguinte, o seu vazio é cada uma das suas vidas efémeras afadigadas que em tomos cataloga como quem não se liquefaz
O poeta é um orifício e deseja ser uma frisa onde deites e ajaezes o teu corpo para nele jazer Encontrei-o (de rojo) no vão de umas escadas frias marmóreas geladas de um edifício degradado nu vazio como se as escadas fossem estantes e os vãos os seus poços finitos Ao princípio motivou-me o nojo, mas depois percebi, nas suas frontes esgazeadas, a finisterra da fome e, nela, o meu próprio despojo
O poeta vive só, tem o fogo tem o fátuo e ama nos desertos os infernos das bibliotecas, sabes?
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1,4
O poeta tinha a casa infestada de estantes que lhe deveriam enfezar o cérebro (Tantos livros para nada Tantos livros para isto)
As estantes formavam uma macroteoria inaplicável (dela falarei noutro lugar) Sobre reinvestimentos, o poeta não saberia mais que reutilizar pedaços de textos decorados Todos os livros eram o valor do que ganhara e o que ganhara era a imaterialização de si em vinte e cinco exemplares que dele se fez
1,5
O poeta é só e só o pode ser para ser o que é e o que ele é só Deus o sabe – se Deus É O poeta não tem deuses nem demónios
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nem livros para ler nem casas para habitar Não tem estantes nem despensas nem terrenos nem paredes de cimento O poeta sabe que não tem nada antes de nada ter E sabe que o importante é saber ler sem saber ler O poeta devastado desenraíza-se dos seus próprios braços e mãos porque não quer lacaios ao seu serviço E, no entanto, ama os álacres falazes Os vindouros decompô-lo-ão como quem estuda as bactérias e os despojos do poeta só com sorte difundirão mais que suas matérias entre os crisântemos e as catleias e os cactos e outras coisas sem importância para o não-esteta Por isso o poeta parte como veio: vazio de inefáveis
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1,6
O poeta tinha ensinado, melhor, tinha tentado ensinar, mas os enéadas não queriam a estupidificação
Um poema deve estupidificar (pensava o mestre)
(O poeta que havia dentro do mestre lembrava-se dos que lhe haviam provocado esse estado) Agora o poeta (que lutava por sair de dentro do mestre e deixar o mestre dentro de si) queria dedicar-se às vagas de palavras que assomavam internamente como torrentes sem fim
Se olhássemos o cérebro deste homem veríamos coisas que ele julga perdidas,
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que perdeu dentro de si por manifesta falta de tempo, de concentração, de silêncio (e, sobretudo, por falta de indolor)
1,7
Na aula os discípulos recusam a gramática do que chamam escombros Para eles há apenas a pergunta Está alguma coisa a passar-se lá fora?, como se essa não fosse a regra dos escombros, a lei das coisas inertes, os brônquios das ruínas não incólumes e das runas que constituem cada homem e cada coisa que se move fora de nós, ainda que para dentro ou de dentro de nós Não percebem que cada homem é um lexema de um dicionário ditado pela dicção das folhas que se esfolham nas águas dos lagos, boiando, entre os dedos das deusas, num teorema de si mesmo
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O mestre trabalha os quantificadores da sintaxe da alma, ainda que esta seja agramatical O mestre fica sem tempo (a lunação é irreversível a cada mês de setembro) e os aprendizes quantificam em quanto tempo se traduz a lição Há olhos reluzentes dentro do que professa a Dor olhos apagados em quanta partícula de quanto fiel que articula a gramática dos seus próprios membros
1,8
O senhor professor impacientava-se, ficava míope, gastava o sustento de si nas semanas inúteis a que não chamava “trabalho” Procurava economizar tempo através de trabalhos e acções dúcteis
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que se sucediam saltitando Havia nele um mar de sangue jorrando e o cérebro tinha vísceras gemendo, uma tampa por abrir e papoilas dentro O poeta escondia palavras, ideias, mas não poemas, identidades e vidas, como se tudo nele se tratasse de anomalias Agonizava E entorpecia-se nos poemas
1,9
Pode um poema produzir poemas? O poema é uma produção diferente da de uma cadeira/ mesa/ estante/ fato/ batata O poema escreve-se sentado numa cadeira sobre o tampo da mesa no tempo que dura um sonho E o livro, publicado, comprado, lido, arrumado na estante, figura entre os fatos das batatas
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Mas a estante é de madeira e o poema é imaterialmente presente entregue às baratas e ratas O poema é uma produção inacabada Não alimenta ninguém Nem mesmo existe: é uma representação de uma representação, ou seja, uma alegoria, um delírio, um suicidário O poema não é nada O poeta não produz nada é um ser abjecto, ocioso, um parasita
1,10
O poema é sempre uma falência, uma ausência O poema é uma parede, não uma porta, uma falésia Procuramos nele o real, mas, como nem ele é real, a estrada que percorremos é uma irrealidade que só nos pode levar, álea após curva, curva após álea, à realidade imaginada fechada com uma aldraba
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No entanto: O poema é a luz e nós nós somos a sombra que é preciso compor até à luz
Chegar ao poema não é chegar à luz, mas à sombra da alcateia que somos, ou fomos, ou vamos sendo, ou imaginamos que vamos (dualmente) vivendo
Saberemos algum dia, ó prognes, que chegámos à luz?
1,11
O poema repousa dentro da página, mas mexe-se e desequilibra-se entre os fios. Como se atreve, esse ser diabólico? O poema não sabe se fica, não sabe se morre Por isso, como Prometeu, alimenta-se de si, não para se reproduzir, mas para se salvar de uma catacrese
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que um cliente esteja disposto a cometer Todo o poema é, na verdade, impublicável
1,12
O livro não é uma máquina, pode ser um corpo, mas é muito mais do que um rosto Ele é um quarto contíguo, um claustro da solidão do homem homiziado O livro é um acesso invisível aos objectos reais que o poeta sonha com acuidade
O livro tem células (poéticas, narrativas, perjúrios, etc.), e não peças, tem minimalismos, e não mecanismos de produção O livro tem lugares e processos desconhecidos
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1,13
O poeta apareceu para mudar as coisas de lugar (As palavras são coisas que não podem ser coisas) É preciso que alguém mude as palavras e as coisas para que o mundo tenha a sua redenção O holocausto do poema só pode fazer-se a partir de um homizio interno
1,14
O poeta vive na margem das coisas (hospícios, por exemplo) E comete crimes com os seus textos (homicídios, entre outros) sem que os outros pensem nos seus exílios (O poeta não diz poesia)
Portanto, enquanto arruma os seus livros, o poeta desarruma tudo o resto, questionando Deus
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